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1. Introdução
Com a constitucionalização do Direito Civil e as demais modificações na normativa
em face ao princípio da dignidade da pessoa humana, a herança deixou de ser mera
distribuição de patrimônio daquele que falecera. Em verdade, ficam ainda mais evidentes as
raízes do instituto sucessório como transmissibilidade de valores igualmente entre os
herdeiros. Tal distinção é incompatível com a permissividade de atribuição ou direito
sucessório ao herdeiro que age em contradição com a eticidade e boa-fé em relação ao de
cujus.
Herdar não pode ser visto como uma “mina de ouro” ou uma fonte de renda. Da
mesma forma que é impossível pactuar em face de herança de pessoa viva, é incabível
considerar que o indigno que comete, contra seu ascendente ou co-herdeiros, assassínio,
crimes contra a honra ou a prática de atos que lhe impeçam de testar. Por isso, com base nos
princípios básicos do Direito Civil, não é possível que persista o direito sucessório, apesar de
constitucionalmente assegurado, daqueles que se utilizam de artimanhas para conquistar um
patrimônio em momento ou de modo indevido, mesmo que pertencentes à ordem de vocação
sucessória.
Portanto, com origens históricas profundas, a exclusão por indignidade é hipótese
legal que afasta a possibilidade do abuso do direito de herdar. Este trabalho intenciona
abordar, de modo objetivo, os conceitos básicos da capacidade sucessória, a historicidade da
exclusão da herança por indignidade, a aplicabilidade do princípio da eticidade em sua
fundamentação, bem como as hipóteses, jurisprudência e diferenciação clássica com o
instituto da deserdação.
Há algumas hipóteses, entretanto, que devem ser consideradas para este estudo,
voltadas à parte geral do Direito Civil. Neste sentido, se o feto nascer morto, ou seja,
configurar-se como natimorto, não haverá a este a aquisição da sucessão e, com isso, nem
recebe ou transmite direitos a outrem. A herança ou a quota hereditária será devolvida aos
herdeiros legítimos, ou ao substituto testamentário, se o for indicado.
Um segundo princípio aplicado em ambas as espécies de sucessão é o princípio da
coexistência, que indica que o herdeiro ou o legatário tem de estar vivo durante o processo de
sucessão. A designação de herança presume a sobrevivência do herdeiro a ela, bem como que
seja conhecido. Portanto, se no momento da ação este já estiver morto, a herança é
transmitida aos outros de sua classe, ou aos de imediato, se ele for o único.
A sucessão da herança pode ocorrer também por meio de testamento, conforme
indicado no art. 1.799 do Código Civil. Neste caso, outras pessoas podem ser contempladas
na sucessão, conforme disposição ou ato de última vontade. Assim expõe o referido artigo:
Art. 1.799 Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que
vivas estas ao abrir-se a sucessão;
II – as pessoas jurídicas;
III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a
forma de fundação.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2021), o inciso I insere nova exceção à regra
geral ao permitir a atribuição de herança à cláusula condicional de nascimento de filhos com
vida, de modo que os herdeiros beneficiados por tal cláusula se filiam à destino futuro e
incerto que pode ou não revestir de efetividade o ato de última vontade. Na mesma hipótese,
quando aberta a sucessão, os bens serão guardados por um curador nomeado pelo juiz, a não
ser que apontado em testamento a curatela seja responsabilidade da pessoa cujo filho o
testador esperava ter como herdeiro, e depois as indicadas no art. 1.775 do Código Civil.
No entanto, a nomeação do curador não fica ao arbítrio do juiz, pois deve ele deferir o
munus à pessoa cujo filho o testador pretende beneficiar, ao pai ou a mãe do concepturo
(GONÇALVES, 2021, pág. 31). Uma alternativa aplicável à curatela do concepturo é a
contemplada no §2° do art. 1.775, em que consta a previsão de permissão ao juiz para nomear
um curador dativo quando sopesa a falta de pessoas citadas no testamento.
No que concerne aos filhos adotados, segundo o Código Civil de 2002 em seu art.
1.596, o texto jurídico reafirma o princípio constitucional da igualdade entre os filhos em
relação aos direitos e qualificações, sendo eles adotivos ou não – estando proibida qualquer
forma de discriminação.
Quanto ao tópico dos direitos sucessórios da pessoa que foi concebida por
inseminação artificial post mortem, não se pode falar que subsistem tais direitos para a
respectiva criança, visto que a transmissão da herança se dá em consequência da morte e dela
participam as pessoas que se encontram vivas ou concebidas no momento da abertura do
testamento; ou seja, o feto já deve estar sendo gestado no momento da sucessão. No entanto,
há uma controvérsia por conta do disposto nos arts. 1.597, do Código Civil e 227, §6°, da
Constituição Federal. O primeiro artigo afirma que se presumem concebidos durante o
casamento os filhos adquiridos por fecundação artificial homóloga, mesmo que o marido já
tenha falecido. No segundo, se consagra a igualdade absoluta entre os filhos, não podendo
haver qualquer discriminação. Se assim trata a Constituição Federal, não se justificaria então
a exclusão dos direitos sucessórios do descendente gerado por inseminação artificial post
mortem, visto carregar o material genético daquele que falecera.
Conforme será desenvolvido adiante, é possível que, apesar de um ente estar em plena
capacidade sucessória, bem como na posição mais vantajosa em relação à ordem de vocação
hereditária, seja moralmente excluído da sucessão; pela observação combinada e necessária
dos princípios de eticidade e solidariedade familiar. A respeito do referido instituto se verá a
seguir, de modo objetivo e em consonância com os conceitos já apresentados.
3.2. Hipóteses
A exclusão do herdeiro por indignidade se dá por três hipóteses legais, dispostas no
art. 1.814 do Código Civil. Tal modalidade, conforme apresenta Maria Helena Diniz (2014),
configura um rol taxativo, em que não se podem adicionar, criativamente, novas
funcionalidades para atender um clamor social. A indignidade é uma pena civil, sendo
necessária portanto, em semelhança à tipicidade penal, sua descrição na lei, para que sejam
vedadas com efetividade a prática de atos ofensivos, criminosos e reprováveis em violação à
honra, vida ou liberdade do autor da herança ou familiares.
Em seu primeiro inciso, consta que a penalidade civil será aplicada em casos de
homicídio doloso (art. 121 CP) contra a vítima ou demais herdeiros na modalidade de autoria,
coautoria ou participação no crime, podendo ser consumado ou tentado, em caráter de
temporalidade estendida em face ao momento da morte. Ou seja, mesmo se o crime tiver
ocorrido em um período remoto em relação à morte, a pena civil lhe será aplicada.
Em seguida, a próxima hipótese refere-se aos crimes contra a honra praticados contra,
especificamente, o autor da herança, cônjuge ou equivalente, sem se aplicar aos herdeiros em
totalidade. Para tanto, faz-se necessária ação penal transitada em julgado, com todos os seus
requisitos de legitimidade. Cabe ressaltar que a ação penal deve ser proposta pelo ofendido
ou seus representantes, nos termos da modalidade privada de propositura em face aos crimes
contra a honra.
A ação declaratória de indignidade também poderá ser proposta pela hipótese em que
houver atentado contra a possibilidade do autor da herança à testar, no que se reconhece
como um cerceamento de sua liberdade testamentária e personalíssima. Neste caso, só é
considerado relevante o ato impeditivo realizado em função do autor da herança, por privar o
Estado de tomar conhecimento do ato de última vontade do de cujus.
4. Procedimento
Segundo o Código Civil de 2002, a ação de exclusão por indignidade deve ser movida
por quem tem interesse na sucessão. Deve aplicar-se então as regras processuais referentes
aos procedimentos e à legitimidade processual em geral. A matéria, como bem compreendeu
o legislador, tem sede própria no Código Processual Civil, cujo art. 17 dispõe sobre, “para
postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade” (GONÇALVES, 2021, p. 50).
Conforme pontuado na doutrina, quem detém a legitimidade para propor a ação são o
herdeiro e o donatário que se favorecem com a exclusão do indigno, assim como o
Município, o Distrito Federal ou a União, quando há falta de sucessores legítimos e
testamentários. Sobre tais conjunturas, assinala Carlos Roberto Gonçalves (2021):
Não o tem, todavia, aquele que, embora sucessor do autor da herança, não se
beneficiar diretamente da exclusão, como o irmão do indigno, por exemplo, quando
este tiver filhos, herdarão no lugar do ofensor uma vez proclamada a exclusão.
O legislador, na propositura do atual Código Civil, optou por remeter tal matéria ao
Código de Processo Civil, no rito ou procedimento comum. A ação para a exclusão do
indigno não pode ser proposta enquanto o hereditando ainda estiver vivo, pois até então a
sucessão não existe, conforme o princípio da saisine. A parte legítima passiva se refere ao
imputado. Cabe ressaltar que, como nesta hipótese a culpa não pode ser transmitida, pois que
de cunho pessoal, se este vier a falecer antes do autor da herança, não mais caberá a ação de
indignidade, pois este não chegou a adquirir a qualidade de herdeiro.
Além disso, caso haja o falecimento do litigado durante o curso do processo, a ação
deve ser extinta, por efeito do princípio da personalidade da culpa e da pena. A morte do
indigno acarreta a transmissão dos bens herdados para seus próprios sucessores. O direito de
solicitar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se no prazo decadencial de quatro anos,
contado da abertura da sucessão, que o considera, porém, prescricional.
O art. 1.814 do Código Civil declara as ações que autorizam a declaração do herdeiro
como indigno, se tratando de interpretação restritiva, visto que referente a um rol taxativo -
de forma que não se faz possível indicar outros fatos como geradores de indignidade. Frente a
típica configuração do caso de Suzane Richthofen como coautora do crime de homicídio
cometido contra seus pais, constata-se seu enquadramento perante as circunstâncias
deflagradoras de indignidade sucessória, conforme pontuado pelo referido artigo, em seu
inciso I:
Art. 1814: São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
Para que se comprove a indignidade é necessária a prova prática do delito, mas não a
prévia condenação do réu; e caso seja reconhecido algum excludente de antijuridicidade, a
alegação de indignidade deverá ser afastada. Então para que Andreas Richthofen, irmão de
Suzane, ajuizasse ação de indignidade contra a irmã deveria contar com prova prática do
crime cometido, na vinculação subjetiva àquela; tal como ocorreu no caso, antes da sentença.
Por ter desrespeitado o princípio da dignidade da pessoa humana, que preza pela vida e
ignorado os laços de afeto, confiança e respeito que hão de ser respeitados em uma família,
buscando apenas a satisfação de seus interesses patrimoniais foi que prosseguiu com as
ordens para que fosse efetivado o homicídio; culminando em sua exclusão na linha sucessória
por indignidade.
Para que o sucessor seja declarado indigno é necessária a proposição de uma ação
civil, se tratando de uma demanda de procedimento ordinário. A ação só pode ser proposta
pelo interessado na sucessão dentro do período decadencial de quatro anos, a contar da
abertura da sucessão. Se o interessado for absolutamente incapaz, o prazo fica suspenso até
que este atinja a relativa capacidade, de acordo o art. 102 do Código Civil. Assim foi feito na
ocasião de Andreas a época da abertura do inventário, visto que era incapaz e teve de esperar
alcançar a maioridade para mover a ação de indignidade contra sua irmã.
O polo passivo da demanda deve ser configurado pelo herdeiro ou legatário a quem se
atribui ato indigno, visto que qualquer sucessor pode incorrer em indignidade sucessória.
Caso o litigado faleça durante o processo, a ação é extinta e por efeito do princípio da
personalidade da culpa e da pena, a morte acarreta na transferência dos bens herdados aos
seus próprios sucessores, pelo fato da indignidade alcançar apenas a própria pessoa.
5.2. Jurisprudência
Outra decisão importante foi proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em relação à
equiparação dos maus tratos ao crime doloso contra a vida descrito taxativamente pela norma
civil. No caso em tela, o colegiado equiparou o desamparo ao enfermo ou idoso como uma
conduta em que há previsibilidade de resultado morte, necessidade de cuidado e, configurado
o dolo, equiparável ao homicídio doloso. Conforme o informativo da referida corte,
1
Conforme a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Artavia x Costa Rica), entende-se como o momento
da nação.
Como principais requisitos, é preciso que o testador diga o porquê de tal decisão,
sempre se baseando nos motivos elencados pelo Código Civil. As hipóteses de deserdação
são as mesmas tratadas na exclusão por indignidade. Entretanto, as causas que geram a
indignidade também vão gerar a deserdação, mas nem todas as causas que geram a
deserdação vão gerar a indignidade.
7. Conclusão
Por conseguinte, fica evidente que o instituto da indignidade tem por objetivo a
proteção do patrimônio do autor da herança contra aquele que cometeu atos contra a vida,
honra ou ato contra a liberdade de testar. Isto posto, é de direito do autor da herança preservar
seu patrimônio e resguardá-lo do indivíduo que lhe ofendeu gravemente. Assim, mais do que
apenas uma regra de proteção a direitos fundamentais, a exclusão da herança por indignidade
é normativa fundamentada na moral e no significado histórico do direito de herdar: a
possibilidade de eternizar um contexto familiar no decorrer das gerações.
8. Referências bibliográficas
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: família, sucessões.3.ed. São Paulo:
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https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8710/Exclusao-da-sucessao-diferencas-entra-indigni
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https://www.migalhas.com.br/depeso/41451/ordem-de-vocacao-hereditaria
LEAL, Ana Isabel Vieira. VITÓRIO, Teodolina Batista da Silva Cândido.A indignidade
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Fadivale, Governador Valadares, Ano XVI, n° 20, p. 37–69, 2020.