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CORREIA, Maria Valéria Costa.

Entre a Reforma Sanitária e o SUS: os interesses


do capital na saúde. In: CORREIA, M.V.C; SANTOS, V.M. dos (Org.) Reforma
sanitária e Contrarreformas na saúde: interesses do capital em curso. Maceió: Edufal,
2017.

ENTRE A REFORMA SANITÁRIA E O SUS: os interesses do capital na saúde

Maria Valéria Costa Correia1

INTRODUÇÃO

Este capítulo trata dos interesses do capital na saúde expressos nos processos de
mercantilização e privatização em curso no Brasil, com apoio do Estado, os quais têm impedido
a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto um sistema de saúde público
estatal, universal e de qualidade, conforme inscrito na Constituição de 1988 e preconizado pelo
Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, dos anos 1970 e 1980.
As raízes da privatização e mercantilização da saúde estão determinadas pelos interesses
do capital em usar a saúde como mercadoria e fonte de lucro. Foi contra esses interesses que se
confrontou o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, quando travou uma batalha contra o
modelo médico assistencial privatista2 do sistema previdenciário, no período da ditadura
empresarial militar.3
Neste capítulo, serão abordadas algumas das formas como se expressam e se explicitam
esses interesses: no livre mercado, com forte apoio estatal; e por dentro do setor público,
desrespeitando o arcabouço legal do SUS e confrontando-se com os princípios da Reforma
Sanitária Brasileira dos anos 1970 e 1980. Tais interesses destroem o caráter público e universal
do SUS, tão caro às lutas sociais.
Ressalta-se que são várias as formas dos interesses do capital se expressarem na área da
saúde. Não se pretende esgotá-las neste artigo, mas apontar algumas existentes, desde o período
da ditadura empresarial militar, sob o comando do capitalismo financeiro. Essas formas têm
sido atualizadas no contexto de contrarreforma4 do Estado, a partir da década de 1990, com o

1
Assistente social, doutora em Serviço Social pela UFPE, realizou o estágio pós-doutoral em Serviço Social na
UERJ. Professora da Faculdade de Serviço Social da UFAL. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão
Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais do PPGSS/UFAL.
2
Expressão de Mendes (1994).
3
A expressão ditadura empresarial militar, tem sido utilizada por alguns autores para caracterizar o apoio dos
empresários à ditadura instalada a partir de 1964 no Brasil.
4
Behring (2003) utiliza o termo contrarreforma para tratar do processo de "desestruturação do Estado e perda de
direitos”, no Brasil, a partir da década de 1990. Denomina-se contrarreforma pelo seu caráter regressivo do ponto
de vista da classe trabalhadora. O processo de contrarreforma do Estado brasileiro vem atender aos interesses do
protagonismo do mesmo, ao apoiar a expansão do setor privado no livre mercado, ao dar
continuidade à compra dos serviços privados pelo sistema público de saúde, e ao adotar
modelos privatizantes de gestão.

REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA E SUS: progressiva estatização da saúde?

Em plena ditadura empresarial militar, contexto em que o capital financeiro, sob


condições monopolísticas, passou a determinar as ações do Estado brasileiro, situa-se o
alinhamento da saúde aos interesses do capital por dentro do setor previdenciário, por meio da
implementação de um complexo médico-industrial, que beneficiou empresas internacionais de
produção de medicamentos e de equipamentos médicos; e através da compra de serviços
médicos privados, a qual proporcionou o crescimento das empresas médicas lucrativas
(BRAVO, 2011).
A priorização do setor privado de saúde vem da década de 1970, quando a intervenção
estatal ocorreu de forma privatista e excludente. O modelo de assistência à saúde era baseado
em ações individuais médico-hospitalares e na priorização da contratação do setor privado por
intermédio do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),5 caracterizando a hegemonia
do modelo médico assistencial privatista, conforme Mendes (1994). Esse modelo tinha como
bases o Estado como o grande financiador da previdência social; o setor privado nacional como
o maior prestador de serviços de atenção médica; e o setor privado internacional como o mais
significativo produtor de insumos, especialmente equipamentos biomédicos e medicamentos
(MENDES, 1994). Nesse período, houve o franqueamento ao capital privado, à prestação de
serviços considerados rentáveis como saúde, educação, habitação, e mercado de seguros.6
O questionamento do alinhamento do Estado ditatorial aos interesses do setor privado e
à mercantilização da saúde foi o que unificou os movimentos sociais no Movimento da Reforma

grande capital, no contexto de crise em que o Estado, por meio dos ajustes neoliberais, tem alimentado o processo
de financeirização do capital, seja com o desvio do Orçamento da Seguridade Social para o pagamento da dívida
pública por meio da Desvinculação das Receitas da União (DRU), seja por meio da privatização das políticas
sociais, dentre outras formas. A DRU tem permitido transferir 20% dos recursos da seguridade social para o
orçamento fiscal, com vista ao pagamento da dívida pública.

5
Os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), criados a partir da década de 1930, foram absorvidos pelo
Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) que possibilitou a continuidade das ações de saúde ligadas à
previdência social. Estes institutos intermediavam as contratações do setor privado para a assistência à saúde.
6
De acordo com Mendes (1999), “é de ver-se que, em 1969, havia 74.543 leitos privados no país, e em 1984, eles
chegaram a 348.255, ou seja, num período de 24 anos, dá-se um crescimento da rede privada em 465%,
possibilitada, sobretudo, pelas políticas da Previdência Social, conformadora de um sistema hospitalocêntrico.”
(MENDES, 1999, p. 24).
Sanitária (MRS),7 em torno da defesa da saúde pública. Esse Movimento confrontou-se com a
privatização da medicina previdenciária, consolidada pela autocracia burguesa, no período da
ditadura. Opôs-se à regulação da saúde pelo mercado, pondo em xeque a tendência hegemônica
de prestação de assistência médica como fonte de lucro (MEDEIROS, 2008).
Esse posicionamento foi expresso durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS),
realizada em 1986, quando se defendeu a estatização progressiva da saúde, conforme registro
em seu relatório: “O principal objetivo a ser alcançado é o Sistema Único de Saúde, com
expansão e fortalecimento do setor estatal em níveis federal, estadual e municipal, tendo como
meta uma progressiva estatização do setor.” (RELATÓRIO FINAL da 8ª CNS, p. 12, 1986),
além da exclusividade da alocação do Fundo Público no Setor Público Estatal:

[...] redirecionamento dos fundos públicos [...] para financiamento exclusivo


da rede do setor público estadual e municipal; a suspensão imediata de
financiamento, por parte destes fundos [...], para ampliação, reforma e
construção de estabelecimentos privados ou para compra de equipamentos
(RELATÓRIO FINAL da 8ª CNS, p. 16, 1986).

Outro ponto crucial foi a defesa de que o setor privado deveria ser subordinado ao
Estado e sujeito à expropriação, nos casos de desobediência às normas definidas pelo setor
público:

O setor privado será subordinado ao papel diretivo da ação estatal nesse setor,
garantindo o controle dos usuários através dos seus segmentos organizados.
Com o objetivo de garantir a prestação de serviços à população, deverá ser
considerada a possibilidade de expropriação dos estabelecimentos privados
nos casos de inobservância das normas estabelecidas pelo setor público
(RELATÓRIO FINAL DA 8ª CNS, p. 12, 1986).

Essa Conferência, com mais de 4 mil participantes, fortaleceu esse movimento e


legitimou suas propostas, em torno de um sistema de saúde universal e público. Os resultados
das disputas entre os interesses privatistas e os interesses do Movimento da Reforma Sanitária,
durante a Assembleia Constituinte, constituíram o arcabouço legal do SUS - Art. 196 a 200 da
Constituição Federal de 1988 e as Leis Orgânicas da Saúde 8.080 e 8.142 de 1990 -, que
garantiu a saúde como direito de todos e dever do Estado e um sistema público de saúde
descentralizado, com comando único em cada esfera de governo; uma rede regionalizada e
hierarquizada de serviços, conforme a complexidade da atenção à saúde; acesso universal, com
integralidade da atenção à saúde; o financiamento tripartite; e o controle social.

7
Movimento que congregou movimentos sociais, intelectuais e partidos de esquerda na luta contra a ditadura, com
vistas à mudança do modelo médico assistencial privatista. Representava um foco de oposição ao regime militar
buscando a transformação do setor saúde, pressupondo a democratização da sociedade.
Entretanto, na Constituição de 1988, a assistência à saúde ficou livre à iniciativa privada,
e as instituições privadas estabeleceram-se como complementares ao SUS, quando as suas
disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma
determinada área (Artigo nº 199, CF/1988). Abriram-se precedentes legais para a continuidade
da compra e venda da saúde no livre mercado, e da compra, pelo setor público, de serviços no
setor privado, precedentes esses que facilitaram a expansão dos interesses do capital, na área da
saúde.
Os interesses do capital se expandiram na saúde e estão diretamente articulados aos
empecilhos para a consolidação do SUS, que é um dos maiores sistemas públicos do mundo e
foi fruto de lutas sociais, durante o processo de redemocratização do país, na década de 1980.
Alguns caminhos trilhados, no panorama da saúde do País, estão na direção inversa de pontos
cruciais da Reforma Sanitária brasileira. Deste modo, ao invés da progressiva estatização da
saúde, houve um processo de progressiva privatização, com incentivo estatal para o crescimento
do livre mercado da saúde, para a compra de serviços privados de saúde pelo setor público, e
para a entrega de unidades e serviços públicos de saúde às entidades privadas.
Cabe ressaltar que as limitações para a efetivação do SUS estão inseridas em um
contexto mais amplo de enfrentamento da crise contemporânea mundial do capital, em que o
Estado tem se colocado, cada vez mais, a serviço dos interesses do capital.8 Nas palavras de
Dias (1999) "trata-se do ideologicamente Estado Mínimo, que é na prática o 'Mercado
Máximo." A condenação retórica do Estado tem a função de ocultar a sua minimização "em
relação às classes trabalhadoras e a sua maximização na sua articulação com a burguesia"
(DIAS, 1999, p. 121).

APOIO ESTATAL À AMPLIAÇÃO DO SETOR PRIVADO DE SAÚDE

A expansão do mercado privado de saúde tem sido incentivada pelo Estado através da
compra de planos de saúde para os funcionários públicos, dos subsídios e isenções fiscais às
empresas, e pela isenção fiscal de pessoas físicas, ao permitir o desconto integral dos gastos
com saúde no imposto de renda. Além dessas vantagens concedidas, identifica-se a isenção de

8
O capital buscou o enfrentamento da crise, a partir da segunda metade da década de 1970, via reestruturação
produtiva baseada no aprofundamento da liberdade do mercado, com um novo padrão de acumulação flexível e
destruição dos direitos sociais e trabalhistas, até então conquistados. O Estado tem se colocado como máximo para
o capital - através de subsídios, créditos, perdão de dívidas, investimentos e obras de infraestrutura dirigidos a
apoiar a acumulação privada, e políticas econômicas e financeiras com conotação de classe evidente -, e mínimo
para o trabalho, através do corte de gastos sociais, da precarização das políticas públicas, do congelamento dos
salários do funcionalismo público, entre outras medidas (CORREIA, 2007).
impostos, a grandes hospitais privados como Sírio Libanês e Albert Einstein, e a emissão de
certificação filantrópica às entidades sem fins lucrativos que operam Planos Privados de
Assistência à Saúde. Todas essas isenções produzem uma soma significativa de recursos que
poderiam compor o financiamento da saúde pública.

De acordo com Áquilas Mendes, se somarmos as isenções de impostos concedidas a


alguns hospitais (como o Albert Einstein) e a grupos farmacêuticos, dentre outros, “os dados
que temos estimados de 2011, chegaram a R$ 15 bilhões” (LIMA, 2012). Em 2011, apenas com
o imposto de renda pessoa física (IPRF), o governo deixou de arrecadar R$ 7,7 bilhões - o total
dos gastos tributários foi de quase R$ 16 bilhões.9
Houve um crescimento no número de usuários de planos de saúde de 34,5 milhões, em
2000, para 47,8 milhões, em 2011.10 Desde 2010, o Brasil é o segundo mercado mundial de
seguros privados de saúde perdendo apenas para os Estados Unidos da América, em termos de
cobertura desses seguros (ANDREAZZI, 2012). A maior operadora desse país, a United Health,
comprou, em abril de 2013, a Assistência Médica Internacional-AMIL. Neste negócio, o seu
fundador, Edson Godoy Bueno, um dos maiores bilionários brasileiros, afirmou que a meta dos
planos privados é atingir 50% da população brasileira, ou seja, duplicar a sua cobertura para
100 milhões de brasileiros, em alguns anos. A estratégia anunciada pela United Health para o
Brasil é crescer dentre o público de baixa renda. Na primeira década do século XXI, houve um
crescimento de 81,03% dos estabelecimentos privados de saúde, de 43,58% dos planos de
terceiros e 48,64% do pagamento particular (AMS-IBGE, 2009). O total de gasto nacional com
a saúde no setor privado, em 2009, foi de 143 bilhões, sendo 64 bilhões com planos e seguros
de saúde e 79 bilhões pelo desembolso direto, maior que o total de gasto público em saúde, que
foi de 127 bilhões (MS/SIOPS, 2009).
Além das isenções de impostos, o Estado vem desenvolvendo medidas para fortalecer a
rede privada filantrópica e para quebrar as barreiras entre o público e o privado, em benefício
do mercado. Em 2009, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento
Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-Sus), que ofereceu o Certificado de Entidade
Beneficente de Assistência Social (Cebas), para instituições de saúde privadas, consideradas de
excelência - Albert Einstein, Sírio Libanês, Hospital do Coração, Oswaldo Cruz, Moinhos de

9
A esse imposto de que o Estado abre mão dá-se o nome de gasto tributário, uma perda de arrecadação que, só na
saúde, mais do que dobrou de 2003 a 2011, segundo estudo realizado pelo pesquisador Carlos Octávio Ocké-Reis,
do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). (Revista Poli: saúde, educação e trabalho. Ano V, nº29,
jul./ago. 2013).
10
Em 2014, existiam mais de 52 milhões de usuários de planos de saúde, segundo dados da Agencia Nacional de
Saúde Suplementar (ANS).
Vento e Samaritano -, para desenvolverem projetos de intervenção no SUS. Esses hospitais
coordenaram 107 projetos de desenvolvimento institucional do SUS, no triênio 2012-2014, em
diversas áreas, como capacitação de profissionais, aprimoramento da gestão e inovação
tecnológica. Neste empreendimento, foram investidos, aproximadamente, R$ 976 milhões.
Questiona-se: por que estas instituições privadas e não as públicas foram convidadas pelo
Ministério da Saúde para desenvolver esses projetos? Por que não a Fiocruz?
Em 2012, a Lei 12.715, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Atenção
Oncológica, deixou de recolher mais impostos, garantindo “isenção fiscal a ações e serviços de
atenção oncológica, desenvolvidos por instituições de prevenção e combate ao câncer”. Diante
da anunciada crise das Santas Casas, em 2013, foi instituído, pela Lei nº 12.873/2013, o
Programa de Fortalecimento das Entidades Privadas Filantrópicas e das Entidades sem Fins
Lucrativos que Atuam na Área da Saúde e que Participam de Forma Complementar do Sistema
Único de Saúde – PROSUS. De acordo com essa lei,

[...] o Prosus aplica-se às entidades de saúde privadas filantrópicas e às


entidades de saúde sem fins lucrativos que se encontrem em grave situação
econômico-financeira, mediante a concessão de moratória e remissão das
dívidas vencidas no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil e da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observadas as condições previstas
nesta Lei (Art. 26 da Lei nº 12.873/2013).

Desde a década de 1990, assistimos ao processo de universalização excludente11 em que


o mercado privado da saúde tem se expandido com o apoio do Estado. Esse processo tende a se
agravar caso a Proposta de Emenda Complementar nº 451/2014 do Dep. Fed. Eduardo Cunha seja
aprovada, pois ela pretende tornar obrigatório às empresas a contratarem plano de saúde para o
trabalhador, pago com benefício fiscal.

A COMPLEMENTARIDADE INVERTIDA NO SUS

A brecha constitucional que estabelece a complementaridade do setor privado ao setor


público “mediante contrato de direito público ou convênio” (Artigo nº 199, § 1º da CF/1988) -
- quando as disponibilidades do SUS “forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial
à população de uma determinada área” (arts. 24 a 26 da Lei n.º 8080/1990) -, permitiu a

11
A Universalização excludente, ou seja, ao mesmo tempo em que o acesso aos serviços de saúde tornou-se
universal, sem o requisito do vínculo empregatício, houve um aumento da procura das camadas médias e do
operariado melhor remunerado pelos serviços da rede privada da saúde, através de convênios com cooperativas
médicas e/ou seguradoras privadas, e desembolso direto.
permanência e ampliação do sistema de compra de serviços privados de saúde por dentro do
sistema público, principalmente nas áreas mais lucrativas - média e alta complexidade -,
distorcendo a referida complementaridade na prática, e se confrontando com o assegurado na
Constituição de 1988.
Essa complementaridade constitucional do setor privado-filantrópico ao SUS
impulsionou o avanço deste setor por dentro do SUS e a captura do fundo público, mantendo o
padrão de compra de serviços privados, próprio do modelo da previdência do período da
ditadura empresarial militar.
Como já referido, o debate da estatização da saúde pública estava posto na 8ª
Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Na sua plenária final foi votada a decisão
sobre se o setor privado e filantrópico seria complementar, ou não, ao sistema público de saúde.
Decidiu-se pela complementaridade, diante da insuficiência da rede pública instalada para
atender a suposta ampliação da demanda com o propugnado acesso universal à saúde. O próprio
relatório final da 8ª CNS aponta que a questão que mais mobilizou os participantes e delegados
dessa Conferência foi “a natureza do novo Sistema Nacional de Saúde: se estatizado ou não, de
forma imediata ou progressiva. A proposta de estatização imediata foi recusada, havendo
consenso sobre a necessidade de fortalecimento e expansão do setor público” (RELATÓRIO
FINAL da 8ª CNS, 1986, p. 02).
Dentro do tema 2, “Reformulação do Sistema Nacional de Saúde”, da referida
Conferência, fica clara a opção pela estatização progressiva do sistema de saúde, tornando,
inicialmente, o setor privado subordinado ao papel diretivo do Estado, com possibilidade de ser
até expropriado, caso não se submeta às normas estabelecidas pelo setor público. No entanto, o
que tem ocorrido, ao longo dos anos, é que o Estado expande as compras dos serviços de saúde
privados filantrópicos e não consegue controlar os serviços contratados/conveniados. Esses são
fontes de inúmeros escândalos de corrupção, cotidianamente divulgados pelos meios de
comunicação, e apurados pelos Ministérios Públicos Estaduais e Federal.
A contratualização de serviços privados filantrópicos, ditos complementares ao sistema
público de saúde, constitui-se em uma das formas de captura do fundo público, pelo setor
privado. O volume de recursos públicos, alocados na compra de serviços privados filantrópicos
pelo setor público, especialmente, nos procedimentos hospitalares, demonstra que a referida
complementaridade está invertida. Entre os anos de 2008 a 2014, foram alocados, no setor
privado filantrópico, em média, 57% dos recursos do SUS destinados aos procedimentos
hospitalares, enquanto que no setor público essa média não passou os 43%.12 Evidencia-se,
também, que nos procedimentos em que os valores da tabela do SUS são mais altos, acontece
um repasse muito maior de recursos públicos, para o setor privado. Os valores repassados pelo
Fundo Nacional de Saúde para os serviços de diálise ilustram essa realidade, já que, enquanto
a rede pública (municipal, estadual e federal) recebe 5,74% do total de recursos públicos
destinados a esses serviços, a rede privada filantrópica absorveu 94,27% desses recursos, em
2013.13
A quantidade de serviços de saúde, realizada no setor privado, demonstra a referida
complementaridade invertida, o que confronta o artigo 199 da Constituição de 1988. Neste
sentido, observa-se que, no total de internações realizadas no setor privado, entre 2001 e 2008,
74,5% foi custeada pelo SUS. Do total de leitos privados disponíveis, 78,66% foram utilizados
pelo SUS, neste período (IBGE, 2002, 2009).
Algumas medidas governamentais recentes têm estimulado a ampliação da contração
dos serviços de saúde privados filantrópicos. Em um ano, os incentivos pagos aos principais
hospitais filantrópicos, para o atendimento de usuários do SUS, saltaram 185%, e chegaram a
R$ 968,6 milhões em 2012, contra R$ 340 milhões, em 2011. Nos últimos cinco anos, foram
feitos quatro reajustes, sendo dois, só em 2012. Estes são recursos que garantem a
contratualização dos serviços e estão vinculados ao cumprimento de metas. Também houve
aumento de 50% no valor destinado a obras e compra de equipamentos, que passou de R$ 400
milhões, em 2011, para R$ 600 milhões, em 2012 (RODRIGUES & XEYLA, 2013). Em 6 de
agosto de 2013, o então Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assinou uma portaria que dobrou
o incentivo à contratação de serviços hospitalares dessas instituições. De acordo com
informações do site oficial do Ministério da Saúde (MS), esse Ministério elevou de 25% para
50% o incentivo pago aos atendimentos de média e alta complexidade – como exames e
cirurgias mais complexas. Foi anunciado pelo MS que essa medida iria gerar impacto financeiro
de R$ 1,7 bilhão em 2014. Tal incentivo busca ampliar o atendimento, ao garantir uma melhor
remuneração aos serviços. Com esse aumento de recursos, as Santas Casas têm a possibilidade
de realizar 236 mil cirurgias a mais, por ano. O aporte financeiro também possibilitou a
atualização de valores de procedimentos realizados pelas instituições. O valor de partos

12
No ano de 2014, do total de recursos públicos destinados aos procedimentos da produção ambulatorial foram
alocados no setor privado, em média, 51% dos recursos do SUS, e no setor público, 49%. (Dados de pesquisa
desenvolvida sobre a complementaridade invertida no SUS, pelo grupo de pesquisa políticas públicas, controle
social e movimentos sociais/PPGSS/FSSO/UFAL).
13
Dados extraídos do DataSUS/MS, analisados na dissertação de mestrado “A complementaridade invertida no
SUS: privatização progressiva da atenção ao renal crônico em Alagoas e no Brasil”, de Rita de Cássia Amorim
Carneiro. PPGSS/UFAL, 2014.
normais, por exemplo, passa de R$ 443,40 para R$ 835,19; e o tratamento de Acidente Vascular
Cerebral passa de R$ 463,21 para R$ 1.997,46 (PORTAL BRASIL, 2013).
A expansão dos serviços privados filantrópicos contratados pelo SUS, expressa uma
complementaridade invertida, e contraria o assegurado na Constituição de 1988. Esse processo
contradiz também um dos pilares da Reforma Sanitária Brasileira, pois, ao invés da progressiva
estatização da saúde, tem ocorrido um processo de progressiva privatização, o que tende a
reatualizar os traços estruturais do modelo de saúde da previdência social, nos anos de ditadura,
que era baseado na compra de serviços privados.
O estímulo à ampliação da lógica mercantil na saúde e ao repasse de recursos públicos
para entidades privadas também tem se dado por dentro do SUS, por meio dos denominados
“novos” modelos de gestão. Este caso contraria, não só os princípios da Reforma Sanitária, mas
também, a Constituição de 1988, pois não se trata de serviços privados complementares, mas
da terceirização de serviços de saúde, por intermédio do repasse de recursos financeiros,
pessoal, equipamento e patrimônio público, para entidades privadas. Deste modo, o Estado
deixa de ser executor de serviços essenciais como os de saúde, repassando-os para o setor
privado, dito, sem fins lucrativos.

OS MODELOS PRIVATIZANTES DE GESTÃO VIA ADMINISTRAÇÃO


GERENCIAL

Está em curso uma tendência crescente de repasse da gestão e do fundo público para o
setor privado, denominado “público não-estatal”, ou para instituições ditas estatais, mas com
personalidade jurídica de direito privado. Essas últimas permitem a regência dos interesses do
mercado, dentro das instituições estatais e as liberta das amarras impostas pelas regras da
administração pública do Estado.
Atendendo aos ditames do grande capital, através das orientações dos organismos
multilaterais, especialmente do Banco Mundial (BM), o Estado brasileiro vem
redimensionando suas ações nas políticas sociais, dando ênfase a uma política focalista,
assistencial e privatista.14 Neste sentido, é notória a influência do Banco Mundial quando do
este afirma que “muitos países em desenvolvimento que desejam reduzir a magnitude de seu
desmesurado setor estatal devem conceder prioridade máxima à privatização” (Banco Mundial,
1997, p. 7). Nesse processo, ocorre uma diminuição da intervenção estatal, na área social,

14
Consultar os estudos de Correia (2005) sobre a influência das orientações do Banco Mundial às políticas sociais
brasileiras, especialmente, à da saúde.
simultânea ao repasse da gestão de serviços públicos para a rede privada, mediante a
transferência de recursos públicos (CORREIA, 2007).
No Brasil, a materialização da referida contrarreforma foi realizada no governo de
Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, com a criação do Ministério da Administração
Federal e Reforma do Estado (MARE), dirigido pelo então Ministro Luiz Carlos Bresser
Pereira, o qual comandou a equipe formuladora do Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE)
e dos cadernos do MARE, que consta de uma série de documentos que buscavam justificar as
reformas do Estado. Esse Plano tinha como princípio que as funções do Estado deveriam ser de
coordenar e financiar as políticas públicas, e não, de executá-las, transferindo a execução destas
para o setor “público não-estatal” que, na realidade, é regido pela lógica do privado. Nesse
Plano Diretor, através do denominado programa de “publicização”, foi proposto o repasse de
serviços, antes de responsabilidade do Estado, para “entidades de direito privado” executá-los,
mediante o repasse de recursos públicos (CORREIA, 2011).
Os defensores da Reforma do Estado argumentavam que esta ação era necessária, pois
a crise decorria da ineficiência burocrática e administrativa do Estado, para intervenção no
econômico e no social. De acordo com os argumentos apresentados no PDRE, a crise brasileira
da última década foi uma crise do Estado, o qual se desviou de suas funções básicas, e ocasionou
a deterioração dos serviços públicos, e mais, o agravamento da crise fiscal e da inflação. Propõe-
se assim um reordenamento do papel do Estado. Desse modo, de acordo com essa visão,
“reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser
controladas pelo mercado.” (MARE, 1995, p. 12).
A então reforma gerencial do Estado tem como objetivo uma maior eficiência do Estado,
em que “pretende-se reforçar a governança - a capacidade de governo do Estado - através da
transição programada de um tipo de administração pública burocrática, rígida e ineficiente, [...]
para uma administração pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendimento do
cidadão.” (MARE, 1995, p. 13).
Analisando o argumento de que o Estado brasileiro passaria de uma administração
burocrática, identificada como ineficiente, para uma administração gerencial correspondente à
eficiência, Souza Filho (2011, p.178) explicita que a “principal determinação do gerencialismo
é a identificação da administração pública com a administração privada.” Ainda de acordo com
o autor, o gerencialismo não distingue a administração destinada a fins públicos – administração
pública – da destinada a fins lucrativos – administração empresarial. O autor afirma que o
gerencialismo do governo FHC tinha como estrutura a manutenção da dominação tradicional,
em que estão presentes traços patrimonialistas: “na verdade a contra-reforma administrativa,
através da dimensão flexível/gerencial, repõe o patrimonialismo sobre as bases racionais-
legais” (2011, p. 215, grifos do autor). Souza Filho conclui que “o projeto gerencialista ataca a
finalidade de universalização de direitos [...]. Ratifica-se uma finalidade fundada no
atendimento de necessidades mínimas da população, coerente com a proposição neoliberal de
reforço do mercado.” (2011, p. 96).
A proposta é de repasse da gestão das políticas sociais para modalidades de gestão não
estatais, através dos contratos de gestão e parcerias, e dentre estas, a de saúde tem sido
priorizada, mediante transferências de recursos públicos, quais sejam: Organizações Sociais
(OSs), criadas em 1998, pela Lei 9.637/98, que contemplam as atividades dirigidas ao ensino,
à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio
ambiente, à cultura e à saúde; e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
(OSCIPs), criadas em 1999, pela Lei Federal n.º 9.790.
O argumento do governo FHC, para implementar os modelos privatizantes de gestão –
OSs e OSCIPs - era de que eles promoveriam a “eficiência e menor custo dos serviços sociais
oferecidos pelas instituições privadas” (REZENDE, 2008, p.27). No entanto, este argumento
tem sido desmascarado pelos dados de realidade, que revelam o contrário, nos serviços públicos
geridos por OSs. Nas unidades de saúde de estados e municípios brasileiros, onde as OSs foram
implantadas, já se tem demonstrado uma série de problemas que estão sendo apurados pelo
TCU, TCE e Ministério Público Estadual e Federal, em relação aos maiores gastos, às
irregularidades e ao desvio de recursos públicos. O número de OSs têm se multiplicado, de
acordo com o levantamento realizado na base de dados do DATA SUS, atualmente 24 estados
brasileiros possuem Organizações Sociais gerindo as unidades de saúde dos seus municípios,
totalizando 256 OSs que atuam na área da saúde no Brasil, com exceção dos Estados do Acre,
Amazonas e Maranhão.15

15
Dados do Relatório Final do PIBIC a privatização do SUS em Alagoas e no Brasil através dos novos modelos
de gestão e as lutas sociais em defesa do SUS, da aluna Rafaela Vieira Lamenha, sob orientação da professora
Valéria Correia, UFAL, ano 2014/2015.
Os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff16 têm dado continuidade ao processo de
contrarreforma17, por meio da implementação dos modelos privatizantes de gestão, para as
políticas sociais. Entre os modelos, estão as Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs),
que apesar de não ter sido criada por uma lei federal e existir apenas o Projeto de Lei
Complementar nº 92/2007 que tramita no Congresso Nacional, várias FEDPs foram criadas nos
estados e municípios brasileiros para administrarem serviços de saúde.
Em 15 de dezembro de 2011, foi sancionada a Lei 12.550 que cria a Empresa Brasileira
de Serviços Hospitalares (EBSERH)18. Trata-se de uma Empresa pública com personalidade
jurídica de direito privado. Constitui uma via de privatização do maior sistema hospitalar
público brasileiro - 50 Hospitais Universitários. A mais recente tentativa de privatização desse
governo, na área da saúde, tem sido nos serviços de saúde indígena, com o anúncio de criação
do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), em 2014, modelo de gestão que toma como
base o modelo do Serviço Social Autônomo da Rede Sarah.
A criação de modelos gerenciais de gestão na sociedade brasileira pode ser remetida ao
período da ditadura empresarial militar, durante o governo de Humberto de Alencar Castelo
Branco, por meio do Decreto Lei nº200 de 1967, o qual prevê, em seu art. 4º, como parte da
Administração Indireta do Estado, a criação de: autarquias, empresas públicas, sociedades de
economia mista e as fundações públicas. Santos (2014) destaca que, no PDRE (1997), o
Decreto-Lei 200, de 1967, é exaltado como um marco na tentativa de iniciar a administração
gerencial no Brasil, ao transferir atividades para autarquias, fundações, empresas e sociedades
de economia mista. Segundo o PDRE (1997, p. 19): “A reforma operada em 1967 pelo Decreto-
Lei 200, entretanto, constitui um marco na tentativa de superação da rigidez burocrática,
podendo ser considerada como um primeiro momento da administração gerencial no Brasil”.

16
Esses governos argumentam a aplicação de uma política baseado no crescimento econômico com
desenvolvimento social, proclamando um novo desenvolvimentismo as mudanças que vem sendo implementadas
durante os referidos governos petistas, estão assentadas na defesa de uma nova ideologia, que supostamente estaria
distante dos preceitos neoliberais, os autores que tem analisado a temática vêm se utilizando de inúmeras
definições: (neo) desenvolvimentista, neodesenvolvimentista (MOTA, 2012), novo desenvolvimentismo (conceito
utilizado por Maranhão, 2013) ou social-liberalismo (CASTELO, 2012) que se caracterizam por serem vertentes
do neoliberalismo.
17
De acordo com Iasi (2014) “são duas versões distintas disputando a direção do projeto burguês no Brasil. Um o
capitalismo com mais mercado e menos Estado, outro o capitalismo com mais Estado para garantir a economia de
mercado”.
18
A EBSERH desvincula na prática os Hospitais Universitários das Instituições Federais de Ensino Superior
(IFES), comprometendo a formação e qualificação dos profissionais de saúde que trabalham na saúde pública e a
produção do conhecimento na área de saúde. Tem como referência o Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA)
que reserva espaços públicos para atendimentos de planos de saúde privados. Uma ação civil pública, ajuizada
pelo Ministério Público Federal (MPF), em janeiro de 2009, tem como réus o próprio hospital, a União, Estado e
o município de Porto Alegre, solicita que o HCPA realize 100% de seus atendimentos via SUS.
Ademais, a Lei que cria a EBSERH cita diretamente esse Decreto19, no seu Art. 1º:
Fica o Poder Executivo autorizado a criar empresa pública unipessoal, na
forma definida no inciso II do art. 5º do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro
de 1967, e no art. 5º do Decreto-Lei nº 900, de 29 de setembro de 1969,
denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH, com
personalidade jurídica de direito privado e patrimônio próprio, vinculada ao
Ministério da Educação, com prazo de duração indeterminado (Lei
12.550/2011).

Como se pode observar, os denominados “novos” modelos de gestão não são novos,
pois a administração gerencial já estava posta, no segundo período do Estado ditatorial
brasileiro, para favorecer o setor empresarial da saúde. Eles atualizam essa administração
gerencial. Apesar das diferenças internas entre os modelos, eles integram a estratégia de
contrarreforma do Estado, contexto em que se ampliam, pois têm a mesma natureza de repasse
do fundo público para entidades de direito privado, flexibilizando a gestão e os direitos sociais
e trabalhistas, e privatizando o que é público.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na fase de financeirização do capital e na sua busca incessante por lucros, a saúde tem
sido uma área considerada rentável e em expansão para o capital. Neste contexto, o
ordenamento das políticas de saúde tem promovido o fortalecimento do setor privado na oferta
de serviços de saúde, pois se quebram as fronteiras entre o público e o privado, e a lógica de
mercado penetra em todos os espaços públicos. Nesta direção, o Estado não deve mais
responsabilizar-se pela execução direta das políticas sociais, mas, apenas, coordená-las e
financiá-las. Neste sentido, está a proposta de Cobertura Universal em Saúde (CUS), de autoria
da Organização Mundial da Saúde e do Banco Mundial, que transforma o acesso universal pela
via do direito social, em acesso pela via do mercado. Ressalta-se que é necessária a retirada do
endosso do Estado Brasileiro a esta proposta em acordos internacionais.
Como exposto neste capítulo, este é o arranjo necessário à expansão dos interesses do
capital na área da saúde, desmontando o SUS e fragilizando ainda mais o projeto da Reforma
Sanitária brasileira que defende a progressiva estatização da saúde, com alocação exclusiva do
fundo público na expansão de serviços públicos nas três esferas de governo.

19
O conteúdo do Art. 5º do Decreto-Lei nº 200: “Empresa Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica
de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de
atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência
administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito” (Inciso II do Art. 5º Decreto-Lei
nº 200/1967 Grifos nossos).
A interferência do setor privado na saúde traz sérias consequências, e inviabiliza a saúde
como um direito universal. Esta realidade tende a se agravar com a aprovação da Lei
13.097/201520. Essa permite que capitais estrangeiros, através de pessoas jurídicas, possam
“instalar, operacionalizar ou explorar: hospital geral, inclusive filantrópico, hospital
especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada.” Assim, ao contrário do que tem
sido propagado, existe uma relação direta desta Lei com o SUS, pois, os serviços de saúde que
serão explorados pelos capitais estrangeiros certamente poderão ser conveniados ou contratados
pelo SUS. Esta é uma tendência do interesse do capital nacional ou estrangeiro, capturar o fundo
público, ou seja, beneficiar-se dos recursos estatais.
A expansão da entrada de capitais estrangeiros na assistência à saúde do Brasil é
preocupante, no contexto em que há um progressivo alargamento do setor privado da saúde,
por dentro do SUS, ao tempo em que há uma crescente precarização dos seus serviços e um
processo de desfinanciamento21, e de desvalorização dos seus trabalhadores, com a
flexibilização dos vínculos trabalhistas e condições de trabalho aviltantes.
Os modelos privatizantes de gestão têm sido apresentados como a resolução dos
problemas do SUS. Restringe-se tudo à má gestão pública, apresentando-se como saída a sua
terceirização, que em nome de uma suposta modernização, autonomia e flexibilização traria
uma maior eficiência aos serviços de saúde prestados. Cabe destacar que os problemas
enfrentados pelo SUS, hoje, não estão centrados no seu modelo de gestão, pelo contrário, a não
viabilização dos meios materiais necessários à efetivação do modelo de gestão público e
universal, já assegurado na sua legislação, é que se constitui o problema a ser enfrentado
(CORREIA, 2011). A insuficiência de financiamento, a precarização do trabalho em saúde e a
priorização dos interesses do mercado na saúde são os reais problemas a serem enfrentados. É
necessário garantir que os recursos públicos financiem exclusivamente, de forma progressiva,
a rede pública estatal de serviços de saúde nas três esferas de governo, como foi propugnado
pelo Movimento da Reforma Sanitária.
Observa-se que as velhas formas do Estado beneficiar os interesses do capital na saúde
se atualizam e se ampliam no contexto de financeirização do capital e de crise econômica: apoio
à expansão do setor privado no livre mercado, a continuidade da compra de serviços privados

20
Na realidade, o ingresso de capital estrangeiro na saúde brasileira já vem ocorrendo, desde 1998, com a
Lei nº 9.656 que regulamenta o setor de Planos de Saúde. Mas, a Lei 13.097/2015 escancara as portas do país para
esse capital, permitindo a esse atingir diretamente a assistência à saúde.
21
O desfinanciamento do SUS, apesar de ser crônico, foi agravado recentemente pela Emenda Constitucional nº
86/2015, que trata do Orçamento Impositivo, e torna obrigatória a execução das emendas parlamentares na área
da saúde, alterando a metodologia de financiamento do SUS e reduzindo consideravelmente o montante de
recursos federais destinado à saúde pública.
pelo sistema público de saúde, e a adoção de modelos gerenciais de gestão. Essas formas são
veladas, mascaradas e apresentadas como saídas para a crise e para os problemas gerados por
ela, promovem a desconstitucionalização do SUS e a mais grave ameaça ao seu caráter público,
universal e gratuito. Constitui-se um quadro de ameaça à própria existência do SUS, agravado
com: a recente permissão da entrada do capital estrangeiro na saúde, com a aprovação da Lei
13.097/2015; o aprofundamento do desfinanciamento da saúde, com a Emenda Constitucional
do orçamento impositivo, EC nº 86/2015, somada ao corte de onze bilhões e oitocentos milhões
do orçamento da saúde em 2015; o anúncio da “Agenda Brasil” pelo presidente do Senado, que
traz a possibilidade de cobrança pelos serviços do SUS; e com a probabilidade de ser aprovada
a Proposta de Emenda Constitucional nº 451/2014, do Deputado Federal Eduardo Cunha, a qual
pretende tornar obrigatório às empresas a contratar plano de saúde para o trabalhador, pago com
benefício fiscal.
Ao final, é preciso ressaltar que as resistências aos interesses do capital na saúde que
desmontam o SUS e afastam, cada vez mais, a efetivação dos princípios da Reforma Sanitária,
precisam ser fortalecidas. A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde22 tem mostrado
protagonismo nesse sentido e retomado, tendo como fonte unificadora de lutas, a mesma
motivação que deu sustentação às lutas travadas pelo Movimento Sanitário nos anos 1970 e
1980: o combate à privatização e à mercantilização da saúde. Tanto quanto esse Movimento, a
Frente também se opõe à tendência da prestação de assistência à saúde, como fonte de lucro.
Outras entidades nacionais23 também têm tido um protagonismo importante em defesa do SUS.
Em tempos de ataques ao caráter público, universal e gratuito do SUS, soam, de canto
a canto do país, gritos que reafirmam que só com muita luta poderá se preservar esse Patrimônio
Social, Cultural, Imaterial da Humanidade: “O SUS é nosso, ninguém tira da gente, direito
garantido, não se compra nem se vende”. Pois, foi com muita luta que ele foi conquistado.

REFERÊNCIAS

ANDREAZZI, Maria de Fátima Siliansky de. O público e o privado na atenção à Saúde:


notas para uma caracterização de trajetórias e desafios no Brasil. IN: BRAVO, Maria Inês Souza

22
A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde composta por diversas entidades movimentos sociais, fóruns
de saúde, centrais sindicais, sindicatos, partidos políticos e projetos universitários, foi criada em 2010, a partir da
articulação dos Fóruns de Saúde estaduais em torno da luta contra a privatização do SUS. Tem por objetivo
defender o SUS público, estatal, gratuito e para todos, e lutar contra a privatização da saúde e pela Reforma
Sanitária formulada nos anos 1970 e 1980.
23
Como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia da Saúde
(Abres), Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA), Centro Brasileiro de Estudos
da Saúde (CEBES), Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), Rede Unida, Sociedade Brasileira de Bioética
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