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fl

Capítulo 3

O NIILISMO DA TECN OLOGIA

A filosofia do progresso mostra afinal seu verdadeiro rosto: um rosto


em branco, sem feições. Agora sabemos que o reino do progresso
não é deste mundo: o paraíso que nos promete está no futuro, um
futuro intocável, inalcançável, perpétuo. O progresso povoou a
história de maravil has e de monstros da técnica, mas também
desabitou a vida dos homens. Nos deu mais coisas, não mais ser.
(Octavio Paz).

Nas página s escrita s em 1967 para o verbete Gnosti cism da


Encyclopedia of Philoso phy, 124 Jonas elenca, de form a bastante objetiva e
resumida, as caracte rísticas centrais do pensam ento gnóstic o, baseado na
~erspectiva hermen êutica que lhe é própria , ou seja, aquela que tenta
ide~tificar um "princí pio" nas múltipl as facetas dos movime ntos e das seitas
gnostica s, conform e vimos anterio rmente . Ass im, Jonas identifi ca o
st
duali smo radical como atitude ex istenc ial do homem gnó ico, cuja
consequ ência é o confron to entre a experiê ncia inautêntica do homem com
o rnundo e a espera nça d e rede nç ão através do conhec imento e da
apr_oximação em relação a um Deus cuja estranheza, em relação ao ~1und?,
senaª Sua própria autentic idade. Além disso, corno vimos, Jonas evtdenc ta
:rn P~ralelo entre a posição ex istencia l gnó~tica e ~ c01~tern porânea: que
cl~1 o novum dos poderes tecnoló gicos, cuJ a premiss a e a mesma atitude

-- -
de tipo niilista, semelh ante àquela das correntes gnósticas antigas.
124
Pr
JONAS H
es~, New York, 1967, p. 336-342.
PUbhcado
Texto
.
traduzido
_
• L ·1 . h v 3 MacMilla
, · ans. Gnosticism; ln : Encyclop edia oj P,11 mop Y, · '
.
para
em um pequeno volume na coleçao Pe 11cano osso
o
R
italiano por Clau?10
.
n and Free
Bonald1
da Morcelha na. Bonald1
t O publicado por
.

Jonas no
~

' ª . D •. .
ªPonta n sua mtroduçã o a semelhan ça desse texto com ou r / and h,stonca
' I ·
. .
l e mesmo
rnesm0 a d f .
no. ehmztation of the gnostic phenome non: typo ogica
p::.º
e
artigo The gnostic syndrom e: typology ofits thought imagination and moo ' que o1
1974·
icado como o capítulo 13 dos Philosophical essays, de

259

Do pon to d e vis · t a me tod oló gic o que rem os usu fru ir


' . do mes mo
• ·1· d
expediente utl 1za o por Jon as , .em. rela ção à sua pes qm sa sob re a relação
· imo
· ~
entre o gnostlc e o exi·stenciahsmo , ago ra, par . a com pre end er a relaçao
· ·1·ism . .
entre o nn o gno, st·co
i e O niil ism o tecn . olo g1c
" o, ent re o gno stic ismo e
·1 ue cha mar emo ~ ,
aqm o q s aqu i de tecn olo gtsm o: qua ndo ent ao, apos longa
" · . , .
permanencia e m terr as estr anh as, eu reto mei à mm ha pro pna terr a,
. . ao .palco,
da filosofia con tem por âne a, ver ifiq uei que
o que e_u hav1_a ~~rendido _la
fora fez-me entender mel hor as plag as de
ond e hav ia par tido , no estnto
sentido de que "o haver-me ocu pad o amp lam
ent e c~m o niil ism o an~igo
demonstrou-se - pelo men os par a mim - com
o um a aJu da par a detennmar
e classificar o sentido do niil ism o mo der no
." (PV, 233 ). Des sa mes ma
perspectiva, portanto, leva ndo em con ta que
a tecn olo gia é um a face do
niilismo moderno, acre dita mos que ess a estr
atég ia tipo lóg ica pod e ser útil
para chegar a evidências sem elha ntes . Em resu
mo , trat a-se de realizar uma
leitura da tecnologia, com o obj etiv o de evi den
ciar os traç os niilistas dessas
dua s situ açõ es hist oric ame nte tão dist inta
s, ma s exi sten cial men te tão
similares. É o êxito da análise de Jon as que
nos aut oriz a a desdob rá-la,
ago ra, seg uin do sua s pró pria s pis tas , na
aná lise do tec nol ogi smo ,
compreendido com o con diçã o exis tenc ial de
nos so tem po.
Com o vim os no cap ítul o ante rior, a ma rca
cen tral do niilismo que
perpassa esses vários mo men tos hist óric os
é a fiss ura ent re o homem e a
natureza , cujo resultado é um a des mun dan izaç
ão, ou seja , a um a tentativa
de ven cer o mun do, seja com o fug a (gn osti
cism o) seja com o dominio
(tecnologia), algo que con duz a um a des om
iniz açã o, ou seja , à negação da
identidade do ser humano com o par te do cos
mos. Com o ver emo s no próximo
cap ítul o, tod a a filo sofi a de Jon as, não
por aca so, é uma tentativa de
con strução de uma pon te ont oló gica e étic a
sob re ess e abi smo , substitu indo
o prin cípio gnóstico pe lo prin cípio vida e pe
lo princip io responsabilidade.
Os trê_s, nesse cas~, podetia m ser con side rad
os con10 prin cípi os existenciais,
ou seJa , com o atit ude s dian te do mu ndo ,
dia nte das qua is a filo sofia de
Jonas formula que stõe s fun dam entais: "Fu ga
do mu ndo ou resp onsabilidade,
e stran hez a em relação ao mu ndo por par te
ele" ? (BO NAL DI, 20 l l , p. 15). do homem ou per tenc imento ª

A mar
deso · · ca, ~ niilista da técn ica, por isso ' incl ui a des mun dan ização e ª
. ~tm zaçao na form a de um aco smismo (En
identifica com o uma d , twe ltlic hun g), que Jonas
. ,, . , · . .. .
acosmismo esc reve ele " cten
as caia st1c as cen trai s do nnh smo gno, stic
· • "o
o.
, t ~ ·
, 0 au enti co fun dam ent o da '
pos ição gnost·ca
'
con tem as sem e t d0 · · i · 1 '
d• . . . n e~ nu ism o e mes mo o ext rem ism o da transcen ·
ivma poss_u1 imp lica çõe s niilistas." (PG, 48) dência
esse acosm1smo se rev el . No cas o do gnosticismo,
· · ·
d o mu nd o por
par te do h
ª pnm eiro a par tir da neg açã o (co mo hostthd ·· d)
a e
d
orn em, a qua l den.va a ide ia de um Deu s estr ·"'
aiu,o
260
que também é nihil: "enquanto totalmente outro, alheio e desconhecido, o
Deus gnóstico tem, de fato, no seu conceito um caráter mais próximo ao
nihil do que ao ens", ou seja, "esse Deus é um termo negativo", na medida
em que "nenhuma lei emana dele - nenhuma para a natureza e, portanto,
nenhuma para a ação humana como parte da ordem natural" (PG, 48). Nesse
sentido, a única relação do Deus gnóstico com o mundo "é aquela negativa
da salvação do mundo": estando fora do mundo, Deus é o polo negativo em
relação ao mundo e só nele o homem pode encontrar a salvação. Por isso,
segundo Jonas, "dessa promessa [de salvação] segue naturalmente, ainda
que não inevitavelmente, o antinomismo" (PG, 48). E é por meio desse
antinomismo que o niilismo realiza sua consequência mais evidente: como
polo negativo, Deus deixa o mundo destituído de qualquer norma para a
orientação do homem, a quem cabe, simplesmente, esperar pela luz e seguir
o caminho que lhe for indicado. O mundo, antinômico , é o polo a ser negado,
portanto.
Na experiência tecnológica, embora a instância divina tenha perdido,
grosso modo, sua função, permanece a mesma atitude negativa do homem
em relação ao mundo: portador de uma "vontade de ilimitado poder" (TME,
34), o homem é o termo negativo do mundo e só dele pode emanar alguma
lei, 125 já que também a ciência moderna, sobre a qual a técnica se ampara,
pensa o mundo como destituído de qualquer finalidade, bem ou valor. Jonas
identifica nessa situação uma especial gravidade porque, se antes a natureza
era algo contra o que o homem devia lutar, agora ele é totalmente indiferente
a ela. Ora, a gravidade é que agora, no reino da indiferença, ele não se
sente mais ameaçado por ela, não há nenhum motivo de temor. Agora,
indiferente, a natureza parece não mais afetá-lo e talvez ele mesmo, o
homem, acredite, por isso, que não precisa mais se preocupar com seu
próprio poder de afetá-la. A indiferença é, assim, a base da atitude técnica,
na medida em que abre a natureza para a exploração desmedida, destemida,
permanente, ilimitada. Nas mãos do novo poder oferecido pela técnica, a
negação assume o arriscado papel de uma intervenção i~pr_uden~e- e
precipitada. Se antes a negação era hostilidade, agora ela e dispoSiçao
intervencionista; se antes ela sugeria un1a fuga em relação ao mundo, ~gora
ela sugere um exercício de poder em relação a ele, já que não há mais um
lugar fora do mundo para onde escapar; se antes a prisão do mundo er~
Vencida com o conhecimento que liberta o homem do mundo, agora_ela e
vencida com o conhecimento técnico que libera o mundo para a açao do
homem.

125
Embora a única lei da civilização tecnológica seja o fazer desenfreado e sem finalidade .

261
Outra característica analógica entre o gnosticismo e a tecnologia é que
ambos partilham um caráter mitoló gico que lhes garante uma ampl a
capacidade de sedução. Jonas apontou isso largamen_te em seus escritos
sobre a gnose e muitos desses elementos podem ser venfic ados no espectro
das motivações tecnológicas que mobilizam o homem contem porâneo . Em
seu livro Mythologies oftranshumanism , Hauskeller destacou esse potencial
mitológico, enfatizando o impacto das "narrativas da natureza humana"
(2016, p. 75), na construção dos conteúdos sedutores que progridem no
imagin ário dos cidadã os contem porâne os. Em trabalh os anteriores,
principalmente em Sex and post-h uman condit ion, Hausk eller já havia
destacado a importância dos mitos em seu viés de popularização e sedução
das ideologias tecnológicas ao longo da história cultural do Ocidente. Agora,
em Mythologies of transhumanism, ele usa o termo "mitologia" para se
referir às narrativas que "carregam uma profunda signifi cância cultural e
espiritual e oferecem uma explanação e uma justificação para certas práticas
que já estão estabelecidas, estão em processo de estabelecimento ou desejam
se estabelecer." (2016, p. 3). A importância do argumento levantado por
Hauskeller reside no fato de que ele resgata o papel atraente dos mitos, os
quais não podem ser ignorados pela filosofia da técnica , ainda mais por se
tratar de um fenômeno que tem despertado interesse de literatos, cineastas
e outros agentes culturais - cujo serviço, afinal, é criar e manipular mitos.
Tomar-se super-humanos, mais inteligentes, mais bonito s, mais fortes, não
mais adoecer, envelhecer ou morrer são alguns dos mitos mais reiterados
por esses agentes culturais. Todos eles se apoiam em um mito muito mais
eficaz, já identificado por Jonas: o mito do progresso, ou seja, o mito da
"onicompetência" da ciência , o mito de que estamo s a caminho de nossa
própria superação, de que podemos desenhar O mundo a nós mesmos e ao
'
nosso futuro e de que, afinal, o futuro será muito melho r do que é o presente
ou ~o qu~ foi o passado, porque agora ele está a cargo dos poderes humanos
e nao mais submetido ao acaso da natureza.
Essas crença s ordin ári as, ampl ame nte di fundid as pela utopia
tecno/ó g~ca, guardam, por isso, o apelo já presente no modo de reprodu ção
dos mov~m e~tos ,g~ósticos tal como descritos por Jonas: "o mito, ~uai
~~n~t~uçao simb,ol~ ca conscient~, é portanto, prediti vo no se~• cara~er
g ne_t1co, escatolog1co no seu carater explica tivo" (PG 25), ou seJa, o mito
explica a genealogia t b· · ' , · e ern
, . . " . , , ma~ a~ em explica a projeção escatolog1ca qu .'
ultima mst~ncia, da sentido a vida. O simplório das explicações dualistas

do mundo e, revestid 0 , nesse caso, de m1agen ·1 ente
s capaze s de tomar fact tn
compr~ens1vel o q~e a pal~vra discursiva não logrou fazer. O mito envolve
por me10 de narrativas muito mais eficazes na conduç ão de sentido s para o
mundo, e oferece visões futuras, na medid~ em que se fundam enta em uma

262
crença no conhecimento como condição para a salvação do homem, ou
seja, como saída do estado prisional do mundo ou dos limites da natureza .
O conhecimento seria, assim, a alternativa do homem contra o seu estado
de alienação e inautenticidade: no caso do gnosticismo, o conhecimento
abre uma rota de fuga do mundo em direção a D eu s; n o caso do
tecnologismo, ele aprimora o poder de intervenção no mundo capaz de
assegurar o saber como domínio e o fazer como exploração total da natureza,
em um mundo sem Deus.
Apoiados na análise de Jonas, poderíamos construir um paralelo entre
o gnosticismo e o tecnologismo, a partir de sua base niilista, por meio de
cinco características principais compartilhadas por ambas as situações
existenciais e mediadas pelo niilismo, agora presentes na tecnologia: [ 1] o
dualismo que as fundamenta e leva à negação do mundo, ou seja, conduz
[2] à desmundanização, e do ser humano, como [3] desominização , cuja
alternativa é uma [4] escatologia negativa e um [5] antinomismo, que se
deixa acompanhar por uma moralidade permissiva. Esses elementos podem
ser vislumbrados tanto no gnosticismo quanto na tecnologia (e na sua forma
mais contemporânea, ou seja, no projeto transumanista, o qual analisaremos
mais detidamente no próximo capítulo). Esses cinco elementos, de alguma
forma, sintetizam e articulam as teses centra is do presente livro e
possibilitam o seguinte quadro comparativo:

1) Dualismo
a. gnóstico : mantém um dualismo antitético entre homem e mundo,
mundo e Deus, Deus e homem; homem e Deus podem se copertencer
mutuamente (pe la via do pneuma) e, nesse caso, oporiam-se ao
mundo· o mundo é o agente separador e alienante; do plano da
expe ri ê n c ia ( opos iç ã o home m e mundo) de r iva o p~a n? _da
transcendência (mundo e Deus); a doutr ina da transcendência divm~
está baseada e m uma ideia de pureza radical: porque O mundo e
mau D e us nem o c riou nem v ive nele ou perto dele;
' , .co: assume o d ua 1is
b. tecnolog1 · mo car t esi. ano que separou o homem
.
(res cogitas ) e mundo (res extensa ) , 0 P
· d ·
substituído pe lo hon zont e a 1ma nenc ,
insatisfação, que precisa ser a lterado;
A
' ,
A •

lano da transcendenc1a e
·a· o mundo e a lvo da
1
,

f
1· mo radical entre homem e
c. transumanista: representa um d ua is . A • ,

~ rpo. 0 plano da unanencia e


natureza, segundo a versao _m~nte e co . ' . a ão
alterado pelo plano da artific1ahdade e da v1rtuahdade, como neg ç
· d ma amálgama desse com o
do que é natural, em bene fi1c10 e u
artificial.
263
2) Desmundanização
a. gnóstico: o universo material é uma vasta prisão; o ~undo é treva
e calabouço e nele O homem, sozinho,_nu~ca po?e~a alcançar sua
autenticidade; a natureza impede a reahzaçao autentica do homem.
Sendo O mundo mau, é preciso negá-lo, afastando-se, lutando contra
e sendo-lhe hostil;
b. tecnológico: o universo material é uma vasta disponibilidade de
recursos; o mundo é um lugar que deve ser explorado e alterado
pela ação humana, para tomá-lo habitável; o homem se toma autêntico
apenas quando exerce seu poder sobre o mundo e, por isso, deve negar
o mundo tal como ele se apresenta, a fim de tomá-lo uma reserva de
recursos e energia para a criação de uma realidade artificial;
desmundanizar é tomar o mundo natural apenas uma matéria para o
novo mundo que há de vir; para isso, antes, retira-se do mundo qualquer
característica de finalidade, bem e valor (papel da ciência); o mundo é
eticamente neutro e objeto indiferente do fazer humano;
c. transumanista: o universo material é um limite a ser ultrapassado;
o mundo é o lugar do limite; mais estritamente, a natureza é o limite
que precisa ser superado; o homem nunca alcançará sua liberdade
caso permaneça preso aos limites naturais e por isso libertar-se
' '
desses limites é alcançar a autenticidade; o poder de alterar o mundo
e tornar o homem perfeito é que garante a autenticidade do homem;
~orno o mundo é limitado, é necessário negá-lo e recusar os limites
impo~to_s por aquilo que se considera a natureza (ou seja, a base
ontol?~1ca reco~ecida como limite para a expansão do homem e o
exerc1c10 de sua liberdade), em vista do controle total sem referência
a qualquer fim , bem ou valor. '

3) Desominização 126
· · as
, . as duas pnmeir
a. gnóstico·· o homem e, corpo, alma e esptnto:
,
atestam sua orig·em mun dana (h ermarmene); . trancad0 na
o terceiro,
126 A
exemplo do vocábulo anterio . b · UJ11
neo logi smo P'tra dar e· r , r, so re o mundo, usado por Jonas, usaremos aqui .
' ·
n,ase a característ'ica, que exige - rópna
condição A palav . do homem a negaçao da sua P .d
. ra corrente "desuma . . ;- ,, . , d nll o
propriamente ontológi·co d , _ _mzaçao , a nosso ver, não da conta o se d
essa questao Já q , , · arrega o
de um sentido ético 1i·g· dO à r . 1 ' ue seu uso na hngua portuguesa esta c d
· ·1·d
a d ,adta das ca r_ac ten·st1·cas humanas próprias da sens1b1 de 0
homem, conforme O 1 ª
" . . mo e Io o humamsmo I , . . o terJJlº
i:. e
desomm1zação" J.á usado n • b. . · sso posto, e preciso adverttr que
. ' · d
o am 1to da psic O logia . e re,er
d
-

e as teonas de genero, nao s


A

umcamente ao homem e bro a


nquanto ser masc 1·
comunidade humana. u mo, mas ao homem enquanto mem

264
alma, expõe a sua origem extramundana (pn euma); o corpo é o
invólucro prisional do espírito, assim como a arquitetura do cosmos
é a prisão do mundo; quanto mais interno (ou pneumático), mais
verdadeiro é o homem; o homem vive em estado de exílio no mundo;
o homem autêntico se realiza no além do mundo; o homem precisa
deixar a sua condição mundana para adentrar no mundo da luz;
b. tecnológico: o homem é corpo e "alma": o primeiro atesta sua
origem biológica e material; a segunda, a sua atividade racional/
mental; a segunda deve atuar sobre o primeiro para dominá-lo; quanto
mais interno e racional, mais verdadeiro é o homem; portador da
razão, ele vive em estado de exílio quando não domina o mundo;
inquieto, ele passa a atuar sobre o mundo para superar sua solidão e
sua angústia; ocupando-se com o mundo, o homem se realiza
utilizando-o como recurso, tornando-o disponível como reserva; o
homem deve deixar a sua condição mundana para se tornar parte da
nova realidade tecnológica;
c. transumanista: o homem é corpo e mente: o primeiro atesta sua
origem biológica e material; a segunda, a sua atividade racional/
técnica; a segunda deve atuar sobre o primeiro para manipulá-lo e
aperfeiçoá-lo; quanto mais superior e livre em relação à natureza
material, mais verdadeiro é o homem; sente-se estranho no mundo
até quando não aperfeiçoa a si mesmo e torna o mundo um lugar
habitável segundo seus próprios padrões de perfeição; o homem
autêntico se realiza vencendo os limites impostos pelo mundo
(natural); o tempo para isso é o futuro indefinido, ou seja, um além
do presente; o homem é alguma coisa ainda por fazer.

4) Escatologia negativa
a. gnóstico: a verdade salva porque eleva além do mundo, que é
ignorância; o conhecimento verdadeiro (gnose) é de cu~o ético-
religioso; o homem sozinho não poderá jamais se libertar; o
conhecimento da verdade que o libertará é uma comunicação da
graça divina, que faz O homem se reencontrar com sua totalidad_e;
só a gnose liberta; como escatologia religiosa, para a gnose a salvaçao
consiste em fuga do mundo: o que é mundo/natureza é impedimento
para a salvação; 0 conhecimento do caminho é ascese ético-religiosa
baseada em uma escatologia negativa, na medida em que parte de
uma negação do mundo; Deus é nihil;

265
b. tecnológico: a racionalidade tecnocientífica salva porque articula
saber e poder, o que pennite o fazer ilimitado sobre o mundo _
vontade de poder; o conhecimento verdadeiro é de cunho técnico; 0
homem deve, sozinho, libertar-se, porque já não há mais esperança
divina (Deus morreu); o novo poder assume as mesmas prerrogativas
salvacionistas dos ideais religiosos; só a técnica liberta; para a
escatologia técnica, a salvação consiste em alterar o mundo a favor
do homem· o conhecimento do caminho é a ascese tecnológica·
' '
salvar-se é negar o mundo tal como ele é, em beneficio de algo que
ele pode ser tomar por meio do fazer humano;
c. transumanista: a racionalidade tecnocientífica salva porque
aperfeiçoa; já que o conhecimento verdadeiro é de cunho
biotecnológico, então só a biotecnologia liberta; escatologia
biotecnológica de um novo Adão, criado pelo próprio homem,
embora sem uma imagem que oriente o fazer; a salvação consiste
em aperfeiçoar o homem e o mundo; o conhecimento do caminho é
ascese biotecnológica em vista do aperfeiçoamento.

5) Antinomismo
a. Gnóstico: o mundo, o cosmos, ou mesmo a natureza, não oferecem
nenhuma nonna ou lei moral capaz de orientar o homem; e isso,
afinal, produz uma hostilidade radical em relação ao mundo; todavia,
paradoxalmente, os iniciados vivem uma moralidade permissiva
como expressão desse antinomismo, porque não se sentem mais
vulneráveis em relação ao mundo; já conquistaram a luz; agem
segundo a esperança religiosa de redenção na qual eles mesmos já
estão incluídos;
b. tecnológico: a natureza é considerada eticamente neutra e 0
mundo/cosmos não oferece nenhuma orientação moral para 0
homem, até porque, ele se revela para a fisica moderna não mais
como algo ordenado, mas como algo aberto e infinito; desvencilha-
se de qualquer reflexão ética, porque apoia-se em uma crença firme
no bem de seus próprios fundamentos, fazendo com que os iniciados
(cientistas e técnicos em geral) vivam uma neutralidade ética e
reivindiquem liberdade absoluta porque acreditam que seus
experimentos são eticamente inquestionáveis porque orientam-se
por boas intenções;
c. transumanistas: a natureza em geral e a natureza humana não
oferecem nenhuma norma ou lei e sequer se encontra nelas qualquer

266
"imagem" do que o homem perfeito deveri a ser; acred itam
fortemente no bem que estão produzindo, de tal forma que os seus
iniciados podem agir sem qualquer limite de cunho moral; não só
atuam sobre um campo eticamente neutro, como assumem sua tarefa
como moralmente obrigatória; agem segundo uma esperança utópica
de cunho biotecnológico.

A partir dessas cinco características, desenha-se a marca tipológica


própria do niilismo da técnica que desenvolveremos neste capítulo, a partir
de quatro níveis de consideração: [ 1] como herdeira do niilismo, a tecnologia
se apresenta em uma dinâmica formal marcada por uma compulsão pelo
excesso de poderes, processos e produtos; [2] tal dinâmica é mobilizada
por uma "vontade de ilimitado poder" (TME, 34), derivada da associação
indistinta entre saber e poder e marcada por uma crise na finalidade da
ação e por uma reivindicação de liberdade absoluta por parte da tecnociência,
a qual pretende dar ao homem superpoderes sobre a natureza; [3] tal esforço,
contudo, não anula o paradoxo: a técnica é movida por uma vontade de
tudo, ou seja, por uma negação da hierarquia dos valores, por uma
permissibilidade deslumbrada que, por último, [4] a leva a assumir uma
perspectiva utópica de melhoramento como negação das condições atuais
da natureza e do ser humano.

3.1 Poder incrementado em atividade permanente


O tema da técnica (e de sua versão contemporânea, a tecnologia) é
central no pensamento de Jonas, principalmente a partir da segunda metade
da década de 1960. Três de suas obras mais importantes, por exemplo,
sugerem, já por seus títulos, o quanto essa questão é central na formul ação
das suas teses: Phi/osophical essays: from ancien creed to tecnological
rnan ( 1974), Th e imperative ofresponsability: in search ofan ethi~s fo ~ the
technological age ( 1979) e Technik, !vledizin und Ethi: ( 1?85). Alem diss_o,
o tema é retomado em vários outros artigos e conferencias. Contudo, sao
os dois capítulos iniciais da obra de I 985 que tratam da questão da técnica
127
de forma mais sistemática, embora também sintética. O texto recupera 0

121Já no início do primeiro capítulo, Jonas reconhece que, sendo ~ proA ble~a qu~ diz
respeito a todos os âmbitos da vida humana, a técnica é um assunto de unportanc1a filosofica
e que, para tratá-la "é preciso que exista alguma coisa como uma ~losofia da tec~ologia"
e que esta "é ainda bastante incipiente e é preciso que se trab~lhe amda sobre ela. ~T_M E,
~5). Nesse sentido, a análise por ele realizada pode ser classificada como uma espec1e de
indicação de caminho para tal disciplina filosófica.

267
conteúdo de uma conferên cia proferida no encontro geral do The hastings
cente,~ realizado entre os dias 23 e 24 de junho de 1978, no qual Jonas
recebeu o segundo prêmio Henry Knowles Beecher de contribuição para a
ética e que foi posteriormente publicado no The hastings center report de
fevereiro de 1979. Além disso, algumas ideias estão presentes no ensaio de
1971 , publicad o como capítulo 3 de Philosop hical essays, sob o título
Seventee nth Century and After: the meaning of the scientifi c and
technological revolution.
Nesse texto Jonas apresenta a técnica como "o uso de ferramentas e
dispositivos artificiais para o negócio da vida, junto com sua invenção
originária, fabricação repetitiva, contínua melhora e ocasionalmente também
a adição ao arsenal existente." (TME, 27). Tal descrição , contudo, segundo
ele, serve para delinear a atividade técnica até o advento da modernidade.
Depois disso, teria surgido uma diferença fundame ntal, marcada por uma
mudança no status do saber, o que significa uma crescente vinculação entre
a ciência e a técnica. Embora a integração total desses dois âmbitos vá se
consolidar apenas a partir do século XIX, Jonas identific a essa tendência
como característica central da modernidade, iniciada no século XVII. Isso
porque, para ele, "a tecnolog ia moderna, no sentido que a diferencia de
toda a tecnologia anterior, foi desencad eada pela Revoluçã o Industrial "
(EF, 76).
Tal processo teria provocad o uma mudança no que o autor chama de
dinâmica formal a qual transformou a técnica em uma "empres a coletiva"
em vista da produção de seus dispositi vos e processo s, ou seja, de seu
"conteúdo substancial" (TME, 25). Essa mudança poderia ser caracterizada
por uma technological turn, ou seja, uma virada tecnológ ica segundo a
qual a técnica se transforma em tecnologia. A distinção entre esses dois
conceitos é importan te para Jonas: enquanto a técnica é um conceito geral
usado para descrever os modos de relação com O mundo ao seu redor, ª
tecnologia é o modo moderno de manifest ação dessa relação. Para o autor,
~ compreen são desse fenômen o exige que não apenas se leve em conta os
resultados concretos da técnica", ou seja, os produtos e processos que ela
engendra e o_ferece à comunid ade humana, mas que se compree nda a sua
form~, ou seJa, que ela seja levada em conta "como totalidad e abstrata de
movimen to", 0 que "sem dúvida pode-se chamar de ' tecnolog ia"' (T~E,
26 ). Jonas parte, assim, de uma perspecti
va descritiva do fenômeno técnico
para "~bt~r analitica':'ente os aspectos parciais de dignidad e filosófica colll
os quais ha d~ se contmua r trabalhando na interpretação de conjunto" (TME,
25). Essa sena a tarefa daquilo que ele anuncia como sendo uma filoso~a
da tecnolog ia (TME, 25). Tal tarefa começa distingu indo a ''dinârn1ca
formal" (a tecnolog ia como um processo ) do "conteúd o substancial" (os

268
múltiplos usos concretos de ferramentas e processos e seus efeitos sobre o
mundo e a vida em geral), além de analisar a falta de algo que poderíamos
chamar de dinâmica ética (a exigência da responsabil idade). A primeira
perspectiva (formal-processual) deveria "recolher as ' condições do
processo', pennanentes, com as quais a moderna tecnologia abre passagem
para 'si' - mediante nossa ação, naturalmente - até a novidade seguinte e
superadora de cada momento." (TME, 26). Ou seja, trata-se de uma análise
que dá atenção ao processo, ao modo de apresentação, identificando nele
uma perda de metas e objetivos (dado o seu excesso), além mudanças no
status do próprio conhecimento, que são provocadas por tal processo. A
segunda perspectiva (substancial-material), quer "examinar as fonnas da
novidade mesma, tentar classificá-las (situá-las, de certo modo, em uma
'taxonomia') e obter uma imagem do aspecto do mundo equipado por elas"
(TME, 26). Trata-se, aqui, de uma análise concreta das "coisas" que a
tecnologia dispõe para o nosso uso diário e que alteram o modo como o
mundo se apresenta, na medida em que um mundo "equipado" pela técnica,
ou seja, marcado por diversas artificialidades, é bastante diferente de um
outro, digamos, mais natural. Tal constatação acentua o aspecto de
intervenção da técnica no mundo e, portanto, das suas consequências em
termos de mudança no cenário natural.

3.1.1 O novo status do saber 128


A technological turn tem corno pano de fundo uma mudança no status
do conhecimento que se tomou urna premissa ontológica e gnosiológica da
possiblidade do avanço tecnológico moderno: o novo "status modificado
do saber na hierarquia do espírito" teria conduzido a própria técnica "à
posição de urna das principais tarefas da humanidade." (TME, 39). Tal
mudança ocorreu porque a "velha e honorável separação entre ' teoria' e
'prática' desapareceu" e a "sede de conhecimento puro, o entrelaçamento
entre conhecimento nas alturas e ação na planície da vida, tornou-se
insolúvel e a aristocrática autossuficiência da busca pela verdade por si
mesma desapareceu." (TME, 39). Nesse sentido, o campo teórico teria sido
diluído na forma das várias utilidades concretas do cotidiano. A fórmula de
Jonas sintetiza corno esse processo levou a uma importante mudança no
que campo do conhecimento: "trocou-se a nobreza pela utilidade" (TME,
39). A antiga aristocracia teórica da verdade que estava centrada na

128
Uma versão desse trecho foi parcialmente publicada na Revista Educação, da PUCRS,
sob o título de "O novo status do saber na era tecnológica e os desafios para a educação
segundo Hans Jonas" (2017).

269
realização plena do ser humano, assim , foi. substituída por urna
"socialização" (TME, 40) dos saberes em ~e~efi,c10_ do fazer, ou seja, ern
direção à realização exclusiva dos pot~nciais ,~e~n_icos ,d~ hom~m. Isso
porque a civilização tecnológica manteria u~a . v1sao te~nca subjacente"
(TME, 35) segundo a qual, em sentido ontolog1co, as ~01Sas do mundo se
abrem sempre em novas camadas a serem conhecidas e, em sentido
epistemológico, porque o conhecimento, traduzido em "descobrimento e
invenção", passou a ser uma ação incessante, validada pelos aparatos
tecnológicos. Essa seria "a característica do progresso moderno" (TME,
36). Para o autor, é, no "movimento do conhecimento onde primeiro e
continuamente aparece a novidade mais importante", ou seja, é no âmbito
do pensar que esse processo se funda: de um lado, temos uma natureza que
se oferece sempre de novo em sua "infinitude virtual"; de outro, um
conhecimento que, "ao invés de reduzir a margem do que resta para ser
descoberto", surpreende-se "com dimensão após dimensão de novas
profundidades" a serem conhecidas e/ou alteradas. O conhecimento tomou-
se uma "investigação sem fim" em busca da inovação ou da novidade, ela
mesma convertida em epíteto recomendatório dos novos tempos, os tempos
modernos:

A grande virada é marcada pelo uso sempre mais frequente do epíteto


laudatório "novo" para uma variedade sempre maior de iniciativas
humanas - na arte, na ação e no pensamento. Essa moda linguística
seria grave ou fútil dependendo do caso, nos diz uma série de coisas.
A elevação do termo a atributo laudatório denuncia certo cansaço,
até _mesmo_certa impaciência com as formas de pensar e de viver até
entao domi~antes. O respeito pela sabedoria do passado é substituído
pela suspeita de um erro inveterado e pela desconfiança de uma
autoridade inerte. Isso vem acompanhado de um novo estado de
, modernos estamos
autoconfiança
. , de t1ma fitrme conv1·cçao
- de que nos
mais bem equipados do que os antigos - e certamente melhor do que
nos~os an~ecessores imediatos - para descobrir a verdade e melhorar
muitas coisas. (PE, 81).

Tl~I ~rogresso científico se deu simultaneamente por meio do progresso


t ecnoog1co que o sustentou · o
" d' ' pois O avanço dos equipamentos de acess "
aos recon 1tos da natur .desenvolveu-se como um "subproduto externo
d , , eza
o novo status , .
do conhecimento·· "para aIcançar seus propnos b. tivos
, . ." . o ~e
~~ricos, a c1enc1a necessitava de uma tecnologia cada vez mais refinada e
s1camente forte como ferramenta que se produz a si mesma." (TME, 38).
Em outras palavras porq O nh · d'do
' ue co ec1mento passou a ser compreen 1

270
como exploração infinita do mundo, então foi preciso desenvolver
ferramentas que sustivessem essa tarefa. A ciência, assim, transformou,
com o serviço da técnica, a natureza em um laboratório de grande escala,
"uma incubadora para novas perguntas", em um círculo indeterminado e
infinito, nunca passível de saturação. Para Jonas, o conhecimento foi
reduzido a uma versão utilitarista e intervencioni sta amparada
tecnologicamente. Isso significa que os antigos reinos teórico e prático se
diluíram em uma única estratégia, levada a cabo como "mútua relação de
feedbaclc' entre ciência e técnica, em um recíproco movimento de impulso
e necessidade, segundo um vínculo que Jonas caracteriza como "funcional"
e que faz com que a ciência se transforme em um "agente de
infatigabilidade" para a tecnologia. (TME, 38).
O problema é que, tendo perdido sua raiz reflexiva e seu potencial de
realização da essência humana em sentido pleno, "a aspiração ao
conhecimento" se transformou em uma atividade meramente operacional,
guiada por um avanço ininterrupto adiante, marcado por um afã por "novos
passos em todas as direções possíveis", diluindo os próprios objetivos e
inventando sempre novas necessidades. O conhecimento se converteu,
assim, em um impulso cego, amparado em uma "impressionante história
de êxitos." (TME, 21) e em uma confusão entre entre meios e fins, já que
não há mais linearidade dos processos, mas apenas circularidade (objetivos
podem ser satisfeitos com novas técnicas e vice-versa). Novas necessidades
e objetivos não solicitados guiam a atividade do homo faber, que passa a
ver nessa tarefa uma necessidade vital, principalmente quando associada à
atual "dieta socioeconômica". O conhecimento se coloca a serviço do
"progresso", um impulso incerto e sem direção, que se torna um valor em
si mesmo, "um adorno ideológico da moderna tecnologia." (TME, 31 ).
O prejuízo central desse modelo seria, segundo Jonas, não
necessariamente a socialização dos saberes, mas a ilusão da pretensa
democratização do conhecimento e, principalmente, a sua redução em
termos epistemológicos e culturais. Transfom1ado em mera ferramenta de
serviço diante do mundo O conhecimento tornou-se "em si mesmo
culturalmente débil" e O ris~o parece ainda mais grave quando associado a
urn fazer técnico, que se desligou da reflexão e, con~ isso, perdeu a
capacidade de meditação ontológica (sobre o ser das c01sas que altera e
sobre a imagem das coisas que pretende inventar) e ética (sobre o de~er
contido no uso dos novos poderes). Em outras pala:~a,s,_ sem aque_la a~t1ga
capacidade reflexiva e reduzido aos expedientes ut1htanos e func10na1s da
tecnologia O conhecimento se transformou em um perigo para o próprio
homem. o processo, para Jonas, se apresenta como uma crise cultural,
Porque o conhecimento estaria "em risco de abrandar-se ou de converter-

271
, ·da ortodoxi·a - esse eros teórico já não vive só do delicado
. apetite
se em ng1
dade senão que é estimulado por. seu rebento mais robusto, a
pe1a ver , "d . d
técnica" (TME, 38). O "eros teórico", ou seJa, ague 1e . ese1o e ~onhecer",
apontado por Aristóteles, foi reduzido a um~ ortodoxia, na ~e?1?a em que
se implantou como um imperativo vocac10nal. de cada md1v1du~ e da
civilização como um todo, sob os riscos e os pengos de uma tecnoc1ência
livre de valores e de responsabilidade. O homo faber , porque suplantou o
homo sapiens, conduz a civilização atual para um conjun~o de perigos nunca
antes imaginado e para o qual o atual estágio do conhecimento nos deixou
totalmente despreparados para a necessária avaliação da consequência dos
usos dos novos poderes.

3.1.2 O progresso como dinâmica da insatisfação


A técnica pré-moderna era marcada por uma "posse" de poderes. Para
Jonas, o inventário de ferramentas e procedimentos técnicos anteriores à
era moderna indica um "equilíbrio reciprocamente adequado, estático, entre
fins reconhecidos e meios apropriados" (TME, 27), algo que era, afinal,
mantido por um "longo tempo como um optimum de competência técnica
sem mais exigências" (TME, 27). Isso significa que, até a Revolução
Industrial do século XVII, a técnica oferecia uma resposta satisfatória às
demandas da necessidade humana e mantinha-se na medida em que
correspondia a essas exigências. Havia, portanto, um equilíbrio entre meios
e habilidades , necessidades e objetivos reconhecidos, conduzindo a um
estágio nomeado por Jonas como de "saturação tecnológica" (TME, 28).
Nesse tempo, mesmo as revoluções (agrícola, metalúrgica e urbana, à
exceção da bélica) davam-se mais por casualidade do que por intenção e
º,cor~eram de forma lenta e não intencional , fazendo com que os avanços
~ecmcos fossem "monopólios zelosament e guardados pelas sociedades
inventoras" (TME, 28) e não se estendessem como domínio tecnológico.
O re~ultado é que, na era pré-moderna, não havia a ideia de um "progresso
contm~ado" e sequer um "método intencional" (prova riscos perigos) para
' nica
' e a t ec
- das artes a' seus fins,
produzi-lo
. · Havia ' portant o, uma adequaçao
~hegava mesmo a uma autodefinição própria estável que fundava o orgulho
.dº p~vo .que a detinha, constituindo-se como um~ parte de sua própria
1 entidade.

Na era moderna ' ao con t rano , · , nao


~ to de
. f. _ se alcança nenhum pon
satis açao ~ecnológica, porque os meios e as habilidades estão desligados
das necessidades e dos obiet · p . , · não
lev ., . , J . tvos. or isso, os passos novos da tecn1ca
" am ao eqmhbno ou a satisfação, mas despertam a vontade de dar sempre
novos passos em todas d.1reçoes
as
~
possíveis" (TME, 30), fazen °
d corn

272
que os objetivos, mesmo do procedimento técnico, se diluam. Além disso,
a inovação técnica, por estar certa de se espalhar sobre a comunidade
científica através daquilo que Jonas chama de difusão tecnológica, tanto
do ponto de vista do conhecimento (intercomunica ção uni versal) quanto
da apropriação prática (há uma "pressão da concorrência", uma dinâmica
transformada num "perpetuum movens da universal apropriação das
melhores técnicas" [TME, 32], levando ao desejo de avanço contínuo nunca
satisfeito). Como a relação entre meios e fins não é linear mas circular e
'
dialética, os objetivos podem ser satisfeitos com novas técnicas e vice-
versa, fazendo com que a tecnologia imponha sempre novas necessidades
e transforme a sua própria tarefa em um trabalho interminável, no qual
objetivos não solicitados se transformam em necessidades vitais.
Nasce assim o impulso do progresso, como uma espécie de novo valor
que faz acreditar que cada estado superior é superior ao precedente e que,
enquanto processo antientrópico, está entregue a si mesmo. O impulso do
progresso torna a técnica um sistema que conduz a estados sempre
superiores, uma espécie mesmo de destino. Jonas identifica nesse processo
algumas premissas ontológico-gnoseológicas da possibilidade do progresso
contínuo da técnica. Trata-se do sentimento de que "pode haver um
progresso ilimitado, porque sempre há algo novo e melhor a ser encontrado"
(TME, 35). Ta] progresso é apoiado numa impressionante "história de
êxitos" e numa teoria segundo a qual as coisas se abrem infinitamente para
serem conhecidas, ou seja, há um processo que mostra possibilidades
inesgotáveis de conhecimento e domínio técnico da natureza, bastante
incentivado, a partir da relação estabelecida desde o século XVII, entre
técnica e ciência e as alterações que elas provocaram no modo de
compreender a natureza. Isso porque, ao invés de reduzir a margem do que
resta conhecer, "a ciência se surpreende hoje a si mesma com dimensão
após dimensão de novas profundidades" (TM E, 38); a natureza passa a se
abrir numa infinidade de possibilidades que induzem a pensar que as
investigações também nunca cessarão.
Essa dinâmica, portanto, está entregue ao seu próprio processo e
exaspera-se diante das inúmeras possibilidades que se abrem ao fazer
humano, de modo que a sua face niilista não se revela por uma ~usênc~a_, ao
contrário, por um excesso de objetos e possibilidades - tudo e perm_ittdo.
ª?
Essa abertura de mundos sempre novos para um movimento sempr~ 1ante,
favorecido pela economia e pela visão de uma natureza dest1tu1~a de
qualquer dignidade, se apresenta como manifestação de u~ homem ~xilado
no mundo, ao tempo que busca O conhecimento (agora umdo a_o maior ~os
Poderes) capaz de garantir a sua "salvação". Como Jonas sugenu a respeito

273
do existencialismo, aqui tamb ém pode ser iden tific ada uma
evide~te nuança
neognóstica, ou seja, uma gnose de nova form_a, ~que
la que ve o mundo
não com hostilidade, necessariamente, mas com indi feren
ça e, nele , pretende
atuar em busc a de um conh ecim ento rede ntor que, ness
e caso , significa
redimir o hom em do mundo, na pers pect iva de ultra pass
ar os chamados
limites impostos pela natureza, que é "o amb iente cósm
ico do ser humano"
(PV, 23 7). Esse seria o papel das tecn olog ias, no sent ido
de que elas buscam
consertar e melhorar o mun do e o próp rio ser hum ano,
com o parte de urna
esperança escatológica herdada das form as antig as de
niili smo gnóstico.
Mas não só isso: na med ida em que Jona s iden tific a
no existencialismo
uma face gnóstica e, portanto, niili sta, tamb ém ele cont
ribuiria para essa
ideia de uma tecnologia redentora, cenário no qual resta ao
hom em celebrar a
vontade de pode r como modus operandi da própria tecnolog
ia: tal como teria
sugerido Sartre, segundo Jonas, diante do silêncio do trans
cendente, "o ser
humano abandonado e entregue a si mes mo recla ma sua liber
dade , ou melhor,
não lhe resta outra alternativa senão tomá-la sobre si: ele
'é' esta liberdade ,já
que o ser humano 'não é outra coisa senão seu próprio proje
to' , e 'tudo lhe é
permitido"' (PV, 245). Tal liberdade, agora, é assu mida
integralmente como
liberdade do fazer, diante do qual tudo é permitido, já que
o fazer é a regra
(inclusive moral) por exce lênc ia do hom em cont emp orân
eo .
.. . O que há de prom eteic o na tecn olog ia é, tamb ém,
0 que há nela de
nnhs ta, portanto: seu "pre stígi o ' prom eteic o' que leva
seus guardiões à
te~ta?ão d~ reve stir sua infinita ativi dade com a dign idad
e dos mais altos
objetivos , isto é, de elev ar a fim o que com eçou send o
m eio e ver nele 0
verdadeiro destino da hum anid ade" (TME, 40). E isso
faz' com que '·o
~~ogresso do h?m em este nda- se com o avan ço de pode
r a poder" (TME ,
), com o um unpulso sem final idad e mas ao mes mo temp
o portador da
vontade de aproveitar t0 d ·b·1·
dado que as as poss 1 1 idades quai sque r que elas seja · rn·
, . a auseAncia
· . '
de valo res imp ede a dist inçã o das hierarquias ·
necessan as entre O
que po de e O que deve ser fe ito.

3•l .3 A amb ivalê


ncia do pod er
d t ,No·segu ndo capí tulo d Ti · ·
ca, medi.ema . ,
,
a ecmca sob o ponto d e · ecm , •
e etica no qual Jonas trata
reflexão s b '
e vista ettco , enco ntra mos mais wn elemento de
0 re as cons equ A
,· ·· ·
tecnologia t A enci as nuh stas da nov a dinâ mica forrna l da
con emporanea. a b. l A .
esse texto reco nhec endo · ª~ •~a enc1a de seus efeit os. Jonas co, a
meça
ação hum ana e tod _ ~le ª tecn ica é um pode r e que todo poder e uI1l

"pod er enor m 1
sua ambivalência (: :çai d eve ser ~val iada do pont o de
vista ético ,
p e co nduzir para o bem quan to para o mal) . Co
dad::
eme nte
os desafios éticos m .aurn enta d " (TM E 51 ), a técn ica
° , d entre
ais re 1evan tes d se enqu a ra
a soc1. e d ade cont emp oran,. ea.

274
Para o autor, toda capacidade, ou seja, todo poder é em si mesmo
bom " em s1.,, e " como t a l" e, d ado que é assim, seria "sensato
' exigir: utilize'
esse poder, aument~~o, ~as_não faça mau uso dele" (TME, 52). A questão
se agrava quando~ et1ca Jª nao pode mais contribuir para a decisão a respeito
do que pode ser feito, dado que até mesmo o que parece bom, em princípio,
pode se transformar, levando em conta a magnitude espaçotemporal da
ação, em algo negativo. A técnica instaura, por isso, com sua dinâmica,
vetores de efeitos negativos crescentes, mesmo onde existem boas intenções.
Para Jonas, "o risco de 'excesso"' é aumentado quando o impulso ao bem
guarda, no seu âmago, também o "germe congênito do 'mal', isto é, o
prejudicial" (TME, 52), que é alimentado justamente pelo impulso do bem.
É o que faz com que o autor afirme que "o perigo reside mais no sucesso do
que no fracasso", ou seja, o paradoxo da técnica é que suas intenções
justificadas são incentivo para os perigos advindos de sua ação. Para Jonas,
ao contrário do que escreveu Isaías, o profeta bíblico, "'arados' podem ser
tão prejudiciais a longo prazo quanto 'espadas"' ou armas de fogo. Assim
como energia nuclear pode ser tão danosa a ponto de virar uma bomba
atômica ou abastecer uma cidade. Jonas repercute aqui a perspectiva de
Fuller, citada por Deleuze e Guattari, em Mil platôs (v. 5, p. 60): "É provável
que, durante várias eras sucessivas, os instrumentos agrícolas e as armas
de guerra tenham permanecido idênticos". (FuLLER, 1948, p. 23).
Tal situação piora ainda mais quando pensamos no segundo elemento
apontado por Jonas: a inevitabilidade da aplicação da técnica, ou seja, o
fato de que toda posse dos novos saberes, dada aquela diluição à qual nos
referimos anteriormente, já é posse de poderes, ou seja, já é uso efetivo. A
esse respeito, Jonas escreve em The phenomenon of life: "força de fato,
não é um 'dado', mas sim um 'ato'" (PV, 33; 41 ), o que significa que ª
posse de um poder já é seu exercício. Eis um elemento im~ortante porque,
quando Nietzsche descreveu a vontade de poder (agora interpretada por
Jonas como vontade técnica), ele o fez justamente apeland~ ~ara ª
compreensão de que tal impulso já é, sempre, ação e nunca potenctahdade,
reconhecendo que a suposta unidade, presente na concepção d~ vontade de
poder como explicação de mundo, não tem nada de met~fi_SlCO, nenhum
. , 1 s ao contrano trata-se de
e1emento doador de sentido extrassens1ve , ma , , .'
- ndo sens1vel imanente. O
uma organização de forças em atuaçao no mu ' . .
. . d ,amos chamar de mtens1dade
poder surge portanto a partir daquilo que po en , .
das forças, ~o confli;o com outras forças dispostas no mundo. E desse ~ogo
conflituoso que nascem as configurações de forças sempre em a~açao e,
portanto sempre efêmeras provisórias. A ideia de poder esta sempre
' ' ~ t ) contra
relacionada com a ideia de uma força atuando (em atuaçao, em a o
~ eia mais do que o resultado
°
outra força, fazendo com que o mund nao s 'J

275
desse conflito incessante que nasce da atuação de poder contra poder. Jonas
recupera essa noção, ao afirmar que a capacidade técnica não é um acervo,
mas uma atuação, disposta no mundo pelos interesses do trabalho (que ele
chama de "pressão da concorrência" [TME, p. 30]) mas, sobretudo, a partir
do "esforço de atualização constante de seu potencial técnico" (TME, 53),
ou seja, pela dinâmica imposta pela própria técnica sobre si mesma, no
sentido de buscar continuamente uma atualização diante dos sempre abertos
horizontes possíveis de atuação.
A técnica, assim, como vontade de poder, é um poder "intensificado
em atividade permanente", no qual não há mais separação entre posse e
exercício. É o que faz da dinâmica, uma corrente infinita , embora
descontrolada e sem rumo, como uma força cega e inconsequente: a técnica
não sabe o que quer e, sendo assim, quando atinge algum fim, seu medo do
tédio a impele a ir sempre mais adiante, indiferente a todas as consequências
e às lições que a frustração com o já alcançado pode oferecer. Quando
pensamos isso no horizonte das novas "dimensões de espaço e tempo",
abertas pelos novos poderes, não é dificil imaginar onde podemos chegar:
toda a aplicação técnica "tende a crescer em ' tamanho"' (TME , 54), de
forma que o "palco no qual se desenvolve - a terra" se tomou pequeno
demais e mesmo os seus atores, fracos demais para estarem no controle. O
resultado é a hipoteca da vida futura em nome da imediata satisfação desse
afã. O horizonte do futuro muda de configuração: ele deixa de ser algo
sobre o qual devemos nos responsabilizar, para se abrir em inúmeras
possibilidades usufruídas a partir dos interesses do presente e fec hados a
eles, em seus elementos "quase-compulsivos". (TME, 60).

3.1.4 O conteúdo substancial e a descartabilidade


Além de identificar a dinâmica formal própria desse movimento (no
modo da _tecnolog_ia), Jonas retoma o avanço desse poder e m seu conteúdo
subSlancial, ou SeJa, através de " novas formas de poder, coisas e obj etivos
~~e o _h ome~ . mode~o. recebe da técnica" (TME, 25), através de cinco
_apas. m~c~nica, quimtca, e letrodinâmica, fisica nuclear e biológica (ou
b10tecnolog1ca) Aqui b· t· l b
. :
d ,it· r ·
, as a em rar que, em Seventeenth century an ª1 e ·
th
e _meamn? ºf th e scientific anel technological revolution (reprisado no
capitulo. pnmeiro de Técnica, medicina e ética) Jonas apresenta essa
perspectiva d~ mudança na forma de exercício do ~oder da técnica na era
mode~a em c1~co passos: [ 1] a mudança do meio de produção: a Revolução
~ndustnal sur~m como uma necessidade de substituir a força de trabalho
umana, ou seJa, como uma mudança no modo de produzir o produto e não
para mudar um produto q d · · 1ar
' ue po ena ou, em alguns casos, deveria conttnt

276
um
o mesm o; [2] com a muda nça no modo de produ ção o própr io nasce
que se
novo produ to: o própr io meio de produ ção, ou seja, as máqu inas,
do a
conve rtem em artigo s de consu mo e de uso pesso al e doméstico , levan
nto do
uma cresc ente autom ação dos proce ssos produ tivos e ao aume
s modo s
consu mo das reser vas natur ais; [3] com as máqu inas e seus novo
não as
de produ ção, muda m-se tamb ém os própr ios produ tos, ainda que
distin tos
neces sidad es às quais eles serve m (aviõ es, por exem plo, são muito
e vir): há
enqua nto produ tos, ainda que sirva m à mesm a neces sidad e de ir
para
uma signi ficati va trans form ação quím ica das subst ância s neces sárias
têxtei s
os novo s produ tos (prim eiro com as cores sintét icas, depoi s as fibras
ém as
e os mate riais petro quím icos ); [ 4] até que se muda m tamb
m sido
neces sidad es: "com putad ores ou radar es", por exem plo, "teria
o de
cond enado s à ocios idade se tives sem caído de algum a forma ao mund
eles"
apena s cem anos atrás. O mund o de hoje não pode mais viver sem
usuár io,
(PE, 80); [5] em sua últim a etapa , esse proce sso domi na o própr io
toma do um dos objet os a ser recon figur ado - chega -se, assim ,
à últim a
rada em
etapa do avan ço técni co, a etapa biote cnoló gica, que estari a ampa
imag em
um niilis mo de cunh o antro pológ ico: a "neut raliza ção metaf isica da
a e mais
do home m" (PE, 81 ). Em sua últim a etapa , Jonas ident ifica a últim
torna um
grave barre ira do avan ço da técni ca, justa ment e onde ela se
home m,
probl ema ético -meta fisico : a tenta tiva de reela borar a "ima gem" do
própr ia
de "dese nhar os nosso s desce nden tes", de "tom ar as rédea s da nossa
ntram
evolu ção" (PE, 81 ), ao temp o em que tais pode res nos enco
(PE, 82).
"estra nham ente caren tes de prepa ração para seu uso respo nsáve l"
fia (PE,
Essa é, por isso, para Jona s, a "prim eira tarefa cósm ica" da filoso
82; TME , 50).
seja,
Pode mos afirm ar, a parti r disso , que o conte údo da tecno logia, ou
torna ram-
os inúm eros artefa tos e proce ssos dos quais ela dispõ e no mund o, 1
ideia de
se uma facet a evide nte de sua carac teríst ica niilis ta atrav és da
da
descarte: o lixo tecno lógic o apare ce tanto como um aspec to import~nte
untdores,
insati sfaçã o e a frustr ação que tais artefa tos criam em seus consL
z, basea ~a
como revel am a carac teríst ica própr ia da dinâm ica que os produ
~ual n~o
em um esfor ço de melh oram ento semp re const ante e infini to, no
s mais
estão inclu ídos os intere sses da natur eza ou mes mo das popu laçoe
sobre a
vu]ne rávei s, como apon ta AndTew feenb erg em seus traba lhos
129
demo cratiz ação da tecno logia .

~ife_renças entre as
129Em trabalho anteri or discuti a possib ilidad e de aproximação e as
tecmca: entre Hans
ideias de Feenb erg e de Jonas : A técnica como poder e o ~?der da
27, n. 40, p. 143-166,
Jonas e Andre w Feenberg. Revista de Filosofia Aurora, Cunub a, v.
jan./abr. 2015.

277
Outro filósofo da técnica, Borgmann ( 1984), propôs uma análise
fenomenológica da tecnologia baseada na relação do homem com os
dispositivos tecnológicos (meios, um para-que, que se distingue de uma
mera coisa) e destacou o problema da descartabilidade como um aspecto
central da nossa relação com o conteúdo substancial da tecnologia: para
Borgmann, os atuais artefatos técnicos não são focais, na medida em que
não criam relação de vínculo nem de fidelidad e por parte de seus
possuidores. Borgmann aponta alguns motivos que explicariam essa nova
forma de relação (nova porque, precisamente, ela representa uma mudança
em relação às atitudes de uma ou duas gerações atrás): [l] a complexidade
dos modos de funcionamento dos dispositivos, pois geralmente o indivíduo
comum tem acesso unicamente à sua função e não à sua maquinaria interna,
que é cada vez mais escondida sob o véu de um enredamento só desvendado
por especialistas e, além disso, a reparação e a manutenção se tomam
inviáveis; [2] a sua acessibilidade, pois não só as máquinas , como produtos
de consumo, estão sempre à mão, como também elas estão cada vez melhores
e mais sedutoras, de forma que as nossas posses são sempre e cada vez
mais reféns da obsolescência; [3] tal obsolescência é algo programado, à
qual se soma a incapacidade de arquivo e retenção desses dispositivos,
pois cada vez mais temos acesso a produtos que podem ser usados apenas
uma única vez; e, por último, [4] a dispensa de cuidado para a conservação,
já que cada vez mais os produtos precisam menos de atitudes de cuidado
no polimento, na manipulação e em outros usos.
A descartabilidade, em outras palavras, mostra que cada produto não é
feito a não ser para o consumo, não mais para satisfação de necessidades,
mas para algo antes disso, para uma espécie de prazer vazio, de usabilidade
imediata e efemera. Talvez isso explique o alto índice de produtos supérfluos
que nos cercam na atualidade: eles não têm função de satisfazer alguma
necessidade humana, mas meramente de possibilitar uma experiência que
se r~du~ ao ~róprio consumo - e não à posse. Trata-se do prazer de ter, de
ter ª dispo s ição, de manipular, de acumular e de ser (provisoriamente)
detentor de algo, não mais no sentido de reter uma posse, mas de controlar
um P~~ce~·so . O resultado é um aumento excessivo das possibilidades de
expenenc,as co~"as ~oisas, mas um equivalente enfraquecimento da riqt:eza
de nossas expenencias. Assim como a técnica cresce em várias direçoes,
tamb_é~ ?s seus dispositivos, do ponto de vista fenomenológico, se abre?1
para 1hm1tadas experiências, embora nenhuma delas alcance algum estágto
d~ satisfação desejável. Tal ambiguidade dos artefatos faz com que nós
alimentemos, afinal, segundo Borgman, uma total falta de compromis~o
em relação ~ e!es. Trata-se de uma experiência guiada meramente pela ideia
de Superficialidade, evocada pela soma de objetos tecnológicos dispostos

278
na paisagem do mundo e com os quais nos relacionamos como novos tipos
de seres e de forma vazia: "a vida dentro do ' paradigma da tecnologia'
resulta sem rumo e, no entanto, impositiva". (CuPANr, 2004, p. 503). Sem
rumo, porque marcada pelo niilismo do excesso de possi bilidades;
impositiva, porque obrigad a o consumo desenfreado e autofágico
estabelecido pela própria atividade técnica.
© Jelson O liveira

Revisão: Jzabetc Polidoro Lim a

Editoração: Traço D ife rencial

D ados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Universidade de Caxias do Sul
UCS - BICE- Processamento Técnico

O48n Oliveira, Jelson


Negação e poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia / Jelson Olivei-
ra. - Caxias do Sul, RS: Educs, 2018.
496 p.; 23 cm.
Apresenta bibliografia
ISBN 978-8 5-7061-941-9

1. Niilismo (Filosofia). 2. Tecnologia. I . Título.

CDU 2. ed.: 17 .037

Índice para o catálogo sistemático:

1. Niilismo (Filosofia) 17 .037


2. Tecnologia 62
3. Lévinas, Emmanuel, 1906-1995

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária


Michele Fernanda Silveira da Silveira - CRB 10/2334.

D ireitos reservados à:

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