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A demissão do Outro na . o fren .

. _ _ esqu1z 1a --
Elzsa Alvarenga -- -------

O título d este capítulo e' co-c.


u.1orme a' atualidade da esqm· zofrema · nos
noss os temp os, ditos do "Outro que
não existe". Pois se na obra de Freud
e no ensino de Lacan o termo "esquizofre
nia" é ou controverso ou escasso,
os nossos tempos vee m o diagnóstico de esq
uizofrenia ser promovido, ao
lado do conceito de psicose ordinária, como corolário
do discurso capitalista,
em detrimento das grandes psicoses extraordinárias, tal
como o paradi a
constituído p or Schreber, a partir de sua leitura, realizada por Freu gm
d e re­
tomada p or Lacan. Se o diagnóstico do presidente Schreber foi formulado
por Freud c omo "dementia paranoides", nome dado por Kraepelin ao que
será ren omeado p or Bleuler como "esquizofrenia paranoide", Schreber não
deixou de atravessar um período francamente catatônico no curso de sua
doença, antes de sua construção delirante digna do diagnóstico de paranoia.
C ome cem os entã o pela psiquiatria clássica, par a situar as origens do
conceito de esquizofrenia, antes de vermos o que ele se tornou nos dias
e na clínica de h oje, em que não apenas vemos a l oucura se generalizar,
,,.. .
mas também c ontamos c om nov os recursos terapeuticos.

As origens da esquizofrenia na psiquiatria clássica


No se, cul o XIX, entre aqueles que enchiam os asil .
os psiquiátricos,
.
More1 descreveu, na FranÇa, aqueles "afetados por estupidez desde a Juven- .
,, a, Hecker designou
tude sob o nome d e "dementes precoces". Na Alemanh .
ncial d a s pesso as J ovens, e Ka hlbaum,
como hebefre m· a um estad o dem e
.
· . , ' psic · om o t o res ' de screveu os afetados de catatorua.
mteressado pelos disturb10s
Emil Kraepelin ' nas sucessi· vas edições do seu Tratado das doenças .
mentais,
dementia precox, caractenzada pela
agrupou t od o s ess�s casos s ob O nome de
ico ( Verblodung)
evolução pro gressiva para um estado de debilitament· o psíqu
. ·
. idad e (indiferença e apatia). Kraepelin distmgu
e pelos distúrbi os da afetiv
· 1a

139
1nê . pre
nc1a . coce,, três fonnas clínicas: a hebefrenia, a catat .
nessa "de º mais ou men orua
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(' delir an tes o s e :xtr av
e a tê0111 u, para no1ºde co111 i do ue de uma disso
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seu pensamen
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. vida' "a o s seriaIll
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. 1. , .. , :Je cotnplexos 111conscientes (EY, BERNARD; B iss .,,
.
R
e>-.1-,ressao ooJ1 t, L E �,
1 qs 1. p. 534-SJS). . .
A conceprào bleuler iana repous a, de fato, sobre a p n1:1e1r a aplicação
d .i s idei,ts freudianas :t investigação clínica das gr�ndes psicoses. Bleuler
e lung. ent<"io st:'u assistente na Burgholzly de Zunque, trabalham corn a
,,;,c,p�tc 1ft1< 1 deis S<mlws de Freud e retêm a impo�tâ�cia da afetívída de na
_
rciruLl( .tO e 11., perturbação do curso da vida ps1quica e do pensamento
J;.,n·és d,1 .,çào dos 1necanismos fr eudianos da condensação, deslocament o,
s1mbolizaçào e recalcan1ento (BERCHERIE, 1988, p. 7-8).
Segundo Paul Bercherie, d esde 1906, Bleuler rebatiza d e esquizofre­
ni.1 a den1ência precoce de Kraepelin, pois n ão se trata de uma verdadeira
demencia. ela nem s empre é juvenil, e o processo de deterioração, quando
há. é frequentemente tardio. Em sua monumental mon ografia de 1911,
Bleuler (1993) aplica aos sintomas esquizofrênicos as anális e s freudian as, que
lhes restituem um sentido na vida afetiva e na história do sujeito. Mas ele
de-staca, por contraste, que sua estrutura específica escapa a essa apreensão
pelo sentido, d esvelando a intervenção de um transtorno fundam ental e
global qu e Bleuler postula ser de origem orgânica e chama de dissociação,
o que l e va à escolha do neologismo "esquizofrenia" - mente dividida.
A dissociação psíquica s e manif e sta pelo desaparecimento do po­
der regulador do eu e da consciência sobre o curs o
do pensam ento, em
um estado análogo à associação livre e ao so
nho. "Esse desligam e nt o da
realidad e combinado à predominância
relativa ou absoluta da vida inte­
rior" (BLEULER, 1993, p. 112) é o qu
e Bleuler chama de autismo, tenn o
fo�ado no modelo do autoerotis
mo freudiano, am putado do sexual.
D� ferentemente das psicoses
orgânicas, estariam intactas as funções da
onentação ' da m e mo'ri·a , d
a consc1·e" nc1a .
e da mo tric id ade . U m suposto
défait s e situaria no níve1 h .
. 1erarqu1·camente superior da síntese p essoal' ond e
se ins erem os esforços te
. . rape" ut1c· os d e Bleuler, con trários ao pesst·rnisrno
kraepehniano · Os sin to
rnas fiundamentais, po r sua vez, escapam ' corn-
pre nsao -
e revelam a estrutur . S ª� a
� . a ão eles os distúrbios da associaçao d
afcet1v1dade e a ambival"en ,
cia,
· afcet1. va, da vontade
e intelectual.
140
.
PSI COPATOLOGLA C.ACANlANA: oso
L º CP'
N
A esquizofrenia e a linguagem
Poden1os dizer que os esquizofrênicos, ao contrário do que pensava
iniciahnente Bleulcr, são desahonados do inconsciente, 110 sent ido utili­
zado por Lac:lll nos anos 1970, embora de uma forma diferente daquela
111anitcstad:l por Janlcs Joyce. Para essa ideia de um " desabonamento do
inconsciente"• Lacan se serve do tetmo francês abonnement, assinatura, tal
t'OlllO usado a o se dizer, por excmpJo, que se é assinante de uma evis
r ta.
Nesse sentido, para Lacm, os esquizofrê nicos seriam desabonados, não
..tssin:.tutes. do inconsciente. No ent;mto, à diferença do desabonamento
joyci,n10, sua d e111issão do Outro se n1anifesta, como postula Bleuler, pelos
distúrbios d.,s ..issociações. que tornam o pensamento incoerente. Eles se
e'.\.1wcssa1n cotno condensações, deslocamentos, defeitos na simbolização,
distr,libilid.,de. fi.1g., de ideias, tendência à generalização, desaparecimento
e inibiç.'io do pensa111ento ou, ao contrário, pensamentos impostos, sono­
riz�çâo ou flu.,o contínuo de pensamentos e perseveração. O pensamento
.:mtístico é definido por esse tipo de operação, afastada da realidade, que
Freud denonuna de princípio primário de funcionamento psíquico. O au­
tisrno de Bleuler consiste na perda de contato com a realidade, substituída
1nuitas vezes por uma "realidade" mais conforme aos desejos irrealizáveis
do paciente, que se manifestam no delírio e nas alucinações. Estes são
classificados por Bleuler como sintomas acessórios, juntamente com os
distúrbios de memória ( déjà vu, lacunas na memória), a perda dos limites e
da unidade do eu: alterações da linguagem e da escrita, alterações somáticas
e sintomas catatônicos, entre os quais Bleuler inclui: catalepsia, estupor,
hipercinesia, estereotipias, maneirismos, negativismo, automatismos de
comando, ecopraxia, ecolalia, automatismos compulsivos e impulsividade.
Fina lmente teríamos, como sintomas acessórios, os estados maníacos e me­
lancólicos agudos, assim como os estados crepusculares e delirantes agudos.
O lugar central da dissociação e do autismo beneficiam uma con­
cepção psicopatológica essencialmente sincrônica, levando a uma extensão
desmesurada da entidade esquizofrenia, que acaba incluindo as psicoses
agudas confusionais e delirantes, os. boi,iffées delirantes da psiquiatria fran­
cesa, assim como as psicoses maníaco-depressivas. Além disso, a maneira
extremamente compreensiva da forma dita simples permite a Bleuler incluir
nas esquizofrenias os "nervosos", "psicopatas", al�oólatras, mendigos, va­
gabundos e excêntricos, cuja "frouxidão associativa" acaba desembocando
na apatia e na desinserção social. A demissão do Outro aparece então aqui
como ruptura do laço social, consequência dessa entidade mórbida vasta
que se tomou O grupo das esquizofrenias. Os psicanalistas, no início do

,\ Dl•:\IISS ÀO
DO OUTllO 1'.A l•.SQlllZOFJU<Nl,\ 141
fi · - de Bleuler ' deixando um pouco de 1a
século, adotaratn essa de tntça 0 . do a
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, to, cu d consi de r ava a pa r ano i a um bo m ti p c
o línico .
par:1110,a. . N o cnt.m , . ,
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cnqu;ltltO ;\ esqu1zo f,Tl'tlla 1 0
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·]UN(�, 1 q75, p. 182 e 224)


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l do con ceit o de esqu 1zofren 1a passa por u
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prt'ClSélO dos COtlC<.:'ltOS
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eli inaçao da �
1.'on,o sao ut1.11zados pot· Bleuler e Jung,
n,
libido - eros - do conceito de autisn10. Segundo Laca é no decorrer do
seu conH:'Jlt;hio sobre Schreber que Freud se dá conta das dificuldades co­
locaths pelo proble,na do investitnento libidinal n�s psicoses. P:- ideia de urn
autoerotistno ptitnordial, a partir do qual se constituem os objetos, pode ria
confundir-se con, a noção junguiana de interesse psíquico. Daí a necessidade
de Yolt,u. no seu artigo sobre o narcisismo, à distinção entre libido do e u e
libido de ol�eto (LACAN, 1983, p. 136; FREUD, 1974b, p. 89-103).
A ideia que as pulsões autoeróticas dão origem à unidade do eu
.1prox:itna-se da concepção lacaniana do estádio do espelho, em que essa
unid.1de se constitui em um dado momento. Freud supõe que as pulsões
.1utoeróticas existam desde a origem e que uma nova ação psíquica, que
Lacan denorrúnará, retomando Wallon, o estádio do espelho., junte-se
a das para dar origem ao narcisismo. O sujeito vê sua imagem real no
estado de imagem virtual no espelho. A forma de seu corpo está fora
dele. pois está ligada à impotência primitiva devida à prematuração do ser
humano. Sem domínio de seu corpo, ele só pode ver sua forma realizada
fora dele mesmo. O espelho representa o Outro simbólico, que define a
posição do sujeito para além da relação imaginária, especular. São, pois,
a linguagem e a possibilidade da fala que definem o menor ou maior
grau de estruturação imaginária. O espelho dá a imagem especular, i(a),
eu ideal, armadura corporal pacificadora, porque el a organiza as pulsões.
Mas essa imagem deve ser sustentada pelo olhar de um representante do
Outro, que nomeia essa imagem do outro especular, designando-lhe o
signíficante do Ideal do eu. O que é percebido só se sustenta em uma
zona de nomeação. Se essa unificação do corpo na imagem nomeada pelo
Ideal não acontece, temos o corpo fragmentado
do esquizofrênico e sua
constante busca de algo que possa dar unid
ade a seu corpo. Tal paciente,
por exemplo, carrega consigo um ped
aço de espelho que tem de olh��
a todo inomento dizendo: "quero
ver no espelho senão eu m orrerei
(ALVARENGA, 1994, p. 81-88).
Para Lacan, o problema que se colo ra
ca então a Freud é o da e strutu
das psicoses dentro da teoria da libid e
o (AL vARENGA, 1992). Trata-se d

142 t.OGI.A
P!';; liCO PATO LOG I t\ t.ACAN I AN l,: N1 O so
apreender a diteren,·a de cstrutur:, C'lltre O afastamento da reaJidade
nas
neuroses e nas psic os<..'s levando c111 conta O gozo. A solução jungui
ana
p;tr,l as pskoses - introversrro da libido no mundo interior do c;L0ei to - é
.1n[llog;1 ;1 solu(ào freudiana para as neuroses. O mecanismo das psicoses
cm Jun� está en1 co11ti nuidade com O das neuro ses, 0 que Lacan atri bui a
um;l confosào entre os registros do imaginário e do simbólico. Em Freud
esses registros seriam estri tamente distintos, perrni tindo-Jhe dizer que, na
neurm<:\ se h;í uma recusa ela realidade, pode haver um recurso às fantasias,
.10 pas�o que nJs psicoses nenhuma substituição imaginária seria possível.
Fre ud n,1o abandona o conteúdo sexual do seu conceito de libido
p.n-J faze-lo coincidir com o interesse psíquico em geral, como quer Jung.
P,ffJ LK,Hl. o esquema junguiano "não permite apreender as diferenças
que podem existir entre a retração dirigida, sublimada, do interesse pelo
mundo :1 qual pode chegar o anacoreta, e a do esquizofrênico, cujo re­
�uludo é, entretanto, estruturalmente distinto" (LACAN, 1983, p. 137).
T rJta-se de un1a das poucas referências de Lacan à esquizofrenia.
Haveria na vida psíquica uma pressão para sair das fronteiras do nar­
cisismo, ou do gozo do Um, e colocar a libido nos objetos, ou dirigir-se
ao Outro, quando o investimento do eu em libido ultrapassa uma de­
terminada medida. Os fenômenos da hipocondria e da parafrenia, termo
utilizado por Freud para falar da esquizofrenia, estão ligados a uma estase
da libido do eu, ao passo que a introversão e a regressão das neuroses de
transferência estão ligadas a mna estase da libido de objeto.
É no seu texto "O inconsciente", notadamente no capítulo VII,
''Avaliação do inconsciente" (FREUD, 1974a, p. 224-233), que a retirada
de investimento dos objetos e o investim ,ento nas palavras na esquizofrenia
aparece em todo o esplendor do inconsciente estruturado como linguagem.
Pois é justamente através das alterações da linguagem na esquizofrenia
que Freud vai apontar a existência do inconsciente, a céu aberto, no que
ele chama então de psiconeuroses narcísicas.
Freud continua a opor libido do eu e libido objetal, de tal forma
que na neurose renuncia-se ao objeto real, n1as a libido que lhe é retirada
subsiste no inconscien te, apesar do recalque. A aptidão à transferência
supõe esse investimento de objeto. Na esquizofrenia, ao contrário, após o
processo de retirada do investimento obj,etal, a libido retirada não procura
um novo objeto, mas se volta para o eu. Se na paranoia essa libido serve ao
narcisismo e à megalon1ania, na esquizofrenia a libido retorna aos órgãos
do corpo de maneira frag1nentada, concomitantemente ao investimento
de determinados significantes.

f\ n1,:11 11ss,,o 1)() OUTRO N/\ 1,:s0Ul/.()[•llENI.\ 143


Freud observa que, nos esqu1· zorr " · cos, a maneira de se expressar
e. em
é rebuscada, cheia de maneirismos. A construção das fr�se� sofre urna de­
sorganização particular que pode torná-las in.compreenSiveis.. Un:1ª relação
aos órgãos e inervações do corpo passa frequenternente ao pnn:ieiro plano
_ .
Para ilustrá-lo, ele apresenta o célebre caso da pacie nte de Viktor Tausk
(1933). A jovetn, após utna briga com o amante, la�enta-se de que seus
olhos não estava1n direitos, estavam tortos, o que explica por uma série de
re-crinlinaçôes ao aniante: ele era un1 hipócrita, um entortador de olho s
Vlugc11Pc1tfrel1n') - o que significa, em alen1ão, enganador-, agora ela ti nha
os olhos tottos, não erai11 rnais seus olhos, via o mundo com olhos diferentes.
Freud noel que a relação da paciente com o órgão corporal representa 0
conteúdo dos seus pensan1entos. O discurso esquizofrênico apresenta um
u·aço hipocondiíaco, que ele denon1Ína de "fala do órgão". Enquanto uma
histérica teria efetivamente revirado os olhos no sintoma de conversão, na
esquizofrenia o fenômeno se manifesta na literalidade da linguagem.
Freud assinala que o encadeamento do pensamento é dominado
pelo den1ento que tem como conteúdo uma sensação do corpo. Assim,
um paciente pode dizer que seus pensamentos estão "trombando" com
os pensamentos de outros pacientes quando ele anda na enfermaria. Ou,
e1n um exemplo de transformação das palavras em coisas, o paciente pode
dizer que "o ano novo vai chegar de trem". Freud diz que as palavras, na
esquizofrenia, são submetidas ao mesmo processo que produz as imagens do
sonho a partir dos pensamentos fatentes: o processo primário. As pala vras
são condensadas ou transferem seus investimentos por deslocamento, são
tratadas como coisas. É a identidade da expressão verbal, e não a seme­
lhança entre as coisas designadas, que comanda a substituição. Assim, na
linguagem esquizofrênica a relação entre as palavras predomina so bre a
rda.çâo entre as coisas. Se os investimentos de objeto são abandonados, o
investimento das representações de palavras dos objetos é mantido. Ern
outro exemplo, um paciente pode atacar os objetos do sexo masculino
pelos quais se sente atraído dizendo que quer comer carn humana. Ele
e
não consegue metaforizar o desej . o sexual verbalizado pela pala vra ''co-
"
mer , no senti'do de ter re1 ação sexual com algu
ém, e afirma literalmente
que quer comer carne humana.
Se na esquizofrenia a fuga consiste en1 t' .
re irar o .1nvest1mento pulsio-
nal da representação de objeto ' parece surpree
. . nd ente que a representação
de palavra seJa supennvestida. Freud supo... e . · ent o da
, . que esse 1nves t1m
palavra pertença a tentativa de cura · No esC'. 1orço de recuperar os obi
et o
'J • s
. . .
perdidos, o suJe1to deve contentar-se com
a palavra no 1ugar da coisa,

144 '
PSlC ÜPATOLOCI OL. ocJ/\
A LACANIANA: NOS
Freud diz então que os esquizofrênicos tratam as coisas concretas como
se fosse1n abstratas, o que Lacan retoma dizendo que O significante parece
. . . . .
extenor ao SUJerto ps1cot1co, que fica preso a ele por uma fixação erot1. ca
; ;

(LACAN, 1985, p. 165).

Esquizofrenia e discurso: o laço social


Jacques-Alain Miller (1983, p. 18-38) insiste sobre a escassez das
indicações de Lacan a propósito da esquizofrenia. Em O seminário, livro 3:
As púcoses, Lacan aponta a preferência de Freud pela paranoia e pelo termo
"parafrenia" para designar a esquizofrenia (LACAN, 1985, p. 12). Quase
20 anos depois, em seu texto "O aturdito" ' encontramos a célebre frase
sobre "o dito esquizofrênico (...J apanhado sem a ajuda de nenhum dis-
curso estabelecido" (LACAN, 2003, p. 475), o que, para Miller, deixa essa
categoria em suspenso. No entanto, outra referência de Lacan, bastante
explorada por Miller, encontra-se em seu texto de 1966 "Resposta aos
estudantes de filosofia sobre o objeto da psicanálise", no qual diz que a
ironia é a arma do esquizofrênico e que a função social da doença mental
é a ironia (LACAN, 1966, [s.p.J). Em sua conferência de 1988, "Clínica
irônica", Miller diz que para o esquizofrênico o simbólico é real e que,
se a palavra mata a coisa, para o esquizofrênico a palavra, ao contrário, é
a coisa (MILLER, 1996, p. 190-199).
O conceito bleuleriano de esquizofrenia, ressalta Miller, é um pro­
duto do discurso analítico, uma reformulação da demência precoce de
Kraepelin sob a influência da psicanálise. Mas Miller testemunha que,
se Lacan nunca usava o termo "esquizofrenia" em suas apresentações de
pacientes, ele usava frequentemente o termo "debilidade". E sabemos
que Lacan, nos últimos anos do seu ensino, disse que, entre a loucura e a
debilidade, não temos mais que a escolha (LACAN, 1977, p. 9). Quando
Lacan fala do esquizofrênico, em 1973 (LACAN, 2d'03, p. 475), ele o define
em relação ao discurso. Ele está na linguagem, mas fora do discurso, o que
Deleuze e Guattari (201O) tentaram pensar como o corpo sem órgãos.
Miller propõe que o psicótico e o esquizofrênico podem ser pensados em
relação ao discurso do mestre, que é, para Lacan, o discurso do inconscien­
te, a partir de uma modificação. Se nesse discurso o significante-mestre (S 1 )
representa o sujeito para o Outro (S2), o que parece ser atingido na psicose
é a representação do sujeito pelo significante. A foraclusão, mecanismo
isolado por Freud e nomeado por Lacan, impediria o sujeito de se fazer
representar por um significante, no lugar do qual teríamos então um
enxame de significantes. Se no mecanismo neurótico do recalque um

\ OF\ttS<; \O[)() OU l'RU \,.\ U,QlllZOl'JlE\.l.\ 145


significante é in(orpor;H.io pelo sujeito e marca o corpo , co nsti _
tuindo a
B�jalrnn,.(!. afinna\·ào ou rcfa1quc primordial, origem dos r��alq ues p o ste­
riores que p<'nnitt'm a subjetiva(ãO do inconsdente pelo SUJ�lto, na psicose
a essa BeJ ah ung original.
�l fi.wadusào ou 1 ·c,wc,f, nt \! corresponde à ausênci d
Os fi.·nôtnenos esquizl�frê; l icos refletem esse espalhamento º.u dispersã o dos
S 1• qlle ,üo (onseguem nornear o sujeito e dar-lhe u ma u nidade corp oral.
l) que tetn co1110 consequência uma dispersão do gozo, q u e retorna de
111.Jneira frag,nentada sobre seu corpo, nas alucin ações cenestésicas ou
auditivo-Ye;·bais. O gozo uão é coordenado ao sembla nte fálico, ma s
'- .
ta1npouco se situ:.\ no lugar do (.)utro, coino na paranoia.
Se é o coivo do simbólico que fàz de um organismo um corpo de
sujeito. porque ele o incorpora, o esquizofrênico, ao não incorporar 0
siinbólico. Ye-se desprovido de unidade corporal. Ele tenta remediar isso
se nuquini2.u1do. ou apéu-elhando seu corpo através de objetos aos quais
ele se conecta. seja para lhe extrair o gozo, seja para lhe dar bordas. Assim,
o dito esquizofrênico deve se arranjar com seu corpo fora de qualque r
referencia a un1 discurso estabelecido, o que significa que ele deve inventar
sua própria n1aneira de habitar a linguagem e de tomar a palavra.
O que dizer então da esquizofrenia nos tempos do Outro que não
existe? A partir do momento em que Lacan anuncia que não há Outro do
Outro (L-\CAN, 1998, p. 833) - não há, no campo do Outro da linguagem,
um Outro significante que garanta sua ordem- e pluraliza o Nome-do-Pai
(L-\CA..:"-. 2005), o Outro perde sua consistência e sua garantia, e o simbólico,
sua hegemonia. No seminário O avesso da psicanálise, o Nome-do-Pai será
logicizado como significante-mestre, uma pura função lógica. No seminário
Aí.ais, ainda, no seu quadro da sexuação temos, do lado masculino, a lógica
edipi.ana e a exceção paterna, enquanto do lado feminino, não havendo uma
função de exceção que circunscreva a ordenação falica, temos a foraclusão
generalizada, pois não existe o significante que nomeie A mulher. Estamos
no campo em que o gozo não é circunscrito pela exceção que vale para
todos, mas pela função do sintoma de cada um, que, no caso da psicose,
faz função de suplência. Se se define o sintoma como quarto termo que
enlaça os registros do real, do simbólico e do unaginário, 0 Nome-do-Pai
deixa de ser um significante, para ser un1a função suplementar. Podemo s
dizer que os esquizofrênicos se sentem mais à vontade em um tempo de
foraclusão gene�aliz�da, de declínio do Nome-do-Pai, en1 que O simbólico
já não tem a pnmaz1a sobre o imaginário e O real?
Parece que sim e que a introdução, por Jacques-Alai Miller (2012),
n
do sintagma "psicose ordinária", desde 1998, traz consigo uma nova maneira

146 l'SlCOPATOLOC
IA LACANl/\NA: NOSOLO
CIA
de �ensar as psicoses com os desligamentos e religamentos ao Ou ro, novos
.' t
feno 11�nos corporais e novas formas de
:
r mc 1
transferência. Um paciente esqui­
zof e � : por cxetnplo, que chega para tratamento, não representado por
_
un� sigmh �a�1tc para O significante qualquer do analista, mas em posição de
,
obJeto . exigira que O analista suponha a ele um saber
e o acompanhe em
suas po�sí�eis inv�i�çõcs. Inicialmente, é preciso q ue o analista se coloq ue
_
em poswao de SUJe1to e stga as pistas que o esquizofrênko lhe dá: al ns S,
gu
dispersos - quando nenhum significante se distingue para marcar o corpo,
que pennanece dócil a un1 enxame de significantes -, um mutismo ou
un1 quadro de agi tação, antes que ele possa tomar a palavra e entrar, por
1nenos que seja, en1 um discurso, definido por Lacan como um laço social.
Na esquizofrenia, com frequência, a transferência se organiza em tomo
de vários, n1as tan1bén1 de um terapeuta específico, seja na instituição, seja
fora dela. A transferência, por precária que seja, pode ajudar a construir uma
image1n corporal narcissizada, organizar um delírio, uma história núnima
ou un1a non1eação. A produção de objetos ou a escrita podem operar uma
e�-u-açào do gozo que mortifica e sacrifica o organismo, dando a esse corpo
a possibilidade de encontrar uma função., por delirante que seja, para seus
órgãos. Se a extração do objeto de gozo se dá habitualmente pela operação
do imaginário e do simbólico, havendo foraclusão do Nome-do-Pai e da
significação falica, essa extração terá de ser realizada por outros artifícios,
para evitar que ela seja feita no real da passagem ao ato.
O exemplo de um caso de "fibromialgia", que percorria a rede de
saúde mental, sem encontrar para si um lugar, um interlocutor ou um
corpo para além da dor que migrava, cada vez, para outro pedaço do corpo,
pode nos ensinar sobre novas formas de apresentação da esquizofrenia. 1
A desorganização do pensamento ou do corpo necessita de um endereço
onde possa alojar suas peças soltas e inventar pequenos artifícios para fazer
existir, por pouco que seja, um Outro como parceiro para o gozo, e um
corpo que o sujeito possa habitar.

Referências
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1 Cf "A psicanálise e o mind body problem", texto coletivo apresentado no ENAPOL


vÚ, em 2015, onde comentamos um caso de fibromialgia apresentado por Mar-
celo Quintão.

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LOC lA LACA!\' CANA: NOSOLO e
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Psicopatologia lacaniana : volume 2 : nosologia / Antônio Teixeira, Márcia
Rosa (Orgs.) -- 1. ed.; 1. reimp. -- Belo Horizonte : Autêntica. 2020.
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ISBN 978-85-513-0806-6
1. Lacan, Jacques, 1901-1981 2. Psicanálise 3. Psicopatologia
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