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Fundamentos de Filosofia e
Sociologia das Organizações 1
Claudio Gurgel, DSc

1.1 Introdução

Neste capítulo, trataremos da filosofia e sociologia do trabalho, voltadas para


a gestão das organizações. Situaremos a evolução do estudo das relações sociais
de produção e identificaremos as principais fontes de conhecimento que, posteri-
ormente, foram usadas como referenciais para a racionalização do trabalho pro-
dutivo. A seguir, concentraremos nossa atenção nos principais objetivos do estu-
do moderno e contemporâneo do trabalho e da gestão.
O estudo sobre o trabalho e as teorias dele decorrentes é produto da nossa
época. Diferentemente da física, da matemática, da química, da biologia, da eco-
nomia e da política, a sociologia do trabalho e as teorias sobre a produção
da riqueza foram sistematizadas nos séculos XIX e XX. Essa é a razão que faz das
teorias de gestão teorias tardias.

1
Capítulo 1, do livro de GURGEL, Claudio e RODRIGUES, Martius. Administração – elementos
essenciais para a gestão das organizações. São Paulo: Atlas, 2ª edição, 2014.

1
Seu marco inicial data dos últimos anos do século XIX. Não é possível dizer
qual o primeiro estudo rigorosamente destinado à administração de empresas. As
Notas sobre correias, apresentadas, em 1895, por Frederick Taylor (1856-1915),
na Sociedade Americana dos Engenheiros Mecânicos, talvez seja uma das primei-
ras obras das teorias da administração.
Para uma ligeira ilustração da juventude dessas teorias, basta lembrarmos
que Lilian Gilbreth, companheira de Frank Gilbreth e parceira dos estudos de Tay-
lor, faleceu nos anos 1970. Foi, portanto, contemporânea de muitos de nós que
falamos e escrevemos sobre o seu pensamento e seus trabalhos teóricos.
O que terá retardado o estudo do trabalho humano e o seu tratamento como
objeto relevante da ciência social?
Há um histórico de desvalorização do trabalho que remonta desde os povos
primitivos. Na Antiguidade, Aristóteles dizia, na Política, que nenhum artesão será
cidadão, e, na Idade Média, o nobre se orgulhava de não trabalhar.
De certo modo relacionados com esse estigma, que chegou aos tempos mo-
dernos, com a versão do trabalho manual versus trabalho intelectual, podemos
alinhar especificamente os seguintes motivos:

O pequeno desenvolvimento do mercado e das empresas nas sociedades,


quando prevaleciam atividades artesanais e de subsistência, cabendo os
grandes empreendimentos aos governos.
A desqualificação da atividade empresarial, considerada pelos ilustres pen-
sadores do passado como uma atividade inferior. O próprio Adam Smith,
na sua célebre obra Investigação sobre a natureza da riqueza das nações,
descreve o empresário como um indivíduo sem escrúpulo, cuja atividade
se aproxima do estelionato.2 Vale lembrar que Smith é um dos principais
pensadores do capitalismo liberal e que, embora fazendo esse julgamen-
to, valoriza a livre iniciativa e o empreendimento.
A predominância da preocupação com a macroeconomia. Em grande medi-
da pelos motivos anteriores, os principais pensadores do passado volta-
vam suas atenções para questões tais como a origem da riqueza, da acu-
mulação e/ou a circulação e distribuição dos bens. São assuntos como es-
tes que ocuparam o já citado Smith, assim como Karl Marx, David Ricar-
do e Stuart-Mill.
A política e a filosofia centradas sobre as relações sociais e entre as nações.

2 SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza da riqueza das nações. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1958, p. 250.
2
O alcance do poder e sua manutenção, a distribuição da justiça, a liber-
dade e a relação entre os homens, assuntos que, no máximo, tocam a ges-
tão pública, foram objetos da atenção de estudiosos como Nicolo Maqui-
avel, Montesquieu, Hobbes, Locke, Rousseau, Montaigne, Mill, Bentham,
Fourier, Saint-Simon e outros pensadores. Eles tinham olhos para a
grande organização social e apenas subsidiariamente para o papel que a
organização empreendedora de fins específicos – a empresa – poderia
representar no conjunto da sociedade. Pela mesma razão, a guerra tam-
bém ocupa grande espaço na literatura da Antiguidade e do Medievo. A
constância com que se recorria à guerra para a tomada e/ou manutenção
do poder fizeram das armadas e da organização militar objetos de estu-
do. Afinal, como diria Karl Clausewitz, influente general prussiano, em
sua obra Princípios da guerra, “a guerra é a continuação da política, pelas
armas”.3
A ideia da gestão, da liderança, do comando e da dominação dos homens
sobre os homens como arte ou dom inato foi durante muitos anos uma
concepção corrente, que tornou o estudo e o ensino dessas qualidades
algo secundário e até mesmo impertinente.

O reduzido mercado, a desvalorização da atividade empresarial, a suposição


de que administrar é um dom e as questões relativas à tomada e manutenção do
poder, que ocuparam a atenção dos principais pensadores dos séculos passados,
retardaram o estudo do trabalho produtivo e a construção de estruturas teóricas
sobre a gestão da produção.
Em contrapartida, a chamada Revolução Industrial proporcionou o ambiente
necessário para a emergência do trabalho como uma categoria importante da vida
social. Exatamente porque:

Estimulou o capitalismo e o crescimento das cidades, onde surgiu um mer-


cado interessado em inúmeros produtos e assim incentivou o surgimen-
to de novas e muitas empresas produtoras de bens e serviços. Tendo ne-
cessidade de atender à demanda crescente, promoveu-se o desenvolvi-
mento da especialização, substituindo o processo artesanal de produção
pela divisão horizontal do trabalho. O produtor passou a executar apenas
uma parte do produto – a tarefa – operando no que se chama linha de
produção.

3 CLAUSEWITZ, Karl Von. Princípios da guerra. Rio de Janeiro: Laemmert, 1947.

3
A divisão de trabalho ganha créditos como grande descoberta do sistema de
produção de riqueza e a especialização do trabalhador, em dada função, a acom-
panha nessa valorização.
No Capítulo I do seu livro já citado, Adam Smith se dedicou a estudar este no-
vo processo, dizendo que “o maior aprimoramento das forças produtivas do tra-
balho e a maior parte da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho
é em toda parte dirigido ou executado, parecem ter sido resultados da divisão do
trabalho”.4
Ele citou um exemplo que se tornou célebre: o caso da produção de um fábri-
ca de alfinetes em que se aplicava a divisão do trabalho. Segundo Smith,

“as pessoas conseguiam produzir entre elas mais do que 48 mil alfinetes
por dia [...] cada uma produzia 4.800 alfinetes por dia. Se, porém, tivessem
trabalhado independentemente um do outro, e sem que nenhum
deles tivesse sido treinado para esse ramo de atividade, certamente cada
um deles não teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia”.5

Como se percebe pelo que diz Smith, a divisão horizontal do trabalho criou a
necessidade da prática regular do treinamento para a execução da tarefa. Os tra-
balhadores, agora voltados exclusivamente para uma parte do produto, passaram
a se adestrar ao máximo, imprimindo um ritmo cada vez mais acelerado ao seu
trabalho. Para isso, também contribuíram a criação e a utilização crescente de
novas máquinas e utensílios de trabalho, adequados a cada tarefa, facilitando as
operações e auxiliando a intensificar a atividade produtiva.
Observem que, ao lado dessa transformação metodológica e tecnológica,
uma nova relação social de trabalho se instituiu entre os homens. Surge o traba-
lho assalariado. Agora não se trata mais do artesão vendendo o trabalho concre-
to, cristalizado, final, pelo qual recebia um valor em dinheiro correspondente ao
valor de troca do produto. Este artesão já não possuía suas ferramentas de traba-
lho e se transformava em operário de uma oficina. Tratava-se agora de um tra-
balhador vendendo sua força de trabalho, em troca de um pagamento, o salário,

4 SMITH, Adam. Ibidem, p. 41.

5 Ibidem, p. 42.
4
correspondente ao que se supunha necessário para sua sobrevivência.

Isso consolidou a separação entre a propriedade dos meios de produção e a


atividade produtiva. Os que estão diretamente ligados à produção – possuindo
apenas a força de trabalho, mas não os meios de produzir, e muito menos pos-
suindo o produto final – passaram a ter objetivos frequentemente diferentes da-
queles objetivos do proprietário dos meios de produção e dos bens produzidos.
Como já se pode observar, ainda que de modo simplista, mas no essencial ine-
gável, há um “problema dos salários”, como diziam os antigos teóricos. Isto é, para
o empregador, salário é custo, mas, para o trabalhador, salário é renda. Não é uma
contradição pequena num mundo de muitos conflitos. Esse é apenas um aspecto
das novas bases de relação social de trabalho.
Essas novas condições, por seu turno, criaram novas exigências para a vida
social e empresarial, razão do surgimento do sindicalismo, da expansão da ativi-
dade regulatória do Estado e da crescente disputa em torno da legislação civiliza-
tória e protecionista.
O crescimento do tamanho das empresas, com novos setores, novos níveis de
supervisão/controle, e a expansão geográfica dos negócios ensejando novas uni-
dades, filiais, ou a descentralização geográfica de setores, introduziram uma nova
divisão: a separação entre a propriedade e a gestão dos negócios, em que se pro-
cessa a gradativa substituição do dono da empresa por pessoas contratadas e de-
signadas para funções antes executadas por ele mesmo ou seus familiares.
Todas essas mudanças passaram a exigir muito mais daqueles que tinham a
função de conduzir ao sucesso o empreendimento, seja no plano privado, seja no
plano público.
No plano privado, dispensam-se novos comentários. No plano público, a ex-
pansão dos negócios privados não só trazia novas obrigações ao Estado, deveres
regulatórios, repressivos, protecionistas etc., como também exigia crescente ação
fomentadora nos transportes, na educação e na saúde públicas, além da infraes-
trutura produtiva e urbana.
São estas obrigações que vão inspirar as chamadas políticas públicas e vão
gradativamente aproximar as duas administrações – pública e privada. Cada
uma dessas administrações tem suas próprias regras e finalidades. Não se pode
simplesmente adotar práticas privadas no âmbito público, sem muitas adapta-

5
ções, sob pena de prestar um serviço de má qualidade, apressado, a título de
eficiência e produtividade. Mas o Estado e as empresas foram cada vez mais
estreitando suas relações, seja pela legislação cada vez mais incidente (direito
do consumidor, legislação trabalhista, direito ambiental, licitações, leis de pa-
tente, etc), seja pela ampla área das concessões públicas ao setor privado e ou-
tros elos. Este é o motivo pelo qual os gestores privados nos dias de hoje têm
que conhecer muitas coisas relacionadas com a gestão pública, e vice-versa.

Vale ainda destacar que um novo pensamento religioso, baseado na reação


protestante fundada por Lutero, Calvino e outros destacados religiosos europeus,
inverteu a escala de valores de grande parte da sociedade. O pensamento católi-
co, marcado por uma ambígua relação com a riqueza, convivendo com o tesouro
papal, mas frequentemente condenando a riqueza, se enfraquecia. Nessa mudan-
ça, colocaram-se o trabalho, a poupança, a acumulação e a riqueza no topo das
virtudes humanas.

O tamanho da influência desse fator religioso é discutível. Mas Max Weber,


em seu clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo, chega a atribuir
papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo ao pensamento religioso
surgido na Reforma.6 O trabalho e a acumulação perderiam, respectivamente, seu
caráter punitivo (ganharás o pão com o suor do teu rosto) e condenável (é mais
fácil um camelo passar por uma agulha, que um rico entrar no reino dos céus ) e
passariam a ser vistos como uma dignificação e uma graça de Deus.
O crescimento da demanda industrial exigiu volumes crescentes de produto, o
que instituiu a divisão horizontal do trabalho, ponto de partida de muitas mudan-
ças metodológicas e tecnológicas, assim como sociais. Além disso, a passagem do
produtor artesanal ao produtor fabril trouxe uma tensão nova ao ambiente pro-
dutivo. São essas novas condições que tornaram bem mais complexa a relação
trabalho/capital e criaram a necessidade de teorias capazes de dar respostas aos
novos problemas e desafios.

6 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.

6
Como toda e qualquer ciência, o surgimento das teorias administrativas está
associado predominantemente às necessidades. Necessidades e possibilidades
são inspiradoras de idéias e iniciativas. Mas a história registra uma presença
mais freqüente de necessidades imediatas como motivação das formulações
teóricas. Algumas dessas necessidades são econômicas, outras políticas ou so-
ciais. A compreensão desta característica da produção do pensamento, também
no campo da administração, nos faz dar maior atenção ao contexto e à evolução
históricos da sociedade.

1.2 Referenciais teóricos para entender e intervir no


mundo do trabalho

A fase que sucede o chamado capitalismo mercantil, este vivido aproximada-


mente entre os séculos XV e XVIII, é a fase industrial do capital. Uma importante
fase, iniciada com a Revolução Industrial, a que já fizemos referência.
A Revolução Industrial consistiu, essencialmente, na introdução de máquinas
movidas a energia não humana. Começou com as fábricas inglesas de fiação e te-
celagem, estendendo-se gradativamente a outras indústrias. Primeiro, por toda a
Europa Ocidental e rapidamente alcançando a América do Norte, para, posterior-
mente, universalizar-se. Multiplicaram-se os inventos associados ao trabalho:
máquina de fiar, tear hidráulico, tear mecânico, descaroçador de algodão, locomo-
tiva a vapor, dínamo, motor a combustão.
Toda essa transformação tecnológica e metodológica levou a mudanças nas
relações sociais de produção, e o conjunto desses fatos e situações exigiu um
tratamento mais atencioso para com o trabalho e suas condições de existência e
reprodução.
A emergência do trabalho como objeto de estudo encontra uma ampla produ-
ção filosófica, econômica e política de que se nutrem os teóricos. Ao lado disso, a
experiência dos que trabalham e dos que lidam com o trabalho também foi uma
fonte de conhecimento.
O século XIX, portanto, acumulava uma massa de pensamento sobre a vida so-
cial e as relações trabalho/capital que permitia o salto racionalizador que marcou
o século XX.
7
Podemos identificar um conjunto de fatos e contribuições, a começar do pró-
prio movimento racionalista, iniciado por Descartes, que se serviu de referenciais
teóricos para melhor compreender e intervir no mundo do trabalho, a saber:

1.3 O pensamento racionalista e empirista

Entre os séculos XVI e XVII, o pensamento europeu, fonte do pensamento do-


minante de então, voltava-se para a descoberta da verdade. Não mais as verdades
admitidas pelos céticos, para quem, como Michel de Montaigne, as ideias são sem-
pre influenciadas por fatores pessoais, sociais e culturais. Para eles, por que não
dizer, para todos da época, nada se podia afirmar sem que ao mesmo tempo se
deixe em suspenso, sob a dúvida, aquilo que é a nossa verdade.
O novo movimento, que agora busca um único caminho, acredita na possibili-
dade da descoberta de uma verdade única para todos. Ou melhor, na possibilida-
de da razão responder de modo definitivo às indagações para as quais os céticos
não admitiam nenhuma resposta indubitável.

Nasce assim, o pensamento moderno. Esse pensamento segue, sumariamente,


duas grandes linhas: “de um lado, a perspectiva empirista proposta por Francis
Bacon (1561-1626), a preconizar uma ciência sustentada pela observação e pela
experimentação, e que formularia indutivamente as suas leis, partindo da consi-
deração dos casos ou eventos particulares para chegar a generalizações; por outro
lado, inaugurando o racionalismo moderno, Descartes busca na razão – que as
matemáticas encarnavam de maneira exemplar – os recursos para a recuperação da
certeza científica”.7
No Discurso do método, sua obra mais célebre, René Descartes (1596-1650)
institui, com os seus quatro preceitos, o que veio a ser a metodologia científica
moderna, grosso modo:

Dúvida: nada aceitar como verdadeiro, uma vez ainda não evidenciado.
Análise: dividir e examinar o problema em seus detalhes.
Síntese: ordenar o pensamento-análise.
Enumeração: verificar se tudo é respondido e evidenciado.8

7 GRANGER, Gilles-Gaston. Introdução. In: Descartes. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 5.

8 DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 15.
8
É o racionalismo de Descartes e o empirismo de Francis Bacon, principalmen-
te, que dão as bases da ciência moderna e, como tal, das teorias da administração.
No século XVIII, o Iluminismo consolida e expande estas ideias, elevando a
confiança na ciência e estendendo essa confiança a todos os planos científicos. É
quando pontifica o Positivismo, corrente filosófica que julgava possível obter a
mesma precisão das ciências naturais nas pesquisas e afirmações das ciências
sociais. Não é apenas coincidência que o século XVIII seja também o século das
invenções e da Revolução Industrial.

1.4 O pensamento econômico clássico

Já fizemos referência a Adam Smith (1723-1790) e à grande atenção que deu


à divisão de trabalho, observada na citada fábrica de alfinetes. De fato, Smith foi
um dos mais empenhados autores da economia clássica no esforço para criar uma
teoria para os empreendimentos produtivos. Tanto assim que ele abre a sua gran-
de obra Investigação sobre a natureza da riqueza das nações com um capítulo
intitulado A divisão do trabalho. Além disso, outros capítulos do livro são dedica-
dos a discutir os efeitos da divisão do trabalho, processo a que ele atribui a expan-
são dos negócios e o crescimento da produção: “É a grande multiplicação das pro-
duções de todos os diversos ofícios – multiplicação essa decorrente da divisão do
trabalho – que gera, em uma sociedade bem dirigida, aquela riqueza universal que
se estende até as camadas mais baixas.”9
Por esse caminho, ele chega à especialização, ao estudo de tempos e movi-
mentos, ao planejamento das tarefas, à organização da produção e a outros aspec-
tos que seriam mais tarde recuperados pelos teóricos clássicos da gestão.
Ideias semelhantes são defendidas por outros clássicos da economia, tais co-
mo David Ricardo (1772-1823), que, em sua obra Princípios de economia política
e taxação, estende sua atenção a outros ângulos, tratando de salário e preços,
além de revelar preocupação com os efeitos sociais do capitalismo liberal de en-
tão. A Smith e Ricardo, de fato os principais clássicos, podemos ainda acrescer
James Mill (1773-1836), autor de Elementos de economia política, e seu filho John
Stuart-Mill (1806-1873), cujo papel na política foi tão relevante como na econo-
mia,
principalmente por sua obra Utilitarismo, em que desenvolvem importantes e atu

9 SMITH, Adam. Ibidem, p. 45.

9
ais ideias sobre liberdade, representatividade e participação.

1.5 A prática das organizações do Estado, das Forças Armadas


e das Igrejas

Os teóricos do mundo do trabalho e da produção devem ao Estado, entre ou-


tras coisas, os primeiros ensinamentos práticos que mais tarde puderam se con-
verter em teoria. Foi o Estado que se obrigou a construir as grandes obras da An-
tiguidade – templos, pirâmides, muralhas, sistemas fluviais, estradas, silos –, e a
definir os códigos de conduta social que continham preceitos administrativos – o
Código de Hamurabi, os Dez Mandamentos, as Leis de Manu, o Direito Romano. As
monarquias dos séculos mais recentes continuaram a responder pelas grandes
necessidades das populações. Isso explica por que o sociólogo francês Alain Tou-
raine, em sua Historia general del trabajo, afirma que o maior desenvolvimento
teórico sobre a produção humana se deu no âmbito do Estado.10
Integrando o Estado, mas com características especiais, as forças militares –
exércitos e armadas – também foram modelo teórico. Na Antiguidade, como na
Idade Média, os povos viviam essencialmente para a guerra e a conquista. É uma
grande passagem poética de Fernando Pessoa, mas também a exata verdade da-
quela época, sua afirmação de que “navegar é preciso, viver não é preciso”.
A organização e o empreendimento militares exerceram grande influência
sobre a vida de modo geral e, em particular, sobre as demais formas de organiza-
ção social. As forças armadas não inventaram a disciplina, a ordem, a hierarquia, a
organização das atividades e o esforço de previsão. No entanto, valorizaram-nos e
dignificaram-nos, certamente.
Pela força da necessidade de quem tinha que realizar operações em variados
e distantes lugares, as organizações militares provaram a eficiência da descentra-
lização. Além disso, atribui-se a elas a criação daquilo que mais tarde se chamaria,
nas organizações de modo geral, o staff: grupo que auxilia o alto comando em suas
decisões e implementações. O staff seria uma forma de Estado Maior, inicialmente
experimentado com sucesso pelos exércitos do Imperador Frederico II, também
no século XVIII, na Prússia.
Finalmente, as igrejas foram um importante referencial prático. Em particu-
lar, a Igreja católica, cuja verticalidade hierárquica, rápida expansão geográfica e

10 TOURAINE, Alain. Historia general del trabajo. México: Grijalbo, 1965.

10
enorme enriquecimento admiraram o mundo. Novamente a disciplina, a ordem, a
hierarquia e a descentralização são ressaltadas com o exemplo da Igreja católica.
Mas as igrejas protestantes e outras correntes religiosas tiveram seus exem-
plos considerados. Não só em seus aspectos funcionais, mas também ideológicos,
o poder de influência das igrejas sobre os negócios e o trabalho pode ser observa-
do. Segundo Max Weber (1864-1920), como já foi dito anteriormente, os protes-
tantes, particularmente os calvinistas, tiveram relevante papel no desenvolvimen-
to do capitalismo. Eles levaram para as organizações empresariais a sua ética de
poupança, disciplina e dedicação ao trabalho – virtudes religiosas, segundo suas
doutrinas. Em seu referido livro A ética protestante e o espírito do capitalismo,
Weber faz uma análise de como, ao se expandir nos EUA, a igreja protestante aju-
dou a consolidar a economia de mercado naquele país, convertendo-o na maior
nação industrial do mundo.

1.6 O exemplo dos primeiros empreendedores

Como é comum em todos os campos da vida, os primeiros empreendedores


privados tiveram seus passos iniciais marcados pelo ensaio-e-erro. Ou seja, expe-
rimentaram, erraram, adaptaram, acertaram e foram, ao longo do tempo, desco-
brindo, nos exemplos e nos próprios passos, o modo de andar. Os empreendimen-
tos do século XIX foram um grande laboratório para a observação do mundo do
trabalho e da produção.
Rockfeller fundou a Standard Oil em 1865, Gustavus Swift, em 1890, criou os
Frigoríficos Swift, e, entre este ano e 1900, inúmeras outras empresas, como a
Westinghouse, a American Tobacco, a United Fruit, para não falar nos impérios do
ferro, do aço, do cobre e do alumínio, foram criadas ou ampliadas, algumas se fun-
dindo a outras tantas. Promovia-se um notável boom empresarial. Na Inglaterra e
nos EUA, esse processo foi acompanhado por inovações metodológicas e tecnoló-
gicas destinadas a reduzir custos, aumentar a produção, obter cooperação dos
trabalhadores e conquistar o mercado em expansão. Tudo isso foi fonte de experi-
ência e de novos conhecimentos, além de enorme pressão por novos padrões de
produção e melhor organização para o trabalho.

1.7 O surgimento da crítica humanista e dos ideais de um


mundo justo e solidário

As condições de vida e de trabalho dos operários fabris, submetidos a 10, 12,


11
14 horas de esforços quase contínuos, nas empresas, despertaram indignações e
formulações críticas de toda natureza. Obras como Os miseráveis, de Victor Hugo,
ou Germinal, de Emile Zola, denunciavam a pobreza e o sofrimento a que estavam
sujeitos os trabalhadores e suas famílias. Pensadores sociais e empreendedores
entraram em cena propondo outros modelos de vida e de trabalho. Foi o caso de
Charles Fourier, com os seus Falanstérios, ou Robert Owen, industrial inglês, com
sua comunidade de New Lanark, ou, ainda, Saint-Simon e Sismondi – com suas
construções teóricas, todos buscavam uma saída para as condições impostas pela
relação trabalho/capital.
Em sentido mais profundo e radical, autores como Ferdinand Lassale, Emma-
nuel Proudhom, Michel Bakunin e, finalmente, Karl Marx e seu companheiro Fre-
deric Engels ocuparam a cena do pensamento europeu, criticando o modo de pro-
dução capitalista.
Portanto, correntes do chamado socialismo utópico, correntes anarquistas e
comunistas trouxeram o trabalho e as relações sociais de produção para o primei-
ro plano do estudo, da formulação e da teoria.
A intervenção dessas vertentes do pensamento, em principal medida, tem o
objetivo de negar o sistema e contrapor a ele um outro mundo possível, como se
anuncia hoje nos Fóruns Sociais Mundiais. Mas é também verdade que a sociolo-
gia do trabalho e as teorias de gestão se apropriaram de parte deste pensamento
para incorporar mudanças ao próprio modo de produção capitalista.

1.8 As condições políticas e a luta por interesses materiais

As condições que inspiravam pensamentos contraditórios e críticos estimula-


vam utópicos e não utópicos a formulações e projetos de mundo e criavam tam-
bém uma atmosfera de conflito social.
Na Europa, o último quartil do século XIX foi marcado pelo impacto da Comu-
na de Paris (1871), um movimento revolucionário, inspirado no anarquismo e no
comunismo. Outros levantes, imediatamente anteriores e posteriores à Comuna,
explodiram em vários países europeus. No final do século, surgiram os primeiros
partidos populares, que disputaram eleições sob bandeiras radicais e reformistas.
Neste mesmo final do século XIX, o movimento dos trabalhadores na América
do Norte também se difundia no campo e na cidade. O Partido do Povo, aliança
reformista criada nos EUA, chegou a disputar a presidência da República em 1892
e a fazer boa bancada no Congresso, em 1894. No início do século XX, havia um
clima febril de crescimento econômico, com insatisfação dos trabalhadores, e mui-
12
tas pressões por uma tributação que pudesse reverter parte dos lucros para o
bem comum. Por outro lado, idêntica pressão para obter-se mais eficiência, meno-
res custos e maior capacidade de competição. A despeito dos elevados índices de
crescimento industrial, os capitães de indústria faziam uma avaliação de que ha-
via muito desperdício e vadiagem.
Essas condições criadas pela dinâmica do mundo real forçavam a que a ques-
tão do trabalho, da produção, da empresa e da gestão dos negócios, antes despre-
zada pelos pensadores, passasse a ocupá-los.

1.9 Elevar a produtividade e obter a cooperação

Esses referenciais, de variadas fontes do conhecimento, seja fonte teórica, seja


fonte empírica, são reunidos para responder a dois objetivos integrados, que se
impuseram na relação trabalho-capital:

Objetivos Integrados das Teorias Organizacionais

Elevar a produtividade e
Obter cooperação dos trabalhadores.

Elevar a produtividade e obter a cooperação constitui, há mais de um século, a


obsessão de todo gerente, até porque o terceiro objetivo que se apresentou poste-
riormente, a busca da qualidade, em grande medida, depende da cooperação dos
auxiliares de trabalho.
O objetivo da Qualidade não havia ocupado, até três décadas passadas, um es-
paço relevante, como nos dias de hoje. Qualidade se reduzia ao preenchimento de
quatro condições mínimas:

Resistência, que garantisse durabilidade.


Funcionalidade, que assegurasse o atendimento à necessidade.
Baixo preço, que permitisse aquisição sem maiores sacrifícios financeiros.
Baixo custo de manutenção.

Tratava-se de um objetivo capaz de ser alcançado com o padrão estabelecido.


13
O padrão se fazia com esses quatro itens. Uma vez cumpridos, respondiam pela
necessidade de qualidade do produto, inclusive a qualidade de ser um produto
durável. São aspectos contrários, portanto, à descartabilidade que caracteriza a
obsolescência planejada e acelerada da gestão da qualidade contemporânea.
O conceito de Qualidade como melhoria contínua, agregação de valor e encan-
tamento do cliente somente se colocou nos anos 1980, com a emergência do con-
sumo de substituição. Isto é, quando a oferta encontrou o mercado saturado e com
capacidade aquisitiva restrita. A produção, predominantemente, passou a desti-
nar-se aos consumidores que estavam substituindo seus estoques domésticos.
Portanto, a produção voltou-se para os consumidores que exigiam algo novo, dife-
rente, com algum valor agregado que justifique substituir seu carro, seu telefone
celular ou seu aparelho de som.
Nos primórdios da administração, o perfil do consumidor era diferente do
perfil do consumidor de substituição. O consumidor dos primeiros grandes mer-
cados estava no limiar da satisfação de suas necessidades. Tudo era novo e dura-
douro. Por isso, os teóricos estavam em busca de respostas para a produtividade.
Ou seja, um quociente de produção/recursos o mais alto possível.
Era a produtividade, o maior volume de bens produzidos, ao menor custo
financeiro, que atraía e ocupava a atenção dos estudiosos da administração.

Elevar a produtividade

O processo de crescimento urbano, no século XX, foi muito acelerado, princi-


palmente entre os países líderes, como os EUA. De modo geral, a mudança na dis-
tribuição territorial da população foi, de fato, uma inversão. Se, no início do século
XX, a cidade possuía apenas 20% da população, e o campo, 80%, rapidamente o
quadro populacional foi mudando, em favor da rápida urbanização.
A população, entre os séculos XIII e XX, chegou a triplicar nos grandes centros
econômicos. Era o benefício oferecido pelas melhores condições de nascimento e
pelo controle dos grandes males infantis (varíola, escorbuto, cólera etc.). Mas era
também a atratividade de melhores empregos, impulsionando o êxodo rural.
O que isso tem a ver com produtividade?
Ora, o mercado consumidor cresce em correlação com a população. Além dis-
so, o homem urbano não conta mais com as facilidades familiares. Móveis, roupas,
utensílios diversos eram feitos por familiares ou pelo próprio consumidor, em
produção de auto-subsistência. Segundo Victor Clark, havia lugares, como o Ten-
nessee, em que “quase a totalidade da população rural, especialmente os morado-
14
res das regiões montanhosas, vestia roupas fabricadas em casa”.11 Isso já não es-
tava à disposição do homem urbano. Ele não tinha mais quem lhe fizesse a roupa
ou o calçado ou os móveis e muito menos tinha condições de ele mesmo fazer.
Esse homem urbano precisava de quem lhe atendesse as necessidades, com o de-
talhe de que agora precisava pagar por isso.
Seja por esse aspecto antropológico, seja meramente pela grande quantidade
de novos habitantes urbanos, a migração do campo para a cidade foi criando um
amplo mercado consumidor.
Mas esse mercado consumidor tinha uma característica: ele não dispunha de
muita capacidade aquisitiva. Era constituído de trabalhadores rurais que estavam
ao mesmo tempo sendo expulsos da terra e da área rural, atraídos pelas notícias
vindas das cidades. Eram notícias de emprego, do febril crescimento, seja da in-
dústria de produção de bens de consumo e de capital, seja da indústria da cons-
trução civil, para não falar do comércio e dos serviços. Em seu conhecido estudo
sobre esse período, Theodore Schultz informa que, entre 1895 e 1915, a produção
industrial americana cresceu 156%.12
Por isso é justo dizer que, por exemplo, Henry Ford teve como principal méri-
to a sensibilidade para perceber que se construía um mercado de massas na Amé-
rica do Norte, impulsionado por um círculo virtuoso de produção-emprego-
consumo-produção. Percebeu mais ainda: que o futuro da indústria estava na
produção para esta massa de consumidores potenciais.
A questão residia em como obter preços baixos. Melhor dizendo, como obter
custos baixos, para oferecer preços baixos.
Essa questão já tinha sido colocada por Taylor e ele julgava que havia resolvi-
do o problema. Várias vezes, em seu livro Princípios da administração científica,
Taylor anunciou que seu método atendia a todos: empresários, trabalhadores e
consumidores. Agradava aos consumidores porque, ao elevar a produtividade, ao
tornar o mais alto possível a relação produção/recursos, estava obtendo custo
unitário baixo e podendo praticar preços de mercado baixos.
Mas Taylor jamais teria ideia de como, após a sua morte, as cidades cresceri-
am com uma população de baixo poder de compra. Cidades industriais, como De-
troit e sua Filadélfia duplicavam a população em apenas um ano. Grande parte

11 CLARK, V. S. History of manufactures in the United States. Washington, DC: Carnegie Institution
of Washington, 1916. p. 104.

12 SCHULTZ, Theodore. Agriculture in an unstable economy. New York: McGraw-Hill, 1945, p. 115.

15
destes migrantes era, como frequentemente ocorre aos migrantes, pobre. Torna-
va-se, portanto, necessário elevar mais ainda a produtividade e obter custos uni-
tários bem mais baixos.
Isso só a linha de montagem e as formas de moldar peças e componentes, de-
senvolvidas por Ford, a partir de 1913, poderiam fazer.
Portanto, os primeiros teóricos e formuladores da administração, como Tay-
lor, Gilbreth, Gantt, Ford e Fayol, este na França, voltaram seus estudos para ele-
var a produtividade. Grande parte das suas pesquisas se concentrava no estudo
dos tempos e dos movimentos da produção. É possível dizer que os primeiros
estudos da administração se realizaram com balança, fita métrica e cronômetro.
Depois, principalmente com Ford, esses estudos se deram através de um esforço
criativo de organização e sistemas. A organização da produção e a introdução de
novos sistemas, em que a linha de montagem pontificava, intensificaram a produ-
ção, garantiram economicidade nas operações e muita produtividade, principal-
mente na relação produto/homem/hora.
Um mercado muito comprador garantia a realização da mercadoria. O que se
produzia se vendia. A Lei de Say, segundo a qual a oferta cria a sua própria procu-
ra, parecia estar mais uma vez se comprovando. Além daquele fenômeno de cres-
cimento acelerado de suas grandes cidades, os EUA foram beneficiados pela de-
manda de produtos, armas, roupas e alimentos, de uma Europa em guerra. Era o
sucesso do Fordismo e o sucesso do Fordismo foi a afirmação da importância da
produção em massa. A grande escala da produção em massa permitia diluir os
custos totais nas milhares de unidades produzidas. O custo unitário baixo fazia a
alegria dos consumidores.
A elevação da produtividade, sempre vista como um dos grandes objetivos da
gerência, ganhava a condição de um dos dois principais objetos de estudo da ad-
ministração. Praticamente, todas as teorias da administração, do já referido Tay-
lorismo, até o Toyotismo dos tempos presentes, todas concentram grande parte
de suas atenções na busca de métodos, sistemas e formas de organização que se-
jam capazes de elevar a produtividade.
Vale, ainda, considerar que é no trabalho que se realiza a criação de valor.
Assim ocorre quando, pela habilidade ou esforço físico, uma peça de madeira,
por exemplo, é transformada, pelo trabalho, em um mesa ou uma janela. Ou
quando um novo hardware é criado, a partir de peças e componentes básicos,
com a integração sistêmica produzida pela habilidade mental do trabalhador.
Em ambas as situações, dá-se uma agregação de valor sobre a base material da
produção, seja na peça de madeira que é transformada em mesa, seja nos com-
ponentes e peças que são transformados em novo hardware. Essas agregações

16
se refletem no preço – expressão monetária do valor. Não se compra uma mesa
pelo preço de uma peça de madeira com que ela será fabricada. Essas agrega-
ções de valor são realizadas pelo trabalho.
Nesse sentido, elevar a produtividade significa produzir uma alta massa de
valor ao menor custo financeiro possível. Do ponto de vista do capital, é certamen-
te um objetivo primordial.

Obter cooperação

O segundo objetivo primordial é a obtenção da cooperação dos trabalhadores.


Trata-se de um objetivo integrado com o objetivo da produtividade, porque, sem
dúvida, o empenho ou a falta de empenho no processo produtivo afeta a produti-
vidade.
Mas a cooperação tem sua autonomia e substantividade. É possível obter pro-
dutividade sem cooperação. O escravagismo demonstra isso, mas até certa medi-
da. A partir de mínimas condições de liberdade, o recurso ao trabalho forçado é
uma violência contra todos os valores civilizatórios, que custa desgastes subjeti-
vos os mais diversos, além de custar formas adicionalmente onerosas de controle.
Por isso, a busca da cooperação constitui um objetivo à parte e é, certamente, mais
que um objetivo, é um desafio.
Esse desafio se colocou para os administradores na passagem do trabalho ar-
tesanal para o trabalho fabril. Essa passagem é sociologicamente traumática, por-
que transforma o produtor em operário, e isso vai fazer uma diferença crucial.
O artesão se define como o trabalhador ou trabalhadora que executa todas as
etapas da produção de um bem e o comercializa. Sua produção é frequentemente
destinada à satisfação de suas necessidades familiares, com um excedente que ele
oferece aos seus compradores. Essa atividade era desenvolvida em sua casa, onde
parentes e aderentes ajudavam. Dentre os aderentes, os aprendizes do ofício, seus
auxiliares mais constantes.
Esta condição de artesão, portanto, era suficientemente motivadora. O ho-
mem trabalhava para si, seja na parte da jornada destinada a produzir para o seu
próprio consumo e o consumo de sua família, seja na parte em que produzia o
excedente que ele vendia. Esse excedente também era seu. Sua venda lhe rendia
dinheiro, que, por seu turno, lhe proporcionava o acesso a outros bens.
O trabalho, materialmente falando, aquele trabalho concreto, o produto do
seu empenho transformador, lhe pertencia integralmente. Nada o obrigava a tra-
balhar, senão seu próprio interesse em ter aquilo de que necessitava. Por isso, a
jornada de um artesão tinha certa flexibilidade, além de ser, em sua totalidade,
17
uma jornada curta, que alguns historiadores calculam em quatro horas, em média.
Como disse David Landes, em The unbound Prometheu, “o artesão domiciliar era
senhor do seu tempo, começando e parando quando desejasse”.13
Sua passagem ao interior de uma oficina de produção, como se dizia à época,
foi para ele uma violência, em vários aspectos.
Primeiro, porque significava o seu fracasso em manter a condição de produ-
tor livre. A competição do incipiente mercado, em que novos produtores, princi-
palmente seus antigos aprendizes, elevavam a oferta, e os acidentes de toda a na-
tureza, para os quais não existia ainda seguro de lucros cessantes, o haviam leva-
do à falência. Isso era muito pesado para carregar. Segundo o pai Grandet, da fa-
mosa passagem de Balzac, Eugénie Grandet, a falência é a pior desonra que pode
ocorrer a um homem. A classe emergente, a burguesia, podia conviver com tudo e
todas as desonras. A corrupção, a usura, até o assassinato. Mas não aceitava a fa-
lência.
Em segundo lugar, o artesão que ia à falência geralmente perdia seus meios
de produção, porque os vendia para se manter. Portanto, não lhe restava nada,
senão sua força, sua habilidade física e/ou mental.
Em terceiro lugar, ele agora tinha que se submeter ao regime da oficina, com
um capataz, geralmente mais rude do que ele, a lhe dar ordem e controlá-lo em
todos os seus movimentos.
Em quarto lugar, a jornada de trabalho não era mais feita por ele mesmo.
Agora, era o proprietário da oficina que, possuindo as instalações e os equipamen-
tos, definia a jornada de trabalho. Os registros da época, tanto nos EUA, como na
Europa, apontam para jornadas de 12, 14, 16 horas diárias.14
Em quinto, o excedente de produção, ou seja, aquilo que o artesão produzia
além da sua necessidade familiar e vendia, agora pertencia ao proprietários dos
meios de produção. Significa dizer que, em uma jornada de 14 horas, aproxima-
damente 10 horas produziam excedente, apropriado pelo dono do negócio.
Em sexto lugar, o antigo artesão, agora reduzido a operário, recebia um pa-
gamento relativo a um número de horas bem inferior ao total de horas trabalha-
do. Portanto, grande parte do tempo de trabalho não era remunerada.
Tudo isso retirava do trabalhador a automotivação anteriormente existente.

13 LANDES, David S. The unbound Prometheu. Cambridge University, 1969, p. 58.

14 HUBERMAN, Leo. A história da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

18
Sua disposição para cooperar se tornou mínima, apenas o necessário para manter
o emprego que garantia sua sobrevivência, enquanto não encontrasse outra saída.
Ainda que nos dias de hoje não se tenha o choque da mudança que marcou os
artesãos na Revolução Industrial, alguns aspectos acompanharam no tempo esta
grande transformação de produtor livre em operário. Vender trabalho e vender
força de trabalho são reconhecidamente duas coisas muito diferentes. Os que
vendem sua força de trabalho, física e/ou mental, sabem que não são remunera-
dos plenamente pelo seu esforço e que melhor seria vender o próprio trabalho.
Não é à toa que milhões de trabalhadores sonham em montar o seu próprio negó-
cio. Ainda que não se deva comparar o que pretendem os trabalhadores de hoje,
sonhando com seu próprio negócio, e aquilo que faziam os artesãos, há muitos
pontos em comum entre eles. De modo geral, eles querem se livrar de grande par-
te destes seis itens negativos da passagem do artesão à condição de operário.
Considerando esses aspectos relatados, não é difícil compreender por que a
obtenção da cooperação dos trabalhadores tornou-se um dos objetivos primordi-
ais da teoria administrativa.
Trata-se de criar incentivos e despertar motivações que possam compensar a
auto-motivação que possuía o artesão e possui o trabalhador que produz para si
mesmo, o livre produtor.

Essa é a razão da extensa discussão dos teóricos da administração em torno da


remuneração do trabalho, de formas de remuneração, de incentivos à produção e
de fatores motivacionais. O debate vem desde Taylor, com seu longo texto Admi-
nistração de oficinas, passa por Fayol, em seu Administração geral e industrial, e
pelos humanistas da administração. Não para aí, ao contrário. Continua, com todo
entusiasmo, nos atuais defensores da gestão participativa, do empowerment e da
participação nos lucros.
Para Taylor, a cooperação dos trabalhadores se obtém com incentivo materi-
al. A remuneração por peça e o adicional por desempenho superior à produção
esperada, no tempo padrão, são o suficiente para despertar o interesse do traba-
lhador. Para os humanistas, cujos modelos de motivação são ricos e variados, o
incentivo material é uma forma, mas talvez nem seja a mais atraente. Principal-
mente para trabalhadores que já têm preenchidas suas necessidades básicas. Para
os teóricos contemporâneos, a questão que se coloca é fazer com que os trabalha-
dores vistam a camisa da empresa. Nesse sentido, a motivação virá por este en-
volvimento, seja pela participação nos lucros (PL), seja pelo compartilhamento
das decisões, com a participação, o empoderamento (empowerment) ou o empre-
endedorismo interno (entrepreneuring).
19
Tratando do empowerment, Quinn Mills explica: “não queremos mais que os
funcionários obedeçam; pelo contrário, nós lhe pedimos para internalizar os obje-
tivos”.15 No início de seu livro, ele já caracteriza bem o que pretende o empode-
ramento: “uma nova relação entre as pessoas e a organização. Eles são parceiros.
Cada um não se sente apenas responsável pelo seu trabalho, mas têm um senti-
mento de propriedade em relação ao todo [...] o empregado é um tomador de de-
cisão, não um seguidor”.16
Exageros à parte, porque de fato não é comum, nem é fácil que a relação
entre a empresa e o trabalhador seja tão contributiva, o concreto é que, nos tem-
pos atuais, os teóricos buscam os mais variados meios de obter cooperação –
dentre eles o discurso e a exortação ao senso de pertencimento e identidade en-
tre a organização e o indivíduo.

De modo geral, não existe uma opinião definitiva de como obter cooperação.
Os teóricos e gerentes se dividem entre os pontos de vista mais tradicionais, em
que se destaca a ideia do incentivo material, e os incentivos ditos subjetivos, em
que se incluem o referido empowerment e outras formas de atrair o trabalhador
para um comportamento mais cooperativo.
Comum a todos é a consciência da necessidade de obter cooperação.
Veremos mais detalhes sobre motivação no Capítulo 2 deste livro.

1.10 Taylorismo: um paradigma sociológico clássico

A melhor ilustração da proeminência desses dois objetivos no estudo do tra-


balho é a construção teórica de Taylor. Trata-se do paradigma sociológico clássico
deste fenômeno de racionalização da produção, que ocorre no final do século XIX,
início do século XX.
Frederick Taylor foi operador de máquinas da Midvale Steel Company, na Fi-
ladélfia, e mais tarde seu engenheiro-chefe. Ele acreditava, como escreveu em
seus Princípios de administração científica, que “afastando este hábito de fazer

15 QUINN MILLS, Daniel. Empowerment. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 101.

16 Ibidem, p. 4.

20
‘cera’ em todas as suas formas e encaminhando as relações entre empregados e
patrões, a fim de que o operário trabalhe do melhor modo e mais rapidamente
possível em íntima cooperação com a gerência e por ela ajudado, advirá, em mé-
dia, aumento de cerca do dobro da produção de cada homem e de cada máqui-
na”.17 Observem que nessa formulação sintetizam-se os dois objetivos centrais das
teorias organizacionais: elevar a produtividade e obter cooperação.
No clima da época, fortemente influenciado pelo pensamento positivista a que
já fizemos referência, Taylor acreditava que o caminho para o sucesso seria a subs-
tituição dos métodos empíricos por métodos científicos. Tomando o exemplo para
si mesmo, Taylor segue o caminho cartesiano e baconiano, do racionalismo e do
empirismo. Seu método é observar o procedimento dos operários na execução de
uma tarefa. Analisá-los em seus detalhes, medindo, contando e calculando, com fita
métrica, balança e cronômetro. Seu objeto de estudo é a tarefa, unidade menor de
um trabalho. Significa dizer que, novamente, a base do desenvolvimento dos pro-
cessos de produção é a divisão do trabalho e a especialização do operário.
Escrevendo sobre a Direção científica das empresas, Taylor diz que a primeira
das obrigações de uma direção científica

“é a coleta deliberada, feita por aqueles que fazem parte da direção, da


grande massa de conhecimentos tradicionais que, no passado, estava na
cabeça dos operários e que se exteriorizava pela habilidade física que eles
tinham conseguido pelos anos de experiência”.18

E continua:

“[deve-se] registrá-la, classificá-la e, em numerosos casos, reduzi-la final-


mente a leis e regras, até mesmo expressas por fórmulas matemáticas. [Pa-
ra ele], isto pode ser considerado como o desenvolvimento de uma ciência
que substitui o velho sistema de conhecimentos empíricos”.19

Este método ficou conhecido como estudo de tempo e movimentos. Para mui-
tos historiadores, como Harold Kootz e Cyril O’Donnell, o estudo de tempo e mo-

17 TAYLOR, Frederick. Princípios da administração científica. São Paulo: Atlas, 1980, p. 33.

18 Ibidem, p. 49.

19 Ibidem, p. 80.

21
vimentos é a “pedra angular da administração científica”.20
Através deste método, Taylor conseguiu revelar o modo de fazer as tarefas,
antes sob domínio dos operários qualificados, aperfeiçoá-lo e precisar o tempo
necessário para a execução de cada tarefa. Pode igualmente fixar a produção es-
perada de cada trabalhador e, por extensão, a produção total.
Tratando da aplicação da administração científica à construção civil, Taylor
enumera o que seriam os quatro elementos que constituem a essência da adminis-
tração científica:

“Primeiro – o desenvolvimento (pela direção e não pelo operário) da ciên-


cia de assentar tijolos, com normas rígidas para o movimento de cada
homem, aperfeiçoamento e padronização de todas as ferramentas e con-
dições de trabalho.
Segundo – a seleção cuidadosa e subsequente treinamento dos pedreiros,
entre os trabalhadores de primeira ordem, com a eliminação de todos os
homens que se recusarem a adotar os novos métodos ou são incapazes
de segui-los.
Terceiro – adaptação dos pedreiros de primeira ordem à ciência de assen-
tar tijolos, pela constante ajuda e vigilância da direção, que pagará, a ca-
da homem, bonificações diárias pelo trabalho de fazer depressa e de
acordo com as instruções.
Quarto – divisão equitativa do trabalho e responsabilidade entre o operário
e a direção. No curso do dia, a direção trabalha lado a lado com os operá-
rios, a fim de ajudá-los, encorajá-los e aplainar-lhes o caminho.”21

Essa prescrição, experimentalmente dirigida à construção civil, universalizou-


se para todos os ramos da produção. Surgem daí os conceitos que ficaram mais
conhecidos, na literatura sobre o Taylorismo, como: Planejamento; Preparo ou
Treinamento; Controle e Execução ou Distribuição das tarefas. Como se percebe,
Taylor separava, com rigor, as funções de Planejar e Executar.
Mas Taylor não pensava estar criando apenas uma técnica ou, como ele pró-
prio dizia, “um mecanismo”. Em sua concepção da administração científica, havia
o mecanismo e havia a filosofia: “o modo de funcionamento da administração ci-

20 KOONTZ, Harold. Princípios de administração. São Paulo: Pioneira, 1964, p. 23.

21 TAYLOR, Frederick. Ibidem, p. 83.

22
entífica não deve ser confundido com sua filosofia fundamental”.22
Propunha uma filosofia, um modo completo de ver, um posicionamento dian-
te da administração. Nessa filosofia, o marcante é a abordagem científica total, em
todos os sentidos e aspectos da organização e execução das tarefas. A essa marca
ele acrescia a aspiração de quase todos os teóricos da administração: o ideal de
cooperação entre dirigentes e trabalhadores.
Os verdadeiros e profundos pontos, a filosofia, ele expõe nas páginas finais
de seu livro, em forma de “quatro princípios fundamentais de administração ci-
entífica”:

“Primeiro – desenvolvimento de uma verdadeira ciência.


Segundo – seleção científica do trabalhador.
Terceiro – sua instrução e treinamento científico.
Quarto – cooperação íntima e cordial entre a direção e os trabalhadores.”23

O taylorismo ou organização racional do trabalho consiste na aplicação do ri-


gor científico cartesiano à administração, usando-se o estudo de tempos e movi-
mentos para dar aos dirigentes da empresa o pleno domínio sobre o modo e o
ritmo de fazer as tarefas, antes parcialmente controlados pelos próprios trabalha-
dores.
Mas o taylorismo é também a busca de formas, basicamente materiais, de in-
centivar, conforme seus próprios termos, a “cooperação íntima e cordial entre a
direção e os trabalhadores”.
Nesse mesmo sentido da cooperação, um detalhe adicional pode-se perceber
no taylorismo: o discurso ideológico.
Ainda que o discurso ideológico seja uma característica comum a todas as
teorias sociológicas e administrativas em torno da relação trabalho/capital, Tay-
lor é seguramente o mais explícito.
Ele tem consciência de que, à sua época, a invocação do conflito de interesses
e luta de classes encontra receptividade entre os trabalhadores, seus familiares e
setores expressivos da sociedade:

“a maioria desses homens crê que os interesses dos empregadores e em-

22 Ibidem, p. 117.

23 Ibidem, p. 118-119.

23
pregados sejam necessariamente antagônicos. A administração científica
tem, por seu fundamento, a certeza de que os verdadeiros interesses são
um único, qual seja: de que a prosperidade do empregador não pode existir
[...] se não for acompanhada da prosperidade do empregado”.24

Seu método, como já se observou, não pretende ser apenas um mecanismo, is-
to é, um sistema mecânico. Ele concebeu uma filosofia cujo objetivo é enfrentar o
discurso da luta de classes com outro discurso, o da colaboração de classes.
Mas sua ideia, tão prática como tudo que lhe diz respeito, não é desprovida de
objetividade. Não é apenas um discurso. Tal qual o seu mecanismo tem uma filo-
sofia, sua filosofia tem um mecanismo.
Esse mecanismo é exatamente o incentivo material que se verifica a cada uni-
dade de bem produzida, a remuneração por peça. E mais: o adicional por peça, um
percentual a mais sobre o valor da peça, uma vez ultrapassada a produção espe-
rada no tempo padrão.
Com isso, ele procurava desarmar a denúncia, absolutamente verdadeira, de
que o sistema de remuneração por peça era burlado pelos empregadores, quando
a produtividade aumentava. Os empregadores alteravam a regra e diminuíam o
valor da peça produzida, na medida em que os trabalhadores elevavam a produ-
ção/hora.
Taylor queria enfrentar o “problema dos salários” no seu ponto de discórdia
fundamental, a negação de que a elevação da produtividade pudesse ser compatí-
vel com a cooperação de classes.
Por isso, é possível reafirmar, sem receio, que Taylor construiu o paradigma
moderno da relação trabalho/capital. Sem dúvida, ele procurou contemplar, com
rara precisão, as dimensões da produtividade e da cooperação.
Como ele disse ao Presidente da Comissão Parlamentar do Congresso Ameri-
cano, em 1913, que o inquiriu sobre o seu método, “infelizmente, aplicaram o me-
canismo e não minha filosofia”.25
Resta responder por que não foi aplicada a filosofia “de que a prosperidade do
empregador não pode existir se não for acompanhada da prosperidade do empre-
gado”.

24 Ibidem, p. 30.

25 GUERREIRO RAMOS, Alberto. Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho .


Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1950, p. 65.

24
1.11 A questão da qualidade

A questão da qualidade, que no mundo contemporâneo constitui o terceiro


objetivo das teorias da administração, emergiu na passagem dos anos 1970/80.
Vivia-se um período crítico, em que as taxas de crescimento em todo o mundo
desenvolvido caíam vertiginosamente.
Os EUA viram sua média de crescimento do produto cair de 4,4%, nos anos
1960, para 2,5%, entre 1979/1985, e o Japão não evitou o despencar de sua taxa
de incremento de 10,4%, nos anos 1960, para 4%, nos anos 1980. Todos os paí-
ses europeus passaram pelo mesmo processo de queda do produto bruto, desta-
cando-se a Inglaterra (de 3,1% para 1,2%), a Alemanha (de 4,1% para 1,3%) e,
principalmente, a França, onde o ritmo de crescimento caiu de 5,4% para 1,1%. 26
Segundo Perry Anderson, “a taxa de lucro das indústrias da OCDE caiu em cerca
de 4,2%”.27
A crise resultava de uma superacumulação (Arrighi)28 ou do “capital privado
altamente concentrado” (Chenais),29 ambas as constatações querendo dizer a
mesma coisa. Em palavras mais simples, uma concentração de renda descomunal
e, em contrapartida óbvia, um empobrecimento profundo do mercado consumi-
dor de massa. As empresas privadas e os grandes financistas estavam concen-
trando a riqueza e os consumidores médios não tinham dinheiro para comprar os
produtos.
Esse fenômeno já tinha acontecido nos anos 1920 e radicalizou-se nos anos
1930, durante a Grande Depressão. Os grandes capitalistas entesouravam, porque
não valia a pena produzir, dado que não havia quem consumisse. Naquela época, a
resposta dada pelo governo americano e muitos outros governos nacionais foi
transferir o comando da economia para o Estado. Os Estados Nacionais passaram
à condição de grandes investidores, empregadores e compradores, mobilizando

26 OCDE. The Welfare State in crisis. Paris: Organização de Cooperação para o Desenvolvimento
Econômico, 1981.

27 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Org.). Pós-
neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p.15.

28 ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 300.

29 CHESNAIS, François. A globalização e o curso do capitalismo do fim do século. Economia e Soci-


edade, nº 5, Campinas, dez. 1995.

25
os estoques de capital em poder privado e emitindo moeda, o que relançou a eco-
nomia. Sem falar da Guerra que se seguiu (1939-1945), potencializando este Es-
tado como grande produtor bélico, grande contratador e empregador. Isso ficou
conhecido como modelo keynesiano-fordista. Uma combinação da monitoração
do mercado, pelo Estado, para garantir bom nível de emprego e de consumo agre-
gado – a tese de J. M. Keynes – e a produção padronizada, de massa, a baixo custo,
praticada por Ford e toda a indústria fordista, dos mais diversos ramos econômi-
cos.
Mas agora, nos anos 1980, este modelo e seu auxiliar, o Estado de Bem-Estar
Social, amplo programa estatal de atendimento das necessidades básicas da popu-
lação, também estavam em crise. Pareceu não ser capaz de garantir o crescimento
sustentado do sistema e isso o levou ao desgaste político e ideológico.
A opção para enfrentar o mercado restrito não foi mais o modelo keyseniano-
fordista e o Estado de Bem-Estar Social, a transferência de renda de cima para
baixo, a operação Robin Hood, que dera certo nos anos 1930-40. Ao contrário, em
manobra estratégica típica, reverteu-se a ameaça em oportunidade. Se o mercado
está restrito em face da concentração de renda, por que então não voltar-se para o
mercado que concentra essa renda? Para essa estratégia, não cabe o sistema Ford,
assentado na linha de montagem para a produção em série, com a lógica da redu-
ção de custos para operar com preços baixos, em sociedade/mercado populista,
como disse David Harvey.30
Agora, como diria Toffler, em seu A empresa flexível, cabe “uma forma nova e
superior de artesanato”. Se, “durante toda a Era Industrial, a tecnologia exerceu
uma forte pressão para a padronização, não apenas da produção, mas também do
trabalho e das pessoas [...] agora emerge uma nova espécie de tecnologia que tem
justamente o efeito oposto”.31
Citando Franklin Jarman, presidente do Conselho de Administração da Genes-
co, indústria de prêt-à-porter convertida à empresa flexível, ele explica a forma
nova e superior de artesanato: “essa ferramenta superindustrial acaba assim
completamente com o corte em massa podendo ser programada para atender,
economicamente, ao pedido de um só traje”.32

30 HARVEY, David. Condição pós-moderna. Rio de Janeiro: Loyola, 1994, p. 121.

31 TOFFLER, Alvin. A empresa flexível. Rio de Janeiro: Record, 1985, p. 78.

32 Ibidem, p. 79.

26
Toffler estende sua descoberta a “muitas outras indústrias, ao ponto em que
pode se tornar possível a produção de artigos individualizados, por menos dinhei-
ro do que custava a fabricação de múltiplos”.33
Sua explicação para o que chama de nova “lei” social é que ocorre “o encontro
de duas forças inter-relacionadas: primeiro, uma rápida despadronização dos
anseios do consumidor; e segundo, uma nova tecnologia que torna possível o má-
ximo em despadronização”.
Esta empresa despadronizada, ou, na fórmula de Toffler, empresa flexível, vai
ofertar o que ele mesmo cunharia como produção “customizada.”
Uma produção customizada é assim destinada a aqueles cuja a massificação
do produto passou a ser considerada inadequada aos seus padrões de vida.
A teoria do marketing, combinada com uma generosa renda pessoal disponí-
vel, faz a rápida despadronização dos anseios do consumidor, como diz Toffler,
romper as restrições do mercado.
Indústrias de vários setores, inclusive o setor automobilístico, personalizaram
seus produtos, alcançando o 1% da riqueza mundial, mercado que concentra em
seu patrimônio algo em torno de 15% da produção do planeta. Se desejasse, dis-
poria também de um mercado mais ampliado, porém, igualmente concentrado,
que, à época, reunia nas mãos dos 20% mais ricos nada menos que 86% da rique-
za mundial.34
A customização da produção foi um paliativo para a crise. Mas a questão do
mercado restrito encontrou sua resposta mais ampla na teoria da qualidade, que
de fato, conseguiu recuperar as taxas de lucratividade das empresas, ainda que as
taxas de crescimento do produto nacional tenham permanecido baixas, na maior
parte do mundo, e o desemprego alto.
Que é a teoria da qualidade?
Conceituada como o encantamento do cliente, pela via da melhoria contínua
baseada na agregação de valor, a teoria da qualidade se encontra com a “customi-
zação”, mas a supera.
Encontra-se porque caminha na direção do cliente e de sua satisfação de ne-
cessidades acessórias (controles remotos, automatismos operacionais, programa-

33 Ibidem, p. 80.

34 PNUD. Relatório sobre o desenvolvimento humano. Washington: Organização das Nações Hu-
manas, 1999.

27
ções cibernéticas etc.) e, algumas vezes, subjetivas (garantias, segurança, estética,
presteza e cordialidade etc.). Mas a supera, na medida em que opera com lotes de
produção. Situa-se, portanto, entre a “customização” e o Fordismo.
Seu mérito maior, porém, se verifica na obsolescência planejada ultrarrápida,
que permite mexer com o mercado restrito frequentemente. Não apenas os pro-
dutos de consumo final, mas os bens de capital, as tecnologias de produção, inclu-
sive, são aperfeiçoados constantemente, com agregações de valor sucessivas. Do
ponto de vista do consumidor final, com capacidade aquisitiva, a função dos pro-
dutos oferecidos não é mais atrativa. De modo geral, quanto à função, ele está sa-
tisfeito com seu estoque doméstico de equipamentos elétricos, eletroeletrônicos,
informáticos ou fonográficos, para citar áreas mais sensíveis e de maior valor cris-
talizado. Agora é o agregado de valor, acessório ou subjetivo, o principal atrativo e
meio eficaz de estimulá-lo a trocar aqueles estoques domésticos de bens duráveis,
adquirindo novos lançamentos.
Isso é seguir a lição de Juran, um dos magos “japoneses” e autor do clássico
Planejando para a qualidade: “quando se planeja para a qualidade é necessário
analisar as necessidades secundárias e terciárias dos clientes e, em casos comple-
xos, ir mais adiante”.35
É o mesmo Juran que, definindo as políticas de qualidade como “um guia para
as ações gerenciais” no campo da qualidade, aponta cinco políticas, das quais qua-
tro delas – excluída apenas a política dos clientes internos (trabalhadores) – cha-
mam a atenção para a substituição/inovação/aperfeiçoamento constantes, refe-
rindo-se a: “atender a percepção de boa qualidade dos clientes”, “igualar ou exce-
der a qualidade do concorrente”, “estabelecer um processo formal de melhoramen-
to da qualidade”, “conduzir melhoramentos contínuos (também chamados melho-
ramentos sem fim)”, “novos modelos tão confiáveis quanto os modelos substituí-
dos”.36
No Brasil, um dos mais bem-sucedidos consultores de qualidade, Falconi, au-
tor de Gerência da Qualidade Total, conceitua qualidade como “satisfação total do
consumidor”. Ele diz que a “satisfação total do consumidor é buscada tanto de
forma defensiva (eliminando os fatores que desagradam o consumidor), como de
forma ofensiva (buscando antecipar as necessidades do consumidor e incorpo-

35 JURAN, Joseph. Planejando para a qualidade. São Paulo: Pioneira, 1990, p. 46.

36 Ibidem, p. 291-293.
28
rando fatores no produto ou serviço)”.37

Esta ideia forte de agregação de valor e melhoria contínua está presente em


Deming (1990), em Imai (1990), em Ishikawa (1993) e Albrecht (1992).38
A administração flexível concebe igualmente essa flexibilidade da qualidade,
entendida como agregação contínua de novos valores. “Nenhum problema com
que se defronta a indústria americana é mais importante ou menos compreendido
que o da inovação”, disse Toffler em seu relatório para a Bell.39
Ele sugere trabalhar-se com um índice de novidade, uma “relação entre o no-
vo e o antigo”, que “reflete o ‘novo’ num sistema”.40 Como inovação, Toffler enten-
de “variações de modelos, tamanhos, estilos e serviços” (inovação aditiva) ou “cri-
ação de novos produtos, tecnologias, processos ou procedimentos para substituir
ou eliminar os antigos” (inovação substitutiva).41

Índice de Novidade = Produtos Novos


Total dos Produtos

Ademais, “são necessários novas máquinas e processos para produzir novos


produtos”, observa.42

37 FALCONI CAMPOS, Vicente. Gerência da qualidade total. Belo Horizonte: Fundação Christiano
Ottoni, 1990, p. 30.

38 DEMING, Edward. Qualidade: a revolução na administração. Rio de Janeiro: Marques/Saraiva,


1990; ALBRECHT, Karl. Revolução nos serviços. São Paulo: Pioneira, 1992; IMAI, M. Controle de
qualidade total: a maneira japonesa. São Paulo: MAM, 1990; ISHIKAWA, Kaoru. Estratégia para o
sucesso competitivo. Rio de Janeiro: Campus, 1993.

39 TOFFLER, Alvin. Ibidem, p. 83.

40 Ibidem, p. 85.

41 Ibidem, p. 87.

42 Ibidem, p. 88.
29
É fato. Do ponto de vista do produtor (consumidor de bens de produção), as
inovações ou melhorias contínuas exigem a aquisição de novos equipamentos,
novas ferramentas, novas tecnologias, em todas as acepções da palavra. Instaura-
se, assim, um espiral ascendente de renovação tecnológica/renovação do produ-
to/renovação tecnológica.
O mercado restrito cede ao envolvimento do consumidor final e, por conse-
quência, cede às demandas tecnológicas dos produtores. E, no entanto, continua
mercado restrito.
A teoria da qualidade é, portanto, a grande arma da tecnologia de gestão con-
temporânea disposta com sucesso frente ao desafio de romper este mercado limi-
tado pela concentração de renda/superacumulação.
Mas, seja o taylorismo, com seu apego à dimensão econômica do trabalho, se-
jam as teorias humanistas ou participativas contemporâneas, todos estão voltados
para estas três questões maiores das associações humanas para a produção: a
produtividade, a cooperação e a qualidade, esta última definida como “a melhoria
sem fim”, para usar a expressão de Juran.

1.12 Pontos altos do capítulo

Na Antiguidade e na Idade Média, o trabalho e as atividades artesanais e


comerciais eram desvalorizados socialmente e como objeto de estudo.
A Revolução Industrial, a expansão do capitalismo, o crescimento urbano e
as novas relações sociais de produção atraíram a atenção dos pensadores
para os problemas do trabalho e da organização produtiva.
O racionalismo cartesiano, o empirismo, a economia clássica, as experiên-
cias das organizações tradicionais e dos primeiros empreendedores, a
crítica dos intelectuais e dos pensadores utópicos, dos socialistas, comu-
nistas e anarquistas, além das crises e lutas sociais reivindicatórias e re-
volucionárias, serviram de fonte e reuniram conhecimentos que foram (e
são) aplicados ao estudo do trabalho e das organizações produtivas.
A passagem do sistema artesanal de produção para o sistema fabril capita-
lista trouxe duas mudanças fundamentais: a criação do trabalho assalari-
ado e o desenvolvimento da divisão do trabalho.
Elevar a Produtividade, para fazer frente a um mercado populoso, e obter a

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Cooperação do trabalhador, que havia perdido sua automotivação, se
tornaram os objetivos principais e constantes do estudo do processo
produtivo.
A qualidade aparece no cenário dos estudos do trabalho e da organização
produtiva reconceituada como melhoria contínua e voltada para o mer-
cado saturado, constituindo com a Produtividade e a Cooperação os três
principais objetivos das teorias organizacionais.

Questões para reflexão

1. Por que o trabalho e as atividades produtivas, durante muitos anos, permane-


ceram como objetos meramente acessórios dos estudos e reflexões?
2. Como o racionalismo e o empirismo contribuem para o estudo do trabalho
produtivo?
3. Explique como o crescimento das cidades exerceu pressão de demanda e exi-
giu a atenção para com a Produtividade.
4. Explique por que a Cooperação se tornou um objetivo principal de estudo e
motivo de propostas de inúmeras teorias.
5. Quais as propostas mais conhecidas para obter a Cooperação dos trabalha-
dores?
6. Por que se diz que o taylorismo é um paradigma das teorias para o trabalho
produtivo organizado? Mas porque a filosofia de Taylor – prosperidade para
o empregado e o empregador – não se verificou ?

7. O que significava Qualidade para a gestão produtiva, até os anos 1970?


8. Explique a reconceituação da Qualidade e qual a sua função no presente.

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