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A contribuição da avaliação psicológica para o diagnóstico diferencial

Almeida, S.2, Zaragoza, P.2 & Pires, P. 1


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Unidade de Pedopsiquiatria, Hospital Garcia de Orta, EPE - Pedopsiquiatra, Chefe de
equipa
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Unidade de Pedopsiquiatria, Hospital Garcia de Orta, EPE - Psicóloga clínica

A PHDA raramente isolada e apresenta-se frequentemente em co-morbilidade com


outras perturbações. É neste sentido, que no âmbito de uma consulta numa equipa
de saúde mental infantil, nos parece pertinente a realização de uma avaliação
psicológica aprofundada, constituída pela aplicação de provas psicométricas e
projectivas.
Serão apresentados dois casos clínicos, com o objectivo de ilustrar dois tipos de
funcionamento mental particularmente diferentes, pesar de apresentarem sintomas
muito semelhantes. Para tal, os autores analisam os resultados da WISC III, Figura
Complexa de Rey e Rorschach, de dois rapazes em idade escolar, que frequentam
ambos o ensino primário, e cujo motivo de consulta foi a agitação e instabilidade
motora.
A compreensão do funcionamento mental que se encontra subjacente ao sintoma de
instabilidade, permitiu-nos uma orientação mais adequada, assim como um plano
terapêutico mais eficaz.

O objectivo da nossa apresentação é definir a especificidade e o contributo da avaliação


psicológica para o diagnóstico diferencial de patologias específicas, como a Perturbação
de Hiperactividade e défice de atenção.
Desta forma, analisaremos as particularidades das provas cognitivas (WISC III), das
provas instrumentais (Bender) e das provas projectivas (CAT e Rorschach), aplicadas a
duas crianças observadas na Unidade de Pedopsiquiatria do HGO, Almada.
Assim, passaremos de seguida a apresentar os casos:
O Pedro tem 6 anos e frequenta o primeiro ano de escolaridade. Está em
acompanhamento no serviço desde 2005, por apresentar instabilidade, crise de raiva e
dificuldades na relação mãe-filho. É o segundo filho do casal, tendo a irmã 17 anos. Os
seus pais têm uma relação muito conflituosa, com manifestações de violência física e
verbal, na presença das crianças. O pai é alcoólico e o Pedro dorme com a mãe desde
sempre. A família não apresenta limites entre gerações e tem por hábito a observação de
filmes pornográficos na presença dos filhos. È uma família com uma grande disfunção,
que se encontra referenciada à CPCJ da área de residência. Durante o primeiro ano de
vida, o Pedro teve inúmeras infecções respiratórias, com necessidade de internamento
hospitalar, levando a mãe a referir angústia de morte importante. Durante estes

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primeiros anos de vida, os seus pais separaram-se e juntaram-se várias vezes. È descrito
como instável no contexto intra-familiar, com uma agressividade especialmente dirigida
à mãe. Há igualmente referência a comportamentos e linguagem sexualizados. Do ponto
de vista académico, as queixas centram-se à volta de dificuldades na realização das
tarefas escolares devido às dificuldades de atenção e concentração que apresenta.
O Pedro é um rapaz com um contacto excessivamente próximo, ansioso e não tem
amigos especiais. É verborreico e com uma linguagem ideo-fugidia.
Desde que frequenta a nossa unidade, tem 26 sessões de psicoterapia individual e 8 de
pedopsiquiatria e intervenção familiar, tendo iniciado farmacologia em Janeiro de 2008.
O segundo caso é o do Daniel que tem 7 anos e vem à consulta pela primeira vez em
Agosto de 2007 por motivos de instabilidade motora e dificuldades de concentração.
Frequentava à data da primeira consulta o ensino pré-escolar com grande intolerância á
frustração, e agressividade na relação com os pares à mínima contrariedade.
O Daniel é o único filho do casal e vive com os pais, a mãe tem 30 anos e está grávida
de um segundo rapaz, o pai tem 35 anos e é operário especializado em climatização.
O Daniel é descrito como uma criança agitada desde que nasceu, entre os dois meses e
os dois anos de idade foi entregue aos cuidados de uma ama pois a sua mãe trabalhava,
sendo de seguida integrado numa creche da zona com boa adaptação. A instabilidade
motora torna-se mais evidente no ensino pré-escolar devido às exigências da escola.
Em Abril de 2008, o Daniel queixa-se de uma dor no testículo e é operado de urgência
por lhe ter sido detectado um tumor no testículo. A partir dessa data, o
acompanhamento na nossa equipa é interrompido devido ao internamento no IPO e à
quimioterapia. O Daniel perde o cabelo mas o tratamento, com duração de seis meses, é
bem sucedido e ele fica fora de perigo. Em Setembro de 2008 regressa à escola e integra
o 1º ano de escolaridade.
Desde o início do acompanhamento na nossa Unidade, o Daniel teve 32 sessões de
psicoterapia individual, 13 sessões de pedopsiquiatria com intervenção familiar e a
introdução de psicofarmacologia desde Dezembro de 2008.

Os resultados da avaliação psicológica realizada a estes dois meninos realçam a sua


importância para o estabelecimento de um diagnóstico diferencial.

WISC-III: Do ponto de vista cognitivo, o quociente intelectual tem valores normativos


para as duas crianças (o Pedro com um QI de 83 e o Daniel com um QI de 105). Apesar

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dos resultados serem heterogéneos nas diferentes sub-escalas, é importante sublinhar


que nos dois casos, a sub-escala Informação obtém resultados muito baixos dando conta
de dificuldades do ponto de vista das aquisições escolares; e a sub-escala
Completamento de Gravuras obtém resultados muito elevados (nos dois casos), por um
lado por se tratar do primeiro sub-teste aplicado e por esse motivo beneficiar do esforço
máximo de concentração, e por outro lado a atenção à falha poderá ter activado uma
atitude hipervigilante. Ao analisar as diferenças dos dois sujeitos nas sub-escalas da
WISC, salientam-se os resultados do Pedro na sub-escala Disposição de Gravuras, que,
por serem muito baixos, dão conta de uma desorganização do pensamento.
Apesar das diferenças existentes nestes perfis, os dois rapazes apresentam resultados
muito heterogéneos, indicadores de uma desarmonia cognitiva. Considerando os sub-
testes mais sensíveis às capacidades de atenção: Símbolos, Código, Aritmética,
Memória de Dígitos segundo Kaufman, 1994, estes dois meninos apresentam uma
pontuação normal no SCAD. Logo, poderá concluir-se que a WISC-III não confirma o
diagnóstico de défice de atenção, sendo que a agitação e impulsividade parecem ser
mais importantes e remeter para outro quadro nosológico.

BENDER: Do ponto de vista do funcionamento instrumental: os dois sujeitos


apresentam resultados dentro da média correspondente à sua faixa etária.

RORSCHACH: Os protocolos que apresentámos diferenciam estes dois sujeitos e


integram-nos em organizações psicopatológicas distintas:
O Pedro apresenta uma organização pré-psicótica com uma perturbação a nível do
pensamento com invasão do processo primário, sublinhado pelos conteúdos F-, os
fragmentos e o IA muito elevado. As pulsões sexuais não se encontram integradas assim
como a agressividade que excede frequentemente os limites razoáveis. As relações
objectais são de tipo anaclítico, indicando uma falha da relação precoce e sempre
acompanhadas de mecanismos de defesa primários. Palacio-Espasa (1997) entende a
hiperactividade em crianças com estruturas pré-psicóticas como uma reacção a situações
de stress, como uma defesa maníaca para fazer face a angústias depressivas que
poderiam tornar-se mortais.
O Daniel apresenta uma organização neurótica que nos leva a uma leitura bem diferente
da sua sintomatologia. A sensibilidade ao negro e às lacunas no Rorschach (Dbl) dá
conta dos sentimentos depressivos desta criança, cuja excitação motora é uma forma de

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suportar a ausência da mãe tanto do ponto de vista psicológico como físico. Com efeito,
a mãe está mais centrada no seu próprio narcisismo em detrimento da construção da
identidade da criança. A instabilidade seria portanto uma resposta a uma angústia
permanente como um equivalente de uma defesa maníaca face a angústias depressivas.
Parece existir uma falha ao nível da simbolização, visível no TRI extratensivo que dá
conta de carências no plano interno. O aparecimento de um cancro num testículo em
plena fase edipiana reactiva os fantasmas de morte já existentes na ambivalência da mãe
em relação ao Daniel. Segundo Flavigny (1988), a dimensão da solicitação incestuosa
da mãe mascara uma rejeção da criança que se manifesta pelos fantasmas de morte.
Durante o tratamento no IPO, a mãe pára de trabalhar e transfere a sua agressividade e
angústia para o pai, distanciando-o da criança. Bleichmar (1999) refere que os pais
destas crianças revelam uma grande fragilidade no exercício da sua função separadora,
sendo frequentemente desvalorizados pela mãe. Assim, a rejeição inicial da mãe face
aos comportamentos agidos da criança, seguida do sentimento de castração imposto
pelo Édipo e agravado pelo aparecimento d o acontecimento traumático (cancro),
impedem o acesso ao narcisismo secundário no Daniel. A gravidez da mãe surge no fim
do tratamento e reactiva a angústia de rejeição do Daniel exacerbando a instabilidade
motora que se torna exuberante. No entanto, o acompanhamento em psicoterapia e o
deslocamento do investimento materno para o bebé em evolução, acaba por funcionar
paradoxalmente como elemento separador de forma a permitir que o Daniel se aproxime
do pai e aceda à posição depressiva.

Desta forma, esperamos ter mostrado a importância da avaliação psicológica na


compreensão do funcionamento mental subjacente a um mesmo diagnóstico estrutural.

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