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DELlMIT AÇAO DE SISTEMAS SOCIAIS

CHARLES REGINALO GIRDWOOO*

o modelo de concepção e análise de sistemas SOCIaiS que hoje predomina


110S campos da administração, da ciência política, da economia e da ciência so-
cial em geral é unidimensional, uma vez que reflete o paradigma moderno que
pressupõe o mercado como categoria primordial de ordenação das relações pes-
soais e sociais.
Como resultado, a teoria organizacional corrente é vista como unidimensional,
porque inteiramente alicerçada em critérios alocativos ditados pelo sistema de
mercado. Assim, os modelos alocativos predominantes apóiam-se numa concep-
ção muito circunscrita de recursos e de produção. Em tais modelos, recursos
e produção são vistos apenas como insumos e produtos de atividades de natu-
reza econômica. Em outras palavras, é o mercado que, em última análise, de-
termina o que deve ser considerado como recurso e como produção.
Nestes termos, não se consideram formalmente contribuintes da riqueza na-
cional os empreendimentos de indivíduos que, sem receberem salários, desem-
penham uma gama de atividades familiares, tais como cozinhar, limpar, costu-
rar, plantar verduras, cuidar de doentes, etc. Do mesmo modo, o cidadão que,
sem receber remuneração, participa de reuniões de associação de bairro, con-
juntos artísticos, reuniões da igreja, encontros educacionais, etc., não é compu-
tado como recurso.

" Ex-superintendente do Centro de Tecnologias Organizacionais da Funcep e consultor de


organização. (Endereço do autor: Praia de Botafogo, 96/1806 - 22.250 Rio de Janeiro, RJ.)
" Este artigo é uma síntese de diversos trabalhos sobre o tema da delimitação de sistemas
sociais, de autoria de Alberto Guerreiro Ramos e de outros estudiosos; especificamente
Guerreiro Ramos, Alberto. Theory of social systems delimitation: a preliminary statement.
Administration and Society, Beverly Hills, Sage Publications, 8(2):249-72, Aug. 1976;
- - o The new science of organization, a reconceptualization of the wealth of nations.
Toronto, University of Toronto Press, 1981. cap. 7, Theory of social systems delimitation:
a paradigmatic statement. capo 9, Paraeconomy, paradigm and multicentric allocative model.
capo 10, Overview and prospects of the new science; Najjar, G. K. Social systems deli-
mitation and allocative mechanisms: perspectives on budgeting for development. Admi-
nistration and Society, cit., 9(4):495-517, Feb. 1978; Dennis, C. M. Mutually supportive
inter-action or delimitation: alternative theory for social systems designo Administration
and Society, cit., 10(3):371-76. Nov. 1978; ---o Economic efliciency and equa/ity:
achieving equity through market delimitation. Monografia de circulação restrita na Uni-
versity of Southern California, 1979.

R. Adl1l. públ., Rio de Janeiro, 17(1):84-94, jan./mar. 1983


Em países periféricos, convencionou-se que uma grande parte da população que
trabalha como "camponês" não seja considerada produtiva, na medida em
que o produto de suas atividades não é comercializado. Daí a noção de "eco-
nomia dual", significando a existência de populações vivendo em áreas não in-
cluídas no mercado. Em outras palavras, o fenômeno da "economia dual" é
entendido como a coexistência, numa nação, de contextos rurais auto-sustentá-
veis - onde as pessoas produzem para si uma grande parte dos bens e servi-
ços que consomem diretamente - e de sistemas orientados para o lucro -
onde as pessoas são essencialmente detentoras de empregos de onde extraem
seus salários e a capacidade de adquirir os bens e serviços de que necessitam.
Tradicionalmente, tal fenômeno é visto não só como típico de países perifé-
ricos, mas também associado a um estado de subdesenvolvimento ou de atraso.
Esta visão decorre do fato de que as abordagens tradicionais à dinâmica do de-
senvolvimento inferem que o aumento no volume de atividades de troca e a
expansão espacial do mercado são essenciais ao desenvolvimento. Tais aborda-
gens tradicionais encerram, naturalmente, uma visão distorcida, uma vez que
conferem ao mercado o papel de referencial básico para o processo de alo-
cação de recursos.
A sociedade centrada no mercado e o caráter social que ela engendra são even-
tos recentes na história. Foram formados na esteira de uma revolução indus-
trial consumada em alguns poucos países cêntricos ocidentais. Essa transforma-
ção não pode ser considerada como o único caminho que tais países poderiam
ter tomado nos últimos 300 anos. Vítima da interpretação ilusória deste fato
consumado como sendo o resultado de um desenrolar necessário da história, a
ciência social convencional postula que a sociedade centrada no mercado, e o
caráter social disso resultante são marcos de referência, ou parâmetros, segundo
os quais se deva avaliar a história passada e presente da humanidade.
Assim, apesar de suas reiteradas alegações de isenção de valor, a ciência so-
cial contemporânea é de fato normativa, na medida em que, na teoria e na prá-
tica, nada mais é do que um conjunto de critérios de análise e concepção de
sistemas sociais induzidos a partir de uma configuração histórica específica.
Como conseqüência, a economia convencional, sendo, como é, uma sistematiza-
ção dos padrões de raciocínio inerentes ao sistema de mercado, infere que os cri-
térios de avaliação do bem-estar social são os mesmos para todos os países. Dentro
desta linha de raciocínio, vemos autoridades governamentais de nações periféricas
formularem e implementarem políticas de alocação que são expressões da sín-
drome de privação relativa e do efeito-demonstração. A lógica dessas autorida-
des, assim como a lógica do setor intermediário de tais nações periféricas, cons-
tituem, pois, fator significante de um sistema alocativo pervertido.
:É nesse sentido que a economia convencional constitui o componente ideoló-
gico da revolução industrial clássica. Na melhor das hipóteses, serve como um
instrumento conceitual para explicar os processos característicos da sociedade
centrada no mercado. Não oferece, contudo, o referencial conceitual para se
compreender e lidar com os problemas básicos de alocação, comuns a todas as
sociedades. Embora incorpore contribuições de pensadores oriundos da França
e de outros países europeus, em seus termos dominantes representa, essencial-
mente, uma ideologia anglo-saxônia. Desde o seu início estava fadada a tornar-
se a linha principal das políticas cognitivas, através das quais as nações indus-
triais hegemônicas do ocidente induziriam o resto do mundo a emular sua
propensão expansiva.

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o modelo de alocação centrado no mercado, baseado em relações de troca,
<: o cálculo que ele implica, há muito dominam o clima intelectual das ciências
sociais, principalmente da economia, que tem demonstrado um interesse sistemá-
tico na alocação de recursos.
Ultimamente, entretanto, começou-se a dispensar atenção a outra importante
linha de alocação, onde o elemento de troca perde sua importância central.
Esta linha de alocação é essencialmente unidirecional, no sentido de que impli-
ca uma transferência de recursos de um ator para outro sem a necessária
provisão, ou condição, de um retorno imediato, ou de um fluxo equivalente,
do receptor para o originador da transação. As transferências de recursos deste
tipo, transferências unidirecionais, podem ser mais bem descritas, ou caracteriza-
das, como concessões (grantsl ou doações (gifts), cujo objetivo básico é o de pro-
mover um sentido de participação ou associação entre aquele que dá e aquele
que recebe, salientando o fato de que ambos pertencem ao mesmo contexto
~ocial e institucional. Embora as transferências unilaterais possam diferir, sob
\ários aspectos, do modelo de troca característico da sociedade centrada no mer-
cado, basta citar que tais transferências unilaterais pretendem, muitas vezes,
compensar alguns dos desequilíbrios criados pela economia de troca centrada
no mercado. Quer assumam a forma de doações privadas ou públicas, servem o
propósito de promover uma redistribuição de recursos com base numa lógica
que transcende a mera eficiência, sendo canalizadas através de mecanismos ex-
tramercado e usadas não só para mudar o quadro dos diferenciais de recursos,
mas também para criar possibilidades institucionais que não têm lugar num con-
texto de mercado.
É importante ter em mente que as transferências uni e bilaterais não são mu-
tuamente excludentes, uma vez que o mercado continuará, obviamente, a ser
indispensável para a produção e prestação de muitos tipos de bens e serviços.
Assim, ambas são necessárias a uma abordagem mais racional de alocação de
recursos, que pode contemplar não só considerações de eficiência, economia e
condições ótimas, mas também eqüidade e estabilidade sistêmica. As transferên-
cias unilaterais podem servir como meio de assegurar que aquelas áreas não-
enquadradas nos parâmetros do sistema de mercado possam, não obstante, ser
beneficiadas, e de proteger a sociedade contra o consumismo desregrado, a de-
terioração constante da qualidade de vida, e a perda de sentido de identidade
histórica e de propósito numa comunidade.
Por isso, doações devem refletir, principalmente, prioridades alocativas des-
tinadas a lidar com patologias sociais criadas pela operação irrestrita do merca-
do e ajudar a prover o recurso básico para instituições sociais alternativas, onde
os indivíduos possam engajar-se em atividades que transcendam as limitações
funcionais necessariamente prevalentes no mercado.
As sociedades industriais avançadas enfrentam problemas graves, muitos dos
quais surgem em conseqüência dessa superexpansão do sistema de mercado. Além
dos males econômicos mais prontamente reconhecíveis, como inflação, recessão,
estagflação, desemprego, etc., existem ainda problemas ambientais, tais como
poluição, decadência urbana e outras facetas da síndrome da deterioração da
qualidade de vida. Há ainda outros problemas mais sutis, criados pela tendên-
cia do setor de trocas do mercado de levar, em função de sua predominância,
a uma orientação unidimensional no desenho de macro e microssistemas sociais.
Esta unidimensionalização de padrões de vida em sociedades industriais avan-
çadas significa que o mercado e sua operacionalidade padronizada penetram,

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ou se fazem presentes, em praticamente todas as facetas da vida e impercepti-
velmente invadem o espaço psicológico interior do indivíduo, criando nele uma
constante sensação de privação relativa, induzindo-o a centrar sua vida em
torno de hábitos de consumo em constante mutação.
Este estado de coisas é que desperta um interesse na delimitação de siste-
mas sociais como um esforço no sentido de alertar a sociedade para o esta-
. belecimento de limites e fronteiras dentro dos quais é permitido ao sistema de
t rocas do mercado operar de forma irrestrita. Quando, mediante uma perspec-
tiva delimitante, se reconheçam os limites e a natureza do componente da so-
liedade caracterizado pelo sistema de trocas centrado no mercado, esforços po-
derão ser enviados no sentido de conceber microssistemas alternativos onde os
seres humanos objetivem interesses estranhos à configuração do mercado.
Nesse sentido propomos um paradigma alternativo de delimitação de sistemas
50ciais, o qual denominaremos de paradigma paraeconômico. O termo "paraeco-
nômico" é empregado para qualificar uma abordagem à análise e concepção de
5 i stemas sociais na qual o escopo das economias na sociedade como um todo é
delimitado, ao invés de constituir a única força social e o único critério. Uma
paraeconomia faz-se necessária, sob a forma de uma teoria política substantiva
de alocação de recursos e de transações ótimas entre os encIaves sociais, transa-
ções estas necessárias a uma melhoria qualitativa da vida social dos cidadãos.
Um postulado sistemático de tal teoria não foi ainda desenvolvido, embora já
existam contribuições fragmentárias para sua elaboração. No discurso e na ação
já existem muitos paraeconomistas, isto é, indivíduos que vêm tentando im-
plementar cenários que representem alternativas a instituições centradas no mer-
cado. O paradigma para econômico é uma proposta de modelo voltada para a
análise e concepção de sistemas sociais que considera o mercado como um entre
vários encIaves existentes na sociedade, cada qual possuindo suas próprias carac-
terísticas e exigências. Ao contrário da visão corrente, não confina a teoria orga-
nizacional como sendo inteiramente inserida dentro do critério alocativo do sis-
tema de mercado.
Ponto fundamental do nosso modelo alternativo é a noção de delimitação or-
ganizacional. Esta noção implica: a) uma visão da sociedade como sendo cons-
tituída de uma variedade de encIaves nos quais o homem ocupa-se de ações subs-
tántivas de tipos nitidamente distintos, porém verdadeiramente integrativos; b)
um sistema de govemança social capaz de formular e implementar políticas (po-
licies) e decisões alocativas necessárias às transações ótimas entre esses encIa-
ves sociais. A teoria de delimitação de sistemas sociais não ignora a legitimidade
do mercado mas, ao contrário, categoriza outros legítimos encIaves sociais alter-
nativos. A teoria de delimitação social torna-se necessária a fim de superar o
pensamento unidimensional prevalecente na análise e concepção de sistemas
sociais.
Assim, no paradigma paraeconômico, a economia deve ser apenas uma entre
uma variedade de contextos sociais. Não apenas a economia mas toda uma
gama de contextos, cada qual desempenhando seus próprios requisitos funcio-
nais, tornam-se necessários ao bem-estar social e individual. Somente quando o
indivíduo é, acidentalmente, um maximizador de utilidade no contexto de mer-
cado, poderá ele lograr sua total realização pessoal. Contudo, para que a rea-
lização pessoal possa ocorrer, na acepção conferida a esse termo por Guer-
1·eiro Ramos, o indivíduo deve libertar-se da dependência total do mercado em
sua qualidade de economizador, ou seja, de um sistema comportamental que sim-

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plesmente reage a preferências induzidas e que funciona de modo instrumental-
mente racional e lograr algum grau de auto-suficiência como um confrontador,
i~to é, um ator exercendo uma larga gama de escolhas pessoais e funcionando
de modo substantivamente racional.
Delimitação implica, portanto, uma formulação alternativa de três pressupos·
tos principais da nossa sociedade atual. A primeira alternativa é a de que a na-
tureza do homem compreende a busca de uma vida de qualidade e a consciên-
cia de que o alcance dessa qualidade requer um ambiente social alicerçado na
diversidade e não na uniformidade de contextos sociais. A segunda é a de que
há muitos tipos de motivação. O adequado gerenciamento do indivíduo e da
sociedade é função da seleção e aplicação da forma mais apropriada de moti-
vação, segundo a variedade de contextos sociais em que nos movemos, e não
~l redução de todo o problema de motivação a uma única dimensão da natureza
humana. A terceira alternativa é a de que o bem-estar do indivíduo e da socie-
dade não é função da extensão da empresa produtiva - neste caso, o mercado.
Estas mudanças, vale ressaltar, não são tão radicais quanto parecem; simples-
mente representam uma mudança de ênfase em relação às noções já inerentes,
mas ainda ocultas, no nosso entendimento de igualdade. Paralelamente a essas
mudanças nos pressupostos, há que haver mudanças também na posição rela-
tiva conferida pela sociedade ao subsistema produtivo e ao papel do governo
face ao mercado.
Neste sentido é que a delimitação implica também delimitação do mercado.
Como pode isso ocorrer? A delimitação do mercado pode ocorrer mediante a
remoção de alguns processos produtivos, tais como a troca baseada em preço do
sistema de mercado. Isso compreende, na verdade, uma reversão do processo de
conversão de valores de uso em valores de troca. Esta reversão deve também
implicar o desenvolvimento de maiores habilidades de auto dependência na nossa
sociedade, assim como, igualmente, o desenvolvimento de uma ética de suficiência
como reforço à autodependência. No momento, exemplos dessa reversão, sem
dúvida incipientes, já existem, muito embora não sejam ainda alternativas viáveis
para a grande maioria das pessoas que são dependentes da sua participação no
processo produtivo do mercado (basicamente como assalariados).
Obviamente, o sucesso na delimitação do mercado depende de alguma dispo-
nibilidade de capital - isto é, de meios de produção - como forma de atender
algumas satisfações, independente de participação no mercado. Uma abordagem
à delimitação do mercado exigiria, teoricamente, para melhorar a posição relativa
de um mesmo número de pessoas carentes numa dada população, cerca de metade
do volume de capital redistributivo que seria necessário, pelos meios tradicionais
de redistribuição. Supõe-se que a razão para isso seja o fato de que o volume de
capital necessário para elevar o nível de autodependência e auto-satisfação de um
grupo de pessoas, através da delimitação, seria menor do que o volume neces-
sário para tomar o mesmo grupo de pessoas suficientemente competitivo no sis-
tema de mercado, de modo a atingir grau semelhante de satisfação e/ou de bene-
fícios materiais.
Uma abordagem delimitativa deveria resultar num aumento da eficiência eco-
nômica na medida em que: a) uma gama maior de possibilidades de escolha se
apresenta disponível para a realização do bem-estar, isto é, a determinação do
bem-estar não depende do volume de comodidades/serviços produzidos para
trocas; b) os indivíduos que se encontram dependentes de atividades tradicionais

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de produção e atingiram seu nível de incompetência em tais atividades e/ou estão
insatisfeitos com sua vida de trabalho, teriam outras alternativas produtivas.
Qual seria o papel do governo numa estratégia de delimitação? Sem dúvida as
finanças públicas, como no passado e no presente, devem desempenhar um papel
operacional chave em qualquer estratégia alternativa de delimitação social. Assim,
o governo desempenharia todos os seus papéis tradicionais relacionados com as
.' finanças públicas, acrescidos de dois novos papéis. O primeiro desses novos papéis
seria o de atuar como um facilitador de "sistema de aprendizagem" destinado a
acumular ou difundir informações relativas às técnicas e tecnologias voltadas para
o aumento da autodependência. O segundo seria o de utilizar os mecanismos de
concessões (grants) de modo a facilitar a implementação dessas mesmas técnicas
e tecnologias. Em suma, mediante tais atividades o mercado, como agora o conhe-
cemos, seria menos extenso, porém mais eficiente em termos de produção dentro
de sua esfera de influência. Daí resultaria maior eficiência econômica societal em
termos de maximização do bem-estar, consistente com maximização da produção
baseada no mercado e externa ao mercado. Sem dúvida, certos pressupostos de
alocação, distribuição e estabilização, que até agora têm orientado o desempenho
das funções das finanças públicas, devem também ser revistos segundo uma estra-
tégia delimitativa. De acordo com tal conjunto de pressupostos revisados, a pala-
vra "pública", em finanças públicas, assume novo sentido. Deixa de associar
a idéia de "pública" como um apêndice do mercado. Ao contrário, pública reves-
te-se de uma nova e distinta possibilidade dimensional.
Segundo este conjunto de pressupostos, o desempenho das funções de finanças
públicas seria mais claramente a manifestação de decisões políticas, enquanto
que agora considera-se expediente, em termos de uma estratégia econômica efi-
ciente de administração de conflitos ocultar este aspecto sob uma fachada de
teoria econômica "apolítica". O paradigma paraeconômico, ao contrário dos mo-
delos centrados no mercado, oferece um arcabouço sistemático para o desenvol-
vimento de uma linha multidimensional e delimitativa ao processo de elaboração
de políticas. Este paradigma, com seu enfoque na alocação de recursos e mão-de-
obra nos sistemas microssociais postula que: a) o mercado deve ser politicamente
regulado e delimitado como um entre outros enclaves que constituem o tecido
social total. Nestes termos a delimitação de sistemas sociais conduz a estratégias
de alocação de recursos e mão-de-obra, a nível nacional, que refletem uma inte-
gração funcional de transferências uni e bilaterais; b) a natureza do homem se
realiza através de várias atividades, entre as quais aquelas exigidas por sua condi-
ção acidental de assalariado; c) o desenvolvimento de organizações e instituições
eficazes, é, em geral, avaliado do ponto de vista de sua contribuição direta ou
indireta ao fortalecimento do senso de comunidade do indivíduo.
Quais são, porém, esses enclaves, ou contextos, que na visão de Guerreiro
Ramos constituem o tecido social? As categorias principais de enclaves são iden-
tificadas como:
Anomia - conceitualizada como uma situação limitada na qual a vida pessoal
e social se anula. O indivíduo anômico tem que ser assistido, protegido ou con-
trolado por instituições tais como asilos, reformatórios, hospitais e prisões. Uma
das razões por que tais instituições geralmente agravam a condição anômica das
pessoas sob os seus cuidados deve-se a que seu desenho e seu gerenciamento não
Sã0 sistematicamente compreendidos como pertinentes a um enclave social espe-
cífico.

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Turba - refere-se a uma coletividade destituída de normas, composta de indi-
víduos que carecem de qualquer sentido de ordem social. Uma sociedade pode,
eventualmente, tomar-se propensa a ser abalada por turbas, quando perde repre-
sentatividade e significado para os seus membros.
Isolado - enquanto o indivíduo anômico e os membros de uma turba não são
regidos por normas, o ator isolado, conforme representado no paradigma, en-
contra-se supercomprometido com uma norma exclusivamente sua. Por uma varie-
dade de razões, o isolado vê o mundo social em geral como inadministrável e sem
esperanças. Tais indivíduos podem eventualmente ser considerados casos clínicos
de paranóia embora não necessariamente o sejam. Na verdade, boa parcela deles
é constituída por assalariados não-comprometidos e cidadãos que sistematicamente
ocultam dos outros suas convicções pessoais mais profundas.
Economia - em termos gerais, um contexto organizacional altamente prescritivo
estabelecido com o fito de produzir bens e/ou prestar serviços e onde o mercado
tende a tomar-se uma categoria abrangente de ordenação da vida individual e
social. Uma teoria política e administrativa centrada no mercado, característica
da que ora prevalece e é amplamente ensinada, considera que o critério de desem-
penho eficaz na troca entre indivíduos e economias epitomiza a natureza humana.
Isonomia - um contexto onde os seus membros se relacionam como pares que
interagem sob um mínimo de restrições operacionais prescritivas. Característico
também de uma isonomia, em contraste com uma economia, é o fato de que as
atividades desempenhadas em tal contexto revestem-se de valor intrínseco, uma
VeZ que conferem aos indivíduos um sentido de missão e realização. Os processos
decisórios numa isonomia são verdadeiramente participa ti vos e, portanto, não
admitem distinção entre governantes e governados. Cada vez mais a isonomia
vem-se tornando uma parte do mundo social atual. Talvez não se possa encontrar
uma materialização total do conceito que, afinal, serve apenas a um propósito
heurístico. Contudo, encontramos exemplos de esforços tentativos de contextos
isonômicos em funcionamento nas associações de pais e mestres, nas associações
de bairro, nas empresas de propriedade dos trabalhadores, em algumas associa-
ções artísticas e religiosas, assim como em muitos outros arranjos recentemente
constituídos no qual as pessoas estão, em última análise, em busca de estilos de
vida que transcendam os padrões normativos dominantes da sociedade maior.
Fenonomia - um contexto social, esporádico ou mais ou menos estável, iniciado
ou conduzido por um indivíduo ou um pequeno grupo, onde prevalece o máximo
de escolha pessoal e um mínimo de prescrições operacionais. Trata-se de um
contexto para pessoas extremamente criativas que trabalham em projetos pessoais
que envolvem habilidades intelectuais ou artísticas. Exemplos de fenonomia
podem ser encontrados em artesanatos familiares, artesãos autônomos, assim
como nas "oficinas" de indivíduos dos mais diversos talentos. Embora geral-
mente resistam à penetração do ethos do mercado, seus trabalhos podem, even-
tualmente, ser colocados no mercado, se bem que critérios de natureza econômica
sejam ocasionais à motivação dos seus membros. Vale ressaltar que essas categorias
constituem tipos ideais na acepção weberiana e que qualquer enclave social
concreto será, provavelmente, um sistema misto.
Porque resistem ao mercado e procuram contestá-lo, isonomias, fenonomias
e tipos semelhantes de enclaves necessitam, muitas vezes, de uma base de recur-
sos independentes do mercado para sobreviverem. Constitui esta uma área onde
as transferências unilaterais revestem-se da maior importância.

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Tais transferências podem ser conscientemente empregadas como meio de
incentivar e promover o tipo de enclave social confrontador representado pela
isonomia e fenonomia, e auxiliar tais enclaves, mediante o financiamento a fundo
perdido de recursos extramercado, a se beneficiar das oportunidades de logística,
processo e promoção oferecidos pelo mercado sem, contudo, serem por ele total-
mente absorvidos. As transferências unilaterais podem, em outras palavras, ser
usadas para proporcionar microcosmos sociais extramercado, com a base de recur-
sos de que necessitam para preservar sua autonomia face ao setor de troca da
sociedade, e forçar o mercado a atender às necessidades desses microcosmos
sociais, nos termos destes. Não se trata, assim, de incompatibilidade, o relaciona-
mento entre enclaves sociais confrontadores, tais como isonomias e fenonomias,
e o mercado, mas, ao contrário, de definir claramente fronteiras e atividades.
A possibilidade de formulação de políticas que garantam o emprego de trans-
ferências unilaterais como meio de incentivar o desenvolvimento de enclaves do
tipo representado por isonomias e fenonomias parece muito promissora em países
cêntricos, graças à sofisticação logística, ao grau de inovação institucional, e à
crescente preocupação com a qualidade de vida nesses países.
Em países periféricos, contudo, a questão de contornar o mercado e delimi-
tá-lo através da criação de outros tipos de enclaves sociais torna-se muito mais
crítica e urgente por duas razões principais. A primeira diz respeito à concepção
que têm de modernidade, enquanto que a segunda está relacionada ao momento
histórico em que se tornaram conscientes do seu subdesenvolvimento e deram
início à tentativa de alterar sua posição na ordem internacional.
Quanto ao conceito dominante de modernidade nos países periféricos, há que
se lembrar que esses países vêm, há anos, tentando "alcançar" as sociedades
avançadas mediante a emulação não crítica e indistinta das instituições e padrões
ocidentais. Dentro deste quadro, o desenvolvimento era visto, em geral, como
corporificado na expansão ilimitada do setor de trocas do mercado como meio
de superar o problema de "dualismo". Uma perspectiva delimitativa sugere que
a própria noção de dualismo constitui um erro conceitual e que a tarefa urgente
com a qual se deparam os países periféricos não é a de como expandir o sistema
de mercado, mas, no contrário, como estruturar o mercado de modo que possa
servir às necessidades de logística e de processo de toda a sociedade sem, con-
tudo, impor a todos sua lógica e suas limitações.
Com a crise de modernidade que ora domina a literatura, assim como o pres-
LÍgio de "grupos de referência" seriamente abalado nos países cêntricos, torna-se
importante que os países periféricos se conscientizem da importância do seu
chamado setor tradicional como representando um ambiente favorável ao desen-
volvimento de muitos enclaves do tipo isonomia e fenonomia. Tais enclaves pode-
rão, mediante o recebimento de concessões (grants) , utilizar as oportunidades
de mercado oferecidas pelo setor de trocas da economia, preservando ao mesmo
tempo sua autonomia, como contextos de tipos de associação humana simbolica-
mente enriquecedores. A importância do finaciamento, através de transferências
unilaterais e de inovações orçamentárias, como garantia de sobrevivência de tais
enclaves sociais, é nitidamente patente.
Deve tornar-se cada vez mais evidente para as sociedades periféricas o fato de
que, se desejam levar a bom termo os seus esforços de desenvolvimento, terão
que redefinir drasticamente seu conceito de desenvolvimento. Isto deveria impli-
car uma determinação de traçar seu próprio rumo, tratando ao mesmo tempo de
evitar muitos dos problemas econômicos e sociais que têm acompanhado e conti-

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nuam acompanhanao, a excessiva industrialização e o desenvolvimento irrestrito
do mercado. Vale ressaltar, mais uma vez, que tais problemas incluem desemprego
em massa, deslocamento demográfico, decadência urbana e, como conseqüência,
instabilidade política e convulsões sociais.
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, os países periféricos de
inclinações socialistas não se encontram menos suscetíveis aos problemas acima,
não obtsante sua prática difundida de utilizar mecanismos de alocação estranhos
80 mercado. Tal se dá, basicamente, pelo fato de que a mera existência de con-
cessões (grants) é apenas condição necessária, mas não suficiente, para uma
abordagem delimitativa, uma vez que muito depende dos propósitos das transfe-
rências unilaterais.
Com efeito, as ideologias socialistas em países periféricos possuem um forte
ranço modernístico e foram usadas para justificar a adesão a uma visão unidimen-
sional de elaboração de sistemas sociais. Assim, prioridades de alocação de
recursos refletem pouco interesse em facilitar o surgimento de enclaves sociais
diversificados mas, ao contrário, salientam a necessidade de "modernizar" a infra-
estrutura econômica através da expansão industrial e de empreendimentos coleti-
vizados. Nestes termos, o cerne da questão que toma relevante a abordagem
delimitativa às aflições correntes dos países periféricos não se resume no tipo
de linha alocativa que será seguida, mas em saber se entidades voltadas para a
eficiência econômica terão permissão para incorporar outras modalidades de
configurações sociais através das quais os indivíduos desenvolvam um sentido
de comunidade.
Assim, como um modelo que postula uma rede especializada de microcosmos
sociais que se apóiam mutuamente, a delimitação de sistemas sociais transcende a
dicotomia convencional entre rumos de desenvolvimento capitalista e socialista e
oferece aos países periféricos uma alternativa à situação de estarem sempre ofe-
gantes na ânsia de alcançar a parte desenvolvida do mundo. Se, contudo, esta
possibilidade vier a materializar-se, uma base de recursos torna-se condição
necessária à sobrevivência de enclaves intramercado. Isto implicaria na disponibi-
lidade de transferências unilaterais sob a forma de alocações orçamentárias públi-
cas utilizadas com o propósito de implementar um esquema de políticas de deli-
mitação.
À i!:uisa de reflexões finais, porém não menos importantes, vale salientar como
fundamental para a teoria de delimitação de Guerreiro Ramos, na qual a socie-
dade consiste de uma variedade de enc1aves, o fato de que o homem persegue
atividades substantivas e organiza os componentes da realidade - espaço, tempo,
dimensão, etc. - de modos diferentes. Assim, a unidade primária que dá sentido
às coisas é o indivíduo. O homem é singular no sentido de que somente ele possui
a capacidade de exercer racionalidade substantiva e, portanto, de descobrir, e
não criar, valores. As instituições sociais são estabelecidas como expressões de
valor, não a sua fonte. Consistente com este conceito mais parentético do que
sociomórfico do homem, Guerreiro Ramos vê a sociedade como sendo estrutu-
rada pelo homem, e não o homem eSlrulurado pela sociedade.
Finalmente, não podemos esquecer que o mundo industrial no qual vivemos
também se iniciou como uma possibilidade objetiva. Foi moldado através de um
processo acumulativo de inovação institucional deliberadamente empreendido
por muitos indivíduos. Talvez nos encontremos agora num semelhante estágio
incipiente de institucionalização, do qual uma alternativa para a sociedade cen-
trada no mercado - a sociedade multicêntrica ou reticular - possa emergir.

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Summary

The model of conception and analysis of social systems is uni-dimensional:


thus, the organizacional theory is also uni-dimensional, because what are resour-
ces and what is production is decided by the market.
In fact, modem societies face serious problems caused by the super-expansion
of the market. According to the author, this fact arises the interest on the delimi-
. tation of social systems as un effort to establish limits and frontiers, where the
change system of the market can operate.
The author concludes that the delimitation of social systems transcends the
conventional dichotomy between capitalist and socialist developmental orien-
tations.
FinaIly, the author suggests that perhaps an altemative can emerge for the
society centered in the market from the incipient stage of institutionalization we
are facing now.

Anote aí os
enderecos das I

livrarias da
Fundacão Getulio Vargas
I

No Rio, Praia de Botafogo, 188


Em São Paulo, Av. Nove de Julho, 2029;
Em Brasília, CLS 104. Bloco A. Laia 37

Sistemas sociais 93

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