Você está na página 1de 24

IMPACTOS DA COVID-19 NOS CONTRATOS IMOBILIÁRIOS

• ARTHUR KAISER BARBOZA


• 21/02/2022
Impactos da COVID-19 nos contratos imobiliários
(nucleodoconhecimento.com.br)

CONTEÚDO
• RESUMO

• 1. INTRODUÇÃO

• 2. A PANDEMIA DE COVID-19 É UM CASO FORTUITO?

• 3. INSTITUTOS DE DIREITO CIVIL PASSÍVEIS DE UTILIZAÇÃO NA


PANDEMIA

• 3.1 TEORIA DA IMPREVISÃO

• 3.2 TEORIA DA FRUSTRAÇÃO DO FIM DO CONTRATO

• 3.3 UTILIZAÇÃO DE PRINCÍPIO DA BOA FÉ

• 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

• REFERÊNCIAS

• APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

ARTIGO ORIGINAL

BARBOZA, Arthur Kaiser [1]

BARBOZA, Arthur Kaiser. Impactos da COVID-19 nos contratos


imobiliários. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed.
02, Vol. 04, pp. 189-211. Fevereiro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de
acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/contratos-imobiliarios

RESUMO
A pandemia de COVID-19 tem consequências graves em todas as áreas da vida
social. O presente artigo apresenta uma análise do ponto de vista do Direito das
obrigações e dos contratos, diante de um acontecimento inesperado e de grande
repercussão, que suscita imediatamente as ideias de caso fortuito, de alteração súbita
das circunstâncias e as correspondentes figuras jurídicas. A questão norteadora do
tema busca responder à seguinte pergunta: A pandemia de COVID-19 ou os efeitos
das medidas associadas a evitar sua expansão, encaixam-se nos requisitos do caso
fortuito como exoneração da responsabilidade por descumprimento das obrigações
contratuais? Este questionamento concentrou a discussão com respeito à teoria da
imprevisão, do princípio da boa-fé contratual e da frustração do fim do contrato. Foram
objetivos deste artigo verificar se a pandemia ou os efeitos das medidas efetuadas
com o intuito de evitar sua expansão, encaixam nos requisitos do caso fortuito como
exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações contratuais e,
discutir a respeito da utilização da teoria da imprevisão, do princípio de boa-fé
contratual e da teoria da frustração do fim do contrato. A metodologia utilizada foi a
revisão da literatura de publicações entre os anos de 2012 e 2020. Ao final do estudo
conclui-se que a pandemia de COVID-19 em si, não é passível de ser definida como
um caso fortuito, mas que a ação do Poder Público como resposta a esta pandemia,
pode ser considerada caso fortuito. Em seguida, trata de três teorias que podem ser
aplicadas no Direito Civil Brasileiro: teoria da imprevisão, teoria da frustração do fim
do contrato e a utilização do princípio da boa-fé. Estas, possibilitam interpretar que o
devedor teve sua capacidade de adimplir comprometida drasticamente pelos efeitos
da pandemia COVID-19, possibilitando a revisão ou resolução, o que obriga às partes
a um dever de renegociação, derivado “da função integrativa da boa-fé”. Estas, em si,
configuram uma solução menos gravosa, deixando-se claro que não se pode adotar
a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos de consumo e que,
qualquer caminho para que se encontre uma solução negocial, deve passar pela
análise do caso concreto.

Palavras-chave: COVID-19, Caso Fortuito, Imprevisão, Frustração do fim do contrato,


Boa-fé.

1. INTRODUÇÃO
A rápida escalada da crise de saúde pública gerada pela pandemia de COVID-19
derivou em uma situação sem precedentes, que propõe inumeráveis desafios jurídicos
tanto a nível internacional como nacional ao ramo do Direito imobiliário.

Desde que a Organização Mundial da Saúde declarou em 30 de janeiro de 2020 que


a situação supunha uma emergência de saúde pública de importância internacional,
depois confirmada como pandemia e as diversas medidas adotadas pelo Poder
Público, que adotou medidas restritivas da liberdade de movimentos de seus
cidadãos, que limitaram ou restringiram a entrada de viajantes procedentes de países
com surtos de COVID-19 e que aprovaram diversos tipos de disposições, com a dupla
finalidade de proteger a saúde dos cidadãos e mitigar, no possível, as consequências
econômicas derivadas desta situação, a gravidade da crise foi crescendo.

É indubitável que o impacto tanto econômico como social da expansão da epidemia e


das medidas adotadas para controlá-la é de enorme magnitude e tem especial
incidência em distintos setores produtivos relevantes. No Direito imobiliário não foi
diferente, causando diversas controvérsias enumeradas por Margoto (2020):

[…] (1) nos contratos imobiliários: (a) nulidades, (b) juros, (c) correção monetária, (d)
inexecução contratual e suas consequências, (e) revisão e (f) resolução contratual; (2)
nas locação não residenciais: (a) valor do aluguel, (b) inadimplemento, (c) multa pelo
pagamento em atraso, (d) devolução antecipada do imóvel pelo locatário, (e) locação
em shopping centers e (f) contrato built-to-suit (construído para servir); (3) na compra
e venda de imóveis: (a) prazos para pagamento, (b) inadimplemento, (c) prazo para
purgação da mora, (d) multa pelo pagamento em atraso, (e) atraso na entrega do
imóvel e (f) desistência da compra; (4) nos condomínios: (a) direito de propriedade,
(b) limitação ao uso de áreas comuns, (c) limitação de circulação de pessoas, (d)
cancelamento de assembleias ordinárias e extraordinárias e (e) suspensão de
autorização para obra (MARGOTO, 2020, p. 3).

Encontramo-nos em uma etapa em que os efeitos da pandemia ultrapassaram o


âmbito exclusivo da saúde, trasladando-se ao plano jurídico e econômico provocado
pelo cessamento da atividade não essencial e o confinamento domiciliar no contexto
de uma quarentena precedida pela declaratória de estado de exceção.

A preocupação pela segurança das transações, geralmente respaldadas


contratualmente sobreveio frente à incerteza. Os últimos meses foram intensificados
os debates sobre a figura aplicável frente ao incumprimento das obrigações
contratuais, especialmente as mais cotidianas como o aluguel de imóveis para
moradia ou com fins comerciais.
O presente artigo apresenta uma análise do ponto de vista do Direito das obrigações
e dos contratos, diante de um acontecimento inesperado e de grande repercussão
como a pandemia de COVID-19, que suscita imediatamente as ideias de caso fortuito,
de alteração súbita das circunstâncias e as correspondentes figuras jurídicas.

Neste ponto, surgiu a questão norteadora: a pandemia de COVID-19 ou os efeitos das


medidas associadas a evitar sua expansão, encaixam-se nos requisitos do caso
fortuito como exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações
contratuais?

Este questionamento concentrou a discussão com respeito à teoria da imprevisão.


Somam-se à busca de racionalidade dos efeitos da pandemia outros critérios
derivados do princípio de boa-fé contratual, como a frustração do fim do contrato.

É importante ressaltar que não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos
paritários e para contratos de consumo. Os primeiros são regidos pelo Código Civil e
a legislação específica, sem amparo, em princípio, nas disposições do Código de
Consumidor, uma vez que é presumida a liberdade das partes em condições de
igualdade negocial.

De qualquer modo, qualquer caminho para que se encontre uma solução negocial
deve passar pela análise do caso concreto, tornando-se indispensável a análise de
cada relação contratual com vista à constatação da causa de tal ocorrência. Ou seja,
os contratos não foram atingidos da mesma forma pela pandemia do coronavírus e
não se deve deixar de considerar a excepcionalidade da situação e os efeitos
concretos em cada relação negocial.

O objetivo geral do trabalho é verificar se a pandemia de COVID-19 ou os efeitos das


medidas efetuadas com o intuito de evitar sua expansão encaixam nos requisitos da
força maior como exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações
contratuais e, assumindo que a resposta seja positiva, discutir a respeito da utilização
da teoria da imprevisão, do princípio de boa-fé contratual e da teoria da frustração do
fim do contrato, como uma possível solução menos gravosa.

A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, através de uma revisão da literatura


com publicação entre os anos de 2012 e 2020.
2. A PANDEMIA DE COVID-19 É UM CASO FORTUITO?
Os contratos são instrumentos indefectivelmente projetados para o futuro, distribuem
riscos entre as partes e estabelecem como estas deverão suportar os efeitos de sua
possível materialização; trabalho no qual se deve procurar o equilíbrio nas obrigações
mutuamente pactuadas e as respostas que as partes oferecerão ante os imprevistos.
As partes podem decidir que uma delas se encarregue destes efeitos; ou, pelo
contrário, podem compartilhar esta carga (DINIZ, 2020).

A força maior ou caso fortuito tem importância como causa que exime da
responsabilidade o devedor frente ao incumprimento de suas obrigações contratuais.
O caso fortuito exime-se de responsabilidade também, frente a casos de
responsabilidade objetiva, nos quais nem sequer o atuar diligente do devedor lhe
serve como justificação; pelo que se constitui como limite frente à responsabilidade
pelo incumprimento. Isso significa que a possibilidade do devedor ser acobertado por
esta causa seja limitada, devendo cumprir requisitos estritos; caso contrário, estar-se-
ia afetando ao núcleo mesmo da noção de pacta sunt servanda, e a boa-fé contratual
(FARIAS; ROSENVALD, 2020).

Até onde pode chegar a autonomia das partes em sede contratual, no que respeita à
regulação do caso fortuito? Entende-se que as faculdades são amplas; por exemplo,
que as partes pactuem que uma delas assuma unilateralmente os efeitos do
imprevisto; que podem ser agravatórias, ou restritivas, atenuarem ou eximirem da
responsabilidade o devedor como parte do pacto prévio.

No caso de que nada se tenha pactuado pelas partes, opera-se o regime geral do art.
393 do Código Civil: “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de
caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles
responsabilizado” (BRASIL, 2002). Neste regime geral podem ser identificadas duas
funções do caso fortuito no âmbito contratual; em primeiro lugar, eximir do pagamento
de indenização de prejuízos pelo incumprimento o devedor, função que também é
aplicável no âmbito extracontratual e afeta à responsabilidade; e, em segundo lugar,
extinguir uma obrigação, se o caso fortuito ou força maior é definitivo, ou permitir ao
devedor a suspensão no cumprimento da obrigação, se o fato que suscita o caso
fortuito ou força maior é temporário (DINIZ, 2020).
São requisitos para considerar um fato como caso fortuito: primeiro, a externalidade,
quer dizer, que não haja sido a conduta do devedor a que haja provocado o fato que
se pretende apresentar como caso fortuito. O fato deve ser externo ao devedor e essa
externalidade pode ser medida a partir do distanciamento do mesmo respeito do
alcance de suas obrigações (FARIAS; ROSENVALD, 2020).

A externalidade como elemento do caso fortuito, na sua perspectiva subjetiva,


considera que o fato é externo ao devedor se está fora de sua vontade, quer dizer, da
culpa. A culpa que corresponde no caso de contratos que contêm obrigações
recíprocas é a leve, atribuível ao padrão de conduta de uma pessoa razoável. Esta
valorização se faz in abstracto, quer dizer, se confronta a conduta do devedor frente
à que houvesse adotado uma pessoa razoável nas mesmas circunstâncias. Qualifica-
se, portanto, se o fato que provoca o incumprimento do devedor está, ou não,
produzido por uma conduta culpável do mesmo, no sentido de que dito fato poderia
ser previsto no momento da subscrição do contrato. Finalmente, a qualificação in
abstrato deve considerar variáveis tais como as circunstâncias externas e a
qualificação do devedor para elevar ou reduzir é padrão da conduta com a qual se
compara (RIZARDO, 2019).

Uma segunda maneira de abordar a externalidade se refere à perspectiva objetiva


fundamentada na causalidade. Esta segunda diz que um fato é externo ao devedor se
não existe relação causal entre a conduta deste e sua produção (RIZARDO, 2019).
Assim, se o fato que impede o cumprimento da obrigação por parte do devedor não
tem nenhuma contribuição deste e é produzido por um acontecimento fora de seu
controle, cumpriria o primeiro requisito da força maior; porque este fato não é causado
pelo devedor.

O devedor, portanto, não se exime de responsabilidade ou cumprimento da obrigação


se o caso fortuito é produzido por sua culpa; ou, quando o mesmo tem um vínculo
causal objetivo com a conduta deste. As duas visões se relacionam com a concepção
subjetiva e objetiva da externalidade do caso fortuito

A consideração objetiva da externalidade é comum nos instrumentos de unificação do


Direito de Contratos; assim, por exemplo, o art. 79.1 da Convenção de Viena sobre os
Contratos de Compra e venda Internacional de Mercadorias se referem a que o fato
pretendido como caso fortuito deve estar alheio à vontade do devedor; entretanto, em
sua versão em inglês se assinala “beyond his control”, portanto, a doutrina concluiu
que a norma busca que o fato deve estar fora da esfera dos riscos de sua atividade.
Em similares termos os Princípios Latino-americanos de Direito dos Contratos (PLDC)
assinalam no art. 86 que o fato deve ser alheio ao controle do devedor (VALLEJO,
2020). O Código Civil brasileiro em seu art. 393 assinala que o caso fortuito é um ato
“necessário” que se refere à relação de causalidade entre este e o incumprimento.

O segundo requisito do caso fortuito é a imprevisibilidade, sobre a qual existem


também uma noção clássica e outra contemporânea. A primeira se fundamenta na
comparação do atuar da pessoa que comete o fato frente à outra razoável nas
mesmas circunstâncias; analisa ademais as medidas que esta haja tomado para evitar
o sucesso; finalmente, estas são avaliadas ao momento da execução do contrato.
Esta noção adoece de não considerar o dever de diligência devida que têm
determinados agentes em certas relações contratuais, contudo ademais, confunde a
imprevisibilidade com a irresistibilidade ao avaliar as medidas de precaução
(RIZARDO, 2019).

A principal crítica a esta noção clássica é o entendimento da imprevisibilidade como


algo absoluto, desde um prisma abstrato; porquanto, na realidade, as circunstâncias
nas quais é produzido o fato são relevantes e influem na possibilidade de prever ou
não o fato. Entender a imprevisibilidade em termos absolutos converteria em
previsíveis fatos tão adversos como a pandemia, posto que, em abstrato, um
contratante extremadamente diligente houvesse podido dar seguimento às
publicações científicas de expertos em virologia durante os últimos quinze anos e
saber que este fenômeno podia ser produzido em qualquer momento. Por outro lado,
a verificação das medidas de precaução para a qualificação da imprevisibilidade não
só incorre na confusão com a irresistibilidade, mas que se concentra na execução do
contrato, quando a verificação da mesma realmente obedece ao que se pode prever
no momento em que este foi celebrado. Só assim pode ser útil o critério de
previsibilidade frente a figuras como a teoria da imprevisão (VALLEJO, 2020).

A maneira moderna de entender a previsibilidade se concentra na definição do padrão


de comportamento exigível ao devedor, segundo as circunstâncias nas quais se
encontravam as partes ao momento de celebrar o contrato. Sob estes parâmetros
relativos compreende-se se o fato pode ou não ser previsto (DINIZ, 2020).

A apreciação da previsibilidade deve ser feita in abstracto, quer dizer, comparando a


atuação do sujeito com a de uma pessoa razoável em suas mesmas circunstâncias e
com uma qualificação ou especialidade equivalente. A imprevisibilidade está ligada
ademais com a probabilidade, o qual reviste de realidade dito termo, em efeito, se a
diligência requerida é a máxima, haverá que considerar como previsíveis para o
devedor tanto aqueles fatos cujo grau de probabilidade, devido à frequência com que
se apresentam, seja, sobretudo alto, como outros que podem não ser tão frequentes,
contudo que a diligência superior imposta ao devedor obriga igualmente tomar em
conta, de modo tal que o âmbito do imprevisível resulta reduzido (RIZARDO, 2019).

A probabilidade é um critério objetivo e quantificável para verificar que um fato ocorra,


neste caso, se relacionam sua frequência ou excepcionalidade; igualmente, a
jurisprudência sobre desastres naturais permite aclarar os requisitos de um fato em
base a sua probabilidade. A imprevisibilidade implica que em condições normais tenha
sido impossível para o agente precaver-se contra ela. Em cada caso se requer: a) o
referente a sua normalidade e frequência; b) o atinente à probabilidade de sua
realização; c) o concernente a seu caráter excepcional e de surpresa (RIZARDO,
2019).

Outro critério utilizado para determinar a imprevisibilidade é verificar a frequência de


um fato, porquanto é mais difícil para o devedor prever algo que não é esperável
estatística ou quantitativamente (FARIAS; ROSENVALD, 2020). Os eventos de
extrema intensidade, pelo geral, podem ser marcados como imprevisíveis ao serem
quantitativamente improváveis; assim um terremoto pode ser previsível, de fato, assim
foi institucionalizado para os contratos de construção no Chile; contudo um movimento
anormalmente violento é mais difícil de esperar.

Existem registros de pandemias com influência global a cada certo tempo como o
SARS em 2003, MERS em 2014, ambas com expansão global e características
nocivas; entretanto, um fenômeno como o atual que obrigue ao isolamento domiciliar
de grandes grupos humanos e paralise a vida econômica de cidades inteiras,
provavelmente só se assemelha a outros ocorridos faz mais de cinquenta ou cem anos
como a gripe espanhola ou a gripe de Hong Kong; por outro lado, contribui também
para sua categorização como caso fortuito o desconhecimento generalizado sobre
suas características, porquanto apenas se tem uma aproximação geral a respeito de
seus sintomas e sequelas. Pelo assinalado se pode sustentar a qualificação da
pandemia de COVID-19 e seus efeitos como imprevisíveis, pelo menos para os
contratos vigentes antes que a emissão dos atos de autoridade ou prévios ao
momento em que se podia determinar a iminente chegada do vírus ao país, ainda que,
provavelmente, a imprevisibilidade já não seja um elemento facilmente apreciável
agora que transcorreram alguns meses (BERGER; BEHN, 2020).

Este último nos leva a determinar o momento do iter contratual em que deve verificar-
se a imprevisibilidade, sendo unânime a resposta de que é à celebração do contrato,
tanto porque é ali onde se plasma a negociação fixando-se direitos e obrigações para
as partes e se produz a assunção de risco.

Finalmente corresponde analisar o requisito de irresistibilidade, respeito do qual


também se pode verificar uma acepção clássica que se identifica com a absoluta
impossibilidade do devedor de cumprir; pelo que se exclui a possibilidade de sua
aplicação a maior dificuldade ou onerosidade como caso fortuito; obrigando-se neste
segundo caso o devedor a cumprir mediante a implementação de maiores esforços
(RIZARDO, 2019).

Uma revisão mais recente deste requisito assume uma posição relativa que se
contrasta com a conduta exigível do devedor. Este postulado assinala que a
irresistibilidade não se refere a um conceito absoluto, mas medido através do prisma
da diligência do devedor que obriga a resistir qualquer evento que possa gerar um
incumprimento, inclusive os mais imprevistos (VALLEJO, 2020).

Por outro lado, esta discussão leva a desentranhar qual é a verdadeira conduta
exigível ao devedor frente a um fato que pode levar ao incumprimento, evitar que este
suceda ou resistir seus efeitos uma vez que seja produzido? Parece mais adequado
inclinar-se pela segunda opção, posto que a imprevisibilidade se concentre no
momento da celebração do contrato e se refere à capacidade das partes para
adiantar-se ao futuro e programar as respostas a eventos que têm uma importante
probabilidade de ser produzido e afetar o cumprimento das obrigações contratuais.
Em contraste ao assinalado, a irresistibilidade se refere à capacidade para aplicar
remédios a fatos que não puderam ser previstos no momento de contratar e se
produziram, contudo que as partes, com um esforço razoável que não implique um
desequilíbrio contratual importante, podem atender para procurar o cumprimento. Um
exemplo do mencionado poderia ser aplicado ao contrato de prestação de serviços
educacionais ante o fenômeno da pandemia de COVID-19; os centros educacionais
se valeram de ferramentas tecnológicas para procurar o ensino à distância, cobrindo
os elementos essenciais desta.

Em todo caso, a irresistibilidade supõe fazer o necessário para que o fato não afete o
cumprimento; e de fazê-lo, verificar se o devedor não tinha maneira de resistir-se ao
incumprimento, seja postergando-o ou oferecendo um substituto de igual qualidade.

Sobre a irresistibilidade se aplica o mesmo modelo de apreciação da imprevisibilidade,


quer dizer, se deve contrastar a diligência do devedor, em abstrato, com a conduta de
uma pessoa razoável em suas circunstâncias externas, incluindo sua qualificação,
grau de profissionalização e as possibilidades de resistir que tinha a seu alcance.
Portanto, um evento pode constituir força maior em matéria contratual se, sendo
imprevisível e alheio, um devedor diligente, em suas circunstâncias externas, não
pode evitá-lo ou resistir sua produção (BERGER; BEHN, 2020).

No âmbito contratual a jurisprudência recente toma, ademais da inevitabilidade, a


necessidade de avaliar as medidas que se tomaram para resistir o incumprimento. A
adoção de medidas para resistir o incumprimento demonstra a diligência devida e se
converte em um justificativo mais claro para eximir o devedor da responsabilidade, no
caso que o incumprimento chegue a ser produzido de todas as maneiras; em outros
termos, de nada servirá a alegação de que o fato era inevitável, se a diligência imposta
pelo contrato exigia tomar medidas adicionais para de todas as formas cumprirem o
contrato (VALLEJO, 2020).

A irresistibilidade, diferentemente da imprevisibilidade, tem dois momentos de


verificação; o primeiro se refere a se o fato pode ser evitado, para o que é chave
indagar a respeito da celebração do contrato e a adoção de medidas destinadas a
evitar o incumprimento; como por exemplo, uma cláusula hardship[2], muito comum
em contratos complexos de longa duração que requerem flexibilidade com relação a
sua revisão. O segundo momento se refere à verificação das medidas adotadas para
resistir o fato, uma vez produzido, o que se produz na execução do contrato
(VALLEJO, 2020).

Com base ao mencionado, Berger e Behn (2020) defendem que, partindo-se da


premissa de que a pandemia não é em si o fato que pode ser configurado como caso
fortuito, mas os atos de autoridade como consequência dela; entretanto, a geração de
um fenômeno desta magnitude e com alcance global é externo a qualquer
comportamento de hipotéticos devedores descumpridos; também seria inevitável,
posto que, embora pudesse ser previsto um evento de similares características por
pessoas altamente qualificadas, é irreal afirmar que alguma pessoa pudesse assinalar
com segurança um evento de dimensões globais sem precedentes, ao menos nos
últimos sessenta anos.

A doutrina que se manifestou até o momento voltou sua atenção para o requisito de
fato irresistível; o que, de verificar-se, permitiria qualificar incumprimentos contratuais
objetivos por caso fortuito ou força maior (VALLEJO, 2020).

No Brasil opera para o caso fortuito o art. 393 do Código Civil que exime de
responsabilidade ao devedor por aqueles casos em que não foram possíveis ser
previstos ou que previstos foram inevitáveis. É claro que a crise da pandemia de
COVID-19 é um caso de caso fortuito e que o factum principis da declaração do Estado
de alarme, impede que os danos e prejuízos provocados a uma parte pela
impossibilidade de cumprir o contrato pela outra devem ser indenizados.

A dificuldade que se suscita respeito à pandemia de COVID-19 é que em muitos casos


a irresistibilidade para cumprir não é definitiva, mas temporária, enquanto se
mantenha uma medida restritiva da mobilidade como a quarentena. Por outro lado, o
incumprimento será temporário, enquanto dure a medida, pelo que, na finalidade de
manter a relação contratual, o mais requerido pelas partes poderia ser a suspensão
temporária ou a resolução antecipada (VALLEJO, 2020).

Outros contratos poderão ter um panorama cinzento, porquanto a irresistibilidade não


parecerá clara, contudo, a uma das partes é convertido o cumprimento de suas
obrigações em excessivamente oneroso, ante o qual é necessário aproximar-se a
análise da teoria da imprevisão. Em alguns casos, o que sucederia é a frustração do
fim do contrato, afetando a dois requisitos primordiais como são o objeto e a causa.

3. INSTITUTOS DE DIREITO CIVIL PASSÍVEIS DE UTILIZAÇÃO NA PANDEMIA


3.1 TEORIA DA IMPREVISÃO
Como foi assinalada, a questão de o fato não ser irresistível não significa que não se
tornou mais gravoso o cumprimento, o que pode afetar o equilíbrio contratual.

Historicamente, a jurisprudência civil se recusou a revisar o contrato no caso de uma


mudança repentina (e imprevista) das circunstâncias. A intangibilidade dos contratos
e o respeito ao princípio de pacta sunt servanda é a regra no Brasil. No entanto é
possível a revisão de um contrato ao invocar-se a parte afetada a mudança
fundamental das circunstâncias. Situação essa que se dá no que a doutrina denomina
teoria da imprevisão, doutrina da imprevisão ou excessiva onerosidade sobreveniente.
Assim, a imprevisão é a faculdade do devedor de solicitar a resolução ou revisão do
contrato de execução postergada quando um imprevisto alheio à vontade das partes
tornou sua obrigação excessivamente onerosa (SCHREIBER, 2018). Deve ser uma
alteração imprevisível no momento da celebração do contrato, e que torne o
cumprimento da sua disposição excessivamente onerosa para a parte que não
assumiu contratualmente o risco materializado. Se essas condições forem cumpridas,
a parte afetada poderá solicitar à outra parte contratante uma renegociação, durante
a qual, no entanto, deverá continuar cumprindo suas obrigações. Se a renegociação
for rejeitada ou falhar, as partes contratantes podem acordar a resolução do contrato
na data e nas condições que determinarem, ou solicitar ao juiz de comum acordo a
adaptação do contrato. Não havendo acordo em prazo razoável, o juiz pode, a
requerimento de uma das partes, rever o contrato ou rescindi-lo a partir da data e nas
condições que fixar.

A aplicação inflexível do axioma pacta sunt servanda pode conduzir a resultados


funestos e injustos para uma das partes contratantes. Por isso, não poucas
legislações e tribunais estrangeiros buscaram evitar ou remediar as consequências
intoleráveis da mudança das circunstâncias. Conhece-se como teoria ou doutrina da
imprevisão o estudo dos casos sob os quais os juízes estariam autorizados para
prescindir da aplicação do contrato de forma literal, e o estudo das soluções possíveis
ao desajuste produzido. Estas soluções são fundamentalmente duas: a revisão judicial
dos contratos e a resolução por excessiva onerosidade sobrevinda (EISAQUI, 2019).

Os requisitos para a aplicação da teoria de imprevisão estão, em primeiro lugar, na


existência de um fato imprevisível, para o qual aplicam os argumentos anteriormente
assinalados para o caso fortuito; quer dizer, que se valore em abstrato em base à
diligência devida que emana das obrigações do contrato e que não fosse possível ser
previsto no momento de celebrar o contrato. Em segundo lugar, o cumprimento da
obrigação para uma das partes deve voltar-se excessivamente oneroso e romper o
equilíbrio sintagmático contratual; neste ponto, se entende que a mera dificuldade
para o cumprimento não habilita à aplicação da teoria. Finalmente, o fato imprevisível
e que provoca a excessiva onerosidade não deve ser provocado pelo devedor (DINIZ,
2020).

A teoria da imprevisão, portanto, é uma instituição que pode conviver com o pacta
sunt servanda, contudo se configura como limite do mesmo, permitindo às partes
renegociar por si mesmas o conteúdo do pacto e restabelecer o equilíbrio contratual,
ou em sua versão mais ampla, solicitar a revisão judicial do contrato, situação essa
que podia haver sido encarada como escandalosa no princípio do direito de contratos
do século XIX, mas que se torna não só recomendável, mas necessária em tempos
globalizados.

Sobre os fundamentos que foram esgrimidos para explicar a pertinência da teoria da


imprevisão, alguns autores rechaçam como argumentos apropriados a cláusula rebus
sic stantibus, já que é artificial considerar que as partes pactuaram inicialmente que
possa ser modificado o contrato por não permanecer as mesmas condições em que
foi celebrado; o enriquecimento sem causa ao estar a causa justamente no conteúdo
contratual; e, o abuso de direito, tampouco presente na figura analisada. Por outro
lado, identificam melhores argumentos para explicar a teoria da imprevisão na boa fé
contratual, a responsabilidade contratual e a livre investigação científica relacionada
com a análise a respeito da justiça contratual e os efeitos econômicos do contrato
(SCHREIBER, 2018; EISAQUI, 2019).

A prevalência do princípio de intangibilidade dos contratos próprio do “Code” francês


de 1804 e o racionalismo positivista de finais do século XVIII e o século XIX desterrou
temporariamente esta figura da legislação; não foi até entrado o século XX com os
esforços de Karl Larenz e a teoria da base do negócio jurídico, que se retomou sua
importância, sob a constatação prática de que o ideal do positivismo não podia ser
cumprido, porquanto a Lei e o contrato erigido como lei para as partes não podiam
prever a variedade de situações que podem ser apresentadas (LARENZ, 2002).

De acordo com a doutrina brasileira, há dois tipos de revisão contratual no Direito Civil
brasileiro: a do art. 478 e a do art. 317, ambos do Código Civil.

A primeira mostra a influência francesa, tendo como requisitos: a vicissitude do


evento, o possível prejuízo de forma extraordinária acoplado ao lucro da outra parte e
a comprovação dos efeitos ruinosos do fato superveniente na circunstância subjetiva
do credor. Assim, uma vez que há uma extrema dificuldade no cumprimento do
contrato com a demonstração do sacrifício econômico agravado, a vantagem
econômica para outra parte e o nexo de causalidade entre estes com o fato
imprevisível e extraordinário, dar-se-ia a resolução ou a revisão contratual (DINIZ,
2014).

A segunda se aproxima da influência italiana, substituindo o requisito do fato


extraordinário pela desproporcionalidade exteriorizada entre as prestações. Se for
constatado objetivamente o desequilíbrio superveniente, sem interferência das partes,
que não poderia ser previsto, tendo como resultado uma excessiva onerosidade. Ou
seja, dada a desproporcionalidade manifesta da prestação e o nexo de causalidade
entre esta desproporcionalidade e o motivo imprevisível alegado seria possível o
reajuste no valor da prestação (FARIAS; ROSENVALD, 2020).

De acordo com Miragem (2020), o descumprimento de cláusulas contratuais, advindo


dos efeitos da pandemia COVID-19 poderá ser definitivo, quando a impossibilidade
não desaparece ou atenua com o fluir do tempo, ou temporário, embora sem prazo
futuro determinado, poderá ser concretizado. O autor também divide o
descumprimento em absoluto, quando extingue a obrigação, liberando o devedor, ou
relativo, quando há dificuldade ou onerosidade da prestação, quando mantém o
devedor vinculado e responsável pelo cumprimento da obrigação.
Souza e Silva (2020) discorrem que a revisão ou resolução contratual devida aos
efeitos da pandemia decorrem de três hipóteses fáticas: (i) Relacionada aos atos
estatais que inviabilizaram o cumprimento. Ocorrendo a impossibilidade jurídica
superveniente, possibilitará o pedido de resolução sem imputação de culpa às partes.
São os casos dos cinemas, teatros, casas de espetáculos, estádios; (ii) Relacionada
com os contratos em que há absoluta perda do interesse original da prestação. Trata-
se dos casos dos passageiros de transporte aéreo e dos hóspedes de hotéis, que em
virtude da pandemia, viram a inutilidade das prestações contratadas. Hipótese que
será tratada na próxima seção; (iii) Relacionada à onerosidade excessiva a uma das
partes. Casos em que o devedor teve sua capacidade de adimplir comprometida
drasticamente pelos efeitos da pandemia COVID-19, possibilitando a revisão ou
resolução, diante da imprevisão ou da onerosidade excessiva.

A aplicação de força maior no contexto da pandemia de COVID-19 não é


inquestionável. Por exemplo, uma pessoa poderia invocá-lo para ser dispensado do
pagamento de um benefício que não poderá usufruir (por exemplo, em decorrência de
restrições de mobilidade)? Há quem já tenha dado uma resposta negativa,
salientando, no entanto, que existem exceções em leis específicas. Outro aspecto
problemático é o vínculo que deve ser estabelecido entre a crise provocada pelo
coronavírus e a impossibilidade de cumprimento, que nem sempre será fácil.

Posto isto, a verdade é que as dificuldades para o bom desenvolvimento das relações
contratuais podem não derivar tanto da pandemia em si, mas das medidas adotadas
pelas autoridades para responder à ameaça sanitária. Tais medidas poderiam
constituir um “fato do príncipe” (fait du prince). Essa noção consiste em uma decisão
tomada pelo poder público que dificulta o cumprimento das obrigações, podendo
ensejar um caso de força maior. Para isso, será necessário que os atos das
autoridades sejam imprevisíveis para o devedor no momento da celebração do
contrato, e que tenham caráter irresistível. No entanto, e aqui reside muito do seu
interesse no cenário atual, para considerar a força maior com base em um fato do
príncipe, não será necessário que ocorra um impedimento total. Bastará que a parte
afetada não possa continuar a exercer a sua atividade nas mesmas condições. É o
caso, por exemplo, dos profissionais da hotelaria que viram a sua atividade limitada à
venda de produtos para levar ou entregar a domicílio.
3.2 TEORIA DA FRUSTRAÇÃO DO FIM DO CONTRATO
Dentro dos casos de eficácia sobrevinda do contrato, a teoria da frustração do fim do
contrato (Zweckstörung) compartilha com a teoria da imprevisão a existência de um
fato externo, imprevisível e irresistível que sucede de maneira posterior à celebração
deste e que não foi assumido como risco por nenhuma das partes no pacto.
Diferentemente da teoria da imprevisão, na qual o fato que constitui caso fortuito
converte à obrigação de uma das partes em excessivamente onerosa e obriga à
revisão do contrato; neste caso, a causa do contrato é afetada, provocando que o
cumprimento do mesmo devenha em ilegal, impossível ou estéril economicamente
(MARINHO, 2020).

Pode-se ilustrar o assinalado com a revisão dos casos de deram origem à figura
(“frustracion of purpose of contrat”) no “commom law”, para logo verificar como foi
expandido sua regulação. O primeiro caso no qual se acunhou o termo frustração foi
Taylor v. Caldwell, no qual o primeiro demandou o segundo o pagamento de
indenização por descumprir o contrato de aluguel de uma sala de concertos que foi
destruída por um incêndio uma noite antes que começasse a ser usada para distintas
atividades programadas pelo locatário. O juiz modulou a regra de cumprimento
absoluto aplicada aos contratos que vinha regendo no direito inglês desde, ao menos,
dois séculos atrás e assinala que no caso dos contratos que dependem da existência
do objeto, não existe responsabilidade do locador se este perece sem culpa, já que
constituía uma obrigação conhecida desde a gênese mesma do contrato (COGO,
2012).

O exemplo assinalado verifica a ineficácia sobreveniente do contrato por destruição


da coisa objeto do mesmo ou especificidade nos serviços da contraparte; outros casos
que podem encaixar-se são a inaptidão sobrevinda do contrato para cumprir sua
missão econômica, a destruição do risco mercantil natural, a ilicitude sobreveniente
do objeto do contrato e a frustração de uma condição implícita não expressa
(MARINHO, 2020).

Assim, a teoria da frustração inglesa gera uma ruptura (“discharge”) automática do


contrato, inclusive contra a vontade das partes, que não poderiam continuar a
execução se o negócio foi declarado frustrado pelos juízes. As partes, portanto, só
devem cumprir com as obrigações exigíveis previamente ao fato que frustra o
contrato, por conceito de direitos adquiridos. A figura é regulada também no
ordenamento americano e se contrasta com a “impracticability” ou “impossibility”,
porquanto nesta última não pode ser cumprida com a obrigação por ser impossível
faticamente, enquanto na frustração as obrigações podem ser cumpridas, contudo são
inúteis porque foi afetada a base do negócio jurídico. A regra geral ademais assinala
que se o devedor assumiu a obrigação na distribuição de riscos do contrato, apesar
de frustração do mesmo, deve responder (COGO, 2002).

Tanto no ordenamento jurídico inglês como americano o aparecimento da teoria da


frustração é limitada e se entende como uma medida de “ultima ratio”, com o fim de
que não seja utilizada frente à mera dificuldade no cumprimento, o fundamento final
descansa na justiça contratual e na boa fé objetiva (MARINHO, 2020).

Para Karl Larenz há uma base objetiva e outra subjetiva. Esta, se identifica com a
reapresentação mental dos contratantes no momento de concluir o negócio e que influi
nas partes para a definição do conteúdo do contrato. A base subjetiva representa a
pressuposição de circunstâncias presentes ao momento de contratar ou passadas e
a expectativa de que se mantenham no futuro; o erro de uma das partes a respeito da
suposição e o aproveitamento desleal do mesmo pela outra é o que faculta o devedor
a solicitar o remédio, sob o fundamento final da boa-fé como princípio central. Por sua
parte, a dimensão objetiva é um estado geral das coisas cuja existência dota de
sentido o negócio realizado e o conteúdo mesmo do contrato. A dimensão objetiva do
negócio jurídico é afetada por ruptura grave na equivalência das prestações mútuas;
ou porque o fim objetivo do contrato é impossível apesar de que as partes cumpram
suas obrigações (LARENZ, 2002). Da perspectiva do exposto no presente trabalho, a
teoria da imprevisão seria utilizada do primeiro caso (equivalência das prestações) e
a frustração do fim do contrato do segundo (inutilidade sobrevinda do contrato).

Para Larenz (2002) o contrato e seu conteúdo respondem a uma realidade objetiva
correspondente ao momento em que se celebra; assim como, a uma reapresentação
mental conjunta das partes a respeito de como deve ser desenvolvida a execução e o
resultado esperado, para o qual se intenta precautelar que existam soluções frente a
variações que possam afetar gravemente ao mesmo. Podem-se verificar na teoria da
base do negócio jurídico de Larenz os casos de erro comum, frustração das
expectativas razoáveis das partes, a ruptura da equivalência das prestações,
equiparável à teoria da imprevisão; e, a perda da finalidade do contrato que abarcaria
a frustração de seu fim.

De acordo com o Enunciado nº 166, na III Jornada de Direito Civil, realizada pelo
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “art. 421 e 422 ou 113:
A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a
impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito
brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil” (CJF, 2005, p. 58). O Enunciado
431 da V Jornada de Direito Civil reza que: “A violação do art. 421 conduz à invalidade
ou à ineficácia do contrato ou de cláusulas contratuais” (CJF, 2012).

É a hipótese dos passageiros de transporte aéreo e dos hóspedes de hotéis, que em


virtude da pandemia, viram a inutilidade das prestações contratadas. Em tese, a teoria
em comento poderia ser invocada nas relações de trabalho, em virtude da pandemia
de COVID-19, já que o desde março de 2020 foram reguladas a suspensão de
algumas atividades, como os eventos, exigência de fechamento de bares, cafés e
restaurantes durante o período declarado de emergência, além do fato de haver
“lockdowns” temporários, com o fim de diminuir o contágio pela COVID-19. E com
isso, possibilitando a frustração de diversos tipos de contratos pela absoluta
impossibilidade de desempenho do serviço contratado.

Esta breve revisão da teoria da imprevisão e a frustração do fim do contrato nos


permite visualizar soluções frente à modificação das circunstâncias sobre as quais se
fundou o contrato, por um caso fortuito. Se for observado o devir histórico destas
figuras se confirmará sua recorrência em casos de guerra, desastre ou emergências.

3.3 UTILIZAÇÃO DE PRINCÍPIO DA BOA FÉ


Pode um juiz ordenar redução de preço, postergação do pagamento de aluguel, ou
outro pagamento relacionado ao direito imobiliário, ou moratória se lhe for solicitado a
adaptação contratual; ou inclusive, resolver o contrato que já não traga utilidade às
partes?

Para responder esta pergunta se deve indagar sobre os fundamentos finais do direito
de contratos que se assenta em seus princípios gerais. Os princípios, diferentemente
das regras, constituem mandatos de otimização que procuram ser cumpridos no
máximo possível, mostram a direção na qual pode ser oferecida a solução a um
conflito; por isso, a colisão entre princípios não se resolve por exclusão de um deles
mas por ponderação, o peso designado a cada um corresponde à base axiológica sob
a qual são avaliados e cedem mutuamente até chegar à solução mais equitativa, por
fim, têm correspondência com valores e se constituem como racionalização das
regras.

Um princípio do direito de contratos como a boa-fé contratual, incorporado ao Código


Civil, inspirado em valores como a honestidade, honradez e retitude que devem
guardar os que pactuam e que no contexto de sua construção tinha a finalidade de
fortalecer a força obrigatória dos contratos e a segurança jurídica; no contexto do
século XXI, pleno de incertezas e afetado pelo desequilíbrio da posição dos
contratantes ante o surgimento de uma emergência extraordinária e global, pode
permitir às mesmas partes, ou ao julgador, a revisão contratual; ou, em seu caso, a
resolução do contrato sem que esteja atada ao incumprimento culpável (FARIAS;
ROSENVALD, 2020).

A boa fé, desde sua função integradora, parece ser o fundamento mais adequado de
um dever de renegociação das partes frente à excessiva onerosidade sobreveniente
no cumprimento das obrigações, por motivo do advento de um caso fortuito. Este
princípio fundamenta-se, principalmente, nos art. 113, 187 e 422 do Código Civil. A
boa fé como princípio geral exerce suas funções informadora, interpretativa e
integradora. Nas palavras de Scavone Junior (2019, p. 592) “os negócios jurídicos,
antes de qualquer princípio e antes mesmo da obrigatoriedade do que foi
convencionado, devem respeito à boa-fé”

Agora, o problema de princípios, finalmente ante um caso fortuito, como o que


aconteceu pela pandemia COVID-19, conduz à aparente colisão entre o pacta sunt
servanda e o dever de renegociar ou a faculdade de resolver ante um iminente
desequilíbrio contratual produzido pela ineficácia sobrevinda do contrato para uma das
partes; ambas sustentadas, finalmente, na boa fé. Ao ser princípios, sua colisão não
implica a exclusão de um frente ao outro, mas a correta valoração de seu alcance de
aplicação dentro do caso concreto; portanto, o que os juízes estão chamados a fazer
nos meses e anos subsequentes, ante a falta de uma regra específica estabelecida
pelo legislador; ou, que existindo esta, não seja capaz de abarcar a multitude
inimaginável de situações que a crise sanitária trará consigo; será ponderar, e de dita
ponderação, se deve obter um grau de satisfação dos interesses das partes, que afinal
têm um transfundo em direitos (DINIZ, 2020).

Dessa forma, nos casos dos contratos nos quais a pandemia de COVID-19 houvesse
causado um desequilíbrio contratual, haveria o dever de renegociar que é derivado
“diretamente da função integrativa da boa-fé” (PIANOVSKI, 2020). Essa renegociação
pode ocorrer por acordo mútuo ou recorrendo-se à Justiça. Não havendo acordo em
prazo razoável, o juiz pode, a requerimento de uma das partes, rever o contrato ou
rescindi-lo a partir da data e nas condições que fixar.

O direito por princípios e a ponderação são comuns no Direito Constitucional, no qual


os juízes devem fazê-lo ante a colisão de direitos fundamentais que não têm hierarquia
entre si e se consagram em forma de princípios nas Constituições. Parece ser que a
emergência sanitária corroborou a necessidade de que o direito de contratos tenha
ferramentas eficazes frente à incerteza; se o direito comum gera maior injustiça em
caso de excepcionalidade, a busca da justiça permite que os juízes possam encontrar
nos princípios e na equidade instrumentos para alcançar soluções justas quando as
regras são insuficientes, o que se verá refletido na jurisprudência dos anos vindouros.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. São requisitos para se considerar um fato como caso fortuito: a externalidade,
a imprevisibilidade e a irresistibilidade. Com fundamento em Berguer e Behn
(2020) foi verificado que a pandemia da COVID-19, embora externa e
irresistível, era um fato previsível. Já houve pandemias em épocas recentes e
passadas. Entretanto, o que não era previsível foi o ato das autoridades que
adotou medidas restritivas da liberdade de movimentos de seus cidadãos, que
limitaram ou restringiram a entrada de viajantes procedentes de países com
surtos de COVID-19 e que aprovaram diversos tipos de disposições, com a
dupla finalidade de proteger a saúde dos cidadãos e mitigar, no possível, as
consequências econômicas derivadas desta situação, a gravidade da crise foi
crescendo. Se o proposto é certo, os atos de autoridade emanados devido à
pandemia reúnem as características do caso fortuito, a saber, imprevisibilidade,
externalidade e irresistibilidade.
2. A teoria da imprevisão e a frustração do fim do contrato e o princípio da boa-fé
são figuras úteis frente a situações anormais, podem conviver com o princípio
de pacta sunt servanda. A primeira está relacionada aos atos estatais que
inviabilizaram o cumprimento. Ocorrendo a impossibilidade jurídica
superveniente, possibilitará o pedido de resolução sem imputação de culpa às
partes. São os casos dos cinemas, teatros, casas de espetáculos, estádios ou
relacionados à onerosidade excessiva a uma das partes. Casos em que o
devedor teve sua capacidade de adimplir comprometida drasticamente pelos
efeitos da pandemia COVID-19, possibilitando a revisão ou resolução, diante
da imprevisão ou da onerosidade excessiva; A segunda está relacionada com
os contratos em que há absoluta perda do interesse original da prestação.
Trata-se dos casos dos passageiros de transporte aéreo e dos hóspedes de
hotéis, que em virtude da pandemia, viram a inutilidade das prestações
contratadas, possibilitando a sua resolução. A terceira obriga as partes a um
dever de renegociação em virtude de desequilíbrios contratuais advindos da
pandemia de COVID-19, derivado “da função integrativa da boa-fé”.
3. A reação do direito de contratos imobiliários deve ser dúctil, como a realidade
mesma, entender o direito de contratos por princípios e a estes como
racionalização das regras, pode ser fundamental para o desafio imediato dos
julgadores, especialmente sem normas à medida.
Esgotada assim a explanação acerca do tema proposto, considera-se como resposta
à questão norteadora inicial: a pandemia de COVID-19 ou os efeitos das medidas
associadas a evitar sua expansão, encaixam-se nos requisitos do caso fortuito como
exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações contratuais?
Conclui-se que sim, uma vez que os atos de autoridade emanados devido à pandemia
reúnem as características do caso fortuito, a saber, imprevisibilidade, externalidade e
irresistibilidade. E, de forma complementar, vislumbra-se como uma possível solução
menos gravosa, com base nas teorias da imprevisão, do princípio de boa-fé contratual
e da teoria da frustração do fim do contrato, a possibilidade de revisão ou resolução
contratual, o que obriga às partes a um dever de renegociação em virtude de
desequilíbrios contratuais advindos da pandemia de COVID-19, derivado “da função
integrativa da boa-fé”.
Por fim, é importante deixar claro, a despeito de todas as teorias acima expostas que,
não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos de
consumo e que, qualquer caminho para que se encontre uma solução negocial, deve
passar pela análise do caso concreto.

REFERÊNCIAS
BERGUER, Klaus Peter; BEHN, Daniel. Force majure and hardship in the age of
corona: a historical and comparative study. McGill Journal of Dispute
Resolution (2019/2020), n. 4, p, 79-130, 20 abr. 2020. Disponível em:
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3575869. Acesso em
10/12/2020.

BRASIL. Presidência da República. Lei N° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui


o Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em
10/12/2020.

BRASIL. Presidência da República. Lei Nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe


sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm. Acesso
em: 10/12/2020.

CJF- CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Jornada de Direito Civil. Brasília: CJF,


2005.

CJF- CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciados: V Jornada de Direito Civil.


2012. Disponível em: HTTPS: HTTP://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/303.
Acesso em 20/01/2022.

COGO, Rodrigo Barreto. A frustração do fim do contrato: o impacto dos fatos


supervenientes sobre o programa contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p.385.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V.3: teoria das obrigações
contratuais e extracontratuais. 36 ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p.936.
EISAQUI, Daniel Dela Coleta. Revisão judicial dos contratos: A teoria da
imprevisão no Código Civil brasileiro. Curitiba: Juruá, 2019. p.228.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil:


obrigações. 10. ed. Salvador: Juspodivm. 2020. V. 2. p.848.

LARENZ, K. Base do negócio jurídico y cumplimiento de los contratos. Granada:


Editorial Comares, 2002. p.232.

MARGOTTO, Germano Naumann. Impactos do coronavírus nos negócios


imobiliários: Prevalência da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do
interesse coletivo. Análise da pandemia da COVID-19 como caso fortuito ou força
maior, a não obrigatoriedade do cumprimento do negócio imobiliário ou fato
imprevisível e extraordinário e revisão ou resolução contratual. Disponível em:
https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/11565/Impactos-do-Coronavirus-nos-
negocios-imobiliarios. Acesso em: 20/11/2020.

MARINHO, Maria Proença. Frustração do fim do contrato. São Paulo: Foco, 2020.
p.164.

MIRAGEM, Bruno. Coronavírus: repercussões sobre os contratos e a


responsabilidade civil. GEN Jurídico, 27 mar, 2020. Disponível em:
http://www.genjuridico.com.br/2020/03/27/coronavirus-responsabilidade-civil. Acesso
em: 20/10/2020.

PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do


coronavírus. Migalhas, 26 março 2020. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhascontratuais/322653/a-forca-obrigatoria-
dos-contratos-nos-tempos-do-coronavirus. Acesso em: 20/01/2021.

RIZARDO, Arnaldo. Contratos. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.1456

SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário: teoria e prática. 15 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019. p.1736

SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo:


Saraiva, 2018. p.929
SOUZA, Eduardo Nunes; SILVA, Rodrigo da Guia. Resolução contratual nos tempos
no novo coronavírus. Migalhas, 25 mar. 2020. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-
contratual-nos-tempos-do-novo-coronavirus. Acesso em: 21/05/2020.

VALLEJO, Antonio Orti. Riesgo contractual en los contratos privados después o Covid-
19: análise, problemática e soluções. Madri: Tiranto Blanch, 2020. p.12

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ


2. Se entende por tal aquela que prevê a capacidade dos contratantes para renegociar
o conteúdo contratual ante circunstâncias imprevisíveis sobrevenientes. A finalidade
é restaurar o equilíbrio contratual.

[1] Cursando MBA em Marketing, Branding e Growth na Pontifícia Universidade


Católica do Rio Grande do Sul, Pós-graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil
e Direito Imobiliário pela Universidade Cândido Mendes, Advogado inscrito na OAB-
RJ sob o nº 214.561, Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes. ORCID:
0000-0002-9272-9266.

Enviado: Janeiro, 2022.

Aprovado: Fevereiro, 2022.

Você também pode gostar