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Responsabilidade civil pré-contratual – Aula 30/10/2023

1. A FORMAÇÃO DOS CONTRATOS

O contrato é formado pelo consenso, isto é, pelo acordo de vontade entre os


contratantes a respeito (i) da celebração do ajuste e (ii) das suas cláusulas e condições,
consubstanciada na declaração negocial.

Fases da formação do contrato, segundo o Código Civil: proposta e aceitação.

Força vinculante da proposta: segundo o art. 427 do CC, “a proposta do


contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza
do negócio, ou das circunstâncias do caso.”

A aceitação, por seu turno, corresponde à aderência do oblato à proposta,


constituindo o consenso, e, assim, o contrato, vinculante para ambas as partes. A partir do
consenso, não apenas o proponente, mas também o oblato está obrigado.

Desatualização e insuficiência do CC/02: quanto mais complexo o contrato,


mais relevante se torna a fase das tratativas ou das negociações preliminares.

2. A FASE DAS TRATATIVAS OU DAS NEGOCIAÇÕES PRELIMINARES

2.1 O que é a fase das tratativas?

É o tempo ao longo do qual os agentes discutem a possibilidade de contratação –


o objeto do contrato, as suas cláusulas e condições, a conveniência da contratação, os seus
eventuais efeitos econômicos, contábeis, jurídicos, empresariais etc.

2.2 Desenvolvimento das negociações preliminares:

• Elaboração de projetos do contrato (minutas)


• Participação de auxiliares das partes: advogados, economistas, engenheiros,
contadores, consultores etc.;
• Realização da due diligence (análise aprofundada das condições econômicas, jurídica,
regulatórias etc. do objeto do contrato) e troca de informações.
• Possível elaboração e constituição de documentos preparatórios, como cartas de
intenções, memorandos de entendimento, acordos de confidencialidade etc.;
• Formação progressiva do contrato: o contrato vai sendo construído pelas partes,
muitas vezes a partir de consensos parciais a respeito dos diversos aspectos que vão
sendo percorridos.

2.3 Características das negociações preliminares:

• Vínculo contratual eventual: enquanto ocorrem as tratativas não é possível se saber,


ainda, se o contrato será celebrado ou não, mas se sabe que as partes têm potencial
interesse na contratação, a se confirmar ou não a depender do resultado das
negociações.
• Fase não-vinculante: a celebração do contrato não é obrigatória, as partes ainda podem
desistir da contratação; No entanto, as partes tendem a investir certos recursos
humanos e financeiros e de tempo nas tratativas, além do risco de eventual perda de
outros negócios, daí a possibilidade de danos juridicamente relevantes;

3. A TEORIA DA CULPA IN CONTRAHENDO

3.1 Jhering e o caso dos charutos:

Solicitou a um amigo que viajaria a Bremen que lhe trouxesse um quarto de caixa
de charutos. Entretanto, por engano, o amigo encomendou quatro caixas.

O jurista alemão indagou se nessa hipótese era o remetente que deveria suportar
os custos ou se poderia exigir ressarcimento do destinatário.

3.2 O problema:
Se uma das partes deu causa à invalidade do contrato, deve indenizar o dano
sofrido pela parte que confinou na sua validade?

Inexistência de resposta satisfatória na legislação alemã a época ou no Direito


Romano.

3.3 Formulação de Jhering:

A culpa in contrahendo resulta do “comportamento de uma das partes na fase das


tratativas, induzindo a confiança da outra (...) ou omitindo informações de importância
capital (...) ou deixando de mencionar circunstâncias que acabariam por produzir a
invalidade do contrato.”

Interesse contratual positivo: interesse em manter o contrato vicioso (caso em que


receberá a indenização correspondente a tudo o que teria recebido se não tivesse ele
incorrido em erro essencial). Nesse sentido, busca colocar a vítima na situação que ela
estaria se o contrato tivesse sido cumprido.

Interesse contratual negativo: diante do erro essencial em que incorrera, o


comprador poderá ter interesse em não mais concluir o contrato (caso em que haverá a
reparação de tudo o que tiver expendido à relação até aquele momento). Nesse sentido,
busca-se colocar a vítima no status quo ante.

3.4 Desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na Alemanha.

• Reconhecimento de um dever de informar prévio à celebração do contrato


• Identificação das negociações e da conclusão do contrato como um “todo
indivisível”
• Reconhecimento de deveres pré-contratuais de proteção e colaboração
• Deveres decorrentes da boa-fé.
• Deveres independentes da efetiva celebração do contrato

4. CONTATO SOCIAL QUALIFICADO


4.1 Dicotomia da responsabilidade civil contratual e aquiliana:

A responsabilidade civil se divide nessas duas hipóteses que se distinguem em


razão:

• Da pré-existência ou não de uma relação obrigacional;


• A primeira resulta do inadimplemento de uma obrigação, ao passo que a
segunda decorre da violação a um dever geral de conduta;
• Há prévia relação jurídica entre o credor e o devedor no primeiro caso,
enquanto no segundo caso não há uma relação jurídica prévia entre as partes,
que se mantem a maior distanciamento social.
• A constituição do vínculo do vínculo obrigacional importa grau mais elevado
de proximidade social entre os agentes (credor e devedor)

4.2 O contato social qualificado que caracteriza a fase das tratativas:

Durante as negociações preliminares, não existe vínculo obrigacional, porém as


partes já adotaram um grau de contato social característico do regime contratual
(qualificado).

Em razão disso, a fase das tratativas já é regida pelo princípio da boa-fé objetiva,
a impor aos agentes em negociação deveres de conduta “pré-contratuais”.

4.3 Boa-fé objetiva

Segundo a boa-fé objetiva, prevista de forma expressa no art. 422 do CC/02, as


partes devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e de lealdade,
de modo a permitir a concretização das legítimas expectativas que justificaram a
celebração do pacto.

Os deveres anexos, decorrentes da função integrativa da boa-fé objetiva,


resguardam as expectativas legítimas de ambas as partes na relação contratual, por
intermédio do cumprimento de um dever genérico de lealdade, que se manifesta
especificamente, no dever de informação, cooperação e colaboração.

• Venire contra factum proprium -> vedação ao comportamento contraditório, ou


seja, proibindo-se a adoção de comportamento incompatível com o anterior.
Régis Fitchner entende esse instituto como um dos fundamentos da
Responsabilidade Civil pré-contratual.

5. RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL

5.1 Conceito:

Responsabilidade civil por danos causados no âmbito das tratativas preliminares


a um negócio jurídico em razão da violação de um dever anexo de conduta imposto pelo
princípio da boa-fé objetiva.

5.2. Hipóteses de responsabilidade:

• Conclusão de contrato nulo, inválido ou ineficaz, sabendo da causa do vício


previamente às negociações.
• Danos à pessoa ou ao patrimônio na fase das tratativas.
• Ausência ou insuficiência de informações.
• Violação do dever de sigilo.
• Ruptura injustificada das tratativas – hipótese mais importante,

5.3. Insuficiência do CC/02:

Não apenas o CC2002 não cuida da responsabilidade civil pré-contratual, como


também a cláusula geral de boa fé no art. 422 não abrange o período pré-contratual, ao
dispor que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como
em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Apesar disso, doutrina e jurisprudência vêm admitindo essa possibilidade com
fundamento nas normas dos arts. 187 e 927 do CC de 2002, a respeito do abuso do direito,
e numa interpretação extensiva do art. 422, tendo em vista o contato social qualificado
típico desta fase das negociações, a atrair a incidência da cláusula geral de boa-fé;

5.4 Responsabilidade pela ruptura injustificada das tratativas:

A responsabilidade civil pela ruptura de negociações contratuais decorre da


violação de deveres de conduta assumidos pelos contraentes ao estabelecerem
negociações para a constituição de contratos mais complexos.
Tratativas: fase híbrida entre a liberdade de contratar e o compromisso contratual
(gradativamente assumido)
A possibilidade de pôr fim às negociações não pode ser suprimida, sob pena de
converter as tratativas em etapa vinculante; Nem por isso toda ruptura imotivada pode ser
tomada como prerrogativa legítima.
Mas o que torna a ruptura imotivada das negociações ilegítima?

• A abusividade se revela na violação à legítima expectativa criada na contraparte e


na ausência de justo motivo.
• Relevância do grau de comprometimento das partes e da densidade das
negociações implementadas, assim como dos usos e costumes;

Como provar? Troca de correspondência, mensagens, minutas, contratação de


profissionais auxiliares.

É dever das partes prestar devidamente as informações relevantes e agir com


lealdade, de forma a evitar a formação da legítima expectativa na conclusão do contrato,
informar adequadamente os reais objetivos e prognósticos da negociação, bem como
eventuais negociações simultâneas com vários parceiros negociais;

É essencial examinar a existência e a legitimidade da justificativa para a ruptura


das negociações, numa perspectiva objetiva, conjugada com o comportamento da parte.
5.4 O interesse protegido: a indenização deve ter por base o interesse negativo (dano
derivado da confiança): o dano que se evitaria se não houvesse confiado, legitimamente,
na seriedade das negociações. O objetivo da indenização é, portanto, conduzir o
prejudicado à situação em que estaria se não houvesse entrado em tratativas, incluindo:

• O dano emergente: investimento e despesas realizados em razão das


negociações; e
• Os lucros cessantes: eventualmente resultantes de outras oportunidades de
negócio perdidas em razão das negociações frustradas

5.5 Natureza jurídica da responsabilidade civil pré-contratual: a doutrina discute se


a responsabilidade civil pré-contratual teria natureza contratual ou aquiliana ou, ainda, se
existir num terceiro gênero de responsabilidade.

Por outro lado, não há aqui um inadimplemento de obrigação, mas há contato social
qualificado e violação a dever imposto pela boa-fé objetiva. Num cenário em que as
distinções entre essas modalidades vão esmaecendo, a discussão começa a perder valor.

6 CASUÍSTICA

6.1 O caso dos tomates:

• Importante precedente pioneiro no reconhecimento da cláusula geral de boa-fé e


da responsabilidade pré-contratual, ainda sob o regime do CC/1916;
• Indenização pelo interesse positivo.

CONTRATO – TRATATIVAS – CULPA IN CONTRAHENDO –


RESPONSABILIDADE CIVIL. Responsabilidade da empresa
alimentícia, industrializadora de tomates, que distribui sementes,
no tempo do plantio, e então manifesta a intenção adquirir o
produto, mas depois resolve, por sua conveniência, não mais
industrializá-lo, naquele ano, assim causando prejuízo ao
agricultor, que sofre a frustação da expectativa de venda da safra,
uma vez que o produto ficou sem possibilidade de colocação.
Provimento em parte do apelo, para reduzir a indenização à metade
da produção, pois uma parte da colheita foi absorvida por empresa
congênere às instancias da ré. TJRS, 5ª CC, Ap. Civ. 591.028.295,
rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., j. 6.6.91

6.2 O caso da atriz com tipo físico inadequado:

• TASP, RT 189630, 10.5.1959;


• Atriz substituída às vésperas do início das filmagens porque o seu tipo físico era
inadequado ao enredo.
• Circunstância descoberta pelo diretor apenas depois de oposição do roteirista.
• Reconhecimento de justo motivo para a ruptura.

6.3. O caso da concessionária BMW:

CONTRATO. FASE DE TRATATIVAS. VIOLAÇÃO DO


PRINCÍPIO DA BOA FÉ. DANOS MATERIAIS. (...) 3. A
responsabilidade pré-contratual não decorre do fato de a tratativa
ter sido rompida e do contrato não ter sido concluído, mas do fato
de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima
de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material. 4. As
instâncias de origem, sobradas na análise das circunstâncias fáticas
da causa, reconheceram que houve o consentimento prévio mútuo,
a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo das
tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das
tratativas e o dano sofrido (STJ, Resp. 1.052.065/AM, 3ª T, rel;
Min. Ricardo Billar Boas Cueva, j. 22.2.13 (…)

6.4 O caso da empresa de eventos desiludida:

RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ CONTRATUAL.


NEGOCIAÇÕES PRELIMINARES. EXPECTATIVA LEGÍTIMA
DE CONTRATAÇÃO. RUPTURA DE TRATATIVAS.
VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA 1.
Demanda indenizatória proposta por empresa de eventos contra
empresa varejista em face do rompimento abrupto das tratativas
para a realização de evento, que já estava em fase avançada 2.
Aplicação do princípio da boa-fé objetiva na fase-contratual. 3.
Controvérsia doutrinária sobre a natureza da responsabilidade civil
pré-contratual. (STJ, Resp. 1.367.955/SP, 3ª T, rel. Min. Paulo de
Tarso Sanseverino, j-18.3.14)

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