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GENESIS EVANGELION
FELIPE, Kaio1
1. Introdução
Neon Genesis Evangelion é possivelmente o anime/mangá mais aclamado
por público e crítica nos últimos vinte anos. Poucas vezes uma obra do gênero
alcançou tamanha popularidade e suscitou tantos debates e controvérsias. O
fato de Evangelion ter forte caráter metalingüístico, possuir personagens
psicologicamente densos, um enredo instigante e apresentar vasto conteúdo
filosófico, psicanalítico e religioso são as principais razões para tal repercussão.
O enredo de Evangelion revela forte influência da mitologia gnóstica. Tudo
começa há quatro bilhões de anos, com a colisão de um objeto esférico gigante,
1
Mestrando em Ciência Política (IESP/UERJ).
denominado ―Lua Negra‖, com a Terra; eis o chamado Primeiro Impacto. Como
resultado, uma grande quantidade de detritos foi lançada em órbita,
aglomerando-se e formando o satélite natural da Terra: a Lua. Porém, o núcleo
da ―Lua Negra‖ trazia Lilith, uma das Sementes da Vida 2; sendo que outra já
existia na Terra: Adão, enviado pela ―Lua Branca‖. O problema é que sob
hipótese alguma duas Sementes podem coexistir no mesmo planeta. No
entanto, como a Lança de Longinus3 de Lilith foi destruída, a lança que restou no
planeta - a de Adão - se ativou para tentar corrigir a situação, e colocou Adão
num estado de hibernação indeterminado. Livre, Lilith começa a espalhar a
―sopa primordial‖ da qual a vida terrestre ―normal‖ nasce, e começou o processo
evolutivo que se seguiu por bilhões de anos, o qual culminou com a raça
humana. Assim, a humanidade, descendente de Lilith, usurpou o lugar dos
Anjos, descendentes de Adão, como a raça dominante na Terra.4
No ano de 2000, uma expedição científica na Antártida descobriu Adão
inerte e a Lança de Longinus na qual ele foi empalado. No dia 13 de setembro
foi realizada a experiência de contato entre um embrião humano (portanto, com
DNA de Lilith) e Adão. Porém, a retirada da Lança de Longinus foi mal-sucedida;
Adão só possuía o Fruto da Vida (e não ambos, pois o Fruto da Sabedoria é
possuído por Lilith - cuja ―Lua‖ estava em outro lugar), e perdeu o controle. A
reintrodução da lança impediu uma tragédia ainda maior – o aparecimento de
outros anjos, que levariam a uma destruição completa da vida terrestre. Porém,
ainda assim houve o Segundo Impacto, nome dado para o desastre global que
destruiu, direta (desequilíbrio ecológico, com o derretimento da Antártida e a
elevação do nível dos mares) ou indiretamente (guerras civis acarretadas pela
fome e escassez), metade da população mundial. Além disso, a reaparição dos
Anjos, que tentariam novamente entrar em contato com Lilith, era iminente.
Diante de tal cenário, uma organização secreta chamada SEELE (―alma‖,
em alemão) descobriu que a Lua Negra de Lillith ficava no Japão, no chamado
Geofront. Sobre ela foi construído o quartel da NERV, que, sob o comando de
2
Fonte: http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Primeiro_Impacto
3
A Lança de Longinus é um artefato extraterrestre com o poder de penetrar qualquer Campo AT
(campo de força que protege a ―alma‖ dos Evangelions e Anjos) e imobilizar seres divinos.
4
Fonte: http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Lilith
Gendo Ikari, continuou as pesquisas para realizar a experiência de criar um
―Deus humano‖. Foram criados os Evangelions, humanóides gigantescos (mas
que parecem robôs, em razão de suas ―armaduras‖) e os únicos capazes de
vencer os Anjos. Todos os EVAs são clones a partir do embrião de Adão, exceto
a Unidade 01, clonada a partir de Lilith. O EVA-01 contém a alma da cientista
Yui Ikari, esposa de Gendo e mãe de Shinji, o protagonista da série. Yui foi
absorvida de propósito, mas ainda assim seu marido ficou abalado pelo
acontecimento; além de abandonar o filho, passou a cultivar um objetivo
diferente daquele que a SEELE havia lhe proposto. (Veremos mais sobre o
Projeto de Instrumentalidade Humana no próximo capítulo.)
2015. Em um mundo pós-apocalíptico, que tenta se reerguer após o
Segundo Impacto, a bem-sucedida reconstrução econômica coexiste com o
sentimento de que o fim se aproxima. É quando o Terceiro Anjo (já que Adão e
Lilith são os dois primeiros) ataca Tóquio-3, cidade em cujo subsolo se encontra
o Geofront. Os esforços militares da ONU são ineficazes; mesmo as bombas N2
não afetam o Anjo. Nesse mesmo dia, Shinji Ikari é levado por Misato Katsuragi
(diretora de operações estratégicas) à sede da NERV para encontrar seu pai, e
recebe a missão de pilotar o EVA-01 e derrotar o Anjo. Começa então o 1º
capítulo de Neon Genesis Evangelion.
Embora a versão em quadrinhos tenha sido lançada antes, em fevereiro de
1995, Evangelion surgiu como desenho animado, criado e dirigido por Hideaki
Anno. O anime possui 26 episódios, e foi exibido entre outubro de 1995 e março
de 1996; o mangá, roteirizado pelo desenhista da série, Yoshiyuki Sadamoto,
continua sendo publicado até hoje; por enquanto há 12 volumes (no formato
japonês, com 180 páginas, que equivalem aos 24 volumes da edição brasileira),
sendo que o 13º será lançada mundialmente em novembro de 2012.
Cabe dizer que há algumas diferenças entre o anime e o mangá. Em
primeiro lugar, o Shinji da versão em HQ é menos passivo-agressivo e mais
revoltado que o apresentado no desenho animado. Além disso, o número de
Anjos foi reduzido de 17 para 12. O mangá mantém o clima soturno e misterioso
da série, mas é mais ―didático‖ que o anime, explicando melhor a trama e
contendo mais passagens que revelam o passado dos personagens. Por fim,
cabe salientar as diferenças entre os autores, apontadas por Marcel R. Goto: ―O
estilo de Anno, fragmentado, sombrio, e explorando ao máximo as possibilidades
de expressão dos desenhos animados, dá nuances diferentes aos
acontecimentos das de Sadamoto, que prefere um estilo narrativo linear, mais
tradicional e direto.‖ (SADAMOTO, 2002, v. 7, p. 91)
Outro contraste é que a versão em quadrinhos de Neon Genesis
Evangelion centra o conflito nos problemas pessoais de seus caracteres. ―Desse
modo, deslocou o centro de atenção das lutas, principal enfoque dos quadrinhos
que seguem a linha mecha5, para o universo humano e psicológico das
personagens.‖ (MENDES, 2006: 50) De toda forma, mantém-se o projeto
estético que já havia no anime: ―Hideaki Anno trata sempre do peso do talento
inato, da obrigação de ser bem-sucedido quando se possui um grande dom, e do
medo de fracassar por não conseguir encontrar forças dentro de si para
enfrentar seus fantasmas interiores.‖ (SADAMOTO, 2002, v. 3, p. 90)
Feita essa apresentação, cabe dizer que o propósito deste artigo é a
análise de como Evangelion apresenta artisticamente as dúvidas e
questionamentos relacionados à conduta social e intersubjetiva e ao sentido
existencial de seus personagens. Diante disso, uma questão epistemológica vem
à tona: por que estudar tais questões a partir de um mangá?
Em primeiro lugar, as histórias em quadrinhos são, desde o seu
nascimento, uma forma de comunicação e, portanto, portanto um meio de
transmissão de mensagens. Por meio das imagens desenhadas, das palavras e
diálogos, da representação pictórica, os quadrinhos manifestam valores,
sentimentos, concepções, etc. (cf. VIANA, 2008) A abordagem sociológica dos
quadrinhos centra sua análise em dois aspectos fundamentais: a produção
social e a mensagem que apresenta em suas produções.
Em segundo lugar, em HQs mais intelectualizadas é possível encontrar
tanto um projeto estético (isto é, modificações operadas no âmbito da linguagem
e a apresentação de uma visão sobre que é uma obra de arte) quanto um
5
Pertencem ao gênero mecha títulos que tratam de qualquer tipo de mecanismo de alta
tecnologia, em particular ―séries em que os heróis pilotam robôs gigantescos em batalhas tanto
na Terra como no espaço sideral ou planetas alienígenas.‖ (MENDES, 2006, p. 44).
projeto ideológico, marcado pelo pensamento de um determinado contexto.
Evangelion é esteticamente uma obra que, embora a priori pertença ao gênero
mecha, desconstrói constantemente os cânones do mesmo, a começar por seu
caráter auto-reflexivo, beirando a meta-ficção. Ideologicamente, Neon Genesis
Evangelion tem marcas da psicanálise freudiana (afinal, quase todos os
personagens têm problemas e conflitos com seus pais e mães) e, como
demonstrarei no capítulo a seguir, possui forte carga filosófica.
6
Após a morte do último Anjo (Kaworu), a SEELE tenta antecipar o Plano de Instrumentalidade
Humana e ataca a base da NERV, enviando tropas do exército japonês. Depois que a Unidade
02 desperta e destrói os navios, helicópteros e bombas, finalmente aparecem os nove últimos
EVAs, com os quais a SEELE pretende imolar a Unidade 01 e iniciar os rituais do Terceiro
Impacto.
A característica fundamental da dialética hegeliana é a idéia de que ―o
Todo é igual à soma das Partes‖. Este holismo em Hegel é, contudo, um holismo
segundo Lavoisier: ―na natureza, nada se cria, nada se perde e tudo se
transforma‖ — sendo que ―natureza‖ é aqui entendida como sendo restrita à
matéria, ou seja, tudo aquilo que tem massa e resulta da entropia da gravidade.
Em Hegel, embora a Totalidade não seja uma classe de elementos que se deixe
definir mediante a coleção de todos os elementos que a constitui, o autor
também exclui que exista algum fator exógeno ao sistema (ou seja, à soma das
partes) que desempenhe qualquer função.7
De acordo com o pensamento hegeliano, a individualidade e a
acidentalidade são reduzidas à universalidade e à inevitabilidade. Neste sistema,
tudo se resume a um processo teleológico, em direção a um fim; aliás, a direção
deste telos já seria pressuposta no início. Neste sistema, o processo no qual
uma criança se torna um homem e mesmo a história da humanidade são
consideradas como partes de um processo de evolução gradual para a
realização da idéia (Idee). (cf. TSURIBE, 1999)
O Projeto de Instrumentalidade Humana desenhado pela SEELE e NERV
assemelha-se a certos aspectos deste holismo de Hegel. Vislumbra-se um
mundo comunitário: a idéia é fundir todas as almas humanas em uma só, para
compensar os vazios de cada um e criar um ser perfeito e completo. Todos os
campos AT, individuais, desapareceriam para se fundir em um só. Seria o fim
dos conflitos humanos, alcançando-se assim a harmonia. Portanto, o real
objetivo da NERV e da SEELE é evoluir a espécie humana: o EVA é o ápice da
existência dos homens; logo, chegando-se ao limite, é necessário evoluir. O
projeto transformaria todos os seres humanos, incompletos e inconstantes,
numa única entidade perfeita; ou seja, uma integração orgânica de todas as
personalidades. Após essa fusão acabariam os problemas, deficiências, medos
etc.; os homens perderiam sua individualidade, e se tornariam - só e unicamente
- a Humanidade.
Embora estejam envolvidas neste ambicioso empreendimento de
bioengenharia, NERV e SEELE têm objetivos diferentes: enquanto esta quer
7
Fonte: http://espectivas.wordpress.com/2012/04/27/a-dialectica-de-hegel-e-anacronica/
gerar o Terceiro Impacto, Gendo Ikari tem como objetivo secreto se fundir com
Yui8. Para a SEELE, a raça humana está estagnada; porém, ela poderia evoluir
mais um passo. Cabe, portanto, moldar o verdadeiro destino da humanidade,
que seria fundir todas as almas formando uma só e com isso extinguir as
fraquezas, inseguranças e sofrimentos que cada pessoa carrega em si.
Já a NERV carrega o propósito pessoal de seu Comandante Supremo:
rever a alma da esposa. Embora oficialmente o objetivo desta organização seja
combater os Anjos, este é apenas o método, e não a finalidade dela. Apesar de
Gendo parecer ser o vilão de Evangelion, na verdade ele é um personagem tão
complexado e frágil quanto os demais. Desde a morte da esposa, ele persegue
obsessivamente seu plano, o que dá às pessoas à sua volta a impressão de que
ele é frio e distante; mantendo mesmo diante de seu filho Shinji uma postura
hostil. É possível que, durante alguns anos, ainda estivesse seguindo os
objetivos da SEELE; porém, a experiência de incorporação de Yui pela Unidade
01 abala-o profundamente a ponto de mudar seus planos.
Gendo não convoca Shinji para pilotar a Unidade 01 por nepotismo; na
verdade, só seu filho é capaz de sincronizar com o EVA cuja alma é a da própria
mãe. Depois da batalha contra o 9º Anjo, em que o Evangelion 01 ―desperta‖ e,
após uma impressionante demonstração de poder, absorve o mecanismo S2 do
Anjo (o qual lhe assegura tempo de funcionamento ilimitado, o que é um passo
decisivo para a Instrumentalidade), a SEELE finalmente percebe as intenções
secretas de Gendo: ―Nós não precisamos de deuses materializados. Muito
menos... se esse Deus for o filho do Ikari.‖ (SADAMOTO, 2003, v. 15, p. 86)
Sendo assim, neste mundo pós-apocalíptico de Evangelion, o controle do
destino da Humanidade está nas mãos de duas organizações megalomaníacas
e potencialmente destruidoras; o rastro de destruição deixado pelo Segundo
Impacto não deixa dúvidas quanto a isso. SEELE e NERV operam uma
engenharia social em larga escala, na medida em que se utilizam da
biotecnologia para alcançar seus propósitos. Porém, mesmo que em alguns
8
No volume 7, Gendo consegue o embrião de Adão, o Primeiro Anjo, o que permitirá a fusão
com Rei Ayanami, clone de Yui e portadora da alma de Lilith, e que é também a piloto da
Unidade 00.
momentos se revele o ―complexo militar-político‖ (por exemplo, quando, após a
destruição do último Anjo, a sede da NERV é invadida pelo governo japonês, a
mando da SEELE), o ―poder‖ almejado pelas duas organizações transcende, não
é estritamente material; como se viu no capítulo anterior, Neon Genesis
Evangelion é uma distopia com forte fundo místico-religioso.
Por fim, ainda sobre o Projeto de Instrumentalidade Humana, a questão é
colocada de forma radical. Durante a batalha final e a iminência do Terceiro
Impacto, Shinji Ikari, piloto do único EVA feito a partir de Lilith, precisa tomar
uma decisão: ou ele mantém sua individualidade, rejeita a instrumentalidade e
continua a viver num mundo apocalíptico, ou aceita o projeto, vive num mundo
ideal, mas no qual cada indivíduo deixaria de sê-lo para dar lugar à unidade.
Considerando a fragilidade psíquica de Shinji, qual decisão ele tomará?
9
Equivalente no mangá aos capítulos 16 a 19, que compõem o volume 6 da edição brasileira.
Evangelion começou a gradualmente abordar a realidade de
forma auto-referencial. Não há qualquer evolução de uma
história a partir dali.” (TSURIBE, 1999)
10
Notem aqui um traço do terceiro tipo de desespero kierkegaardiano: querer ser ele próprio.
Por sua vez, Asuka Langley, assim como Shinji, tem um background de
família disfuncional. Ambos perderam precocemente suas mães e têm pais
ausentes - embora no caso de Asuka, isso ocorra porque ela é fruto de uma
inseminação artificial. Porém, ao invés de agir de forma introspectiva, a piloto do
EVA-02 adota uma atitude arrogante, à la ―posso me virar sozinha‖.
Asuka torna-se obcecada pelo sucesso profissional, e esconde seu trauma
familiar com demonstrações de eficiência no trabalho. O fato de ter sido criada
na Alemanha a fez estudar num sistema educacional em que a eficiência e a
excelência são cobradas implacavelmente. Asuka também adquire uma relação
de dominação técnica com o mundo exterior, tratando os objetos, as pessoas e
seu próprio Evangelion como meios para o seu o seu fim: preservar a identidade
construída de ser uma piloto bem-sucedida. A seguinte passagem do mangá
mostra como ela vinculava seu bem-estar ao reconhecimento de seu talento: ―Se
eu fui escolhida entre tantos para ser uma piloto... e eu luto e derroto estes
Anjos... e se todos reconhecerem esses feitos... então estarei feliz.‖
(SADAMOTO, 2002, v. 8, p. 52)
Porém, quando as barreiras protetoras e agressivas que desenvolveu para
si são quebradas, o delicado quadro clínico de Asuka é desvelado. Seu EVA
pára de funcionar porque, como dissera Kaworu, ela ―não abre o seu coração‖,
tratando-o como marionete, robô. O ataque psíquico do 10º Anjo - e, com isso, a
recordação do passado sombrio - a faz ficar depressiva. O primeiro passo para a
cura de Asuka é a descoberta de sua identidade real: o fato de ser uma garota
carente, que quer que alguém que a proteja. Isso ocorre justamente quando
reconhece que sua mãe não a abandonou, mas esteve este tempo todo
cuidando dela, por meio do Campo AT, no EVA-02. Após tal descoberta, ela sorri
e diz: ―Mamãe. Era você quem esteve me protegendo por todo este tempo.‖
(SADAMOTO, 2010, v. 24, p. 34)
Por sua vez, Rei Ayanami, piloto do EVA-00, é como uma construção a
partir do vazio; o fato de ser um clone de Yui Ikari potencializa seu caráter de
―tabula rasa‖. Não por acaso, a interrogação de Rei é mais metafísica que a de
Shinji e Asuka: inicialmente considera-se uma ―casca vazia com uma alma falsa‖,
mas sua voz interior sugere que ela é formada pelas interações com os outros -
e isso a faz ter medo de cessar e desaparecer das mentes deles. Ao longo da
série ela gradualmente deixa de ter Gendo, seu ―criador‖, como único referencial,
e se aproxima de Shinji. Este processo também é o de questionamento de seu
―eu‖ construído (a piloto que segue ordens) e a busca por uma identidade real.
Em uma das cenas mais emocionantes de Neon Genesis Evangelion, Rei
se suicida, ao colocar o EVA-00 em modo de autodestruição e assim derrotar o
penúltimo Anjo. Porém, antes disso, ela e o inimigo têm uma estranha
―conversa‖, na qual o Anjo revela os desejos inconscientes de Ayanami: ―Você
tem (...) a vontade de ter [Shinji] Ikari só para você. (...) Você se sente tão
sozinha que... desejaria ele sempre perto de você. Esse é o seu coração. Cheio
de tristeza, ódio e melancolia.‖ (SADAMOTO, 2006, v. 19, pp. 26-28) Imobilizada
pelo Anjo e temendo que este ataque o EVA-01, Rei Ayanami vê como única
solução explodir a Unidade 00. Porém, pouco depois se descobre que ela era
apenas a ―Segunda‖ de uma série de clones. A ―Terceira‖ inicialmente não se
lembra de nada que ocorreu com as cópias anteriores, mas ao longo do tempo
descobre sua misteriosa conexão com elas.
Rei Ayanami também desempenhará um papel importante no Projeto de
Instrumentalidade Humana, pois, como foi dito no capítulo anterior, ela é
portadora da alma de Lilith. Rei, contudo, recusa-se a se fundir com Gendo e
resolve se unir com Shinji, seu ―filho‖ (afinal, ela foi clonada a partir de Yui), cujo
EVA é feito a partir do corpo de Lilith. Com isso, inicia-se o Terceiro Impacto.
Porém, após muito refletir, Shinji recusa esta fusão com sua ―mãe‖, e escolhe
que deveria estar com Asuka, sua alteridade radical, o ―outro‖ que ele nunca
poderia se fundir em um só.
Evangelion, portanto, termina quando Shinji encontrou Asuka como "o
outro". Para Shinji, ela é uma existência ambígua: por um lado, Asuka o inspira e
se importa com ele, mas por outro ela também é uma existência fora de seu
controle, o ―outro‖ que nunca pode ser interiorizado. A ambigüidade de Asuka é
também a ambigüidade do próprio Evangelion. (cf. TSURIBE, 1999)
4. Evangelion e o Mal-Estar Japonês nos Anos 90
Em 1995 o Japão passou por dois desastres, sendo um natural e outro feito
pelo próprio homem. O primeiro foi o terremoto de Kobe, em 17 de janeiro, que
vitimou mais de seis mil pessoas e causou enormes prejuízos materiais para a
cidade. Apenas dois meses depois, em 20 de março, seguidores da seita Aum
Shinrikyo (Aum Verdade Suprema) conduziram ataques simultâneos em cinco
carros de diferentes trens do metrô de Tóquio com gás sarin, resultando em 12
mortes e cerca de 5500 pessoas afetadas de alguma forma, sendo mais de 1300
com lesões permanentes, como cegueira. (cf. ANTONIOLI, 2012).
O terremoto e o ataque terrorista abalaram o já combalido moral da
população japonesa, que atravessava uma recessão desde 1990. Kauê Antonioli
relacionou de forma intrigante os dois eventos com o sucesso de Evangelion:
“Se um dos objetivos da Aum com o ataque foi violentar o país,
para forçá-lo à auto-reflexão, isso de fato aconteceu. Não apenas
com os intelectuais que estudaram o caso, mas as próprias
vítimas, ao invés de apenas demonizar o culto, o fizeram não
sem mirar seu dedo indicador para o espelho. (...) Para o Japão,
o atentando no metrô de Tóquio foi uma advertência e o fato
pontual da virada histórica do país, o início de uma nova era,
menos brilhante e pomposa. 1995 foi também o ano do terremoto
de Kobe e do lançamento de Neon Genesis Evangelion, que não
teve o apelo popular que conquistou com seu teor pessimista
apenas por acaso.” (Ibidem)
5. Conclusão
Uma das coisas mais notáveis sobre Evangelion é que a série funciona em
em quatro níveis distintos. Pode ser simplesmente apreciado como uma
aventura sci-fi habilmente realizada, mas é também uma sátira sombria do
gênero mecha, uma parábola sobre amadurecimento e um tratado sobre como
enfrentar a solidão e a incerteza no mundo adulto. (cf. CRANDOL, 2002)
Ao longo deste artigo procurei mapear as principais questões que marcam
Neon Genesis Evangelion. Quase todas elas lidam com o 3º e o 4º destes níveis
de interpretação estabelecidos por Mike Crandol (2002). Diferentemente de
outros títulos do gênero mecha, em que a ênfase é dada nos robôs, Evangelion
retrata a vida dos personagens com suas imperfeições e problemas. ―Evidencia-
se, então, a analogia entre a própria vida e o mundo dos quadrinhos: a vida
concebida como mangá e mangá concebido como vida.‖ (MENDES, 2006, p. 57)
É possível dizer que temos nesta HQ uma ―lição‖ envolvendo a aceitação
da condição humana: postula-se que qualquer lugar pode ser o paraíso,
contanto que se tenha o desejo de viver. Há também uma crítica à mentalidade
―tecno-gnóstica‖, isto é, a mescla de engenharia social com ambições místicas.
Nesse sentido, a mensagem de Evangelion é que o homem não pode fundar
uma nova realidade, moldar a humanidade a seu bel-prazer, como se o
conhecimento das verdades divinas fosse acessível a alguns mortais, e estes
pudessem interferir profundamente na vida dos demais - no caso da SEELE e
NERV, causando o Segundo Impacto e encaminhando o Terceiro.
Há também a idéia, com ecos de Schopenhauer, de que as pessoas nunca
poderão acabar com sua solidão, porque todas elas estão fundamentalmente
sozinhas. Sendo assim, cabe aceitar a incompletude inerente à natureza
humana, e desenvolver uma distância média que nos permita evitar tanto a
completa solidão quanto os desgastes da sociabilidade. Além disso, quando
Shinji Ikari aceita a vida e recusa a instrumentalidade, acaba indiretamente
fazendo uma ode ao livre-arbítrio: todo ser humano tem o potencial de criar seu
próprio mundo. A fábula do amadurecimento de Shinji, ao mesmo tempo em que
é autobiográfica, talvez também procure convencer a nós, leitores, de que
somos dignos de viver neste mundo. O mesmo pode ser dito do processo de
desespero de Asuka, que aprendeu a aceitar a si mesma (isto é, sua identidade
real), reconhecendo as próprias fragilidades e deixando de lado a persona
arrogante e auto-suficiente que construíra.
Por outro lado, considerando o retrato soturno da psique humana que há
na série, a visão apocalíptica de Neon Genesis Evangelion também pode ser
vista como irônica: mesmo quando pensamos ter controle da realidade à nossa
volta, na verdade estamos à sua mercê, como personagens nas mãos do
destino - ou dos autores/desenhistas. (cf. NAPIER, 2002, p. 115)
Outra dimensão pessimista de Evangelion vem à tona quando se considera
seu contexto histórico e cultural: o Japão dos anos 1990, um país sob anomia,
conflitos geracionais, temores apocalípticos e uma desconfiança sobre a
capacidade da tecnologia de gerar bem-estar ao invés de (ainda mais) dilemas
morais e existenciais. Por estas e outras razões (como a estética), a trama de
Evangelion tornou-se cada vez mais sombria à medida que a série progrediu.
Independentemente do olhar adotado ser otimista ou amargo, em ambos
os casos Neon Genesis Evangelion aparece certamente como um mangá (e
anime) intrigante e denso, que encanta seus leitores (e espectadores) com os
dramas e angústias de seus personagens. Estes vivem uma grande aventura
apenas para descobrirem que esta não pode compensar as necessidades
humanas básicas de amor e amizade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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metrô de Tóquio em 1995. Março/2012. Fonte: http://otakismo.blogspot.com.br/2012/03/aum-
shinrikyo-verdade-suprema-e-o.html
______________ Homo Virtuens, o surgimento do fenômeno otaku. Junho/2011. Fonte:
http://otakismo.blogspot.com.br/2011/06/homo-virtuens-o-surgimento-do-fenomeno.html
BRODERICK, Mick. ―Anime‘s Apocalypse: Neon Genesis Evangelion as Millenarian Mecha‖. IN:
Intersections: Gender, History and Culture in the Asian Context. Issue 7, Março/2002. Fonte:
http://intersections.anu.edu.au/issue7/broderick_review.html
CRANDOL, Mike. Understanding Evangelion. Junho/2002. Fonte:
http://www.animenewsnetwork.com/feature/2002-06-11
DUAN, Charles. Constructing the Self: An analysis of Neon Genesis Evangelion. Maio/2001.
Fonte: http://www.sbf5.com/~cduan/writings/eva-full.shtml
KIERKEGAARD, Sören. ―Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano‖. Coleção
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MENDES, Alexandre Luiz dos Santos. Mangá: uma nova gênese - Análise da história em
quadrinhos Neon Genesis Evangelion. Dissertação de mestrado. FAAC/UNESP. Bauru, 2006.
NAPIER, Susan. ―When the Machines Stop: Fantasy, Reality, and Terminal Identity in ‗Neon
Genesis Evangelion‘ and ‗Serial Experiments Lain‘. IN: Science Fiction Studies, Vol. 29, No. 3,
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SADAMOTO, Yoshiyuki. Neon Genesis Evangelion. São Paulo: Conrad, volume 2, 2001; v. 3, 7 e
8, 2002, v. 15, 2003; v. 17, 2004; v. 1 (relançamento), 2005; v. 19, 2006; v. 24, 2010.
SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a Sabedoria de Vida. São Paulo: Martins Fontes,
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TSURIBE, Manabu. Prison of Self-Consciousness: an Essay on Evangelion. 1999. Fonte:
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REFERÊNCIAS FOTOGRÁFICAS
Imagem 1: http://www.mangapt.net/online/Shinseiki_Evangelion/v02_c11/15
Imagem 2: http://www.mangapt.net/online/Shinseiki_Evangelion/v05_c29/21