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Antiguidade Como Presenca PDF 201520200409 36252 1h1ma8k With Cover Page v2
Antiguidade Como Presenca PDF 201520200409 36252 1h1ma8k With Cover Page v2
ANT IGUIDADE, IDENT IDADE E OS USOS DO PASSADO ANT IQUIT Y, IDENT IT Y AND T HE USES OF…
Douglas Bonfá
Organizadores:
Pedro Paulo Funari
Júlio Gralha
Glaydson José da Silva
Rafael Rufino
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SUMÁRIO
Apresentação
Introdução
A inspiração
O livro
Uma história peregrina. Antropogênese na História de Colômbia de Henao e Arrubla (Ou sobre os
caminhos que ligam Antiguidade e Modernidade)
Andrés Alarcón-Jiménez
Roma antiga e legitimidade política na Espanha franquista: uma análise da Semana Augustea de
Zaragoza (1940)
Rafael Augusto Nakayama Rufino
Apolo e Musas, liras e cítaras. Estudo da releitura do legado clássico na iconografia urbana de
Pelotas e outras cidades do Brasil meridional (Arroio Grande, Bagé, Jaguarão e Pinheiro Machado)
Fábio Vergara Cerqueira
2
O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do séc. XVI
Renato Pinto
Os Limites da Romanização: uma reflexão acerca da interação cultural entre os Mundos Clássico e
Celta
Nelson de Paiva Bondioli
Sobre os autores
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APRESENTAÇÃO
1
ANPUH 50 anos: comemorações. São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011. Universidade de São Paulo (USP)
Cidade Universitária.
2
http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0062705COY5FQ0 Informações sobre o Grupo e
suas atividades podem ser obtidas no site http://www.humanas.ufpr.br/portal/usosdopassado/
3
Hoje, Gênero, Subjetividades, Cartografias e Cultura Material.
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INTRODUÇÃO
A inspiração
Salvatore Settis1
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“Instead of seeking out the ‘classical’ on the snowy and inaccessible heigths of Olympus, we should perhaps be
looking for it on earth and using history to give it a name and some substance” SETTIS, Salvatore. The future of
the “classical”. Cambridge: Polity Press, 2006. p. 8
5
compreensões em contextos modernos, propondo uma reflexão acerca do papel do passado
nos jogos de estratégia e afirmações identitárias do presente. A percepção da escrita da
História do mundo antigo como fato histórico sujeito a temporalidade, leva a uma
compreensão diferenciada da História e do historiador. Nessa perspectiva, o livro visa
explorar as tensões políticas inerentes à construção do conhecimento e contribuir com novas
abordagens acerca do mundo antigo.
O livro
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José Geraldo Grillo discute o estabelecimento da Arqueologia Clássica no século XIX e como
percepções de poder, raça e gênero constrói um determinado modelo de mundo grego.
Renato Pinto, por sua vez, discute a dinâmica entre os discursos imperiais-
nacionalistas britânicos e a construção de ideologias de masculino a partir das inúmeras
apropriações da imagem de Carataco, príncipe bretão em período romano. Renata Cardoso
Belleboni-Rodrigues apresenta uma reflexão no campo da nova história cultural sobre como a
Antiguidade foi percebida no século XIX, já Raquel dos Santos Funari discute as imagens
sobre Egito antigo a partir da perspectiva de jovens brasileiros. Nelson de Paiva Bandioli e
Tais Pagoto Bélo retomam a questão celta/bretã inicialmente levantada por Renato Pinto.
Enquanto Bandioli faz uma reavaliação do conceito de Romanização criticando a noção de
aculturação decorrente do modelo tradicional de Romanização, Bélo parte da rainha dos Iceni,
Boudica, para analisar como sua imagem foi rearticulada em diferentes momentos da História.
Para finalizar, Renata Senna Garraffoni, em conjunto com Pérola de Paula Sanfelice,
retomam a cultura material para finalizar o livro discutindo como as escavações
arqueológicas de Pompeia, sob a supervisão de Amedeo Maiuri entre 1924 e 1961, e suas
publicações foram atravessadas por valores patriarcais e racistas, de acordo com princípios
fascistas da época em que os trabalhos foram desenvolvidos. Julio Gralha encerra o volume
com uma reflexão sobre os usos do passado na arquitetura do Rio de Janeiro, desenvolvendo
uma metodologia para pensar as relações entre cultura material, poder e passado greco-
romano e egípcio no Brasil.
Passado antigo e presentes de diversas historicidades se cruzam em múltiplas
significações e os textos dessa coletânea nos fazem pensar a importância da Antiguidade na
construção de discursos diversos de poder. Desconstruir conceitos e provocar análises críticas
desses entrecruzamentos é uma opção política que, a nosso ver, é fundamental para a
democratização dos estudos sobre o mundo antigo e a construção de abordagens mais
inclusivas.
Os organizadores.
Primavera de 2015.
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Política, economia e sociedade
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A ECONOMIA ANTIGA E OS PARADIGMAS DA CULTURA OCIDENTAL: KARL
POLANYI E MAX WEBER
O significado do econômico
Para Max Weber, a economia é, em termos específicos, uma relação humana que tem
por base uma necessidade ou um complexo de necessidades que exige satisfação. Tal
satisfação exige uma reserva de meios e ações considerados escassos pelos agentes. Além
disso, para que tenhamos um comportamento racional referente a fins, esta escassez deve ser
subjetivamente suposta e as ações orientadas por este pressuposto (WEBER, 2004: 229).
Outrossim, a economia exprime, também, uma relação social, pois implica em uma
relatividade significativa a outrem, no qual a aquisição ou o uso de objetos desejados para
satisfazer as necessidades dá margem a uma atividade compreendendo, de um lado, uma
1
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do Departamento de
História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
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exploração sob a forma de produção ou de trabalho organizado, e, do outro, uma previsão
com vistas a garantir o atendimento das necessidades sob as formas de provisão, de ganho ou,
em geral, de um poder capaz de dispor de bens (FREUND, 1980: 112).
Weber se ocupou, portanto, com o grau em que a racionalidade da economização
com meios escassos pode estar presente na sociedade. No livro Trade and Market,
organizado por Polanyi, Arensberg e Pearson, este último afirma que Weber faz parte de uma
tradição de pensamento que acentua a preocupação pela forma racional de fazer as coisas,
sejam quais forem os fins últimos (PEARSON, 1976: 353-365). Esta concepção acentua,
segundo Hopkins (1976), a ação racional e resulta na ideia de que as economias que não se
baseavam no mercado se apresentavam como meros apêndices compostos por formas
aberrantes de partes correspondentes, em sua essência, à economia de mercado (HOPKINS,
1976: 335-337). A análise weberiana das sociedades do mundo antigo possibilita-nos avaliar
até que ponto essas críticas são pertinentes.
Segundo Weber, a economia de mercado está presente na economia antiga, porém,
como uma estrutura relativamente superficial sobreposta a uma economia natural,
basicamente primitiva (LOVE, 1991: 27). Neste sentido, Weber rechaça qualquer
possibilidade de encontrar na Antiguidade, de forma dominante, uma empresa capitalista de
larga escala, baseada no “trabalho livre” assalariado, um mercado de massa, a divisão e
coordenação racional do trabalho dentro de uma única empresa e inovação tecnológica. A
ausência de traços essenciais do capitalismo genuíno (moderno) no mundo antigo, contudo,
não impede Weber de adotar um conceito de capitalismo mais amplo, cujo raio cronológico se
estende para além do mundo moderno. Se na definição de capitalismo, fossem levados em
conta somente fatores econômicos – como, por exemplo, a existência da propriedade como
objeto de negócios, utilizada por indivíduos com fins lucrativos em uma economia de
mercado –, então seria possível afirmar que o mundo antigo, principalmente no período
clássico, teria sido moldado pelo capitalismo, embora não o mesmo dos tempos modernos,
mas um capitalismo específico, com características próprias (WEBER, 1998: 48-50).
Este capitalismo de orientação política assume um caráter irracional, pois, a teoria
política antiga era hostil ao lucro, amparada no ideal do “cidadão independente” e nas ideias
de igualdade entre os cidadãos e autarquia da pólis. Diferentemente da racionalidade da
produção capitalista, as possibilidades aquisitivas no mundo antigo direcionavam-se para
“fornecimentos do Estado, para a expansão política e conquista de escravos, terras, tributos e
privilégios para a aquisição de terras e empréstimos sobre estas, além do comércio e
fornecimento nas cidades submetidas” (WEBER, 2004: 500). Em razão desta orientação, as
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atividades aquisitivas são inibidas, e o cálculo e a acumulação não são objetivos a serem
perseguidos a qualquer custo. A política de cidade antiga estava a serviço de um demos,
ansioso por obter benefícios com os tributos e com a pilhagem dos territórios conquistados. A
corporação dos cidadãos interferia em todas as esferas da vida dos indivíduos. A uma crise
política, poderia haver fuga de escravos, um dos componentes principais dos patrimônios. As
guerras eram elementos desestabilizadores dos investimentos, que se concentravam na
aquisição de terras (internas e no exterior), de pessoas, de navios e na participação com capital
no comércio marítimo. Tudo isso leva Weber a concluir que “um demos deste tipo jamais
poderia estar primariamente orientado no sentido de atividades econômicas pacíficas e de uma
gestão econômica racional” (WEBER, 2004: 498). Assim, a pólis antiga mantém seu caráter
de associação guerreira, gerando um homo politicus, e não um homo oeconomicus.
Esta perspectiva de larga influência na historiografia sobre o mundo antigo,
particularmente, nos trabalhos de Moses Finley, vem sendo criticada por defensores de um
racionalismo econômico de caráter smithiano no mundo antigo. Segundo Paul Christesen
(2003), os investimentos feitos pela elite ateniense no século IV a.C. levavam em conta uma
análise racional na busca de receitas maximizadas, com dispêndio de tempo, energia, dinheiro
e tecnologia relativamente avançada a fim de alcançar os mais altos retornos para seus
investimentos. A hierarquia dos lucros estava relacionada com os riscos das aquisições. Nessa
hierarquia, a propriedade imobiliária apresentava os menores riscos. Os empréstimos ligados
à terra e ao comércio representavam maiores riscos, mas com lucros mais altos, e a mineração
de prata representava a aventura especulativa por excelência de Atenas no século IV, contudo
os custos altos eram compensados por um lucro potencialmente espetacular. Uma avaliação
qualitativa da correlação entre os riscos e lucros na Atenas do século IV indica que os
investidores avaliavam frequentemente os méritos relativos às alternativas abertas e
demandavam um lucro proporcional aos riscos antecipados. Essa correlação não se originava
das ações de poucas pessoas dispersas, mas era a realidade de um ambiente econômico
povoado por investidores que empregavam uma racionalidade econômica com a maximização
de receita como preferência dominante (CHRISTESEN, 2003: 53).
Em outra perspectiva, crítica à corrente neoclássica, Polanyi (1976: 289) afirma que
a economia é uma mescla de dois significados com raízes diferentes, os quais ele denomina de
“real” e “formal”. Esta diferenciação nasceu por volta de 1870 com a teoria econômica
neoclássica de Karl Menger que apontou duas direções elementares para a economia: uma
derivada da insuficiência de meios e a outra derivada dos requisitos físicos de produção
independente da suficiência ou insuficiência de meios. Em razão das realizações bem aceitas
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da teoria de preço revelada por Menger, o novo significado formal tornou-se o significado de
econômico, e o significado mais tradicional de materialidade, que não necessariamente estava
ligado à escassez, perdeu o status acadêmico e foi eventualmente esquecido (POLANYI,
1977: 21-24). Assim, a fusão dos dois significados de econômico, o de “subsistência” e o de
“escassez”, passou a ser feita sem consciência dos perigos para a clareza do pensamento
econômico. Weber foi vítima desta confusão, segundo Polanyi, ao definir a ação racional pela
escolha de meios em relação a fins. “Com respeito aos fins, a escala utilitária de valor foi
postulada como racional; e com respeito aos meios, a escala de teste para a eficiência foi
aplicada pela ciência” (POLANYI, 1977: 27). Portanto, duas escalas diferentes de valor que
ocorrem para se adaptarem ao mercado.
Contudo, há escolhas de meios sem escassez, e escassez de meios sem escolha. A
escolha pode estar determinada por uma preferência entre o bem e o mal, matéria da ética, ou
por uma possibilidade de diversos caminhos (meios) que conduzam a um fim perseguido, que
tenham as mesmas vantagens ou desvantagens. É, portanto, puramente operacional. “O
costume e a tradição, geralmente, eliminam a escolha, e se a escolha existir, não necessita ser
induzida pelos efeitos limitantes de alguma ‘escassez’ de meios” (POLANYI, 1977: 27).
Assim, os termos escolha, insuficiência e escassez deveriam, segundo Polanyi, ser
cuidadosamente vistos em sua relação mútua. A economia formal aplica-se a uma atividade
econômica de um tipo definido; isto é, o sistema de mercado, mais especificamente os
mercados criadores de preço, pois a introdução geral do poder de compra como meio de
aquisição converte o processo de satisfação de necessidades em uma assignação de recursos
escassos com usos alternativos. Disso se depreende que tanto as condições da escolha como
suas consequências são quantificáveis em forma de preços.
A economia “real” deriva da dependência do homem com a natureza e com seus
semelhantes para conseguir seu sustento e se refere ao intercâmbio com o meio natural e
social, “na medida em que é esta atividade a que proporciona os meios para satisfazer as
necessidades materiais” (POLANYI, 1977: 27). O significado “real” ou “substantivo” nasce
da dependência patente do homem à sua sobrevivência, que se dá por uma interação
institucionalizada entre os homens e seu meio natural. Assim, estudar a subsistência do
homem é estudar o processo que o supre com os meios de satisfazer suas carências (ou
necessidades) materiais. Este é o sentido de econômico para Polanyi. A concepção “real” ou
“substantiva” é uma concepção empírica da economia. A economia é uma atividade
institucionalizada de interação entre o homem e seu entorno, que dá lugar a um fornecimento
continuo de meios materiais de satisfação das necessidades (POLANYI, 1976: 293). Não é o
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processo econômico como um todo que se institucionaliza, mas sim, a parte composta por
ações humanas. Portanto, a economia humana encontra-se integrada e submergida em
instituições econômicas e não econômicas.
O estudo do lugar cambiante que ocupa a economia na sociedade é a análise de como
está institucionalizada a atividade econômica em diferentes épocas e lugares e deve começar
pela forma como a economia adquire unidade e estabilidade; isto é, pela interdependência e
regularidade de suas partes. Tal unidade é resultado de formas de integração, que se
manifestam em diferentes níveis e em distintos setores, impossibilitando-nos selecionar uma
delas como dominante para classificar os diferentes tipos de economias (POLANYI, 1976:
296). A observação empírica mostra que as principais formas de integração são a
reciprocidade, a redistribuição e o intercâmbio. Nas sociedades do mundo antigo, a vida
econômica é parte do tecido cultural total, onde se encontra embedded (imersa) em modelos
de vida que não são genuinamente econômicos, resultando em um predomínio da
reciprocidade e da redistribuição, estando o intercâmbio, os atos de troca enquadrados em um
sistema de mercados criadores de preços, em um lugar não primordial, ou mesmo
completamente ausente. Portanto, de acordo com Polanyi, a existência da economia como
uma instituição separada, especializada nesta função, é uma exceção histórica e não o
resultado da tendência de toda sociedade global.
A corrente econômica em que Weber estava imerso acreditava que a vida econômica
se reduzia a atos de intercâmbio realizados por meio de regateio que se cristalizava no
mercado. Segundo esta corrente, o intercâmbio e o mercado nunca estão dissociados. Em suas
considerações sobre o mercado, escritas em um capítulo inacabado de Economia e
Sociedade, Weber afirma que os membros do mercado competem por oportunidades de troca
e o fenômeno específico do mercado é o regateio (WEBER, 2004: 419). Ele chegou a ver
diferentes tipos de mercado (local e externo), mas a ideia de racionalidade e impessoalidade,
atrelada à troca, ao regateio e ao dinheiro é fundamental na sua definição de mercado, um tipo
ideal. Apesar de não negar a existência de mercados no mundo antigo, Weber concluiu que
um tipo de economia de mercado existiu, mas sem corresponder exatamente à variante
moderna, posto que o capitalismo no mundo antigo sempre teve uma existência limitada e
frágil, em um cenário no qual os arrendamentos de tributos tiveram enorme significado.
Diferente do capitalismo moderno, devido à predominância de atividades aquisitivas como o
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arrendamento privado de tributos, o capitalismo político ia na contramão do capitalismo
orientado pelo mercado.
Polanyi nega peremptoriamente que o mercado e o intercâmbio (troca) estivessem
inextricavelmente ligados. De acordo com Polanyi, o intercambio é um movimento mútuo de
apropriação de produtos entre sujeitos, feito por equivalências fixas, sob formas de integração
caracterizadas pela reciprocidade ou redistribuição, ou por equivalências negociadas, gerando
uma forma específica de integração, o intercâmbio, com mercados criadores de preços. Só
neste último caso, há regateio entre as partes. Para Polanyi, portanto, o mercado tem dois
significados correntes: 1. um lugar tipicamente aberto, no qual os gêneros alimentícios ou
alimentos preparados podem ser comprados em pequenas quantidades, em geral, por taxas
fixas; 2. um mecanismo de oferta-demanda-preço, por meio do qual o comércio é conduzido,
porém não necessariamente ligado a um local definido ou restrito ao varejo de alimentos
(POLANYI, 1977: 124). Na verdade, estes significados são distintos. Do ponto de vista
formalista, o segundo significado tornou-se a definição institucional de mercado. Tal
definição é oriunda da ideia de que o mercado é o lugar do intercâmbio, pois nunca estão
dissociados. A vida econômica se reduz a atos de intercâmbio realizados por meio de regateio
que se cristaliza no mercado. Assim, o intercâmbio é a relação econômica e o mercado é a
instituição econômica.
A instituição do mercado tem dois desenvolvimentos diferentes: um externo à
comunidade e o outro interno, segundo Polanyi. O primeiro está intimamente ligado à
aquisição de mercadorias de fora, enquanto o segundo, à distribuição local de alimentos. Para
analisar este segundo tipo, Polanyi se volta para a ágora, na Grécia clássica, que ele chama de
mercado local. A ágora, apesar de ser considerada como o “mercado de cidade” mais antigo
do Ocidente, não foi, historicamente, um local de mercado, mas um lugar de encontros
(POLANYI, 1968: 312). Desde o século VI a.C., Atenas possuía um tipo de mercado, onde o
alimento - leite fresco e ovos, legumes frescos, peixe e carne - era vendido a varejo. Em geral,
esses artigos eram produtos da vizinhança, vendidos por homens e mulheres camponeses, por
dinheiro ou por barganha. O freguês, que procurava por sua comida no mercado, era o
trabalhador pobre ou transeunte que não tinha household própria. Nem o comerciante recém-
chegado, nem o residente próspero frequentavam o mercado local primitivo; uma prova de
que ele servia às necessidades das pessoas comuns. Também figuravam como características
da ágora as fronteiras rígidas, especificações de quem e com quem poderiam comercializar;
os inspetores oficiais de mercado e os tipos de mercadorias a serem vendidas. Tudo isto nos
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mostra a preocupação da pólis com o tipo de mercado que funcionava em seu interior
(POLANYI, 1977: 167).
A ágora é, em primeiro lugar, uma reação às formas de distribuição feitas pelas
households senhoriais, e, em segundo, um meio pelo qual a democracia mantinha a
subsistência de seus cidadãos. A subordinação do indivíduo à pólis, ao Estado, era completa,
tanto na esfera política quanto militar, impedindo qualquer ideia de direitos individuais. Tal
ideia, de uma responsabilidade total da pólis sobre os cidadãos, estendeu-se ao plano
econômico. O Estado coletava mercadorias, serviços, dinheiro, tesouro e grãos e os recolhia
nos armazéns do Estado ou, em casos emergências, nas households. O princípio era a junção
do caráter político da pólis, - manter a subsistência de seus cidadãos -, com o papel
redistributivo da ágora (POLANYI, 1977: 160-162).
Havia uma separação institucional não somente entre comércio e comerciantes
internos e externos, mas também entre seus lugares e preços. O empório estava localizado no
porto de Atenas, no Pireu e a sua separação do resto da cidade era simbolizada pelas pedras
fronteiriças que a circundavam e a separavam do próprio Pireu que, legal e
institucionalmente, era uma parte de Atenas. Apesar de não haver dados concretos sobre o
movimento de preços de grãos, é possível inferir que os preços dos grãos vendidos na ágora
não variavam de acordo com as flutuações de preços no empório. Atenas sempre se
preocupou em manter o preço do grão na ágora abaixo do preço do empório, inclusive com
mecanismos rígidos de controle, como, por exemplo, a proibição de intermediários e a
imposição de um limite quantitativo de compra de grãos no empório. O resultado dessa
política era o de “unir” o preço da ágora ao do empório, o que constituía um traço de
continuidade do passado redistribuitivo de Atenas (POLANYI, 1977: 236-238).
Apesar de os gregos terem inventado os mercados criadores de preço, com alguma
expressão no final da Atenas clássica, eles sempre tiveram um papel subordinado, pois foi
somente no século XIX, que eles adquiririam autonomia. Dessa forma, não houve nenhuma
ligação entre mercados e liberdades pessoais e políticas e outras realizações da Grécia
clássica.
Por outro lado, Polanyi (1976: 65) afirmou que na Babilônia não havia nada que
pudesse se assemelhar a um sistema de mercado. Não há nenhuma prova material ou escrita
de algum espaço aberto que pudesse ser utilizado para tal função. O que se vê na Babilônia é
um intercâmbio sem mercado, diferente deste no que se refere às pessoas envolvidas no
intercâmbio, aos bens, aos preços e em relação à natureza da atividade do intercâmbio. Os
mercadores assírios do Karum (porto) de Kanish, por exemplo, não eram pessoas que
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ganhavam a vida com ganhos derivados das compras e vendas, das diferenças de preços na
transação. Eram mercadores por status, em virtude de seu nascimento, de uma aprendizagem
longínqua ou por designação. A menos que a designação fosse acompanhada de uma
concessão substancial de terra, suas receitas derivavam da venda de bens, sobre a qual
ganhavam uma comissão. Os preços tomavam a forma de equivalências estabelecidas pela
autoridade de um costume, um estatuto, um edito (POLANYI, 1976: 66-68).
A diferença fundamental entre o comércio administrado e o comércio de mercado
reside na ausência de riscos para os comerciantes, tanto no relativo às expectativas dos preços
quanto à possível insolvência do devedor. Não há perdas pela flutuação de preços. As
atividades deste comércio administrado são qualificadas de disposicionais, nas quais os
comerciantes atuavam dentro do marco de uma organização governamental e uma rede de
instituições oficiais e semioficiais que lhes dava garantias por meio de normas legais. Não
obstante, as transações privadas não eram proibidas, na medida em que as normas legais
tratavam da separação institucional das disposições comerciais relativas aos negócios públicos
com respeito às transações privadas. O mercador atuava em virtude de seus atributos públicos
para negociar o cobre, manejando contingente do governo ou à margem de suas atividades
públicas, privadamente. No primeiro caso, seus passos estavam formalizados e seus atos eram
a plasmação de disposições; na esfera privada, por outro lado, estas eram informais e podiam
descrever-se como transações.
Boa parte das conclusões de Polanyi sobre a Mesopotâmia vem sendo questionadas,
tanto quanto aos princípios, quanto às informações que envolvem a arqueologia. Gledhill e
Larsen (1982), por exemplo, contestam Polanyi quanto à inexistência de mercados na
Mesopotâmia. A ausência de espaços abertos nas cidades escavadas não se sustenta, visto que
nem todas as cidades foram escavadas, e os portões da entrada das cidades muitas vezes,
parecem ter funcionado como a ágora grega. O conceito e o papel do karum são revistos à luz
de novas descobertas. Segundo os autores, essa palavra, originalmente, denotava um lugar de
ancoragem e posteriormente, se constituiu em uma comunidade de mercadores que viviam no
porto. O karum assírio de Kadesh era, segundo as evidências, um típico assentamento de
casas privadas e lojas habitadas pertencentes a mercadores. Em geral, o karum babilônico
antigo era uma comunidade de mercadores da cidade, com caráter corporativo e até um
aparato administrativo e judicial separado. Referências da relação entre o palácio e o karum
podem ser encontradas em um decreto real publicado no período babilônico tardio. O palácio
podia aplicar metade do capital nas operações realizadas no karum. Os mercadores eram
responsáveis pela coleta de impostos proveniente dos contribuintes que se utilizavam
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diretamente das atividades comerciais. O palácio usava os mercadores independentes do
karum como agentes, porque seu objetivo era evitar a administração direta da produção, do
comércio e da supervisão e forçar os comerciantes a correrem os riscos do negócio. Portanto,
esses comerciantes eram livres para acumular riquezas. Além disso, estudos dos preços e
salários na antiga Babilônia mostram um padrão substancial de flutuações nos preços das
mercadorias básicas, o que reflete provavelmente desenvolvimentos no padrão econômico da
região como um todo (GLEDHILL, LARSEN, 1982: 204-208). Portanto, diferente de
Polanyi, esse estudo revela que o mercado operava com lucros e perdas e que a liberdade para
acumular riquezas era uma condição para que eles assumissem os riscos dos negócios.
Weber aborda as divergências dos desenvolvimentos econômicos e políticos entre
Ocidente e Oriente sob outra perspectiva. Para ele, é só nas cidades-Estados que se
desenvolvem novas formas de regra política, interação econômica, ou legitimação ideológica
em entidades geopolíticas claramente diferenciadas. O oikos tem um papel de destaque na
Grécia nos estágios iniciais, no Oriente Próximo e, no final da Antiguidade, no Império
Romano. Esse papel do oikos está associado à realeza no Ocidente e Oriente, sendo, no
entanto, interrompido no Ocidente com o surgimento da pólis aristocrática e a abolição da
realeza. No Oriente Próximo, a rígida burocracia estatal reprime o capitalismo, acentua e
consolida o papel do oikos real; monopólio daquele que detém o poder político, ideológico e
econômico. Weber reemprega o oikos, diferente de Rodbertus e Bücher – que o definem como
a principal instituição da civilização greco-romana – como predominante nas realezas
burocráticas orientais e como um obstáculo ao surgimento da pólis e ao desenvolvimento do
capitalismo e feudalismo. São as realezas burocráticas que determinam o curso das transações
econômicas em detrimento das forças mercantis, e consequente, do mercado. Weber, coerente
com sua hipótese de “tipos” de capitalismo, indica uma atrofia das liberdades comerciais e do
próprio capitalismo no Oriente, em virtude do fortalecimento do papel do Estado, e, por outro
lado, ao enxergar a formação de um tipo de capitalismo no Ocidente - o político -, admite um
espaço para transações comerciais com fins lucrativos, porém, sem a racionalidade do
capitalismo moderno.
Em suma, enquanto Weber acredita que o poder da burocracia estatal, no Oriente,
inviabilizava a formação de mercados e de cidadãos que pudessem fazer frente ao poder do
soberano, tornando-os muito mais dependentes do poder real que no Ocidente, Polanyi
acreditava que a ausência de mercados no Oriente era resultado de métodos administrativos
poderosos fortemente mantidos nas mãos da burocracia central, contudo, as transações sem
ganho e as disposições reguladas pela lei revelavam uma esfera de liberdade pessoal nunca
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anteriormente vista na vida econômica do homem. Portanto, ausência de mercado não
necessariamente estava relacionada com a ausência de liberdades pessoais, pressuposto de
Weber para constituir seu tipo ideal de mercado. Por outro lado, tanto Weber quanto Polanyi
veem um incremento das transações econômicas no Ocidente, marcado para Weber pela
ausência de racionalidade econômica voltada para o lucro, de caráter estamental, tradicional e
subordinada ao capitalismo político, e para Polanyi pelo surgimento dos mercados criadores
de preço, com alguma expressão no final da Atenas Clássica, mas com um papel subordinado,
sem nenhuma ligação com liberdades pessoais e políticas e outras realizações da Grécia
clássica.
Considerações finais
Max Weber e Karl Polanyi fizeram parte de uma tradição de pensamento que
defende as fronteiras greco-romanas com as civilizações do antigo Oriente Próximo, em
detrimento de contatos com Oriente antigo e dos valores e construções eminentemente
orientais.
Para Weber, esta fronteira apresentou dois contrastes: o primeiro entre a cidadania
greco-romana e a teocracia do Oriente Próximo, oriundo da presença das póleis no Ocidente e
gerador de padrões democráticos em oposição a formas despóticas de governo no Oriente
Próximo antigo; e o segundo, pela presença do capitalismo no Ocidente antigo, de caráter
irracional, e sua ausência no Oriente, consequência da presença de uma burocracia estatal
dependente do poder real, impedindo o desenvolvimento do mercado e do capitalismo.
Polanyi, crítico de Weber em relação aos traços neoclássicos de sua definição de economia,
defendeu o contraste afirmando a presença de mercados, majoritariamente, do tipo
“administrado”, no Ocidente, e sua ausência no Oriente, amparado na teoria da separação de
mercados físicos e na impossibilidade da reciprocidade, redistribuição e mercado conviverem
lado a lado.
Não há dúvidas de que os desenvolvimentos entre Grécia e Mesopotâmia apresentam
distinções, sendo, por exemplo, a Grécia oriunda da Idade do ferro, com suprimentos
abundantes desse metal, facilitando a acessibilidade às armas e ferramentas, e a Mesopotâmia,
com dificuldades para suprimentos desse metal, de madeira e pedra, levando-a a criar
condições para o transporte desses produtos. Contudo, há um grande número de estudiosos
que defende semelhanças entre essas economias, estando uns na defesa de uma única cultura
mediterrânea oriental que se estendia da Mesopotâmia até o Adriático, enquanto outros
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acreditam que não houve nenhum ponto de distinção no Mediterrâneo, visto que a bacia toda
estava unida em um padrão caleidoscópico de interações mutantes (MORRIS; MANING,
2005: 1). Segundo Goody (2008: 54) nenhuma economia da região correspondeu a um tipo
puro e houve muitas semelhanças entre as práticas econômicas das diferentes sociedades. O
autor contesta o corte abrupto entre a Idade do Bronze e o limiar da civilização grega,
defendidos por autores como Weber, Polanyi e Finley, lembrando a existência de mercados
independentes nas vilas na África em períodos anteriores à Idade do Bronze.
Os argumentos defendidos por Weber e Polanyi acerca da economia antiga
reforçaram o particularismo do Ocidente relacionado com liberdade, democracia, capitalismo
e mercado. Tais elementos fortaleceram a ideia de ausência ou inferioridade do Oriente em
relação à possibilidade de desenvolvimento da democracia, liberdade, capitalismo e mercado.
Contudo, os estudos atuais, em uma perspectiva menos holística e ideológica, mais histórica e
antropológica, tendem a superar essas dicotomias e reforçar os laços e intercâmbios entre as
civilizações greco-romanas e do antigo Oriente Próximo. Eis um importante canteiro de
pesquisas que se abre para o nosso século.
Referências bibliográficas
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21
UMA HISTÓRIA PEREGRINA. ANTROPOGÊNESE NA HISTÓRIA DE COLÔMBIA
DE HENAO E ARRUBLA (OU SOBRE OS CAMINHOS QUE LIGAM
ANTIGUIDADE E MODERNIDADE)
Andrés Alarcón-Jiménez1
O tema geral deste artigo é a relação entre “História antiga”, a “história moderna” e
os seus usos no presente. Para abordá-lo, apresentarei o caso particular, a escrita de dois livros
(manuais de ensino) de História Pátria da Colômbia que eu acredito, pelos motivos a serem
expostos, são paradigmáticos (KUHN, 1970: 10 et al.) e concebem nele um sujeito histórico
de origem divina, um peregrino (apud. IBARRA, 1997:81 et. al.), a partir do que eles
denominam a “unidade da espécie humana” (cf. Imagem 1).
Esses dois textos foram escritos por Jesús María Henao (1870-1942) e Gerardo
Arrubla (1972-1944), com ocasião do concurso literário organizado pela Academia de
História de Colômbia, para comemorar o primeiro centenário da Independência da Colômbia,
no ano de 1910. Ambos os textos, únicos concorrentes, e vencedores, tornaram-se, por tal
motivo, “manuais”, livros de texto destinados ao ensino da História nacional em todo o país,
por decreto presidencial de 1911.
1
Antropólogo, Universidade Nacional da Colômbia. Mestre e Doutor em História Cultural, IFCH-UNICAMP.
Email: andalajim@yahoo.com. Este trabalho faz parte de uma pesquisa de doutorado concluída em 2013.
22
Na lógica de Henao e Arrubla, o leitor do livro é concebido como projeto de cidadão
em crescimento, um indivíduo introspectivo. Nesse esquema que representa a concepção de
infante e de adolescente que eles concebem, o caminho que vá do Compendio a História da
Colômbia, é percorrido por um cidadão em formação que desenvolve suas capacidades
cognitivas e morais (cf. IBARRA, 2008) e devem um colombiano modelo e amante da pátria.
A História se pensa como reguladora desse processo. Fornecem-se para ele, então critérios de
verdade e de bondade para julgar os textos baseados, em uma ideia de autoridade maternal,
cuja origem é duas entidades femininas, encarnadas na “Pátria” e na “História”.
Este leitor que cresce encontra no texto maior, a “História de Colômbia” uma ampla
bibliografia, fontes primárias, crônicas espanholas, jornais e literatura, entre outros materiais
de leitura e critérios de leitura e interpretação. Como ajuda pedagógica e narrativa encontra
como gravados e diversos quadros analíticos. Também inclui como acontece no caso do
“Compendio”, versão derivada da anterior e destinada às crianças –que não inclui nem
referencias nem bibliografia, mas si definições- breves textos sobre o propósito cívico-moral
da História destinado ao leitor que ligam personagens e episódios concretos do passado com
modelos de ser humano, enfatizando sempre o papel de juiz do Historiador, assim como o
caráter moral das suas noções de bem, de verdade e, portanto, das suas interpretações. Essa
lógica se constrói a partir de outro elemento característico, a sujeição, naturalizada, da
História nacional à História sagrada/universal e à pré-história colombiana e, na mesma lógica,
dos sujeitos (leitor ou personagem histórico) ao reino do Deus católico (cf. IBARRA, 1995;
1998a; 1998b).
Neste cenário, as origens antropológicas do “colombiano” são essenciais para
estabelecer o propósito e resultado da História, uma narrativa circular que se espirala quando
associada ao eixo temporal imposto pelo calendário. Com efeito, por meio de uma série de
recursos retóricos põe-se em movimento uma narrativa que liga à história do povo de Deus, o
elemento greco-latino da história universal, o elemento “espanhol” e católico da Ibéria
reconquistada, e as diversas culturas indígenas conquistadas com o “povo colombiano”.
Devido ao favorecimento estatal, outras versões da História da Colômbia, que estavam
enraizadas em uma visão de mundo mais “secular”, ligada, atualizada e construída com
respeito das teorias e tendências da historiografia “profissional” da época, não conseguiram
permear o sistema escolar colombiano. Por tal motivo essas duas Histórias são consideradas
paradigmáticas, pois são, pelo favorecimento do estado e pela sua presença na educação de
milhares de colombianos por várias décadas, um ponto nodal no processo constitutivo da ideia
História de Colômbia. Ou seja, o pensamento Histórico de Henao e Arrubla tornou-se a
23
referência oficial de como conceber, narrar, ler e ensinar a História do país. Nesse processo, e
sem conter um modelo explícito de que era ser colombiano, mas de como ser um “bom
cidadão”. Porém, esses dois textos apresentam quadros de costumes próprios da elite política
do país – como veremos habilmente ligadas historicamente com a civilização ibérica-, como
modelos a imitar e como exemplos de toda a cultura do país (cf. HERRERA, 2003; PINILLA,
2003; ROMERO ROMÁN, 2008).
Temos então que o ponto nodal que liga a História Antiga, Sagrada e da Civilização
existe como parte da estrutura destes livros, não só devido às necessidades pedagógicas,
religiosas, culturais e civilizatórias, mas também, porque os autores, os seus patrocinadores e
o público colombiano, partilhavam certas visões de mundo. Mas também temos o fato de que
eles narraram uma História, não só com ajuda de uma cronologia, oficialmente calibrada e
institucionalizada no calendário oficial do Estado bem como no Litúrgico, e com ajuda de um
mapa cujo centro era a Capital, mas por meio da língua oficial, comum, dominante e nacional
da Colômbia, o espanhol usado no cotidiano pela elite de Bogotá e Medellín, padronizado e
ensinado em textos de ensino, nas Constituição, bem como na “literatura” nacional, nos
jornais etc.
Este fato é relevante, porque como bem aponta Dux (2011; cf. FERRO, 1981) no
processo de desenvolvimento da criança, a língua é parte das ferramentas necessárias e
distintivas que marcam a construção da visão de mundo e das formas de agir nele. Nesse caso,
a linguagem que é usada de formas específicas para dar vida à narrativa histórica e, portanto
estrutura a memória ortopédica, fornece ao leitor, por meio da narrativa e de imagens e mapas
cartográficos, um conhecimento da realidade, do universo onde o sujeito existe em relação
consigo mesmo, com os outros e com o mundo material (mesmo que este universo seja
considerado como um “imaginário”, “ficção” ou como “tradição inventada”) e, portanto,
cumpriria uma função particular na estruturação da visão de mundo do ser humano em
formação.
Assim, este tipo de manufaturas concretas, apresentadas em um formato popular no
mundo inteiro (FERRO, 1981) não é considerado como “História” no sentido dado a um texto
profissional contemporâneo. Porém, acreditamos que para o leitor são livros de História que
contêm, e geram conhecimento do mundo (cf. FERRO, 1981 e BALIBAR, 1997:117 et.al.).
Aliás, estas manufaturas foram produzidas em contextos diversos e em condições e visões de
mundo diferentes das nossas. Será no decorrer do tempo, e por meio de outros processos que
elas atingirão o nosso presente, processos que denominaremos “usos do passado”.
24
Usos do passado como conceito aberto
Nas pesquisas de Pedro Paulo Funari, Renata Garrafoni, Glaydson José da Silva,
organizadores dessa coletânea, utiliza-se, de forma explícita ou não a expressão “usos do
passado”. Por meio desta frase exprimem e instrumentalizam seu olhar historiográfico e
arqueológico. Aplica-se tanto a escolha de temas, como a seu estudo, à leitura e interpretação
de fontes e cultura material, bem como às manufaturas dos campos historiográficos e
arqueológicos feitos a partir delas, os interesses que representaram, quais foram os agentes
que as produzem, quais foram seus destinatários, quais os usuários e quais os contextos de uso
dela. Considera-se que o “passado” é manufaturado em contextos concretos. O autor,
considerado como um agente imbricado nas redes sociais e de poder, pesquisa e escreve
textos cuja narrativa, com ou sem sua aprovação, passam a fazer parte dos projetos
sociopolíticos do seu tempo, e são destinados para construção de políticas de controle
populacional que atingem desde o nível individual até o macrossocial. Cada produto, portanto,
possui funções e públicos específicos. Nesses processos, estas manufaturas acabam sendo,
literalmente incorporadas por cada agente, e naturalizados no sentido literal de construir ou
modificar a nossa visão de mundo e, portanto, de agir no universo sociocultural e de
transformar o mundo material. Estes usos do passado ecoam duas ideias clássicas, apropriadas
e elaboradas nas décadas recentes: a ideia de encenação e uso do passado de Karl Marx
desenvolvidas no seu famoso libelo “O 18 de Brumário de Luis Napoleão” (1851-52) e a
ideia de uso e abuso do passado do ensaio de Friedrich Nietzsche (1873) do mesmo nome.
Enquanto Marx, como bastante humor apresentava criticamente o uso do passado, em um
contexto concreto, como “farsa” - usada de fato, em um sentido muito teatral que lembra a
noção contemporânea de “performance” –, ações que qualificam certamente como
reacionárias e mágicas pois as pessoas ritualmente vestiam-se com roupas do passado para
modificar uma situação no presente, Nietzsche apontava criticamente, entre outros efeitos,
como agia o poder político e cultural do “passado” sobre os hábitos dos humanos que, dessa
forma, acabavam submetendo-se ao poder dele como aos poderes que o manipulavam.
Porém, Marx e Nietzsche, e a diferença dos olhares contemporâneos, conceberam
aos seres humanos como agentes com a capacidade de transformar a realidade e não só serem
resultados dela. Nas versões contemporâneas, o esquema interpretativo está mediado por
aquele da sociologia francesa clássica, ou seja, pela lógica da derivação (DUX, 2011). Neste
esquema, que assimilara à teoria linguística, literária, filosófica e antropológica próprias da
Academia francesa, ao mesmo tempo em que se autodenominaram “filosofias com sujeito”,
25
substitui-se o sujeito pelo modelo de “sujeito”, entidade de origem social, campo que, alias, é
usada como origem e explicação de todos os fenômenos sociais. Para integrar de novo o
sujeito podemos pensar uma solução no seguinte sentido: o individuo é o agente ativo no
longo processo de construção do mundo e a História começa a ser construída por ele desde a
infância, mas ele faz parte de um universo sociocultural já organizado pelos adultos, universo
humano que muda no tempo como o universo físico. Ambos universos, onde o individuo
cresce, aos quais se integra, os quais ele transforma e com os quais interage, dependendo da
data e do lugar, apresentarão umas características que marcaram seu devir.
Nesse processo de auto-organização de si, os manuais, os livros de História, entre
outros produtos culturais característicos dos últimos dois séculos, terão um papel importante.
Hoje em dia, e a pesar da radical mudança do estado, e das formas, de registro e circulação, e
do suporte material da informação, a História formatada como manual ainda parece fazer um
grande sucesso dentro e fora do meio escolar, não só como produto editorial, mas como uma
tecnologia de si especial que pode denominar-se como memória ortopédica (apud. BALIBAR,
1997, idem; FOUCAULT, 1991; MCLUHAN, 1962 e 1964; STEEDMAN, 1989). Esta
memória ortopédica devém técnica de si nos processos de construção e transformação do
universo macrossocial (cf. GOLDSTEIN, 1999 e 2005) no contexto concreto do Estado Nação
(cf. BALIBAR, 1997) é desenvolvida por diversos agentes que como Henao e Arrubla, são
adultos já formados, imbricados em uma ordem social concreta e formados em condições
particulares. Ela fornece de um olhar, lembranças e experiências destinadas à formação do
individuo e, só em alguns casos, torna-se objeto de estudo e reflexão.
Mas, as formas concretas de construir uma memória “social” ou uma identidade são
particulares a cada sujeito. Cada um de nos constrói esta memória ortopédica, que pode se
representar como, ou tornar em, uma extensão do corpo, na forma de um livro (de história
antiga ou moderna, de religião, ficção, etc.), um objeto (por exemplo, um dentre aqueles
definidos como “patrimônio”), uma música, uma bandeira (cf. MCLUHAN, 1962, 1964). Por
outro lado, essa memória ortopédica nos fornece de lembranças de experiências que não são
nossas, mas que se torna uma como tal. Ou seja, é um dispositivo cultural (cf. BALIBAR,
1997, idem), que, nesse nosso universo, construímos desde a infância junto com a língua e a
memória, as noções de tempo, espaço e objeto, e, portanto de passado e de História, estruturas
que atingem o processo de constituição da nossa subjetividade/identidade (cf. AGAMBEM,
2009, STEEDMAN, 1989 e FOUCAULT, 1991).
O caso de estudo
26
A consolidação de uma narrativa Histórica nacional dar-se-ia no período de 1870 a
1910, período de tempo durante o qual o processo tomaria uma dimensão e formas concretas.
O primeiro evento importante é a materialização do único processo de modernização e
secularização da Educação do século XIX (cf. HELG, 1987) aconteceu com a reforma de
1870, quando o país estava sob o regime dos liberais e se chamava Estados Unidos da
Colômbia (). Ela traria os conceitos de educação, moderna, infantil e massiva, que estavam
circulando na Europa e no Continente. Para seu desenvolvimento trouxeram-se instrutores
prussianos que eram protestantes; isto serviria como desculpa para mais uma guerra civil ao
interior da jovem nação, no ano de 1885. O ano seguinte, os vencedores, membros do
movimento “La Regeneración” se consolidariam no poder, materializado na Constituição de
1886, que fundou a atual República de Colômbia, e a Concordata com o Estado Vaticano do
Leão XIII, de 1887. Mas projeto educativo e historiográfico do partido instalado no Poder só
consolidar-se-iam na década de 1900, no contexto da guerra civil dos “Mil Dias” (1899-1902),
e após o fim dela, com a consolidação da república conservadora.
Depois de obtida a Independência, muitos políticos e membros das elites, não só por
imitar os costumes das Metrópoles, mesmo que em profunda relação com elas, tomaram
consciência da falta de uma narrativa, de um passado “próprio”, por diversos motivos. O
assunto tornar-se-ia parte dos projetos políticos do século XIX e vários autores produziriam
textos de diversa índole e impacto (cf. AGUILERA, 1951 e MARTÍNEZ, 2002). Mas a
política sobre o passado oficial só viria se desenvolver junto com a fundação da Academia de
História (1902), quando diversos pensadores ligados ao partido vencedor que se traçariam e
estabeleceriam os alicerces da narrativa histórica oficial colombiana. Seria durante a ditadura
de Rafael Reyes, se estabeleceu o projeto para comemorar os primeiros 100 anos da
Independência da Colômbia, a acontecer no ano de 1910, em Julho (cf. GARAY, 2010).
Como parte dessas comemorações, os membros da Academia de História, elevada a órgão
consultor estatal, e cujos membros eram membros do Governo e das elites, levavam já alguns
anos produzindo pesquisas e ensaios de diverso tipo no campo da arqueologia e da
historiografia. A Academia organizou então um concurso literário que, entre outras categorias,
incluía uma sobre História pátria para a educação de crianças e jovens e os vencedores foram
Jesús María Henao e Gerardo Arrubla.
Henao, nascido em Amalfi (Antioquia, Col), e Arrubla, nascido em Bogotá (cf.
AGUDELO, 1995; GUALTERO, 2005; MELO, 2010; TOVAR, 1999) receberam educação
em escolas católicas onde a História Pátria já era parte do plano de estudos. De fato, ao terem
estudado ambos os autores no mesmo colégio em Bogotá, o “San Bartolomé” e, portanto, é
27
possível que tivessem usado o mesmo texto, “Historia de Colombia contada a lós niños”, de
José Joaquín Borda (1972), de uso exclusivo nessa importante instituição segundo Aguilera
(1951: 53). Por outro lado, ambos os autores formaram-se como advogados em Bogotá, na
mesma universidade, entre as décadas de 1880 e1890. Nesse sentido, eles tiveram contato, na
sala de aula, com as filosofias do Comte e do Spencer. Pertenceram, ou trabalharam para o
partido ultraconservador e católico, denominado “La Regeneración” (cf. AGUDELO, 1995;
MELO, 2010 e TOVAR, 1999), cujo projeto político se materializou na Constituição de 1886
e na Concordata de 1887 com o estado vaticano que, sob o comando do Leão XIII trouxe de
volta o pensamento tomista reconstruído para os novos desafios da Modernidade.
Escreveu-se e alicerçou-se a História de Henao e Arrubla, com respeito da sua base
antropológica, cultural e moral, apoiando-se em alguns textos clássicos, em trechos bíblicos,
ensaios, em textos de Arqueologia ou de temas arqueológicos contemporâneos deles (cf.
Imagem 1).
Henao e Arrubla construíram seu universo cronotrópico (apud. BAKHTIN, 1981)
para regular o processo de desenvolvimento moral e cívico do “aluno” que, por meio da
incorporação da narrativa deveria devir um cidadão, um colombiano exemplar: o centro e
origem do Homem é o Gênese Bíblico que é caracterizado por eles, como fato científico
comprovado. Como parte desse universo cronotrópico, a Cultura Clássica e o Mundo Antigo
ganharam um espaço relevante para a construção da ideia de “Colômbia”. Para explorar esta
afirmação tomamos três referências bibliográficas que Henao e Arrubla fornecem nesse
sentido e que fundamentam, na visão deles, uma forma particular de construir e nortear a
História nacional.
Por um lado, é importante ressaltar que a única fonte – citada por eles- do campo da
pedagogia destas Histórias da Colômbia é a obra sobre metodologia de ensino da História de
José M. Muñoz Hermosilla de 1893 (GUALTERO, 2005 relaciona os textos – não os autores-,
principalmente com a pedagogia de J. Pestalozzi). Este tratado sobre o ensino da História
convidava ao docente, não só a ensinar história concomitante com geografia – uma estória
contida, impressa e que se desloca dentro das fronteiras mapa da nação. Entre outras técnicas,
Muñoz propôs criar analogias, identidades, entre às culturas antigas clássicas e as modernas
que se estabeleciam de forma deliberada a partir de dois eventos históricos explicados por
meio da identificação de quatro civilizações, no esquema do tipo a cultura X venceu à Y tal
como a cultura W venceu à V.
Em segundo lugar, estabelecem uma ponte que, girando entorno à história bíblica e
ao centro do universo da narrativa imperial ibérica que tinha se apropriado do passado romano,
28
tanto clássico como, na prática, católico. Esta origem, que sustenta a sua tese da unidade da
raça Humana baseada e centrada na Bíblia, Humanidade que peregrina até as terras
americanas onde convergem os antigos índios e os civilizados espanhóis. Estruturaram uma
história humana que ligava a História Universal do Povo de Deus com a Colombiana por
meio dos seus sujeitos históricos. Esse esquema de sujeito e de moral, ligados à causalidade
histórica foi adaptado a partir, entre outros, do ensaio “América Precolombina” (1887) do
bispo uruguaio Mariano Soler.
A importância das culturas antigas, na visão de Henao e Arrubla, foi desenvolvida a
partir do ensaio de Miguel Antonio Caro que citam no seu texto 2 : ela é herança dos
colombianos devido à Conquista Americana por parte do espanhol. O argumento de Caro
tinha outro objetivo: reinterpretar o processo de independência e fundação de Colômbia a
partir de uma interpretação que ligava de novo sua cultura à ibérica e questionava o mito
fundacional modelado na própria ideia de revolução:
Los romanos tenían una frase expresiva y exacta que, no sin misterio, ha
desaparecido de los idiomas modernos – mores ponere- fundar costumbres, lo cual
es muy diferente de dictar leyes. Moresque viris e moenia: Costumbres y murallas,
cultura religiosa y civilización material, eso fue lo que establecieron los
conquistadores, lo que nos legaron nuestros padres, lo que constituye nuestra
herencia nacional, que pudo ser conmovida, pero no destruida, por revoluciones
políticas que no fueron una transformación social... (Caro, 1911).
E por meio dessa reinterpretação, Caro ligou Colômbia a sua ideia particular de
“Espanha”, apropriando-se do seu passado imperial, uma verdadeira amalgama civilizada do
“latino”, “castelhano” e “católico”. Porém, Henao e Arrubla transformaram essa visão. Por
um lado, tenderam um laço de continuidade, de características culturais, raciais e morais (uma
trindade condensada no esquema de um sujeito só) entre os colombianos da Colônia e da
República com os espanhóis, representados por políticos, militares e missionários.
La conquista de América ofrece al historiador preciosos materiales para tejer las más
interesantes relaciones; porque ella presenta reunidos los rasgos más variados que
acreditan la grandeza y poderío de una de aquellas ramas de la raza latina que
mejores títulos tienen a apellidarse romanas: el espíritu avasallador y el valor
impertérrito siempre y dondequiera; virtudes heroicas al lado de crímenes atroces...
(Caro 2011 (1911): 385).
2
Caro está citando “A Eneida” de Virgilio. M. A. Caro foi um importante presidente, político e ideólogo
conservador e católico e, sobre tudo, hispanista. Porém, também dedicou grande parte da sua vida ao estudo e à
tradução de obras clássicas latinas e espanholas.
29
Seguindo a Caro de forma quase literal, a civilização colombiana e seu projeto nasce,
após a guerra da Independência, como uma entidade diferente, mas herdeira da latinidade
elogiada por Caro nos seus textos, e materializada na Colômbia representada por eles. Mas,
por outro lado, interpretam a Caro de forma mais ambiciosa, estendendo a História no tempo
até a Colômbia pré-histórica, habitada pelos indígenas americanos que seriam dominados e
salvados da barbárie pelos espanhóis. Assim, mantendo a explicação do espírito espanhol
civilizatório, porém, a diferença de muitos outros livros de Historia da época, eles incluiriam
por meio da arqueologia, disciplina nova e praticada na Colômbia, por amadores nesse tempo,
os monumentos indígenas. Na visão deles, esses monumentos eram a prova material da
presença de uma civilização antiga no território nacional. A presença de monumentos
indígenas no relato da História nacional fazia projeto de vários membros da Academia como
dos interesses dos autores, sobretudo de Arrubla que dedicaria parte da sua carreira a explorar
essa área.
Ambos os autores, por meio do estudo e uso da cultura material pré-histórica para
aprofundar nas raízes colombianas, passariam a estabelecer analogias entre certas culturas
arqueológicas “colombianas” com culturas do mundo antigo mediterrâneo. De fato, quiçá por
via da sua leitura de uma tradução ao latim de Miguel Antonio Caro de um poema, em
castelhano, do sacerdote espanhol, Rodrigo Caro (1573-1647), Henao (1916) apresentaria na
sua carta a defesa e pedido de proteção das esculturas de pedra agustinianas, e para
caracterizá-las usaria uma analogia dupla, que pó um lado permitia-lhe comparar os indígenas
“pré-colombianos” com certas culturas mediterrâneas clássicas a partir da arte monumental,
mas, em segundo lugar, explicar seu auge e desaparecimento a partir da decadência dos
Impérios retratada no poema do Rodrigo Caro sobre as ruínas de Itálica, antiga cidade romana
na Espanha.
Em conclusão, o que pode ser dito é que, nesta narrativa, desenvolvida na infância da
Colômbia e destinada aos infantes colombianos, ação bem sucedida devido ao decreto
presidencial que os manteria como textos oficiais pelo menos até a década de 1940 (cf.
AGUILERA, 1951), a convergência entre o Mundo Antigo e Moderno apresenta facetas
variadas e funções concretas, como forma de localizar Colômbia dentro da História do
Homem e a do povo de Deus. A história antiga é um plano narrativo normatizado e enraizado
no universo moral e cultural das nações dominantes (e daquelas subsidiarias que incorporaram
tais ideologias como forma de vestir roupas de imperador) pelo qual se submete o presente às
regras e natureza de uma origem, centro e motor da História e da vida.
30
Seu sucesso ideológico, massivo seria resultado, produto do seu uso contínuo, como
da manutenção e reprodução da sua estrutura e narrativa, da sua distribuição pelo território e
nas salas de aula e as livrarias, lido e usado por pelos burocratas e docentes, assim como pelos
alunos, futuros historiadores e educadores, jornalistas e arqueólogos, e pais de família,
durante quase quatro décadas: muitas perguntas e temas e ideias poderiam ter sido construídos
a partir desses textos e, nesse sentido, não só textos posteriores parecem ter sido formulados a
partir deles (cf. HERRERA, 2003), mas até o dia de hoje, esses dois textos são disputados,
positiva e negativamente, como fundadores de uma visão da história de Colômbia (cf.
TOVAR, 1999 e MELO, 2010).
Porém, o que Henao e Arrubla construíram representa sua visão de mundo, produto
do trabalho coordenado, materializado nos textos. Ela não representa a visão dos seus leitores
ou patrocinadores, agentes diversos e múltiplos sobre os quais não podemos estender uma
generalização dessas. Mesmo garantida sua reprodução social, circulação e uso, essa visão de
mundo foi construída por cada um deles, desde a infância e conserva, instrumentaliza e faz
explícito o esquematismo do sujeito, submetendo sua concepção de natureza, causalidade,
sujeito, verdade e moral, bem como na definição e uso dos objetos e da sua função, ao reino
divino (cf. IBARRA, 1998a).
Agradecimentos
Quero agradecer a Renata S. Garraffoni, Glaydson José da Silva e Pedro Paulo Funari e a
Rafael Rufino por terem aceitado esse texto para sua publicação. Agradeço ao CNPq, agência
que financiou meu mestrado e, no presente, a minha pesquisa de doutorado no IFCH-
UNICAMP desde 2006.
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33
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TOVAR, Bernardo. 1999. Jesús María Henao y Gerardo Arrubla, nueva lectura de una vieja
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34
ROMA ANTIGA E LEGITIMIDADE POLÍTICA NA ESPANHA FRANQUISTA:
UMA ANÁLISE DA SEMANA AUGUSTEA DE ZARAGOZA (1940)
Introdução
1
Doutorando em História Cultural pelo IFCH/UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari.
Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Antiguidade e Modernidade: Usos do Passado, coordenado pelos
professores Glaydson José da Silva (UNIFESP) e Renata Senna Garraffoni (UFPR) e Pesquisador do
Laboratório de Arqueologia Pública – Paulo Duarte (LAP/NEPAM/UNICAMP). Este texto é uma adaptação de
parte de minha Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação de História do IFCH-
Unicamp, no dia 26 de fevereiro de 2013, intitulada O bimilenário de Augusto na Espanha: as construções
discursivas do franquismo sobre a Antiguidade romana. Bolsista Capes.
35
Cabe destacar que além de essa comemoração ter sido importante para a cidade de
Saragoça, adquiriu também uma dimensão nacional, haja vista a participação de ministros de
Estado do governo espanhol, de autoridades políticas italianas e alemãs, de acadêmicos de
várias universidades espanhola e italiana.
Em relação às fontes de pesquisa, serão utilizadas notícias, editoriais e artigos de
opinião presentes em diários (ABC, La Vanguardia Española) e periódicos (Aragón,
Amanecer e Emerita) da época. O contato com esse material é importante, uma vez que a sua
leitura permite a aproximação das ideias que se manifestaram durante o evento. Vale ressaltar,
ainda, a presença de uma “visão oficial” nessas fontes, haja vista a ingerência governamental
nos meios de comunicação após a ascensão de Francisco Franco, quando ficaram submetidos
ao dirigismo do Estado e à censura oficial 2.
Sendo assim, o objetivo está centrado em discutir uma determinada leitura do
passado romano que foi realizada na Espanha logo após o término da guerra civil e a ascensão
de um novo regime. Busca-se perceber a utilização da Arqueologia e da História antiga na
tentativa de legitimar uma “nova Espanha” que estava surgindo, portadora de uma nova
identidade. A questão é: qual identidade? O que passaria a identificar a Espanha como nação?
Quais valores são promovidos? Qual imagem da Roma antiga foi trazida à tona? Por que a
ênfase na Roma imperial? Enfim, por que a comemoração do bimilenário de Augusto na
Espanha? São alguns pontos que serão debatidos a seguir.
2
Alguns autores têm debatido essa questão. Joseph Pérez comenta que “a partir de 1938, a imprensa e a edição
ficaram submetidas a uma severa regulamentação: censura prévia, obrigação de inserir comunicados oficiais,
como anúncio de cerimônias e atos públicos” (2006: 651). Essas medidas estavam amparadas na Lei de
Imprensa de 1938 que, segundo Francisco Sevillano Calero, “converteram os periódicos em instrumentos
propagandísticos a serviço do Novo Estado” (1997: 318). Alfonso Lazo complementa que a “a Lei de Imprensa
de 1938 significou a aplicação, a todos os impressos espanhóis, do modelo totalitário, bem como a submissão de
periódicos e revistas ao departamento de Imprensa e Propaganda da Falange Espanhola Tradicionalista”
(1998: 18). As traduções para o português contidas neste texto foram feitas por mim.
36
antiga e a Roma mussoliniana. Andrea Giardina tece alguns comentários acerca da
representatividade dessa comemoração na Itália:
3
Ver também: (CAGNETTA, 1976).
4
“the occasion for a vast archaeologically focussed exhibition celebrating the Roman empire at its apex. With
the Mostra augustea della romanità, Fascism represented itself as the inexorable culmination of millennia of
Italian history. The Augustan exhibition, held in the heart of Rome, was a vast extravaganza which revivified the
“historic” Rome of Augustus through an empiricist discourse of Roman superiority. Archaeologists and
classical scholars provided a full and “scientific” depiction of Rome under the Emperor Augustus, complete
with a scale reconstruction of the city, in addition to an enormous array of art and artefacts of the era”.
37
http://www.museociviltaromana.it/museo/storia_del_museo/mostra_augustea_della_romanita (acesso em 22/05/12)
Fig. 1 – Comemoração do Bimilenário de Augusto na Itália – Mostra Augustea della Romanità (setembro de 1937). Edifício
construído para abrigar o evento.
5
Alguns estudos foram publicados no contexto do bimilenário de Augusto, que, a despeito de terem sido
publicados na Itália, atestam o interesse em torno dessa figura para além das fronteiras italianas. É o caso, por
exemplo, da obra Quaderni Augustei: Gli studi stranieri sulla figura e l’opera di Augusto e sulla fondazione del
Imperio Romano, 1937-1939, escrita coletivamente por especialistas de vários países ocidentais que possuíam
em comum o interesse no estudo de Augusto. O capítulo XVIII, dedicado à Espanha, é escrito pelo historiador
espanhol Fernando Valls Taberner (1888-1942).
6
Em tradução livre: “No dia 30 de março começou solenemente em Saragoça a ‘Semana Augustea’. Seu
principal objetivo era celebrar o ‘Bimilenário de Augusto’, que não foi possível ser comemorado na Espanha
em 1937, pois nos encontrávamos todos ocupados na defesa da Pátria”.
38
Fig.2 – A notícia descreve a
celebração da “Semana
Augustea”, com destaque
para a inauguração da
estátua de Augusto.
(Revista ARAGÓN, ano
XVI, n.166. p.56-57. 1940).
A guerra civil, ocorrida entre 1936 e 1939, que derrubou o governo legítimo da
República por meio de um golpe militar, ocasionando a ascensão do general Francisco Franco
ao poder da Espanha, levou ao adiamento, para o ano de 1940, da comemoração do
bimilenário de Augusto. A realização e a organização do evento couberam ao Conlegium
Augusteum, fundado em 1939, cujo presidente foi o catedrático de Língua e Literatura latinas
e vice-reitor da Universidade de Saragoça, Dr. Pascual Galindo Romeo (1892-1990). A
presidência de honra foi aceita por Francisco Franco e Benito Mussolini, após terem recebido
o convite por meio de cartas escritas em latim7.
7
Ambas as cartas foram remetidas por Pascual Galindo. Foram publicadas em: (EMERITA, 1939: 197-198).
39
Fig. 3 – Cartas enviadas a Francisco Franco e Benito Mussolini convidando-os para serem Presidentes de Honra da Semana
Augustea. Foram remetidas por Pascual Galindo (EMERITA, 1939: 197-198).
Cumpre esclarecer, antes de qualquer coisa, que o fato de a Semana ter ocorrido na
cidade de Saragoça, particularmente na Universidade de Saragoça, teve um significado
importante. Desde o início da guerra civil (18 de julho de 1936), essa universidade, na figura
de seu reitor, Gonzalo Calamita, havia aderido à causa dos insurgentes e colocado à
disposição do exército franquista todas as suas instalações e pessoal. Junto a isso, ganha
destaque a poderosa personalidade de Pascual Galindo na organização do evento, bem como
as estreitas relações com o Ministerio de la Gobernación, comandado por Serrano Suñer.
Todos esses fatores, segundo o historiador Antonio Duplá, favoreceram a organização de um
evento como a Semana Augustea (1997: 568).
O evento contou com a presença de inúmeras autoridades políticas italianas, como o
encarregado de Negócios da Embaixada da Itália, conde Zoppi, que representava o
embaixador italiano, general Gambara; o secretário da Embaixada italiana, marquês de
Cavalleti; o diretor geral do Instituto Italiano de Cultura na Espanha, Salvador Battaglia; o
cônsul geral da Itália em Barcelona, Sr. Berri; o cônsul da Itália em Saragoça, Sr. Piccio; além
de periodistas e demais autoridades. Do lado espanhol, participaram o ministro do Governo,
Ramón Serrano Suñer; o ministro da Educação Nacional, José Ibánez Martin; o prefeito de
Saragoça, Juan José Rivas. Também estiveram presentes outras autoridades nacionais e locais.
Importante destacar a participação em todos os atos do evento do partido político
Falange Española Tradicionalista y de las J.O.N.S. Era o único partido legalizado no interior
40
do regime franquista. Segundo Antonio Duplá, “os dirigentes desse grupo pretendiam
construir na Espanha um Estado fascista similar ao italiano” e, além disso, “é nesse grupo
que encontramos os rastros de uma ideologia classicista, que podemos relacionar com o caso
italiano, embora possua características específicas (2003: 77-78). A partir do exposto é
possível entender o particular interesse dos partidários da Falange em torno da comemoração
do bimilenário, sendo um indicativo da importância do tema clássico na elaboração política e
ideológica do partido. É sintomático, pois, a presença constante no evento do chefe provincial
do partido, Pío Altolaguirre, além das Organizaciones Juveniles e da Sección Femenina.
Do ponto de vista acadêmico, foram proferidas seis conferências de professores
espanhóis e italianos, cujos temas abordavam a Roma antiga, Itália e Espanha: Dr. Perrota
(Catedrático de Filologia Grega na Universidade de Roma) – “Augusto” (Augusto); Dr. Pío
Beltrán (Catedrático do Instituto de Valência) – “Cunhagens do período de Augusto”
(Acuñaciones de época augustea); Dr. Pascual Galindo – “Augusto e a fundação de
Caesaraugusta” (Augusto y la fundación de Caesaraugusta); Salvarore Riccobono (professor
da Universidade de Roma e membro da Academia da Itália) – “Contribuições jurídicas de
Roma a Hispania” (Aportaciones jurídicas de Roma a Hispania); Manuel Torres López
(catedrático de Direito da Universidade de Salamanca) – “Romanização da Hispania na época
de Augusto” (Romanización de Hispania en tiempos de Augusto); B. Pace (arqueólogo de
Roma) – “Roma de Augusto antes e depois das escavações de Mussolini” (Roma de Augusto
antes y después de las excavaciones de Mussolini).
O evento também contou com visitas arqueológicas realizadas nas inúmeras ruínas
de período romano presentes no território aragonês. A imprensa noticiava as visitas:
8
Em tradução livre: “Nas primeiras horas da tarde, por iniciativa das personalidades italianas presentes na
comemoração, efetuou-se uma excursão às ruínas romanas de Vellila de Ebro, que nos tempos de César foi
chamada de Julia Celsa. Logo visitaram Azaila.
O doutor don Juan Cabré, diretor do Museu Cerralbo, dirigiu a expedição e teceu interessantes comentários
sobre a origem romana das duas vilas. Visitaram também a escavação de Numância sob a direção do senhor
Taracena”.
41
Los profesores, señores Galindo, Alvareda y Picamón ilustraron la visita con
interesantes relatos acerca de los primeros tiempos de Zaragoza.
También visitaron el Museo Provincial9 (LA VANGUARDIA ESPAÑOLA,
1940b: 9).
9
Em tradução livre: “As personalidades italianas que vieram participar da Semana Augustea visitaram hoje os
monumentos da cidade e as ruínas da antiga Césaraugusta.
Os professores, senhores Galindo, Alvareda e Picamón, ilustraram a visita com interessantes relatos acerca
dos primeiros momentos de Saragoça.
Também visitaram o Museu Provincial”.
42
Ayer mañana, a las once, se ha efectuado el descubrimiento de la estatua del
Emperador Augusto, que regala el Duce a Zaragoza. Asistieron el ministro de
Educación Nacional, Sr. Ibañez Martín; la esposa del embajador de Italia en España,
general Gámbara; autoridades, jerarquías y profesores italianos y españoles que
toman parte en la “Semana Augustea”10 (ABC, 1940: 8).
Ya está erigida en nuestra plaza la estatua del César Augusto. A lo largo de toda
nuestra guerra y en los pocos días que de esta semana han transcurrido, ha vuelto a
robustecerse el fervor por la latinidad.
[…] Zaragoza, la antigua Cesaraugusta, sigue celebrando con inusitado esplendor la
conmemoración de su imperial fundador. A estas fiestas se ha asociado el Gobierno
italiano, corroborando así una vez más, la hermandad latina de las dos naciones que
bajo el signo de la hispanidad y la romanidad, sellaron su unión en la batalla
civilizadora, uno de cuyos principales escenarios, de resistencia primero, y de
impulso, después, fue, precisamente, el Ebro aragonés y romano 12 (AMANECER, 2
jun. 1940. Citado em DUPLÁ, 1997:569).
10
Em tradução livre: “Ontem de manhã, as onze, houve o descobrimento da estátua do Imperador Augusto, um
presente do Duce a Saragoça. Assistiram o ato o ministro da Educação Nacional, Sr. Ibañez Martín; a esposa
do embaixador da Itália na Espanha, general Gambara; autoridades, dirigentes e professores italianos e
espanhóis participantes da ‘Semana Augustea’”.
11
Em tradução livre: “Na Plaza de Paraíso, o monumento aparecia adornado e rodeado de bandeiras italianas
e espanholas. Foi erigida uma tribuna, que foi ocupada pelo ministro da Educação Nacional, o encarregado de
Negócios da Embaixada italiana, conde Zoppi, o general chefe da Quinta região, general Monasterio, os
generais Yeregui e Sueiro, e todas as autoridades de Saragoça.
Renderam honras uma companhia de Aviação e outra de Infantaria. A organização Juvenil falangista,
uniformizada, marcou presença”.
12
Em tradução livre: “Já está erigida em nossa praça a estátua de César Augusto. Ao longo de toda nossa
guerra, e nos poucos dias transcorridos nesta semana, foi novamente fortalecido o fervor da latinidade.
[...] Saragoça, a antiga Cesaraugusta, segue celebrando com inusitado esplendor a comemoração de seu
imperial fundador. O governo italiano está associado a esta comemoração, corroborando uma vez mais a
irmandade latina entre as duas nações, que, sob o signo da hispanidade e da romanidade, selaram sua união na
batalha civilizadora, contando como um dos principais cenários, primeiro de resistência e depois de impulso, o
Ebro aragonês e romano”.
43
Fig. 4 – Notícia sobre o
presente dado por
Mussolini a Saragoça. O
tom é de agradecimento e
a estátua de Augusto
como o laço de união
entre italianos e espanhóis
(Revista ARAGÓN, ano
XVI, n.164. p.19. 1940).
13
Em tradução livre: “Este presente do Duce à velha Cesaraugusta, e o seu aceite como presidente de honra da
Junta do Bimilenário, constituem a jóia entre todos esses presentes que a Itália vem dando para a Espanha de
modo especial nestes últimos tempos: presentes de sangue legionário, de material bélico, de apoio contra a
incompreensão, a tolice e a maldade”.
44
suposta irmandade milenar que havia encontrado a ocasião para ressurgir. Augusto, nesse
sentido, simbolizava a ligação entre italianos e espanhóis, pois era tido como o fundador de
Saragoça, a antiga cidade de Caesaraugusta. Fato que não passaria despercebido no discurso
das duas autoridades. Antes disso, foram executados os hinos nacionais, espanhol e italiano, e
a seguir conde Zoppi foi o primeiro a discursar:
14
Em tradução livre: “Quando César Augusto quis criar no Ocidente do Império um fundamento seguro de
civilização romana, fundou no coração da generosa terra aragonesa a cidade de Saragoça junto à antiga
Salduba.
(...) A Itália foi a primeira nação a reconhecer vosso Caudilho e enviou à Salamanca seu primeiro
embaixador, ato que cantou um grande poeta vosso, interpretando o gesto do Duce como um ato de fé: Creio na
Espanha.
Confiando-lhes hoje a estátua de bronze de Augusto, que não foi somente o fundador de vossa cidade, mas o
fundador do Império, o Duce diz muito mais que ‘Creio na Espanha’. Diz: ‘Creio na grandeza da Espanha’”.
15
Em tradução livre: “Em nome da cidade, orgulhosa por sua origem e por seu nome, ao se sentir romana e
augusta, foi recebida a estátua que o Duce da Itália presenteou a Saragoça e a Espanha.
Desde o primeiro momento do conflito, a Itália compreendeu a verdade da Espanha e a defendeu com seu
sangue, sendo a primeira nação a enviar seu embaixador à Salamanca, assim como pouco tempo depois muitos
bravos filhos da Itália verteram seu sangue juntos aos soldados da Espanha. Saragoça conserva em seu
cemitério grande parte desses heróicos italianos, e muito se honra disso.
Esta estátua, pois, de nosso fundador, nos recordará os motivos de agradecimento que possui Saragoça e
toda a Espanha para com a nação italiana e seu Duce.
Augusto trouxe ao mundo a paz. Queira Deus que esta vinda de Augusto em efígie a Saragoça seja também
prenuncio de uma paz baseada na justiça, única forma de que seja fecunda e duradoura”.
45
Ambos os discursos tratam da relação entre as duas nações latinas que, por se
entenderem descendentes da mesma fonte geradora, Roma, estiveram sempre unidas ao longo
da história. Percebe-se, a partir disso, uma determinada visão que estabelece uma ideia de
continuidade, vista como atemporal e, até mesmo, a-histórica, entre a Roma antiga e as nações
modernas. A noção de descendência cumpre um importante papel nesse sentido, pois o
significado da ajuda italiana aos insurgentes espanhóis, mesmo que influenciada por fatores
de interesse econômico, compatibilidade ideológica ou de natureza diversa, ganhava sentido
ao se enfatizar a irmandade latina entre Itália e Espanha, onde a imagem da Roma antiga
como a “pátria mãe” era determinante para a solidariedade no campo de batalha, mesmo
transcorridos dois milênios. Não houve espaço, nesse contexto, para o acaso e a contingência
histórica, pois quando se recorre à origem para justificar uma situação, postula-se
necessariamente um destino inevitável.
Outro elemento importante a ser destacado, é o papel que uma imagem da Roma
antiga desempenhou na (re) construção identitária da Espanha. Após a vitória na guerra civil,
era o momento de se estabelecer uma nova identidade da nação espanhola, fundamentada nos
valores tradicionais que caracterizavam o povo espanhol como uma comunidade homogênea,
uma espécie de “unitarismo radical” (TUSELL, 2001: 403), representada pela noção de uma
Espanha “Una, Grande y Libre”16. Recusavam-se os valores tidos como característicos da
Espanha republicana como o liberalismo, o materialismo, o separatismo, a aproximação com
o comunismo, entre outros. Sendo assim, surgiam exemplos, em vários momentos do passado,
dessa Espanha idealizada e perfeita pretendida pelo novo governo e por uma grande parte do
povo espanhol. Digno de destaque, nesse sentido, foi a época do imperialismo colonial
espanhol durante os séculos XVI e XVII, visto como uma época áurea da nação, marcada pela
unidade política, territorial e cultural, onde a identidade espanhola está diretamente vinculada
com o catolicismo (SAZ CAMPOS, 1999).
A “nova Espanha” que estava surgindo buscava no passado elementos que pudessem
fundamentar uma identidade nacional. Durante a comemoração da qual estamos tratando,
Augusto era uma figura que deveria ser conhecida pelos espanhóis, pois fazia parte de um
passado glorioso.
16
De acordo com o historiador Joseph Pérez, os primeiros anos do franquismo foram marcados por “um período
de manifestações pomposas, desfiles, viagens à Alemanha e à Itália, declarações orgulhosas a favor de uma
Espanha una – contra os separatismos –, grande – a esperança de um destino imperial, com conquistas
territoriais na África – e livre da dominação estrangeira, em particular da Inglaterra, acusada de explorar o
país desde o século XIX. ‘Una, grande, livre’ foi o lema da Espanha franquista” (2006: 647).
46
¿Como pudo transcurrir tantos tiempos en el olvido la figura del gran
Emperador romano que echó los cimientos de nuestra ciudad?
Vivía, sí, en la mente de los eruditos; tropezaban con ella los rebuscadores de
cosas viejas, entre el polvo de los archivos, y en la pátina que recubre los muros y
abraza la piedras miliarias; pero el pueblo, aun aquel que no puede ser llamado
‘vulgo’, desconoce la enorme figura histórica de César Augusto que da su nombre a
un siglo, y contempla con indiferencia los numerosos vestigios de la dominación
romana en España.
¡Oh, qué majestuosamente señoreara una de nuestras viejas plazas o calles,
singularmente las que más sabor tengan la romanidad, la estatua de César Augusto
enviada por el Duce!
Por ella, vendrán en conocimiento de nuestro abolengo los que hasta ahora lo
desconocían, y aprenderán a amar la ciudad romana, después cristiana fidelísima, y
hoy para siempre española como la que más. Es hora de revalorizar los pergaminos
de nuestra raza. Hombres pérfidos o mal aconsejados pretendieron hacer almoneda
con ellos, y ha sido preciso un enorme y sangriento sacrificio para evitar el
sacrilegio.
Se evitó, y sobre el pavés se levantan de nuevo nuestros valores morales
comenzando por el catolicismo. No podía faltar nuestra romanidad.17 (ARAGÓN,
1940a: 19). Grifos meus.
17
Em tradução livre: “Como pôde transcorrer tanto tempo no esquecimento a figura do grande Imperador
romano que lançou as bases da nossa cidade?
Vivia, sim, na mente dos eruditos; tropeçavam nela os que buscavam coisas velhas, entre a poeira dos
arquivos, e na pátina que recobre os muros e as pedras milenárias; mas o povo, mesmo aquele que não pode ser
chamado de “vulgo”, desconhece a enorme figura histórica de César Augusto, que dá seu nome a um século, e
contempla com indiferença os numerosos vestígios de dominação romana na Espanha.
Oh, como impera majestosamente em uma de nossas velhas praças, singularmente a que tem mais sabor de
romanidade, a estátua de César Augusto enviada pelo Duce!
Por meio dela conhecerão a nossa ascendência os que até agora a desconheciam, e aprenderão a amar a
cidade romana, depois fidelíssima cristã, e hoje espanhola, acima de tudo. É o momento de revalorizar os
pergaminhos da nossa raça. Homens pérfidos ou mal aconselhados pretenderam acabar com isso, e foi preciso
um enorme e sangrento sacrifico para evitar o sacrilégio.
Evitou-se, e sobre o solo se levantam novamente nossos valores morais, começando pelo catolicismo. Não
podia faltar nossa romanidade”.
47
unidade e sentido um vasto território: foi a partir dessa ação que a Espanha tomou consciência
de ser uma nação e aprendeu a agir como um império.
Por ello, al honrar a Augusto que, por la creación del Imperio y sumisión de los
Cántabros, permitió la romanización de España, logró su unificación e hizo posible
la hispanización posterior de Roma, honramos no sólo nuestra acta de nacimiento
como ciudad, sino también el punto de partida de toda una trayectoria histórica de
universalización del genio de España, disperso hasta entonces en particularidades
localistas18 (AMANECER, 2 de jun. 1940. Citado em DUPLÁ, 1997: 569).
Augusto ainda forjou uma ordem social, política e familiar, o que assegurou a Pax
romana, após décadas e décadas de conflitos civis e guerras sangrentas. Foi o legislador e
construtor da paz, que criou um estado unido mediante leis aplicadas igualmente a todos os
cidadãos.
Essa é a imagem de Augusto que é apresentada durante a comemoração. Além de ter
sido um governante que atendeu aos interesses de Roma, teve seu destino ligado à “fundação
da Espanha”. Mas não se trata somente do “fundador”: como inspiração e modelo político,
essa construção da imagem de Augusto mostrava que a Espanha do início da década de 1940
possuía também o seu Augusto: um guerreiro que enfrentou seus adversários e saiu vitorioso
de uma guerra civil; um homem que colocou sua própria vida em risco em defesa dos valores
tradicionais da “Pátria”; sendo vencedor, foi o artífice de uma autêntica “Nova Ordem”,
marcada por um período de paz, de unidade e de profundas transformações políticas e sociais.
Todos esses feitos de Augusto também podem ser atribuídos ao Caudillo Francisco Franco, o
“novo Augusto”.
De fato, o que se tem é a construção de uma narrativa que estabelece um suposto
paralelismo histórico entre as trajetórias de ambos. Essa narrativa supõe a existência de um
modelo explicativo cíclico e fechado: 1) guerra civil, caos; 2) paz, restauração, ordem, e 3)
futuro glorioso, “fim da história”. É um entendimento compartilhado, por exemplo, pelo
principal idealizador do evento, Pascual Galindo, em uma conferência sobre o bimilenário de
Augusto:
18
Em tradução livre: “Por isso, prestar honras a Augusto que, pela criação do Império e submissão dos
cântabros, permitiu a romanização da Espanha, conseguiu sua unificação e tornou possível a hispanização
posterior de Roma, honramos não só o nosso marco de nascimento como cidade, mas também o ponto de
partida de toda uma trajetória histórica de universalização do gênio da Espanha, disperso até então em
particularidades localistas”.
48
de la modificación del testamento del monarca – hasta los días actuales en que la
sangre de nuestros mártires y héroes y la singular clarividencia político militar de
nuestro Caudillo y la Providencia levantan una España nueva 19 (ARAGÓN, 1938:
10).
19
Em tradução livre: “Depois de tanta guerra, de tanta corrupção, vem o desejo de paz e restauração; começa o
futuro glorioso de Roma. Encerra-se o ciclo de 104 anos. Precisamente o ciclo de mesma duração que a
Espanha está vivendo desde a morte de Fernando VII (1883) – no período em que irrompem as lutas civis por
causa da alteração do testamento do monarca – até os dias atuais onde o sangue de nossos mártires e heróis, a
singular clarividência político-militar de nosso Caudilho e a Providência constroem uma nova Espanha”.
49
Esse tipo de abordagem alimentou o desenvolvimento de uma historiografia dita pós-
colonial ou, nas palavras da historiadora Regina da Cunha Bustamante, uma “produção
historiográfica descolonizada”. Segundo a autora:
20
Em seu relato autobiográfico, no qual descreve os seus feitos, Augusto diz: “Aos dezenove anos, formei um
exército por minha iniciativa e às minhas custas. Com ele restituí à liberdade a república oprimida pelo domínio
de uma facção [...]” (RES GESTAE DIVI AVGVSTI, I).
21
“O sentido de pertencimento é vital para uma definição própria de identidade nacional, e a ligação de
identidades étnicas a certos tipos de evidências arqueológicas tornou-se um instrumento poderoso na Inglaterra
como em vários países europeus” (HINGLEY, 2005: 30).
50
valor dos que não pertencem a essas definições” (SILVA; MARTINS, 2008: 52). Ou seja,
utiliza-se uma categoria interpretativa que estabelece a ideia de um desenvolvimento linear, a
partir de um passado tido como original que permeia o presente como seus hábitos, valores,
cultura. É esse o significado da romanidade citado acima.
Contudo, é necessário entender essa tentativa de vincular a Roma antiga à Espanha
franquista não como uma imagem de herança cultural direta do passado, mas como uma
releitura, onde o próprio passado está em constante processo de interpretação através de
olhares contemporâneos.
Considerações finais
51
imperialismo, sua unidade, sua força bélica, sua literatura, suas construções e sua arte: cada
um desses tópicos ganhava maior ou menor destaque dependendo do momento histórico em
que este passado era “resgatado”.
Durante a Semana Augustea, Roma aparecia como o modelo de civilização, de
imperialismo, e Augusto como o governante de um grande império, o artífice da Pax Romana,
que levou harmonia a Roma e às províncias. Desse modo, tanto Mussolini quanto Franco
apareciam como seus herdeiros, continuadores da sua missão imperial. Além disso, no caso
espanhol, a idéia de uma paz conquistada no campo de batalha, após uma guerra civil, que
tornou possível o restabelecimento de uma ordem, possibilitou um discurso que aproximava
ainda mais a figura de Franco com a de Augusto. Porém, em nenhum momento Augusto
aparece descrito como o restaurador da República. É vinculado com a expansão imperial e o
imperialismo. Uma representação que cabia naquele momento, onde justamente era a imagem
da República espanhola que se queria apagar. Na construção de Francisco Franco como o
“novo Augusto”, foi preciso “esquecer” que o próprio Augusto se entendia como o
restaurador, e não destruidor, da ordem republicana.
Enfim, estamos diante da construção do passado pelo presente, onde esse passado
nada mais faz do que justificar e legitimar questões contemporâneas.
Agradecimentos
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Pedro Paulo Funari, aos professores Glaydson José da
Silva, Renata Senna Garraffoni, Aline Vieira de Carvalho, Antonio Duplá, José Geraldo Costa
Grillo, Renato Pinto e Marina Cavicchioli. Aos colegas Andrés Alarcón, Filipe Silva, Pedro
Fermín e Rafael Monpean. A responsabilidade pelas ideias limita-se a seu autor.
Fonte
- antiga
RES GESTAE DIVI AVGVSTI. Texto latino com tradução de Matheus Trevisan e Antônio
Martinez de Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
- modernas
ABC. La Semana augustea. Solemne actos en Zaragoza. Madrid, 4 jun. 1940.
52
_____________. El regalo de Mussolini a Zaragoza. Zaragoza: Sindicato de Iniciativa y
Propaganda de Aragón, ano XVI, n.164, 1940a.
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54
O LEGADO ROMANO NA INGLATERRA VITORIANA
(…) Era no interesse de muita gente, claro, que grande parte dessa cultura pagã
deveria ser reivindicada em segurança para a “civilização”. O custo deveria ser a
reinterpretação, o expurgo ou, em último caso, a censura daqueles aspectos da
literatura clássica que não combinassem com a imagem vitoriana de uma cultura
civilizada. (...) (BEARD & HENDERSON, 1998: 87)
Essa passagem de Mary Beard e John Henderson resume grande parte da intenção,
bem como da exposição argumentativa desse capítulo. A Antiguidade Clássica tem sido
retomada em determinados momentos históricos buscando sempre precedentes para afirmar
ou legitimar atitudes políticas, religiosas e militares entre outras. Uma prova é a educação
voltada à cultura clássica com o fim de trazer valores cultivados pelas sociedades em seus
momentos.
Segundo Clarke (1959: 1-3), a história da educação clássica na Inglaterra teve seu
início em “78 d.C. quando o governador romano Agrícola, após os sucessos militares com os
quais seu governo começou, tomou medidas para vincular seus súditos mais perto de Roma”.
Sob o Império Romano, estabeleceu-se um sistema de educação baseado no estudo da
imitação dos melhores modelos da literatura, além de língua e literatura gregas. A gramática
grega começa com Homero e Menandro entre outros, e a romana se concentrou em Virgílio,
Menandro Romano e Terêncio. De acordo com o autor, Salústio foi lido nas escolas no
império tardio, porém, por outro lado, a escrita em prosa foi geralmente ignorada. A tradição
da escola romana, embora sobrevivesse levemente, estava muito enfraquecida na Idade
Média; no entanto, não houve falta de escolas secundárias e, apesar de evidências sobre o
currículo serem escassas, ao que parece, nessas escolas o aluno poderia ler algumas obras de
Ovídio e Virgílio, além de poder compor versos latinos.
Na opinião de Chervel e Compère (1999: 149), do “homem honesto” da Antiguidade
Clássica ao “homem cultivado” da época contemporânea, o indivíduo que essa tradição forma
é aquele que, devido à prática dos textos e dos autores, ao contato com as civilizações
fundadoras, por meio do exercício da tradução, da imitação e da composição, adquiriu o
gosto, o senso crítico, a capacidade de julgamento pessoal e a arte de se exprimir oralmente e
1
Pós-doutoranda/Unicamp.
55
por escrito, conforme as normas recebidas. Esse ideal visado provavelmente conheceu, no
decorrer dos séculos, diversas definições. O homem que se enquadra nesse horizonte das
humanidades foi o cristão do colégio jesuíta, o cidadão das luzes, o republicano dos liceus
modernos, ou o gentleman vitoriano. Nesse sentido, no ensino tradicional inglês, as
humanidades clássicas se definiam por uma educação estética, retórica, mas também moral e
cívica.
As humanidades remontam, sem interrupção, às artes liberais antigas. O modelo de
formação proposto foi fixado por Isócrates 2 na Atenas do século IV a.C e posteriormente
herdado pelos romanos. Segundo Chervel e Compère (1999: 150), no conteúdo escolar, elas
constituem a quase totalidade do ensino de 5ª a 8ª séries até meados do século XIX, ao menos
nos cursos tradicionais. A literatura latina, ou seja, os autores romanos e os exercícios de
composição em latim constituíram seu eixo.
Nesse sentido, a historiografia grega foi portadora da reflexão sobre a História e a matriz
retórica da escrita histórica moderna, assim como a tradição clássica latina contribuiu
fortemente para a formação da historiografia moderna na época humanístico-renascentista,
sobretudo por meio da reflexão retórica e filosófica de Cícero. Segundo Gabriella Albanese, é
necessário esclarecer que a própria definição de historiografia, entendida no Renascimento e
na Época Moderna como ars da escrita da História, “é rigorosamente dependente da teorética
historiográfica fixada pela retórica clássica grega e latina, de Aristóteles a Luciano, de Cícero
a Quintiliano” (ALBANESE, 2009: 279-286).
Contudo, tanto na educação e literatura, quanto nos ideais políticos e morais, a
grandiosidade que foi Roma tem sido muitas vezes ofuscada pela glória que foi a
Grécia. Goëthe e Shelley, Matthew Arnold e Walter Pater têm seduzido os comentaristas a
concentrar-se na influência dos gregos e não dos romanos. Desde 1980, Richard Jenkyns,
Frank Turner e Hugh Lloyd-Jones representaram a herança grega na Inglaterra Vitoriana, mas
a herança romana é ainda largamente inexplorada. No entanto, o legado de Roma não
importava apenas para o clássico educado, mas para a multidão: na política, na guerra e na
engenharia civil, bem como na literatura, houve sentimento generalizado de conexão
fundamental com Roma e não com a Grécia (VANCE, 1988: VI).
2
Segundo Moses Finley, Isócrates “tem arcado, por mais de dois mil anos, com a culpa de ter sido o homem que
implantou o ponto de vista retórico... na política, na educação e na historiografia”. Daí em diante a retórica
ocupou lugar de honra na instrução superior, num esquema que logo foi canonizado no que os romanos
chamaram as sete “artes liberais”. Os quatro estudos preliminares compreendiam o que Isócrates denominava de
“ginástica da psique”, matemática subdividida em aritmética, geometria, música (ou harmonia) e astronomia. As
três disciplinas avançadas destinavam-se ao ensino do bem falar e da persuasão: gramática, que era uma
combinação do estudo da linguística e da história da literatura, retórica e dialética. Esse princípio passou dos
gregos antigos para o mundo bizantino e dos romanos para o oeste latino (FINLEY, 1989: 215).
56
Tornou-se habitual que a mitologia greco-romana estivesse onipresente na poesia
inglesa. Durante o Renascimento, foi principalmente o legado de Ovídio, seus herdeiros e
comentaristas que foi retomado. No entanto, no século XIX, prevaleceu a obsessão por tudo
que fosse de origem grega, o que não só desprezou Ovídio, como o substituiu por versões
menos bem sucedidas do ponto de vista artístico. Nesse sentido, a historiografia se refere
muitas vezes aos romanos como o primeiro povo a converter a herança de sua cultura na base
de sua própria civilização. Porém, mais do que imitação, deve-se falar de assimilação
criadora. É curioso notar que o processo se verifica também no campo religioso.
Efetivamente, se há organizações sacerdotais como os flâmines e os pontífices e divindades
como Jano, os Penates e os Lares, que são estritamente romanos, desde cedo os deuses itálicos
se identificam, na maioria, aos gregos, e muitas teses recentes sobre a helenização encontram
cada vez mais apoio nas descobertas arqueológicas (PEREIRA, 1989: 39).
Toda a arte e a literatura de Roma se desenvolveram à sombra da Grécia. Seus
próprios poetas proclamaram esse fato: a Grécia cativa capturou seu conquistador rude e
trouxe a arte para o rústico Lácio, (...) disse Horácio (Epístolas, 2, 1, 156 y ss). Por esse
motivo se diz que os romanos foram um povo imitador e seu papel principal na história da
civilização europeia foi a de conduzir por meio da cultura grega o legado cristão. De acordo
com Richard Jenkyns (1995), ironicamente, esse ponto de vista é uma herança dos romanos,
os quais possuem uma mistura sutil de orgulho e modéstia. Todo o mundo lhes concede
grandeza militar; poucos negam a grande qualidade de sua poesia e em geral se reconhece que
se sobressaiu em engenharia, jurisprudência e no sistema sanitário. Alguns lhes concederam
um pouco mais. Em pleno auge da “grecomania”, em 1821, Shelley escreveu no prefácio a
Hellas (1991):
Todos somos gregos. Nossas leis, nossa literatura, nossa religião, nossas artes têm
suas raízes na Grécia. Sim, Grécia; Roma, a mestre, a conquistadora, a metrópole de
nossos antepassados não haveria difundido com suas armas o conhecimento e
seríamos ainda selvagens e idólatras. O que é pior, poderíamos ter herdado um
estado de instituição social tão estagnado e miserável como a China e o Japão.
Essa declaração dá certo valor às armas e as instituições romanas, mas apenas como
um meio de estender o conhecimento grego. Arnold Toynbee considerou a civilização romana
como uma simples subespécie do helenismo, a continuação da cultura grega sob a égide de
um Estado universal. Jenkyns pergunta sobre a variedade e amplitude da contribuição romana.
Segundo ele, é preciso haver uma resposta se se pretende estudar o alcance da influência de
57
Roma nos séculos posteriores. Porém, antes, deve-se considerar o que se entende por
influência. Richard Jenkyns, (1995: 12) distingue três tipos:
A Influência básica: a fonte de informação (fonte histórica/documento) é base e
condição necessária para a influência. A arquitetura renascentista é inconcebível sem os
modelos clássicos, ou o “Paraíso Perdido” sem a tradição épica clássica.
A Influência auxiliar: a fonte não é propriamente a base, mas proporciona apoio e
coerência. Provavelmente as tragédias de sangue inglesas não haveriam sido muito diferentes
sem Sêneca, mas transforma-se no senequismo3 como um possível modelo. Na Inglaterra dos
séculos XVII e XVIII, encontramos atitudes sociais e políticas baseadas sem nenhuma dúvida
na história e sociedade inglesas, porém podem ter sido formadas e estabilizadas pelo
estoicismo e por um conhecimento da filosofia ciceroniana.
Influência decorativa: a fonte proporciona uma elegância superficial ou o pretexto ou
ponto de partida. No século XVIII, as citações clássicas na Câmara dos Comuns eram as
provas que o orador tinha desfrutado da educação de um cavaleiro, porém não eram mais que
uma forma combinada de alarde cultural.
Nas palavras do Jenkyns, “estas distinções são algo toscas e rápidas e os limites entre
elas incertos, porém podem ser úteis como guias”. Os romanos foram o único povo que
realizou a unificação da totalidade do litoral mediterrâneo sob uma só autoridade e manteve
seu império durante séculos, o que constitui um dos feitos mais notáveis da História. O
renascimento italiano havia desenvolvido uma teoria de humanismo cívico baseada em
Cícero, Sêneca e Tito Lívio. Os “Discursos sobre Tito Lívio” de Maquiavel inspiraram a
Commonwealth of Oceana de James Harrington, escrita durante o protetorado de Cromwell, e
passaram dessas fontes ao pensamento político do século XVIII, reguladas por uma
constituição mista. E deve-se pensar não só na teoria política, mas também em um conceito
formado em uma educação clássica. Os oradores, poetas e historiadores latinos estavam na
mente dos políticos do séc. XVIII; sua forma de pensar era inconscientemente senatorial.
De acordo com Jenkyns (1995: 14-15), é difícil rastrear uma influência quando foi
tão absorvida como essa, porém parece razoável afirmar que a constituição mista da república
romana tem sido uma influência básica na teoria política e ao menos uma influência auxiliar
na prática política.
3
Influência da estética literária e temática moralista de Sêneca.
58
Nessa mesma linha, Arnaldo Momigliano argumenta que a escrita da história latina
envolve alguns aspectos importantes da cultura latina, entre eles, como ela criou o protótipo
da moderna história nacional.
Segundo esse autor, os romanos transmitiram à Renascença a noção de história
nacional e Lívio foi o mestre. Essa noção se desenvolveu por meio de vários autores, como
Leonardo Bruni, que, em uma imitação consciente de Tito Lívio, escreveu a história de
Florença; Marcantonio Sabellico e Bembo escreveram a história de Veneza e Giorgio Merula
escreveu a história dos Viscondes de Milão, entre outros. Os humanistas italianos
sustentavam-se, nas palavras de Momigliano, honestamente fazendo comércio da história
nacional de acordo com os modelos clássicos. Eles vendiam essa nova marca de história aos
monarcas nacionais e eventualmente provocavam a competição entre os historiadores nativos.
Outro fator importante, é que, no Império Romano Tardio, as histórias nacionais estavam
bastante na moda. Para Roma, apenas resumos eram feitos, mas narrativas complexas eram
escritas quando a temática dizia respeito às novas nações emergentes. (MOMIGLIANO,
2004: 120, 123).
Outro modelo político proporcionado por Roma é o cesarismo. A palavra César,
originalmente um apelativo familiar, converte-se num talismã. A importância do legado de
Roma radica nesse caso não na criação de uma monarquia, já que naturalmente houve muitos
impérios monárquicos antes, mas sim na combinação do absolutismo com um sistema legal
altamente evoluído. Nesse sentido, a combinação de autocracia, direito e a ideia de uma
cidadania universal influenciou profundamente a experiência europeia. O sentimento que
muito depois da queda do Império Romano ocidental a Europa ocidental conservava, em certo
sentido, compartilhava da cidadania de uma cultura comum. Isso se dava a algo mais que uma
herança da cultura e língua latinas; derivava também em parte da natureza do próprio Império
Romano (JENKYNS, 1995: 16).
Mas o legado de Roma, embora importante nas artes visuais, reside principalmente
na palavra. Uma grande parte dessa herança tem sido o próprio latim, base das línguas
românicas modernas com uma completa influência sobre o inglês. Os anglo-saxões haviam
recebido uma boa quantidade de palavras do latim antes da emigração à Bretanha. Após a
emigração, adotaram outros termos e, após a conquista normanda, adotaram muitas palavras
procedentes do francês, a maioria durante os séculos XIV e XV, quando o inglês se converteu
em uma língua oficial e literária. Além do mais, a língua francesa havia adquirido muitas
palavras latinas em duas etapas, a primeira, diretamente do latim vulgar e, posteriormente, a
59
partir da língua escrita. Identifica-se, dessa forma, que a maior parte do vocabulário abstrato
inglês deriva dos clássicos (JENKYNS, 1995: 19).
Nesse legado romano, Finley (1989: 219) acredita no valor de um ensino
fundamentalmente literário para a vida pública ou para o cidadão, incluindo história, filosofia,
línguas e literatura. É uma consequência natural que esse ensino deva concentrar-se no que se
considera a melhor literatura, que, em muitos casos, trata-se de uma literatura do passado. No
entanto, para ele: poetas e romancistas não são pensadores sistemáticos, disciplinados, quer de
psicologia, de sociologia, quer de ética ou de comportamento institucional. Eles produzem
ressonâncias, convidam à reflexão, mas não ministram um ensino suficiente e não são fontes
autorizadas para tal fim. Se o fossem, restaurar-se-íam as antigas funções do mito, pois na
Antiguidade o mito era tão educativo quanto a poesia e a literatura o são hoje em dia.
Ao citar essas funções atribuídas ao mito, não tem como não relembrarmos que, por
meio desses mitos gregos, os clássicos chegaram ao nosso conhecimento, aguçando a
curisodade dos leitores. Essas histórias são contadas e recontadas pela literatura antiga, não
apenas na tragédia grega ou na poesia épica de Homero, mas também nas versões desses
mitos dadas pelos autores romanos. O próprio Ovídio, por exemplo, teceu, em sua obra
Metamorphosis, imensa coletânea de todos os mitos da transformação.
Segundo Beard e Henderson, nos últimos cem anos, muita teoria tem sido gasta para
explicar os mitos. Sigmund Freud, por exemplo, explorou ao mesmo tempo as raízes da
mitologia grega e o funcionamento da psique humana ao meditar sobre histórias como a do
incesto de Édipo com a mãe após matar o pai, ou a da vaidade de Narciso apaixonado pela
própria imagem, este um episódio inesquecível do poema de Ovídio. Segundo os autores,
60
caminho para se compreender o mundo cristão. Mais do que isso, a autoridade dos clássicos
pagãos podia ser usada para legitimar toda uma série de abordagens radicais em discordância
com o establishment cristão oficial.
A experiência religiosa da Antiguidade era avidamente estudada, dos mitos dos
deuses e deusas aos rituais públicos de sacrifício de animais, além de uma vasta série de ritos
e folclore locais. Os mundos utópicos sonhados no século IV a.C. por Platão e descritos
particularmente em A República e As Leis encorajaram os pensadores radicais a instituir e
encorajar uma filosofia educacional puramente secular. Valores e opções de vida proibidos
pelo cristianismo encontraram apoio e suporte político nas práticas e discussões dos gregos e
romanos. Assim, por exemplo, a discussão de Platão sobre a natureza do amor e do desejo no
Banquete foi usada para justificar certas formas de homossexualidade masculina: não apenas
Platão admitia relações sexuais entre homens e meninos, como outros aristocratas
contemporâneos consideravam-nas a forma mais nobre e elevada de desejo sexual. Nesse
sentido,
A história pode ter concluído pelo triunfo da razão europeia, moderna e cristã, mas
para os autores a atração mesma era a emoção de usar essa razão para “saquear” a civilização
clássica. Seja qual for o espírito da pesquisa, investigar uma única frase de um texto clássico
envolve contato com uma enormidade de estudos anteriores. A mais grandiosa e abarcante
teoria sobre a totalidade da existência e o mais pedante dispêndio de energia na análise
rigorosa de palavras erradas em manuscritos pouco confiáveis encontram-se em algum ponto
na história dos clássicos (BEARD & HENDERSON, 1998: 87).
Quando lemos a poesia épica de Homero ou Virgílio, a filosofia de Platão,
Aristóteles ou Cícero, as peças de Sófocles, Aristófanes ou Plauto, estamos “partilhando” tal
atividade com todos aqueles que os leram antes. Isso nos aproxima tanto dos monges
medievais que copiaram e preservaram centenas de textos clássicos (mesmo com os
problemas já discutidos), quanto dos estudantes do século XIX que passavam os dias
estudando “os clássicos”. É precisamente a centralidade dos clássicos em todas as formas de
61
nossa política cultural que ata o Ocidente à sua herança. Por outro lado, nossa experiência dos
clássicos é sempre nova. Nossa leitura de Virgílio jamais será a mesma de um monge
medieval ou de um estudante do século XIX. Da mesma forma, ler a Eneida em acessível
brochura de bolso é uma experiência diferente de ler o poema em um precioso volume
manuscrito com encadernação em couro; e lê-lo numa poltrona é bem diferente também de
fazê-lo em sala de aula sob o olhar de algum mestre-escola vitoriano (BEARD &
HENDERSON, 1998: 44-45).
Contudo, as diferenças estão de forma ainda mais espantosa nas diversas questões,
prioridades e suposições que trazemos aos textos e cultura antigos. Nenhum leitor nesse
momento leria algo, clássico ou não, da mesma maneira, com a mesma compreensão que um
leitor de outra geração. O feminismo, por exemplo, atraiu a atenção para a complexidade e a
importância das mulheres na sociedade, e a pesquisa recente da história da sexualidade
inspirou também compreensão radicalmente nova da literatura e cultura antigas. Muitos
vitorianos não se espantavam com o papel subordinado das mulheres na Grécia e em Roma,
com o fato de não terem possuído quaisquer direitos políticos em nenhuma das cidades
antigas. Ao mesmo tempo, os acadêmicos vitorianos se esforçaram por ignorar ou mesmo
censurar muitas passagens dos autores antigos que falam, com franqueza excessiva para o
gosto deles, de sexo, tanto entre homens e mulheres como entre homens e meninos. Os
classicistas modernos, por sua vez, não lamentavam propriamente a misoginia dos gregos e
romanos nem celebravam seu aberto erotismo; antes investigavam como a literatura antiga
sustentava ou questionava essa misoginia e se perguntavam o que determinou a maneira como
o sexo foi discutido e mostrado na arte e nos textos antigos. Tais investigações são resultado
direto das discussões do século XX sobre os direitos das mulheres, as teorias e políticas
sexuais; e, em troca, os clássicos contribuem com a profundidade histórica essencial aos
debates deste século. (BEARD & HENDERSON, 1998: 46-47)
O mesmo se aplica à Inglaterra Vitoriana ao buscar legitimidade para suas ações
imperialistas. Os clássicos, no contexto dessa sociedade, foram fundamentais. A cidade de
Roma, com sua capacidade de prover imagens múltiplas, mutáveis e conflituosas, tornou-se
uma fonte rica para dar sentido – e desestabilidade – à História, à política, à identidade, à
memória e ao desejo (HINGLEY, 2002: 29).
Por meio da educação fundamentada nos clássicos, construiu-se uma ideia de
herança imperial dos romanos como importantes difusores da cultura helenística, os quais
proporcionaram um legado no que diz respeito à educação, língua, literatura, valores morais,
arte e principalmente ideais políticos.
62
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Repensando o Mundo Antigo. IFCH/Unicamp, n.º 47, 2002.
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VANCE, Norman. The Victorians and Ancient Rome. Oxford: Blackwell Publishers, 1997.
63
O IMPÉRIO ROMANO HOJE: ARQUEOLOGIA, NUMISMÁTICA E USOS DO
PASSADO
Introdução
[...] Não se trata, assim, de acreditar no que diz o documento, mas de buscar o que
está por trás do que lemos, de perceber quais as intenções e os interesses que
explicam a opinião emitida pelo autor, esse nosso foco de atenção (FUNARI, 1993:
24).
1
Pós Doutorando em Arqueologia pelo NEPAM / Unicamp; Professor de História Antiga da Universidade
Federal de Alfenas – MG.
64
Pascal Arnaud destaca que, nas moedas da Antigüidade Clássica, principalmente
durante os séculos IV e V, são comuns, no anverso, a cabeça ou busto do imperador virem
cingidas por um diadema com o aspecto de simples fita de pérolas com duas ou três pontas
(ARNAUD, s/d: 195). Trata-se de uma mensagem simbólica específica, cujo o significado é o
de designar a pessoa do governante.
Norma Musco Mendes em seu livro Sistema Político do Império Romano: um
modelo de colapso, tendo como base Georges Depeyrot (DEPEYROT, 1997: 36), estabeleceu
um mapa dos “ateliers” monetários romanos espalhados pelas diversas regiões do império
(MENDES, 2002: 163), deixando claras a intenção, e a necessidade, dos governantes em
manter o fluxo e o abastecimento monetário contínuo.
Em A micro-história e outros ensaios, Carlo Ginzburg rompe com certas maneiras de
pensar a História, atraindo para a ciência histórica elementos oriundos de outras áreas do
saber. Construindo novos objetos através de outros temas, como a feitiçaria, metamorfose
animal, ritos de fertilidade e a iconografia, o autor descreve a dominação da periferia pelo
centro, tratando das imagens como instrumento de persuasão, nunca pacífica. Quando se
coloca em destaque o busto do soberano e as sua insígnias, estaremos perante uma utilização
direta dessa imagem para interpretar os conflitos políticos, mostrando bem como um certo
estilo e determinadas fórmulas de representação podem ter sido impostas, numa espécie de
batalha simbólica (GINZBURG, 1989: 74).
65
algumas peças do final do século VII. Nos terços de soldo, moeda de ouro, na legenda, escrita
em latim, lê-se: EGICA REX WITTISA REX CONCORDIA REGNI. Pai e filho
apresentam-se ante seu reino como uma dinastia, embora ainda um não tivesse sucedido ao
outro. Nessas moedas, o rei e o príncipe estão representados de lado, face a face, com uma
cruz entre ambos. Em alguns exemplares cunhados em Toledo, Égica e Wittisa seguram e
erguem a cruz.
A partir do século VIII, Carlos Magno (742 – 814) promoveu o chamado
“renascimento carolíngio”, onde a atividade colecionista alcançará um grande impulso.
Recolher, recuperar, preservar o que restava da cultura greco-romana, abalada pelas invasões,
tornaram-se atividades regulares firmando a “atividade colecionista” como uma atividade
cultural (SANTOS, 1995: 137). O imperador bizantino, Constantino VII Porfirogêneto (905 –
959), institui que, por ocasião das grandes festas religiosas, militares e políticas, fossem
exibidas as coleções de propriedade real. O próprio termo grego porfirogêneto, significa
nascido da púrpura. Constantino VII teria nascido na sala púrpura do Palácio Imperial de
Constantinopla, sendo filho legítimo do Imperador Leão VI, o sábio.
Notamos nessas passagens uma forte influência romana, no caso da moeda, da
legenda, das inscrições em latim, da cruz representando a Igreja e da designação da
CONCORDIA, comum nas cunhagens romanas dos séculos IV e V (CONCORDIA
MILITVM). Tanto os visigodos, como os demais reinos bárbaros, e até mesmo os Estados
Modernos europeus do século XV e XVI, utilizaram os padrões e tipos monetários romanos
como base.
Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre Carlan
Aes cunhado entre os anos de 297 – 298, em Alexandria. Busto à direita, com uma coroa
radiada, encouraçado, legenda IMP C C VAL DIOCLETIANVS PF AVG. Nessa variante
aparecem as iniciais do nome completo de Diocleciano. No reverso, Imperador de pé, voltado
para direita, com uniforme militar, tendo na mão esquerda um paragonium, recebendo um
globo, encimado pela vitória, das mãos de Júpiter nu. À esquerda da divindade um cetro,
legenda CONCORDIA MILITVM A / ALE. Entre Diocleciano e Júpiter a letra A. A concordia,
66
era uma divindade feminina, protetora da vida social e moral em Roma. Peça de bronze, estado
de conservação Muito Bem Conservado (MBC), diâmetro de 1,98 mm; peso de 9,80 g; alto
reverso ou eixo 10 horas.
67
se preocupou em organizar várias campanhas arqueológicas para conhecer, estudar e analisar,
as antigas ruínas greco-romanas. As obras, em sua grande maioria, eram retiradas e levadas
para Londres, enfeitando os mais variados palácios da nobreza.
Roma, outrora capital do Império, passou a ser um local de culto intelectual e
encontro para viajantes, poetas, artistas e escritores de uma maneira geral, vindos de toda a
Europa, da América do Norte e de alguns países Latinos. Esses visitantes trocavam
informações, visitavam as ruínas, adquiriam uma bagagem cultural, até então pouco
conhecida, que levariam na bagagem, quando retornassem à terra natal.
Uma das principais características desse período de transição foi a influência da
ilustração nas artes, o desejo de utilizar os instrumentos educativos nas mudanças sociais, não
para exaltar o poder da Monarquia e da Igreja, mas para refletir as virtudes cívicas. Esse foi
um dos principais temas defendidos na década de 1990 em Barcelona (Generalitat da
Catalunya), quando teve início uma ampla reforma educacional. Sob esse prisma, o artista
mudava de papel. De um simples artesão, ele passou a ser o interprete dos valores cívicos. O
exemplo mais marcante para as futuras gerações ocorreu nas óperas de Wagner e Verdi, como
também nas obras pianísticas e para orquestra de Chopin.
Representação da 6ª Legião Victrix, Tarragona, Espanha, abril de 2007, foto Cláudio Umpierre
Carlan. Essas representações ocorrem anualmente em comemoração a influência romana na
região. A iconografia apresentada nesse scudo, está presente nas moedas da República Velha no
Brasil. Como podemos notar no modelo abaixo:
68
Moeda de 1000 reis, de 1924, governo Artur Bernardes. A coroa de louros, representando a
Victoria, a estrela, foi a forma que Augusto encontrou para legitimar seu poder, como herdeiro
de Júlio César. Segundo Suetônio, Augusto teria notado a passagem de um cometa ou estrela
cadente, identificando como uma mensagem enviada por César, legitimando seu poder sobre a
República Romana. Acervo do Museu Histórico Nacional, localizado na cidade do Rio de
Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre Carlan.
Treinamento de legionários, espetáculo Tarraco Viva, Tarragona, Espanha, maio de 2007. Foto:
Cláudio Umpierre Carlan
Não se pode falar sobre a coleção numismática do MHN, sem mencionar o fundo
reunido anteriormente na Biblioteca Nacional, que lhe serviu de base. Criada em 1810,
durante a regência de D. João, a Biblioteca Nacional havia inaugurado em 1880, sob a direção
de Ramiz Galvão, uma ofensiva para reunir uma coleção de moedas e medalhas, sobretudo
brasileiras, que se encontravam em caráter transitório no Museu Nacional. Galvão não
69
conseguiu que o fundo numismático viesse para a biblioteca durante a sua administração. Mas
é considerado com o iniciador da coleção numismática naquela instituição.
Em um relatório de 1881, dirigido ao Barão Homem de Melo, ministro de Império,
que doou 114 moedas e 10 medalhas, Galvão utilizou diferentes argumentos para alcançar
seus objetivos:
“A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, exmo sñr., não possuía moedas nem
medalhas por um vício de organização que é fácil de explicar; quando criada,
pensou-se que esses trabalhos eram antes objetos de curiosidades, e por isso os
deixaram fazendo parte do Museu Nacional...É todavia incontestável que moedas e
medalhas são antes de tudo documentos subsidiários da história, e que por
conseqüência o seu lugar próprio não é ao lado das coleções de história natural...o
lugar da numismática é ao lado da história, e o da história é na Biblioteca Nacional.
Pensando assim todas as grandes bibliotecas da Europa tem a sua seção de
numismática...” (VIEIRA,1995: 98).
Segundo Poliano, é bem possível que Gustavo Barroso, primeiro diretor do MHN,
tenha usado uma argumentação semelhante para conseguir a transferência da coleção da
Biblioteca Nacional para o Museu Histórico (POLIANO, 1946: 9-10). O primeiro lote de
peças, estava composto por 406 moedas e 6 medalhas e foi doado à biblioteca em setembro de
1880. Nos anos seguintes, o acervo continuou a crescer, por meio de compras, ou doações,
como, por exemplo, a doação da coleção do comendador Antonio Pedro de Andrade, que
compreendia 13.941 moedas e medalhas, entre outros núcleos expressivos; de 4.559 moedas e
2.054 medalhas portuguesas; e de 4.420 moedas da Antiguidade.
O comendador Antônio Pedro foi o maior doador individual da coleção numismática
da Biblioteca Nacional / MHN (VIEIRA, 1995: 100). Nascido em Funchal, Ilha da Madeira,
em 1839, emigrou para o Brasil com 16 anos. Trabalhou como jornalista no Correio
Mercantil, e no Jornal do Comércio. Como bancário, trabalhou no Banco Comercial do Rio de
Janeiro, do qual foi gerente, diretor e por fim presidente (DUMANS, 1940: 216). Seus
núcleos mais orgânicos, distribuem-se entre moedas de Portugal e colônias (4.599); romanas e
bizantinas (4.420 peças); moedas brasileiras (2.337 peças); medalhas portuguesas (1.101
peças) e brasileiras (950 peças). É também possível que alguns exemplares sejam precedentes
das coleções da família imperial, legadas pelo imperador D. Pedro II, constituída desde o
Primeiro Reinado e composta de 1.593 moedas e 545 medalhas, por ele doadas ao Museu
Nacional em 1891 e incorporadas pela Biblioteca Nacional em 1896.
No termo de abertura do Primeiro Livro de Registro da Biblioteca Nacional, assinado
pelo chefe da 3ª Seção de Numismática, Aurélio Lopes, iniciada em 30 de setembro de 1895,
lê-se que:
70
[...] Do inventário geral das coleções da Seção, iniciado em primeiro de outubro de
1894, e finalizado em setembro de 1895, sendo diretor da Biblioteca o Dr. Raul
d´Ávila Pompeo, constava até essa última data a existência de 22.863 peças
numismáticas: moedas, medalhas...inclusive papel moeda. (DIVISÃO DE
CONTROLE DE PATRIMÔNIO / MHN, processo 3 / documento 1).
Considerações Finais
71
A cunhagem monetária associada ao retrato e à propaganda configurava dois
aspectos intimamente ligados em Roma. As moedas, por sua vez, associavam-se a um e a
outro, também em forma muito íntima. Elas não apenas são instrumentos importantes para
estabelecer a datação de documentos e eventos que chegaram até nós sem seu contexto
original, como são de grande valia na nossa compreensão das imagens que contêm.
Com frequência, o tipo monetário de reverso mostra determinada representação.
Ainda que o seu significado, indicado pela legenda que acompanha e pelo tipo do anverso,
possa aparecer como uma interpretação original em relação ao modelo, muitas vezes tipos
monetários e modelo têm o mesmo sentido. Por isso os dois lados de uma moeda devem
sempre ser observado com muita atenção, o que procuramos fazer aqui agrupando-as por tipos
monetários, de modo a iluminar a complexidade do tema.
Agradecimentos
Aos colegas e amigos Renata Senna Garrafonni e Glaydson José da Silva, pela oportunidade
de trocarmos ideias; a Pedro Paulo Funari, Margarida Maria de Carvalho, Ciro Flamarion
Cardoso, Paulo Denisar Fraga, Maria Beatriz Florenzano, André Leonardo Chevitarese, Vera
Lúcia Tostes, Rejane Vieira, Eliane Rose Nery. A responsabilidade pelas ideias restringe-se
ao autor.
Referências bibliográficas
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Roma: vida pública e vida privada. 4ª ed. São Paulo: Atual,
1993.
72
MENDES, Norma Musco. Sistema Político do Império Romano do Ocidente: um modelo de
colapso. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.
SEAR, David R. Roman Coins and Their Values. 4th Revised Edition. London: Seaby
Publications Ltd, 1988.
VIEIRA, Rejane Maria Lobo. Uma grande coleção de moedas no Museu Histórico Nacional?
In: Anais do Museu Histórico Nacional, volume 27, Rio de Janeiro: Museu Histórico
Nacional, 1995.
73
A QUEDA DE ROMA SEGUNDO MONTESQUIEU
1
Doutor em História pela Unicamp, editor Executivo da Revista Aulas – Unicamp.
74
O absolutismo aparece na França com ares de Império Romano. Nota-se facilmente
nas artes de encomenda real. Na imagem a cima Luís XIV é vencedor da Fronda (fronde). O
rei toma o poder de quem deveria compartilhá-lo. A partir disto, a reação intelectual, histórica
e jurídica acontece. O rei se torna Imperador, como César ou Augusto. O rei é herdeiro do
poder absoluto.
Ao contrário, Montesquieu aparece neste capítulo demonstrando como a Roma
Republicana torna-se corrupta e que esta corrupção consiste na construção de um Império,
sem virtudes e sem glórias. Trata-se de uma leitura moderna da História de Roma que acaba
por compor não apenas uma nova representação do passado romano, mas uma leitura da
política francesa do século XVIII, e, também, uma obra epistemológica para a compreensão
científica da política.
Montesquieu procede para o discurso diretamente germanista, contrariando a
pretensão monárquica de legitimar seu despotismo na herança do Império Romano. A
evocação de uma espécie de República Franca, para uma Monarquia Franca, surge como
resposta ao sentimento corrupto da monarquia francesa e despótica.
A Queda da República
75
Uma das causas de sua prosperidade é que todos os seus reis foram grandes
personagens. Em nenhum outro lugar, nos textos de história, encontra-se uma
sucessão ininterrupta de tais estadistas e tais comandantes. (MONTESQUIEU, 2002:
19)
Assim, Henrique VII, rei da Inglaterra, aumentou o poder dos plebeus para
aviltar os nobres, Sérvio Túlio (Rei de Roma. 578 a.C. - 535 a.C.), antes dele,
havia ampliado os privilégios do povo, que logo se tornou mais audacioso
derrubou tanto uma quanto a outra monarquia. (MONTESQUIEU 2002: 11)
Roma vivia sem comércio e suas rendas eram notoriamente pilhagem. Estava sempre
preparada para guerra. Disso nasce a virtude romana
76
Adiantando-se aqui, o medieval argumento aristocrático da honra. Os nobres
defendem seus reinados segundo a honra. O uso de plebeus por toda a Europa, como
soldados, produz a derrocada dos exércitos. Este também será o argumento da dominação
franca e da queda do Império Romano: a falta de virtude do exército.
Roma triunfa em sua república (séculos VI-I aC), domina a península itálica, e seu
povo vive da virtude que a arte da guerra lhe proporciona. E de tanto espólios, e de tanto
desejo de ter mais, começa a sua decadência. Para Montesquieu, o “Jardim do Éden”
republicano curva-se à imoralidade devido a sua própria grandeza.
Boas leis geram boas repúblicas, que ao crescerem, não podem ser mantidas por estas
leis geradoras. “Roma perdeu sua liberdade por ter concluído sua obra cedo demais”
(MONTESQUIEU 2002: 75)
A república corrompeu-se, perdeu a sua liberdade para os vícios. No momento em
que o senado pediu a ajuda de Pompeu para salvar a república contra César, já não havia
77
república a ser salva. Uma república não pode depender de um só. Uma república é livre por
ser auto-determinada.
Com César, a liberdade fora sepultada. Nasce a maior escravidão do universo, o
Império Romano, portanto, a liberdade que fora destruída pelos generais que estavam fora.
Em especial, o norte dos Alpes, fora devolvida pelos bárbaros, livres e destruidores da
escravidão que fora o Império Romano.
César é um personagem que a monarquia francesa e absoluta desejou como herói e
não como Montesquieu o pintou como sintoma de uma república moribunda. Esta Roma que
nasce com o sangue derramado por César, como túmulo de tudo que representava realmente a
república, será a Roma que os historiadores ligados à monarquia absoluta se referenciarão. À
medida em que o Império Romano fosse exaltado, na mesma proporção criaria-se uma
hereditariedade de glória.
Duas ideias muito importantes nesta passagem: a primeira, trata da glória de Roma e
sua hereditariedade pelas mãos de Carlos Magno; a segunda, afirma a glória da república, mas
glória da majestade de grandes Imperadores.
A França reencarna o Império Romano, até porque, não seria muito sensato por parte
dos historiadores monárquicos comparar apenas Paris e Roma. O melhor exemplo para o
Estado Moderno, devido à sua legislação e hierarquia, tem sido Roma. O Direito Romano até
hoje se impõe nas constituições modernas e na formação jurídica do “ocidente”.
Montesquieu rejeita completamente esta ideia de glória imperial. Seu objetivo
político consiste em uma monarquia constitucional, por isso, precisa provar que o Império
Romano é um lugar de escravidão e medo. Teoriza:
78
seriam capazes de promover revoluções. Logo, é preciso que o
temor acabe com todas as coragens e pague o menor sentimento de
ambição. (MONTESQUIEU 1749, 1ª Parte. Livro III. Capítulo IX)
Com estas entrelinhas o “Espírito das Leis” vai afirmar que o Império Romano não é
uma Monarquia. Quando se pergunta se um homem deve ocupar o poder civil e militar,
responde que nas repúblicas este ofício dependeria exclusivamente do problema a ser
79
enfrentado segundo as leis, nas monarquias, segundo a busca de honra e fortuna, por isso,
trabalhos civis devem ser ignorados para estes homens. No despotismo, não deve ser dividido,
o poder civil e militar devem pertencer ao déspota.
No entanto, com as reformas após o fim da República Romana, os poderes foram
divididos, até a usurpação de Procópio. Montesquieu conhecia bem o nível dos historiadores
monárquicos, seus adversários. Por isso, cada afirmação leva em conta não a possibilidade de
homogeneidade do Império Romano, mas suas tramas e contradições:
Que via neste caso uma coisa estranha, um príncipe que opinava no processo de
um de seus súditos; que os reis só haviam reservado para si os indultos e
delegavam as condenações a seus oficiais. E Vossa Majestade gostaria de ver
sobre o banco dos réus um homem, em Sua frente, que, devido a seu julgamento,
iria dali a uma hora para a morte! (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VI.
Capítulo V).
E continua:
80
Os imperadores romanos foram tomados pelo furor de julgar; nenhum reinado
espantou mais o universo com suas injustiças. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte.
Livro VI. Capítulo V).
Cláudio, diz Tácito, "tendo tomado para si o julgamento dos assuntos e das
funções dos magistrados, deu oportunidades a toda espécie de rapina." Assim
Nero, que chegou ao império depois de Cláudio, querendo conciliar os espíritos,
declarou: "Que ele evitava com cuidado ser o juiz de todas as causas, para que
os acusadores e os acusados, dentro dos muros de um palácio, não ficassem
expostos ao infame poder de alguns libertos. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte.
Livro VI. Capítulo V).
"Havia outrora", conta Procópio, "muito pouca pessoas na corte; mas, sob
Justiniano, como os juízes não tinham mais liberdade de fazer a justiça, seus
tribunais estavam desertos, enquanto no palácio do príncipe ressoavam os
clamores das partes que lá solicitavam suas causas." Todos sabem como ali se
vendiam os julgamentos e até as leis. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro
VI. Capítulo V).
81
Com o Império, a acusação e todo tipo de justiça foram corrompidos:
Logo, o luxo é necessário nos Estados monárquicos; é-o também nos Estados
despóticos. Nos primeiros, é um uso que se faz do fato de se ter liberdade; nos
outros, é um abuso que se faz das vantagens da servidão, como quando um
escravo escolhido por seu senhor para tiranizar os outros escravos, incerto
quanto ao dia seguinte de sua sorte de cada dia, não tem outra felicidade a não
ser a de saciar o orgulho, os desejos e as volúpias de cada dia.
(MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VI. Capítulo XXI).
82
uma refutação. A insinuação impede a refutação. Com os iluministas há uma nova forma de
se escrever a história, muito mais simples que a erudita, com menos citações e com afirmação
alegórica, evitando o jogo de refutação da disputio medieval.
O tema do luxo desdobra-se para o tema das leis que geram medo. As mulheres
romanas tem coirmãs o luxo e a devassidão. A Lei Júlia em relação ao adultério não produzia
os efeitos de virtude, mas de castigo; a lei que amedronta. Toda legislação civil depois da
república fora para produzir o medo:
Podemos encontrar nos historiadores julgamentos rígidos que foram feitos, sob
Augusto e sob Tibério, contra o impudor de algumas damas romanas; mas ao
nos revelarem o espírito destes reinados, eles nos revelam o espírito destes
julgamentos. Augusto e Tibério pensaram principalmente em castigar a
devassidão de seus parentes. Eles não estavam castigando o desregramento dos
costumes, mas certo crime de impiedade ou de lesa-majestade que eles haviam
inventado, útil para impor respeito, útil para sua vingança. Daí que os autores
romanos protestem tão fortemente contra essa tirania. (MONTESQUIEU 1749:
1ª Parte. Livro VII. Capítulo XII).
Tibério usou das antigas leis para punir mulheres, não por efeitos de crimes, mas se
tinham desobedecido a lei. Em nota, Montesquieu cita: proprium id Tiberio fuit, scelera
reperta priscis verbis obtegera (TÁCITO. Anais IV, cap. XIX :Era um aspecto característico
de Tibério ocultar sob termos antigos crimes novos). Mas, tais disposições não eram para
todos. A moralização das mulheres tinha um alvo certeiro, as damas esposas e filhas dos
senadores. Tibério queria controlar o senado a partir da família de cada senador.
Para Montesquieu a conclusão consiste em:
83
Enfim, o que eu disse, que a bondade dos costumes não é o princípio do governo
de um só, nunca se verificou melhor do que sob estes primeiros imperadores; e
se duvidarem disto basta ler Tácito, Suetônio, Juvenal e Marcial.
(MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VII. Capítulo XII).
Assim, no governo de muitos, é muitas vezes útil que a condição dos libertos
esteja um pouco abaixo da dos ingênuos, e as leis trabalhem no sentido de
acabar com o desgosto que sentem por sua condição. Mas no governo de um só,
quando o luxo e o poder arbitrário reinam, não se deve fazer nada neste sentido.
Os libertos encontram-se quase sempre acima dos homens livres: dominam na
corte do príncipe e nos palácios dos grandes e, como estudaram as fraqu ezas de
seu senhor e não suas virtudes, fazem-no reinar não pelas virtudes, mas pelas
fraquezas. Tais eram em Roma os libertos da época dos imperadores.
MONTESQUIEU 1749: 2ª Parte. Livro XV. Capítulo XIX).
84
A Roma despótica teve um grande período, amado pelos iluministas, como todos: o
estoicismo. Nada era mais digno que o estoicismo para Montesquieu, ele realçava apenas as
coisas nas quais havia grandeza: o desprezo pelos prazeres e pela dor. O estoicismo é o
melhor exemplo de filosofia política, porque:
Somente ela sabia fazer cidadãos; somente ela fazia os grandes homens;
somente ela fazia os grandes imperadores. Façam por um instante abstração das
verdades reveladas; procurem em toda a natureza e não encontrarão objeto maior
do que os Antoninos; Juliano, o próprio Juliano um sufrágio assim obtido não
me tornará cúmplice de sua apostasia, não, não houve depois dele príncipe mais
digno de governar os homens (MONTESQUIEU 1749, 5ª Parte. Livro XXIV.
Capítulo X).
Para os estoicos, são vãs as riquezas, qualquer grandeza humana; também a dor, a
tristeza e os prazeres. O domínio destes homens é trabalhar para a felicidade de todos. Para
Montesquieu, esta felicidade estava baseada no trabalho de exercer seus deveres com a
sociedade:
parecia que encaravam o espírito sagrado que acreditavam existir neles mesmos
como uma espécie de providência favorável que velasse pelo gênero humano.
(MONTESQUIEU 1749, 5ª Parte. Livro XXIV. Capítulo X).
A exceção estoica não impediu o fim do Império Romano. Destino concluso, afinal,
o medo, sua força e sua corrupção anulariam suas conquistas, sociedade, e qualquer outra
vantagem.
Ao final do século XVII, Tácito torna-se leitura obrigatória para o debate político
(LEVILLAIN 2005: 143-154.). Este fenômeno intelectual e político denomina-se tacitismo:
Qual o conteúdo do tacitismo? Uma ambiguidade como nenhuma outra. Havia os que
o consideravam o Maquiavel (STÉPHANE 2003) do Mundo Antigo. Outros um severo crítico
da tirania, como Montesquieu.
A tirania em Montesquieu consiste em duas formas, a primeira como força física,
uma espécie de monopólio da violência (WEBER 1999) sob a égide de um homem. A
segunda forma de tirania é exercida pela opinião de um só, que fere a opinião geral daquele
85
país. Como exemplo de tirania, Montesquieu não vai ao oriente naturalmente déspota, mas
aponta para Roma, para deixar claro mais uma vez o perigo desta herança:
Dion conta que Augusto quis ser chamado de Rômulo, mas, quando soube que o
povo temia que ele quisesse tornar-se rei, mudou de ideia. Os primeiros romanos
não queriam rei, porque não podiam suportar seu poder; os romanos de então
não queriam rei para não ter de suportar seus modos. Pois, ainda que César, os
triúnviros, Augusto fossem verdadeiros reis, tinham mantido toda a aparência da
igualdade, e sua vida privada encerrava uma espécie de oposição ao fausto dos
reis da época; e quando não queriam reis, isto significava que queriam conservar
suas maneiras e não adquirir as dos povos da África e do Oriente.
(MONTESQUIEU 1749: 3ª Parte. Livro XIX. Capítulo III).
Dion conta que o povo romano estava indignado contra Augusto por causa de
certas leis demasiado duras que ele havia criado, mas que assim que ele mandou
voltar o comediante Pílades, que as facções tinham expulsado da cidade, o
descontentamento cessou. Tal povo sentia mais vivamente a tirania quando se
expulsava um saltimbanco do que quando se suprimiam todas as suas leis.
(MONTESQUIEU 1749: 3ª Parte. Livro XIX. Capítulo III).
Todos os atos de augusto e todas as sua normas tendiam visivelmente para uma
para o estabelecimento de uma monarquia. Sila livrou-se da ditadura, mas, em
toda sua vida, em meio a seus atos de violência, vê-se o espírito republicano:
todos os seus regulamentos, apesar de tiranicamente executados, tendiam sempre
para uma certa forma de república. Sila, um homem arrebatado, conduziu os
romanos violentamente a liberdade; Augusto, um tirano ardiloso, conduziu -os
suavemente À escravidão.
86
do despotismo. O que Montesquieu realmente temia não era os que grassavam nos palcos de
Racine, não eram os famosos monstros romanos, mas, os que deixavam o povo cego. Pior que
o sangue derramado, era a cegueira de um povo.
Montesquieu pensa no tirano como vítima de todo um universo sem moral. Não
sendo virtuosos, nem o povo, nem o senado, cada general pode tomar seu lugar. O medo
corrompe. O elogio é falso. Quem resistirá? (MONTESQUIEU 2002: 118-119).
O tirano moderno é Luís XIV, adornado de espetáculos, confiante na cegueira do
povo, os nobres, e rodeado por libertos, burgueses:
87
O verdadeiro alvo de todos esses historiadores ligados À reação nobiliária será o
mecanismo de saber-poder que, desde o século XVII, vincula o aparelho
administrativo ao absolutismo do Estado. (FOUCAULT 2002 : 155).
Toda a história feita pelos nobres, em um nível quase que revolucionário, como
Boulainvilliers, com a “luta das raças” e Montesquieu, com o “Espírito das Leis”, fora uma
reação a um esquecido elo do sistema de poder, que a nobreza deixou de lado. O elo é a
história, que sempre foi jurídica.
Uma vez desprezado pelos nobres, quem o assumiu? Foucault responde:
Essa peça estratégica, menosprezada pela nobreza, fora, em seu lugar, ocupa da
pela Igreja, pelos clérigos, pelos magistrados, depois pela burguesia, pelos
administradores públicos, pelos próprios financistas. (FOUCAULT 2002 : 155).
Os nobres perderam o saber com o rei. Por diversas razões a monarquia, que não vive
sem nobreza, corrompeu-se, virou despotismo. O saber histórico jurídico é a saída para o rei.
O rei precisa conhecer os problemas da França, deixar de ser vítima do despotismo, tornar-se
um monarca honrado, reestabelecendo este princípio no reino.
Todo jogo histórico-político-epistemológico, harmonicamente criado no “Espírito
das Leis”, consiste em salvar a monarquia. Mas, se as leis fundamentais da república foram
destruídas por César e Augusto, quais os fundamentos da França que Montesquieu observa
em ruínas sob absolutismo?
A queda de Roma aconteceu na corrupção que resultou em César. O mal que fora o
Império Romano terminará da mesma maneira que começou: com o medo.
Tal foi o fim do Império do Ocidente. Roma se havia engrandecido por só ter
tido guerras consecutivas: por uma sorte inacreditável, cada nação só a atacava
depois de outra ter sido arruinada. Roma foi destruída porque todas as nações
atacaram simultaneamente e nela penetraram por toda parte. (MONTESQUIEU
2002: 115).
Salvar a Monarquia
88
onde flui o poder: pois, se existe num Estado apenas a vontade mo mentânea e
caprichosa de um só, nada pode ser fixo e, consequentemente, nenhuma lei pode
ser fundamental. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro II. Capítulo IV).
Este depósito só pode estar nos corpos políticas, que anunciam as leis quando
elas são elaboradas e as lembram de quando são esquecidas. A ignorância
natural da nobreza, sua desatenção, seu desprezo pelo governo civil exigem que
exista um corpo que retire incessantemente as leis da poeira onde ficariam
soterradas. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro II. Capítulo IV).
Talvez esta seja uma citação que tenha faltado a Foucault para complementar sua
teoria do esquecimento das leis e do governo civil pela nobreza. Assim, o próprio
Montesquieu diagnostica, por meio de teoria, “epistemologia política”, ou seja, estrutura um
sistema de pensamento para produzir ideias a respeito da política afirma:
Onde não há leis fundamentais, o que se tem? A reposta é simples: onde não há leis
fundamentais há o despotismo. O que limita nestes estados o absoluto desmando do príncipe
é, na verdade, a religião. Não há despotismo sem poder religioso.
Utilizando Newton, em dobra 2, empirismo e racionalismo, afirma que o princípio da
monarquia não é a virtude. E isso não significa que os homens sejam maus, na verdade:
89
Em teoria,
Dir-se-ia que é como o sistema do universo, onde há uma força que afasta
continuamente do centro todos os corpos, e uma força de gravidade que os traz
de volta: A honra move todas as partes do, corpo político; liga-as com sua
própria ação; e assim todos caminham no sentido do bem comum, pensando ir
em direção a seus interesses particulares. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte.
Livro III. Capítulo VI).
O nobre, que busca ser citado, honrado, lembrado, louvado por um grande ato, que
envolveu esforço, tempo, dedicação e até mesmo heroísmo, beneficiou a todos. Esta louvação
é a honra. A ação reconhecida. É por ela que o Estado monárquico age, pois a honra é sua
força de coesão.
As leis da monarquia são as leis feudais. O gosto por estas leis criam em
Montesquieu uma bela imagem:
É um belo espetáculo o das leis feudais. Um carvalho antigo eleva -se; o olho vê
de longe suas folhagens; aproxima-se, enxerga o caule, mas não percebe suas
raízes: é preciso cavar a terra para encontrá-las. (MONTESQUIEU 1749: 6ª
Parte. Livro XXX. Capítulo I).
Montesquieu “cava a terra” para dizer que as leis feudais são provenientes dos povos
que destruíram o Império Romano. Conquistaram este Império, para lembrar o direito de
conquista (MONTESQUIEU 1749: 2ª Parte. Livro X. Capítulo III). Trata-se da Germânia.
Para fortalecer seu argumento, escreve em dobra 1, antigos e modernos, e dobra 2,
racionalismo e empirismo:
Estes dois autores encontraram-se em tal acordo com os códigos das leis dos
povos bárbaros que possuímos, que, lendo César e Tácito, encontramos por toda
parte estes códigos e, lendo estes códigos, encontramos por toda parte César e
Tácito. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo I).
90
A partir destes dois autores que o “labirinto das leis feudais” será desvendando, o fio
de meada. O primeiro passo fora encontrar o início da vassalagem, a hierarquia entre os
germanos. Duas citações lhe são importantes. A primeira, de César
Cita Tácito "que cada príncipe tinha uma tropa de pessoas que se uniam a ele e o
seguiam" 2. O germano, acompanhado por uma multidão de jovens é um homem honrado.
Estes jovens o seguem, são o ornamento de sua dignidade. Quanto mais corajosos e fortes,
mas jovens ao derredor.
Estes povos vivem da guerra. O príncipe, segundo Montesquieu, não consegue
persuadir a lavrar a terra, estabelecer-se, pois a rapina constante revela muito mais o gosto
pelo sangue dos outros do que pelo suor de sua própria face. Esta profunda ligação entre o
príncipe e os guerreiros, e os guerreiros e os jovens produziu o que se chama de vassalagem.
No entanto, alerta Montesquieu, vassalagem sem feudos. Afinal, o príncipe não era
proprietário de terras para poder fazer distribuição.
Os francos viviam dessa vassalagem, mas, diferente de Boulainvilliers (TYVAERT
1974: 521-547), não ocuparam todas as terras da Gália e a dividiram em feudos. Se o rei
tivesse sob seu poder todos os feudos divididos e todos os vassalos, seria como o Sultão da
Turquia (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo V), onde disporia da
propriedade de qualquer.
Montesquieu narra que as Gálias foram invadidas por diversas nações germânicas.
Visigodos em Narbonésia e o sul, os borguinhões no oriente, os francos o resto,
provavelmente, vivendo da antiga vida pastoril.
Godos e borguinhões fizeram acordo com os romanos: paz em troca de trigo. Já os
francos, não. De qualquer modo, a narrativa de Montesquieu procura observar a origem da
servidão neste período:
2
Germânia XXI. Nota de Montesquieu.
91
As leis sálicas3 e ripuária não provam a tese de Boulainvilliers, que teriam os francos
criados uma escravidão sobre os galo-romanos.
Como seu livro está escrito sem nenhuma arte e ele escreve com a simplicidade,
a franqueza e a ingenuidade da antiga nobreza da qual havia saído, todos são
capazes de julgar as belas coisas que diz e os erros nos quais incorre. Assim, não
o examinarei (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo VI).
Direi apenas que ele tinha mais espírito do que luzes, e mais luzes do que saber;
mas este saber não era desprezível porque, de nossa história e de nossas leis, ele
conhecia muito bem as grandes linhas. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro
XXX. Capítulo VI).
Quando o Sol deu a Faetonte o seu carro para conduzir, lhe disse: "Se subires
alto demais, queimarás a morada celeste; se desceres baixo demais, reduzirás a
terra a cinzas. Não vás por demais à direita, cairás na constelação da Serpente;
não vás por demais à esquerda, cairás na do Altar: conserva-te entre as duas.”
(Ovídio, metamorfoses liv II).
3
A lei sálica tem sido tratada como muito mais como mito do que uma realidade jurídica. BARNAVI Elie.
Mythes et réalité historique : le cas de la loi salique. In: Histoire, économie et société. 1984, 3e année, n°3. p.
323-337.
92
A servidão vai aumentando na medida em que há enfrentamento. A paz com
germanos não criava rapina, mas respeito. Foram as rebeliões e lutas por heranças entre
famílias que deram origem ao aumento de servos. Tudo isso, afirma Montesquieu , continuou
durante a segunda raça, a dinastia carolíngia.
Uma infinidade de terras que homens livres faziam render tornaram-se passíveis
de mão-morta. Quando um país perdia os homens livres que o habitavam,
aqueles que possuíam muitos servos tomaram ou conseguiram a cessão de
grandes territórios e neles construíram aldeias, como pode, nos ver em diversas
cartas. Por outro lado, os homens livres que cultivavam as artes viram -se
transformados em servos que deviam exercê-las; as servidões devolviam às artes
c ao cultivo o que se lhes tinha retirado. Era comum que os proprietários das
terras as doassem as igrejas para mantê-las eles mesmos no censo, acreditando
contribuir com sua servidão para a santidade das igrejas. (MONTESQUIEU
1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XI).
O que mais custa àqueles cujo espírito vagueia numa vasta erudição é procurar
suas provas onde elas não sejam estranhas ao assunto e encontrar, para falar
como os astrônomos, o lugar do sol.
O abade Dubos abusa das capitulares, da história e das leis dos povos bárbaros.
Quando ele quer que os francos tenham pagado tributos, aplica a homens livres
o que só pode ser compreendido dos servos; quando quer falar de sua milícia,
aplica a servos o que só podia envolver homens livres. (MONTESQUIEU 1749:
6ª Parte. Livro XXX. Capítulo VI).
93
Suplico que o leitor me perdoe o aborrecimento mortal que tantas citações
devem causar-lhe: eu seria mais breve se não encontrasse na minha frente o livro
do Estabelecimento da monarquia francesa nas Gálias, do abade Dubos. Nada
atrasa mais o progresso dos conhecimentos do que um livro ruim de um autor
célebre, porque antes de instruir é preciso começar por desvendar o erro.
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XX).
Trata-se de um “colosso de pés de barro”, três volumes para provar uma total
ausência de fundamentação: o absolutismo justificado pela história de Dubos. A principal tese
de Dubos é que os francos não tinham sido conquistadores das Gálias, mas foram convidados
a tornarem-se reis no lugar dos romanos, ou seja, trocando uma servidão por outra. A que
responde Montesquieu:
Esta pretensão não pode ser aplicada à época em que Clóvis, entrando nas
Gálias, pilhou e tomou as cidades; tampouco pode ser aplicada à época em que
desafiou Siágrio, oficial romano, e conquistou o país que este vigiava; ela só
pode estar então relacionada com a época em que Clóvis, que se havia tornado
senhor de uma grande parte das Gálias pela violência, teria sido chamado pela
escolha e o amor dos povos para a dominação do resto do país. E não é
suficiente que Clóvis tenha sido aceito, é preciso que tenha sido chamado; é
preciso que o abade Dubos prove que os povos preferiram viver sob a
dominação de Clóvis a viver sob a dominação dos romanos ou sob suas próprias
leis. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).
Para Dubos, haveria uma tal república armórica, que teria convidado Clóvis como
rei. O estranho disso tudo que não há literatura alguma sobre esta república. Não há dado
empírico, nem mesmo a conjectura se sustenta; dobra 2:
94
Dubos prova que os romanos, que ainda estavam submetidos ao império,
chamaram Clóvis? Absolutamente. Prova que a república dos armóricos tenha
chamado Clóvis e feito algum tratado com ele? De modo algum, de novo. Longe
de poder dizer-nos qual foi o destino dessa república, ele não saberia nem
demonstrar sua existência e, embora a acompanhe desde a época de Honório até
a conquista de Clóvis, embora relate com uma arte admirável todos os
acontecimentos daqueles tempos, ela permaneceu invisível nos autores.
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).
Tendo este ponto falhado, é fácil perceber que todo o sistema do abade Dubos
desmorona de ponta a ponta, e, todas as vezes que ele tirar alguma consequência
do princípio de que as Gálias não foram conquistadas pelos francos, mas que os
francos foram chamados pelos romanos, poderemos sempre negá-la.
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).
Eis a tentativa de argumentar que Clóvis teria recebido dignidades romanas baseada
na carta de São Remígio. Carta meramente de congratulação pela subida ao trono. Mas,
Dubos faz dela uma carta em que Clóvis tenha sucedido Childerico como senhor da milícia.
E ainda, Clóvis, ao final do reinado teria sido feito procônsul pelo imperador Anastácio, algo
que não está fundamentado em nada.
Montesquieu procura na ausência da legislação objetiva, antiga, original, típica de
uma cultura envolta no “agenciamento das origens”, para demonstrar, do mesmo modo que
todos os historiadores que debateram o tema, que na ausência do documento escrito, na
ausência da prescrição, havia o costume. O senhor do costume, do fato, do acontecido, das
formas de fazer é o senhor do direito fundamental da monarquia feudal.
Para contrariar o dito proconsulado de Clóvis, Montesquieu afirma:
Tenho até uma razão para isto. Gregório de Tours, que fala do consulado, não
diz nada sobre o proconsulado. Este proconsulado teria mesmo durado apenas
seis meses. Clóvis morreu um ano e meio após ter sido feito cônsul; não é
possível fazer do proconsulado um cargo hereditário. Por fim, quando o
consulado e, se quiserem, o proconsulado lhe foram dados, ele já era o senhor da
monarquia e todos os seus direitos estavam estabelecidos. (MONTESQUIEU
1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).
Que supõe a adulação além da fraqueza daquele que é obrigado a adular? Que
provam a retórica e a poesia senão o próprio uso destas artes? Quem não ficaria
espantado ao ver Gregório de Tours que, após ter falado dos assassínios de
Clóvis, disse que, no entanto, Deus prosternava todos os dias seus inimigos
porque eles caminhavam por seus caminhos? Quem pode duvidar de que o clero
tenha ficado muito satisfeito com a conversão de Clóvis e não tenha tirado deste
fato grandes vantagens? Mas quem pode duvidar de que ao mesmo tempo os
povos não tenham enfrentado todas as desgraças da conquista e o governo
romano não tenha cedido diante do governo germânico? (MONTESQUIEU
1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).
A teoria de Dubos, baseada em “birutas de aeroporto”, pois não tem critérios sobre
suas fontes a não ser o de contradizer Boulainvilliers. Os germanos não teriam mudado nada
na Gália e teriam eles mesmos se transformados em romanos. Com ironia, Montesquieu fala
de Alexandre Magno como se fosse um diplomata pronto a se submeter à Pérsia.
É surpreendente que seu próprio erro não o tenha feito descobrir seu erro. De
fato, teria sido muito extraordinário que os nobres romanos que viviam sob o
domínio dos francos tivessem uma composição maior e tivessem sido
personalidades mais importantes do que os mais ilustres dos francos e seus
maiores capitães. Que probabilidade pode ter o fato de que o povo vencedor
tivesse tido tão pouco respeito por si mesmo e tanto respeito pelo povo vencido?
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).
Montesquieu afirma categoricamente que os francos tinham apenas uma ordem que
só poderia ser julgada pelo rei. No entanto, colocando a moralidade dos textos de Dubos em
96
questão, aponta que o abade vai até a Turquia para dizer como era a nobreza franca. A
Turquia, lugar tão corrompida na obra de Montesquieu. Aparece aí um dos propósitos do
despotismo turco aparecer tanto no “Espírito das Leis.” Para Dubos:
Não se queixavam disto na época de Carlos Magno, porque este príncipe sempre
diferenciou as antigas famílias das novas, o que Luís, o Bonachão, e Carlos, o
Calvo, não fizeram. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo
XXIV).
O recurso retórico para encerrar o livro XXXII contra Dubos, do qual não se pode
duvidar da luta política que o “Espírito das Leis” representa:
O público não se deve esquecer de que deve ao abade Dubos várias excelentes
composições. E sobre estas belas obras que deve julgá-lo, e não sobre esta. O
abade Dubos incorreu nela em grandes erros porque teve mais tempo sob olhos o
conde de Boulainvilliers do que seu assunto. Tirarei de todas as minhas críticas
apenas esta reflexão: se este grande homem errou, que não deverei eu temer?
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).
Conclusão
Referências bibliográficas
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99
Identidade, gênero e cultura
100
APOLO E MUSAS, LIRAS E CÍTARAS.
ESTUDO DA RELEITURA DO LEGADO CLÁSSICO NA ICONOGRAFIA URBANA
DE PELOTAS E OUTRAS CIDADES DO BRASIL MERIDIONAL (ARROIO
GRANDE, BAGÉ, JAGUARÃO E PINHEIRO MACHADO)
Durante muito tempo, afirmou-se que nossa identidade cultural era resultado da
fusão das três raças, a raça branca, negra e indígena. Hoje, apesar do conceito biologizante de
raça ter cedido lugar ao conceito antropologizante de etnia, as próprias pesquisas genéticas
afirmam que a média do brasileiro possui em torno de 30% da bagagem genética européia,
30% de bagagem africana e 30% de bagagem genética indígena, os 10% restantes ficando por
conta da hereditariedade extremo e próximo oriental, majoritariamente populações de origem
japonesa e árabe, entre outras origens asiáticas.
Estas informações de ordem biológica vêm, contudo, justapor-se à percepção do
legado multi-étnico. Se pensarmos em nosso Patrimônio Cultural, é presumível que ele deva
expressar esta pluralidade de legados étnicos constitutivos de nossa formação histórica. Nesse
sentido, os estudos históricos e culturais para se compreender a vinculação entre nossa cultura
e estas origens demonstram-se um estudo significativo para a compreensão de nossa
identidade cultural.
Se pensarmos nossa cultura como um presente resultante de um processo de
formação cultural desenvolvido ao longo de nossa história, deveremos estar atentos, ao
considerarmos nosso Patrimônio Cultural, à forma, como ao longo deste processo, o presente
dialogou com o passado. Dito de outro modo, como os vários presentes, ao longo dos séculos
de nossa história brasileira, apropriaram-se e reinterpretaram elementos dos vários passados
1
Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Antropologia
Social, com concentração em Arqueologia Clássica. Professor do Doutorado e Mestrado em Memória Social e
Patrimônio Cultural (UFPel). Professor do Mestrado em História (UFPel). Bolsista Produtividade CNPq.
101
relacionados às bagagens culturais trazidas com os diferentes componentes étnicos que
formaram nossa cultura.
Dessa forma, perceberemos que diferentes gerações, sob diferentes influências,
codificaram e recodificaram, através de variadas manifestações culturais, a diversidade de
legados componentes de nossa cultura, de modo que, em nosso patrimônio cultural, ficaram
plasmados elementos destas diversas releituras e recriações do passado, através das quais
nossa identidade cultural se vincula, tanto ao passado indígena, quanto africano e europeu,
além de outras origens continentais.
O desfile das Escolas de Samba, no Carnaval das cidades brasileiras, é um excelente
exemplo deste processo de mixagem cultural, misturando faraós, odaliscas, sereias, índias,
orientais, entre outros tipos evocativos da variedade cultural, presente e pretérita, evocados
pela sua relação identitária que coabita as dimensões lúdica e estética envolvidas no processo
carnavalesco de criação poética, visual, musical e coreográfica. Assim entendemos, por que,
no ano de 2004, uma escola de samba do Carnaval carioca decidiu homenagear as reduções
guaraníticas do Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que a escola vencedora do Carnaval
porto-alegrense foi aclamada com um enredo referente ao Egito Antigo. Aí nos lembramos,
também, da antiga marchinha carnavalesca que sugeria a origem de nossa identidade cultural
no Egito: “viemos do Egito, atravessamos o deserto do Saara”.
Neste artigo, nos ocuparemos com analisar a presença do legado clássico em nosso
patrimônio cultural, tema já bastante analisado sob vários enfoques, da Literatura à
Arquitetura, do Cinema às Artes Plásticas, da ciência à religiosidade. Esta pesquisa é um
estudo do patrimônio cultural brasileiro, que se insere dentro do campo de estudos mais
amplo, denominado hoje de “estudos da recepção da Antiguidade”. Trata-se de uma área que
tem cativado um número cada vez maior de interessados e, na mesma proporção, de críticos,
que acusam não se tratar de estudos sérios, voltados aos temas relevantes da pesquisa sobre o
Mundo antigo. Contudo, independente do que possam pensar, não são um modismo. Os
estudos da recepção do clássico são quase tão antigos quanto os próprios estudos clássicos. A
presença do clássico no Renascimento, na Europa moderna, é algo que motivou os estudos
centrais de alguns dos pais fundadores dos estudos da Antiguidade: Winckelmann, no século
XVIII, Burckhardt, no XIX, e Warburg, no XX, procuraram, cada um ao seu modo, entender
a transmissão do clássico para o mundo ocidental.
Nosso foco, porém, não é Dante, nem Botticelli, nem Montiverdi, nem Motzart ou
Shakespeare. Nosso foco será a interpretação da iconografia urbana produzida entre a segunda
metade do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX, na cidade de Pelotas. Essa escolha se
102
deve a vários fatores. O primeiro deles é bastante banal: trata-se da cidade em que o autor
deste artigo atua profissionalmente, motivo pelo qual estabelece uma relação de fruição da
paisagem urbana que suscita a pergunta sobre a relação entre o legado clássico plasmado no
espaço público e a formação cultural da cidade. O segundo fator resulta da relevância da
questão patrimonial nesta cidade, que foi uma das cidades brasileiras incluídas no Programa
Monumenta, do Ministério da Cultura, que consistiu em um programa de restauração de
prédios e monumentos históricos de cidades brasileiras, executado na primeira década do
século XX, financiado pelo BID, com contrapartida do Ministério da Cultura e governos
estaduais e municipais. Outros motivos poderiam ser acrescidos, mas me contentaria em
ressaltar que, assim como São Luís do Maranhão, a cidade de Pelotas, por muitas vezes, desde
o séc. XIX, gostou de autodenominar-se “Atenas do Sul”. Quando cheguei nesta cidade,
surpreendi-me com a circulação de um jornal alternativo assim denominado, Atenas do Sul, o
que já me serviu de alerta de que haveria algo a ser compreendido aí.
Quando falamos aqui de “iconografia urbana”, referimo-nos a um conjunto de imagens
figurativas que nos remetem à imagética greco-romana. Esta iconografia possui suportes
variados: estátuas de ferro ou bronze em monumentos (Figura 1) ou chafarizes (Figura 2);
estuques ornamentais de forros (Figura 3) ou fachadas de prédios (Figura 4); ou ainda
esculturas de ornamentação de fachadas arquitetônicas. Esta iconografia apresenta
reinterpretações oitocentistas da figuração de divindades gregas ou de elementos da cultura e
cotidiano do mundo grego e romano antigo.
103
Figura 2 - Fonte das Nereidas em funcionamento, após a reforma
realizada com financiamento do Programa Monumenta,
inaugurada em 2003. A fonte, inaugurada em 1874, situa-se ao
centro da Praça Cel. Pedro Osório. No plano médio do conjunto
escultórico, quatro musas, uma delas com uma lýra.2 [Fotografia:
Gilberto Carvalho, 2004.]
2
Foi colocada nesta localidade dentro de um programa de canalização de água para o consumo da crescente
população urbana, iniciado em 1871 por meio de contrato com Hygino Durão, responsável pela construção de
uma caixa d'água e quatro chafarizes. Na praça Coronel Pedro Osório, em 25 de junho de 1873, foi colocado o
primeiro chafariz, que entrou em funcionamento em 1874, conhecido hoje como Fonte das Nereidas, fonte
fabricada em uma funilaria francesa, a qual foi responsável pela fabricação da fonte de Edimburgo, na Escócia,
de maiores proporções, da qual a fonte pelotense é uma cópia idêntica. Sua fabricação é atribuída ao artista
francês A. D. Sonnevolre.
3
Foi construída para o Conselheiro Maciel, filho do tenente-coronel Eliseu Antunes Maciel, casado com
Francisca de Castro Moreira (filha do Barão de Butuí e viúva de José Maria Chaves), irmão do Barão de São
Luís e primo do Barão de Três Serros e da Baronesa de Arroio Grande. Chegou a Deputado Provincial e
Deputado Geral pelo Partido Liberal, foi Conselheiro do Império e Ministro no Gabinete Lafaiete. O projeto da
residência é atribuído a José Izella Merote, autor da Capela da Santa Casa, da Biblioteca Pública e do Palacete
Braga (atual sede do Clube Comercial). Este arquiteto é considerado o grande mestre local da substituição do
modelo colonial luso-brasileiro pelo ecletismo histórico.
104
Figura 4 - Escultura arquitetônica de Apolo tocando cítara,
decorando a fachada principal do Club Caixeral, com frente para a
Praça Cel. Pedro Osório, construído no início do séc. XX.
[Fotografia: Gilberto Carvalho, 2004.]
105
Figura 5 - Imagem panorâmica da Pça. Cel. Pedro Osório, evidenciando o paisagismo da
praça e as fachadas neoclássicas, com destaque, à esquerda (lado oriental da praça), aos
prédios atualmente conservados e tombados pelo IPHAN, identificados como Casa 2, Casa 6
e Casa 8, cuja linguagem neoclássica das fachadas data das décadas de 1870 e 1880. [Acervo:
Coleção Nelson Nobre, Universidade Católica de Pelotas.]
Para compreendermos por que o espaço urbano de Pelotas recebeu uma densidade
tão elevada de imagens que nos reportam ao mundo antigo, registro da riqueza material desta
cidade em épocas passadas, precisamos fazer uma breve apresentação do seu histórico.
O município de Pelotas se localiza no sul do Brasil, no estado do Rio Grande do Sul,
numa zona de intersecção entre a região serrana conhecida como Serra dos Tapes e a margem
ocidental da planície sedimentar interna da Laguna dos Patos e Canal São Gonçalo. A
ocupação da região se consolidou a partir de 1779, em virtude da exploração empresarial do
charque (carne bovina salgada). Às margens do arroio Pelotas, lentamente formou-se o
povoado. Em 1812 – ainda submetida à autoridade da Câmara Municipal da vila de Rio
Grande, mas já com um expressivo aglomerado populacional – foi elevada à situação de
freguesia, denominada Freguesia de São Francisco de Paula, a qual, em 1814, contava com
2.416 pessoas.
A elevação ao status de Vila de São Francisco de Paula, que significava a autonomia
política, foi efetivada em 1832, devido ao crescimento progressivo da empresa charqueadora,
bem como à crescente urbanização e crescimento populacional. Em 1835, foi elevada à
106
categoria de cidade, recebendo a denominação de Pelotas, em homenagem a uma embarcação
de couro, de suposta origem indígena, usada na região pelos primeiros habitantes.
O enriquecimento de Pelotas se deu através da produção de charque com base numa
estrutura de trabalho escravista. A utilização da mão-de-obra escrava se desdobrava numa
rede de atividades pecuárias, charqueadoras, domésticas e fabris (olarias, produção de velas,
sebo, cal). A penúria e sofrimento do trabalhador escravo, imagem invertida do
enriquecimento dos latifundiários, proprietários das charqueadas, se contrapunha a uma vida
de luxo e requinte desses últimos.
A consistência do desenvolvimento econômico gerado pela atividade saladeiril
tornou Pelotas uma cidade atraente para investidores e imigrantes. Desse modo, num primeiro
momento, estabelecem-se fábricas a partir da rede produtiva baseada no gado (produção
industrial de sebo, velas e cal); num segundo momento, porém, Pelotas vê surgirem indústrias
independentes do complexo saladeiril, como as fábricas de cerveja, as tecelagens, fábricas de
carro e carruagens, bem como indústria química e farmacêutica.
Ao longo da segunda metade do séc. XIX, a cidade passou por um processo de
desenvolvimento bastante significativo, no que se refere à modernização arquitetônica e
urbanística. Na década de 1860, o centro da cidade já se encontrava com uma malha urbana
em formato de xadrez, constituída de 52 quarteirões e 8.838 pessoas na zona urbana num total
de 13.537 pessoas no município.
A Praça Coronel Pedro Osório localiza-se no centro do segundo loteamento de
urbanização da cidade, datado de 1832. Nossa pesquisa apontou constituir-se o centro
nucleador deste Patrimônio Cultural que nos propomos estudar, formado por releituras da
herança da cultura clássica.
Conforme mapa da cidade de Pelotas de 1835, a antiga Praça da Regeneração (atual
Praça Cel. Pedro Osório) ficou ao centro do núcleo urbano com traçado geométrico. A praça,
criada com o nome de Praça da Regeneração, posteriormente foi denominada, durante o
Segundo Império, Praça Dom Pedro II.
Em 1832, foram erigidas, diante da praça, em seu limite setentrional, a Câmara
Municipal e a Escola Pública, e, entre esses dois prédios, o Theatro Sete de Abril, palco de
entretenimento e cultura que animavam a nova comunidade. Como símbolo da autonomia
administrativa, foi na Praça da Regeneração que se colocou o Pelourinho. No referido mapa
de 1835, aparecem poucas edificações nos entornos da praça, destacando-se Casa 2 (então
residência do charqueador José Vieira Viana) e Casa da Banha, dois prédios históricos
107
tombados, respectivamente, pelo IPHAN e IPHAE4. A praça, no entanto, permaneceu durante
muitos anos bastante alagadiça; sua efetiva urbanização ocorreu somente nos anos 1870,
quando se tornou o centro de todo um sistema hidráulico, com a instalação do chafariz das
Nereidas. Entre os finais da década de 70 e inícios da década de 80, os entornos da praça
tornaram-se um verdadeiro canteiro de obras, recebendo as edificações da atual Prefeitura
Municipal, Biblioteca Pública Pelotense, Casa 8, Casa 6, reformas da Casa 2. Na segunda
década do séc. XX, alguns destes prédios são ampliados (Biblioteca Pública Pelotense) ou
reformados (Theatro Sete de Abril), recebendo novas construções marcadas pela
monumentalidade (Clube Caixeiral). Estes espaços, somados a prédios situados em ruas
adjacentes, com seus monumentos e edificações, constituem ainda hoje esta paisagem urbana
marcada por uma iconografia clássica reinterpretada, sendo esta reinterpretação do Mundo
Antigo um componente plasmado em nosso Patrimônio Cultural.
Quando é feita a pergunta por qual motivo Pelotas “imitou”, com tanta intensidade,
aspectos da Grécia e Roma antigas em sua paisagem urbana, respostas banais se repetem. De
um lado, a matriz materialista afirma que era uma forma de legitimar a escravidão, uma vez
que a riqueza da cidade charqueadora se baseou na exploração desta forma de mão de obra
servil. De outro lado, a mística da Atenas do Sul alimenta um imaginário aristocrático da
cidade, que relaciona as citações ecléticas de figuras e narrativas greco-romanas a uma
suposta superioridade cultural de Pelotas relativamente a outras cidades da região e do país.
A fase inicial desta pesquisa sobre o Legado Clássico no Patrimônio Cultural
brasileiro, estudado sob o prisma arqueológico da Cultura Material, cujos resultados primários
são apresentados neste artigo, aponta que estas explicações não se sustentam. Como veremos,
não era exclusividade da aristocracia escravocrata o cultivo das referências clássicas, além do
que esta produção de imagens de matriz greco-romana continuou por aproximadamente
quatro décadas após o final do regime escravista. De outro lado, ainda hoje constatamos a
participação deste legado na paisagem urbana das cidades brasileiras, em maior ou menor
grau de conservação. Em cidades próximas a Pelotas, como Jaguarão e Pinheiro Machado,
algumas imagens de deuses gregos ou objetos greco-romanos integram o cenário urbano,
4
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, vinculado ao Ministério da Cultura, e Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Estadual, vinculado à Secretaria de Estado de Cultura do Rio Grande do Sul.
108
ornamentando pinturas internas ou fachadas de prédios particulares, clubes, cemitérios ou
teatros. Poderíamos citar aqui vários exemplos, mas nos contentemos em lembrar o Teatro
Minerva, situado na distante cidade de Areia, no interior das Alagoas, remanescente do
mesmo período5.
Com estas palavras, queremos anunciar nossa linha de raciocínio, que será
fundamentada ao longo deste artigo: 1) a apropriação do clássico presente na iconografia
urbana não é uma estratégia de legitimação da escravidão; 2) a apropriação do clássico é um
fenômeno nacional, característico da forma de urbanização e modernização urbana que
caracterizou nosso país entre o Segundo Império e República Velha; 3) a apropriação do
clássico constitui um processo de reinterpretação, cujas ênfases variam conforme a região,
apesar da recorrência icônica de algumas imagens, como atributos de Hermes (o caduceu) ou
Apolo (a lira); 4) esta reinterpretação do clássico foi nuclear no processo de formação de
identidade cultural brasileira no momento de sua intensa urbanização vivida durante a
segunda metade do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX; 5) as marcas deixadas pela
apropriação do clássico elaborada neste período são constitutivas de nosso Patrimônio
Cultural, e portanto merecedoras de estudo e conservação; 6) não basta constatar e conservar
o neoclássico nos prédios e monumentos históricos, é necessário, aos moldes da metodologia
arqueológica, catalogar as ocorrências imagéticas e perguntar pelo seu sentido no processo de
constituição da identidade cultural brasileira no Segundo Império e República Velha.
Alguns paradigmas de interpretação da recepção do clássico já estavam colocados no
início do século XX. De um lado Winckelmann, com a ideia de “imitação”; de outro,
Burckhardt, com o conceito de “redespertar”. Um peca pela ideia de cópia, não enfatizando os
processos de recriação, de releitura. O outro dá a ideia de que as tradições clássicas tenham
adormecido e, em um momento de luzes, “redespertem”. Aby Warburg, por sua vez, forja o
conceito de Nach-leben, de “pós-vida”, por vezes traduzido erroneamente como
sobrevivência, como se se tratasse de algo que quase morreu, mas, apesar de tudo, consiga
sobreviver. Buscando entender o Nascimento da Venus de Botticelli, Warburg, conforne
interpretação de Felipe Charbel Teixeira (2010), chega ao conceito de um “estudo da
mobilização inconsciente, em pinturas e esculturas, de forças emotivas (patéticas)
herdadas do (e reavivadas no) contato com a tradição antiga”. Ou ainda, seguindo com as
palavras de Teixeira, para decifrar o paradigma warburgiano:
5
Primeiro teatro a ser construído na Paraíba, em 1858.
109
Ele se refere (...) não apenas à sobrevivência de certas formas representacionais,
como a Ninfa, entendidas como tópicas figurativas, ou seja, lugares-comuns visuais
mobilizados conscientemente pelos pintores (...), mas ao revigoramento mesmo de
certas forças psíquicas arraigadas na memória coletiva, cristalizadas como
espectros em imagens dotadas de intensa força (TEIXEIRA, 2010: 139).
Em recente obra de Giorgio Agamben (2007: 18) sobre a recepção da tradição das
ninfas, este define as “fórmulas passionais” usadas por Warburg como “cristais de memória
histórica” dotados – e isto nos interessa muito – de uma dupla dimensão: originalidade e
repetição. Este modelo, das “fórmulas passionais”, criado por Warburg para explicar a
transmissão das imagens da Antiguidade (GINZBURG, 2009: 53-54), remete a uma vertente
do inconsciente. E aqui ressaltamos a particularidade de seu modelo: desenvolver um método
de pesquisa focado no sentido histórico das imagens, mas baseado ao mesmo tempo na
emoção humana e balizado na interface com testemunhos literários, combinada a uma
atenta percepção das noções de tradição e memória.
110
ser forte, aguerrido e bravo,
povo que não tem virtude
acaba por ser escravo.
111
1) Por que incluir, no Hino Farroupilha, que mais tarde, em 1934, foi definido como o hino
oficial do estado do Rio Grande do Sul, composto no fervor do ímpeto revolucionário
republicano, a menção a Atenas e Roma, como baluartes da liberdade, virtude e resistência à
tirania?
2) Por que retirar esta estrofe, por meio de um instrumento legal definidor do hino oficial do
estado, eliminando-se assim a vinculação entre a identidade regional e o legado político
greco-romano?
Inicialmente, é mais fácil responder à segunda pergunta. Para a ideologia do período
ditatorial militar, a menção a Atenas e Roma era inconveniente, na medida em que antepunha
os conceitos de virtude, de um lado, e tirania, do outro. De certo modo, dentro do espírito de
censura política da ditadura militar brasileira, a reprimenda feita pelo autor do hino à
autoridade imperial, caracterizando-a como tirânica, poderia expressar ideias “subversivas” de
questionamento da ordem política autoritária. A apologia à liberdade, associada a Atenas, e à
virtude, ligada a Roma, potencialmente poderiam instrumentalizar um discurso político de
oposição ao regime militar, ao qual serviria a acusação de tirania. Percebemos que Atenas e
Roma funcionariam, nestes versos, como metáfora de democracia, causando, nas palavras do
poeta farroupilha oitocentista, o assombro dos tiranos ...
Para respondermos à primeira pergunta, precisamos pensar sobre o que consistiu a
apropriação do legado clássico na formação da identidade cultural de nosso país, uma vez que
o republicanismo riograndense farroupilha não foi um fenômeno regional isolado, mas um
tipo de movimento regional republicano de reação à autoridade imperial recorrente na
primeira metade do séc. XIX, constituindo, portanto, uma página na constituição de nossa
identidade nacional.
Apesar do desinteresse de parte significativa dos historiadores brasileiros pela
questão do patrimônio cultural e memória social, sobretudo no que concerne ao papel do
legado clássico na formação de nossa ideia de nação, uma vez que costumam considerar a
historiografia da Antiguidade Clássica como algo distante de nossa realidade, um dos
historiadores que constituem a espinha dorsal da historiografia brasileira preocupou-se em
diagnosticar este legado: Sérgio Buarque de Hollanda, em sua obra A Visão do Paraíso, cuja
primeira edição foi em 1959, propôs-se estudar os efeitos do imaginário clássico, do séc. XV
à Primeira Grande Guerra Mundial. O relançamento desta obra, pela editora Brasiliense, em
2000, traduz a retomada deste tema por uma parcela dos historiadores brasileiros que, em
sintonia com arquitetos, antropólogos, arqueólogos e outros cientistas sociais, passaram a
112
envolver-se com os estudos que se situam dentro do triângulo Identidade – Patrimônio –
Memória.
A percepção de que o legado clássico ocupa um espaço no imaginário do mundo
moderno, atuando, entre outros processos, na formação das identidades nacionais ocidentais, é
um fenômeno que começou a inquietar, do mesmo modo, a alguns historiadores da
Antiguidade, preocupados em introduzir nos estudos do mundo antigo o diálogo entre o
Antigo e o Moderno. Em 1984, foi publicada, nesse sentido, a obra de Moses I. Finley, The
Legacy of Greece: a new appraisal. O autor aponta que a relação com o passado clássico não
resulta de simples herança genealógica, não sendo mero fruto de uma tradição contínua. Os
conhecimentos que hoje possuímos sobre o mundo antigo, e que permitem à nossa geração
reinterpretar esta tradição e se apropriar deste legado à luz de nossas ansiedades políticas e
culturais contemporâneas, são resultados de sucessivas reapropriações e reinterpretações dos
testemunhos da Antiguidade: do diletantismo e antiquarismo renascentista, passando pelas
releituras plásticas e musicais, ao espírito científico do séc. XIX, nunca houve leituras
imparciais da Antiguidade. Movimentos antiquisantes como o parnasianismo setecentista e o
filo-helenismo oitocentista correspondem a tomadas de posição sobre o seu presente, do ponto
de vista político ou cultural – isto vale para parnasianos mineiros como Cláudio Manoel da
Costa e Tomás Antonio Gonzaga, ou para autores malditos, como Lord Byron, considerado
herói da libertação dos gregos do jugo otomano, ou mesmo Oscar Wilde, considerado
apologista do “amor que não pode ser nomeado”, referência à sua condição homossexual,
associada com frequência ao conhecido homoerotismo grego.
Francisco Marshall poderia ser citado como um dos historiadores brasileiros da
Antiguidade que se preocupa, atualmente, com a interpretação do lugar do legado clássico na
formação da identidade nacional. Conforme suas palavras, a relação com o passado clássico
“decorre especialmente de uma opção que os indivíduos e coletividades têm realizado ao
longo dos séculos (...)” (MARSHALL, 2005: 21).
Gostaria de avançar no diálogo com este helenista conterrâneo, uma vez que estuda o
mesmo fenômeno, referente ao mesmo período, no que concerne à capital do estado, Porto
Alegre. Ao interpretar o clássico na paisagem das cidades brasileiras, Marshall (2005: 23)
constata a
(...) presença muito significativa desta tradição cultural em cidades como esta Porto
Alegre, repleta de informação neoclássica, [percebendo] um tecido de imagens e
memórias culturais que informa sobre a identidade e os projetos de nossos
conterrâneos de cerca de 100 anos atrás.
113
Ao estudar especificamente o Clássico na capital gaúcha, Marshall (2005: 24) afirma
que
114
pela profa. Dra. Kátia Maria Paim Pozzer, que integrou a programação oficial do Congresso
da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, realizado no Rio de Janeiro, em outubro de
2012.
Proponho, com base na sistematização das evidências iconográficas, uma
possibilidade de interpretação do sentido do clássico na identidade cultural de Pelotas e da
região sul, em que os elementos associados a Apolo e às Musas prevalecem (Figuras 2, 3 e 4),
secundados por atributos e representações ligadas a Hermes (Figura 1).
Os monumentos públicos, somadas às esculturas e ornatos arquiteturais, compõem boa
parte do cenário do que aqui chamamos iconografia urbana, no sentido não somente de ser
integrante da vida da cidade, mas por estar exposta ao olhar nas ruas das cidades. A lira ou
cítara, assim como as Musas, são recorrentes como parte do repertório iconográfico urbano de
cidades da época. A Fontes das Nereidas, inaugurado em 1873, na Praça Cel. Pedro Osório,
em Pelotas, idêntica (mas em proporções menores) ao chafariz principal de Edimburgo é um
belo exemplo. Entre as quatro Musas representadas, uma delas segura uma lira (Figura 6. Ver
Figura 2).
115
Constatamos a presença da lira, como ornato adossado às fachadas, naqueles prédios
em que isto é mais previsível, como a fachada do Theatro Sete de Abril 6 e o do Teatro
Guarani. No primeiro caso, a representação resulta da reforma de 1916, que conferiu à
fachada um misto de traços Art Nouveau e Art Déco, com elementos ornamentais associados
às artes do palco, como seria previsível (Figura 7); no segundo, inaugurado em 1921, foi
colocada acima da fachada, na área da platibanda, próxima à figura do índio Guarani que se
destaca sobre o frontão, inspirado na ópera de Carlos Gomes.
6
Prédio inaugurado em 1833.
7
O teatro foi inaugurado em 1833, mantendo-se desde então em atividade praticamente ininterrupta, até 2010.
Foi reformado no inicio da década de 1980, após sua municipalização e tombamento federal pelo IPHAN, que o
reconheceu como um importante integrante do patrimônio cultural brasileiro edificado, não somente pelo seu
valor arquitetônico, mas por ter sido palco de intensa atividade cultural ao longo de mais de 170 anos. Seu prédio
original possuía sóbria fachada neoclássica, seguindo padrão interno elisabetano, em formato de lira (ou
ferradura). Possivelmente, foi o primeiro prédio, na cidade de Pelotas, a diferenciar-se do padrão luso-brasileiro,
adotando elementos clássicos em sua fachada. No ano de 1916, foi inaugurada a remodelação da fachada do
teatro, realizada pelo arquiteto José Toniese, que lhe conferiu o que na época se definiu como um aspecto
“moderno”, consistindo na adequação da mesma ao estilo Art Nouveau. Na verdade, mistura elementos Nouveau
e Déco. Apesar de abandonar a simplicidade dórica original, manteve, em alguns ornatos, o eco de simbolismos
clássicos, de modo que o Legado Clássico que antes se traduzia no rigor da fachada neoclássica deslocou-se para
a sutileza de alguns detalhes iconográficos.
8
Prédio inaugurado em 1890.
116
aos gradis, colocada acima de uma máscara de teatro (Figura 8); o Teatro Rossini de Santa Fé,
na Argentina9, sobre cujo frontão vemos a imagem triunfal de um Apolo citaredo (Figura 9);
ou mesmo o Teatro Arthur Azevedo de São Luís, no Maranhão10, no qual optou-se por colocar
a imagem da cítara em destaque, no frontão que arremata sua harmoniosa fachada neoclássica
(Figura 10).
Figura 10
Figura 8
Figura 9
Figura 8 – Detalhe da grade do Teatro Massimo Bellini, em Catania, na Sicília: uma cítara estilizada, com cinco
cordas, sobre um máscara de teatro. Aos seus braços se acrescentam elementos e terminações que lhe dão um
aspecto floral. [Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2006.]
Figura 9 – Apolo citaredo, entre duas personagens femininas sentadas, sobre a fachada do Teatro Rossini, em
Santa Fé, Argentina. [Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2010.]
Figura 10 – Cítara estilizada, com 5 cordas, em destaque ornamentando o frontão da sóbria fachada neoclássica
do Teatro Arthur de Azevedo, de São Luís, Maranhão. [Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2011.]11
9
Inaugurado em 1932 e construído pela Sociedade Italiana de Ajuda Mútua Vittorio Emanuelle III.
10
O teatro, em estilo neoclássico, sendo segundo mais antigo do Brasil em funcionamento, foi inaugurado em
1817.
11
A obra, iniciada em 1816, resultou a ideia de dois comerciantes portugueses, que, diante do crescimento da
cidade resultante do ciclo do algodão, viram a necessidade que a população tinha de uma casa de espetáculos.
Foi inagurado em 1817, com o nome de Teatro União, em homenagem ao Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarve. Foi o quarto teatro construído na cidade, que se destacou pelo conforto e grandiosidade de suas
instalações. Seu estilo neoclássico, no Brasil, na segunda década do século XIX, era uma novidade de vanguarda,
absolutamente contemporâneo ao que se fazia na capital do Império. Em 1852 seu nome foi mudado para Teatro
São Luiz, e, na década de 1920, numa homenagem ao dramaturgo maranhense Arthur Azevedo (1855 – 1908),
recebeu o seu nome atual.
12
Tanto o bandolim quanto a cítara faziam parte da boa educação de uma moça na virada do século XIX para o
XX. Temos notícias de orquestras de meninas da sociedade pelotense formadas exclusivamente por bandolins.
117
liras e cítaras de inspiração greco-romana, que não eram mais usados como instrumentos
musicais no século XIX e início do século XX. Eu diria que este contraste intencionalmente
salienta o caráter icônico que a representação dos instrumentos de Apolo e das Musas carrega.
Quer dizer mais do que simplesmente os instrumentos que eram usados na performance
musical da época – uma vez que, de fato, ninguém sequer saberia construir uma kithára na
época.
A lira e a cítara nas fachadas dos teatros, delineadas sob forma estereotipada, nos
remetem a um esquema iconográfico que, ao reportar atributos da música greco-romana
antiga, o que de fato faz é afirmar um ideal que encontra neste símbolo antigo revivido a sua
representação. Trata-se, usando a expressão de Warburg, da Nachleben, “pós-vida”, da
música grega, dos instrumentos de Apolo, que aviva uma memória de longa duração, através
da silhueta e corpo idealizado do instrumento. Ao mesmo tempo, porém, ostentada na fachada
destes prédios, icônica, de forma difusa, a lira coloca um conjunto de ideais que se cria
marcarem o progresso da humanidade. O lugar deste progresso seria a cidade; sua forma
social, a vida urbana; seu paradigma de modernidade, os ideais de ciência, equilíbrio, beleza e
racionalidade, que se acreditava terem como origem a Antiguidade greco-romana.
Por simbolizar mais do que os palcos e suas artes, a lira ou cítara foram escolhidas
também para adornar a fachada de prédios que não estavam ligados diretamente à função
cênica ou musical, como é o caso da lira encimando a fachada lateral do prédio do Club
Caixeiral, em Pelotas, cuja imponente sede foi inaugurada em 1904 (Figura 11).
Neste caso, porém, pode-se arguir que se trata de uma instituição que incluía
interesses culturais, sintomático do fato de ter sido criada nos salões da Sociedade
Terpsichore, em 1879, e de ter possuído no início do século XX uma biblioteca cujo acervo
118
chegou a contar com mais de 10 mil volumes. Situação análoga se verifica no Clube
Jaguarense13, que ostenta uma escultura de Apolo citaredo sobre sua fachada. (Figura 12).
13
Fundado em 1881.
14
O prédio, que segue a tendência do ecletismo histórico, recentemente sofreu desabamento de parte de seu
telhado, o que causou danos à fachada..Uma vez a que a cidade de Jaguarão foi reconhecida pelo IPHAN como
Cidade Histórica (em 2010), em razão, entre outros motivos, da grande concentração de prédios no estilo eclético
em sua área central, foi incluída no PAC-Cidades Históricas, de modo que o IPHAN e os técnicos locais estão se
empenhando em viabilizar a recuperação do prédio.
119
Figura 14 – Casa do final da primeira metade do século XX, na
praça central de Pinheiro Machado, possui adornos em forma de
lira corniforme sobre a platibanda. Observe-se que um motivo
vegetal se acomoda sobre a parte superior da lira, reforçando seu
caráter ornamental.
[Fotografia: Acervo LEPAARQ, Universidade Federal de
Pelotas, 2006.]
É talvez por esse caminho que possamos compreender porque o uso da imagem da
lira ou cítara, alçada a uma função icônica, associa-se tanto a instalações de caráter cultural,
associativo ou propriamente musical, quanto a prédios aos quais estas funções não estão
vinculados – casos em que percebemos a elevação das silhueta da lira à condição de um
ornato, quase se desvinculando da representação do instrumento musical.
Como exemplo da associação da lira a instituições de caráter cultural, podemos
lembrar o logotipo usado à época da fundação do Conservatório de Música de Pelotas, em
1918, que representa uma alegoria masculina (alada), tocando uma lira (Figura 15). Não é
necessário aqui dizer que nenhum aluno imaginaria, à época, que frequentaria o conservatório
para aprender a tocar lira! Conforme Isabel Porto Nogueira,
Era usado nos programas de concerto do Conservatório, que fazem parte do acervo
do Centro de Documentação. É uma figura recorrente em diversos tipos de
documentos do acervo, sugerindo que tenha sido considerada emblemática da
escola, posto que constantemente usada.15
15
Informação passada por mensagem de e-mail (em 04/01/2012).
120
Figura 15
Figura 16
Figura 15 – Logotipo institucional, usado nos programas de concerto do Conservatório de Música de Pelotas na
época de sua fundação. Qual uma alegoria da música, compõe-se da imagem de um jovem alado tocando uma
lira grega. Acervo do Centro de Documentação Musical do Conservatório de Música da Universidade Federal de
Pelotas.
Figura 16 – Escultura de madeira em forma de lira, com 4 cordas, usada como decoração na mesa situada no
hall de entrada do conservatório. Acervo Conservatório de Música da UFPEL [Fotografia: Raquel Heidrich,
2005]
121
Figura 17 – Base de abajur, de
inspiração clássica, com um
personagem tocando lira. À venda
em antiquário da Feira de San
Telmo, localizado na Rua Defensa,
em Buenos Aires (exposto na
vitrine).
[Fotografia: Fábio Vergara
Cerqueira, 2010.]
Um exemplo em que ela assume um papel icônico, são as pequenas cadeiras usadas
nas salas de música: nos saraus, que ocorriam nestes ambientes, a cítara representada no
espaldar da cadeira remetia diretamente à função musical, localizada em um antiquário de
Buenos Aires (Figura 19). Já no banco de metal que se situa no pátio do Museu Carlos
Barbosa, em Jaguarão, a lira, que vemos no seu encosto, se distancia da remissão direta à
prática musical e assume aqui mais propriamente o papel de um ornato (Figura 20).
122
Figura 19 – Pequena cadeira de madeira com espaldar que contém a
imagem de cítara estilizada, com quatro cordas. Na condição de
ornamento, recebe, assim com outros exemplares, detalhes com
aspecto de elemento vegetal. Objeto à venda no interior de um
antiquário da rua Defensa, no bairro San Telmo, em Buenos Airtes.
De acordo com o proprietário do estabelecimento, trata-se de uma
cadeira que pertencia ao mobiliário das salas de música, usada
durante os saraus. Fotografia feita com autorização oral do
proprietário.
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2010.]
Finalmente, temos os casos em que a lira, quase esquecida a sua função musical,
figura apenas como um ornato, tal qual um motivo floral ou geométrico. Dois exemplos, em
Pelotas, seriam o gradil que ornamenta a platibanda da fachada de uma casa situada na rua
Benjamin Constant, no bairro do Porto (Figura 21), e a platibanda de um prédio Art Déco
localizado na esquina da avenida Gen. Osório com a rua Gen. Neto, em que o motivo da lira
se repete ao longo da fachada (Figura 22 e detalhe).
123
Figura 22 – conjunto da platibanda, com os ornatos estilizados em forma simplificada de lira.
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2012.]
Figura 22 (detalhe) – visualização de detalhe em forma de lira da platibanda. [Fotografia: Fábio Vergara
Cerqueira, 2012.]
16
A Pátria, 12/02/1890. Correio Mercantil, 13/03/1892, 09/04/1890.
17
Correio Mercantil, 10/06/1884.
18
Opinião Pública, 19/01/1909, 11/01/1900.
19
A Pátria, 22/09/1883.
20
Opinião Pública, 02/06/1906, 06/06/1908.
125
apropriação do Legado Clássico ocupa um lugar de destaque na identidade social do modelo
de vida urbano que era forjado pela Pelotas da virada do séc. XIX para o séc. XX.
Foram identificadas ainda outras oito sociedades musicais, da quais possuíam
denominações concernentes ao Legado Clássico. Entra as demais, um possuía denominação
cristã, a Sociedade Musical Santa Cecília, que era uma banda musical do período imperial
composta por trabalhadores, que não permitia a participação de negros. A Sociedade Musical
União revela, por meio deste conceito, vinculações com ideais maçônicos, que valorizavam a
solidariedade, e com o princípio do associativismo, que caracterizou este período de formação
da classe trabalhadora da região, fato constatado na composição desta banda, da qual
participavam trabalhadores. Havia ainda o Clube Beethoven e a Philarmônica Pelotense,
ambos de natureza benemerente, fundados por senhoras da sociedade local: o primeiro foi
fundado, em 1892, e patrocinado pela D. Angélica Borges da Conceição, a Baronesa da
Conceição21; o segundo incluía em sua diretoria senhoras abastadas, tendo sido fundado pela
Dna. Flora Antunes Maciel, a Baronesa do Arroio Grande, com o objetivo de incentivar a
música e realizar concertos na cidade (LONER, 2001: 136-37; OLIVEIRA, 2002: 10-11).
Das quatro sociedades musicais restantes, três delas faziam referência à lira e uma ao
deus Apolo, o deus músico. A Sociedade Musical Apollo era uma banda musical do período
imperial composta por trabalhadores, característica comum à Lyra Artística de Pelotas, à Lira
Artística, e à Lyra Pelotense, as duas últimas do período republicano22. A peculiaridade da
Lyra Artística de Pelotas era sua composição multi-étnica, tendo inclusive elementos negros
em sua diretoria (LONER, 2001: 136, esp. nota 134).
Note-se que a maior parte das sociedades musicais que se utilizavam de nomes de
proveniência grega, atinentes à música grega antiga (nomes de Musas, a divindade Apolo e a
lira), vinculavam-se a grupos de trabalhadores, no início trabalhadores do comércio e, mais
tarde, após a Abolição da Escravatura, trabalhadores negros das charqueadas pelotenses de
extração notadamente popular.
Na reinterpretação do clássico, paralelamente a simbolismos políticos, a música teve
um caráter icônico central, manifesto tanto na iconografia, com uma cidade povoada por liras
e cítaras, como na denominação de entidades culturais e artísticas, com alusão predominante
às Musas, a Apolo, e a seu instrumento, a lira. Constatamos assim o quanto o imaginário
social da época processou uma releitura do Legado Clássico na construção de sua identidade
social, na qual o ícone da lira grega ocupava um lugar central, como metáfora dos valores
21
Correio Mercantil, 05/05/1892.
22
A Lyra Pelotense, em 1911, fundiu-se com a Sociedade Beneficente Harmonia dos Artistas.
126
humanistas universais atribuídos à Herança Clássica com os quais o modo de vida urbana
emergente queria se identificar, como forma de legitimação e decodificação de suas práticas
sociais cotidianas.
Considerações finais
Valores associados ao imaginário que se tinha destas divindades eram ativados nas
idealizações que norteavam o projeto de urbanização e modernização vivido no Segundo
Império e República Velha. O levantamento da iconografia urbana de inspiração clássica nos
centros históricos de Pelotas, Jaguarão, Arroio Grande, Pinheiro Machado e Bagé, cidades
localizadas na fronteira meridional do Rio Grande do Sul, revelam Apolos e Musas, liras e
cítaras, como um repertório visual de releitura do clássico focada na música.
A lira simbolizaria o ideal da ‘civilização greco-romana’, paradigma da modernidade
que motivava a urbanização – certamente, na matriz européia aqui reciclada, as inspirações
para este ideal eram buscadas não somente no avanço do conhecimento dos textos clássicos,
graças sobretudo à solidez da filologia germânica do século XX e ao papel do ensino das
letras clássicas na educação da época, mas também, e quiçá principalmente, em virtude da
enxurrada de imagens e objetos remanescentes do Mediterrâneo antigo que se apresentaram
efusivamente ao olhar do europeu em razão dos milhares de vestígios, integrais ou
fragmentários, que foram trazidos a lume pelas Grandes Escavações, realizadas entre as
últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX.
A presença deste ícone funciona como um mecanismo de filiação à tradição cultural
clássica, que sob vários aspectos condensou-se, ao longo de séculos, desde a Antigüidade, em
torno de uma representação cultural da lira como símbolo da cultura humanista como um
todo. O recurso à imagem da lira, aqui assumindo um papel icônico, revelaria o apreço que a
cultura musical e a vida intelectual desfrutavam entre a elite e os setores médios e emergentes,
como símbolo da sociabilidade urbana, ao mesmo tempo em que por ele perpassam valores
amplos do que se entendia por urbanidade, civilização, progresso.
O que propus, na primeira parte deste artigo, foi apenas apresentar um conjunto de
pressupostos, que servem de base para a sistematização e interpretação que proponho destas
manifestações do Clássico no Patrimônio Cultural pelotense, identificadas por meio de sua
manifestação na Cultura Material, particularmente no que convencionamos chamar aqui
Iconografia Urbana. Por meio desses pressupostos, procuro modelar uma linha de análise da
127
recepção do Clássico verificada na Cultura Material e na Iconografia das cidades brasileiras,
que compõe nosso Patrimônio Cultural e nossa Memória.
Assumimos, em suma, que, além de evidenciar o Clássico no Patrimônio Cultural
brasileiro, compete-nos também a tarefa de interpretar o(s) significado(s) que subjaz(em) à
forma de sua (re)-apropriação. Neste artigo, centrado na meta de compreender o caso da
cidade de Pelotas, procurei formular bases para buscar compreender o significado da recepção
e reinterpretação do Legado Clássico nas cidades gaúchas em parte dos séculos XIX e XX,
mas que podem igualmente servir para se pensar este fenômeno transcultural em outras
regiões e cidades do Brasil.
Agradecimentos
Agradeço, pela prospecção de imagens urbanas nas cidades da Zona Sul do RS e pelos
debates sobre o patrimônio cultural da região, à equipe do Programa Memoriar, e em especial
à Luísa Lacerda Maciel, à Mariciana Zorzi, à Neuza Janke e à Jezuína Kohls Schwantz.
Agradeço ainda à Isabel Porto Nogueira, pelas imagens do Conservatório de Música, e,
finalmente, a Gilberto Carvalho e Cristina Rosisky, pela cedência das fotografias de sua
autoria. Os conceitos, informações e raciocínios aqui apresentados são de estrita
responsabilidade do autor.
Referências bibliográficas
FINLEY, M. I. (Ed.) The legacy of Greece. A new appraisal. Oxford: Oxford U.P., 1984.
HOLLANDA, S.B. de. A visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000 [1959].
LONER, Beatriz Ana. A construção da classe operária em Pelotas e Rio Grande. Pelotas:
Editora Univeristária da UFPEL, 2001.
TEIXEIRA, Felipe Charbel. Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas. História e
Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p. 134-147, 2010.
128
A IMAGINAÇÃO DO PASSADO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE GREGA: O
CASO DA ARQUEOLOGIA CLÁSSICA NO SÉCULO XIX
Introdução
1. Argumento
1
Professor de História da Arte Antiga no Departamento de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo.
Nacionais e o da expansão colonial, as pesquisas arqueológicas adquiriram uma nova
dimensão, expressa de modo particular nos países que estavam em busca de suas identidades
nacionais. O caso da Grécia é, nesse sentido, exemplar, uma vez que seu passado desempenha
importante papel no imaginário grego atual.
3. O caso da Grécia
130
No estudo mais recente sobre a arqueologia grega, Anastasia Sakellariadi (2010),
enfatizou que o desenvolvimento da arqueologia na Grécia foi determinado pelo papel central
desempenhado pela Antiguidade Clássica no imaginário europeu em geral e no grego em
particular.
Ao abordar o tema da construção do passado pelos Gregos modernos, Michael
Shanks já observava como a restauração do Partenon para dar boas vindas ao rei Oto da
Bavária a sua capital, Atenas, “foi um claro símbolo da unidade ideológica entre as ideias
classicistas e a expressão do poder do Estado” e de como “monumentos arqueológicos
tornaram-se verdadeiros emblemas do novo Estado grego depois de 1821” (SHANKS, 1996:
79).
O arqueólogo grego Yannis Hamilakis foi quem mais desenvolveu esta temática. “A
Grécia, diz ele, é ao mesmo tempo um país e um topos no imaginário ocidental, uma realidade
e um mito, um bem nacional e uma reivindicação internacional” (HAMILAKIS, 2007: 58).
Hamilakis chega a essa tese investigando as ligações e associações da Antiguidade
Clássica e seus objetos com a arqueologia e a imaginação da nação. Nesse sentido, procura
responder a uma série de questões inter-relacionadas: por que a necessidade de vestígios
materiais do passado? Como eles operam no processo de se imaginar a nação? Como
contribuem para a ideia de nação e à produção de sua materialidade? Qual o papel da
arqueologia e dos diferentes atores sociais (Estado, intelectuais, instituições etc.)? Por que
certos temas e contextos e não outros?
Está em jogo, portanto, o papel dos vestígios materiais da Grécia antiga e das
práticas arqueológicas dentro do processo de se imaginar a nação (cf. HAMILAKIS, 2007:
57-123). A construção da nação deu-se sobre a base dos seguintes fatores, dentre outros: a
independência nacional da Turquia; a reconstrução de monumentos históricos, como o
Partenon e o templo de Atena Nike na Acrópole; a formação de uma história mítica da nação
por parte dos intelectuais, que valorizou os monumentos clássicos; a proteção das
antiguidades e o surgimento de uma historiografia nacional; a intensificação das atividades
arqueológicas e o surgimento de uma arqueologia nacional; uma política estatal através de
instituições arqueológicas e jornais oficiais; a importância dos artefatos devido ao positivismo
arqueológico que os toma como verdade absoluta e sua divulgação ao público.
Houve, assim, uma redescoberta da herança helênica pelo povo grego em
consequência de processos ligados a desenvolvimentos políticos, bem como o surgimento de
tendências ideológicas, a exemplo da glorificação da Grécia clássica pelas nações europeias.
A realização, em 1905, do primeiro Congresso Internacional de Arqueologia em Atenas, é,
131
quanto a isso, paradigmático; pois, a escolha de Atenas em detrimento de Roma foi uma clara
expressão do triunfo da Grécia na Arqueologia Clássica (cf. DYSON, 2006: 131). A sessão de
abertura deu-se no Partenon, com o discurso inaugural proferido pelo Príncipe dos helenos,
Constantino, duque de Esparta, presidente do congresso e da Sociedade Arqueológica, como
segue:
132
À voz príncipe, proclamando a “invenção da nação”, fazem o coro as das autoridades
gregas, que discursam na sequência; primeiro P. C. Carapanos, Ministro da Instrução Pública
e vice-presidente do congresso, e depois P. Cavvadias, Diretor Geral de Antiguidades e
Museus (cf. Comptes rendus, 1905: 91-100). Após eles, pronunciam-se os arqueólogos
representantes das instituições estrangeiras em Atenas: W. Dörpfeld do Instituto Alemão, A.
Wilhelm do Instituto Austríaco, R. C. Bosanquet da Escola Britânica, T. W. Heermance da
Escola Americana e M. Holleaux da Escola Francesa; os quais, ainda que voltados para outros
temas, respaldam, por assentimento ou simples presença, a idealização das autoridades gregas
(cf. Comptes rendus, 1905: 100-109).
Nesse contexto, o estabelecimento da antiguidade clássica como capital simbólico da
nação grega resultou da adoção do ideal ocidental do helenismo (cf. MORRIS, 2000: 37-76).
Todavia, houve uma passagem desse helenismo ocidental para um indígena, tipicamente
grego (cf. HAMILAKIS, 2007: 112-119). A Grécia moderna foi inventada por uma
convergência dos processos colonial e nacional, ou seja, por fatores externos no primeiro caso
e internos no segundo. Se por um lado, a Europa colonial, através do mecanismo do
helenismo ocidental baseado em uma narrativa linear de continuidade entre o passado grego e
seu presente, inventou a Grécia moderna, por outro, é necessário enfatizar que a narrativa
nacional helênica emancipou-se desse conceito adaptando-o e transferindo-o para si mesma.
Seja como for, nessa linha de pensamento, a Grécia moderna foi inventada do
presente para o passado com a ajuda da arqueologia. O problema desse processo formativo é
que a busca no passado pela etnicidade de uma nação atual pode até legitimar o presente, seu
principal objetivo, mas cria, ao mesmo tempo, um sentido pseudo-histórico de continuidade
(cf. KOTSAKIS, 1998: 51); pois, ocorre em seu desenrolar o apagamento das diferenças, seja
no próprio passado, seja deste em relação ao presente. O que se chama de Grécia antiga nunca
foi totalmente grega e muito menos homogênea, sendo, pelo contrário, heterogênea, como o é
também a atual.
A Arqueologia já abandonou em larga medida as grades narrativas universais, que
dariam conta de explicar o todo não importa a época e o lugar, e tem se voltando a estudos
contextuais, nos quais as diferenças culturais, a diversidade social e as múltiplas identidades
não são apagadas, mas, antes, valorizadas (cf. MESKELL, 1998: 6). Guinada que move a
disciplina de uma arqueologia de caráter nacionalista, com sua busca de uma identidade única,
a uma arqueologia do nacionalismo e das identidades com todas facetas que a cultura material
permitir identificar.
133
Considerações finais
O objetivo desse estudo foi o de mostrar como foram, num mesmo processo, o
passado imaginado e a identidade grega moderna construída, bem como o de explicitar os
mecanismos envolvidos nessa invenção tanto do passado quanto do presente. Foram
privilegiados, para tanto, os estudos mais recentes que contribuíram para a passagem de uma
arqueologia de caráter nacionalista para uma arqueologia do nacionalismo.
O foco não esteve somente na arqueologia do nacionalismo, mas também na
arqueologia das identidades, que tanta ênfase tem posto no diverso, no diferente, no outro,
tomado justamente na sua condição de outro. Arqueologias que no caso abordado se unem em
uma crítica genealógica de seus discursos e de suas práticas com o intuito partilhado de ao
menos tentar um estudo do passado mais livre do presente e com as feições dele próprio.
Agradecimentos
Agradeço aos meus professores Haiganuch Sarian e Pedro Paulo Abreu Funari e aos meus
colegas Glaydson José da Silva, Renata Senna Garraffoni e Rafael Rufino. Menciono o apoio
institucional da UNIFESP, da UNICAMP, do MAE-USP e da FAPESP. A responsabilidade
pelas ideias restringe-se ao autor.
Referências bibliográficas
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présidence de S. A. R. Le Prince Royal des hellénes, président de la Société Archeologique.
Athèns: Hestia, 1905.
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134
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KOHL, P.L. Nationalism and archaeology: on the constructions of nations and the
reconstructions of the remote past. Annual Review of Anthropology, 27, p. 223-246, 1998.
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MORRIS, I. Archaeology as cultural history: words and things in Iron Age Greece. Oxford,
Blackwell, 2000.
135
O PRÍNCIPE CARATACO: NACIONALISMO E CONSTRUÇÕES IDEOLÓGICAS
DO MASCULINO A PARTIR DO SÉC. XVI
Renato Pinto1
Este estudo é uma adaptação de parte de minha tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação de
História do IFCH-Unicamp: Duas Rainhas, um Príncipe e um Eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do
masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana. Partes do texto aqui apresentado estão
publicadas nos Anais do XXVI Simpósio Nacional da ANPUH, 2011.
1
Professor de História Antiga da UFPE. Pós-doutor pelo MAE-USP. Doutor em História Cultural pelo IFCH-
Unicamp. Pesquisador Associado do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP-USP).
2
Nas negociações de poder não há apenas um discurso que se tornará hegemônico, ou mesmo que consiga criar
condições para que sua ação na sociedade seja totalmente congruente e livre de contradições, desde o momento
de sua própria criação. Desta forma, é temerosa a aceitação de que os colonizados foram vítimas passivas,
incapazes de compreender as forças que os cercavam (CORNWALL & LINDISFARNE, 1994: 8).
3
Edward Said aponta para a continuidade da influência do Imperialismo europeu do séc. XIX e do começo do
séc. XX. Importante lembrar que a Grã-Bretanha manterá Hong Kong como colônia até o fim do séc. XX.
Embora seja contrário às teorias totalizantes, para Said, é praticamente impossível desvencilhar-se das
influências do Imperialismo europeu (SAID, 1995: 36).
4
Um dos desdobramentos desta inflexão foi a maneira como acadêmicos dos países que haviam passado pela
experiência colonizadora notaram a parcialidade das fontes que tratavam de suas histórias e aquelas dos impérios
ocidentais. Foi propugnada uma maior asserção crítica dos documentos textuais. Outrossim, a cultura material,
enquanto fonte, ganhou impulso e autonomia como construtora de uma outra forma de conhecimento que
pudesse dialogar com o texto, deixando para trás qualquer pecha de simples objeto de ilustração
(GARRAFFONI, 2008: 139). Entre os importantes trabalhos de arqueólogos que tratam das influências dos
poderes imperiais no pensamento pós-colonial, ver: HINGLEY (2000), MATTINGLY (1997) e FUNARI,
HALL & JONES (1999).
que foi o passado, mas, sim, a incerteza se o passado é mesmo passado, concluído, ou se
continua, ainda que em diferentes formas (SAID, 1993: 1).
Eric Hobsbawm argumenta que as tradições que parecem ou se pretendem antigas
são, em verdade, quase sempre de origem muito recente. Estas tradições ditas antigas são
inventadas para dar sentido a diversas práticas que implicam a continuidade com o passado
(HOBSBAWM & RANGER, 1983: 1). Tanto as nações colonizadoras quanto as que lograram
chegar à independência vêm construindo seu passado, criando tradições que são exploradas
politicamente por grupos radicais e governos títeres. Desta forma, a reconstrução do passado
ganha força não como algo que pode ser estudado de forma isolada, mas como um elemento
que fomenta nossas ações no presente (SAID, 1995: 33-5 e 48-9).
A Renascença Inglesa (séc. XVI e início do XVII) fez com que os textos latinos se
tornassem mais conhecidos e foi possível para alguns estudiosos fazer uma ligação direta
entre o Império Romano, a Gália e o passado da Inglaterra. Um certo contato se deu entre os
trabalhos de antiquários da península itálica e os da Inglaterra. Ainda assim, a Inglaterra
tendia a ser enfatizada como única, separada de todo o contexto do passado romano do
continente (PIGGOT, 1989: 19). Este isolamento não era bem aceito por toda a
intelectualidade inglesa, que também buscava por elementos clássicos em suas origens. Havia
a tentativa por parte de antiquários e de intelectuais do período em propor uma ligação entre
as populações cristãs do Ocidente e os povos da Antiguidade, em especial gregos (inclusive
troianos) e romanos. No processo, foram criados mitos de origem que se utilizaram do
passado romano, celta, viking, anglo-saxão e normando da Bretanha. Tal interesse por
narrativas de origem fazia com que o passado fosse usado para criar laços de ascendência e
justificar o status quo da época, além de propor um destino para as nações e embriões de
estados nacionais (HINGLEY, 2000: 3; SMILES, 1994: 1).5
Nos estudos sobre os usos do passado, embora haja um predomínio de publicações
vindas de países europeus outrora metrópoles de impérios no séc. XIX, no Brasil,
pesquisadores de vários segmentos têm tratado do tema dos usos do passado, e oferecem uma
perspectiva sul-americana, o que contribui para enriquecer e diversificar os debates. Entre as
principais obras, destaco a de Glaydson José da Silva (2007), a respeito das apropriações do
passado durante o regime de Vichy.
Para minha reflexão neste texto, argumento que as identidades nacionais e o
sentimento nacionalista têm tido um papel preponderante como elementos que mobilizaram
5
Entre as principais obras que denunciam o uso do passado clássico como legitimador dos impérios modernos
estão Hingley (2000) e Mattingly (2006/7).
137
intelectuais de variadas origens e categorias na busca por uma herança cultural e política no
passado. Muitas vezes, trata-se de um processo de invenção acrítico de um passado
inexistente ou muito distinto do representado. O estudo de caso aqui é o da figura do príncipe
bretão e Carataco e de sua ressignificação como símbolo de masculinidade nas artes e no meio
acadêmico a partir do séc. XVI. A representação de sua imagem serviria aos propósitos do
nascente estado inglês, como aporte de um passado clássico, e sua masculinidade seria
reificada e ressaltada como virtude herdada pela nação moderna.
Nas últimas duas décadas houve um aumento nas publicações que estudam os
homens e o masculino. Podem ser citadas aqui Manhood in the Making (1990), de David
Gilmore; The Image of Man (1996), de George Mosse; Fashioning Masculinity (1996), de
Michèle Cohen; e Dislocating Masculinity (1994), organizado por Andrea Cornwall e Nancy
Lindisfarne. Tanto hoje em dia como no passado, o termo “homem” tem sido usado por
muitos como se fosse uma categoria universal. Já houve inúmeras tentativas para encontrar a
essência que definiria o significado de ser “homem” ou “masculino”. Todavia, palavras como
“masculino” e “homem” podem ser mais bem compreendidas enquanto partes de um discurso
que se pretende hegemônico, e quando estudadas em detalhe nos seus usos quotidianos e nos
contextos em que as pessoas falam sobre suas derivações. Desta forma, a complexidade de
seus significados fica logo visível (CORNWALL & LINDISFARNE, 1994: 2).
Os discursos do masculino que se pretendem hegemônicos criam diferenças e
hierarquizam o mundo a partir de normas, e envolvem a legitimação das posições de poder
ocupadas por certos grupos de homens, ou mesmo de mulheres, que se identificam com a
criação dos atributos designados ao masculino num cenário ideológico, historicamente
determinado. Como consequência, as formas do “masculino hegemônico” culturalmente
exaltadas como “corretas” só podem ser encontradas nas experiências de um grupo muito
reduzido de pessoas. Mas são essas construções que determinam, em larga medida, os padrões
de normatividade em suas sociedades. Nota-se que, em diferentes sociedades, e em diferentes
momentos, os discursos da masculinidade hegemônica enfatizaram certos atributos tidos
como masculinos, e produziram determinados subordinados, diferentes redes de
poder, e desigualdades sociais (CORNWALL & LINDISFARNE, 1994: 20).
Apresentarei alguns exemplos de como a imagem do príncipe bretão Carataco, filho
do rei-cliente Cunobelino, emergiu no séc. XVI e seguiu até o séc. XIX como uma figura
138
heróica que abarcava atributos associados à masculinidade ideal, em diversos contextos
históricos. Primeiro, mostrarei como Carataco aparece nas fontes clássicas para, então,
apresentar outras reconstruções modernas de sua imagem em peças de teatro, romances, e em
gravuras e pinturas.
Há indícios de que Augusto teria cogitado uma invasão das ilhas da Bretanha já em
34 a.C., e que pretendia estar presente à campanha. Contudo, entrementes, assinou-se um
tratado político entre tribos bretãs e Roma, talvez resultado da própria ameaça de invasão. De
qualquer forma, as atividades diplomáticas entre Roma e a Bretanha6, que já existiam desde a
campanha de Júlio César na ilha em 55 a.C., intensificaram-se a partir de então. Augusto
reconheceu o direito de alguns reis-clientes, ou seja, governantes que prometiam lealdade aos
interesses romanos em troca de benefícios, como a manutenção de sua dinastia no poder ou o
acesso ao comércio com Roma, por exemplo.
Durante o governo de Calígula, por volta dos anos de 39 e 40 d.C, outra tentativa
infrutífera de invasão se desenhou (Díon Cássio, 59.25). Parece ter ocorrido no momento em
que o longo reinado do rei-cliente Cunobelino 7 teria chegado ao fim. Segundo as fontes
clássicas (Suet., Caligula 44.2), um de seus filhos, Admínio, havia procurado o socorro de
Roma para resolver problemas sucessórios.
Em História Romana, Díon Cássio (60.20), quando descreve a efetiva invasão da
Bretanha em 43 d.C. pelas legiões de Cláudio, faz menção à existência de outros filhos do
então falecido Cunobelino e às suas altercações com Roma. Entre os herdeiros do rei-cliente,
são citados os nomes de Carataco e Togodumno. Estes príncipes teriam se indisposto com a
política romana e levantado seus súditos contra os interesses do Império. De certo, um bom
pretexto para que Cláudio se lançasse naquela campanha de conquista. Mas haveria outros
fatores envolvidos, como a precária situação política do imperador em vista de sublevações de
senadores e generais naquele período de seu governo, por exemplo. Uma grande conquista
militar poderia lhe angariar o prestígio necessário para permanecer no poder.
6
Opto neste artigo por chamar de Bretanha ou Bretanha Romana a província romana, que, grosso modo,
equivaleria ao território atual da Ilha da Grã-Bretanha. Há, contudo, a possibilidade de se utilizar o termo
Britânia, ou, ainda, sua denominação latina: Britannia.
7
Há muitas moedas de ouro cunhadas na Bretanha com as efígies de Cunobelino, seguindo estilo clássico
romano, e adotando o título de Rex. Acredita-se que tenham sido batidas mais de um milhão de unidades
(Mattingly, 2006/7: 74).
139
A resistência organizada pelos sucessores de Cunobelino, em especial, a do Príncipe
Carataco, provaria ser de difícil controle, e não se extinguiria tão cedo. O volume de moedas
com o nome de Carataco descobertas pelos arqueólogos parece indicar que seu poder ao sul
do Tâmisa era considerável, supranacional, e abrangeria muitas tribos. Poderia haver um sinal
de unificação de poderes sob seu governo (SALWAY, 1993: 75). Tácito (Ann. 12.31-6)
descreve como Carataco teria logrado arregimentar várias tribos para seu intento e, após
escapar das legiões romanas estacionadas no leste da ilha, organizar uma grande resistência na
região onde hoje está o País de Gales. Ainda segundo Tácito, Carataco somente foi capturado
em 51 d.C, após a traição da rainha dos brigantes, Cartimandua, que o teria posto a ferros
antes de entregá-lo aos romanos (Ann. 12.36).
Após seu aprisionamento, Carataco teria sido levado para Roma, onde deveria ser
executado em um triunfo organizado para o imperador Cláudio. Mas, segundo Tácito, o bretão
comandava tal autoridade em sua voz, e demonstrava tão claramente o sacrifício do desapego
com sua própria sorte em prol da de seu povo, que acabou por merecer a compaixão de
Cláudio, que o teria perdoado e deixado viver. Carataco teria mostrado grande gratidão para
com o veredito e agradecido a Cláudio e à sua esposa, Agripina (Ann. 12.36-7).
Foi desta maneira que a figura de Carataco entrou para a história romana e a da
Bretanha Romana: um herói da resistência ao invasor, dotado de virtudes que iam desde a
eloquência capaz de comover os romanos, ao sentimento de renúncia da própria vida e de
doação inconteste ao seu povo. Em uma percepção tradicional e normativa de masculinidade,
ser homem implicaria entender que é descartável diante de um bem coletivo maior ou de sua
condição masculina per se. Mas a aceitação do destino deve ser entusiasmada e romantizada,
feita com “graça” (GILMORE, 1990: 224-5). Ou seja, Carataco não compartilharia da
selvageria que seria logo mais observada em algumas representações da figura de Boudica8, a
rebelde rainha dos icênios, que se levantaria contra os romanos, alguns anos depois, durante o
governo de Nero (37 – 68 d.C).
8
Também conhecida como Bodiceia em parte da literatura histórica brasileira.
9
Neste estudo, o termo “jacobino” se refere, grosso modo, ao período do reinado de Jaime I (Jaime VI, da
Escócia), de 1567 a 1625.
140
raízes no classicismo, os intelectuais do reino tiveram de lidar com o paradoxo representado
pela derrota para Roma e o ingresso no mundo tido como civilizado, o greco-romano. Neste
processo de autoidentificação, o binarismo hierárquico dos gêneros foi o eixo do campo
discursivo no qual foram construídas as imagens de rainhas violentas ou traidoras e de
príncipes agraciados com as virtudes consideradas natas da conduta masculina. Para o
propósito das comparações entre governantes masculinos e femininos, não houve dificuldades
em adotar malabarismos que incluíram o anacronismo histórico. Embora separados por mais
de vinte anos na história da Bretanha Romana, Boudica e Carataco se coexistem nos discursos
nacionalistas e naqueles de origens indentitárias do pós Renascimento Inglês (Mikalachki,
1998: 101).
No séc. XVI, uma série de representações teatrais realçou a importância do passado
romano da Inglaterra, e, em um discurso nacionalista, focou na unidade e na necessidade de
criar resistência ao invasor que poderia vir de novo do continente, a qualquer momento
(HINGLEY, 2008: 53). O teatro jacobino pode contribuir para a compreensão do pensamento
imperial inglês em um momento fundamental da formação do que seria, mais tarde, o Império
Britânico. Uma das mais importantes personalidades intelectuais do período foi o escritor,
poeta e dramaturgo designado como William Shakespeare (1564 – 1616).
Em 1611, Shakespeare teria escrito a peça Cimbelino (Cymbeline), um relato do que
teria ocorrido na Bretanha após as expedições de Júlio César, antes de uma suposta invasão de
Augusto. A peça utiliza textos de autores clássicos para a criação de alguns personagens,
enquanto outros são ficcionais. O personagem principal é o rei Cunobelino, pai do Carataco
clássico, que também está representado na peça com o nome de Arvirargus. Cimbelino é uma
aproximação entre as políticas expansionistas de Roma e o governo de Jaime I, que mostra
como os bretões se tornam muito mais civilizados à medida que absorvem a cultura e as
formas de vida romanas. Cunobelino é retratado como um rei totalmente “romanizado”, tendo
muitos oficiais romanos em sua corte e fazendo repetidas viagens a Roma (HINGLEY, 2008:
54). Em Cimbelino, o contato contínuo com Roma traz para a Bretanha Romana o ethos da
honra masculina, importado do ideal moralista de Augusto (Idem). Contudo, em um dado
momento, os bretões são traídos por uma rainha malévola e têm de lutar contra os invasores.
Jodi Mikalachki (1998) interpreta Cimbelino como um romance masculino (p. 96).
Para a autora, a ansiedade jacobina com os papeis dos gêneros e com a ameaça da figura da
mulher com excessivo poder fazia com que a complexa ligação entre o passado romano e o
período de expansão imperial de Jaime I emergisse na dramaturgia como formulação de uma
fraternidade masculina da nação. As peças jacobinas geralmente terminavam com um
141
desenlace exclusivamente masculino, estando ausentes todas as figuras femininas, quer seja
porque morriam, ou porque eram banidas por sua incompetência, por mais que
compartilhassem de grande sentimento nacionalista, também (MIKALACHKI, 1998: 96-7 e
104).
Os trabalhos de George Mosse (1985) sobre as conexões entre nacionalismo e
sexualidade definem o nacionalismo como uma ideologia de fraternidade eminentemente
masculina, unida pelo sentimento de temor da emasculação advinda do homoerotismo
masculino sexual, 10 e que preconizava o degredo da mulher e do feminino a um papel
marginal na sociedade. Apesar do trabalho de Mosse se concentrar no séc. XVII, estudos
recentes apontam que a formação de sociedades masculinas teve um papel fundamental na
construção de discursos nacionalistas na Inglaterra, já no séc. XVI (MIKALACHKI, 1998:
96).
Cimbelino de Shakespeare alimenta o mito da Bretanha Romana totalmente
masculinizada, e por extensão, da Inglaterra jacobina. A fim de estarem a salvo dos romanos e
da traição da rainha má, os príncipes Arvirargus e seu irmão se escondem com Belarius, um
nobre bretão que, para proteger os príncipes, sequestra-os ainda jovens e os leva para uma
caverna no País de Gales. Há aqui uma série de referências aos fortes laços afetivos entre os
homens e a criação de um ideal de família toda ela masculina. Embora se sintam lá
protegidos, os príncipes optam por enfrentar o inimigo romano em certo momento, pois
observam que não estão mais em contato com a realidade de seu país, ferido pela invasão do
inimigo externo e ameaçado pela malícia feminina interna. Uma alusão à alegoria da caverna
de Platão, poderíamos argumentar. Para Mikalachki, a fuga da caverna também quebra a
fantasia androgênica da Bretanha Romana de Shakespeare e funciona como um ritual de
passagem masculino (MIKALACHKI, 1998: 106).
Os príncipes bretões, a fim de entrarem para a história da nação, têm de sair daquele
“útero masculino”, um tropo que parece ser um núcleo familiar de homens, que lhes oferece
toda a proteção. A caverna pode ser um ambiente que os protege da ameaça feminina, mas, ao
mesmo tempo, não permite que realizem a prática sexual da penetração da mulher,
condenando-os à esterilidade. A saída da caverna para entrar na história “é uma versão da
entrada da Bretanha na história por meio da invasão romana. Assim como os príncipes, a
10
O homoerotismo poderia ser mais bem aceito nas concepções de amizade masculina enquanto uma relação
platônica entre homens, não sexual. De qualquer forma, a linha divisória entre o “ato selvagem” da
homossexualidade e o do platonismo homoerótico nunca foi muito clara na sociedade do séc. XVII e ambas as
formas poderiam ser vistas como contrárias às normas do período (MOSSE, 1985: 67).
142
Bretanha também teria ficado fora da história se não tivesse travado batalha com os romanos
(MIKALACHKI, 1998: 106)”.
A psicanalista Janet Adelman interpreta a complexidade histórica da relação entre os
bretões e Roma como um conflituoso desejo de fusão que convive com outro, o da autonomia
(ADELMAN, 1992: 207). Para Mikalachki, o contato da Bretanha com Roma, ainda que
como parte derrotada, foi fundamental para criar seu discurso de identidade autonomista na
modernidade. A Bretanha Romana ocupou um lugar de destaque a partir do séc. XVI porque
fornecia imagens de laços masculinos que eram características do nacionalismo moderno, ao
mesmo tempo em que ajudava a exorcizar de sua história o feminino selvagem que desafiava
tanto sua independência diante de outras nações europeias quanto sua respeitabilidade interna
(MIKALACHKI, 1998: 107).
A facúndia de Carataco diante do imperador Cláudio seria continuamente elogiada e
eligida como um sinal de hombridade e de atitude sóbria por cronistas do início da Idade
Moderna inglesa. Será comum mostrar a figura de Boudica como sua antítese. No séc. XVII,
o antiquário e historiador William Camden (1551-1623) apresentava, ao início de sua crônica
“Grave Speeches and Witty Apothegms of Worthy Personages of this Realm in Former
Times” contida na obra Remaines concerning Britain: their languages, names, surnames,
allusions, anagrammes, armories, monies, empreses, apparell, artillarie, wise speeches,
proverbs, poesies, epitaphs11, uma longa citação da arenga de Carataco, em detrimento das
poucas linhas que concede às falas de Boudica tiradas dos textos clássicos.
John Milton, na obra History of Britain (1971), primeiro publicada em 1670, cita o
discurso de Carataco porque ele representa magnanimidade, sobriedade e destreza pugnaz,
mas recusa-se a fazer o mesmo com o atribuído à Boudica, por considerar que sua fala nada
mais é do que uma fábula perniciosa criada pelos autores clássicos para depreciar os valores e
princípios que norteiam a separação entre masculino e feminino na Bretanha (Mikalachki,
1998: 102-3).
John Fletcher produziu, entre 1609 e 1614, uma peça chamada Bonduca, que passou
por uma série de adaptações ao longo dos séculos, sendo a última no ano de 1837. Nela,
Caratach, personagem baseado no histórico Carataco, aparece como primo de Boudica, rainha
dos icênios, algo que não é jamais citado nas fontes clássicas. A personagem Bonduca
(Boudica) é descrita como uma valente Virago, ou seja, uma mulher com características
masculinas (GREEN, 1982: 309) e sua coragem está associada a sua disposição de lutar até a
11
Disponível no site http://www.archive.org/details/remainesconcerni00camd. Acessado em 23/12/2010.
143
morte. Contudo, Fletcher também a caracteriza como afoita e teimosa, vícios tidos como
femininos, e que a tornariam incompatível para liderar política- ou militarmente uma tribo ou
um país (Williams, 1999: 23). As poucas vitórias dos rebeldes são atribuídas ao comando de
Caratach, não à Bonduca. Entretanto, quando da derrota final diante dos romanos, esta é fruto
da falta de comedimento da rainha e de seu desatinado envolvimento com "coisas de
homens". Ao final da peça, seu primo ordena que ela se cale e vá para casa tear12, chamando-a
de mulher tola e bestial (HINGLEY & UNWIN, 2006: 131).
Ainda no mesmo período, os atributos masculinos nas construções da imagem de
Carataco se traduziram em papeis de gênero diante do matrimonio. Inspirado na obra de John
Fletcher, o ator e dramaturgo George Powell (1658- c.1714) produziu uma peça chamada
Bonduca: or The British Heroine, apresentada no Theatre Royal. Powell admitiu que fizera
alterações no original de Fletcher, mas deu-lhe grande aclamação (HINGLEY & UNWIN,
2006: 137). Na versão de Powell, o foco passa a ser Carataco, um general, que, após perder a
batalha, engaja-se em um diálogo com o governador romano Suetônio Paulino, que lhe
oferece sua amizade. O diálogo segue desta maneira (apud HINGLEY & UNWIN, 2006:
138):
Na peça de Powell, Roma exerce o papel feminino, no caso, rechaçada pelo príncipe.
Carataco recusa-lhe o matrimônio, numa referência ao teor de controle do homem sobre a
mulher. Apesar de dar ênfase ao papel masculino de Carataco, esta peça foi uma das primeiras
a abrir o espaço dos palcos para atrizes femininas.14
12
Tear parece ter sido a atividade mais apropriada para as mulheres do período jacobino inglês (MACDONALD,
1987: 49).
13
Em tradução livre: Carataco: “Não romano! Não! Eu carrego uma alma britânica. Uma alma muito grande para
a escravidão”. Suetônio: “Teria Roma sido uma amante tão ruim para que se entregasse aos seus braços em
matrimônio?”. Carataco: “Roma, senhor, ah, não! Ela vale muito pouco para me subornar por toda a vida. Meu
país, ferido, conclama-me para coroamentos mais nobres. E quando seu Carataco morrer por tal causa, um
túmulo britânico brilhará muito mais do que um triunfo romano”.
14
As primeiras atrizes profissionais começaram a subir aos palcos ingleses a partir de 1660 (HINGLEY &
UNWIN, 2006: 139). Neste caso, tratou-se da atriz Frances Mary Knight, que fez o papel de Boadicea. De fato, a
144
Entre os anos de 1897 e 1898, o compositor inglês Edward William Elgar produziu
uma cantata, acompanhada de um libretto, de autoria de Harry Arbuthnot Acworth (1897/8),
folclorista e arqueólogo amador (MCGUIRE, 2007: 50 e 65). Na cantata, Elgar reconta a
história da derrota do personagem Caractacus para os romanos e seu discurso heroico diante
de Cláudio. Elgar e Acworth são geralmente vistos como propugnadores do Império
Britânico, e a cantata foi tida como apologética ao imperialismo inglês, configurando-se como
uma alegoria da presença inglesa na Índia (MCGUIRE, 2007: 58).
Para a composição do libretto, Acworth bebeu de fontes clássicas, como Tácito e
Díon Cássio, mas, também, da obra de James McKay, The British Camp on the Herefordshire
Beacon, de 1875.15 A fim de criar um contexto ainda mais heroico para o príncipe Carataco,
McKay tentou associar sua imagem ao cristianismo, ao afirmar que sua filha, Eigen, havia
sido convertida à nova religião, quando em Roma, e que o próprio Carataco poderia muito
bem ter sido um adepto dos ensinamentos de Cristo (MCGUIRE, 2007: 60; MCKAY, 1875:
175).
Na cantata, o heroísmo e o apelo nacionalista de Carataco estão evidenciados no
discurso que pronunciou diante de Cláudio:
personagem de Boudica servirá como oportunidade para que muitas atrizes do período jacobino possam atuar no
teatro (HINGLEY, 2006: 138-9).
15
McKAY, J. (1875) The British Camp on the Herefordshire Beacon: fifteen short essays on Scenes and
Incidents in the Lives of the Ancient Britons. Houve uma republicação da obra em 2009, feita por Kessinger
Publishing, LLC.
16
ACWORTH, H. A. (1897-8) Libretto to E. Elgar’s opera Caractacus. Londres: EMI Records, 1977. Cena VI.
Apud HINGLEY, 2000: 76. Trad. livre do autor.
145
bem definidos, dando-lhe uma aparência bastante masculina, em contraste com a do
imperador, dotado de certa afetação.
146
Fig. 2 – Gravura: Caractacus at the Tribunal of Claudius at Rome, 1792. A representação de Carataco pode ser a
alegoria da masculinidade diante da aparência efeminada do imperador. Publicada por Robert Pollard, 1792, a
partir da tela de Henry Fuseli (Johann Heinrich Füssli), Library of Congress, Prints & Photographs Division, LC-
DIG-pga-00226, Washington DC, EUA.
Considerações finais
147
Procurei mostrar que conceitos e ideologias associadas às fontes textuais e materiais
da Antiguidade foram (e continuam sendo) reinterpretados para legitimar os discursos
normativos do mundo moderno. Há uma grande relação entre os sentimentos nacionalistas e a
sexualidade humana. No caso em questão, o grande ponto de conexão foram os discursos que
pregavam a importância da respeitabilidade nos movimentos nacionalistas fomentados, em
especial, a partir do séc. XVIII. O conceito de respeitabilidade, que hoje possui um
significado bem mais criticado em nossa sociedade, possuía atributos muito mais voltados ao
desejo das políticas nacionalistas dos séculos XVII, XVIII e XIX, em particular na Europa, de
controlar os costumes, a moral e normatizar as atitudes sexuais do estado. Aqueles que
estivessem fora dos padrões criados seriam párias ou anomalias, fadados a serem estudados
pela medicina catalogadora do séc. XIX (MOSSE, 1985: 1). Os ideais de masculinidade e o
lugar do feminino, no público e no privado, foram fortalecidos neste processo de criação
discursiva da respeitabilidade. No campo da sexualidade humana, as representações de figuras
do passado, como a do Príncipe Carataco, parecem ter servido como valiosos aparatos
ideológicos modernos de legitimação política e social das normas de conduta de homens e
mulheres. Os conceitos epistemológicos envolvidos nos estudos sobre Usos do Passado
podem servir como importante arcabouço teórico-analítico desses fenômenos.
Agradecimentos
Pelo convite para participar deste volume, sou muito grato aos seus organizadores: Pedro
Paulo Abreu Funari, Glaydson José da Silva e Renata Senna Garraffoni. Estendo meus
agradecimentos à FAPESP pelo apoio financeiro durante meu doutorado no IFCH-Unicamp e
em meu pós-doutoramento no MAE-USP; e ao apoio institucional do Departamento de
História da Universidade Federal de Pernambuco. O autor é o único responsável pelo
conteúdo do texto.
Referências bibliográficas
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148
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SMILES, S. (1994) The Image of Antiquity. Ancient Britain and the romantic Imagination.
New Haven.
150
A ANTIGUIDADE: SEUS USOS, SUAS APROPRIAÇÕES
A antiguidade ‘não é boa ou ruim por natureza’. Como toda herança, isso
depende do uso que dela se faz (DABDAB TRABULSI, 1998: 248).
Este texto traz considerações apresentadas e debatidas no XXVI Simpósio Nacional de História (2011), no
contexto do simpósio temático Antiguidade e Modernidade: usos do passado, com a comunicação: A
Antiguidade como objeto político-cultural.
1
Doutora em História Cultural pela Unicamp, professora adjunta da Faculdade de Ciências e Letras de Bragança
Paulista (FESB) e do Centro Universitário Claretiano.
superioridade dos textos cristãos, ou mesmo como fizeram uso dos formatos destes textos e
outros filosóficos para revelar sua própria história.
Retomando as pesquisas realizadas tendo como delimitação temporal o século XVIII,
encontramos na obra Os gregos, os historiadores, a democracia (2002), de Pierre Vidal-
Naquet, toda uma discussão sobre o ‘grande desvio’, ou seja, acerca da interpretação contínua,
no tempo, de todo texto do passado. Por ora, das considerações apresentadas ali, nos interessa,
mais especificamente, o capítulo oitavo intitulado ‘Tradição da democracia grega’. Neste, o
autor retoma o livro Democracia antiga e moderna, de Moses I. Finley, destacando e
questionando o paradoxo do título: “pode haver uma comparação séria entre a democracia
grega e a nossa?” (2002: 235).
Mas foi justamente o que os lideres da Revolução Francesa fizeram. Não
necessariamente tomando a democracia antiga como modelo, mas criando uma identificação
com o mundo Greco-romano. Todo um simbolismo foi buscado. A este respeito, Castoriadis
(citado por Vidal-Naquet) escreveu:
Não diremos que (...) ‘o mundo está vazio desde os gregos’. A Grécia não está na
nossa história... O que está na nossa história, ou pelo menos numa parte de nossa
2
Segundo Vidal-Naquet, Tucídides tornou-se referência no período termidoriano (cf. 2002:250)
152
história, e que não podemos extirpar, porque ela é o passado, é o diálogo com a
Grécia e, antes de tudo, com os textos gregos. A reelaboração da herança grega, ora
sob forma mítica ou ideológica, ora sob forma do trabalho crítico e científico, é um
dos dados da nossa história intelectual, que se exprime na criação, incessantemente
renovada, de novos modos de discurso, de novos conceitos, de novos campos
epistemológicos (VIDAL-NAQUET, 2002: 254-255).
... gregos, romanos, celtas, egípcios são recolocados no cotidiano francês, seus
principais símbolos revisitados, produzindo imagens específicas e muitas vezes
homogêneas do passado desses povos, buscando definir a identidade nacional
francesa e justificar seu domínio perante outros povos. Os usos políticos do passado
antigo contribuíram para a demarcação das diferenças e o estabelecimento de
identidades: NÓS (franceses) em oposição a ELES (povos dos territórios
conquistados pela França napoleônica)... Essa situação peculiar, longe de ser
simplista, indica as relações intrincadas entre o passado antigo e a política moderna
e, além disso, expressa o uso da nascente Arqueologia francesa com finalidades bem
definidas e fundamentais na construção simbólica do poder napoleônico e da
identidade francesa (2006: 76-77).
153
recordações contraditórias surgidas de um passado recriado” (1992: 93). Este mesmo autor
fez referências o fato de os Estados criarem comissões e institutos com as funções de
inspecionar os monumentos históricos e pesquisar e organizar os documentos de sua história.
Para tanto, o Estado propiciou incentivos para as publicações de documentos inéditos, como o
caso do Corpus Inscriptionum Latinarum (o primeiro Tomo data de 1862) e dos Documentos
inéditos sobre a história da França (1834).
154
política e na religião, do outro. Ressalta, entretanto, que ao impugnar o Cristianismo, o
politeísmo não tinha suas características enaltecidas ou valorizadas, e sim, tinha suas
"deficiências" avigoradas. No livro, Trabulsi expõe como a História da Antiguidade e de sua
religião participou da obra de laicização dos espíritos, tributando para consolidar a República
francesa. Neste sentido, estas colocações estão em acordo com Glaydson Silva quando diz:
“...o saber sobre o passado, sua escrita e suas leituras são poderes e geram poderes”. (SILVA,
2007: 98).
Sobre os autores franceses citados por Trabulsi, e outros, de demais nacionalidades,
que tomaram a mitologia grega como instrumentos contrários ao cristianismo, Jean-Pierre
Vernant (1999) e Marcel Detienne (1989) também apresentaram algumas considerações. Três
escolas especialmente foram tomadas para análise: a Escola da Mitologia Comparada, a
Escola Antropológica Inglesa e a Escola Alemã de Filologia Histórica .
Para Friedrich Max Müller, que defendia as premissas da Escola de Mitologia
Comparada, o mito era um produto inconsciente da linguagem e o homem a sua vítima e não
o produtor (cf. DETIENNE, 1989: 39). O pensamento mítico teria se desenvolvido e se
caracterizado por meio da linguagem, como uma doença e uma necessidade inerente a ela. A
superioridade intelectual e civilizacional do século XIX foi, assim, no seio dessa escola,
construída a partir da comparação com uma linguagem do inconsciente, absurda com aquela
da razão. Ao se referir à produção historiográfica que seguia este molde, Vernant destacou:
155
asilo... o pensamento selvagem em funcionamento no mito não é apenas diferente de
nosso sistema conceitual; ele constitui, enquanto pré-lógico e místico, o contrário, o
inverso, da mesma maneira que a demência não é apenas algo diferente da razão,
mas seu antípoda. Assim, pondo a tônica nas emoções,... os antropólogos da escola
inglesa têm tendência a conceder prioridade ao ritual, nos fatos religiosos. O mito é
considerado secundário... Explicar o mito é encontrar o ritual ao qual ele
corresponde (1999: 194).
Vejamos, assim, o quadro comparativo elaborado por esse helenista após a análise
das escolas de Mitologia Comparada, a Antropologia Inglesa e a Escola Filológica Alemã
(considerando-se as diferentes diretrizes teóricas, mas ponderando sobre os pontos em
comum): a- busca pelas origens (estágios iniciais da linguagem, da evolução social e cultural);
b- noção de que religião e mito são campos distintos; c- abordagens reducionistas do mito (ele
é acidente, uma fantasia redundante etc.); d- entendimento dos símbolos religiosos como
metáforas; e- ora o pensamento mítico é analisado como inferior ao nosso (séculos XIX e
XX), ora, para compreendê-lo, as nossas categorias mentais são lançadas sobre eles (cf.
VERNANT, 1999: 198-199).
As críticas dirigidas por Vernant são compreensíveis e merecem ser analisadas mais
profundamente. No entanto, é igualmente importante verificar que o alvo dessas críticas não
são autores franceses e, talvez mais interessante ainda, seja o fato de que Vernant se utilizou
da História Comparada, da Antropologia e Filologia em seus estudos (estamos cientes aqui de
156
todas as divergências possíveis entre esses métodos – os criticados e os utilizados - e dos
momentos históricos diferentes).
Adentrando no século XX, temos dois exemplos significantes sobre os usos do
passado. Mais uma vez referindo-se aos usos que a França fez do tempo ido. No primeiro
caso, no contexto da França de Vichy, momento em que o país tenta justificar a sua posição
de apoio ao domínio alemão (entre 1940-1944, o território francês foi regido por um regime
anti-republicano cooperador do nazismo e da perseguição e exterminação dos judeus). Mas
como se justificar, que artifícios utilizar numa situação político-militar tão delicada? Usando
dos exemplos do passado. No entanto, mais uma vez a história foi deturpada. A História da
conquista da Gália pelos romanos perdeu seu sentido primeiro para ser apropriada como
modelo de superação: a Gália não foi arruinada quando da derrota frente aos romanos. Ao
invés disso, aos olhos dos partidários do regime nazista, ela foi favorecida ao tornar-se parte
de um império tão superno, pois, como resultado do conflito, nasceu o “povo francês”. Toda
essa discussão pode ser encontrada em artigos e livros do professor Glaydson Silva3. Suas
assertivas nos esclarecem ainda, que da mesma forma que um determinado grupo francês
procurou justificar a dominação alemã, também procurou legitimar a sua própria dominação
perante os povos da África:
...pode-se citar o fato de a França ter se utilizado do discurso das ‘origens nacionais’
com o intuito de justificar a colonização francesa na África e na Ásia. Assim, como
a vitória do império romano sobre a Gália foi uma ‘cruel necessidade’, que fez
surgir a civilização galo-romana, de igual modo figura a presença francesa nestes
continentes, ou seja, o domínio do certo sobre o errado, do desenvolvimento técnico
sobre o atraso tecnológico, enfim, da civilização sobre a barbárie (SILVA, 2005, on
line).
157
inaceitabilidade contra o tema em pauta: a luta contra o racismo, o anti-semitismo e a
xenofobia. As grandes questões a serem respondidas com o discurso eram: como lutar contra
essas práticas se a França tomou como modelo de democracia aquela de Atenas? Como não
impor discriminações e se a própria democracia ateniense era discriminatória, excludente?
Loraux aponta os momentos do discurso em que autores e textos antigos e de
helenistas (em específico, Gustave Glotz), foram retirados de seus contextos e lançados sem
maior proteção aos leões. Em outras palavras, trechos de obras antigas e de Glotz foram
praticamente plagiadas, descontextualizadas e usadas como argumentos que legitimavam a
discriminação aos estrangeiros. Mais uma vez as fontes não foram consideradas como tal,
apenas como instrumentos de legitimação de posturas. A assertiva, “...para fazer a ‘história’,
tudo é permitido, da astúcia ao uso da força, passando pela omissão deliberada” (LORAUX,
1993: 23) foi a regra. O discurso da Frente Nacional pareceu um convite à renúncia da
democracia. “Compreende-se, então: a ‘Grécia’ da qual se vale a Frente Nacional é apenas
uma caricatura da Grécia que os historiadores da Antiguidade estudam” (LORAUX, 1993:
32). A própria autora, a partir de alguns exemplos, questiona ser a democracia ateniense
inteiramente discriminatória. Ela relata o caso de uma revolta política em uma das heterias
atenienses, quando seu líder foi um meteco, ou seja, uma agitação política liderada por um
estrangeiro (residente há tempos em Atenas). Outro caso citado e analisado diz respeito à
integração limitada, mas inconteste, dos metecos na cidade, quando do pagamento de
impostos de guerra ou participação no exército. Loraux ainda retoma os anos de 508 a.C.,
momento em que Clístenes incorporou às tribos alguns estrangeiros e escravos-metecos, o que
Aristóteles chamou de ‘fabricação’ da cidadania. “Em poucas palavras, ‘a polis dos cidadãos
não pode existir sem a presença dos estrangeiros’” (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1972 apud
LORAUX, 1993: 16).
O parágrafo final do ensaio mostra a consternação da autora com este tipo de uso do
passado e um convite a uma prática historiadora cuidadosa:
158
Falsificação da história. Quantos exemplos ainda citaríamos neste texto. Quando
pensamos no problema do historiador que tem em mãos apenas fragmentos do passado, que
deve considerar inúmeros fatores ao analisá-los... tal problema se minimiza frente à
falsificação. Não ter acesso a uma verdade absoluta faz parte do ofício do historiador, ele está
habituado a esta realidade. Mesmo porque não estamos em busca de dogmas históricos. Mas
falsear?
Os estudiosos Raquel Stoiani, Renata Senna Garrafoni, Glaydson Silva, José Antônio
Dabdad Trabulsi, Charles-Olivier Carbonell, Marcel Detienne, Jean-Pierre Vernant, e Nicole
Loraux, dentre tantos outros, como François Hartog e Pierre Vidal-Naquet debruçaram-se
sobre a temática evidenciando que o passado foi tomado como objeto político-cultural.
Histórias deformadas, recriadas, resignificadas são tomadas como discursos filhos de um
contexto, porém, entendidos como problemáticos em seus resultados. Foram observados os
regimes de historicidade, as formas pelas quais uma sociedade versa sobre seu passado, bem
como o modo particular de determinar uma consciência de si. Averiguou-se, igualmente, e
como já ressaltado, que os fios, os rastros foram desconsiderados. A memória que resultou
desses usos do passado não condizem com a memória dos testemunhos (mesmo que estes
sejam apenas fragmentos do tempo ido).
Embora tenha se buscado as raízes de um povo, portanto, sua identidade primeira,
suas tradições, sua história, o que podemos constatar é que alguns discursos historiográficos
usaram a história (seus escritos, seus monumentos) com uma intenção pequena,
desproporcional ao que a pesquisa histórica tem a oferecer. Não se trataram de meras
recepções de um passado, mas de apropriações indevidas, planejadas de acordo com os
objetivos de poucos, de uma aristocracia política e cultural imersa em ideologias
institucionais. Já se sabe que “...cada época constrói, mentalmente, sua própria representação
do passado, sua própria Roma e sua própria Atenas”. (DUBY, 1980: 44), mas é preciso
verificar o que está por trás do que foi dito.
Os estudos apresentados acima são frutos de esforços de pesquisadores engajados no
entendimento não apenas de contextos históricos, mas também na compreensão de discursos.
Esse é um dos ofícios do historiador: não só dar narratividade e vida a um dado
acontecimento, compreendê-lo e explicá-lo (RICOEUR, 2007), mas analisar toda uma
historiografia produzida sobre ele. Temos uma função política, social, temos um compromisso
com a verdade (não compreendida aqui, é claro, como única e absoluta): não escrevemos
ficções, mesmo que coloquemos uma pitada de subjetividade em nossos escritos. Como já
disse Georges Duby: “estou convencido da inevitável subjetividade do discurso histórico... a
159
História é, no fundo, o sonho de um historiador – e este sonho é grandemente condicionado
pelo meio no qual se insere este historiador” (1980:.41).
Finalizando, tomemos, por último, a assertiva de David Lowental (1985: 412): “é
muito melhor considerar que o passado sempre tem sido alterado do que pretender que sempre
foi o mesmo...”. Mas é igualmente melhor considerar que o uso do passado colabore para uma
escrita da história que considere os rastros, os limites concretos, o compromisso com a(s)
verdade(s) do que pretender que ela forje verdades.
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160
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Corrêa de F. Neto. São Paulo: EDUSP, 2001.
161
O EGITO ANTIGO NO ESPELHO DA MODERNIDADE BRASILEIRA
1
Licenciada em História, Mestre e Doutora em História pela Unicamp, pesquisadora colaboradora em pós-
doutoramento no Departamento de História da Unicamp.
2
A pesquisa de campo, contou com o apoio de três alunos de graduação do curso de História da Unicamp: Ana
Luisa Papi Dei Agnoli, Matheus Gonçalves dos Reis e Matheus Henrique da Silveira.
comparada pela imprensa da época, inclusive por meio de caricaturas, aos faraós. A
maçonaria também se inspirava naquela civilização. No século XX, a presença egípcia esteve
presente tanto por via do Kardecismo, como por uma presença recorrente de obeliscos,
pirâmides, esfinges e outros tantos referenciais aos antigos egípcios. Há pouco, Alessandra
Negrini estrelou o filme Cleópatra (1968), produção nacional de Júlio Bressane sobre a rainha
egípcia. A produção acadêmica sobre o Egito tem crescido, também, desde a década de 1980
(BAKOS, 1993; BRACAGLION, 1993; CARDOSO, 1982; 1986; FUNARI, 2006; 2010;
GRALHA 2005; 2009). Assim, neste capítulo, busca-se explorar a percepção masculina sobre
o Egito antigo pela juventude brasileira, a partir de um estudo de caso levado a cabo com os
alunos de graduação da Unicamp (FUNARI, 2004).
163
sobre a Antiguidade e um dos temas analisados foi a percepção da civilização egípcia e seu
fascínio (STEER, 2009).
Apresentamos, neste capítulo, os resultados de uma pesquisa de campo com alunos,
do sexo masculino3, e comentamos, de forma breve e inicial, os seus resultados. As discussões
epistemológicas recentes, no âmbito da historiografia, têm ressaltado as relações entre o
presente e o passado, na medida em que as percepções contemporâneas moldam o
conhecimento do passado (cf. http://www.usosdopassado.ufpr.br/apresentacao.html;
GARRAFFONI, 2008). Essas imagens do passado formam-se pelos meios de comunicação e
pela educação formal e informal e influenciam como o público em geral e os historiadores,
em particular, compreendem as épocas pretéritas. O caso da civilização egípcia, objeto dos
mais populares (cf. FUNARI, 2010), permite observar essa relação entre Antiguidade e
Modernidade de forma clara, como veremos.
Respostas Divergentes:
3
Os resultados referentes às alunas serão estudados em outro paper, tendo em vista as restrições de tamanho
deste artigo, assim como a comparação dos dados.
164
“ – Sim, razoavelmente.”
“ – Um pouco.”
“ – Moderadamente, sim.”
2. Vocabulário: escreva três palavras que, para você, classificam a civilização egípcia.
3. Mídia impressa: você costuma ler notícias sobre o Egito Antigo? Descreva as
publicações nas quais você costuma ler noticias sobre a civilização egípcia. Registre,
abaixo, que temas você leu ou estudou ou estudou sobre o Egito Antigo.
165
Entre os meios de comunicação citados, encontram-se as revistas Galileu, Super
Interessante e Aventura Na história, telejornais (matérias sobre o assunto Egito Antigo),
manuais de história e arqueologia egípcia, além de fontes da internet. Destaca-se o uso
também, juntamente com os manuais acadêmicos, de documentação, o que ocorre graças ao
ambiente onde ocorre a pesquisa, o curso de graduação em História. Entre os temais mais
relacionados de leitura, estão descobertas de novas áreas arqueológicas como tumbas,
pirâmide, entre outros. Um assunto de grande interesse do público masculino foi a
legitimação do poder no período de Ptolomeu e a mitologia em geral. Dentre as respostas,
chama atenção, ao ser questionado sobre assuntos dos quais costuma ver, o entrevistado
respondeu ser o canal “National Geographic”, revelando que o a mídia tem televisiva tem uma
grande influencia no público masculino. Quanto às matérias estudadas em sala de aula, estão
questões relacionadas à escravidão, às relações sociais, homossexualidade, mulheres, questões
religiosas como os deuses antigos, sendo este um dos pontos que chamou a atenção, por se
relacionar com questões geopolíticas, o que pode indicar um avanço no conhecimento do
atual Egito.
4. Filmes: você já assistiu a algum filme que mostre alguma cena ou fato relacionado À
civilização egípcia? Quais filmes? O que mais lhe interessou?
166
Dentre os aspectos que mais chamaram atenção dos entrevistados estão os modos
como o Egito é representado no filme, no que se refere à cultura, a origem e construção os
objetos arquitetônicos e sua grandiosidade, além do fator mitológico, outro aspecto que foi
bastante citado pelos entrevistados.
5. Imagens do Egito antigo: ao falar sobre o Egito, que imagens você associa a essa
civilização?
167
Para alguns itens citados, cabe uma melhor explicação:
- “Deuses”: o termo foi utilizado para definir outros como “As representações dos deuses”,
“Deuses”, “Deuses mitológicos” e “Deuses Antropozoomórficos”.
6. Turismo: você gostaria de visitar o Egito? O que lhe interessaria visitar o Egito?
168
7. Enigma: que enigmas da civilização egípcia chama sua atenção?
Ao se tratar de enigmas, cada aluno apresentou sua visão, mas que em geral, converge
com a dos outros. Um exemplo são os enigmas relacionados às pirâmides. A maioria referiu-
se na pesquisa a forma como foram construídas (levando-se em conta o avanço tecnológico
169
para o momento), ou suas formas arquitetônicas. Quanto a “tumbas” e “sarcófagos”, os
entrevistados relacionam ao mistério que estes trazem, ao estarem quase sempre, escondidos.
170
A maioria do público masculino não respondeu ou não soube informar qualquer
assunto a respeito do Egito Atual. O item “religião” compreende as respostas que
mencionavam o islamismo como religião de maior abrangência no país.
10. Egiptomania: que nomes de pessoas do Egito Antigo você conhece? Por que razões
você acha que muitas pessoas no Brasil são fascinadas pela civilização egípcia?
171
11. Enigmas: que enigmas sobre a civilização egípcia você gostaria de decifrar?
Conclusão
172
Em seguida, aparecem os aspectos religiosos da civilização egípcia. O Egito atual,
embora não seja bem conhecido, chama atenção também pela religiosidade. Isso pode estar
em relação com as conotações misteriosas e religiosas da maçonaria e do espiritismo, aspectos
tão marcantes da presença egípcia antiga no Brasil. Dentre as personalidades egípcias antigas,
a mais popular continua na ser Cleópatra, seguida de Nefertiti, o que, claro, remete à beleza
feminina associada às duas rainhas. Também nestes casos, talvez se possa ver um olhar
masculino atento à beleza, mas de forma muito particular e mesmo contraditória, pois são
rainhas, poderosas por definição. Em que medida o fascínio masculino por mulheres
dominadoras pode estar em jogo aqui não se pode dizer, mas não deixa de ser algo sugestivo.
Por fim, as fontes de informações não convencionais são as mais marcantes, por
meio do cinema. Podemos concluir, desta breve análise, que os jovens têm informações sobre
o Egito por meio dos meios de comunicação e continuam fascinados por aspectos ligados ao
poder, à religiosidade e à beleza feminina. Não é à toa, portanto, o predomínio, nos livros
didáticos, na mídia e na sociedade em geral, das imagens do Egito ligadas a pirâmides e às
grandes beldades do mundo antigo. O Egito atual, não fosse pelas revoltas populares que
abalaram o país desde 2011, passaria quase despercebido. O Egito antigo, contudo, não pode
ser desvencilhado das imagens atuais produzidas sobre aquele distante passado.
Agradecimentos
Este capítulo é o resultado de uma atividade de pesquisa de pós-doutoramento no
Departamento de História da Unicamp, a respeito do ensino de História, no segundo semestre
de 2010 e resulta, de forma mais direta, de disciplina ministrada no curso de graduação em
História da Unicamp e contou com o apoio dos alunos: Ana Luisa Papi Dei Agnoli, Matheus
Gonçalves dos Reis e Matheus Henrique da Silveira. Agradeço aos três e a todos os alunos
que participaram da pesquisa. Agradeço, ainda, os seguintes colegas: Margaret Bakos, Renata
Senna Garraffoni, Júlio César Gralha, Richard Hingley, Lynn Meskell e Glaydson José da
Silva. Menciono, ainda, o apoio institucional do Departamento de História da Unicamp. A
responsabilidade pelo artigo e suas ideias, contudo, restringe-se à autora.
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173
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176
OS LIMITES DA ROMANIZAÇÃO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA INTERAÇÃO
CULTURAL ENTRE OS MUNDOS CLÁSSICO E CELTA.
Em 1975 Arnaldo Momigliano publicou um dos seus mais conhecidos estudos sobre
a Antiguidade: Os Limites da Helenização. A obra de Momigliano propõe uma reflexão,
indicada no subtítulo de sua edição em português, a Interação Cultural das Civilizações
Grega, Romana, Céltica, Judaica e Persa.
A interação cultural entre diferentes povos é também, neste estudo, o ponto central
de análise, entretanto, diferentemente da obra de Momigliano, não nos concentraremos no
povo Grego, mas buscaremos compreender as relações entre os povos Clássicos, com ênfase
nos Romanos, e Celtas partindo como princípio norteador de uma reavaliação do conceito
“Romanização”.
A historiografia moderna já vem há algum tempo refletindo sobre o uso deste
conceito, sua ressignificação, e até mesmo a possibilidade de adoção de um novo jargão
descarregado da seguinte conotação primária: a supressão de uma cultura “bárbara” e sua
subseqüente substituição por uma cultura “civilizada”. Neste artigo, portanto, daremos
prosseguimento a este tipo de reflexão e abordaremos os problemas conceituais relativos à
“Romanização” trazendo à análise tanto fontes materiais como textuais para a construção de
nosso argumento, residindo nesta forma, uma possível chave explicativa que entendemos
carecer ao estudo de Momigliano, pois este, ao tratar das relações entre Gregos/Romanos e
Celtas, utilizou-se primariamente de fontes textuais – além de concentrar quase que
exclusivamente nos relatos sobre uma única região/cidade da Gália, Massália.
Certamente pode-se dizer que tanto o objetivo quanto o objeto de Momigliano era
bastante diferente do que apresentaremos neste estudo: enquanto o autor trabalha com a
Helenização no mediterrâneo, a perspectiva aqui apresentada passa pelo(s) processo(s) de
Romanização, mas o que realmente une estas duas pesquisas reside no fato de que
procuraremos demonstrar que a própria Romanização deve ser repensada a partir de um
recorte cronológico diferente do qual é atualmente estabelecido: a inteiração cultural entre
Romanos e Celtas é muito anterior à conquista de Gália em meados do século I a.C.
1
Doutor em História pela UNESP-Assis.
Este artigo está separado em três partes: A primeira em que faremos uma breve
análise de elementos da cultura material que se circunscrevem na relação do Mundo Clássico
– tanto Grego quanto Romano – com os Celtas a partir do século IV a.C., seguida de uma
reavaliação do conceito de Romanização buscando compreender o uso e aplicação do mesmo
e seus significados e, por fim, buscaremos compreender porque seu uso se restringe ao
período posterior à formação do Império Romano argumentando que as vias de inteiração
cultural entre Romanos e Celtas estavam em uso desde um período bastante anterior, cabendo
assim questionarmos o motivo de sua exclusiva aplicação ao período imperial.
I) Celtas e o Mediterrâneo
2
Nome dado a “etapa” de desenvolvimento dos povos chamados celtas entre c. 800 e 450 a.C.
3
Nome dado a “etapa” seguinte de desenvolvimento dos povos Celtas de c. 450 a.C. ao início do Império
Romano.
178
uma importação grega, os estilos de dois dos leões diferem-se muito do terceiro,
provavelmente tendo sido este último uma criação local de acordo com estilo artístico
próprio:
179
Detalhe de Pégaso em Torque de Ouro. Imagem Disponível em: http://www.iath.virginia.edu/
180
Narbonensis) como província Romana e consolidada como a mais importante rota de ligação
com a Espanha (GOLDSWORTHY, 2006: 26). O século II a.C. é também um momento de
intenso comércio entre a Gália e a península Itálica especialmente reconhecido pela
quantidade enorme de ânforas de vinho romanas (Dresser I) encontradas por toda a Gália, da
província Transalpina a Armorica, e da Aquitânia ao Reno (CUNLIFFE, 1997: 312).
Ao século I a.C. estes dois povos já se encontravam profundamente conectados, ao
ponto de que o vergobreto4 Éduo Diviciacus veio para Roma em 61 a.C. buscando auxílio do
Senado contra invasores Germanos, um pedido ignorado até Júlio César se tornar procônsul
da Gália (GOLDSWORTHY, 2006: 246).
Toda esta digressão em relação ao contato entre os Celtas, Gregos e Romanos
fundamentou-se na necessidade de uma breve contextualização que nos permitirá, a partir da
próxima seção deste estudo, questionarmos o significado do conceito de “Romanização”, sua
utilização e validade para o entendimento das relações entre Celtas e Romanos.
4
Nome dado a mais importante magistratura eleita anualmente entre os éduos.
181
Antiguidade vêm sendo realizados trazendo novas perspectivas de compreensão e se
afastando do “modelo Haverfield” de análise.
Na verdade, os processos de inteiração cultural entre Romanos e os povos por eles
conquistados passaram a ser questionados a partir mesmo de sua denominação:
“Romanização” não deve mais ser entendida como o “tornar Romano”, mas sim como
múltiplos processos de negociação de identidades, de ressignificação e adequação de objetos e
símbolos de uma cultura para outra levando a criação de novos elementos – ou se não de uma
nova cultura – que não são puramente Romanos ou Provinciais.
Se no modelo Haverfield a Romanização não passa de uma substituição da cultura
“bárbara” por uma “civilizada”, as novas análises do termo consideram-no não como
aculturação/adoção do modo de viver romano, mas sim adaptação orientada em modelos
característicos locais, tal qual observamos em relação aos elementos materiais apresentados
na seção anterior.
O alargamento do conceito de Romanização gerou, ao menos, duas importantes
posições acadêmicas para sua utilização: De um lado encontramos autores que propõem a
abolição do termo e o uso de um novo jargão para tratar dos processos de inteiração cultural
como, por exemplo, o conceito e “Criolização” (WEBSTER, 2001) tendo em vista uma
posição pós-colonialista de interpretação de encontros culturais e, de outro lado, autores que
apesar de negarem o valor explicativo do conceito Romanização em si mesmo, acreditam na
manutenção do termo buscando explicitar o seu significado em todas as situações específicas
sob análise (WOOLF, 1998).
Em nosso estudo consideramos de grande valia ambas iniciativas, embora possuam
também suas limitações: Até o momento, não encontramos um consenso entre os especialistas
sobre um novo termo a ser usado no lugar de Romanização ao passo que devemos considerar
o valor explicativo de um conceito em sua capacidade de generalização o que torna
dispendioso e problemático o uso de “Romanização” nos diversos estudos, pois este pode
significar diferentes premissas para os diferentes autores e assim tornando sempre necessário
retomar o seu conteúdo.
Manteremos neste trabalho o uso do termo Romanização na acepção em que
apresentamos acima, ao diferenciá-lo do “tornar Romano” de Haverfield, e passaremos agora
a questioná-lo, não mais em seu significado propriamente dito, mas em sua aplicação: se a
Romanização se trata de um processo de inteiração cultural, por que ele é usado
principalmente para invocar o período após a formação do Império Romano?
182
Como demonstramos na primeira parte deste artigo, o contato entre o mundo Celta e
Mediterrâneo é antigo – ao menos desde o século VI a.C encontramos evidenciais matérias de
sua existência – e, de certa forma, podemos também afirmar que está bem estabelecido ao
menos desde o século II a.C entre Romanos e Celtas. Apesar destes elementos, permanece o
uso do termo Romanização para o período do século I d.C. em diante, assim sendo,
dedicaremos a parte final de nosso trabalho para a análise deste fato.
183
Se a Romanização depende da vontade de Roma, a percepção de seu “começo”, isto
é, de sua implementação será, necessariamente, aquela estipulada pelos próprios Romanos.
Assim sendo, podemos nos perguntar por que se tentamos entender a Romanização como uma
forma de inteiração cultural e de negociação de identidades seu estudo depende de uma
unilateralidade, isto é, necessariamente da vontade Romana.
Certamente não pensamos em negar que existiu uma política Romana de colonização
das províncias conquistadas especialmente após a organização de Roma e seus territórios em
um Império, entretanto, argumentamos que a aplicação deste recorte cronológico ignora por
completo toda a historicidade dos encontros e trocas culturais que não são menos importantes
para os povos que foram anexados posteriormente ao Império.
Na verdade, a periodização do conceito de Romanização torna-se unilateral como
argumentamos, pois sua aplicação se dá no momento em que este aparece como pauta
relevante aos Romanos sem levar em consideração que os contatos entre os Romanos e os
outros povos já possuía efeitos e consequências socioculturais para todos os envolvidos
mesmo antes do período Imperial, no caso específico deste estudo, os povos Celtas da Gália
desde o século VI a.C.
Poderia se argumentar que existe uma questão de escala a ser considerada, que após a
conquista de Júlio César da Gália em meados do século I a.C. e a anexação da Gália como
província Romana intensificou/acelerou-se os processos de mudança social e inteiração com
os Romanos. Propomos, entretanto, que este argumento não é completamente válido: Se é
verdade que houve uma intensificação do contato entre estes povos, não podemos descartar
mudanças significativas nas estruturas sociais dos Celtas em períodos anteriores. Neste
mesmo estudo citamos um exemplo destas mudanças com a forma de governo entre os Éduos
que se assemelhava bastante ao modelo do senado Romano – frisa-se, entretanto, que é um
modelo alterado de acordo com necessidades e paradigmas locais –, no mesmo sentido,
busquei em minha dissertação de mestrado argumentar que é possível que a própria
organização e estrutura do sacerdócio Celta (druidas e vates) pode também ser um elemento
que ao seu modo resulta das interações entre os Romanos e Celtas em período anterior ao
século II a.C. dentro do que foi citamos como a longa “tradição celta” de adaptação cultural
seguindo modelos próprios (BONDIOLI, 2011).
Conclusão
Nosso objetivo neste estudo foi propor uma reavaliação do conceito de Romanização
e o seu uso na historiografia contemporânea. Demonstramos que nas últimas duas décadas
184
vêm-se tentado afastar o modelo “Haverfield” de compreensão da Romanização em prol de
uma visão na qual tanto Romanos quanto nativos são sujeitos ativos na negociação de suas
identidades e cultura. Entretanto, buscamos demonstrar também que apesar destes esforços, é
necessário que haja uma ampliação no recorte cronológico no qual o termo Romanização é
inserido: Se tratamos de inteiração cultural, não podemos simplesmente ignorar séculos de
contato entre o mundo mediterrâneo e o mundo Celta com base em uma visão unilateral em
que ele apenas tomará importância quando houver o interesse Romano em criar uma política
própria de regulamentação.
A inteiração entre Romanos e Celtas, ou mesmo Romanos e nativos de outras
províncias conquistadas, embora se intensifique após a organização do Império Romano
possui um longo histórico com características específicas de cada região. Se quisermos que
Romanização saia de fato de uma visão colonialista de troca da “barbárie” pela “civilização”,
é necessário que apliquemos este conceito fora do paradigma de uma ação Romana
deliberada, e circunscreva-o nas trocas culturais que acompanham os povos em questão ao
longo de sua história.
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186
BOUDICA NAS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO
1
Doutoranda do Departamento de História/ IFCH/UNICAMP; Orientador: Pedro Paulo Abreu Funari; Agência
de Fomento: FAPESP; Contato: taispbelo@gmail.com
Fig.1. Mapa da Antiga Bretanha: conquistas de Boudica2.
A investida dos romanos contra a tribo de druidas aconteceu devido ao fato que eles
eram homens sagrados e respeitado pelos Bretões, tendo assim, livre acesso à todas as tribos.
Esta movimentação facilitava a comunicação e troca de informações de uma tribo Bretã a
outra. Sentindo-se ameaçados os romanos investiram um ataque contra os druidas.
Os escritores da Antiguidade tinham como função contar aos romanos, por meio de
suas narrativas, os grandes feitos do Império. Eles faziam parte de uma sociedade que era
desacostumada a ver uma mulher como governante e muito menos como comandante de um
exército. Dessa forma, Boudica foi descrita por eles como uma mulher masculinizada, que
tinha o tamanho, a voz e as armas de um homem (Cássio, 1925), além da ineficácia de sua
liderança (Tácito, 1914).
Contudo, estes textos antigos foram lidos e relidos posteriormente, e assim, autores e
artistas readaptaram essa mesma história, em muitos casos, de acordo com o contexto social
em que viviam. Essas obras são poemas, peças de teatro, esculturas, livros, pinturas, trabalhos
políticos e até charges que envolveram a figura feminina de Boudica.
Sendo assim, com o uso de fontes e documentos, assim como A Vida de Agrícola e
gravuras de obras escritas sobre Boudica, este artigo tem como intuito mostrar como o uso do
passado pode carregar em si representações que ainda são utilizadas até o presente, mas que
estas podem sofrer mudanças em seu contexto simbólico, devido ao valor que é colocado
2
http://umsoi.org/2010/04/27/boudicca-l%E2%80%99amazzone-che-sfido-l%E2%80%99impero/20/07/2001,
Acessado em: 18/12/2011)
188
sobre elas e por atitudes cotidianas que fazem com que esse passado seja sempre lembrado. E
que assim, uma memória seja alimentada, a qual pode ser responsável, por tempos em tempos,
em construir e completar uma memória coletiva, que, segundo Halbwachs (1990), é uma
corrente de pensamentos contínuos, que nada tem de artificial, já que retém do passado
somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém.
Dessa forma, “onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na
memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo”
(BENJAMIN, 1995), ou seja, um não existe sem o outro.
Sendo assim, pode-se perceber que algumas coisas são sempre lembradas e outras
não, como se tivesse um julgamento para isso, ou simplesmente porque não se tem um motivo
político social para se lembrar de outro fato. Dessa forma, Boyer (1996) menciona que talvez
de forma inconsciente e outras vezes explicitamente, os fragmentos e traços da arquitetura de
uma cidade, por exemplo, são manipulados, mas algumas coisas permanecem, são inseridos
em um contexto contemporâneo e controladas pelas circunstâncias de mudanças e desejos
(BOYER, 1996).
Sendo assim, a fonte escrita antiga aqui trabalhada é A Vida de Agrícola de Tácito
(1914), um dos primeiros documentos a citar Boudica, que provavelmente foi escrito entre
outubro de 97 d.C. e janeiro de 98 d.C. (PETERSON, 1914) e é classificado como uma
biografia, pois é uma homenagem a Agrícola, o qual narra a sua vida, além de seus atos de
guerra na Bretanha, até sua morte.
Diante da obra de Tácito (1914), a memória que ficou foi a da personagem Boudica,
que foi sutilmente citada em A vida de Agrícola, mas que, ao longo do tempo, se tornou uma
figura polêmica, de inspiração patriótica e de gênero, além de ser responsável pela construção
de uma identidade nacional.
Tácito, autor da obra A Vida de Agrícola, nasceu em 54 d.C. e morreu em 117 d.C,
ou seja, por volta dos 63 anos. Seu pai foi provavelmente um agente imperial na Bélgica e da
cavalaria romana. Além disso, foi pupilo de Quintiliano e no ano 78 d.C. se casou com a filha
de Agrícola, o qual passou a ser seu sogro. De 79 d.C. a 81 d.C, ele publicou Diálogo dos
Oradores e, com isso, ganhou o título de questor. Logo depois, em 88 d.C. se tornou pretor. E
ainda, do ano de 89 d.C. a 93 d.C. se ausentou de Roma, possivelmente para ser governador
de uma província menor. No entanto, em 97 d.C. se torna cônsul e no ano seguinte publica A
189
Vida de Agrícola e Germania; de 105 d.C. a 109 d.C. publica Histórias; e três anos depois
torna-se procônsul da Ásia, sendo que seu último trabalho escrito foi em 116 d.C., com a
publicação dos Anais, morrendo no ano seguinte, depois de sua obra estar pronta (Peterson,
1914).
A obra, A Vida de Agrícola, faz parte de um volume maior dos registros de Tácito
(1914), que ainda inclui Histórias e os Anais, é como se fosse um fascículo e é considerada
uma apologia ao seu sogro, Agrícola. Essas fontes possuem uma série de contradições e
percebe-se que foram escritas longe do palco das ações ou muito posteriores a elas (PINTO,
2011).
Publicada depois da morte do protagonista, o autor desta biografia inicia o texto
dizendo que a vida que ele está preste a descrever já se foi e que gostaria de prestar uma
homenagem, mostrando que ninguém imagina que as chamas que queimam o corpo de
Agrícola, no pátio do Fórum, queima também a voz do povo, da liberdade do Senado e da
consciência da humanidade (Tácito, 1914).
Neste sentido, Tácito homenageia Agrícola como uma forma de não o esquecer, pois
o poder político era o elemento mais importante do mundo romano em que vivia
(MACHADO, 1998), e o fato de ser lembrado é ter esse poder, mesmo depois de morto,
porque isso marca a importância de seus atos, e que, assim, fica como uma herança familiar
para as gerações seguintes. Dessa forma, a impressão que se tem da obra, ao longo de sua
leitura, é que ela foi preparada antes da morte de Agrícola e que ele próprio elaborou-a junto a
Tácito (1914), com a idéia de ser publicada posteriormente a sua morte.
A biografia, durante o Império Romano, funcionava como uma representação do
poder político da personalidade, ela conta atos virtuosos da pessoa. Entretanto, muitos desses
dados poderiam sofrer alterações durante a redação do texto ou mesmo serem inventados para
poder glorificar os atos do biografado (Machado, 1998).
Tácito (1914) escreveu que Agrícola nasceu em 13 de junho de 40 d.C. e morreu em
23 de agosto de 93 d.C., com 54 anos, além de traçar toda a herança familiar e educação do
mesmo. Adiciona que seus avós eram procuradores de César, ou seja, um posto que envolvia
a ordem superior dos cavaleiros. Seu pai tinha um cargo no Senado e foi notável pelo seu
interesse em retórica e filosofia (Tácito, 1914).
Em relação às mulheres da família, dizia que a mãe de Agrícola, Julia Procilla, era
simplesmente uma mulher de rara virtude, e que sua esposa, Domitia Decidiana, era uma
mulher de alta linhagem e que a vida do casal era harmoniosa, de muito afeto e de grande
sacrifício das duas partes. Dizia também, que uma boa esposa tem a glória eterna em relação a
190
má esposa que só tem a culpar a si mesma (Tácito, 1914). A mulher romana, principalmente
aquela de boa linhagem, poderia ser considerada inteligente, sábia, saber ler, escrever e
poderia ser culta, porém nunca estaria presente em um posto de liderança política ou de
exército.
São narrados, também, os atos de guerra que ocorreram na Bretanha, lugar onde
Agrícola teve seu aprendizado sobre combate e foi comandado por Suetonius Paulinus, um
general cuidadoso e prudente, nas palavras de Tácito (1914). Foi nesse período que houve
uma investida do Império Romano à ilha de Mona (Anglesey), contra uma tribo druídica,
mais exatamente entre os anos de 59 d.C. e 62 d.C. Por volta de 60 d.C e 61 d.C., os nativos,
liderados por Boudica, avançaram sobre o assentamento romano de Camulodunum, atual
Colchester, marcando a primeira vez que Agrícola foi para o campo de batalha (Tácito, 1914).
Consequentemente, o exército da guerreira seguiu para outro assentamento romano,
Londinium, atual Londres e mais tarde para Verulamium, atual Saint Albans. A descrição que
Tácito (1914) faz desse episódio é que os veteranos foram massacrados e as colônias
queimadas, além do exército romano ficar sem suas bases (Tácito, 1914).
Agrícola foi transferido de soldado para comandante da 20o legião por Mucianus,
além de ter se tornado patrício por Vespasiano, que o colocou a cargo da província de
Aquitânia, ou seja, um posto de significativa distinção e com a promessa de ser cônsul
(Tácito, 1914). E quando conseguiu essa última posição prometeu sua filha a Tácito (1914).
A noção geográfica de Tácito era péssima. Em seu entendimento, a ilha da Bretanha
era como dois triângulos com uma das pontas de cada um voltada para a ponta do outro, como
se fosse um machado duplo. O lugar de encontro das pontas era chamado de ístmo de Clyde
and Forth; no triângulo de cima, ou no norte, ficava a Caledônia e no sul estaria a Bretanha
propriamente dita; ao leste estaria a Germânia e a oeste a Espanha. Descreveu a geografia da
ilha, falando do mar, das montanhas, dos rios, do clima, dos estuários, das florestas, além dos
fortes, assentamentos e dos nativos.
Em relação à esses últimos, foi analisado os aspectos físicos desse povo e apontou
que os cabelos vermelhos e os largos membros lembravam os povos de origem germânica. O
cabelo ondulado poderia ser de origem ibérica, já que a Espanha ficava a oeste da ilha, em sua
concepção. Salienta ainda, que esse povo que se porta como os gauleses são iguais a eles e
que os traços hereditários poderiam ter persistido, ou porque eram cobertos pelo mesmo tipo
de clima. Chegou a conclusão que os gauleses foram em outros tempos à ilha da Bretanha e
ali se desenvolveram (Tácito, 1914).
191
Também foi mencionado que este povo fazia os mesmos tipos de celebrações, tinham
as mesmas superstições e que a língua não era muito diferente da dos celtas do continente.
Contudo, esses últimos fugiam em qualquer perigo à vista, enquanto os Bretões não se
deixavam ficar efeminados por passarem longos períodos em paz. Na batalha, a força dos
Bretões estava em sua infantaria, mas tinham algumas tribos que lutavam com carroças, como
a própria Boudica. Seus comandantes sempre tinham um posto de honra e os combatentes
eram meros retentores (Tácito, 1914).
Ao descrever as batalhas contra os Bretões, o autor chama-os de covardes e que só
lutam por ganância e por rebeldia, enquanto os romanos lutavam por suas famílias. Ao
mencionar Boudica, salienta que ela persuadiu sua tribo a pegar em armas contra os romanos.
Tácito (1914) a apresenta como uma mulher de origem nobre e diz que os Bretões não
reconheciam a distinção em relação ao sexo de seus governantes. Além do mais, explica que
ela poderia até liderar os Brigantes (não comenta sobre os Iceni), para queimar a colônia e
bramir em campo, porém que, por ser mulher, nunca teria sucesso em batalha. Ao contrário
dos romanos, que proferiu que lutavam como homens destemidos, homens que nunca
falhariam em relação à liberdade e que nunca se tornariam penitentes (Tácito, 1914).
Diante das perspectivas de comum dominação masculina romana, Tácito (1914) e
mesmo Dião Cássio (1925), descreveram Boudica como uma figura bárbara e incomum no
que rege a liderança de um exército e, assim, autores posteriores, seguindo os mesmos
pensamentos, quase sempre a apresentaram como algo diferente, uma anomalia, pois ela
ultrapassou os limites do papel feminino perante a sociedade em que esses escritores viviam.
Entretanto, mesmo sendo, muitas vezes, descrita de forma negativa, Boudica foi
constantemente relembrada, da Antiguidade até os dias de hoje, devido ao seu gênero e pelos
seus atos, ou seja, pelo fato dela ter sido uma mulher que levou seu povo à batalha.
192
Seguindo a viagem de Cristovão Colombo em 1492, os interesses da Europa se
voltaram à América. A expansão do conhecimento do mundo teve um impacto dramático na
Bretanha e resto da Europa, particularmente por causa da descoberta dos ‘selvagens’, povos
nativos encontrados durante a exploração do Novo Mundo (HINGLEY & UNWIN, 2005).
Durante os anos de 1530 houve a quebra do reinado de Henrique VIII, da Inglaterra,
com a Igreja, a qual levou o governo a receber diretamente pressões políticas que duraram até
o reinado de Elizabeth (BRIGDEN, 2000). Enquanto a Inglaterra se tornou protestante, a
imagem de Roma foi resguardada com ambivalência, pois era ligada ao Papa e ao catolicismo
(SHEPHERD, 1981). Essa foi a ocasião ideal para os ingleses resgatarem seu passado bretão
e sua história de origem e de associarem os ‘selvagens’ da América com os nativos da
Bretanha.
A contradição entre bravura e ‘selvageria’ estava no cerne dos relatos ingleses dos
séculos XVI e XVII e a imagem da Boudica era parte desse processo. De um lado, ela era
vista como exemplo de selvageria nativa e resistência contra a dominação romana, e de outro
como uma honrada personagem que lutou contra Roma e sua opressão. Boudica era
apresentada como uma figura complicada nos relatos modernos mais antigos (HINGLEY &
UNWIN, 2005).
Durante o século XVI, houve mulheres que governaram a Escócia e a Inglaterra,
Mary Stuart e Elizabeth. Apesar de muitas vezes essas mulheres terem sido taxadas,
condenadas e desmoralizadas, elas não compareciam para liderarem pessoalmente seus
exércitos nesta época. Boudica tornou-se uma figura que representava o excesso ‘selvagem’,
considerado inevitável para uma mulher no governo e, assim, não era apreciada de maneira
normal. Essa imagem que foi, em geral, delineada por homens, foi tirada dos relatos clássicos,
bíblicos e medievais para o início da Idade Moderna. Os relatos clássicos foram
reinterpretados em um contexto contemporâneo a esses escritores e passaram, de certa forma,
a denunciar as idéias de governantes e seus gêneros a partir de pensamentos anteriormente
construídos nessa sociedade.
Séculos depois, como os escritores dos tempos Elizabetanos tinham um grande
interesse em figuras virtuosas, Boudica se tornou o foco da atenção sendo retratada como uma
mulher patriota que lutou bravamente contra os romanos. Além disso, como o pai de Henrique
VIII era do País de Gales e os galeses eram considerados descendentes diretos dos celtas,
Elizabeth I, filha de Henrique VIII, se identificou muito com Boudica, sendo as duas figuras
focos de comparações e contrastes (MIKALACHKI, 1998). Contudo, a imagem da mulher no
193
poder, no século XVI, não era vista de forma positiva devido a idéias e pensamentos do
passado (MENDELSON & CRAWFORD, 1998).
No início do século XVII ainda se faziam comparações entre Elizabeth e Boudica,
como, por exemplo, na obra de John Speed (1611), The History of Great Britaine, obra que
mostrava Boudica como uma figura positiva inspirada na rainha Elizabeth I. Depois da morte
de Elizabeth em 1603 e a tomada do reino por James I, a figura da Boudica apareceu de forma
muito mais crítica. Nos séculos XVII e XVIII os escritores manipulavam as informações das
fontes clássicas e utilizavam a figura de Boudica para dar significado a alguns pontos da
sociedade em que viviam (HINGLEY & UNWIN, 2005).
3
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
4
Provavelmente este era um pseudônimo, ou seja, um homem que escrevia com nome de mulher (Hingley &
Unwin, 2005).
194
Fig.3. Gravura do livro de Heywood (1640)5.
Como pode ser visto, as gravuras feitas de Boudica lembravam muito a rainha
Elizabreth I e não uma rainha Bretã, principalmente por causa de sua vestimenta,
diferenciando-se em alguns aspectos, assim como as tatuagens e a lança na figura da obra de
Speed (1611).
Entre os anos de 1609 a 1614 a história de Boudica foi contada por John Fletcher
(1609 ou 1979) em uma peça de teatro que, posteriormente, foi adaptada por Geoge Powell
em 1696 e mais tarde por George Colman em 1778 e 1837. Fletcher deixou claro que suas
visões foram baseadas nos relatos de Cássio (1925) e Tácito (1914) e que, provavelmente,
tinha lido Ubaldini e Holinshed. Dessa forma, roubava detalhes dos escritores, porém
inventava ações para fazer com que sua peça ficasse mais dramática. Contudo, nelas, as
mulheres tinham papéis negativos e, além de mostrar que Boudica era totalmente inadequada
para lidar com negócios masculinos, como por exemplo, política e guerra. Ele deixou claro
que os britânicos se tornaram gloriosos quando se juntaram aos romanos (WILLIAMS, 1999;
Crawford, 1999). O caráter negativo que Fletcher dá a Boudica teve maiores impactos nos 50
e 100 anos posteriores a estréia de sua peça.
Em 1753 (ou 1797), Richard Glover estreou a peça Boadicea, que representava a
personagem principal como totalmente hostil e seus atos falhos eram sempre associados ao
seu gênero, além de demonstrar que essa peça era uma versão exagerada do trabalho de
Fletcher.
5
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
195
Fig.4. Ilustração da peça de teatro de Glover (1753)6.
Como pode ser observado, Boudica foi desenhada muito semelhante a rainha
Elizabeth I até anos depois de sua morte, assim como pode ser observado nesta ilustração da
peça de teatro de Glover (1753), ela possui até uma coroa, o que não era de costume dos
Bretões.
6
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Fig.6. Gravura de Bernard (1790)8.
Esta figura, chamada Bodicia, foi retirada da obra Britannia Antiqua Illustrata de
Aylett Sammes, de 1676, ainda lembra muito a rainha Elizabeth I.
O tema da Boudica em sua carroça de guerra foi utilizado na capa do trabalho de
Tobias Smollett (1758), ‘Complete History of England’, que a descrevia como uma mulher de
espírito masculino e irresistível eloquência. A ilustração foi feita por Charles Grignon que se
baseou no trabalho de Francis Hayman (HINGLEY & UNWIN, 2005).
8
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
9
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
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Fig.8. Gravura da obra de Grignon, 175710.
No início do século XVIII, Boudica foi modelada como uma figura patriota e heróica
e como uma inspiração nacional da literatura e da arte. No final do século XIX e início do
XX, ela foi redesenhada por poetas, autores de peças de teatro e outros artistas, como uma
figura de resistência a Roma. Um dos escritores mais importantes que retratou essa visão foi
William Cowper na obra ‘Boudicea: An Ode’, em 1782, que a apresenta como uma imagem
assexuada de triunfo e heroísmo britânico e que seus atos embasavam o desenvolvimento do
Império Britânico como um ícone imperial (HINGLEY, 2000). Além disso, foram removidos
da obra todos os aspectos que figuravam a ambição e a agressão de Boudica e, assim, sua
imagem foi construída de forma a ser aceita nessa época (HINGLEY & UNWIN, 2005).
Nos últimos anos do século XIX e início do XX, a imagem de Roma foi associada ao
fato de que o orgulho nativo fora humilhado pelo exército romano e que a ilha toda foi
efetivamente convertida em uma colônia. Sendo assim, nesta época, vários escritores,
incluindo aqueles que escreviam para crianças, discutiam o impacto romano sobre a Bretanha,
atitude esta que acabou conduzindo a reafirmação do orgulho nacional e a uma exploração da
oposição dos antigos bretões contra Roma (HINGLEY & UNWIN, 2005). Uma das obras que
traz esse tipo de argumento é ‘Stories of the Land we live in: or England’s History in easy
language’, de William Locke, publicado em 1878.
Dessa forma, desde meados do século XVIII, Boudica foi modelada como uma
figura de inspiração nacional da literatura e da arte, devido a expansão do Império Britânico,
10
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
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mostrando suas origens e a grandeza de seu passado. Contudo, a partir desse momento, sua
retratação não era mais como uma rainha e sim como uma guerreira poderosa.
Essa ilustração é de A. S. Frost, tirada da obra Our Island Story, escrita por H. E.
Marshall, de 1905, a qual parece um ato em que Boudica está chamando seu povo para a luta
dizendo Will follow me?, lembrando os atos das feministas dessa época.
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http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
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http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
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fig.11. Peça de teatro de 1909.
Nessa foto, Boudica foi interpretada pela atriz Miss Elizabeth Kirby, na peça A
Pageant of Great Women, em 1909.
Muitos trabalhos, até os dias de hoje, mencionam os atos de Boudica, dentre eles
estão livros infantis, assim como por exemplo, a obra de Valerie Wilding, que é indicado para
meninas de 9 a 12 anos.
29
(http://www.jacketflap.com/bookdetail.asp?bookid=0439963575#azcomsection, 25/03/2005, Acessado em:
19/12/2011).
200
was a little girl - chopped off the Emperor Claudius's head (well, sort of) - burned
London to the ground? Yes, even though she's dead, Boudica's still full of surprises.
Now you can get the inside story with Boudica's secret diary, get all the news from
the Roman Messenger and the British Bugle and find out just how Boudica and her
barmy army seriously put the wind up the Romans. Dead Funny - Dead Gripping -
Dead Famous.
(http://www.jacketflap.com/bookdetail.asp?bookid=0439963575#azcomsection,
25/03/2005, Acessado em: 19/12/2011)
Outro trabalho inédito é da artista Alexia Sinclair, que além de trabalhar com
desenhos digitalizados de várias mulheres da história européia, também trabalha com
fotografias de modelos para revistas de moda. Na verdade, suas modelos se passam pelas
personagens e seus desenhos são baseados nelas, por isso suas imagens remetem a uma beleza
muito contemporânea, ou seja, as personagens de seus desenhos são esguias, com rostos
perfeitos e cabelos aveludados como as modelos de passarela.
fig.13. Boudica – The Celtic Queen (AD 26-61)14, 2007, de Alexia Sinclair.
Conclusão
Conclui-se que por muitos séculos a figura de Boudica foi sendo reescrita e
repensada por vários artistas e escritores que sempre quiseram contar suas próprias versões de
maneira criativa e escrever seus relatos de modo crítico. Esses contos, que figuram relatos
sobre o passado e, portanto, utilizaram um senso histórico, foram elaborados para terem
audiência, e as obras de Boudica não eram exceções. As informações criadas, apesar de não
14
(http://alexiasinclair.com/portfolio, Acessado em: 19/12/2011).
201
mostrarem a verdade, constituem um elemento fundamental para a compreensão do
pensamento do homem do passado, pois um fruto artístico pode contar muitas coisas sobre
seu autor.
Nos dias atuais, Boudica é retratada tanto por homens quanto por mulheres, seja em
peças de teatro, novelas, óperas, dramas ou websites. Contudo, em geral, pela variação devido
ao gênero do autor, ainda se tem diferenças nas maneiras em que ela é ilustrada. Em várias
dessas produções ela é retratada como uma mulher nobre e honesta que lutou contra o poder
do Império Romano e, em alguns websites, ela é até demonstrada como uma figura mítica.
Agradecimentos
Agradeço em primeira instância ao apoio institucional da FAPESP, ao Prof. Pedro
Paulo Abreu Funari pelo apoio e orientação, a Renata Senna Garraffoni e ao Glaydson Silva
por terem aceito minha apresentação no Simpósio Temático Antiguidade e Modernidade, do
XXVI Simpósio Nacional de História (ANPUH), além da oportunidade de publicação dessa
exposição e por fim, a todos meus colegas que estiveram presente durante esta comunicação e
àqueles que terão paciência de lerem esse artigo.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, W. 1995. Sobre alguns temas de Baudelaire. In: Charles Boudelaire um lírico
no auge do Capitalismo: obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, v. III.
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Architectural Entertainments. Massachusetts, Institute of Technology.
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FLETCHER, J. 1979. ‘Bonduca’, In: F. Bowers (ed.) The dramtic works in the beaumont
and Flecher canon, Cambridge, Cambridge University Press, IV, 149 – 259. First performed
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GLOVER, R. 1797. Boadicea, In: J. Bell (ed.) British Theatre: volume II, London, British
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202
HEYWOOD, T. 1640. The exemplarary lives and memorable acts of nine the most
worthy women in the world, London, Thomas Cotes.
HINGLEY, R. & UNWIN, C. 2005. Boudica: Iron Age warrior queen. London,
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London, James Nisbit.
MIKALACHKI, J. 1998. The legacy of Boadicea: gender and nation in early Modern
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SMOLLETT, T. 1758. A complete History of England from the Descent of Julius Caesar
to the treaty of Aix la Chapelle. London, James Rivington and J. Flecher. First published
1757.
SPEED, J. (1611). The history of Great Britaine under the conquests of ye romans,
saxons, danes and normans, London, Iohn Sudbury & Gorg Hunble.
203
ESCAVANDO POMPEIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX:
ARQUEOLOGIA, NACIONALISMO E IDENTIDADES EM CONFLITO
Do início
1
Professora do Departamento de História/UFPR. Tutora do PET-História/UFPR. resenna93@hotmail.com
2
Doutoranda em História/UFPR, bolsista CAPES/Reuni. perolasanfelice@gmail.com
estudos que acabou por desdobrar no mestrado da Pérola, sobre pinturas de Vênus nas paredes
de Pompeia3 e, posteriormente, o doutorado4 em desenvolvimento, por outro, nunca deixamos
de pensar os textos de Maiuri ali encontrados, pois as obras não são tão fáceis de achar no
Brasil e estavam disponíveis na nossa biblioteca.
Foi somente com o desenvolvimento das atividades do grupo de pesquisa sobre usos
do passado 5 que, finalmente, tivemos a possibilidade de fazer uma primeira proposta de
abordagem aos livros, escrevendo em conjunto um texto intitulado ‘Em tempos de culto a
marte por que estudar Vênus? Repensando o papel de Pompeia durante a II Guerra’ 6. Mais
tarde, diante da oportunidade de participar do simpósio temático realizado na Anpuh de 2011
em São Paulo sobre as leituras dos clássicos na modernidade, achamos que seria um bom
momento retomar e aprofundar a leitura daqueles livros de Maiuri que encontramos,
explorando aspectos que não foram contemplados no primeiro texto que produzimos,
construindo uma parceria de pesquisa independente de nossos temas de pesquisa de origem,
mas que tem resultado em reflexões importantes para ambas as autoras.
Ao longo de nossas conversas sobre a questão, percebemos que há inúmeras
possibilidades de abordar os livros e optamos por propor uma reflexão sobre a maneira como
Maiuri descreve algumas pinturas parietais, criando um campo de legitimação dos valores
nacionalistas e de normatização das relações entre homens e mulheres no período em que as
escavações foram executadas sobre sua responsabilidade. A partir dos comentários das
pessoas presentes no simpósio temático, aos quais agradecemos imensamente, reelaboramos
alguns pontos de vista, refinamos argumentos e decidimos, para essa ocasião, aprofundar a
discussão e propor um ensaio sobre alguns temas polêmicos: a relação tensa entre a
arqueologia clássica e fascismo e os reflexos dela na constituição das interpretações sobre o
passado romano e as relações de gênero e etnicidade no contexto em que os trabalhos foram
publicados. O foco nessa discussão é, em nossa opinião, fundamental para entendermos o
próprio estabelecimento dos conceitos na área e para buscarmos leituras alternativas para o
passado romano. Para tanto, gostaríamos de iniciar expondo nosso posicionamento teórico.
3
Sanfelice, Pérola de Paula. Amor e sexualidade em ruínas: as pinturas da deusa Vênus nas paredes de
colonia cornelia veneria pompeianorun. Dissertação de Mestrado. Curitiba. UFPR., 2012. Com apoio e
financiamento CAPES.
4
Sanfelice, Pérola de Paula. Sob as cinzas de vulcão: Sexualidade, amor e religiosidade nas pinturas de
Pompeia. Tese em andamento. Bolsista CAPES/REUNI.
5
http://www.humanas.ufpr.br/portal/usosdopassado/
6
Capítulo de livro de nossa autoria no prelo. Será publicado em Saberes e Poderes no Mediterrâneo Antigo:
Estudos Ibero-Latino-Americanos, pela Universidade de Coimbra.
Da teoria
7
Franco, na Espanha, também se esmerou em equiparar-se a Augusto. Sobre essa questão em específico veja
(RUFINO, 2013) e, também, o texto de Rufino na presente coletânea.
Figura 2- Representação de Mussolini a cavalo (Squire, 2011)
É necessário liberar das deformações medíocres toda a Roma antiga, mas ao lado da
antiga e medieval é necessário criar a monumental Roma do século XX. Roma não
pode, não deve ser simplesmente uma cidade moderna, no sentido contemporâneo e
banal da palavra, ela deve ser uma cidade digna de glória e esta glória renovada sem
cessar, para ser transmitida, como herança da era fascista, às gerações posteriores.
(Discurso proferido em 01 de janeiro de 1926. apud SILVA, 2007:42).
Nessa passagem fica bem claro como relações intrincadas com o passado romano
foram se estabelecendo, símbolos foram resignificados com o intuito de purificar a cidade de
um passado não glorioso, não útil, ação que também ocorreu nos contextos da antiga cidade
vesuviana de Pompeia, já que em alguns momentos de sua escavação artefatos foram
destruídos, sobretudo aqueles que possuíam conotações sexuais indesejáveis. Essa clara
intervenção política definiu estéticas, valores e memórias, modificou cidades e selecionou os
modos de vida a serem preservados ou exaltados e os que deveriam cair no esquecimento.
No caso específico de Pompeia, onde uma grande quantidade de material de cunho
sexual foi encontrado, aquilo que não foi descartado no ato da escavação acabou sendo
descontextualizado e enviado diretamente à coleção secreta Museu Nazionale di Napoli.
Durante o regime fascista a visita à coleção secreta do museu foi controlada: a sala só poderia
ser acessada por artistas com documentos válidos, que atestasse sua profissão, mediante a
permissão oficial (CAVICCHIOLI, 2004). Essa postura de controlar o que deveria ser exposto
ou de desvalorizar os extratos mais baixos da cidade onde estavam os povos nativos
supostamente dominados pelos romanos, expressa a construção do ideal fascista de
superioridade, de poder, de domínio e exclusão. Além disso, contribui para a definição dos
campos e objetos de estudo da arqueologia, isto é, o universo masculino de dominação e
imposição de poder8.
A atitude diante dos objetos de cunho sexual nos interessou em particular, pois
evidencia um aspecto particular desse tipo de construção de identidade nacional: quando se
recorreu ao passado imperial de Roma, em busca de uma identidade gloriosa para o presente
fascista, excluiu-se uma série de possibilidades de interpretações e temas de estudo que, desde
essa perspectiva, demonstraria fraquezas, entre eles a sexualidade daquele passado, tornando-
o assexuado. Desse modo, o que gostaríamos de destacar é o fato de que, ao se selecionar um
tipo de cultura material que deve ser preservada ou descartada, optava-se por um determinado
tipo de passado a ser construído.
Nesse sentido, pensar as formas de lidar com artefatos de conotações sexuais nas
escavações de Pompeia nos levou a percorrer caminhos desafiadores, pois o tema da
sexualidade, além ser considerado um tabu social ao longo do século XX, foi controlado por
diferentes formas de políticas e, também, entendido como algo secundário no campo das
Ciências Humanas. Mesmo diante das dificuldades, resolvemos nos arriscar por esse caminho
por acreditamos que esse recorte é fundamental para entender as formas de controle e as
relações de poderes que se estabeleceram sobre os corpos na modernidade e sobre os
discursos acerca dos romanos. Na busca de problematizar melhor essa questão, retomamos
algumas questões teóricas que foram fundamentais para que pudéssemos pensar sobre essa
relação tensa entre cultura material, fascismo, identidade e sexualidade.
Partindo, portanto, das perspectivas que se delineiam desde a segunda metade do
século XX, recorremos a estudiosos que, segundo Feitosa e Rago (2008: 108), ajudaram a
recuperar “[...] de um enorme ostracismo acadêmico, obras literárias, inscrições e imagens
com conotações sexuais”. Tais estudiosos/as estavam ligados a debates que tomaram maior
corpo a partir de pesquisas relacionadas à História das Mulheres e passaram a ocupar
diferentes espaços a partir década de 1960, articulados com desenvolvimento da segunda onda
do feminismo nos Estados Unidos e em parte da Europa. Nessas culturas, as rupturas
ocorreram nas experiências sociais, modificando categorias que até então eram interpretadas
como naturais. Esse é o ambiente que possibilitou o surgimento de novos questionamentos,
como é o caso da categoria de análise de gênero decorrente do movimento feminista.
8
No caso da coleção secreta do Museu Nazionale di Napoli fica evidente a definição de valores morais.
Cavicchioli (2004:23) afirma que no processo de criação da identidade italiana a doutrina fascista não se
considerava herdeira de uma sexualidade tão explícita.
Segundo Joan Scott, a maior contribuição da “História das Mulheres” e do gênero foi
destronar o sujeito universal da historiografia dominante, herdeira do iluminismo, com a
participação diferenciada dos dois sexos (1995: 08-09). Assim, a partir da década de 1970,
"gênero" tem sido uma categoria de análise utilizada para questionar, entre outras coisas, a
diferença sexual, a situação das mulheres e o domínio masculino. A partir do feminismo, e em
consequência do “gênero”, novas abordagens foram possibilitadas acerca do “eu”, do
conhecimento e do poder, o que intensificou a crítica às narrativas estáveis e explicativas da
História.
Para entender o gênero como uma relação social, as teóricas feministas começaram a
desconstruir os significados que se dá ao que é considerado biológico, ao sexo, gênero e
natureza. Dessa forma, o gênero enfatiza o caráter fundamentalmente social e cultural das
distinções baseadas no sexo, afastando assim reducionismos ligados à naturalização. Contra
as visões normativas relacionadas ao sexo, Louro (2000) afirma que, por meio de processos
culturais, definimos o que é, ou não é, natural; produzimos e transformamos a natureza e a
biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Desse modo, os corpos ganham sentido
socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita sempre no
contexto de uma determinada cultura e, portanto, com suas marcas. As possibilidades da
sexualidade, ou seja, das formas de expressar os desejos e prazeres, também são sempre
socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto,
compostas e definidas por relações sociais e elas são moldadas pelas redes de poder de uma
sociedade.
Mesmo que essas preocupações sejam relativamente recentes, nos estudos clássicos,
tem se mostrado bastante profícuas. Voss (2000) defende que os dados arqueológicos podem
ser ferramentas importantes para entender a expressão da sexualidade humana em diferentes
épocas, dinamizando nossa visão acerca do passado. Nesse contexto, pensar como as imagens
de conotação sexual ou erótica, e os papéis de gênero aparecem nos discursos de Maiuri nos
parece um caminho desafiador, pois implica em pensar em uma dinâmica intrincada, ou seja,
nos impulsiona a refletir sobre como o passado romano foi escrito e reapropriado, em alguns
trechos de suas obras, indicando uma perspectiva permeada por relações de força que
legitimam um determinado tipo de discurso sobre modos de viver e, ao mesmo tempo, ao
desconstruir os conceitos empregados, criamos espaços plurais para que irrompam linhas de
fuga que permitam o surgimento dos conflitos e contradições no passado e presente. Diante
dessa perspectiva, entender o contexto da produção do discurso seria o primeiro passo para
desconstruir o consenso e, consequentemente, as formas homogêneas e naturalizadas de se
perceber o passado, para, em seguida, buscar meios alternativos a noção de História-herança,
ou seja, propor leituras que prezem pela ruptura, pelo dissenso, pela diversidade.
9
Todas as casas de Pompeia são identificadas por um sistema de numeração, cada casa é conhecida pela região,
insula e o número da porta, por exemplo, (I, 10,4) significa região I, insula 10, porta 4, (WALACE-HADRILL,
1994:1).
[1] Envolta sob um manto, Vênus está sentada, com o ar meditativo de uma jovem
noiva, em uma sala com grandes janelas, com a vista para um peristilo. É um quarto,
como é provado pelo sofá revestido de um tecido rico e acolchoado. Estando de pé
ao lado da deusa, Marte (Ares) usa um manto azul e um capacete de crista. Ele está
tentando deixar nu os seios da deusa, mas ela recatadamente o detém, na verdade,
ela nos lembra muito mais uma dama romana bem-educada do que uma a Afrodite
amorosa. (Tradução das autoras – edição inglesa de 1953.)10
Uma imagem possui múltiplos sentidos e as suas leituras são permeadas pelo olhar
do presente de quem as lê, nesse sentindo, é interessante perceber como Maiuri se posiciona
diante desta figura: afirma que a mão da deusa parece impedir Marte de tocar em seus seios e
sugere que ela se assemelha a uma educada moça romana. Embora acredite que a cena fizesse
menção às núpcias de Vênus e Marte, quando a chama de “jovem noiva”, delineia papéis de
gênero, pois deixa claro que a ação é masculina ‘...ele está tentando deixar nu os seios...’
enquanto que a deusa recatada o afasta e se retrai. Mesmo que se trate de uma cena de
núpcias, os gestos da deusa Vênus não são interpretados como um consentimento ou um
incentivo ao cortejo de seu amante. A deusa é percebida como a representação de uma
mulher exemplar, que controla os ímpetos do homem conquistador e, propositalmente, o
autor desvincula a imagem da deusa do erótico. Essa percepção fica mais evidente na análise
de uma cena semelhante, a pintura denominada Marte e Vênus, localizada na Casa de Marte
e Vênus (VII, 9, 33) em Pompeia. A pintura segue o mesmo padrão iconográfico da figura
comentada anteriormente, que a propósito, é um tema representado com frequência nas
paredes da cidade vesuviana. Assim escreve em Pompeian Wall Painting:
10
Wrapped in a mantle, Venus is seated, with the gravely meditative air of a young bride, in a room with big
windows overlooking a peristyle. It’s a bedroom, as is proved by the couch draped in a rich fabric and thickly
cushioned. Standing beside the goddess, Mars (Ares) wear a blue chlamys and a crested helmet. He is trying to
bare the goddess' breast, but demurely she restrains him; in fact she reminds us far more of a well-bred Roman
lady than of laughter-loving Aphrodite. (MAIURI, 1953: 77)
Figura 4- Marte e Vênus (Maiuri, 1960: 25)
[2] Sentada sobre um bloco retangular de pedra, a deusa do amor se inclina contra o
ombro de seu amante. Por sua vez, por meio de seu sinuoso torso ela
complacentemente chama atenção para a perfeição da sua beleza nua (...). Ela está
adornada ricamente com joias e simboliza seu domínio sobre Marte, por manter em
suas mãos sua longa lança. O deus da guerra esta vestido com um manto de cor
púrpura, a mão direita segura o tecido de Vênus, enquanto a esquerda acaricia o
braço dela. Dois cupidos alegres brincam com peças da armadura que ele descartou.
A adição desses dois personagens é uma característica da maneira como os pintores
da Campânia tratam este tema. Eles eram, acima de tudo interessados em humanizar
as figuras, suavizando a tipificação ideal dos originais gregos. Ainda mais
importante para esse efeito, do que a adição de detalhes é a individualização das
características das principais figuras. A beleza da nossa Vênus é, evidentemente, de
um tipo rural, enquanto os gestos embaraçados e a convencional inexpressividade de
Marte, privado de sua armadura e completamente subjugado pelo amor, são
definitivamente mais uma reminiscência de um jovem e rústico cavalheiro da
Campânia do que de um grande Senhor da guerra. (Tradução das autoras) 11
Nesta análise, Maiuri reconheceu o namoro de Vênus e Marte, até mesmo o possível
domínio da deusa do amor sobre o deus da guerra. Contudo, ao aceitar a influência que
Vênus exerce sobre Marte, ao ponto de desarmar seu amante, Maiuri afirma que esta possui
uma beleza tipicamente rural, ou seja, suas qualidades já não são tão prestigiadas e a compara
11
Seated upon a low rectangular block of stone, the goddess of love leans back against her lover's shoulder. By a
slight sinuous turn of her torso she complacently draws attentions to the perfection of her naked beauty (…) She
is decked with costly jewels and it token of her dominion over Mars she holds his long lance in her hand. The
god of war is clothed in a purple mantle, his right hand clasps the folds of Venus' drapery while his left caresses
her arm. Two cheerful cupids play with pieces of the armour he has discarded. The addition of these lively
fellows is characteristic of the way the painters of the Campania treat this theme. They were above all interested
in humanizing and mellowing the ideal typification of the Greek originals. Even more important for this purpose
than the addition of details is the individualization of the features of the main figures. The beauty of our Venus is
evidently of a rural type, while the stiff, embarrassed gestures and conventional inexpressiveness of Mars,
deprived of his armour and completely subjugated by love, are definitely more reminiscent of some rustic young
gentleman of the Campania than of the great Lord of war (MAIURI, 1960: 24).
às mulheres do campo e não às damas recatadas como na interpretação anterior. E Marte, por
ter abandonado suas armas e se envolver amorosamente com a sua companheira, já não se
parece nada com um deus da guerra e sim com um mero jovem “rústico” da Campânia. Desse
modo, é importante ressaltar, que Maiuri evita atrelar elementos de cunho sexuais às
expressões religiosas, principalmente as que se reportam ao deus Marte, símbolo da cultura
romana, sobretudo ao que se refere ao Império e seus domínios.
Ao comparamos estas duas análises, consideramos importante destacar a maneira
como Maiuri classifica as figuras de Vênus representadas nas cenas, no trecho [1], pelo fato
da deusa parecer repelir o amante é considerada ‘uma romana bem-educada’, já no excerto
[2] por ter subjugado o deus Marte, ela é ‘evidentemente, de um tipo rural’. Assim,
destacamos o modo o qual Maiuri desenvolve suas interpretações, vinculando às mulheres e
homens a papéis de gênero bem delineados: mulheres da elite recatadas, mulheres do campo
rudes e sem polidez, por isso mais propensas ao sexo. Já os homens que amam não são bons
guerreiros, como vimos no segundo trecho, o qual Marte, enamorado de sua amante, se
assemelhava mais a ‘um rústico cavalheiro da Campânia do que de um grande Senhor da
guerra’.
Aqui uma série de aspectos podem ser pensados acerca das imagens sobre a cultura
romana que estão sendo construídas nesse discurso específico: há uma valorização do homem
guerreiro, aquele que age, e da submissão da mulher recatada. Esses seriam os valores
essenciais e, portanto, o que se esperava dos romanos de elite, em uma contraposição direta
aos hábitos dos povos nativos da Campânia, pois são caracterizados como rudes, fracos e, por
isso, inferiores e mais erotizados. É interessante notar que ambas as pinturas se encontram em
casas pompeianas, no mesmo ambiente urbano, mas Maiuri cuidadosamente separa os
universos, deixando claro sua visão do mundo romano e como esse serviria de exemplo para
os papéis de gênero e identidade de seus leitores da Itália moderna.
É importante atentar-se que, atualmente, os pesquisadores ressaltam modelos
interpretativos que valorizam a contextualização da imagem no seu local de achado
(CLARKE, 2003; FUNARI & ZARANKIN, 2001; GRAHAME, 1995). Neste caso em
específico, podemos estabelecer que ambas pinturas estão dispostas no tablinum12, o qual
tinha como função acomodar reuniões, sobretudo, aquelas relacionadas aos negócios, desse
modo, é questionável a afirmação de que a pintura mais erotizada (figura 02) provavelmente
pertencesse a alguém que possuía um gosto mais rude, de uma esfera inferior, na medida em
12
De acordo com a catalogação e mapas apresentados na obra: CARRATELLI, G. P. (1990-2003). Pompeii,
pitture e mosaici. Roma: Istituto della enciclopedia italiana.
que o próprio ambiente da imagem, uma sala de reuniões, é um local de prestígio social em
uma casa romana, era no tablinum13 que os homens de importância habitualmente recebiam
visitas para formar acordos e alianças.
Outro aspecto a ser ressaltado é que estas imagens faziam parte de um padrão
representativo da época, mitologia de Marte e Vênus era recorrente nas casas pompeianas14.
Inclusive, algumas possuem elementos muito semelhantes às imagens anteriormente
apresentadas, como é o caso da imagem a seguir (figura 5), em que Vênus e Marte estão
representados nas mesmas posições e há a presença das mesmas figuras mitológicas. Esta
imagem também está localizada em um tablinum, enfatizando a importância da representação
dos deuses neste ambiente.
13
O tablinum era um cômodo adjacente ao atrium (considerado o coração da casa), normalmente era num plano
elevado com diferença de alguns centímetros. O tablinum poderia ser fechado a partir do átrio, por meio de
cortinas ou portas, funcionava também como um local de cultos divinos, para celebrar rituais religiosos.
14
Para mais informações ver: (SANFELICE: 2012).
Figura 6- Marte tocando os seios de Vênus (CARRATELLI, 1990-2003: 609)
Nesse sentido, pode-se averiguar que nas interpretações de Maiuri há uma clara
definição de comportamentos e papéis sociais em oposições binárias e claramente constrói
escalas de valores sobrepondo a elite romana, considerada superior em seus hábitos
refinados, aos povos nativos da Campânia, definidos como rudes e propensos ao sexo. Tal
estética pode ser evidenciada quando este apresenta duas imagens muito famosas de pessoas
comuns da Campânia, uma conhecida como o “Casal Terêncio” e a outra popularmente
reconhecida por ser uma representação da antiga poetisa “Sapho”. A imagem do casal foi
assim descrita por Maiuri:
No trecho destacado fica mais evidente a percepção que Maiuri tinha do povo da
Campânia, ao descrever o que considerava ser o retrato fiel de um romano, o autor
primeiramente justifica a aparência física dos indivíduos ao afirmar que era uma prática
recorrente entre os pintores romanos selecionar como modelos para suas pinturas “a
população rústica que vivia na região”. Ao qualificar esse povo como rústico, Maiuri
descreve explicitamente o que seria este adjetivo, um homem de testa baixa, com as maças do
rosto sobressalientes, enfim, características vigorosas que imprimem nessa figura “um
homem do povo”. Por possuir tal aparência, Maiuri minimiza o fato deste homem estar
segurando um pergaminho, o que indicaria um teor de educação a este padeiro. Outra questão
que fica clara na imagem é a percepção de que uma mulher não poderia pertencer à cultura
letrada, quando o arqueólogo se refere à esposa do padeiro, afirma que está apenas simulando
um refinamento, e isso ficaria evidenciado na expressão tensa da mulher retratada. Essa
mesma interpretação é reproduzida na análise da imagem da suposta poetisa Safo:
15
Pompeian portrait painting is the natural outcome of a long line of a local development. We have already seen
that in those rather peculiar interpretations of mythological subjects intended to appeal to popular taste the
Campanian painters represented gods and heroes with quite especific human features for which they chose their
models from the rustic population among which they lived. […] The most powerful piece of Pompeian
portraiture known to us is the panel showing a couple, first erroneously identified as Publius Paquius Proculus
and his wife. […].To-day it is generally accepted that the painting in the tablinum or best parlour of the house
represents their proprietor and his wife, the good baker and not patrician Proculus. Even if the man is shown
with his chin resting on a roll papyrus, his low forehead and bristly hair, high cheek-bones and vulgar, vigorous
features clearly stamp him as a man of the people. His young wife is of finer mould. Her delicate oval face is lit
up by the dark almond-shaped eyes to which her spontaneous coquetry has imparted an expression of mobile
vivacity despire the strain of posing artificially as a person of education with tablets and stylum pressed to her
lips. (MAIURI, 1960: 46)
Figura 8- O retrato de uma dama (Maiuri:1960; 45)
16
Among the best known of medallions is the portrait of a young woman, which has been taken for that Sappho.
This suggestive but quite arbitrary identification has won for this painting a renown of proportion to its artistic
value though we cannot deny that it is one of the more remarkable female likenesses that have come down to us
from antiquity, both as regards portraiture and artistic realization. The girl, who is carefully dressed and made
up, looks at us full face with firm and intelligent gaze. The wealth of chestnut hair is held down by a golden
fillet from which the curls are allowed to escape so as partly to cover forehead and ears and frame pensive,
romantic face with its large eyes and beautifully cut mouth. […] In accordance with the fashion of her day, the
girl is shown in the conventional pose chosen for people education: a wax tablet in one hand and in other the
stylum pressed to the lips in what appears to be more of reflection or inspiration. […]There is undoubtedly both
thought and feeling of a fresh and innocent kind expressed in the face of this girl but in her conventional pose
she seems rather to reflect upon how to formulate a passage in love-letter than to listen to the impassioned
inspiration of the Sapphic Muse (MAIURI, 1960: 44).
como romântica e, principalmente, ao afirmar que esta oferece a impressão de que vai
escrever uma carta de amor e não uma obra literária. Tais comentários reforçam a percepção
que Maiuri tinha das mulheres, desvinculando-as de qualquer possibilidade de erudição e
colocando-as no campo das sensações.
Nesse sentido, a partir dessas imagens, o que encontramos são definições bastante
objetivas que indicam a visão de Maiuri do mundo romano durante o início do Principado,
focado nos valores masculinos de força e de imposição de domínio sobre povos conquistados
e menos cultos, e de figuras femininas recatadas, submissas e não educadas. Essa postura
expressa nos trechos das obras comentadas indica uma visão do mundo romano dividida em
pares de oposição como elite/povo, nobre/decadente, recatado/obsceno, deuses/homens,
homens/mulheres e ajudam a moldar exemplos claros da moral a ser seguida por aqueles que
teriam acesso às obras de divulgação dessas pinturas.
Esse aspecto pedagógico nos chamou a atenção: ao se colocar em um lugar de
neutralidade, dizendo em detalhes cada aspecto das imagens destacadas, percebemos um tom
que mescla acuidade científica – inserindo algumas imagens em determinadas tradições de
pintura e questionando interpretações – com temas de senso comum que focam na cor da
pele, formato do rosto e valores morais. Assim, Vênus pode ser recatada senhora romana ou
rude camponesa, Marte transita de homem conquistador a rústico soldado, os homens são
vulgares e do povo, as mulheres até belas, mas menos inteligentes. O que mais intriga é como
esse discurso didático constrói valores claros do que consiste o ideal de gênero para as elites
– homem forte, mulher recatada –, para o povo – homens rudes e até uma suposta delicadeza
feminina que contrasta com a óbvia falta de intimidade com os instrumentos de escrita –
deixando claro quem são os mais aptos à liderança e aqueles que, mesmo tentando, são
incapazes de atingir o ideal de cultura.
Todos os adjetivos empregados são cuidadosamente escolhidos, reforçando a
separação dos mundos, chegando ao ponto chave, a relação entre aparência física e moral: as
mulheres, seja como Vênus ou como humanas, são belas, recatadas e românticas ou ingênuas,
mas nem sempre aptas a escrever algo relevante enquanto os homens são mais variados. Na
figura [3] Marte vestido como guerreiro é o protótipo do soldado conquistador que age,
aspecto suficiente para o contexto, sem grandes ressalvas. Já na figura [4], como comentamos,
torna-se rude por estar despido, um jovem rústico, o mesmo tom da descrição da figura [7].
No caso do padeiro chega a ser explícito descrevendo o ‘cabelo arrepiado’ e a ‘face vulgar’.
Esses exemplos não deixam dúvidas sobre os valores inerentes: beleza feminina, para ser
ideal e não forçada deve vir atrelada ao recato e as feições de masculinidade valorizada não
deixam espaço para a nudez prazerosa ou traços físicos dos camponeses. Atrelar o físico com
traços morais define, portanto, lugares de gênero e raças no passado e presente. Diante desse
quadro, acreditamos ser importante ressaltar que essas publicações tornam a arte romana, com
seus deuses e personagens, mais próxima dos italianos do pós-guerra, mas ao mesmo tempo,
criam um consenso, uma simbologia que molda visões de mundo e legitima uma sensação de
perenidade. Pelos relatos apontados, passado romano é um espelho da Itália moderna, divido
em pessoas mais ou menos evoluídas, mais ou menos instruídas, mais ou menos aptas a
liderança. Os ecos dessas supostas semelhanças naturalizam os lugares de homens e mulheres
no presente e a legitimidade dos lugares de poder são enfatizadas pelas pinturas de Pompeia,
transformadas em testemunhos didáticos da ordem vigente.
Essa reflexão nos leva a pensar, também, quais imagens sobre cultura romana que
estão sendo construídas nesse discurso específico: há uma valorização do homem guerreiro,
aquele que age, e da submissão da mulher recatada. Esses seriam os valores essenciais e,
portanto, o que se esperava dos romanos de elite, em uma contraposição direta aos hábitos
dos povos nativos da Campânia, pois são caracterizados como rudes e fracos. Maiuri define
comportamentos e papéis sociais em oposições binárias, como comentamos, e claramente
constrói escalas de valores sobrepondo a elite romana, considerada superior em seus hábitos
refinados, aos povos nativos da Campânia, e por comparação do sul da Itália, definidos como
rudes e propensos ao sexo.
Como já apontou Cooley (2003), Amadeo Maiuri é o superintendente mais polêmico
do século XX. Embora boa parte de Pompeia tenha sido escavada neste período, Cooley
aponta que cada vez mais estudiosos têm criticado as restaurações inadequadas por ele
propostas ou mesmo suas publicações, que mais indicavam uma percepção fascista do que era
o Império do que uma estética romana propriamente dita.Voltar às publicações de Maiuri
significa, nesse contexto proposto, identificar os silêncios ou as descaracterizações e pensar os
impactos que causaram nas interpretações posteriores. Essa posição ajuda a rever e
desconstruir pressupostos normativos e, no caso das pinturas mencionadas, a repensar seus
locais arqueológicos, reinserindo-as em seu contexto religioso, tão habilmente esquecido na
voz de Maiuri, ou mesmo no de valorização da alfabetização entre as pessoas comuns. Ou
seja, trazer à tona os preconceitos, desatrelar a cultura romana de valores impregnados por
pressupostos raciais comuns durante o fascismo, rever pressupostos de naturalização do sexo
são atitudes que ajudam a repensar as relações afetivas e as crenças dos antigos e modernos a
partir de uma perspectiva mais plural.
Considerações finais
O encontro com os textos de Maiuri, que foi ao acaso, como comentamos, não deixa
de ser incômodo e, por isso, desafiador. Se é fato que os estudos clássicos foram utilizados
para legitimar posturas autoritárias e excludentes, é urgente o esforço para rever esse quadro e
buscar por formas alternativas de entender o passado romano. Acreditamos que é o
reconhecimento dessas ambiguidades que se torna possível entender o mundo romano não
como uma sociedade homogenia, mas formada a partir de uma pluralidade de sujeitos. Esta
perspectiva possibilita o questionamento de parâmetros culturais absolutos que foram
estabelecidos ao longo do século XX e aplicados ao mundo romano. Por fim, defendemos que
voltar nossos olhos para uma releitura do passado é uma atitude política na busca por
interpretações mais libertárias e também um convite para contemplarmos uma vida não-
fascista, como propôs Foucault (1977), não devemos combater apenas esse fascismo histórico
de Hitler e Mussolini, mas o fascismo que está em todos nós, que assombra nossos espíritos e
nossas condutas cotidianas. Nesse sentido, acreditamos que a nossa prática política deve
servir como um intensificador do pensamento e multiplicador de experiências de vida
cotidiana, enfatizando sempre a sua fluidez e as suas contradições.
Agradecimentos
Agradecemos todos os participantes do Simpósio Temático Usos do passado realizado
na Anpuh (USP-SP) em julho de 2011 pelos comentários e discussão. Além disso, cabe
mencionar o apoio do programa de pós-graduação em História da UFPR e a bolsa REUNI de
doutorado de Pérola Sanfelice. A responsabilidade das ideias recaem apenas sobre as autoras.
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Julio Gralha1
As primeiras reflexões...
.... a terra do Nilo foi a fonte de toda sabedoria e baluarte da ciência hermética.
Assim começou uma tradição que ainda esta viva hoje, e a qual me aventura a
chamar de Egiptosofia (Egyptosophy).
... Egiptosofia: o estudo de um Egito imaginário visto como fonte profunda de toda
ciência (tradição) esotérica (HORNUNG, 1999: 1-3).
Por outro lado, a análise do professor Glaydson José da Silva2 parece central para o
desenvolvimento dos usos do passado no que se refere às mudanças dos domínios da história
a partir também dos anos 90:
1
Professor Adjunto de História Antiga e Medieval da UFF-ESR; Coord. do Núcleo de Estudos em História
Medieval, Antiga e Arqueologia Transdisciplinar (NEHMAAT). Prof. Pesquisador do NEA-UERJ; Pós-
doutorando em História (PPGH-UERJ).
Do auxílio epistemológico de outras áreas do conhecimento humano à consolidação
da interdisciplinariedade como práxis de pesquisa e de uma narrativa positiva e
ensimesmada a uma História problema, o presentismo, como colorário de todas
essas inquietações, talvez seja uma das conseqüências mais incômodas e, ao mesmo
tempo, uma das que mais contribuições teóricas aportou à História Antiga (SILVA,
2004: 26).
2
Professor Adjunto de História Antiga da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
atuais da academia parece ser alvo de críticas, mas como em outras situações, trata-se de um
momento de acomodação de idéias. Afinal nem sempre o novo é assimilado de forma
positiva.
A crítica mais freqüente toma por base que o pesquisador não teria condições de
abordar em uma mesma pesquisa uma análise comparativa de elementos da Antiguidade e da
Modernidade/Contemporaneidade, ou seja, tal pesquisador não teria suficiente domínio das
áreas de Antiga e Moderna/Contemporânea — sobretudo um pesquisador da área de
Antiguidade — de modo a conduzir um trabalho de forma satisfatória.
Esta análise nos parece simplificada tendo em vista diversos trabalhos desenvolvidos
nesta área. Ao que parece a quebra do paradigma de trabalhar com duas áreas aparentemente
distintas ainda é visto como dificuldade para certos colegas. Entretanto, não é preciso ir
muito longe, basta um estudo básico da arquitetura nazista e fascista para se verificar que a
forma de legitimidade das relações de poder adotada tem profunda relação com elementos
simbólicos greco-romanos.
Uma outra crítica que se pode literalmente “ouvir” em certos momentos — pois
dificilmente são escritas — leva em conta que a História Antiga, e mesmo a História
Medieval, “não servem pra nada” e por essa visão, seriam dispensáveis ou quando são vistas
com importância sua relevância parece ser minimizada no desenvolvimento das Ciências
Humanas e nas cruciais situações da Contemporaneidade. É possível que este tipo de crítica
tenha contribuído para que pesquisadores de História Antiga desenvolvessem projetos de
modo a demonstrar que esta área possui também uma parcela significativa de contribuição nas
abordagens históricas que envolvem as Ciências Humanas e Contemporaneidade, e que
formas de legitimidade e relações sociais foram desenvolvidas com base no Mundo Antigo.
Como exemplo, podemos citar a arte, a arquitetura, o direito e a organização política.
Todavia, não foi somente esta razão, podemos inferir que um grupo significativo de
pesquisadores também foi mobilizado pela percepção que em diversas situações de impacto
para a humanidade (como as guerras mundiais) na Modernidade e Contemporaneidade
elementos culturais, sociais e mitológicos foram tomados do mundo greco-romano ou de
outras sociedades complexas da Antiguidade e do Medievo como propaganda e legitimação
de ações.
O fato é que os usos do passado podem ser qualificados como uma alternativa de
abordagem e uma forma comparativa de análise que vem se consolidando gradualmente e
possivelmente daqui alguns anos seja compreendida melhor e aceita pelos críticos.
As primeiras análises...
A construção das relações sociais por meio de discursos materiais é uma estratégia
eficiente da reprodução do poder (ZARANKIN, 2002: 14).
1. O modo Simbólico Inicialmente as imagens serviram de símbolos; para ser mais exato,
de símbolos religiosos, vistos como capazes de dar acesso à esfera do sagrado pela
manifestação mais ou menos direta de uma presença divina.
3
Baseado no capítulo V da tese de doutorado apresentada a UNICAMP: GRALHA, Julio. A Legitimidade do
Poder no Egito Ptolomaico: Cultura Material e Práticas Mágico-religiosas. Campinas: UNICAMP, Tese de
Doutorado, 2009.
2. O modo Epistêmico. A imagem traz informações (visuais) sobre o mundo, que pode ser
conhecido inclusive em alguns de seus aspectos não visuais (mapas)... Mas essa função
geral de conhecimento foi muito cedo atribuída às imagens.
Em nossa pesquisa tal conhecimento (mensagem, idéia e sentido) podia ser extensivo
aos segmentos sociais. Ora de forma diferenciada (um grupo social apreende um determinado
conhecimento na arquitetura e na iconografia diferentemente de outro segmento social), ora
de forma coesa (uma determinada imagem contida na arquitetura, na iconografia, e nos
monumentos urbanos e funerários da cidade do Rio de Janeiro poderiam passar para todos os
segmentos uma mensagem única).
Podemos dizer que em nosso objeto de estudo que a forma teria tanto a de função de
impressionar pela monumentalidade quanto pela “beleza” (cores, textura e etc.).
Uma outra forma de metodologia que desenvolvemos tomou por base os nove
elementos identificados pelo egiptólogo Richard H. Wilkinson (1994) para analisar a imagem
na arte egípcia.
O método se baseia na interpretação por meio do significado de nove tipos de
símbolos básicos em uma cena. São eles: a forma, da dimensão, da localização, do tipo de
material, da cor, dos números, dos hieróglifos, das ações e dos gestos.
Apesar de inicialmente serem aplicados para a Egiptologia de um modo geral os
tipos de símbolos básicos podem ser aplicados em outras áreas da História.
Forma:
Localização:
Material:
A natureza do material tem relevância, assim sendo; metais, madeiras e rochas
possuíam valor e poder simbólico em função das práticas culturais e sociais. Desta forma o
ouro era importante por simbolizar uma substancia imperecível e divina, e também o Sol.
Assim como uma fachada em mármore denotaria poder pela riqueza do material.
Cor:
A cor poderia dar individualidade e vida a uma imagem, além disso, havia o valor
simbólico e atributos culturais ligados às cores.
Número:
Além da ideia de quantidade, os números podem ter valor simbólico. Assim o
número quatro poderia significar a “coisa completa”, plena, totalidade e de certa forma
também poderia significar a estabilidade, os quatro pilares e os pontos cardiais. As quatro
“torres” da Biblioteca Nacional, além de estética poderiam passar ao espectador a impressão
de estabilidade.
Hieróglifo:
Ações:
Uma cerimônia talhada ou pintada em uma estrutura, a descrição de um ritual na
fachada de um prédio público ou um grupo de estátuas executando uma determinada ação
denotam uma ação simbólica e legitimidade.
Gestos:
Os gestos estão associados de certa forma as ações, mas por si só podem indicar
submissão, domínio, proteção e invocação.
Análise da Arquitetura
Como exemplo, passamos a uma análise preliminar. A idéia central neste momento é
demonstrar o método.
Modo Epistêmico
Os elementos greco-romanos e a imagem de Tiradentes expressam civilidade, progresso, razão, justiça e poder.
Modo Estético
O monumento causa impacto ao espectador pela monumentalidade. A organização da fachada, as escadarias, as colunas, e a
imagem de Tiradentes podem sensibilizar o espectador/observador de forma agradável e atraente.
Forma: A estrutura tem forma retangular composta com a fachada com sua colunata, escadaria, e
divindades civis representativas da república.
Ações: O triangulo formado por Tiradentes, a Justiça e a Paz denotam equilíbrio e os pilares da República
Material: A construção teve relativo baixo custo, uma vez que, um tipo de massa foi usado para a fachada.
Considerações
O Palácio Tiradentes sensibiliza o visitante estabelecendo legitimidade pela monumentalidade, por memórias coletivas que
rememoram a civilidade, a razão, e o trabalho. Desta forma, este Palácio se legitima coma a casa das decisões.
Considerações Finais
Neste capítulo tivemos a intenção de demonstrar que os usos do passado podem ser
vistos como abordagem metodológica e investigativa possível, e que análises comparativas
podem ser levadas a efeito de forma a contribuir com as Ciências Humanas. A apropriação de
elementos do mundo antigo (social, cultural ou política), permite a legitimação de ações e o
estabelecimento de cooperações ou cooptações dependendo da relação que os grupos sociais
pretendem dar aos elementos apropriados.
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WILKINSON, Richard H. Symbol & Magic in Egyptian Art. London: Thames &
Hudson, 1994.
1
Recipio, “tomar de volta, retomar”, como em recipere suas res amissas, “recuperar suas coisas perdidas” Liv.
3, 63.
Nas sociedades que se utilizam da escrita, tanto mais, os usos do passado passam
pela tradição, pela transmissão não apenas oral, como escrita (GOODY, 2000). A tradição,
contudo, não deve ser entendida como uma transmissão de algo que está lá na origem, algo
que subjaz ao sentido do termo, já que tradição significa “trazer algo2” do passado para o
presente, como um aprendizado. O próprio conceito de uso do passado tem sido criticado por
alguns por pressupor que há um passado objetivo lá trás a ser usado no presente,
negligenciando com isso que, ao se conceber, discursivamente, os documentos no passado e
sua leitura no presente, passado e presente passam a ser entendidos como dimensões
construídas, no presente, pelos historiadores. De fato, o que chamamos de uso 3 é uma
invenção contemporânea, uma experiência no presente, ainda que mantenha uma relação com
o que se escreveu sobre o passado. A construção do passado está no presente e serve a fins
contemporâneos (JONES, 1997). O conceito de usos do passado, à diferença de recepção
literária, surgiu no âmbito da teoria social e enfatiza as relações de poder subjacentes ao
mundo contemporâneo. O que se pode concluir desse debate entre os que enfatizam conceitos
diversos como recepção e usos do passado é que não convém pensar o passado sem atentar
para as condições contemporâneas de produção historiográfica. Recepção ou usos do passado,
ambos os conceitos ressaltam tal ligação umbilical.
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2
Cf. Quint. 1, 12, 1: nec tamquam tradita sed tamquam innata, “nem tanto aprendida, como inata”.
3
Cf. Ter. Phorm. 1, 2, 23, Mi usus venit, hoc scio, “sei-o pela experiência, pelo uso”.
HARDIN, R.F. England's Amphitruo before Dryden: The Varied Pleasures of Plautus's
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JONES. S. The Archaeology o Ethnicity. Constructing identities in the Past and Present.
London, Routledge, 1997.
KRISTIANSEN, K. The Strength of the Past and its Great Might: An Essay on the Use of the
Past, Journal of European Archaeology, Volume 1, Number 1, March 1993 , pp. 3-32(30).
RADWAY, J. What is the matter with reception study? In: GOLDSTEIN, P.; MACHOR, J.
L. New Directions in American Reception Study. Oxford, Oxford University Press, 2008, 237-
350.
SOBRE OS AUTORES
Graduado, Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Desde
1998 é professor do Departamento de História da Universidade Estadual da Bahia – UESB. É
líder do Grupo de Pesquisa: Historiografia do Mundo Antigo – UESB, cadastrado no CNPQ.
Atualmente coordena o projeto de pesquisa “A economia antiga: a contribuição de Karl
Polanyi.”, com o financiamento da PPG/UESB. É autor, na condição de organizador, dos
livros “Interação social, reciprocidade e profetismo no mundo antigo” e “Economia Antiga:
história e historiografia”, com capítulos escritos nos dois livros. Publicou artigos no periódico
PHOÎNIX e na revista eletrônica NEARCO. É membro da editoria científica da Revista
Politeia: História e Sociedade do Departamento de História da UESB
Andrés Alarcón-Jiménez
Atua na área de Usos do Passado, Teoria da História, História do Brasil, História Antiga e
História Medieval. É doutora em História pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de
Mesquita Filho" Campus de Assis (Março/2011), possui graduação e especialização em
História pela Universidade Estadual de Londrina (1998/1999) e mestrado em História pela
Universidade Federal do Paraná (2002). Atuou no ensino Fundamental e Médio de 2003 a
2006, e no ensino superior de 2000 a 2012 como professora colaboradora do Departamento de
História da Universidade Estadual de Londrina - UEL. É pesquisadora do Núcleo de Estudos
Antigos e Medievais da UNESP/Assis - NEAM, do grupo Antiguidade e Modernidade: Usos
do passado - CNPQ e do Grupo de Pesquisa Gênero, Sexualidade e Sociedades - USC. Pós-
doutorado iniciado em Março de 2011 – IFCH - Unicamp, sob a supervisão do professor Dr.
Pedro Paulo Abreu Funari.
Renato Pinto
Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1996), mestrado e doutorado em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas
(2001 e 2006). Atualmente é professor adjunto da Fundação Municipal de Ensino Superior de
Bragança Paulista e professora/tutora no Centro Universitário Claretiano (educação a
distância). Tem experiência na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas:
Antigüidade Grega, Historiografia Antiga e Moderna sobre a Antigüidade e Religiosidade e
Mitologia Grega.
Formado em História pela Universidade Federal de Viçosa e Master of Arts em Early Celtic
Studies pela Universidade de Cardiff. Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis), sobre Identidade e Religião romana ao início do
Principado. Entre outros temas, desenvolve também pesquisas sobre os povos Celtas da Gália,
com atenção especial aos druidas e o druidismo nos séculos I a.E.C. ao I E.C., e as trocas
culturais entre Celtas e Romanos.
Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(2002). É Mestre em Arqueologia (2007) pelo programa de Pós-graduação do Museu de
Arqueologia e Etnologia (MAE/USP). Sua iniciação científica teve como tema a cerâmica de
bucchero Etrusca e no mestrado trabalhou com Arqueologia Brasileira, estudando os artefatos
líticos e cerâmicos do sítio Água Limpa, município de Monte Alto, SP. Doutora pela
Unicamp, junto ao departamento de História, sob a orientação do Prof. Pedro Paulo A. Funari.
Sua pesquisa tem como objeto a figura feminina de Boudica, guerreira e rainha Bretã,
envolvendo o estudo de teoria de gênero, literatura, história e arqueologia.
Julio Gralha