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Antiguidade como presenca, Antigos,


modernos e os usos do passado. livro
completo
Pedro Paulo A. Funari, Tais Pagoto Bélo, Raquel Dos Santos Funari, Andrés Alarcón Jiménez

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Pérola De Paula Sanfelice
SILVA, G. J. (Org.) ; GARRAFFONI, R. S. (Org.) ; PAULO A.
FUNARI, PEDRO (Org.) ; Gralha, J.C.M. (Org.) ; Rufino, R.
(Org.) . Antiguidade como Presença. Antigos, modernos
e os usos do passado.. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2017. v.
1. 326p .
ISBN 9788555075131

Antiguidade como presença:


antigos, modernos e os usos
do passado

Organizadores:
Pedro Paulo Funari
Júlio Gralha
Glaydson José da Silva
Rafael Rufino

1
SUMÁRIO

Apresentação

Introdução

A inspiração

O livro

Política, economia e sociedade

A Economia antiga e os paradigmas da cultura ocidental: Karl Polanyi e Max Weber


Alexandre Galvão Carvalho

Uma história peregrina. Antropogênese na História de Colômbia de Henao e Arrubla (Ou sobre os
caminhos que ligam Antiguidade e Modernidade)
Andrés Alarcón-Jiménez

Roma antiga e legitimidade política na Espanha franquista: uma análise da Semana Augustea de
Zaragoza (1940)
Rafael Augusto Nakayama Rufino

O legado romano na Inglaterra vitoriana


Renata Cerqueira Barbosa

O Império Romano hoje: Arqueologia, Numismática e Usos do Passado


Cláudio Umpierre Carlan

A queda de Roma segundo Montesquieu


Adilton Luís Martins

Identidade, gênero e cultura

Apolo e Musas, liras e cítaras. Estudo da releitura do legado clássico na iconografia urbana de
Pelotas e outras cidades do Brasil meridional (Arroio Grande, Bagé, Jaguarão e Pinheiro Machado)
Fábio Vergara Cerqueira

A imaginação do passado e a construção da identidade grega: o caso da Arqueologia Clássica no


século XIX
José Geraldo Costa Grillo

2
O príncipe Carataco: nacionalismo e construções ideológicas do masculino a partir do séc. XVI
Renato Pinto

A Antiguidade: seus usos, suas apropriações


Renata Cardoso Belleboni-Rodrigues

O Egito Antigo no espelho da modernidade brasileira


Raquel dos Santos Funari

Os Limites da Romanização: uma reflexão acerca da interação cultural entre os Mundos Clássico e
Celta
Nelson de Paiva Bondioli

Boudica nas representações do feminino


Tais Pagoto Bélo

Escavando Pompeia no início do século XX: Arqueologia, nacionalismo e identidades em conflitos


Renata Senna Garraffoni e Pérola de Paula Sanfelice

Antiguidade na Modernidade: os usos do passado como possível abordagem explicativa


Julio Gralha

Usos do passado e recepção: um debate


Pedro Paulo Abreu Funari, Glaydson José da Silva, Renata Senna Garraffoni

Sobre os autores

3
APRESENTAÇÃO

Em julho de 2011 realizamos o Simpósio Temático Antiguidade e Modernidade:


usos do passado, por ocasião do XXVI Encontro Nacional de História 1 , da ANPUH. O
Simpósio congregou, em sua maior parte, pesquisadores ligados ao Grupo de pesquisa
Antiguidade e Modernidade: História Antiga e Usos do Passado, cadastrado no CNPq2, e
contou com participação de pesquisadores de diferentes universidades brasileiras e uma
estrangeira (Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista, PUC – RS, UESB,
UFBA, UFF, Unicamp, Unifal, Unifesp, UFPel, UFPr, UFRGS, Unesp-Assis, Universidade
Severino Sombra, Universität de Heildeberg e USP). O grupo de pesquisa ao qual se vincula a
presente publicação se desenvolveu, originariamente, a partir do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual de Campinas (Área de Concentração História Cultural;
Linha de Pesquisa: Gênero, Subjetividades e Cultura Material 3 ) e se ampliou com a
participação, por meio de afinidades temáticas e teóricas/epistemológicas, de pesquisadores
de outros centros de pesquisa brasileiros. O que aqui se apresenta é, então, a materialização de
esforços congregados e das frutíferas discussões, dos quais esse livro é o primeiro resultado
em formato de publicação coletiva.

1
ANPUH 50 anos: comemorações. São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011. Universidade de São Paulo (USP)
Cidade Universitária.
2
http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0062705COY5FQ0 Informações sobre o Grupo e
suas atividades podem ser obtidas no site http://www.humanas.ufpr.br/portal/usosdopassado/
3
Hoje, Gênero, Subjetividades, Cartografias e Cultura Material.

4
INTRODUÇÃO

A inspiração

Ao invés de procurar o “clássico” na nevada e


inacessível altitude do Olimpo, deveríamos, talvez,
procurar por ele na terra, usando a história para dar-lhe
um nome e alguma substância.

Salvatore Settis1

Nas últimas duas décadas o chamado pensamento pós-colonialista tem influenciado


os estudos acerca do mundo antigo. Entre os diversos pontos discutidos por intelectuais
engajados nessa forma de pensamento, dois chamam a atenção em particular: a necessidade
de expandir o uso das fontes para o estudo do mundo antigo e a urgência de se repensar os
conceitos empregados para o estudo do passado. No primeiro caso, estudiosos têm enfatizado
a parcialidade das fontes escritas e defendido a contribuição da cultura material como
evidência independente e capaz de produzir discursos próprios acerca do passado clássico. No
segundo, a discussão recai sobre a importância de se repensar conceitos e modelos
interpretativos acerca do mundo antigo, sobretudo aqueles cunhados ao longo dos séculos
XVIII, XIX e XX.
O alinhamento com essas concepções se desdobrou em um debate profícuo entre
pesquisadores brasileiros e, a partir disso, sentimos a necessidade de criar um fórum de
discussão que refletisse sobre abordagens mais críticas acerca do passado antigo. Desse
esforço coletivo surgiu o grupo Antiguidade e Modernidade: História Antiga e Usos do
passado que se estrutura a partir de duas linhas de pesquisa centrais: Cultura Material e
Gênero no Mundo Antigo e Identidade Nacional e Revisitação dos Clássicos. Do ponto de
vista epistemológico, ambas as linhas se articulam em torno da ideia da Antiguidade como
presença posterior determinante e reformulada pelas múltiplas visões e interesses do presente,
muitas vezes percebidos por vieses de classe, raça e gênero, por exemplo, que marcaram os
estudos historiográficos a respeito do mundo antigo.
A partir desse contexto, organizamos este livro pensando em propor análises acerca
dos usos do passado pela História e pela Arqueologia como forma de estabelecer

1
“Instead of seeking out the ‘classical’ on the snowy and inaccessible heigths of Olympus, we should perhaps be
looking for it on earth and using history to give it a name and some substance” SETTIS, Salvatore. The future of
the “classical”. Cambridge: Polity Press, 2006. p. 8

5
compreensões em contextos modernos, propondo uma reflexão acerca do papel do passado
nos jogos de estratégia e afirmações identitárias do presente. A percepção da escrita da
História do mundo antigo como fato histórico sujeito a temporalidade, leva a uma
compreensão diferenciada da História e do historiador. Nessa perspectiva, o livro visa
explorar as tensões políticas inerentes à construção do conhecimento e contribuir com novas
abordagens acerca do mundo antigo.

O livro

A partir do exposto, organizamos as contribuições em dois segmentos: Política,


Economia e Sociedade e Identidade, Gênero e Cultura. Essa decisão se baseou nas temáticas
abordadas pelos próprios/as estudiosos/as, profissionais estabelecidos em diferentes partes do
país e contamos com a participação de Andrés Alarcón-Jiménez que se doutorou na Unicamp,
mas que atualmente retornou a Colômbia. A ideia foi de procurar explorar o máximo possível
de perspectivas e abordagens, bem como chamar a atenção para a urgência de se rever
conceitos e abordagens para propor abordagens mais críticas sobre as relações entre presente e
passado.
Assim, o primeiro eixo se inicia com uma reflexão de Alexandre Galvão Carvalho
sobre Weber e Polanyi em uma análise sobre os desdobramentos dos debates acerca do oikos
e as mudanças de referenciais científicos e filosóficos na percepção de economia na tradição
histórica alemã. Andrés Alarcón-Jiménez explora a relevância da antiguidade greco-romana
nos discursos de História Pátria da Colombia de Jesús María Henao e Gerardo Arrubla na
construção de uma perspectiva de nação na moderna Colômbia, enquanto Rafael Rufino
analisa a imagem de Roma presente na comemoração do bimilenário de Augusto na Espanha
franquista da década de 1940. Renata Cerqueira Barbosa foca na recepção de Ovídio e outros
autores romanos na arte e literatura da sociedade vitoriana, enquanto Claudio Umpierre
Carlan recorre à cultura material como base de sua análise, a partir do acervo de numismática
do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, comenta a presença romana nas moedas do
período da Monarquia brasileira e primeira República. Por fim, Adilton Luís Martins encerra
o eixo com uma abordagem sobre a relação entre a História de Roma feita por Montesquieu e
a sua relação com o Absolutismo francês e o liberalismo inglês no século XVIII.
Abrindo o segmento Identidade, Gênero e Cultura, temos a contribuição de Fábio
Vergara Cerqueira e sua reflexão crítica sobre a reapropriação de modelos greco-romanos na
arquitetura urbana brasileira a partir de estudos de caso em cidades no sul do Brasil. A seguir,

6
José Geraldo Grillo discute o estabelecimento da Arqueologia Clássica no século XIX e como
percepções de poder, raça e gênero constrói um determinado modelo de mundo grego.
Renato Pinto, por sua vez, discute a dinâmica entre os discursos imperiais-
nacionalistas britânicos e a construção de ideologias de masculino a partir das inúmeras
apropriações da imagem de Carataco, príncipe bretão em período romano. Renata Cardoso
Belleboni-Rodrigues apresenta uma reflexão no campo da nova história cultural sobre como a
Antiguidade foi percebida no século XIX, já Raquel dos Santos Funari discute as imagens
sobre Egito antigo a partir da perspectiva de jovens brasileiros. Nelson de Paiva Bandioli e
Tais Pagoto Bélo retomam a questão celta/bretã inicialmente levantada por Renato Pinto.
Enquanto Bandioli faz uma reavaliação do conceito de Romanização criticando a noção de
aculturação decorrente do modelo tradicional de Romanização, Bélo parte da rainha dos Iceni,
Boudica, para analisar como sua imagem foi rearticulada em diferentes momentos da História.
Para finalizar, Renata Senna Garraffoni, em conjunto com Pérola de Paula Sanfelice,
retomam a cultura material para finalizar o livro discutindo como as escavações
arqueológicas de Pompeia, sob a supervisão de Amedeo Maiuri entre 1924 e 1961, e suas
publicações foram atravessadas por valores patriarcais e racistas, de acordo com princípios
fascistas da época em que os trabalhos foram desenvolvidos. Julio Gralha encerra o volume
com uma reflexão sobre os usos do passado na arquitetura do Rio de Janeiro, desenvolvendo
uma metodologia para pensar as relações entre cultura material, poder e passado greco-
romano e egípcio no Brasil.
Passado antigo e presentes de diversas historicidades se cruzam em múltiplas
significações e os textos dessa coletânea nos fazem pensar a importância da Antiguidade na
construção de discursos diversos de poder. Desconstruir conceitos e provocar análises críticas
desses entrecruzamentos é uma opção política que, a nosso ver, é fundamental para a
democratização dos estudos sobre o mundo antigo e a construção de abordagens mais
inclusivas.

Os organizadores.
Primavera de 2015.

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8
Política, economia e sociedade

9
A ECONOMIA ANTIGA E OS PARADIGMAS DA CULTURA OCIDENTAL: KARL
POLANYI E MAX WEBER

Alexandre Galvão Carvalho1

Polanyi nunca se encontrou com Weber e referências diretas sobre o trabalho de


Weber nos escritos publicados de Polanyi são raras. Mencionado por muitos como um de seus
precursores nos estudos de História econômica, por sua abordagem institucional e histórica,
Polanyi opunha-se à defesa do mercado feita por Weber, pois acreditava ter sido esta uma
ilusão do século XIX.
Pretendemos neste trabalho, em primeiro lugar, confrontar os conceitos de economia
e mercado de Max Weber e Karl Polanyi, procurando explicitar, em um primeiro momento,
como Weber, a partir de seu conceito de racionalidade econômica, apresenta o capitalismo
político do mundo antigo e posteriormente, as diferentes críticas a esta perspectiva; uma pela
via neoclássica; e outra, pelo substantivismo econômico, representado por Polanyi. Em
seguida, as concepções de Weber e Polanyi acerca das evoluções econômicas do Ocidente e
Oriente, no que tange às transações econômicas iniciadas no mundo antigo, com o fito de
mostrar que, apesar de divergências nos conceitos de economia e mercado, estes autores
paradigmáticos contribuíram para uma perspectiva de afirmação do Ocidente em relação ao
Oriente de consequências duradouras, particularmente em relação à ideia do nascimento do
capitalismo (Weber) e do mercado (Polanyi) no Ocidente e de sua ausência no Oriente.

O significado do econômico

Para Max Weber, a economia é, em termos específicos, uma relação humana que tem
por base uma necessidade ou um complexo de necessidades que exige satisfação. Tal
satisfação exige uma reserva de meios e ações considerados escassos pelos agentes. Além
disso, para que tenhamos um comportamento racional referente a fins, esta escassez deve ser
subjetivamente suposta e as ações orientadas por este pressuposto (WEBER, 2004: 229).
Outrossim, a economia exprime, também, uma relação social, pois implica em uma
relatividade significativa a outrem, no qual a aquisição ou o uso de objetos desejados para
satisfazer as necessidades dá margem a uma atividade compreendendo, de um lado, uma

1
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do Departamento de
História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).

10
exploração sob a forma de produção ou de trabalho organizado, e, do outro, uma previsão
com vistas a garantir o atendimento das necessidades sob as formas de provisão, de ganho ou,
em geral, de um poder capaz de dispor de bens (FREUND, 1980: 112).
Weber se ocupou, portanto, com o grau em que a racionalidade da economização
com meios escassos pode estar presente na sociedade. No livro Trade and Market,
organizado por Polanyi, Arensberg e Pearson, este último afirma que Weber faz parte de uma
tradição de pensamento que acentua a preocupação pela forma racional de fazer as coisas,
sejam quais forem os fins últimos (PEARSON, 1976: 353-365). Esta concepção acentua,
segundo Hopkins (1976), a ação racional e resulta na ideia de que as economias que não se
baseavam no mercado se apresentavam como meros apêndices compostos por formas
aberrantes de partes correspondentes, em sua essência, à economia de mercado (HOPKINS,
1976: 335-337). A análise weberiana das sociedades do mundo antigo possibilita-nos avaliar
até que ponto essas críticas são pertinentes.
Segundo Weber, a economia de mercado está presente na economia antiga, porém,
como uma estrutura relativamente superficial sobreposta a uma economia natural,
basicamente primitiva (LOVE, 1991: 27). Neste sentido, Weber rechaça qualquer
possibilidade de encontrar na Antiguidade, de forma dominante, uma empresa capitalista de
larga escala, baseada no “trabalho livre” assalariado, um mercado de massa, a divisão e
coordenação racional do trabalho dentro de uma única empresa e inovação tecnológica. A
ausência de traços essenciais do capitalismo genuíno (moderno) no mundo antigo, contudo,
não impede Weber de adotar um conceito de capitalismo mais amplo, cujo raio cronológico se
estende para além do mundo moderno. Se na definição de capitalismo, fossem levados em
conta somente fatores econômicos – como, por exemplo, a existência da propriedade como
objeto de negócios, utilizada por indivíduos com fins lucrativos em uma economia de
mercado –, então seria possível afirmar que o mundo antigo, principalmente no período
clássico, teria sido moldado pelo capitalismo, embora não o mesmo dos tempos modernos,
mas um capitalismo específico, com características próprias (WEBER, 1998: 48-50).
Este capitalismo de orientação política assume um caráter irracional, pois, a teoria
política antiga era hostil ao lucro, amparada no ideal do “cidadão independente” e nas ideias
de igualdade entre os cidadãos e autarquia da pólis. Diferentemente da racionalidade da
produção capitalista, as possibilidades aquisitivas no mundo antigo direcionavam-se para
“fornecimentos do Estado, para a expansão política e conquista de escravos, terras, tributos e
privilégios para a aquisição de terras e empréstimos sobre estas, além do comércio e
fornecimento nas cidades submetidas” (WEBER, 2004: 500). Em razão desta orientação, as

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atividades aquisitivas são inibidas, e o cálculo e a acumulação não são objetivos a serem
perseguidos a qualquer custo. A política de cidade antiga estava a serviço de um demos,
ansioso por obter benefícios com os tributos e com a pilhagem dos territórios conquistados. A
corporação dos cidadãos interferia em todas as esferas da vida dos indivíduos. A uma crise
política, poderia haver fuga de escravos, um dos componentes principais dos patrimônios. As
guerras eram elementos desestabilizadores dos investimentos, que se concentravam na
aquisição de terras (internas e no exterior), de pessoas, de navios e na participação com capital
no comércio marítimo. Tudo isso leva Weber a concluir que “um demos deste tipo jamais
poderia estar primariamente orientado no sentido de atividades econômicas pacíficas e de uma
gestão econômica racional” (WEBER, 2004: 498). Assim, a pólis antiga mantém seu caráter
de associação guerreira, gerando um homo politicus, e não um homo oeconomicus.
Esta perspectiva de larga influência na historiografia sobre o mundo antigo,
particularmente, nos trabalhos de Moses Finley, vem sendo criticada por defensores de um
racionalismo econômico de caráter smithiano no mundo antigo. Segundo Paul Christesen
(2003), os investimentos feitos pela elite ateniense no século IV a.C. levavam em conta uma
análise racional na busca de receitas maximizadas, com dispêndio de tempo, energia, dinheiro
e tecnologia relativamente avançada a fim de alcançar os mais altos retornos para seus
investimentos. A hierarquia dos lucros estava relacionada com os riscos das aquisições. Nessa
hierarquia, a propriedade imobiliária apresentava os menores riscos. Os empréstimos ligados
à terra e ao comércio representavam maiores riscos, mas com lucros mais altos, e a mineração
de prata representava a aventura especulativa por excelência de Atenas no século IV, contudo
os custos altos eram compensados por um lucro potencialmente espetacular. Uma avaliação
qualitativa da correlação entre os riscos e lucros na Atenas do século IV indica que os
investidores avaliavam frequentemente os méritos relativos às alternativas abertas e
demandavam um lucro proporcional aos riscos antecipados. Essa correlação não se originava
das ações de poucas pessoas dispersas, mas era a realidade de um ambiente econômico
povoado por investidores que empregavam uma racionalidade econômica com a maximização
de receita como preferência dominante (CHRISTESEN, 2003: 53).
Em outra perspectiva, crítica à corrente neoclássica, Polanyi (1976: 289) afirma que
a economia é uma mescla de dois significados com raízes diferentes, os quais ele denomina de
“real” e “formal”. Esta diferenciação nasceu por volta de 1870 com a teoria econômica
neoclássica de Karl Menger que apontou duas direções elementares para a economia: uma
derivada da insuficiência de meios e a outra derivada dos requisitos físicos de produção
independente da suficiência ou insuficiência de meios. Em razão das realizações bem aceitas

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da teoria de preço revelada por Menger, o novo significado formal tornou-se o significado de
econômico, e o significado mais tradicional de materialidade, que não necessariamente estava
ligado à escassez, perdeu o status acadêmico e foi eventualmente esquecido (POLANYI,
1977: 21-24). Assim, a fusão dos dois significados de econômico, o de “subsistência” e o de
“escassez”, passou a ser feita sem consciência dos perigos para a clareza do pensamento
econômico. Weber foi vítima desta confusão, segundo Polanyi, ao definir a ação racional pela
escolha de meios em relação a fins. “Com respeito aos fins, a escala utilitária de valor foi
postulada como racional; e com respeito aos meios, a escala de teste para a eficiência foi
aplicada pela ciência” (POLANYI, 1977: 27). Portanto, duas escalas diferentes de valor que
ocorrem para se adaptarem ao mercado.
Contudo, há escolhas de meios sem escassez, e escassez de meios sem escolha. A
escolha pode estar determinada por uma preferência entre o bem e o mal, matéria da ética, ou
por uma possibilidade de diversos caminhos (meios) que conduzam a um fim perseguido, que
tenham as mesmas vantagens ou desvantagens. É, portanto, puramente operacional. “O
costume e a tradição, geralmente, eliminam a escolha, e se a escolha existir, não necessita ser
induzida pelos efeitos limitantes de alguma ‘escassez’ de meios” (POLANYI, 1977: 27).
Assim, os termos escolha, insuficiência e escassez deveriam, segundo Polanyi, ser
cuidadosamente vistos em sua relação mútua. A economia formal aplica-se a uma atividade
econômica de um tipo definido; isto é, o sistema de mercado, mais especificamente os
mercados criadores de preço, pois a introdução geral do poder de compra como meio de
aquisição converte o processo de satisfação de necessidades em uma assignação de recursos
escassos com usos alternativos. Disso se depreende que tanto as condições da escolha como
suas consequências são quantificáveis em forma de preços.
A economia “real” deriva da dependência do homem com a natureza e com seus
semelhantes para conseguir seu sustento e se refere ao intercâmbio com o meio natural e
social, “na medida em que é esta atividade a que proporciona os meios para satisfazer as
necessidades materiais” (POLANYI, 1977: 27). O significado “real” ou “substantivo” nasce
da dependência patente do homem à sua sobrevivência, que se dá por uma interação
institucionalizada entre os homens e seu meio natural. Assim, estudar a subsistência do
homem é estudar o processo que o supre com os meios de satisfazer suas carências (ou
necessidades) materiais. Este é o sentido de econômico para Polanyi. A concepção “real” ou
“substantiva” é uma concepção empírica da economia. A economia é uma atividade
institucionalizada de interação entre o homem e seu entorno, que dá lugar a um fornecimento
continuo de meios materiais de satisfação das necessidades (POLANYI, 1976: 293). Não é o

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processo econômico como um todo que se institucionaliza, mas sim, a parte composta por
ações humanas. Portanto, a economia humana encontra-se integrada e submergida em
instituições econômicas e não econômicas.
O estudo do lugar cambiante que ocupa a economia na sociedade é a análise de como
está institucionalizada a atividade econômica em diferentes épocas e lugares e deve começar
pela forma como a economia adquire unidade e estabilidade; isto é, pela interdependência e
regularidade de suas partes. Tal unidade é resultado de formas de integração, que se
manifestam em diferentes níveis e em distintos setores, impossibilitando-nos selecionar uma
delas como dominante para classificar os diferentes tipos de economias (POLANYI, 1976:
296). A observação empírica mostra que as principais formas de integração são a
reciprocidade, a redistribuição e o intercâmbio. Nas sociedades do mundo antigo, a vida
econômica é parte do tecido cultural total, onde se encontra embedded (imersa) em modelos
de vida que não são genuinamente econômicos, resultando em um predomínio da
reciprocidade e da redistribuição, estando o intercâmbio, os atos de troca enquadrados em um
sistema de mercados criadores de preços, em um lugar não primordial, ou mesmo
completamente ausente. Portanto, de acordo com Polanyi, a existência da economia como
uma instituição separada, especializada nesta função, é uma exceção histórica e não o
resultado da tendência de toda sociedade global.

O Mercado, o Ocidente e o Oriente

A corrente econômica em que Weber estava imerso acreditava que a vida econômica
se reduzia a atos de intercâmbio realizados por meio de regateio que se cristalizava no
mercado. Segundo esta corrente, o intercâmbio e o mercado nunca estão dissociados. Em suas
considerações sobre o mercado, escritas em um capítulo inacabado de Economia e
Sociedade, Weber afirma que os membros do mercado competem por oportunidades de troca
e o fenômeno específico do mercado é o regateio (WEBER, 2004: 419). Ele chegou a ver
diferentes tipos de mercado (local e externo), mas a ideia de racionalidade e impessoalidade,
atrelada à troca, ao regateio e ao dinheiro é fundamental na sua definição de mercado, um tipo
ideal. Apesar de não negar a existência de mercados no mundo antigo, Weber concluiu que
um tipo de economia de mercado existiu, mas sem corresponder exatamente à variante
moderna, posto que o capitalismo no mundo antigo sempre teve uma existência limitada e
frágil, em um cenário no qual os arrendamentos de tributos tiveram enorme significado.
Diferente do capitalismo moderno, devido à predominância de atividades aquisitivas como o

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arrendamento privado de tributos, o capitalismo político ia na contramão do capitalismo
orientado pelo mercado.
Polanyi nega peremptoriamente que o mercado e o intercâmbio (troca) estivessem
inextricavelmente ligados. De acordo com Polanyi, o intercambio é um movimento mútuo de
apropriação de produtos entre sujeitos, feito por equivalências fixas, sob formas de integração
caracterizadas pela reciprocidade ou redistribuição, ou por equivalências negociadas, gerando
uma forma específica de integração, o intercâmbio, com mercados criadores de preços. Só
neste último caso, há regateio entre as partes. Para Polanyi, portanto, o mercado tem dois
significados correntes: 1. um lugar tipicamente aberto, no qual os gêneros alimentícios ou
alimentos preparados podem ser comprados em pequenas quantidades, em geral, por taxas
fixas; 2. um mecanismo de oferta-demanda-preço, por meio do qual o comércio é conduzido,
porém não necessariamente ligado a um local definido ou restrito ao varejo de alimentos
(POLANYI, 1977: 124). Na verdade, estes significados são distintos. Do ponto de vista
formalista, o segundo significado tornou-se a definição institucional de mercado. Tal
definição é oriunda da ideia de que o mercado é o lugar do intercâmbio, pois nunca estão
dissociados. A vida econômica se reduz a atos de intercâmbio realizados por meio de regateio
que se cristaliza no mercado. Assim, o intercâmbio é a relação econômica e o mercado é a
instituição econômica.
A instituição do mercado tem dois desenvolvimentos diferentes: um externo à
comunidade e o outro interno, segundo Polanyi. O primeiro está intimamente ligado à
aquisição de mercadorias de fora, enquanto o segundo, à distribuição local de alimentos. Para
analisar este segundo tipo, Polanyi se volta para a ágora, na Grécia clássica, que ele chama de
mercado local. A ágora, apesar de ser considerada como o “mercado de cidade” mais antigo
do Ocidente, não foi, historicamente, um local de mercado, mas um lugar de encontros
(POLANYI, 1968: 312). Desde o século VI a.C., Atenas possuía um tipo de mercado, onde o
alimento - leite fresco e ovos, legumes frescos, peixe e carne - era vendido a varejo. Em geral,
esses artigos eram produtos da vizinhança, vendidos por homens e mulheres camponeses, por
dinheiro ou por barganha. O freguês, que procurava por sua comida no mercado, era o
trabalhador pobre ou transeunte que não tinha household própria. Nem o comerciante recém-
chegado, nem o residente próspero frequentavam o mercado local primitivo; uma prova de
que ele servia às necessidades das pessoas comuns. Também figuravam como características
da ágora as fronteiras rígidas, especificações de quem e com quem poderiam comercializar;
os inspetores oficiais de mercado e os tipos de mercadorias a serem vendidas. Tudo isto nos

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mostra a preocupação da pólis com o tipo de mercado que funcionava em seu interior
(POLANYI, 1977: 167).
A ágora é, em primeiro lugar, uma reação às formas de distribuição feitas pelas
households senhoriais, e, em segundo, um meio pelo qual a democracia mantinha a
subsistência de seus cidadãos. A subordinação do indivíduo à pólis, ao Estado, era completa,
tanto na esfera política quanto militar, impedindo qualquer ideia de direitos individuais. Tal
ideia, de uma responsabilidade total da pólis sobre os cidadãos, estendeu-se ao plano
econômico. O Estado coletava mercadorias, serviços, dinheiro, tesouro e grãos e os recolhia
nos armazéns do Estado ou, em casos emergências, nas households. O princípio era a junção
do caráter político da pólis, - manter a subsistência de seus cidadãos -, com o papel
redistributivo da ágora (POLANYI, 1977: 160-162).
Havia uma separação institucional não somente entre comércio e comerciantes
internos e externos, mas também entre seus lugares e preços. O empório estava localizado no
porto de Atenas, no Pireu e a sua separação do resto da cidade era simbolizada pelas pedras
fronteiriças que a circundavam e a separavam do próprio Pireu que, legal e
institucionalmente, era uma parte de Atenas. Apesar de não haver dados concretos sobre o
movimento de preços de grãos, é possível inferir que os preços dos grãos vendidos na ágora
não variavam de acordo com as flutuações de preços no empório. Atenas sempre se
preocupou em manter o preço do grão na ágora abaixo do preço do empório, inclusive com
mecanismos rígidos de controle, como, por exemplo, a proibição de intermediários e a
imposição de um limite quantitativo de compra de grãos no empório. O resultado dessa
política era o de “unir” o preço da ágora ao do empório, o que constituía um traço de
continuidade do passado redistribuitivo de Atenas (POLANYI, 1977: 236-238).
Apesar de os gregos terem inventado os mercados criadores de preço, com alguma
expressão no final da Atenas clássica, eles sempre tiveram um papel subordinado, pois foi
somente no século XIX, que eles adquiririam autonomia. Dessa forma, não houve nenhuma
ligação entre mercados e liberdades pessoais e políticas e outras realizações da Grécia
clássica.
Por outro lado, Polanyi (1976: 65) afirmou que na Babilônia não havia nada que
pudesse se assemelhar a um sistema de mercado. Não há nenhuma prova material ou escrita
de algum espaço aberto que pudesse ser utilizado para tal função. O que se vê na Babilônia é
um intercâmbio sem mercado, diferente deste no que se refere às pessoas envolvidas no
intercâmbio, aos bens, aos preços e em relação à natureza da atividade do intercâmbio. Os
mercadores assírios do Karum (porto) de Kanish, por exemplo, não eram pessoas que

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ganhavam a vida com ganhos derivados das compras e vendas, das diferenças de preços na
transação. Eram mercadores por status, em virtude de seu nascimento, de uma aprendizagem
longínqua ou por designação. A menos que a designação fosse acompanhada de uma
concessão substancial de terra, suas receitas derivavam da venda de bens, sobre a qual
ganhavam uma comissão. Os preços tomavam a forma de equivalências estabelecidas pela
autoridade de um costume, um estatuto, um edito (POLANYI, 1976: 66-68).
A diferença fundamental entre o comércio administrado e o comércio de mercado
reside na ausência de riscos para os comerciantes, tanto no relativo às expectativas dos preços
quanto à possível insolvência do devedor. Não há perdas pela flutuação de preços. As
atividades deste comércio administrado são qualificadas de disposicionais, nas quais os
comerciantes atuavam dentro do marco de uma organização governamental e uma rede de
instituições oficiais e semioficiais que lhes dava garantias por meio de normas legais. Não
obstante, as transações privadas não eram proibidas, na medida em que as normas legais
tratavam da separação institucional das disposições comerciais relativas aos negócios públicos
com respeito às transações privadas. O mercador atuava em virtude de seus atributos públicos
para negociar o cobre, manejando contingente do governo ou à margem de suas atividades
públicas, privadamente. No primeiro caso, seus passos estavam formalizados e seus atos eram
a plasmação de disposições; na esfera privada, por outro lado, estas eram informais e podiam
descrever-se como transações.
Boa parte das conclusões de Polanyi sobre a Mesopotâmia vem sendo questionadas,
tanto quanto aos princípios, quanto às informações que envolvem a arqueologia. Gledhill e
Larsen (1982), por exemplo, contestam Polanyi quanto à inexistência de mercados na
Mesopotâmia. A ausência de espaços abertos nas cidades escavadas não se sustenta, visto que
nem todas as cidades foram escavadas, e os portões da entrada das cidades muitas vezes,
parecem ter funcionado como a ágora grega. O conceito e o papel do karum são revistos à luz
de novas descobertas. Segundo os autores, essa palavra, originalmente, denotava um lugar de
ancoragem e posteriormente, se constituiu em uma comunidade de mercadores que viviam no
porto. O karum assírio de Kadesh era, segundo as evidências, um típico assentamento de
casas privadas e lojas habitadas pertencentes a mercadores. Em geral, o karum babilônico
antigo era uma comunidade de mercadores da cidade, com caráter corporativo e até um
aparato administrativo e judicial separado. Referências da relação entre o palácio e o karum
podem ser encontradas em um decreto real publicado no período babilônico tardio. O palácio
podia aplicar metade do capital nas operações realizadas no karum. Os mercadores eram
responsáveis pela coleta de impostos proveniente dos contribuintes que se utilizavam

17
diretamente das atividades comerciais. O palácio usava os mercadores independentes do
karum como agentes, porque seu objetivo era evitar a administração direta da produção, do
comércio e da supervisão e forçar os comerciantes a correrem os riscos do negócio. Portanto,
esses comerciantes eram livres para acumular riquezas. Além disso, estudos dos preços e
salários na antiga Babilônia mostram um padrão substancial de flutuações nos preços das
mercadorias básicas, o que reflete provavelmente desenvolvimentos no padrão econômico da
região como um todo (GLEDHILL, LARSEN, 1982: 204-208). Portanto, diferente de
Polanyi, esse estudo revela que o mercado operava com lucros e perdas e que a liberdade para
acumular riquezas era uma condição para que eles assumissem os riscos dos negócios.
Weber aborda as divergências dos desenvolvimentos econômicos e políticos entre
Ocidente e Oriente sob outra perspectiva. Para ele, é só nas cidades-Estados que se
desenvolvem novas formas de regra política, interação econômica, ou legitimação ideológica
em entidades geopolíticas claramente diferenciadas. O oikos tem um papel de destaque na
Grécia nos estágios iniciais, no Oriente Próximo e, no final da Antiguidade, no Império
Romano. Esse papel do oikos está associado à realeza no Ocidente e Oriente, sendo, no
entanto, interrompido no Ocidente com o surgimento da pólis aristocrática e a abolição da
realeza. No Oriente Próximo, a rígida burocracia estatal reprime o capitalismo, acentua e
consolida o papel do oikos real; monopólio daquele que detém o poder político, ideológico e
econômico. Weber reemprega o oikos, diferente de Rodbertus e Bücher – que o definem como
a principal instituição da civilização greco-romana – como predominante nas realezas
burocráticas orientais e como um obstáculo ao surgimento da pólis e ao desenvolvimento do
capitalismo e feudalismo. São as realezas burocráticas que determinam o curso das transações
econômicas em detrimento das forças mercantis, e consequente, do mercado. Weber, coerente
com sua hipótese de “tipos” de capitalismo, indica uma atrofia das liberdades comerciais e do
próprio capitalismo no Oriente, em virtude do fortalecimento do papel do Estado, e, por outro
lado, ao enxergar a formação de um tipo de capitalismo no Ocidente - o político -, admite um
espaço para transações comerciais com fins lucrativos, porém, sem a racionalidade do
capitalismo moderno.
Em suma, enquanto Weber acredita que o poder da burocracia estatal, no Oriente,
inviabilizava a formação de mercados e de cidadãos que pudessem fazer frente ao poder do
soberano, tornando-os muito mais dependentes do poder real que no Ocidente, Polanyi
acreditava que a ausência de mercados no Oriente era resultado de métodos administrativos
poderosos fortemente mantidos nas mãos da burocracia central, contudo, as transações sem
ganho e as disposições reguladas pela lei revelavam uma esfera de liberdade pessoal nunca

18
anteriormente vista na vida econômica do homem. Portanto, ausência de mercado não
necessariamente estava relacionada com a ausência de liberdades pessoais, pressuposto de
Weber para constituir seu tipo ideal de mercado. Por outro lado, tanto Weber quanto Polanyi
veem um incremento das transações econômicas no Ocidente, marcado para Weber pela
ausência de racionalidade econômica voltada para o lucro, de caráter estamental, tradicional e
subordinada ao capitalismo político, e para Polanyi pelo surgimento dos mercados criadores
de preço, com alguma expressão no final da Atenas Clássica, mas com um papel subordinado,
sem nenhuma ligação com liberdades pessoais e políticas e outras realizações da Grécia
clássica.

Considerações finais

Max Weber e Karl Polanyi fizeram parte de uma tradição de pensamento que
defende as fronteiras greco-romanas com as civilizações do antigo Oriente Próximo, em
detrimento de contatos com Oriente antigo e dos valores e construções eminentemente
orientais.
Para Weber, esta fronteira apresentou dois contrastes: o primeiro entre a cidadania
greco-romana e a teocracia do Oriente Próximo, oriundo da presença das póleis no Ocidente e
gerador de padrões democráticos em oposição a formas despóticas de governo no Oriente
Próximo antigo; e o segundo, pela presença do capitalismo no Ocidente antigo, de caráter
irracional, e sua ausência no Oriente, consequência da presença de uma burocracia estatal
dependente do poder real, impedindo o desenvolvimento do mercado e do capitalismo.
Polanyi, crítico de Weber em relação aos traços neoclássicos de sua definição de economia,
defendeu o contraste afirmando a presença de mercados, majoritariamente, do tipo
“administrado”, no Ocidente, e sua ausência no Oriente, amparado na teoria da separação de
mercados físicos e na impossibilidade da reciprocidade, redistribuição e mercado conviverem
lado a lado.
Não há dúvidas de que os desenvolvimentos entre Grécia e Mesopotâmia apresentam
distinções, sendo, por exemplo, a Grécia oriunda da Idade do ferro, com suprimentos
abundantes desse metal, facilitando a acessibilidade às armas e ferramentas, e a Mesopotâmia,
com dificuldades para suprimentos desse metal, de madeira e pedra, levando-a a criar
condições para o transporte desses produtos. Contudo, há um grande número de estudiosos
que defende semelhanças entre essas economias, estando uns na defesa de uma única cultura
mediterrânea oriental que se estendia da Mesopotâmia até o Adriático, enquanto outros

19
acreditam que não houve nenhum ponto de distinção no Mediterrâneo, visto que a bacia toda
estava unida em um padrão caleidoscópico de interações mutantes (MORRIS; MANING,
2005: 1). Segundo Goody (2008: 54) nenhuma economia da região correspondeu a um tipo
puro e houve muitas semelhanças entre as práticas econômicas das diferentes sociedades. O
autor contesta o corte abrupto entre a Idade do Bronze e o limiar da civilização grega,
defendidos por autores como Weber, Polanyi e Finley, lembrando a existência de mercados
independentes nas vilas na África em períodos anteriores à Idade do Bronze.
Os argumentos defendidos por Weber e Polanyi acerca da economia antiga
reforçaram o particularismo do Ocidente relacionado com liberdade, democracia, capitalismo
e mercado. Tais elementos fortaleceram a ideia de ausência ou inferioridade do Oriente em
relação à possibilidade de desenvolvimento da democracia, liberdade, capitalismo e mercado.
Contudo, os estudos atuais, em uma perspectiva menos holística e ideológica, mais histórica e
antropológica, tendem a superar essas dicotomias e reforçar os laços e intercâmbios entre as
civilizações greco-romanas e do antigo Oriente Próximo. Eis um importante canteiro de
pesquisas que se abre para o nosso século.

Referências bibliográficas

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20
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WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução


Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4a Ed., 2v. Brasília: UnB, 2004.

21
UMA HISTÓRIA PEREGRINA. ANTROPOGÊNESE NA HISTÓRIA DE COLÔMBIA
DE HENAO E ARRUBLA (OU SOBRE OS CAMINHOS QUE LIGAM
ANTIGUIDADE E MODERNIDADE)

Andrés Alarcón-Jiménez1

(Imagem 1. Tomado da Historia de Colômbia (1920) de Henao e Arrubla)

Introdução: algumas considerações importantes.

O tema geral deste artigo é a relação entre “História antiga”, a “história moderna” e
os seus usos no presente. Para abordá-lo, apresentarei o caso particular, a escrita de dois livros
(manuais de ensino) de História Pátria da Colômbia que eu acredito, pelos motivos a serem
expostos, são paradigmáticos (KUHN, 1970: 10 et al.) e concebem nele um sujeito histórico
de origem divina, um peregrino (apud. IBARRA, 1997:81 et. al.), a partir do que eles
denominam a “unidade da espécie humana” (cf. Imagem 1).
Esses dois textos foram escritos por Jesús María Henao (1870-1942) e Gerardo
Arrubla (1972-1944), com ocasião do concurso literário organizado pela Academia de
História de Colômbia, para comemorar o primeiro centenário da Independência da Colômbia,
no ano de 1910. Ambos os textos, únicos concorrentes, e vencedores, tornaram-se, por tal
motivo, “manuais”, livros de texto destinados ao ensino da História nacional em todo o país,
por decreto presidencial de 1911.

1
Antropólogo, Universidade Nacional da Colômbia. Mestre e Doutor em História Cultural, IFCH-UNICAMP.
Email: andalajim@yahoo.com. Este trabalho faz parte de uma pesquisa de doutorado concluída em 2013.

22
Na lógica de Henao e Arrubla, o leitor do livro é concebido como projeto de cidadão
em crescimento, um indivíduo introspectivo. Nesse esquema que representa a concepção de
infante e de adolescente que eles concebem, o caminho que vá do Compendio a História da
Colômbia, é percorrido por um cidadão em formação que desenvolve suas capacidades
cognitivas e morais (cf. IBARRA, 2008) e devem um colombiano modelo e amante da pátria.
A História se pensa como reguladora desse processo. Fornecem-se para ele, então critérios de
verdade e de bondade para julgar os textos baseados, em uma ideia de autoridade maternal,
cuja origem é duas entidades femininas, encarnadas na “Pátria” e na “História”.
Este leitor que cresce encontra no texto maior, a “História de Colômbia” uma ampla
bibliografia, fontes primárias, crônicas espanholas, jornais e literatura, entre outros materiais
de leitura e critérios de leitura e interpretação. Como ajuda pedagógica e narrativa encontra
como gravados e diversos quadros analíticos. Também inclui como acontece no caso do
“Compendio”, versão derivada da anterior e destinada às crianças –que não inclui nem
referencias nem bibliografia, mas si definições- breves textos sobre o propósito cívico-moral
da História destinado ao leitor que ligam personagens e episódios concretos do passado com
modelos de ser humano, enfatizando sempre o papel de juiz do Historiador, assim como o
caráter moral das suas noções de bem, de verdade e, portanto, das suas interpretações. Essa
lógica se constrói a partir de outro elemento característico, a sujeição, naturalizada, da
História nacional à História sagrada/universal e à pré-história colombiana e, na mesma lógica,
dos sujeitos (leitor ou personagem histórico) ao reino do Deus católico (cf. IBARRA, 1995;
1998a; 1998b).
Neste cenário, as origens antropológicas do “colombiano” são essenciais para
estabelecer o propósito e resultado da História, uma narrativa circular que se espirala quando
associada ao eixo temporal imposto pelo calendário. Com efeito, por meio de uma série de
recursos retóricos põe-se em movimento uma narrativa que liga à história do povo de Deus, o
elemento greco-latino da história universal, o elemento “espanhol” e católico da Ibéria
reconquistada, e as diversas culturas indígenas conquistadas com o “povo colombiano”.
Devido ao favorecimento estatal, outras versões da História da Colômbia, que estavam
enraizadas em uma visão de mundo mais “secular”, ligada, atualizada e construída com
respeito das teorias e tendências da historiografia “profissional” da época, não conseguiram
permear o sistema escolar colombiano. Por tal motivo essas duas Histórias são consideradas
paradigmáticas, pois são, pelo favorecimento do estado e pela sua presença na educação de
milhares de colombianos por várias décadas, um ponto nodal no processo constitutivo da ideia
História de Colômbia. Ou seja, o pensamento Histórico de Henao e Arrubla tornou-se a

23
referência oficial de como conceber, narrar, ler e ensinar a História do país. Nesse processo, e
sem conter um modelo explícito de que era ser colombiano, mas de como ser um “bom
cidadão”. Porém, esses dois textos apresentam quadros de costumes próprios da elite política
do país – como veremos habilmente ligadas historicamente com a civilização ibérica-, como
modelos a imitar e como exemplos de toda a cultura do país (cf. HERRERA, 2003; PINILLA,
2003; ROMERO ROMÁN, 2008).
Temos então que o ponto nodal que liga a História Antiga, Sagrada e da Civilização
existe como parte da estrutura destes livros, não só devido às necessidades pedagógicas,
religiosas, culturais e civilizatórias, mas também, porque os autores, os seus patrocinadores e
o público colombiano, partilhavam certas visões de mundo. Mas também temos o fato de que
eles narraram uma História, não só com ajuda de uma cronologia, oficialmente calibrada e
institucionalizada no calendário oficial do Estado bem como no Litúrgico, e com ajuda de um
mapa cujo centro era a Capital, mas por meio da língua oficial, comum, dominante e nacional
da Colômbia, o espanhol usado no cotidiano pela elite de Bogotá e Medellín, padronizado e
ensinado em textos de ensino, nas Constituição, bem como na “literatura” nacional, nos
jornais etc.
Este fato é relevante, porque como bem aponta Dux (2011; cf. FERRO, 1981) no
processo de desenvolvimento da criança, a língua é parte das ferramentas necessárias e
distintivas que marcam a construção da visão de mundo e das formas de agir nele. Nesse caso,
a linguagem que é usada de formas específicas para dar vida à narrativa histórica e, portanto
estrutura a memória ortopédica, fornece ao leitor, por meio da narrativa e de imagens e mapas
cartográficos, um conhecimento da realidade, do universo onde o sujeito existe em relação
consigo mesmo, com os outros e com o mundo material (mesmo que este universo seja
considerado como um “imaginário”, “ficção” ou como “tradição inventada”) e, portanto,
cumpriria uma função particular na estruturação da visão de mundo do ser humano em
formação.
Assim, este tipo de manufaturas concretas, apresentadas em um formato popular no
mundo inteiro (FERRO, 1981) não é considerado como “História” no sentido dado a um texto
profissional contemporâneo. Porém, acreditamos que para o leitor são livros de História que
contêm, e geram conhecimento do mundo (cf. FERRO, 1981 e BALIBAR, 1997:117 et.al.).
Aliás, estas manufaturas foram produzidas em contextos diversos e em condições e visões de
mundo diferentes das nossas. Será no decorrer do tempo, e por meio de outros processos que
elas atingirão o nosso presente, processos que denominaremos “usos do passado”.

24
Usos do passado como conceito aberto

Nas pesquisas de Pedro Paulo Funari, Renata Garrafoni, Glaydson José da Silva,
organizadores dessa coletânea, utiliza-se, de forma explícita ou não a expressão “usos do
passado”. Por meio desta frase exprimem e instrumentalizam seu olhar historiográfico e
arqueológico. Aplica-se tanto a escolha de temas, como a seu estudo, à leitura e interpretação
de fontes e cultura material, bem como às manufaturas dos campos historiográficos e
arqueológicos feitos a partir delas, os interesses que representaram, quais foram os agentes
que as produzem, quais foram seus destinatários, quais os usuários e quais os contextos de uso
dela. Considera-se que o “passado” é manufaturado em contextos concretos. O autor,
considerado como um agente imbricado nas redes sociais e de poder, pesquisa e escreve
textos cuja narrativa, com ou sem sua aprovação, passam a fazer parte dos projetos
sociopolíticos do seu tempo, e são destinados para construção de políticas de controle
populacional que atingem desde o nível individual até o macrossocial. Cada produto, portanto,
possui funções e públicos específicos. Nesses processos, estas manufaturas acabam sendo,
literalmente incorporadas por cada agente, e naturalizados no sentido literal de construir ou
modificar a nossa visão de mundo e, portanto, de agir no universo sociocultural e de
transformar o mundo material. Estes usos do passado ecoam duas ideias clássicas, apropriadas
e elaboradas nas décadas recentes: a ideia de encenação e uso do passado de Karl Marx
desenvolvidas no seu famoso libelo “O 18 de Brumário de Luis Napoleão” (1851-52) e a
ideia de uso e abuso do passado do ensaio de Friedrich Nietzsche (1873) do mesmo nome.
Enquanto Marx, como bastante humor apresentava criticamente o uso do passado, em um
contexto concreto, como “farsa” - usada de fato, em um sentido muito teatral que lembra a
noção contemporânea de “performance” –, ações que qualificam certamente como
reacionárias e mágicas pois as pessoas ritualmente vestiam-se com roupas do passado para
modificar uma situação no presente, Nietzsche apontava criticamente, entre outros efeitos,
como agia o poder político e cultural do “passado” sobre os hábitos dos humanos que, dessa
forma, acabavam submetendo-se ao poder dele como aos poderes que o manipulavam.
Porém, Marx e Nietzsche, e a diferença dos olhares contemporâneos, conceberam
aos seres humanos como agentes com a capacidade de transformar a realidade e não só serem
resultados dela. Nas versões contemporâneas, o esquema interpretativo está mediado por
aquele da sociologia francesa clássica, ou seja, pela lógica da derivação (DUX, 2011). Neste
esquema, que assimilara à teoria linguística, literária, filosófica e antropológica próprias da
Academia francesa, ao mesmo tempo em que se autodenominaram “filosofias com sujeito”,

25
substitui-se o sujeito pelo modelo de “sujeito”, entidade de origem social, campo que, alias, é
usada como origem e explicação de todos os fenômenos sociais. Para integrar de novo o
sujeito podemos pensar uma solução no seguinte sentido: o individuo é o agente ativo no
longo processo de construção do mundo e a História começa a ser construída por ele desde a
infância, mas ele faz parte de um universo sociocultural já organizado pelos adultos, universo
humano que muda no tempo como o universo físico. Ambos universos, onde o individuo
cresce, aos quais se integra, os quais ele transforma e com os quais interage, dependendo da
data e do lugar, apresentarão umas características que marcaram seu devir.
Nesse processo de auto-organização de si, os manuais, os livros de História, entre
outros produtos culturais característicos dos últimos dois séculos, terão um papel importante.
Hoje em dia, e a pesar da radical mudança do estado, e das formas, de registro e circulação, e
do suporte material da informação, a História formatada como manual ainda parece fazer um
grande sucesso dentro e fora do meio escolar, não só como produto editorial, mas como uma
tecnologia de si especial que pode denominar-se como memória ortopédica (apud. BALIBAR,
1997, idem; FOUCAULT, 1991; MCLUHAN, 1962 e 1964; STEEDMAN, 1989). Esta
memória ortopédica devém técnica de si nos processos de construção e transformação do
universo macrossocial (cf. GOLDSTEIN, 1999 e 2005) no contexto concreto do Estado Nação
(cf. BALIBAR, 1997) é desenvolvida por diversos agentes que como Henao e Arrubla, são
adultos já formados, imbricados em uma ordem social concreta e formados em condições
particulares. Ela fornece de um olhar, lembranças e experiências destinadas à formação do
individuo e, só em alguns casos, torna-se objeto de estudo e reflexão.
Mas, as formas concretas de construir uma memória “social” ou uma identidade são
particulares a cada sujeito. Cada um de nos constrói esta memória ortopédica, que pode se
representar como, ou tornar em, uma extensão do corpo, na forma de um livro (de história
antiga ou moderna, de religião, ficção, etc.), um objeto (por exemplo, um dentre aqueles
definidos como “patrimônio”), uma música, uma bandeira (cf. MCLUHAN, 1962, 1964). Por
outro lado, essa memória ortopédica nos fornece de lembranças de experiências que não são
nossas, mas que se torna uma como tal. Ou seja, é um dispositivo cultural (cf. BALIBAR,
1997, idem), que, nesse nosso universo, construímos desde a infância junto com a língua e a
memória, as noções de tempo, espaço e objeto, e, portanto de passado e de História, estruturas
que atingem o processo de constituição da nossa subjetividade/identidade (cf. AGAMBEM,
2009, STEEDMAN, 1989 e FOUCAULT, 1991).

O caso de estudo

26
A consolidação de uma narrativa Histórica nacional dar-se-ia no período de 1870 a
1910, período de tempo durante o qual o processo tomaria uma dimensão e formas concretas.
O primeiro evento importante é a materialização do único processo de modernização e
secularização da Educação do século XIX (cf. HELG, 1987) aconteceu com a reforma de
1870, quando o país estava sob o regime dos liberais e se chamava Estados Unidos da
Colômbia (). Ela traria os conceitos de educação, moderna, infantil e massiva, que estavam
circulando na Europa e no Continente. Para seu desenvolvimento trouxeram-se instrutores
prussianos que eram protestantes; isto serviria como desculpa para mais uma guerra civil ao
interior da jovem nação, no ano de 1885. O ano seguinte, os vencedores, membros do
movimento “La Regeneración” se consolidariam no poder, materializado na Constituição de
1886, que fundou a atual República de Colômbia, e a Concordata com o Estado Vaticano do
Leão XIII, de 1887. Mas projeto educativo e historiográfico do partido instalado no Poder só
consolidar-se-iam na década de 1900, no contexto da guerra civil dos “Mil Dias” (1899-1902),
e após o fim dela, com a consolidação da república conservadora.
Depois de obtida a Independência, muitos políticos e membros das elites, não só por
imitar os costumes das Metrópoles, mesmo que em profunda relação com elas, tomaram
consciência da falta de uma narrativa, de um passado “próprio”, por diversos motivos. O
assunto tornar-se-ia parte dos projetos políticos do século XIX e vários autores produziriam
textos de diversa índole e impacto (cf. AGUILERA, 1951 e MARTÍNEZ, 2002). Mas a
política sobre o passado oficial só viria se desenvolver junto com a fundação da Academia de
História (1902), quando diversos pensadores ligados ao partido vencedor que se traçariam e
estabeleceriam os alicerces da narrativa histórica oficial colombiana. Seria durante a ditadura
de Rafael Reyes, se estabeleceu o projeto para comemorar os primeiros 100 anos da
Independência da Colômbia, a acontecer no ano de 1910, em Julho (cf. GARAY, 2010).
Como parte dessas comemorações, os membros da Academia de História, elevada a órgão
consultor estatal, e cujos membros eram membros do Governo e das elites, levavam já alguns
anos produzindo pesquisas e ensaios de diverso tipo no campo da arqueologia e da
historiografia. A Academia organizou então um concurso literário que, entre outras categorias,
incluía uma sobre História pátria para a educação de crianças e jovens e os vencedores foram
Jesús María Henao e Gerardo Arrubla.
Henao, nascido em Amalfi (Antioquia, Col), e Arrubla, nascido em Bogotá (cf.
AGUDELO, 1995; GUALTERO, 2005; MELO, 2010; TOVAR, 1999) receberam educação
em escolas católicas onde a História Pátria já era parte do plano de estudos. De fato, ao terem
estudado ambos os autores no mesmo colégio em Bogotá, o “San Bartolomé” e, portanto, é

27
possível que tivessem usado o mesmo texto, “Historia de Colombia contada a lós niños”, de
José Joaquín Borda (1972), de uso exclusivo nessa importante instituição segundo Aguilera
(1951: 53). Por outro lado, ambos os autores formaram-se como advogados em Bogotá, na
mesma universidade, entre as décadas de 1880 e1890. Nesse sentido, eles tiveram contato, na
sala de aula, com as filosofias do Comte e do Spencer. Pertenceram, ou trabalharam para o
partido ultraconservador e católico, denominado “La Regeneración” (cf. AGUDELO, 1995;
MELO, 2010 e TOVAR, 1999), cujo projeto político se materializou na Constituição de 1886
e na Concordata de 1887 com o estado vaticano que, sob o comando do Leão XIII trouxe de
volta o pensamento tomista reconstruído para os novos desafios da Modernidade.
Escreveu-se e alicerçou-se a História de Henao e Arrubla, com respeito da sua base
antropológica, cultural e moral, apoiando-se em alguns textos clássicos, em trechos bíblicos,
ensaios, em textos de Arqueologia ou de temas arqueológicos contemporâneos deles (cf.
Imagem 1).
Henao e Arrubla construíram seu universo cronotrópico (apud. BAKHTIN, 1981)
para regular o processo de desenvolvimento moral e cívico do “aluno” que, por meio da
incorporação da narrativa deveria devir um cidadão, um colombiano exemplar: o centro e
origem do Homem é o Gênese Bíblico que é caracterizado por eles, como fato científico
comprovado. Como parte desse universo cronotrópico, a Cultura Clássica e o Mundo Antigo
ganharam um espaço relevante para a construção da ideia de “Colômbia”. Para explorar esta
afirmação tomamos três referências bibliográficas que Henao e Arrubla fornecem nesse
sentido e que fundamentam, na visão deles, uma forma particular de construir e nortear a
História nacional.
Por um lado, é importante ressaltar que a única fonte – citada por eles- do campo da
pedagogia destas Histórias da Colômbia é a obra sobre metodologia de ensino da História de
José M. Muñoz Hermosilla de 1893 (GUALTERO, 2005 relaciona os textos – não os autores-,
principalmente com a pedagogia de J. Pestalozzi). Este tratado sobre o ensino da História
convidava ao docente, não só a ensinar história concomitante com geografia – uma estória
contida, impressa e que se desloca dentro das fronteiras mapa da nação. Entre outras técnicas,
Muñoz propôs criar analogias, identidades, entre às culturas antigas clássicas e as modernas
que se estabeleciam de forma deliberada a partir de dois eventos históricos explicados por
meio da identificação de quatro civilizações, no esquema do tipo a cultura X venceu à Y tal
como a cultura W venceu à V.
Em segundo lugar, estabelecem uma ponte que, girando entorno à história bíblica e
ao centro do universo da narrativa imperial ibérica que tinha se apropriado do passado romano,

28
tanto clássico como, na prática, católico. Esta origem, que sustenta a sua tese da unidade da
raça Humana baseada e centrada na Bíblia, Humanidade que peregrina até as terras
americanas onde convergem os antigos índios e os civilizados espanhóis. Estruturaram uma
história humana que ligava a História Universal do Povo de Deus com a Colombiana por
meio dos seus sujeitos históricos. Esse esquema de sujeito e de moral, ligados à causalidade
histórica foi adaptado a partir, entre outros, do ensaio “América Precolombina” (1887) do
bispo uruguaio Mariano Soler.
A importância das culturas antigas, na visão de Henao e Arrubla, foi desenvolvida a
partir do ensaio de Miguel Antonio Caro que citam no seu texto 2 : ela é herança dos
colombianos devido à Conquista Americana por parte do espanhol. O argumento de Caro
tinha outro objetivo: reinterpretar o processo de independência e fundação de Colômbia a
partir de uma interpretação que ligava de novo sua cultura à ibérica e questionava o mito
fundacional modelado na própria ideia de revolução:

Los romanos tenían una frase expresiva y exacta que, no sin misterio, ha
desaparecido de los idiomas modernos – mores ponere- fundar costumbres, lo cual
es muy diferente de dictar leyes. Moresque viris e moenia: Costumbres y murallas,
cultura religiosa y civilización material, eso fue lo que establecieron los
conquistadores, lo que nos legaron nuestros padres, lo que constituye nuestra
herencia nacional, que pudo ser conmovida, pero no destruida, por revoluciones
políticas que no fueron una transformación social... (Caro, 1911).

E por meio dessa reinterpretação, Caro ligou Colômbia a sua ideia particular de
“Espanha”, apropriando-se do seu passado imperial, uma verdadeira amalgama civilizada do
“latino”, “castelhano” e “católico”. Porém, Henao e Arrubla transformaram essa visão. Por
um lado, tenderam um laço de continuidade, de características culturais, raciais e morais (uma
trindade condensada no esquema de um sujeito só) entre os colombianos da Colônia e da
República com os espanhóis, representados por políticos, militares e missionários.

La conquista de América ofrece al historiador preciosos materiales para tejer las más
interesantes relaciones; porque ella presenta reunidos los rasgos más variados que
acreditan la grandeza y poderío de una de aquellas ramas de la raza latina que
mejores títulos tienen a apellidarse romanas: el espíritu avasallador y el valor
impertérrito siempre y dondequiera; virtudes heroicas al lado de crímenes atroces...
(Caro 2011 (1911): 385).

2
Caro está citando “A Eneida” de Virgilio. M. A. Caro foi um importante presidente, político e ideólogo
conservador e católico e, sobre tudo, hispanista. Porém, também dedicou grande parte da sua vida ao estudo e à
tradução de obras clássicas latinas e espanholas.

29
Seguindo a Caro de forma quase literal, a civilização colombiana e seu projeto nasce,
após a guerra da Independência, como uma entidade diferente, mas herdeira da latinidade
elogiada por Caro nos seus textos, e materializada na Colômbia representada por eles. Mas,
por outro lado, interpretam a Caro de forma mais ambiciosa, estendendo a História no tempo
até a Colômbia pré-histórica, habitada pelos indígenas americanos que seriam dominados e
salvados da barbárie pelos espanhóis. Assim, mantendo a explicação do espírito espanhol
civilizatório, porém, a diferença de muitos outros livros de Historia da época, eles incluiriam
por meio da arqueologia, disciplina nova e praticada na Colômbia, por amadores nesse tempo,
os monumentos indígenas. Na visão deles, esses monumentos eram a prova material da
presença de uma civilização antiga no território nacional. A presença de monumentos
indígenas no relato da História nacional fazia projeto de vários membros da Academia como
dos interesses dos autores, sobretudo de Arrubla que dedicaria parte da sua carreira a explorar
essa área.
Ambos os autores, por meio do estudo e uso da cultura material pré-histórica para
aprofundar nas raízes colombianas, passariam a estabelecer analogias entre certas culturas
arqueológicas “colombianas” com culturas do mundo antigo mediterrâneo. De fato, quiçá por
via da sua leitura de uma tradução ao latim de Miguel Antonio Caro de um poema, em
castelhano, do sacerdote espanhol, Rodrigo Caro (1573-1647), Henao (1916) apresentaria na
sua carta a defesa e pedido de proteção das esculturas de pedra agustinianas, e para
caracterizá-las usaria uma analogia dupla, que pó um lado permitia-lhe comparar os indígenas
“pré-colombianos” com certas culturas mediterrâneas clássicas a partir da arte monumental,
mas, em segundo lugar, explicar seu auge e desaparecimento a partir da decadência dos
Impérios retratada no poema do Rodrigo Caro sobre as ruínas de Itálica, antiga cidade romana
na Espanha.
Em conclusão, o que pode ser dito é que, nesta narrativa, desenvolvida na infância da
Colômbia e destinada aos infantes colombianos, ação bem sucedida devido ao decreto
presidencial que os manteria como textos oficiais pelo menos até a década de 1940 (cf.
AGUILERA, 1951), a convergência entre o Mundo Antigo e Moderno apresenta facetas
variadas e funções concretas, como forma de localizar Colômbia dentro da História do
Homem e a do povo de Deus. A história antiga é um plano narrativo normatizado e enraizado
no universo moral e cultural das nações dominantes (e daquelas subsidiarias que incorporaram
tais ideologias como forma de vestir roupas de imperador) pelo qual se submete o presente às
regras e natureza de uma origem, centro e motor da História e da vida.

30
Seu sucesso ideológico, massivo seria resultado, produto do seu uso contínuo, como
da manutenção e reprodução da sua estrutura e narrativa, da sua distribuição pelo território e
nas salas de aula e as livrarias, lido e usado por pelos burocratas e docentes, assim como pelos
alunos, futuros historiadores e educadores, jornalistas e arqueólogos, e pais de família,
durante quase quatro décadas: muitas perguntas e temas e ideias poderiam ter sido construídos
a partir desses textos e, nesse sentido, não só textos posteriores parecem ter sido formulados a
partir deles (cf. HERRERA, 2003), mas até o dia de hoje, esses dois textos são disputados,
positiva e negativamente, como fundadores de uma visão da história de Colômbia (cf.
TOVAR, 1999 e MELO, 2010).
Porém, o que Henao e Arrubla construíram representa sua visão de mundo, produto
do trabalho coordenado, materializado nos textos. Ela não representa a visão dos seus leitores
ou patrocinadores, agentes diversos e múltiplos sobre os quais não podemos estender uma
generalização dessas. Mesmo garantida sua reprodução social, circulação e uso, essa visão de
mundo foi construída por cada um deles, desde a infância e conserva, instrumentaliza e faz
explícito o esquematismo do sujeito, submetendo sua concepção de natureza, causalidade,
sujeito, verdade e moral, bem como na definição e uso dos objetos e da sua função, ao reino
divino (cf. IBARRA, 1998a).

Agradecimentos

Quero agradecer a Renata S. Garraffoni, Glaydson José da Silva e Pedro Paulo Funari e a
Rafael Rufino por terem aceitado esse texto para sua publicação. Agradeço ao CNPq, agência
que financiou meu mestrado e, no presente, a minha pesquisa de doutorado no IFCH-
UNICAMP desde 2006.

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34
ROMA ANTIGA E LEGITIMIDADE POLÍTICA NA ESPANHA FRANQUISTA:
UMA ANÁLISE DA SEMANA AUGUSTEA DE ZARAGOZA (1940)

Rafael Augusto Nakayama Rufino1

Introdução

A imagem da Roma antiga foi constantemente utilizada para legitimar e justificar


questões contemporâneas. Durante o século XX, ela esteve associada muitas vezes à
legitimação de regimes autocráticos e práticas políticas império-colonialistas. Se Atenas foi
vista como modelo de democracia e potencial artístico, Roma esteve relacionada à sua suposta
missão civilizadora, ao seu imperialismo, à expansão imperial. É justamente nesse período
que conceitos relacionados à ideia de imperialismo romano foram produzidos, permeados por
objetivos nacionalistas e imperialistas das nações europeias. Roma aparecia, em suma, como
o modelo de unidade, imperialismo e civilização a ser seguido. Tal como sugere a historiadora
Regina da Cunha Bustamante, “o expansionismo imperialista das metrópoles européias
procurou no passado um paralelo histórico e encontrou no Império romano um campo
propício para justificar o seu domínio em outros continentes” (2004: 30).
O objetivo desse texto é discutir a apropriação de uma determinada imagem da Roma
antiga, principalmente a do Império, no contexto da Espanha franquista. Para isso, busca-se
analisar os discursos que estiveram presentes na comemoração do bimilenário de nascimento
do princeps Augusto, a partir do evento denominado Semana Augustea.
Entre os dias 30 de maio e 4 de junho de 1940, a cidade de Saragoça (capital da
Comunidade Autônoma de Aragão, localizada na região nordeste da Espanha) foi palco de
uma comemoração em torno da figura de Augusto, que reuniu inúmeras autoridades políticas
e acadêmicas espanholas e italianas. Foram organizadas visitas a ruínas romanas localizadas
em Saragoça e cidades próximas, bem como excursões a escavações arqueológicas em sítios
de período romano. O principal ato do evento foi a inauguração de uma estátua de Augusto –
uma réplica de Augusto de Prima Porta – um presente de Mussolini a Espanha.

1
Doutorando em História Cultural pelo IFCH/UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari.
Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Antiguidade e Modernidade: Usos do Passado, coordenado pelos
professores Glaydson José da Silva (UNIFESP) e Renata Senna Garraffoni (UFPR) e Pesquisador do
Laboratório de Arqueologia Pública – Paulo Duarte (LAP/NEPAM/UNICAMP). Este texto é uma adaptação de
parte de minha Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação de História do IFCH-
Unicamp, no dia 26 de fevereiro de 2013, intitulada O bimilenário de Augusto na Espanha: as construções
discursivas do franquismo sobre a Antiguidade romana. Bolsista Capes.

35
Cabe destacar que além de essa comemoração ter sido importante para a cidade de
Saragoça, adquiriu também uma dimensão nacional, haja vista a participação de ministros de
Estado do governo espanhol, de autoridades políticas italianas e alemãs, de acadêmicos de
várias universidades espanhola e italiana.
Em relação às fontes de pesquisa, serão utilizadas notícias, editoriais e artigos de
opinião presentes em diários (ABC, La Vanguardia Española) e periódicos (Aragón,
Amanecer e Emerita) da época. O contato com esse material é importante, uma vez que a sua
leitura permite a aproximação das ideias que se manifestaram durante o evento. Vale ressaltar,
ainda, a presença de uma “visão oficial” nessas fontes, haja vista a ingerência governamental
nos meios de comunicação após a ascensão de Francisco Franco, quando ficaram submetidos
ao dirigismo do Estado e à censura oficial 2.
Sendo assim, o objetivo está centrado em discutir uma determinada leitura do
passado romano que foi realizada na Espanha logo após o término da guerra civil e a ascensão
de um novo regime. Busca-se perceber a utilização da Arqueologia e da História antiga na
tentativa de legitimar uma “nova Espanha” que estava surgindo, portadora de uma nova
identidade. A questão é: qual identidade? O que passaria a identificar a Espanha como nação?
Quais valores são promovidos? Qual imagem da Roma antiga foi trazida à tona? Por que a
ênfase na Roma imperial? Enfim, por que a comemoração do bimilenário de Augusto na
Espanha? São alguns pontos que serão debatidos a seguir.

A Semana Augustea de Zaragoza (30 de maio – 4 de junho de 1940)

Em 1937, a Itália fascista comemorava, com uma grande festividade, o bimilenário


de nascimento daquele que é considerado o primeiro imperador romano, Otávio Augusto.
Nesse momento, o Duce, Benito Mussolini, se apresentava como o novo Augusto, governante
supremo e continuador da grandeza da Roma imperial. A expansão imperialista italiana no
norte da África era, dessa forma, legitimada, pois se entendia que integrava um projeto
iniciado há mais de dois mil anos, estabelecendo uma linha de continuidade entre a Roma

2
Alguns autores têm debatido essa questão. Joseph Pérez comenta que “a partir de 1938, a imprensa e a edição
ficaram submetidas a uma severa regulamentação: censura prévia, obrigação de inserir comunicados oficiais,
como anúncio de cerimônias e atos públicos” (2006: 651). Essas medidas estavam amparadas na Lei de
Imprensa de 1938 que, segundo Francisco Sevillano Calero, “converteram os periódicos em instrumentos
propagandísticos a serviço do Novo Estado” (1997: 318). Alfonso Lazo complementa que a “a Lei de Imprensa
de 1938 significou a aplicação, a todos os impressos espanhóis, do modelo totalitário, bem como a submissão de
periódicos e revistas ao departamento de Imprensa e Propaganda da Falange Espanhola Tradicionalista”
(1998: 18). As traduções para o português contidas neste texto foram feitas por mim.

36
antiga e a Roma mussoliniana. Andrea Giardina tece alguns comentários acerca da
representatividade dessa comemoração na Itália:

O bimilenário de Augusto ocorreu após a conquista da Etiópia, quando a Itália


fascista assumira uma orgulhosa severidade imperial. Na ocasião, entre tantas outras
celebrações, foi organizada em Roma a ‘Mostra da romanidade de Augusto’, uma
vitrina extraordinária da Roma antiga e do culto fascista da romanidade: os
visitantes eram introduzidos nos usos, costumes, técnicas, cultura do mundo romano,
junto aos valores antigos que a Itália fascista tinha tornado contemporâneos. O eco
na Itália e no exterior foi enorme (2008: 60)3.

Em linhas gerais, esse culto fascista da romanidade surge como a síntese de um


conjunto de valores, de um modelo de organização da sociedade e de exemplos históricos
entendidos como pertencentes à Roma antiga, que auxiliaria na construção do ideal italiano.
Foram privilegiados, nesse momento, alguns aspectos, como o imperialismo romano, sua
força bélica e expansionista, sua unidade, entre outras. É nesse ambiente que é comemorada a
“Mostra da romanidade de Augusto” (Mostra augustea della Romanità; Fig. 1), uma das
mobilizações mais intensas da romanidade na cultura oficial fascista, inserida na celebração
do bimilenário de nascimento do imperador Augusto (63 a.C. – 14 d.C.). Sobre essa
exposição, a historiadora norte-americana Marla Stone aponta que foi

o momento para uma grande exposição arqueológica enfatizando a celebração do


Império romano em seu apogeu. Com a Mostra augustea della Romanità, o fascismo
representou-se como o auge inexorável de milênios de história italiana. A mostra de
Augusto, realizada no coração de Roma, foi uma grande extravagância que reviveu a
“histórica” Roma de Augusto por meio de um discurso empirista acerca da
superioridade romana. Arqueólogos e estudiosos do mundo clássico forneceram uma
representação meticulosa e “científica” de Roma sob o imperador Augusto,
completada com a reconstrução da cidade, além de uma variedade de objetos
artísticos e artefatos do período4 (1999: 215).

3
Ver também: (CAGNETTA, 1976).
4
“the occasion for a vast archaeologically focussed exhibition celebrating the Roman empire at its apex. With
the Mostra augustea della romanità, Fascism represented itself as the inexorable culmination of millennia of
Italian history. The Augustan exhibition, held in the heart of Rome, was a vast extravaganza which revivified the
“historic” Rome of Augustus through an empiricist discourse of Roman superiority. Archaeologists and
classical scholars provided a full and “scientific” depiction of Rome under the Emperor Augustus, complete
with a scale reconstruction of the city, in addition to an enormous array of art and artefacts of the era”.

37
http://www.museociviltaromana.it/museo/storia_del_museo/mostra_augustea_della_romanita (acesso em 22/05/12)
Fig. 1 – Comemoração do Bimilenário de Augusto na Itália – Mostra Augustea della Romanità (setembro de 1937). Edifício
construído para abrigar o evento.

No que concerne à Espanha, embora o culto da romanidade não tenha atingido um


nível tão expressivo se comparado à Itália, podem ser encontradas algumas manifestações,
como é o caso da Semana Augustea de Zaragoza, atividade inserida na comemoração do
bimilenário de Augusto, agora tendo o país ibérico como palco5.
Os atos do referido evento ocorreram entre os dias 30 de maio e 4 de junho de 1940,
em sua maioria nas instalações da Faculdade de Medicina da Universidade de Saragoça, na
cidade de Saragoça. A comemoração deveria ter acontecido em 1937, como na Itália, mas não
foi possível.

El día 30 de mayo comenzó solemnemente en Zaragoza la “Semana


Augustea”. Su fin principal era celebrar el “Bimilenario de Augusto” que a su
tiempo no había podido conmemorar España en 1937, por hallarmos todos
entonces ocupados en la defensa de la Patria6 (EMERITA, 1939: 195).

5
Alguns estudos foram publicados no contexto do bimilenário de Augusto, que, a despeito de terem sido
publicados na Itália, atestam o interesse em torno dessa figura para além das fronteiras italianas. É o caso, por
exemplo, da obra Quaderni Augustei: Gli studi stranieri sulla figura e l’opera di Augusto e sulla fondazione del
Imperio Romano, 1937-1939, escrita coletivamente por especialistas de vários países ocidentais que possuíam
em comum o interesse no estudo de Augusto. O capítulo XVIII, dedicado à Espanha, é escrito pelo historiador
espanhol Fernando Valls Taberner (1888-1942).
6
Em tradução livre: “No dia 30 de março começou solenemente em Saragoça a ‘Semana Augustea’. Seu
principal objetivo era celebrar o ‘Bimilenário de Augusto’, que não foi possível ser comemorado na Espanha
em 1937, pois nos encontrávamos todos ocupados na defesa da Pátria”.

38
Fig.2 – A notícia descreve a
celebração da “Semana
Augustea”, com destaque
para a inauguração da
estátua de Augusto.
(Revista ARAGÓN, ano
XVI, n.166. p.56-57. 1940).

A guerra civil, ocorrida entre 1936 e 1939, que derrubou o governo legítimo da
República por meio de um golpe militar, ocasionando a ascensão do general Francisco Franco
ao poder da Espanha, levou ao adiamento, para o ano de 1940, da comemoração do
bimilenário de Augusto. A realização e a organização do evento couberam ao Conlegium
Augusteum, fundado em 1939, cujo presidente foi o catedrático de Língua e Literatura latinas
e vice-reitor da Universidade de Saragoça, Dr. Pascual Galindo Romeo (1892-1990). A
presidência de honra foi aceita por Francisco Franco e Benito Mussolini, após terem recebido
o convite por meio de cartas escritas em latim7.

7
Ambas as cartas foram remetidas por Pascual Galindo. Foram publicadas em: (EMERITA, 1939: 197-198).

39
Fig. 3 – Cartas enviadas a Francisco Franco e Benito Mussolini convidando-os para serem Presidentes de Honra da Semana
Augustea. Foram remetidas por Pascual Galindo (EMERITA, 1939: 197-198).

Cumpre esclarecer, antes de qualquer coisa, que o fato de a Semana ter ocorrido na
cidade de Saragoça, particularmente na Universidade de Saragoça, teve um significado
importante. Desde o início da guerra civil (18 de julho de 1936), essa universidade, na figura
de seu reitor, Gonzalo Calamita, havia aderido à causa dos insurgentes e colocado à
disposição do exército franquista todas as suas instalações e pessoal. Junto a isso, ganha
destaque a poderosa personalidade de Pascual Galindo na organização do evento, bem como
as estreitas relações com o Ministerio de la Gobernación, comandado por Serrano Suñer.
Todos esses fatores, segundo o historiador Antonio Duplá, favoreceram a organização de um
evento como a Semana Augustea (1997: 568).
O evento contou com a presença de inúmeras autoridades políticas italianas, como o
encarregado de Negócios da Embaixada da Itália, conde Zoppi, que representava o
embaixador italiano, general Gambara; o secretário da Embaixada italiana, marquês de
Cavalleti; o diretor geral do Instituto Italiano de Cultura na Espanha, Salvador Battaglia; o
cônsul geral da Itália em Barcelona, Sr. Berri; o cônsul da Itália em Saragoça, Sr. Piccio; além
de periodistas e demais autoridades. Do lado espanhol, participaram o ministro do Governo,
Ramón Serrano Suñer; o ministro da Educação Nacional, José Ibánez Martin; o prefeito de
Saragoça, Juan José Rivas. Também estiveram presentes outras autoridades nacionais e locais.
Importante destacar a participação em todos os atos do evento do partido político
Falange Española Tradicionalista y de las J.O.N.S. Era o único partido legalizado no interior

40
do regime franquista. Segundo Antonio Duplá, “os dirigentes desse grupo pretendiam
construir na Espanha um Estado fascista similar ao italiano” e, além disso, “é nesse grupo
que encontramos os rastros de uma ideologia classicista, que podemos relacionar com o caso
italiano, embora possua características específicas (2003: 77-78). A partir do exposto é
possível entender o particular interesse dos partidários da Falange em torno da comemoração
do bimilenário, sendo um indicativo da importância do tema clássico na elaboração política e
ideológica do partido. É sintomático, pois, a presença constante no evento do chefe provincial
do partido, Pío Altolaguirre, além das Organizaciones Juveniles e da Sección Femenina.
Do ponto de vista acadêmico, foram proferidas seis conferências de professores
espanhóis e italianos, cujos temas abordavam a Roma antiga, Itália e Espanha: Dr. Perrota
(Catedrático de Filologia Grega na Universidade de Roma) – “Augusto” (Augusto); Dr. Pío
Beltrán (Catedrático do Instituto de Valência) – “Cunhagens do período de Augusto”
(Acuñaciones de época augustea); Dr. Pascual Galindo – “Augusto e a fundação de
Caesaraugusta” (Augusto y la fundación de Caesaraugusta); Salvarore Riccobono (professor
da Universidade de Roma e membro da Academia da Itália) – “Contribuições jurídicas de
Roma a Hispania” (Aportaciones jurídicas de Roma a Hispania); Manuel Torres López
(catedrático de Direito da Universidade de Salamanca) – “Romanização da Hispania na época
de Augusto” (Romanización de Hispania en tiempos de Augusto); B. Pace (arqueólogo de
Roma) – “Roma de Augusto antes e depois das escavações de Mussolini” (Roma de Augusto
antes y después de las excavaciones de Mussolini).
O evento também contou com visitas arqueológicas realizadas nas inúmeras ruínas
de período romano presentes no território aragonês. A imprensa noticiava as visitas:

A primeras horas de la tarde, por iniciativa de las personalidades italianas que


han venido a los actos que se están celebrando, se efectuó una excursión a las ruinas
romanas de Vellila de Ebro, que se llamó en tiempos de César, Julia Celsa. Luego
visitaron Azaila.
Dirigió la expedición e hizo interesantes relatos sobre el origen romano de las
dos villas el doctor don Juan Cabré, director del Museo Cerralbo, que es quien ha
descubierto dichas ruinas. Visitaron también la excavación de Numancia bajo la
dirección del señor Taracena 8 (LA VANGUARDIA ESPAÑOLA, 1940a: 5).

Las personalidades italianas que vinieron a ésta para tomar parte en la


Semana Augustea, visitaron hoy los monumentos de la ciudad y las ruinas de las
antigua Césaraugusta.

8
Em tradução livre: “Nas primeiras horas da tarde, por iniciativa das personalidades italianas presentes na
comemoração, efetuou-se uma excursão às ruínas romanas de Vellila de Ebro, que nos tempos de César foi
chamada de Julia Celsa. Logo visitaram Azaila.
O doutor don Juan Cabré, diretor do Museu Cerralbo, dirigiu a expedição e teceu interessantes comentários
sobre a origem romana das duas vilas. Visitaram também a escavação de Numância sob a direção do senhor
Taracena”.

41
Los profesores, señores Galindo, Alvareda y Picamón ilustraron la visita con
interesantes relatos acerca de los primeros tiempos de Zaragoza.
También visitaron el Museo Provincial9 (LA VANGUARDIA ESPAÑOLA,
1940b: 9).

A organização dessas visitas demonstra a importância conferida à Arqueologia


durante o início do regime franquista. Como uma disciplina que se constitui como um campo
de pesquisa a partir do processo de formação dos Estados-nacionais europeus (DÍAZ-
ANDREU & CHAMPION, 1996; KOHL & FAWCETT, 1995), entende-se que é no contexto
do nacionalismo como teoria política – fim do século XVIII - que a Arqueologia deixa de ser
uma atividade secundária para se converter em um trabalho profissional. Como fonte de dados
que permitiria a reconstrução do passado de uma nação, a Arqueologia está vinculada, muitas
vezes, com a criação e valorização de uma identidade nacional ou cultural, demarcando, desse
modo, seu caráter político (FUNARI, 2003: 99-108). É a partir dessas considerações que essas
visitas ganham um significado político importante: a construção de um discurso sobre a
origem e a identidade romana da Espanha.
Esse discurso aparece em um momento da história espanhola em que um novo
regime buscava se legitimar historicamente, caracterizado como portador de uma forte
retórica ultranacionalista, que concebia a nação como uma comunidade homogênea, avessa a
qualquer tipo de ideia que pudesse romper os elos constituintes de uma suposta identidade
nacional espanhola. E o que a Roma antiga tem a ver com tudo isso? Ela representava o
modelo político. Entendida como a origem da Espanha, esta teria herdado a grandeza daquela.
Sendo assim, o que se enxergava nos restos arqueológicos eram “provas”, que relacionavam
diretamente a identidade nacional espanhola a Roma antiga.
O ato principal e o mais aguardado do evento foi a inauguração de uma estátua de
Augusto, que fora um presente dado por Mussolini a Saragoça, em 1940. A estátua era uma
cópia em bronze de Augusto de “Prima Porta”, cuja original está conservada no Museu do
Vaticano, em Roma. O local escolhido para colocar a estátua, que media 2,75m e pesava 760
kg, foi a Plaza de Paraíso. O ato se converteu em uma grande solenidade, segundo as notícias
veiculadas, ocorrida no dia 2 de junho.

9
Em tradução livre: “As personalidades italianas que vieram participar da Semana Augustea visitaram hoje os
monumentos da cidade e as ruínas da antiga Césaraugusta.
Os professores, senhores Galindo, Alvareda e Picamón, ilustraram a visita com interessantes relatos acerca
dos primeiros momentos de Saragoça.
Também visitaram o Museu Provincial”.

42
Ayer mañana, a las once, se ha efectuado el descubrimiento de la estatua del
Emperador Augusto, que regala el Duce a Zaragoza. Asistieron el ministro de
Educación Nacional, Sr. Ibañez Martín; la esposa del embajador de Italia en España,
general Gámbara; autoridades, jerarquías y profesores italianos y españoles que
toman parte en la “Semana Augustea”10 (ABC, 1940: 8).

En la Plaza de Paraíso aparecía engalanado el monumento que estaba


rodeado de banderas italianas y españolas. Se levantó una tribuna que ocuparon el
ministro de Educación Nacional, el encargado de Negocios de la Embajada de Italia,
conde Zoppi, el general jefe de la Quinta región, general Monasterio; S. E. la
embajadora de Italia, señora de Gámbara, con su hija Mari; los generales Yeregui y
Sueiro, y todas las autoridades de Zaragoza.
Una compañía de Aviación y otra de Infantería rindieron honores. La
organización Juvenil falangista, uniformada, cubría la carrera 11 (LA VANGUARDIA
ESPAÑOLA, 1940c: 5).

Este ato teve uma repercussão considerável nos meios de comunicação,


principalmente em periódicos simpatizantes do regime franquista, como o Aragón e o
Amanecer. Aproveitou-se a ocasião para a abordagem de vários temas relacionados com a
Espanha, Itália e Roma antiga. Um dos assuntos comumente tratados foi o da irmandade
ítalo-espanhola, fundamentada em uma suposta herança histórica comum de latinidade e no
compartilhamento da missão contemporânea em defesa da verdadeira civilização.

Ya está erigida en nuestra plaza la estatua del César Augusto. A lo largo de toda
nuestra guerra y en los pocos días que de esta semana han transcurrido, ha vuelto a
robustecerse el fervor por la latinidad.
[…] Zaragoza, la antigua Cesaraugusta, sigue celebrando con inusitado esplendor la
conmemoración de su imperial fundador. A estas fiestas se ha asociado el Gobierno
italiano, corroborando así una vez más, la hermandad latina de las dos naciones que
bajo el signo de la hispanidad y la romanidad, sellaron su unión en la batalla
civilizadora, uno de cuyos principales escenarios, de resistencia primero, y de
impulso, después, fue, precisamente, el Ebro aragonés y romano 12 (AMANECER, 2
jun. 1940. Citado em DUPLÁ, 1997:569).

10
Em tradução livre: “Ontem de manhã, as onze, houve o descobrimento da estátua do Imperador Augusto, um
presente do Duce a Saragoça. Assistiram o ato o ministro da Educação Nacional, Sr. Ibañez Martín; a esposa
do embaixador da Itália na Espanha, general Gambara; autoridades, dirigentes e professores italianos e
espanhóis participantes da ‘Semana Augustea’”.
11
Em tradução livre: “Na Plaza de Paraíso, o monumento aparecia adornado e rodeado de bandeiras italianas
e espanholas. Foi erigida uma tribuna, que foi ocupada pelo ministro da Educação Nacional, o encarregado de
Negócios da Embaixada italiana, conde Zoppi, o general chefe da Quinta região, general Monasterio, os
generais Yeregui e Sueiro, e todas as autoridades de Saragoça.
Renderam honras uma companhia de Aviação e outra de Infantaria. A organização Juvenil falangista,
uniformizada, marcou presença”.
12
Em tradução livre: “Já está erigida em nossa praça a estátua de César Augusto. Ao longo de toda nossa
guerra, e nos poucos dias transcorridos nesta semana, foi novamente fortalecido o fervor da latinidade.
[...] Saragoça, a antiga Cesaraugusta, segue celebrando com inusitado esplendor a comemoração de seu
imperial fundador. O governo italiano está associado a esta comemoração, corroborando uma vez mais a
irmandade latina entre as duas nações, que, sob o signo da hispanidade e da romanidade, selaram sua união na
batalha civilizadora, contando como um dos principais cenários, primeiro de resistência e depois de impulso, o
Ebro aragonês e romano”.

43
Fig. 4 – Notícia sobre o
presente dado por
Mussolini a Saragoça. O
tom é de agradecimento e
a estátua de Augusto
como o laço de união
entre italianos e espanhóis
(Revista ARAGÓN, ano
XVI, n.164. p.19. 1940).

A “batalha civilizadora” mencionada no texto se refere à ajuda do governo italiano


aos insurgentes, liderados pelo general Franco, durante a guerra civil espanhola. Vale dizer
que os anos de 1939 e 1940 foram pródigos em atos de reafirmação da amizade entre a
Espanha e a Itália, cujo auxílio fora decisivo para o triunfo do grupo franquista. O momento
era, então, de agradecimento pelo esforço de guerra italiano.

Este regalo del Duce a la vieja Cesaraugusta y la aceptación por su parte de la


presidencia de honor en la Junta del Bimilenario, constituyen el remate, corona y
cifra de tantos presentes como Italia viene haciendo a España, de un modo especial
en estos últimos tiempos: presentes de sangre legionaria, de material bélico, de
aliento contra la incomprensión, la torpeza y la maldad13 (ARAGÓN, 1940a: 19).

Após a cerimônia de descobrimento da estátua, o representante italiano, conde Zoppi,


e o prefeito de Saragoça, Juan José Rivas, pronunciaram discursos que enfatizavam essa

13
Em tradução livre: “Este presente do Duce à velha Cesaraugusta, e o seu aceite como presidente de honra da
Junta do Bimilenário, constituem a jóia entre todos esses presentes que a Itália vem dando para a Espanha de
modo especial nestes últimos tempos: presentes de sangue legionário, de material bélico, de apoio contra a
incompreensão, a tolice e a maldade”.

44
suposta irmandade milenar que havia encontrado a ocasião para ressurgir. Augusto, nesse
sentido, simbolizava a ligação entre italianos e espanhóis, pois era tido como o fundador de
Saragoça, a antiga cidade de Caesaraugusta. Fato que não passaria despercebido no discurso
das duas autoridades. Antes disso, foram executados os hinos nacionais, espanhol e italiano, e
a seguir conde Zoppi foi o primeiro a discursar:

Cuando César Augusto quiso crear en el Occidente del Imperio un


fundamento seguro de la civilización romana, fundó en el corazón de la generosa
tierra aragonesa la ciudad de Zaragoza junto a la antigua Salduba.
[...] Italia fué la primera nación que reconoció a vuestro Caudillo y envió a
Salamanca a su primer embajador, acto que cantó un gran poeta vuestro,
interpretando el gesto del Duce como un acto de fe: Creo en España.
Confiándoos hoy la estatua de bronce de Augusto, que no fue solamente el
fundador de vuestra ciudad, sino el fundador del Imperio, el Duce os dice mucho
más que ‘Creo en España’. Os dice: ‘Creo en la grandeza de España 14 (ARAGÓN,
1940b: 56).

Dando prosseguimento, foi a vez de Juan José Rivas se pronunciar:

En nombre de la ciudad, orgullosa por su origen y por su nombre, al sentirse


romana y augustea, recibió la estatua que el Duce de Italia ha regalado a Zaragoza y
España.
Desde el primer momento de la lucha comprendió Italia la verdad de España
y defendió con su sangre, siendo la primera nación que envió a Salamanca su
embajador, como poco después tantos bravos hijos de Italia que vertieron su sangre
junto a los soldados de España. Zaragoza conserva en su cementerio gran parte de
estos heroicos italianos, y mucho se honra en ello.
Esta estatua, pues, de nuestro fundador, nos recordará los motivos de
agradecimiento que tiene Zaragoza y España entera para con la nación italiana y su
Duce.
Augusto trajo al mundo entonces la paz. Quiera Dios que esta venida de
Augusto en efigie a Zaragoza sea también nuncio de una paz basada en la justicia,
único modo de que sea fecunda y duradera15 (ARAGÓN, 1940b: 57).

14
Em tradução livre: “Quando César Augusto quis criar no Ocidente do Império um fundamento seguro de
civilização romana, fundou no coração da generosa terra aragonesa a cidade de Saragoça junto à antiga
Salduba.
(...) A Itália foi a primeira nação a reconhecer vosso Caudilho e enviou à Salamanca seu primeiro
embaixador, ato que cantou um grande poeta vosso, interpretando o gesto do Duce como um ato de fé: Creio na
Espanha.
Confiando-lhes hoje a estátua de bronze de Augusto, que não foi somente o fundador de vossa cidade, mas o
fundador do Império, o Duce diz muito mais que ‘Creio na Espanha’. Diz: ‘Creio na grandeza da Espanha’”.
15
Em tradução livre: “Em nome da cidade, orgulhosa por sua origem e por seu nome, ao se sentir romana e
augusta, foi recebida a estátua que o Duce da Itália presenteou a Saragoça e a Espanha.
Desde o primeiro momento do conflito, a Itália compreendeu a verdade da Espanha e a defendeu com seu
sangue, sendo a primeira nação a enviar seu embaixador à Salamanca, assim como pouco tempo depois muitos
bravos filhos da Itália verteram seu sangue juntos aos soldados da Espanha. Saragoça conserva em seu
cemitério grande parte desses heróicos italianos, e muito se honra disso.
Esta estátua, pois, de nosso fundador, nos recordará os motivos de agradecimento que possui Saragoça e
toda a Espanha para com a nação italiana e seu Duce.
Augusto trouxe ao mundo a paz. Queira Deus que esta vinda de Augusto em efígie a Saragoça seja também
prenuncio de uma paz baseada na justiça, única forma de que seja fecunda e duradoura”.

45
Ambos os discursos tratam da relação entre as duas nações latinas que, por se
entenderem descendentes da mesma fonte geradora, Roma, estiveram sempre unidas ao longo
da história. Percebe-se, a partir disso, uma determinada visão que estabelece uma ideia de
continuidade, vista como atemporal e, até mesmo, a-histórica, entre a Roma antiga e as nações
modernas. A noção de descendência cumpre um importante papel nesse sentido, pois o
significado da ajuda italiana aos insurgentes espanhóis, mesmo que influenciada por fatores
de interesse econômico, compatibilidade ideológica ou de natureza diversa, ganhava sentido
ao se enfatizar a irmandade latina entre Itália e Espanha, onde a imagem da Roma antiga
como a “pátria mãe” era determinante para a solidariedade no campo de batalha, mesmo
transcorridos dois milênios. Não houve espaço, nesse contexto, para o acaso e a contingência
histórica, pois quando se recorre à origem para justificar uma situação, postula-se
necessariamente um destino inevitável.
Outro elemento importante a ser destacado, é o papel que uma imagem da Roma
antiga desempenhou na (re) construção identitária da Espanha. Após a vitória na guerra civil,
era o momento de se estabelecer uma nova identidade da nação espanhola, fundamentada nos
valores tradicionais que caracterizavam o povo espanhol como uma comunidade homogênea,
uma espécie de “unitarismo radical” (TUSELL, 2001: 403), representada pela noção de uma
Espanha “Una, Grande y Libre”16. Recusavam-se os valores tidos como característicos da
Espanha republicana como o liberalismo, o materialismo, o separatismo, a aproximação com
o comunismo, entre outros. Sendo assim, surgiam exemplos, em vários momentos do passado,
dessa Espanha idealizada e perfeita pretendida pelo novo governo e por uma grande parte do
povo espanhol. Digno de destaque, nesse sentido, foi a época do imperialismo colonial
espanhol durante os séculos XVI e XVII, visto como uma época áurea da nação, marcada pela
unidade política, territorial e cultural, onde a identidade espanhola está diretamente vinculada
com o catolicismo (SAZ CAMPOS, 1999).
A “nova Espanha” que estava surgindo buscava no passado elementos que pudessem
fundamentar uma identidade nacional. Durante a comemoração da qual estamos tratando,
Augusto era uma figura que deveria ser conhecida pelos espanhóis, pois fazia parte de um
passado glorioso.

16
De acordo com o historiador Joseph Pérez, os primeiros anos do franquismo foram marcados por “um período
de manifestações pomposas, desfiles, viagens à Alemanha e à Itália, declarações orgulhosas a favor de uma
Espanha una – contra os separatismos –, grande – a esperança de um destino imperial, com conquistas
territoriais na África – e livre da dominação estrangeira, em particular da Inglaterra, acusada de explorar o
país desde o século XIX. ‘Una, grande, livre’ foi o lema da Espanha franquista” (2006: 647).

46
¿Como pudo transcurrir tantos tiempos en el olvido la figura del gran
Emperador romano que echó los cimientos de nuestra ciudad?
Vivía, sí, en la mente de los eruditos; tropezaban con ella los rebuscadores de
cosas viejas, entre el polvo de los archivos, y en la pátina que recubre los muros y
abraza la piedras miliarias; pero el pueblo, aun aquel que no puede ser llamado
‘vulgo’, desconoce la enorme figura histórica de César Augusto que da su nombre a
un siglo, y contempla con indiferencia los numerosos vestigios de la dominación
romana en España.
¡Oh, qué majestuosamente señoreara una de nuestras viejas plazas o calles,
singularmente las que más sabor tengan la romanidad, la estatua de César Augusto
enviada por el Duce!
Por ella, vendrán en conocimiento de nuestro abolengo los que hasta ahora lo
desconocían, y aprenderán a amar la ciudad romana, después cristiana fidelísima, y
hoy para siempre española como la que más. Es hora de revalorizar los pergaminos
de nuestra raza. Hombres pérfidos o mal aconsejados pretendieron hacer almoneda
con ellos, y ha sido preciso un enorme y sangriento sacrificio para evitar el
sacrilegio.
Se evitó, y sobre el pavés se levantan de nuevo nuestros valores morales
comenzando por el catolicismo. No podía faltar nuestra romanidad.17 (ARAGÓN,
1940a: 19). Grifos meus.

Em vista do exposto, percebe-se que a figura de Augusto ganhou uma importância


muito grande na Espanha no início do governo franquista. Durante a comemoração do seu
bimilenário de nascimento foi reverenciado e digno de lembrança pelos espanhóis. Cabe, no
entanto, questionar os motivos que levaram o governo a organizar um evento desse tipo.
Quais interesses envolvidos que explicam o poder de atração provocado por Augusto? A
quais valores ele aparece associado? Por que não outro governante romano? Enfim, por que
Augusto foi importante para a Espanha franquista, a ponto de ter uma comemoração de uma
semana dedicada à sua memória?
Em primeiro lugar, tanto a Roma antiga como Augusto são vistos como modelos de
perfeição política, importantes para o contexto espanhol. Roma, sob o governo augustano, foi
grandiosa: conquistou grandeza imperial e civilizadora; Augusto foi um líder autoritário
portador da virtus romana; logrou êxito em construir um império harmonioso e integrado,
erigindo uma muralha contra a barbárie circundante; colocou ordem no caos e dotou de

17
Em tradução livre: “Como pôde transcorrer tanto tempo no esquecimento a figura do grande Imperador
romano que lançou as bases da nossa cidade?
Vivia, sim, na mente dos eruditos; tropeçavam nela os que buscavam coisas velhas, entre a poeira dos
arquivos, e na pátina que recobre os muros e as pedras milenárias; mas o povo, mesmo aquele que não pode ser
chamado de “vulgo”, desconhece a enorme figura histórica de César Augusto, que dá seu nome a um século, e
contempla com indiferença os numerosos vestígios de dominação romana na Espanha.
Oh, como impera majestosamente em uma de nossas velhas praças, singularmente a que tem mais sabor de
romanidade, a estátua de César Augusto enviada pelo Duce!
Por meio dela conhecerão a nossa ascendência os que até agora a desconheciam, e aprenderão a amar a
cidade romana, depois fidelíssima cristã, e hoje espanhola, acima de tudo. É o momento de revalorizar os
pergaminhos da nossa raça. Homens pérfidos ou mal aconselhados pretenderam acabar com isso, e foi preciso
um enorme e sangrento sacrifico para evitar o sacrilégio.
Evitou-se, e sobre o solo se levantam novamente nossos valores morais, começando pelo catolicismo. Não
podia faltar nossa romanidade”.

47
unidade e sentido um vasto território: foi a partir dessa ação que a Espanha tomou consciência
de ser uma nação e aprendeu a agir como um império.

Por ello, al honrar a Augusto que, por la creación del Imperio y sumisión de los
Cántabros, permitió la romanización de España, logró su unificación e hizo posible
la hispanización posterior de Roma, honramos no sólo nuestra acta de nacimiento
como ciudad, sino también el punto de partida de toda una trayectoria histórica de
universalización del genio de España, disperso hasta entonces en particularidades
localistas18 (AMANECER, 2 de jun. 1940. Citado em DUPLÁ, 1997: 569).

Augusto ainda forjou uma ordem social, política e familiar, o que assegurou a Pax
romana, após décadas e décadas de conflitos civis e guerras sangrentas. Foi o legislador e
construtor da paz, que criou um estado unido mediante leis aplicadas igualmente a todos os
cidadãos.
Essa é a imagem de Augusto que é apresentada durante a comemoração. Além de ter
sido um governante que atendeu aos interesses de Roma, teve seu destino ligado à “fundação
da Espanha”. Mas não se trata somente do “fundador”: como inspiração e modelo político,
essa construção da imagem de Augusto mostrava que a Espanha do início da década de 1940
possuía também o seu Augusto: um guerreiro que enfrentou seus adversários e saiu vitorioso
de uma guerra civil; um homem que colocou sua própria vida em risco em defesa dos valores
tradicionais da “Pátria”; sendo vencedor, foi o artífice de uma autêntica “Nova Ordem”,
marcada por um período de paz, de unidade e de profundas transformações políticas e sociais.
Todos esses feitos de Augusto também podem ser atribuídos ao Caudillo Francisco Franco, o
“novo Augusto”.
De fato, o que se tem é a construção de uma narrativa que estabelece um suposto
paralelismo histórico entre as trajetórias de ambos. Essa narrativa supõe a existência de um
modelo explicativo cíclico e fechado: 1) guerra civil, caos; 2) paz, restauração, ordem, e 3)
futuro glorioso, “fim da história”. É um entendimento compartilhado, por exemplo, pelo
principal idealizador do evento, Pascual Galindo, em uma conferência sobre o bimilenário de
Augusto:

Después de tanta guerra, de tanta corrupción, vienen las ansias de paz y


restauración; comienza el futuro glorioso de Roma. Se cierra el ciclo de los 104 años.
Precisamente ciclo de igual duración al que España está viviendo desde la muerte de
Fernando VII (1883) – en que se abre el período de nuestras luchas civiles a causa

18
Em tradução livre: “Por isso, prestar honras a Augusto que, pela criação do Império e submissão dos
cântabros, permitiu a romanização da Espanha, conseguiu sua unificação e tornou possível a hispanização
posterior de Roma, honramos não só o nosso marco de nascimento como cidade, mas também o ponto de
partida de toda uma trajetória histórica de universalização do gênio da Espanha, disperso até então em
particularidades localistas”.

48
de la modificación del testamento del monarca – hasta los días actuales en que la
sangre de nuestros mártires y héroes y la singular clarividencia político militar de
nuestro Caudillo y la Providencia levantan una España nueva 19 (ARAGÓN, 1938:
10).

A trajetória política de Augusto e da Roma antiga tornou-se um “exemplo histórico”


para Franco. Desse modo, a “nova Espanha” que estava surgindo seguia os mesmos passos da
Roma antiga após a ascensão de Augusto. Uma visão, pois, teleológica, onde o presente se
reconhece pelo passado.
Sendo assim, a partir de uma crítica que apresenta os relatos sobre o passado como
discursos, como construções historiográficas, isto é, marcados por interesses do momento
presente, pode-se afirmar que a comemoração do bimilenário de Augusto na Espanha
apresenta um elemento discursivo que, antes de querer tratar da Roma antiga e de Augusto, o
que se consegue é falar da própria Espanha. Utilizaram uma imagem de Roma para identificar
e fundamentar suas próprias aspirações políticas. Os franquistas chegaram ao poder se
apresentando como uma força que uniria a Espanha e os espanhóis após um longo tempo de
desunião e falta de sentido nacional (Pax hispana). A partir disso, o Império romano foi
interpretado como uma fonte de estabilidade e tradição (Pax romana). O que se “esquece”, no
entanto, é que o Império romano pode não ter sido esse modelo tão sonhado de unidade e paz.
Alguns autores têm chamado a atenção para o aspecto discursivo da produção
historiográfica sobre a Roma antiga, e novas leituras estão sendo propostas. Nessa
perspectiva, Richard Hingley, em um texto recente (2010a), deixa claro desde o início o tema
que será desenvolvido: a diversidade cultural do mundo romano antigo. Aponta que o seu
objetivo é “explorar um aspecto da relação entre o mundo da Roma antiga e os nossos
tempos atuais, ao destacar uma perspectiva que se desenvolve no interior dos estudos
clássicos: a análise da diversidade, pluralidade e heterogeneidade culturais” (p.67).
Portanto, ao invés de se enfatizar a unidade, a homogeneidade, o consenso, a romanização,
entendida como o triunfo de uma cultura superior ou mais avançada em relação às
comunidades primitivas, busca-se perceber nesse passado formas de resistência, de
perspectivas plurais, demonstrando que nem todos os povos se submetiam a Roma por
entendê-la como uma civilização e cultura superiores.

19
Em tradução livre: “Depois de tanta guerra, de tanta corrupção, vem o desejo de paz e restauração; começa o
futuro glorioso de Roma. Encerra-se o ciclo de 104 anos. Precisamente o ciclo de mesma duração que a
Espanha está vivendo desde a morte de Fernando VII (1883) – no período em que irrompem as lutas civis por
causa da alteração do testamento do monarca – até os dias atuais onde o sangue de nossos mártires e heróis, a
singular clarividência político-militar de nosso Caudilho e a Providência constroem uma nova Espanha”.

49
Esse tipo de abordagem alimentou o desenvolvimento de uma historiografia dita pós-
colonial ou, nas palavras da historiadora Regina da Cunha Bustamante, uma “produção
historiográfica descolonizada”. Segundo a autora:

Vários autores que carregam consigo essa visão pós-colonial na historiografia


enfatizam a resistência dos povos submetidos ao domínio romano como, por
exemplo, a religião onde as divindades indígenas e púnicas sobreviviam e
continuavam a ser cultuadas, mesmo que sob aparência romana. Ou então, a
manutenção das línguas púnicas e berbere e a seleção de nomes de origem púnico-
berbere (documentados pela epigrafia) quando da aquisição da cidadania romana, o
que demonstraria a africanidade mesmo por parte dos africanos romanizados (2004:
36-37).

Outro aspecto que vale problematizar é a imagem de Augusto como o responsável


pela criação do Império romano. A ideia de uma paz conquistada no campo de batalha, após
uma guerra civil, o que possibilitou o restabelecimento da ordem, tornou possível traçar um
paralelismo entre Franco e Augusto. Porém, em nenhum momento da comemoração de seu
bimilenário Augusto aparece descrito como o restaurador da República. É vinculado com a
expansão imperial e o imperialismo. Uma representação que cabia naquele momento, pois o
desejo era justamente se dissociar de qualquer vestígio da ordem republicana. Na construção
de Francisco Franco como o “novo Augusto” foi preciso “deixar de lado” o fato de que o
próprio Augusto se entendia como o restaurador, e não destruidor, da ordem republicana20.
Em síntese, pode-se afirmar que a imagem de Roma e de Augusto auxiliou na
construção de uma nova identidade espanhola, de uma “nova Espanha”. Assim como é
possível dizer que uma determinada imagem da Roma antiga e de Augusto foi construída aos
moldes franquistas. Quando nas fontes aqui trabalhadas aparecem assertivas do tipo “É o
momento de revalorizar os pergaminhos da nossa raça”, ou quando se fala em “nossa
romanidade”, referindo-se aos espanhóis, o que se pretende demarcar é a ideia de legado, de
herança cultural, de origem, quer dizer, os espanhóis teriam herdado valores romanos. Quanto
a isso, nada é mais propício que a noção de uma origem em comum para forjar o ideal de
nação, pois é em nome de uma herança e ancestralidade que é julgado o direito de pertencer
ou não a uma comunidade 21, quer dizer, “definir uma origem torna-se definir um modelo
ético, um modelo político, uma raça, uma nação, uma missão e um destino, e, também, o

20
Em seu relato autobiográfico, no qual descreve os seus feitos, Augusto diz: “Aos dezenove anos, formei um
exército por minha iniciativa e às minhas custas. Com ele restituí à liberdade a república oprimida pelo domínio
de uma facção [...]” (RES GESTAE DIVI AVGVSTI, I).
21
“O sentido de pertencimento é vital para uma definição própria de identidade nacional, e a ligação de
identidades étnicas a certos tipos de evidências arqueológicas tornou-se um instrumento poderoso na Inglaterra
como em vários países europeus” (HINGLEY, 2005: 30).

50
valor dos que não pertencem a essas definições” (SILVA; MARTINS, 2008: 52). Ou seja,
utiliza-se uma categoria interpretativa que estabelece a ideia de um desenvolvimento linear, a
partir de um passado tido como original que permeia o presente como seus hábitos, valores,
cultura. É esse o significado da romanidade citado acima.
Contudo, é necessário entender essa tentativa de vincular a Roma antiga à Espanha
franquista não como uma imagem de herança cultural direta do passado, mas como uma
releitura, onde o próprio passado está em constante processo de interpretação através de
olhares contemporâneos.

Considerações finais

O presente texto se propôs a discutir como o passado romano teve um importante


papel na definição da identidade nacional espanhola no início dos anos 40, momento pós-
guerra civil, quando o governo de Francisco Franco tentava legitimar e consolidar seu poder.
Foi um momento de forte nacionalismo e de aproximação ideológica com a Itália fascista. A
compreensão da Espanha, pelos franquistas, como uma comunidade pautada pela
homogeneidade cultural e unidade nacional, tornou necessário a busca de uma nova
identidade que viesse corroborar a ideia de uma povo único, com características próprias,
compartilhando os mesmo valores e herdeiros de uma mesma “fonte geradora”. Como foi
exposto, o catolicismo foi visto como um dos elementos centrais da identidade espanhola.
Outro elemento definidor dessa identidade foi a romanidade, entendida como uma herança
cultural deixada pela Roma antiga à Espanha. A figura de Augusto, portanto, servia para
enfatizar essa ideia, como o fundador de Saragoça.
Contudo, é necessário entender essa tentativa de vincular a Roma antiga com a
Espanha franquista, como foi dito acima, não como uma imagem de herança cultural direta do
passado, mas como uma releitura daquele passado – por vezes, pensando a herança cultural
como forma de justificar e legitimar questões contemporâneas, pois cada época, baseada em
valores de seu momento presente, tentou resgatar um determinado tipo de passado de acordo
com suas necessidades identitárias, buscando estabelecer as idéias de herança cultural e
continuidade histórica.
Nesse sentido, as fontes de pesquisa aqui utilizadas devem ser entendidas como
discursos sobre o passado romano e não como portadoras de um retrato fiel e transparente. Ao
mesmo tempo que se forjava uma nova identidade espanhola, construía-se uma imagem de
Roma. Ressaltou-se, comumente, no passado romano sua expansão imperial, seu

51
imperialismo, sua unidade, sua força bélica, sua literatura, suas construções e sua arte: cada
um desses tópicos ganhava maior ou menor destaque dependendo do momento histórico em
que este passado era “resgatado”.
Durante a Semana Augustea, Roma aparecia como o modelo de civilização, de
imperialismo, e Augusto como o governante de um grande império, o artífice da Pax Romana,
que levou harmonia a Roma e às províncias. Desse modo, tanto Mussolini quanto Franco
apareciam como seus herdeiros, continuadores da sua missão imperial. Além disso, no caso
espanhol, a idéia de uma paz conquistada no campo de batalha, após uma guerra civil, que
tornou possível o restabelecimento de uma ordem, possibilitou um discurso que aproximava
ainda mais a figura de Franco com a de Augusto. Porém, em nenhum momento Augusto
aparece descrito como o restaurador da República. É vinculado com a expansão imperial e o
imperialismo. Uma representação que cabia naquele momento, onde justamente era a imagem
da República espanhola que se queria apagar. Na construção de Francisco Franco como o
“novo Augusto”, foi preciso “esquecer” que o próprio Augusto se entendia como o
restaurador, e não destruidor, da ordem republicana.
Enfim, estamos diante da construção do passado pelo presente, onde esse passado
nada mais faz do que justificar e legitimar questões contemporâneas.

Agradecimentos
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Pedro Paulo Funari, aos professores Glaydson José da
Silva, Renata Senna Garraffoni, Aline Vieira de Carvalho, Antonio Duplá, José Geraldo Costa
Grillo, Renato Pinto e Marina Cavicchioli. Aos colegas Andrés Alarcón, Filipe Silva, Pedro
Fermín e Rafael Monpean. A responsabilidade pelas ideias limita-se a seu autor.

Fonte
- antiga
RES GESTAE DIVI AVGVSTI. Texto latino com tradução de Matheus Trevisan e Antônio
Martinez de Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

- modernas
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54
O LEGADO ROMANO NA INGLATERRA VITORIANA

Renata Cerqueira Barbosa1

(…) Era no interesse de muita gente, claro, que grande parte dessa cultura pagã
deveria ser reivindicada em segurança para a “civilização”. O custo deveria ser a
reinterpretação, o expurgo ou, em último caso, a censura daqueles aspectos da
literatura clássica que não combinassem com a imagem vitoriana de uma cultura
civilizada. (...) (BEARD & HENDERSON, 1998: 87)

Essa passagem de Mary Beard e John Henderson resume grande parte da intenção,
bem como da exposição argumentativa desse capítulo. A Antiguidade Clássica tem sido
retomada em determinados momentos históricos buscando sempre precedentes para afirmar
ou legitimar atitudes políticas, religiosas e militares entre outras. Uma prova é a educação
voltada à cultura clássica com o fim de trazer valores cultivados pelas sociedades em seus
momentos.
Segundo Clarke (1959: 1-3), a história da educação clássica na Inglaterra teve seu
início em “78 d.C. quando o governador romano Agrícola, após os sucessos militares com os
quais seu governo começou, tomou medidas para vincular seus súditos mais perto de Roma”.
Sob o Império Romano, estabeleceu-se um sistema de educação baseado no estudo da
imitação dos melhores modelos da literatura, além de língua e literatura gregas. A gramática
grega começa com Homero e Menandro entre outros, e a romana se concentrou em Virgílio,
Menandro Romano e Terêncio. De acordo com o autor, Salústio foi lido nas escolas no
império tardio, porém, por outro lado, a escrita em prosa foi geralmente ignorada. A tradição
da escola romana, embora sobrevivesse levemente, estava muito enfraquecida na Idade
Média; no entanto, não houve falta de escolas secundárias e, apesar de evidências sobre o
currículo serem escassas, ao que parece, nessas escolas o aluno poderia ler algumas obras de
Ovídio e Virgílio, além de poder compor versos latinos.
Na opinião de Chervel e Compère (1999: 149), do “homem honesto” da Antiguidade
Clássica ao “homem cultivado” da época contemporânea, o indivíduo que essa tradição forma
é aquele que, devido à prática dos textos e dos autores, ao contato com as civilizações
fundadoras, por meio do exercício da tradução, da imitação e da composição, adquiriu o
gosto, o senso crítico, a capacidade de julgamento pessoal e a arte de se exprimir oralmente e
1
Pós-doutoranda/Unicamp.

55
por escrito, conforme as normas recebidas. Esse ideal visado provavelmente conheceu, no
decorrer dos séculos, diversas definições. O homem que se enquadra nesse horizonte das
humanidades foi o cristão do colégio jesuíta, o cidadão das luzes, o republicano dos liceus
modernos, ou o gentleman vitoriano. Nesse sentido, no ensino tradicional inglês, as
humanidades clássicas se definiam por uma educação estética, retórica, mas também moral e
cívica.
As humanidades remontam, sem interrupção, às artes liberais antigas. O modelo de
formação proposto foi fixado por Isócrates 2 na Atenas do século IV a.C e posteriormente
herdado pelos romanos. Segundo Chervel e Compère (1999: 150), no conteúdo escolar, elas
constituem a quase totalidade do ensino de 5ª a 8ª séries até meados do século XIX, ao menos
nos cursos tradicionais. A literatura latina, ou seja, os autores romanos e os exercícios de
composição em latim constituíram seu eixo.
Nesse sentido, a historiografia grega foi portadora da reflexão sobre a História e a matriz
retórica da escrita histórica moderna, assim como a tradição clássica latina contribuiu
fortemente para a formação da historiografia moderna na época humanístico-renascentista,
sobretudo por meio da reflexão retórica e filosófica de Cícero. Segundo Gabriella Albanese, é
necessário esclarecer que a própria definição de historiografia, entendida no Renascimento e
na Época Moderna como ars da escrita da História, “é rigorosamente dependente da teorética
historiográfica fixada pela retórica clássica grega e latina, de Aristóteles a Luciano, de Cícero
a Quintiliano” (ALBANESE, 2009: 279-286).
Contudo, tanto na educação e literatura, quanto nos ideais políticos e morais, a
grandiosidade que foi Roma tem sido muitas vezes ofuscada pela glória que foi a
Grécia. Goëthe e Shelley, Matthew Arnold e Walter Pater têm seduzido os comentaristas a
concentrar-se na influência dos gregos e não dos romanos. Desde 1980, Richard Jenkyns,
Frank Turner e Hugh Lloyd-Jones representaram a herança grega na Inglaterra Vitoriana, mas
a herança romana é ainda largamente inexplorada. No entanto, o legado de Roma não
importava apenas para o clássico educado, mas para a multidão: na política, na guerra e na
engenharia civil, bem como na literatura, houve sentimento generalizado de conexão
fundamental com Roma e não com a Grécia (VANCE, 1988: VI).
2
Segundo Moses Finley, Isócrates “tem arcado, por mais de dois mil anos, com a culpa de ter sido o homem que
implantou o ponto de vista retórico... na política, na educação e na historiografia”. Daí em diante a retórica
ocupou lugar de honra na instrução superior, num esquema que logo foi canonizado no que os romanos
chamaram as sete “artes liberais”. Os quatro estudos preliminares compreendiam o que Isócrates denominava de
“ginástica da psique”, matemática subdividida em aritmética, geometria, música (ou harmonia) e astronomia. As
três disciplinas avançadas destinavam-se ao ensino do bem falar e da persuasão: gramática, que era uma
combinação do estudo da linguística e da história da literatura, retórica e dialética. Esse princípio passou dos
gregos antigos para o mundo bizantino e dos romanos para o oeste latino (FINLEY, 1989: 215).

56
Tornou-se habitual que a mitologia greco-romana estivesse onipresente na poesia
inglesa. Durante o Renascimento, foi principalmente o legado de Ovídio, seus herdeiros e
comentaristas que foi retomado. No entanto, no século XIX, prevaleceu a obsessão por tudo
que fosse de origem grega, o que não só desprezou Ovídio, como o substituiu por versões
menos bem sucedidas do ponto de vista artístico. Nesse sentido, a historiografia se refere
muitas vezes aos romanos como o primeiro povo a converter a herança de sua cultura na base
de sua própria civilização. Porém, mais do que imitação, deve-se falar de assimilação
criadora. É curioso notar que o processo se verifica também no campo religioso.
Efetivamente, se há organizações sacerdotais como os flâmines e os pontífices e divindades
como Jano, os Penates e os Lares, que são estritamente romanos, desde cedo os deuses itálicos
se identificam, na maioria, aos gregos, e muitas teses recentes sobre a helenização encontram
cada vez mais apoio nas descobertas arqueológicas (PEREIRA, 1989: 39).
Toda a arte e a literatura de Roma se desenvolveram à sombra da Grécia. Seus
próprios poetas proclamaram esse fato: a Grécia cativa capturou seu conquistador rude e
trouxe a arte para o rústico Lácio, (...) disse Horácio (Epístolas, 2, 1, 156 y ss). Por esse
motivo se diz que os romanos foram um povo imitador e seu papel principal na história da
civilização europeia foi a de conduzir por meio da cultura grega o legado cristão. De acordo
com Richard Jenkyns (1995), ironicamente, esse ponto de vista é uma herança dos romanos,
os quais possuem uma mistura sutil de orgulho e modéstia. Todo o mundo lhes concede
grandeza militar; poucos negam a grande qualidade de sua poesia e em geral se reconhece que
se sobressaiu em engenharia, jurisprudência e no sistema sanitário. Alguns lhes concederam
um pouco mais. Em pleno auge da “grecomania”, em 1821, Shelley escreveu no prefácio a
Hellas (1991):

Todos somos gregos. Nossas leis, nossa literatura, nossa religião, nossas artes têm
suas raízes na Grécia. Sim, Grécia; Roma, a mestre, a conquistadora, a metrópole de
nossos antepassados não haveria difundido com suas armas o conhecimento e
seríamos ainda selvagens e idólatras. O que é pior, poderíamos ter herdado um
estado de instituição social tão estagnado e miserável como a China e o Japão.

Essa declaração dá certo valor às armas e as instituições romanas, mas apenas como
um meio de estender o conhecimento grego. Arnold Toynbee considerou a civilização romana
como uma simples subespécie do helenismo, a continuação da cultura grega sob a égide de
um Estado universal. Jenkyns pergunta sobre a variedade e amplitude da contribuição romana.
Segundo ele, é preciso haver uma resposta se se pretende estudar o alcance da influência de

57
Roma nos séculos posteriores. Porém, antes, deve-se considerar o que se entende por
influência. Richard Jenkyns, (1995: 12) distingue três tipos:
A Influência básica: a fonte de informação (fonte histórica/documento) é base e
condição necessária para a influência. A arquitetura renascentista é inconcebível sem os
modelos clássicos, ou o “Paraíso Perdido” sem a tradição épica clássica.
A Influência auxiliar: a fonte não é propriamente a base, mas proporciona apoio e
coerência. Provavelmente as tragédias de sangue inglesas não haveriam sido muito diferentes
sem Sêneca, mas transforma-se no senequismo3 como um possível modelo. Na Inglaterra dos
séculos XVII e XVIII, encontramos atitudes sociais e políticas baseadas sem nenhuma dúvida
na história e sociedade inglesas, porém podem ter sido formadas e estabilizadas pelo
estoicismo e por um conhecimento da filosofia ciceroniana.
Influência decorativa: a fonte proporciona uma elegância superficial ou o pretexto ou
ponto de partida. No século XVIII, as citações clássicas na Câmara dos Comuns eram as
provas que o orador tinha desfrutado da educação de um cavaleiro, porém não eram mais que
uma forma combinada de alarde cultural.
Nas palavras do Jenkyns, “estas distinções são algo toscas e rápidas e os limites entre
elas incertos, porém podem ser úteis como guias”. Os romanos foram o único povo que
realizou a unificação da totalidade do litoral mediterrâneo sob uma só autoridade e manteve
seu império durante séculos, o que constitui um dos feitos mais notáveis da História. O
renascimento italiano havia desenvolvido uma teoria de humanismo cívico baseada em
Cícero, Sêneca e Tito Lívio. Os “Discursos sobre Tito Lívio” de Maquiavel inspiraram a
Commonwealth of Oceana de James Harrington, escrita durante o protetorado de Cromwell, e
passaram dessas fontes ao pensamento político do século XVIII, reguladas por uma
constituição mista. E deve-se pensar não só na teoria política, mas também em um conceito
formado em uma educação clássica. Os oradores, poetas e historiadores latinos estavam na
mente dos políticos do séc. XVIII; sua forma de pensar era inconscientemente senatorial.
De acordo com Jenkyns (1995: 14-15), é difícil rastrear uma influência quando foi
tão absorvida como essa, porém parece razoável afirmar que a constituição mista da república
romana tem sido uma influência básica na teoria política e ao menos uma influência auxiliar
na prática política.

3
Influência da estética literária e temática moralista de Sêneca.

58
Nessa mesma linha, Arnaldo Momigliano argumenta que a escrita da história latina
envolve alguns aspectos importantes da cultura latina, entre eles, como ela criou o protótipo
da moderna história nacional.
Segundo esse autor, os romanos transmitiram à Renascença a noção de história
nacional e Lívio foi o mestre. Essa noção se desenvolveu por meio de vários autores, como
Leonardo Bruni, que, em uma imitação consciente de Tito Lívio, escreveu a história de
Florença; Marcantonio Sabellico e Bembo escreveram a história de Veneza e Giorgio Merula
escreveu a história dos Viscondes de Milão, entre outros. Os humanistas italianos
sustentavam-se, nas palavras de Momigliano, honestamente fazendo comércio da história
nacional de acordo com os modelos clássicos. Eles vendiam essa nova marca de história aos
monarcas nacionais e eventualmente provocavam a competição entre os historiadores nativos.
Outro fator importante, é que, no Império Romano Tardio, as histórias nacionais estavam
bastante na moda. Para Roma, apenas resumos eram feitos, mas narrativas complexas eram
escritas quando a temática dizia respeito às novas nações emergentes. (MOMIGLIANO,
2004: 120, 123).
Outro modelo político proporcionado por Roma é o cesarismo. A palavra César,
originalmente um apelativo familiar, converte-se num talismã. A importância do legado de
Roma radica nesse caso não na criação de uma monarquia, já que naturalmente houve muitos
impérios monárquicos antes, mas sim na combinação do absolutismo com um sistema legal
altamente evoluído. Nesse sentido, a combinação de autocracia, direito e a ideia de uma
cidadania universal influenciou profundamente a experiência europeia. O sentimento que
muito depois da queda do Império Romano ocidental a Europa ocidental conservava, em certo
sentido, compartilhava da cidadania de uma cultura comum. Isso se dava a algo mais que uma
herança da cultura e língua latinas; derivava também em parte da natureza do próprio Império
Romano (JENKYNS, 1995: 16).
Mas o legado de Roma, embora importante nas artes visuais, reside principalmente
na palavra. Uma grande parte dessa herança tem sido o próprio latim, base das línguas
românicas modernas com uma completa influência sobre o inglês. Os anglo-saxões haviam
recebido uma boa quantidade de palavras do latim antes da emigração à Bretanha. Após a
emigração, adotaram outros termos e, após a conquista normanda, adotaram muitas palavras
procedentes do francês, a maioria durante os séculos XIV e XV, quando o inglês se converteu
em uma língua oficial e literária. Além do mais, a língua francesa havia adquirido muitas
palavras latinas em duas etapas, a primeira, diretamente do latim vulgar e, posteriormente, a

59
partir da língua escrita. Identifica-se, dessa forma, que a maior parte do vocabulário abstrato
inglês deriva dos clássicos (JENKYNS, 1995: 19).
Nesse legado romano, Finley (1989: 219) acredita no valor de um ensino
fundamentalmente literário para a vida pública ou para o cidadão, incluindo história, filosofia,
línguas e literatura. É uma consequência natural que esse ensino deva concentrar-se no que se
considera a melhor literatura, que, em muitos casos, trata-se de uma literatura do passado. No
entanto, para ele: poetas e romancistas não são pensadores sistemáticos, disciplinados, quer de
psicologia, de sociologia, quer de ética ou de comportamento institucional. Eles produzem
ressonâncias, convidam à reflexão, mas não ministram um ensino suficiente e não são fontes
autorizadas para tal fim. Se o fossem, restaurar-se-íam as antigas funções do mito, pois na
Antiguidade o mito era tão educativo quanto a poesia e a literatura o são hoje em dia.
Ao citar essas funções atribuídas ao mito, não tem como não relembrarmos que, por
meio desses mitos gregos, os clássicos chegaram ao nosso conhecimento, aguçando a
curisodade dos leitores. Essas histórias são contadas e recontadas pela literatura antiga, não
apenas na tragédia grega ou na poesia épica de Homero, mas também nas versões desses
mitos dadas pelos autores romanos. O próprio Ovídio, por exemplo, teceu, em sua obra
Metamorphosis, imensa coletânea de todos os mitos da transformação.
Segundo Beard e Henderson, nos últimos cem anos, muita teoria tem sido gasta para
explicar os mitos. Sigmund Freud, por exemplo, explorou ao mesmo tempo as raízes da
mitologia grega e o funcionamento da psique humana ao meditar sobre histórias como a do
incesto de Édipo com a mãe após matar o pai, ou a da vaidade de Narciso apaixonado pela
própria imagem, este um episódio inesquecível do poema de Ovídio. Segundo os autores,

(...) os significados encontrados nessas histórias, diferentes versões e interpretações,


proliferam o espúrio lado a lado com o elevado. Esse fenômeno de ‘bola de neve’
instigou aqueles que estudam a Grécia e Roma clássicas a repensar, vez após outra,
não apenas o que os mitos significaram outrora mas também como isso difere de
suas interpretações posteriores. Que diferença, por exemplo, faz o Édipo freudiano
na nossa leitura de Édipo Rei, a peça de Sófocles? Temos agora que ler Sófocles
inevitavelmente à luz de Freud? (BEARD & HENDERSON, 1998: 85).

No entanto, havia outras questões na agenda de estudos da mitologia e cultura


gregas, em especial a questão religiosa. No final do século XIX, os clássicos eram estudados
no âmbito de instituições que eram mais ou menos cristãs. As universidades eram pequenas e
em grande parte reservadas aos nobres e ordinandos; e a maioria dos fundadores pertencia ao
clero. A glória da Grécia e a grandeza de Roma, porém, foram quase inteiramente realizações
pagãs. Apesar de todo o domínio da Igreja no ensino, os clássicos podiam fornecer um

60
caminho para se compreender o mundo cristão. Mais do que isso, a autoridade dos clássicos
pagãos podia ser usada para legitimar toda uma série de abordagens radicais em discordância
com o establishment cristão oficial.
A experiência religiosa da Antiguidade era avidamente estudada, dos mitos dos
deuses e deusas aos rituais públicos de sacrifício de animais, além de uma vasta série de ritos
e folclore locais. Os mundos utópicos sonhados no século IV a.C. por Platão e descritos
particularmente em A República e As Leis encorajaram os pensadores radicais a instituir e
encorajar uma filosofia educacional puramente secular. Valores e opções de vida proibidos
pelo cristianismo encontraram apoio e suporte político nas práticas e discussões dos gregos e
romanos. Assim, por exemplo, a discussão de Platão sobre a natureza do amor e do desejo no
Banquete foi usada para justificar certas formas de homossexualidade masculina: não apenas
Platão admitia relações sexuais entre homens e meninos, como outros aristocratas
contemporâneos consideravam-nas a forma mais nobre e elevada de desejo sexual. Nesse
sentido,

as noções de ‘amor platônico’ e ‘relações platônicas’ derivam de leituras das obras


de Platão que ninguém toleraria hoje; o adjetivo é o precipitado de uma história de
interpretação da filosofia platônica. E os crimes e sofrimentos terríveis exibidos na
tragédia grega foram decididamente tomados como rígidas parábolas morais,
enquanto textos das comédias do ateniense Aristófanes preparados para uso nos
colégios e universidades normalmente omitiam as piadas e obscenidades sexuais
mais explícitas que eram a marca registrada desse dramaturgo. Pagãos chegavam a
ser transformados em cristãos antes de Cristo (BEARD & HENDERSON, 1998:
87).

A história pode ter concluído pelo triunfo da razão europeia, moderna e cristã, mas
para os autores a atração mesma era a emoção de usar essa razão para “saquear” a civilização
clássica. Seja qual for o espírito da pesquisa, investigar uma única frase de um texto clássico
envolve contato com uma enormidade de estudos anteriores. A mais grandiosa e abarcante
teoria sobre a totalidade da existência e o mais pedante dispêndio de energia na análise
rigorosa de palavras erradas em manuscritos pouco confiáveis encontram-se em algum ponto
na história dos clássicos (BEARD & HENDERSON, 1998: 87).
Quando lemos a poesia épica de Homero ou Virgílio, a filosofia de Platão,
Aristóteles ou Cícero, as peças de Sófocles, Aristófanes ou Plauto, estamos “partilhando” tal
atividade com todos aqueles que os leram antes. Isso nos aproxima tanto dos monges
medievais que copiaram e preservaram centenas de textos clássicos (mesmo com os
problemas já discutidos), quanto dos estudantes do século XIX que passavam os dias
estudando “os clássicos”. É precisamente a centralidade dos clássicos em todas as formas de

61
nossa política cultural que ata o Ocidente à sua herança. Por outro lado, nossa experiência dos
clássicos é sempre nova. Nossa leitura de Virgílio jamais será a mesma de um monge
medieval ou de um estudante do século XIX. Da mesma forma, ler a Eneida em acessível
brochura de bolso é uma experiência diferente de ler o poema em um precioso volume
manuscrito com encadernação em couro; e lê-lo numa poltrona é bem diferente também de
fazê-lo em sala de aula sob o olhar de algum mestre-escola vitoriano (BEARD &
HENDERSON, 1998: 44-45).
Contudo, as diferenças estão de forma ainda mais espantosa nas diversas questões,
prioridades e suposições que trazemos aos textos e cultura antigos. Nenhum leitor nesse
momento leria algo, clássico ou não, da mesma maneira, com a mesma compreensão que um
leitor de outra geração. O feminismo, por exemplo, atraiu a atenção para a complexidade e a
importância das mulheres na sociedade, e a pesquisa recente da história da sexualidade
inspirou também compreensão radicalmente nova da literatura e cultura antigas. Muitos
vitorianos não se espantavam com o papel subordinado das mulheres na Grécia e em Roma,
com o fato de não terem possuído quaisquer direitos políticos em nenhuma das cidades
antigas. Ao mesmo tempo, os acadêmicos vitorianos se esforçaram por ignorar ou mesmo
censurar muitas passagens dos autores antigos que falam, com franqueza excessiva para o
gosto deles, de sexo, tanto entre homens e mulheres como entre homens e meninos. Os
classicistas modernos, por sua vez, não lamentavam propriamente a misoginia dos gregos e
romanos nem celebravam seu aberto erotismo; antes investigavam como a literatura antiga
sustentava ou questionava essa misoginia e se perguntavam o que determinou a maneira como
o sexo foi discutido e mostrado na arte e nos textos antigos. Tais investigações são resultado
direto das discussões do século XX sobre os direitos das mulheres, as teorias e políticas
sexuais; e, em troca, os clássicos contribuem com a profundidade histórica essencial aos
debates deste século. (BEARD & HENDERSON, 1998: 46-47)
O mesmo se aplica à Inglaterra Vitoriana ao buscar legitimidade para suas ações
imperialistas. Os clássicos, no contexto dessa sociedade, foram fundamentais. A cidade de
Roma, com sua capacidade de prover imagens múltiplas, mutáveis e conflituosas, tornou-se
uma fonte rica para dar sentido – e desestabilidade – à História, à política, à identidade, à
memória e ao desejo (HINGLEY, 2002: 29).
Por meio da educação fundamentada nos clássicos, construiu-se uma ideia de
herança imperial dos romanos como importantes difusores da cultura helenística, os quais
proporcionaram um legado no que diz respeito à educação, língua, literatura, valores morais,
arte e principalmente ideais políticos.

62
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63
O IMPÉRIO ROMANO HOJE: ARQUEOLOGIA, NUMISMÁTICA E USOS DO
PASSADO

Cláudio Umpierre Carlan1

Introdução

Uma das atribuições da Arqueologia moderna é fazer uma leitura, ou releitura, da


iconografia. Analisa–se o papel das imagens na construção do conhecimento histórico e
arqueológico. Assim sendo, podemos inserir a moeda nessa última fase, que, durante muito
tempo, ficou confinada a reservas técnicas dos museus, sendo apenas um objeto de
conservação, não de pesquisa.
Apoiada em um forte carga simbólica, a iconografia foi amplamente utilizada pelos
governantes e aqueles que circundavam a orla do poder. Essas representações identificavam
não apenas um homem, mas toda uma civilização.
Em suma, essas imagens configuravam significados, mensagens, do emissor para
seus governados. Continham símbolos que deveriam ser entendidos ou decifrados pelo
receptor. Uma maneira que, tanto os antigos egípcios, quanto os romanos mais tarde,
encontraram de legitimar o seu poder.
Funari identifca a importância dessa documentação imagética, porém tratada com o
devido cuidado:

[...] Não se trata, assim, de acreditar no que diz o documento, mas de buscar o que
está por trás do que lemos, de perceber quais as intenções e os interesses que
explicam a opinião emitida pelo autor, esse nosso foco de atenção (FUNARI, 1993:
24).

Na numismática, Charles Samaram descreve a importância da numismática, tanto


econômica e sociológica, quanto estética. Para isso, realiza uma análise dos tipos monetários e
da paleografia romana, destacando a originalidade da idéia da fortuna (SAMARAN, 1961:
328), representada no reverso de várias moedas e medalhões do período. Os próprios termos
denier, denaro, dinero, dinar, argent, são derivações de argentus, moeda de prata cunhada no
vasto Império Romano.

1
Pós Doutorando em Arqueologia pelo NEPAM / Unicamp; Professor de História Antiga da Universidade
Federal de Alfenas – MG.

64
Pascal Arnaud destaca que, nas moedas da Antigüidade Clássica, principalmente
durante os séculos IV e V, são comuns, no anverso, a cabeça ou busto do imperador virem
cingidas por um diadema com o aspecto de simples fita de pérolas com duas ou três pontas
(ARNAUD, s/d: 195). Trata-se de uma mensagem simbólica específica, cujo o significado é o
de designar a pessoa do governante.
Norma Musco Mendes em seu livro Sistema Político do Império Romano: um
modelo de colapso, tendo como base Georges Depeyrot (DEPEYROT, 1997: 36), estabeleceu
um mapa dos “ateliers” monetários romanos espalhados pelas diversas regiões do império
(MENDES, 2002: 163), deixando claras a intenção, e a necessidade, dos governantes em
manter o fluxo e o abastecimento monetário contínuo.
Em A micro-história e outros ensaios, Carlo Ginzburg rompe com certas maneiras de
pensar a História, atraindo para a ciência histórica elementos oriundos de outras áreas do
saber. Construindo novos objetos através de outros temas, como a feitiçaria, metamorfose
animal, ritos de fertilidade e a iconografia, o autor descreve a dominação da periferia pelo
centro, tratando das imagens como instrumento de persuasão, nunca pacífica. Quando se
coloca em destaque o busto do soberano e as sua insígnias, estaremos perante uma utilização
direta dessa imagem para interpretar os conflitos políticos, mostrando bem como um certo
estilo e determinadas fórmulas de representação podem ter sido impostas, numa espécie de
batalha simbólica (GINZBURG, 1989: 74).

História, Arqueologia e Patrimônio

A ideia de coleção e preservação é mais antiga do que podemos imaginar. Nas


sociedades modernas, define-se o colecionismo como um passatempo, “hobby”, objetos das
mais variadas categorias são agrupados em grupos determinados. Esses grupos, dependendo
do colecionador, poderão ser amplos (coleção de moedas de vários países ou períodos) ou
particulares (coleção de moedas de ouro de Constantino I).
Com o desmembramento do Império Romano do Ocidente, em 476, os primeiros
reinos germânicos procuraram estabelecer um elo com o passado, como se fossem os
legítimos herdeiros de Roma.
O rei visigodo Égica (610 – 702), na primeira metade século VII, conseguiu fazer de
seu filho, Wittisa (? – 710), seu sucessor. Com esse objetivo, associou-o ao seu governo.
Esses dois personagens aparecem reunidos nas moedas do período: o rei no anverso e o
herdeiro no reverso. Pelo mesmo motivo, os reis Égica e Wittisa surgem juntos e coroados em

65
algumas peças do final do século VII. Nos terços de soldo, moeda de ouro, na legenda, escrita
em latim, lê-se: EGICA REX WITTISA REX CONCORDIA REGNI. Pai e filho
apresentam-se ante seu reino como uma dinastia, embora ainda um não tivesse sucedido ao
outro. Nessas moedas, o rei e o príncipe estão representados de lado, face a face, com uma
cruz entre ambos. Em alguns exemplares cunhados em Toledo, Égica e Wittisa seguram e
erguem a cruz.
A partir do século VIII, Carlos Magno (742 – 814) promoveu o chamado
“renascimento carolíngio”, onde a atividade colecionista alcançará um grande impulso.
Recolher, recuperar, preservar o que restava da cultura greco-romana, abalada pelas invasões,
tornaram-se atividades regulares firmando a “atividade colecionista” como uma atividade
cultural (SANTOS, 1995: 137). O imperador bizantino, Constantino VII Porfirogêneto (905 –
959), institui que, por ocasião das grandes festas religiosas, militares e políticas, fossem
exibidas as coleções de propriedade real. O próprio termo grego porfirogêneto, significa
nascido da púrpura. Constantino VII teria nascido na sala púrpura do Palácio Imperial de
Constantinopla, sendo filho legítimo do Imperador Leão VI, o sábio.
Notamos nessas passagens uma forte influência romana, no caso da moeda, da
legenda, das inscrições em latim, da cruz representando a Igreja e da designação da
CONCORDIA, comum nas cunhagens romanas dos séculos IV e V (CONCORDIA
MILITVM). Tanto os visigodos, como os demais reinos bárbaros, e até mesmo os Estados
Modernos europeus do século XV e XVI, utilizaram os padrões e tipos monetários romanos
como base.

Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre Carlan

Aes cunhado entre os anos de 297 – 298, em Alexandria. Busto à direita, com uma coroa
radiada, encouraçado, legenda IMP C C VAL DIOCLETIANVS PF AVG. Nessa variante
aparecem as iniciais do nome completo de Diocleciano. No reverso, Imperador de pé, voltado
para direita, com uniforme militar, tendo na mão esquerda um paragonium, recebendo um
globo, encimado pela vitória, das mãos de Júpiter nu. À esquerda da divindade um cetro,
legenda CONCORDIA MILITVM A / ALE. Entre Diocleciano e Júpiter a letra A. A concordia,

66
era uma divindade feminina, protetora da vida social e moral em Roma. Peça de bronze, estado
de conservação Muito Bem Conservado (MBC), diâmetro de 1,98 mm; peso de 9,80 g; alto
reverso ou eixo 10 horas.

Durante o renascimento do século XV, os mecenas italianos financiavam um grande


número de artistas renascentistas, cujo estilo artístico e tipo de pintura, mesclavam com as
ideologias e mensagens políticas. A arte, é representada, como uma forma de poder, e os
vestígios do poder são representados nas formas de arte (STAN, 1995: 281).
Aliado a esse “retorno” ao Mundo Clássico, começou-se a colecionar tudo o que
lembrava, ou pertencia à Antiguidade Greco-Romana. Esculturas, mosaicos, moedas,
enfeitavam os jantares e recepções. O anfitrião exibia a todos o seu poder e riqueza, aliado a
um retorno à grandeza do passado. A elite adotaria uma série de símbolos externos para
destacá-las, e, com esse fim aplicariam os materiais de que dispunham, com particular
preferência pelos de caráter singular e preciso.
Isso deve ter-se manifestado em todas as ordens do poder, que se em nossos dias
estão perfeitamente diferenciados, naqueles “remotos” tempos estariam seguramente reunidos
numa única pessoa, que seria ao mesmo tempo, chefe militar, legislador e chefe religioso.
Essa pessoa para distinguir-se dos outros, adotaria algum elemento diferencial, que não
demoraria em converter-se em símbolo daquela circunstância.
As casas dinásticas e membros nobreza, iniciaram as suas coleções particulares,
realizando uma associação de seus domínios com os do Império Romano. Os jetons (francês),
tokens (inglês), gettone (italiano), são os melhores exemplos desse período. Essas moedas de
funções variadas eram cunhadas por particulares, por isso, sem valor legal. Eram numárias
comemorativas, distribuídas em ocasiões especiais, como festas e audiências. Luis XIV (1638
– 1715), que havia herdado as coleções de Carlos V e do Cardeal Mazzarino,utilizou
amplamente essas cunhagens. Nelas, ele é representado com uma coroa de louros, como os
antigos césares romanos. Funcionários são designados para agrupar e catalogar esse material.
As coleções reais francesas, instaladas inicialmente nos castelos de Blois e
Fontainebleau, a partir de 1683, são transferidas para Versailles e Louvre, sendo ampliadas. O
“Rei-Sol”, diariamente, visitava o acervo, explicando para os funcionários como deveriam ser
expostas (BABELON, 1981: 61).
Os jovens Estados Nacionais, desejosos de recuperar a sua origem, através dos
vestígios do passado, realizaram verdadeiras expedições para conhecer tanto as obras antigas
quanto o seu local de origem. No século XVIII, a Inglaterra, através da Society of Dilettanti,

67
se preocupou em organizar várias campanhas arqueológicas para conhecer, estudar e analisar,
as antigas ruínas greco-romanas. As obras, em sua grande maioria, eram retiradas e levadas
para Londres, enfeitando os mais variados palácios da nobreza.
Roma, outrora capital do Império, passou a ser um local de culto intelectual e
encontro para viajantes, poetas, artistas e escritores de uma maneira geral, vindos de toda a
Europa, da América do Norte e de alguns países Latinos. Esses visitantes trocavam
informações, visitavam as ruínas, adquiriam uma bagagem cultural, até então pouco
conhecida, que levariam na bagagem, quando retornassem à terra natal.
Uma das principais características desse período de transição foi a influência da
ilustração nas artes, o desejo de utilizar os instrumentos educativos nas mudanças sociais, não
para exaltar o poder da Monarquia e da Igreja, mas para refletir as virtudes cívicas. Esse foi
um dos principais temas defendidos na década de 1990 em Barcelona (Generalitat da
Catalunya), quando teve início uma ampla reforma educacional. Sob esse prisma, o artista
mudava de papel. De um simples artesão, ele passou a ser o interprete dos valores cívicos. O
exemplo mais marcante para as futuras gerações ocorreu nas óperas de Wagner e Verdi, como
também nas obras pianísticas e para orquestra de Chopin.

Representação da 6ª Legião Victrix, Tarragona, Espanha, abril de 2007, foto Cláudio Umpierre
Carlan. Essas representações ocorrem anualmente em comemoração a influência romana na
região. A iconografia apresentada nesse scudo, está presente nas moedas da República Velha no
Brasil. Como podemos notar no modelo abaixo:

68
Moeda de 1000 reis, de 1924, governo Artur Bernardes. A coroa de louros, representando a
Victoria, a estrela, foi a forma que Augusto encontrou para legitimar seu poder, como herdeiro
de Júlio César. Segundo Suetônio, Augusto teria notado a passagem de um cometa ou estrela
cadente, identificando como uma mensagem enviada por César, legitimando seu poder sobre a
República Romana. Acervo do Museu Histórico Nacional, localizado na cidade do Rio de
Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre Carlan.

Treinamento de legionários, espetáculo Tarraco Viva, Tarragona, Espanha, maio de 2007. Foto:
Cláudio Umpierre Carlan

As Moedas do Museu Histórico Nacional

Não se pode falar sobre a coleção numismática do MHN, sem mencionar o fundo
reunido anteriormente na Biblioteca Nacional, que lhe serviu de base. Criada em 1810,
durante a regência de D. João, a Biblioteca Nacional havia inaugurado em 1880, sob a direção
de Ramiz Galvão, uma ofensiva para reunir uma coleção de moedas e medalhas, sobretudo
brasileiras, que se encontravam em caráter transitório no Museu Nacional. Galvão não

69
conseguiu que o fundo numismático viesse para a biblioteca durante a sua administração. Mas
é considerado com o iniciador da coleção numismática naquela instituição.
Em um relatório de 1881, dirigido ao Barão Homem de Melo, ministro de Império,
que doou 114 moedas e 10 medalhas, Galvão utilizou diferentes argumentos para alcançar
seus objetivos:

“A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, exmo sñr., não possuía moedas nem
medalhas por um vício de organização que é fácil de explicar; quando criada,
pensou-se que esses trabalhos eram antes objetos de curiosidades, e por isso os
deixaram fazendo parte do Museu Nacional...É todavia incontestável que moedas e
medalhas são antes de tudo documentos subsidiários da história, e que por
conseqüência o seu lugar próprio não é ao lado das coleções de história natural...o
lugar da numismática é ao lado da história, e o da história é na Biblioteca Nacional.
Pensando assim todas as grandes bibliotecas da Europa tem a sua seção de
numismática...” (VIEIRA,1995: 98).

Segundo Poliano, é bem possível que Gustavo Barroso, primeiro diretor do MHN,
tenha usado uma argumentação semelhante para conseguir a transferência da coleção da
Biblioteca Nacional para o Museu Histórico (POLIANO, 1946: 9-10). O primeiro lote de
peças, estava composto por 406 moedas e 6 medalhas e foi doado à biblioteca em setembro de
1880. Nos anos seguintes, o acervo continuou a crescer, por meio de compras, ou doações,
como, por exemplo, a doação da coleção do comendador Antonio Pedro de Andrade, que
compreendia 13.941 moedas e medalhas, entre outros núcleos expressivos; de 4.559 moedas e
2.054 medalhas portuguesas; e de 4.420 moedas da Antiguidade.
O comendador Antônio Pedro foi o maior doador individual da coleção numismática
da Biblioteca Nacional / MHN (VIEIRA, 1995: 100). Nascido em Funchal, Ilha da Madeira,
em 1839, emigrou para o Brasil com 16 anos. Trabalhou como jornalista no Correio
Mercantil, e no Jornal do Comércio. Como bancário, trabalhou no Banco Comercial do Rio de
Janeiro, do qual foi gerente, diretor e por fim presidente (DUMANS, 1940: 216). Seus
núcleos mais orgânicos, distribuem-se entre moedas de Portugal e colônias (4.599); romanas e
bizantinas (4.420 peças); moedas brasileiras (2.337 peças); medalhas portuguesas (1.101
peças) e brasileiras (950 peças). É também possível que alguns exemplares sejam precedentes
das coleções da família imperial, legadas pelo imperador D. Pedro II, constituída desde o
Primeiro Reinado e composta de 1.593 moedas e 545 medalhas, por ele doadas ao Museu
Nacional em 1891 e incorporadas pela Biblioteca Nacional em 1896.
No termo de abertura do Primeiro Livro de Registro da Biblioteca Nacional, assinado
pelo chefe da 3ª Seção de Numismática, Aurélio Lopes, iniciada em 30 de setembro de 1895,
lê-se que:

70
[...] Do inventário geral das coleções da Seção, iniciado em primeiro de outubro de
1894, e finalizado em setembro de 1895, sendo diretor da Biblioteca o Dr. Raul
d´Ávila Pompeo, constava até essa última data a existência de 22.863 peças
numismáticas: moedas, medalhas...inclusive papel moeda. (DIVISÃO DE
CONTROLE DE PATRIMÔNIO / MHN, processo 3 / documento 1).

Esse número já englobava as 13.741 moedas e medalhas da coleção do Museu


Nacional, segundo relação manuscrita de Gustavo Barroso (1888 – 1959), existente no
Departamento de Numismática. Além de diretor do MHN em 1922, Barroso era advogado,
professor, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista. Foi um dos líderes
nacionais da Ação Integralista Brasileira e um dos seus mais destacados ideólogos.
Infelizmente, em 1937, foram roubadas da coleção 17 barras e 117 moedas de ouro. Apenas
uma barra de ouro foi recuperada, já na década de 1980. Nem os mais conceituados museus
estão livres de ações predatórias.
Em 1922, quando o Museu Histórico Nacional foi criado, o decreto que o instituiu
também determinou que o acervo numismático existente na Biblioteca Nacional – assim como
em outras instituições como o Arquivo Nacional e a Casa da Moeda – fosse para ali
transferido. No momento em que se efetivou a cessão, a coleção total ultrapassava as 48 mil
peças. Hoje ela chega a aproximadamente, 130 mil.

Considerações Finais

As moedas configuravam significados e mensagens do emissor (imperador, membros


de sua família ou pessoas que circulavam próximas ao poder) para seus governados.
Continham símbolos que deveriam ser entendidos ou decifrados pelo receptor. Como os
símbolos urbanos, que representavam a cidade ou algum habitante importante, ou as insígnias
dos imperadores romanos que vão reaparecer no Sacro Império Romano – Germânico,
durante o governo de Frederico II (1194 – 1250).
Medalhas, moedas e sinetes são documentos de alta valia para os estudos
arqueológicos e históricos, prestando serviço a egiptologia, assirologia, á história das
civilizações da Hélade, do Latium, da Etrúria, da Judéia, da Síria, da Armênia .(VIEIRA:
1995, 105). Através das moedas e medalhas é possível estabelecer não apenas datações
precisas, mas escrever a história do poder temporal dos papas, reis, imperadores, de todos
aqueles que cincundam a orla do poder.

71
A cunhagem monetária associada ao retrato e à propaganda configurava dois
aspectos intimamente ligados em Roma. As moedas, por sua vez, associavam-se a um e a
outro, também em forma muito íntima. Elas não apenas são instrumentos importantes para
estabelecer a datação de documentos e eventos que chegaram até nós sem seu contexto
original, como são de grande valia na nossa compreensão das imagens que contêm.
Com frequência, o tipo monetário de reverso mostra determinada representação.
Ainda que o seu significado, indicado pela legenda que acompanha e pelo tipo do anverso,
possa aparecer como uma interpretação original em relação ao modelo, muitas vezes tipos
monetários e modelo têm o mesmo sentido. Por isso os dois lados de uma moeda devem
sempre ser observado com muita atenção, o que procuramos fazer aqui agrupando-as por tipos
monetários, de modo a iluminar a complexidade do tema.

Agradecimentos

Aos colegas e amigos Renata Senna Garrafonni e Glaydson José da Silva, pela oportunidade
de trocarmos ideias; a Pedro Paulo Funari, Margarida Maria de Carvalho, Ciro Flamarion
Cardoso, Paulo Denisar Fraga, Maria Beatriz Florenzano, André Leonardo Chevitarese, Vera
Lúcia Tostes, Rejane Vieira, Eliane Rose Nery. A responsabilidade pelas ideias restringe-se
ao autor.

Referências bibliográficas

ARNAUD, Pascal. Le Commentaire de Documents en Histoire Ancienne. Paris: Belin Sup,


S/D.

BABELON, Jean. Les Monnaies: racontent l`histoire. Paris: fayard, 1963.

COHEN, Hernry. Description Historique des Monnaies.Frappés Sous L’Empiere Romain.


Communément Appelées Médailles Impériales. Deuxième Edition. Tome Septième e
Huitième. Paris: Rollim e Feuardent, Éditeurs, 1880-1892.

DEPEYROT, G. Economie et Numismatique (284-491). Paris: Errance, 1987.

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Roma: vida pública e vida privada. 4ª ed. São Paulo: Atual,
1993.

GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. Tradução de Antônio Narino. Lisboa:


Difel,1989.

72
MENDES, Norma Musco. Sistema Político do Império Romano do Ocidente: um modelo de
colapso. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.

POLIANO, Luis Marques. A Numismática no Museu Histórico Nacional. In: Revista


Numismática. Números 1-4. São Paulo: Sociedade Numismática Brasileira, 1946.

MUSEU NACIONAL D´ARTE DE CATALUNYA. Guia del Gabinet Numismàtic de


Catalunya. Dirigida por Marta Campo. Barcelona: MNAC, 2007.

SAMARAN, Charles. (Dir.). L’Historie et ses Méthodes. Encyclopédie de la Pléiade. Paris:


Editions Gallimard, 1961.

SEAR, David R. Roman Coins and Their Values. 4th Revised Edition. London: Seaby
Publications Ltd, 1988.

THE ROMAN IMPERIAL COINAGE. Edited by Harold Mattingly, C.H.V. Sutherland,


R.A.G. Carson. V. VIII. London : Spink and Sons Ltda, 1983.

VIEIRA, Rejane Maria Lobo. Uma grande coleção de moedas no Museu Histórico Nacional?
In: Anais do Museu Histórico Nacional, volume 27, Rio de Janeiro: Museu Histórico
Nacional, 1995.

73
A QUEDA DE ROMA SEGUNDO MONTESQUIEU

Adilton Luís Martins1

L UÍS XIV COMO I MPERADOR ROMANO 1: LUÍS XIV VENCEDOR DA F RONDE


G ILLES G UÉRIN (D ' APRÈS )
(1611 - 1678)
54 CM X 33 CM X 18 CM
HTTP :// CARNAVALET . PARIS . FR / FR / COLLECTIONS / LOUIS - XIV - TERRASSANT - LA - FRONDE

1
Doutor em História pela Unicamp, editor Executivo da Revista Aulas – Unicamp.

74
O absolutismo aparece na França com ares de Império Romano. Nota-se facilmente
nas artes de encomenda real. Na imagem a cima Luís XIV é vencedor da Fronda (fronde). O
rei toma o poder de quem deveria compartilhá-lo. A partir disto, a reação intelectual, histórica
e jurídica acontece. O rei se torna Imperador, como César ou Augusto. O rei é herdeiro do
poder absoluto.
Ao contrário, Montesquieu aparece neste capítulo demonstrando como a Roma
Republicana torna-se corrupta e que esta corrupção consiste na construção de um Império,
sem virtudes e sem glórias. Trata-se de uma leitura moderna da História de Roma que acaba
por compor não apenas uma nova representação do passado romano, mas uma leitura da
política francesa do século XVIII, e, também, uma obra epistemológica para a compreensão
científica da política.
Montesquieu procede para o discurso diretamente germanista, contrariando a
pretensão monárquica de legitimar seu despotismo na herança do Império Romano. A
evocação de uma espécie de República Franca, para uma Monarquia Franca, surge como
resposta ao sentimento corrupto da monarquia francesa e despótica.

A Queda da República

O “Espírito das Leis” seria a continuação do livro “Considerações”. Dionísio de


Halicarnasso é a primeira fonte a aparecer em “Considerações à causa da grandeza e da
decadência”. Aqui, revela o início da grandeza – os edifícios, em especial, os esgotos. É
preciso compreender que a presença de autor grego, como primeiro a ser citado, tem sua
legitimidade justamente por ser estrangeira.
A criação de compreensão sobre o outro a partir da leitura de viajantes é a forma
científica de compreender o homem do século XVIII. O grego Dionísio nascido no século I,
“espantou-se com a resistência dos esgotos de Tarquínio – a Cloaca Maxima”. Assim,
Dionísio era a feição dos narradores viajantes do século XVIII – esteve lá e não era de lá –
critério de verdade (dobra 2), mecanismo epistemológico que associa racionalidade textual
(cartesiana) e empirismo inglês.
Outra marca na Roma “monárquica” era viver de espólios e de adotar costumes que
eram melhores que o seus. Outra característica estava que em cada acordo real, desaparecia
com a morte do rei. Daí a contínua guerra dos romanos. Mas o que faz Roma próspera nos
primeiros tempos é a “personalidade dos seus líderes”, a que chamou de “grandes
comandantes”.

75
Uma das causas de sua prosperidade é que todos os seus reis foram grandes
personagens. Em nenhum outro lugar, nos textos de história, encontra-se uma
sucessão ininterrupta de tais estadistas e tais comandantes. (MONTESQUIEU, 2002:
19)

No nascimento das cidades os grandes homens criam a República, mas a República,


uma vez criada, cria os grandes homens. Quando Tarquínio, dito o soberbo, resolve tomar a
coroa sem eleição qualquer, tornou-se “absoluto”. Tornou-se tirano, e como toda tirania tem
seu fim, seu filho Sexto, ao violar Lucrécia, permite a todos a consciência da servidão. Os
romanos de Montesquieu chegaram a um impasse: ficar numa monarquia pequena e pobre ou
mudar de governo.
A dobra 1, Antiguidade e Modernidade, mecanismo epistemológico em que temos
trabalhado nas últimas décadas sob a denominação “usos do passado”, serve para garantir a
legitimidade e a capacidade explicativa do argumento:

A história moderna nos fornece um exemplo do que então aconteceu em Roma,


o que é realmente notável, pois como em todas as épocas os homens tiveram as
mesmas paixões, as ocasiões que produzem as grandes mudanças são diferentes,
mas causas sempre são as mesmas.

Assim, Henrique VII, rei da Inglaterra, aumentou o poder dos plebeus para
aviltar os nobres, Sérvio Túlio (Rei de Roma. 578 a.C. - 535 a.C.), antes dele,
havia ampliado os privilégios do povo, que logo se tornou mais audacioso
derrubou tanto uma quanto a outra monarquia. (MONTESQUIEU 2002: 11)

Roma vivia sem comércio e suas rendas eram notoriamente pilhagem. Estava sempre
preparada para guerra. Disso nasce a virtude romana

Estando sempre expostos às mais aterradoras vinganças, a


constância e a valentia tornaram-se lhes necessárias, e neles essas
virtudes não se distinguiam do amor-próprio, do amor à família, à
pátria e a tudo o que há de mais precioso entre os homens.
(MONTESQUIEU 2002: 14)

A virtude dos soldados fundamenta-se politicamente em outra crítica, de


Montesquieu, também em dobra 1, antigos e modernos. O tema das deserções.

Entre nós, as deserções são frequentes, porque os soldados são a


parte mais vil de cada nação, e porque não há nenhuma que tenha,
ou acredite ter, certa vantagem sobre as demais. Entre os Romanos,
elas eram mais raras: soldados extraídos do seio de um povo tão
altivo, tão orgulhoso e tão seguro de comandar os outros não
podiam pensar em se rebaixar a ponto de deixar de ser romanos.
(MONTESQUIEU 2002: 20).

76
Adiantando-se aqui, o medieval argumento aristocrático da honra. Os nobres
defendem seus reinados segundo a honra. O uso de plebeus por toda a Europa, como
soldados, produz a derrocada dos exércitos. Este também será o argumento da dominação
franca e da queda do Império Romano: a falta de virtude do exército.
Roma triunfa em sua república (séculos VI-I aC), domina a península itálica, e seu
povo vive da virtude que a arte da guerra lhe proporciona. E de tanto espólios, e de tanto
desejo de ter mais, começa a sua decadência. Para Montesquieu, o “Jardim do Éden”
republicano curva-se à imoralidade devido a sua própria grandeza.

Quando a dominação de Roma limitava-se à Itália, a República podia subsistir


com facilidade. Todo soldado era também cidadão: cada cônsul recrutava um
exército e outros cidadãos iam à guerra, sob o comando do sucessor.
(MONTESQUIEU 2002: 21)

De perto o senado vigiava a conduta de cada general, mas quando as legiões


cruzaram os Alpes, cruzaram os mares, perderam o espírito de cidadãos. Os generais de
cidadãos nada mais tinham, agora eram senhores. No governo das províncias Roma não havia
como saber se eram generais de seu exército ou inimigos perigosos.
Um Estado pequeno é um Estado livre. O curto período das repúblicas se dá porque
elas ousam, quando têm sucesso, ir além de seus limites, a ponto de perder a comunicação, as
alianças, e são devoradas pelos vícios do poder.
Existem para Montesquieu dois tipos de União. A primeira do corpo político
harmônico, que como em uma música até mesmo as dissonâncias justapõem-se para beleza
triunfal. A segunda é a harmonia despótica, que em “Considerações”, Montesquieu apresenta
a dobra 3, oriente e ocidente,

Mas, na harmonia do despotismo asiático, isto é, de todo governo que não é


moderado, existe sempre uma divisão real: o lavrador, o guerreiro, o negociante, o
magistrado e o nobre só estão unidos porque uns oprimem os outros sem resistência.
Quando se vê união nessas circunstâncias, o que se une não são cidadãos, mas
cadáveres sepultados ao lado uns dos outros. (MONTESQUIEU 2002: 75)

Boas leis geram boas repúblicas, que ao crescerem, não podem ser mantidas por estas
leis geradoras. “Roma perdeu sua liberdade por ter concluído sua obra cedo demais”
(MONTESQUIEU 2002: 75)
A república corrompeu-se, perdeu a sua liberdade para os vícios. No momento em
que o senado pediu a ajuda de Pompeu para salvar a república contra César, já não havia

77
república a ser salva. Uma república não pode depender de um só. Uma república é livre por
ser auto-determinada.
Com César, a liberdade fora sepultada. Nasce a maior escravidão do universo, o
Império Romano, portanto, a liberdade que fora destruída pelos generais que estavam fora.
Em especial, o norte dos Alpes, fora devolvida pelos bárbaros, livres e destruidores da
escravidão que fora o Império Romano.
César é um personagem que a monarquia francesa e absoluta desejou como herói e
não como Montesquieu o pintou como sintoma de uma república moribunda. Esta Roma que
nasce com o sangue derramado por César, como túmulo de tudo que representava realmente a
república, será a Roma que os historiadores ligados à monarquia absoluta se referenciarão. À
medida em que o Império Romano fosse exaltado, na mesma proporção criaria-se uma
hereditariedade de glória.

Ao final chegamos a um herói francês, que por suas conquistas se


tornara o sucessor dos imperadores romanos, que lhe apaga quase a
de todos, sua glória foi igual à de Augusto, Trajano, e Constantino.
Carlos Magno fez passar para as mãos francesas, a própria Roma, a
porção mais florescente do Império Romano. (CAUTROU 1725,
T1)

Duas ideias muito importantes nesta passagem: a primeira, trata da glória de Roma e
sua hereditariedade pelas mãos de Carlos Magno; a segunda, afirma a glória da república, mas
glória da majestade de grandes Imperadores.

É preciso aproximar os romanos dos franceses, seguir suas


histórias e fazê-las em paralelo. Então convencidos que os
segundos, malgrado seus limites, ressurgiu de seu Império e não
adquiriu menos glória que os primeiros. (MABLY 1741: T2, 271)

A França reencarna o Império Romano, até porque, não seria muito sensato por parte
dos historiadores monárquicos comparar apenas Paris e Roma. O melhor exemplo para o
Estado Moderno, devido à sua legislação e hierarquia, tem sido Roma. O Direito Romano até
hoje se impõe nas constituições modernas e na formação jurídica do “ocidente”.
Montesquieu rejeita completamente esta ideia de glória imperial. Seu objetivo
político consiste em uma monarquia constitucional, por isso, precisa provar que o Império
Romano é um lugar de escravidão e medo. Teoriza:

O imenso poder do príncipe passa inteiramente para aqueles aos


quais o confia. Pessoas capazes de estimarem muito a si mesmas

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seriam capazes de promover revoluções. Logo, é preciso que o
temor acabe com todas as coragens e pague o menor sentimento de
ambição. (MONTESQUIEU 1749, 1ª Parte. Livro III. Capítulo IX)

O medo é o retrato do Império Romano. Montesquieu não olha apenas para os


poderosos; para ele, a política se estende de alto a baixo. A política é o cuidado com todos. E
esta não é a dignidade do Império Romano. O Absolutismo tentou não só por livros de
história criar uma situação de reencarnação ou hereditariedade do Império Romano, também o
fez nas artes e na arquitetura, assim como na educação, uma vez que Mably reformou o
currículo de ensino nas escolas francesas, dando ênfase ao Império Romano por meio do
ensino clássico.

Como Montesquieu teoriza e afirma que o Império Romano é despótico

Nos governos despóticos a população sonha, ou melhor, tem a esperança de um


conforto, uma vez que a regra geral é o medo. Onde reina a honra o príncipe só faz distinções.
A honra basta ao nobre, e o príncipe presenteia com honrarias, menções.
Na república é subjetiva, afinal, cabe à virtude qualquer tipo de presente. Assim, a
ação correta em si já é um presente, uma honraria. Cabe ao sujeito fazê-la cônscio do bem que
realiza. Desse modo, exclui-se qualquer materialidade, cumpre ao Estado o testemunho dos
homens virtuosos.
Grandes presentes nas repúblicas e nas monarquias são sinais de decadência. Eles
corrompem, e perde-se o brilho da virtude e da honra. Um lugar que a virtude ou a honra não
brilham é o Estado despótico, lugar onde os cidadãos não têm qualidades. Mas na Roma
imperial:

Os piores imperadores romanos foram os que mais presentearam: por exemplo,


Calígula, Cláudio, Nero, Otão, Vitélio, Cômodo, Heliogábalo e Caracala. Os
melhores, como Augusto, Vespasiano, Antonino Pio, Marco Aurélio e Pertinax,
foram econômicos. Sob os bons imperadores, o Estado retomava seu s princípios;
o tesouro da honra substituía os outros tesouros. (MONTESQUIEU1749: 1ª
Parte. Livro V. Capítulo XIX.)

Primeiro argumento – estilo textual

Com estas entrelinhas o “Espírito das Leis” vai afirmar que o Império Romano não é
uma Monarquia. Quando se pergunta se um homem deve ocupar o poder civil e militar,
responde que nas repúblicas este ofício dependeria exclusivamente do problema a ser

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enfrentado segundo as leis, nas monarquias, segundo a busca de honra e fortuna, por isso,
trabalhos civis devem ser ignorados para estes homens. No despotismo, não deve ser dividido,
o poder civil e militar devem pertencer ao déspota.
No entanto, com as reformas após o fim da República Romana, os poderes foram
divididos, até a usurpação de Procópio. Montesquieu conhecia bem o nível dos historiadores
monárquicos, seus adversários. Por isso, cada afirmação leva em conta não a possibilidade de
homogeneidade do Império Romano, mas suas tramas e contradições:

Assim Procópio, concorrente de Valêncio ao império, não sabia o


que estava fazendo quando, dando a Hormísda, príncipe de sangue
real da Pérsia, a dignidade de procônsul, devolveu a esta
magistratura o comando dos exércitos que ela outrora tivera, a não
ser que tivesse razões particulares para isso. Um homem que aspira
ao trono procura fazer menos o que é útil para o Estado do que o
que o é para sua causa. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro V.
Capítulo XIX)

Segundo argumento – poder de julgar

O poder de julgar do príncipe é uma característica da época do absolutismo. Por


exemplo, Luís XIII forçou os oficiais do parlamento a constituírem-no como juiz no processo
contra o duque de La Valette (CONTAMINE 1994: 541-554). Era algo inédito na história da
França um rei julgar um nobre. Para tanto, Montesquieu afirma que o presidente Bellièvre, a
partir do texto de Montresor (MONTRÉSOR: 1665).

Que via neste caso uma coisa estranha, um príncipe que opinava no processo de
um de seus súditos; que os reis só haviam reservado para si os indultos e
delegavam as condenações a seus oficiais. E Vossa Majestade gostaria de ver
sobre o banco dos réus um homem, em Sua frente, que, devido a seu julgamento,
iria dali a uma hora para a morte! (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VI.
Capítulo V).

E continua:

Este é um julgamento sem exemplo, até mesmo contra todos os exemplos do


passado até hoje, que um rei de França tenha condenado, na qualidade de juiz,
por seu veredicto, um fidalgo à morte.” (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro
VI. Capítulo V).

Montesquieu teoriza que os julgamentos feitos pelos príncipes são fontes


inesgotáveis de abusos, condensação de injustiça e uma evidência do despotismo. Ainda neste
livro, a dobra, antigos e modernos, oferece o suporte à teoria de governo:

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Os imperadores romanos foram tomados pelo furor de julgar; nenhum reinado
espantou mais o universo com suas injustiças. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte.
Livro VI. Capítulo V).

“Bons imperadores”, segundo Montesquieu, tentavam aproximar o despotismo


imperial da monarquia; já os outros, gozavam do medo que todos tinham de seu braço. O que
surge diante do déspota-juiz é o caluniador. Esta figura é o medroso que procura agradar,
levando outros à morte. O despotismo só trata de morte.
Como Roma não é um império qualquer, tem um despotismo vacilante, mesmo que
perpétuo, pois tudo nela é corrupto, com raras exceções, cita Tácito (1693: Livro XII. Cap.
IV) para demonstrar a heterogeneidade, apesar da hegemonia da corrupção:

Cláudio, diz Tácito, "tendo tomado para si o julgamento dos assuntos e das
funções dos magistrados, deu oportunidades a toda espécie de rapina." Assim
Nero, que chegou ao império depois de Cláudio, querendo conciliar os espíritos,
declarou: "Que ele evitava com cuidado ser o juiz de todas as causas, para que
os acusadores e os acusados, dentro dos muros de um palácio, não ficassem
expostos ao infame poder de alguns libertos. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte.
Livro VI. Capítulo V).

A calúnia torna-se a fonte de todo processo diante do governador. Montesquieu


afirma:

“Sob o reinado de Arcádio", conta Zózimo, "a nação dos caluniadores se


expandiu, cercou a corte e a infectou. Quando um homem morna, se supunha
que ele não havia deixado filhos; doavam-se seus bens com um rescrito. Pois,
como o príncipe era estranhamente estúpido e a imperatriz empreendedora em
excesso, ela servia à avareza insaciável de seus empregados e de suas
confidentes; de sorte que, para as pessoas moderadas, não havia nada de tão
desejável quanto a morte. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VI. Capítulo
V).

Para Montesquieu, Procópio (PROCOPIUS 1669) revela ainda mais:

"Havia outrora", conta Procópio, "muito pouca pessoas na corte; mas, sob
Justiniano, como os juízes não tinham mais liberdade de fazer a justiça, seus
tribunais estavam desertos, enquanto no palácio do príncipe ressoavam os
clamores das partes que lá solicitavam suas causas." Todos sabem como ali se
vendiam os julgamentos e até as leis. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro
VI. Capítulo V).

Em um Estado moderado a lei é a condição do juízo justo. Mas, no despotismo


romano, tinha um preço: a lei e sua interpretação. O costume de acusar um outro cidadão não
era novo na história de Roma. Era lei e costume na República – o limite era o bem público,
afinal cada cidadão, para Montesquieu, carrega todos os direitos da pátria.

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Com o Império, a acusação e todo tipo de justiça foram corrompidos:

Seguiram-se, sob os imperadores, as máximas da república, e, no início, viram


surgir um tipo de homens funestos, um bando de delatores. Qualquer um que
possuísse muitos vícios e muitos talentos; uma alma bem baixa e um espírito
ambicioso procurava um criminoso, cuja condenação pudesse agradar ao
príncipe; era o caminho para chegar às honrarias e à fortuna, coisa que não
temos entre nós. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VI. Capítulo V).

Outro tema importante é a hora de perdoar. Montesquieu ironiza imperadores


bizantinos que não perdoaram. A característica fundamental do despotismo é provocar medo,
portanto, o perdão não passa de uma rara exceção, No entanto,

O imperador Maurício tomou a decisão de nunca verter o sangue de seus súditos.


Anastácio não castigava os crimes. Isaac, o Anjo, jurou que, durante seu
reinado, não mandaria matar ninguém. Os imperadores gregos esqueceram que
não era em vão que portavam a espada. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro
VI. Capítulo XXI).

Terceiro argumento – a relação do luxo e as leis que geram medo

No caso do luxo, perigoso demais, os romanos precisariam voltar à frugalidade dos


primeiros tempos. O luxo traz a ruína. A história do luxo é a história do empobrecimento dos
países não monárquicos. Uma república suntuária é destinada ao fim. Um despotismo
suntuário é destinado à miséria e à ostentação de poder e corrupções sem iguais. Em seu
Império de governos heterogêneos e de sociedade hegemonicamente corrupta, Montesquieu
argumenta que no tempo de Augusto fora pedido o retorno a leis suntuárias. No entanto,
Tibério, segundo Dion Cássio e Tácito, sabia que estava erigindo uma monarquia e
dissolvendo uma república. A questão do luxo e do despotismo romano fica a cargo da
interpretação do leitor “de Montesquieu”, Roma é uma monarquia ou um estado despótico?

Logo, o luxo é necessário nos Estados monárquicos; é-o também nos Estados
despóticos. Nos primeiros, é um uso que se faz do fato de se ter liberdade; nos
outros, é um abuso que se faz das vantagens da servidão, como quando um
escravo escolhido por seu senhor para tiranizar os outros escravos, incerto
quanto ao dia seguinte de sua sorte de cada dia, não tem outra felicidade a não
ser a de saciar o orgulho, os desejos e as volúpias de cada dia.
(MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VI. Capítulo XXI).

Este recurso indireto na sua argumentação retórica e insinuante – que, também, é o


argumento de estilo, leva o leitor à conclusão, e a presença constante de insinuações, não
permitem que os padres façam tipo de defesa típica da erudição. A cada tese clara e objetiva,

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uma refutação. A insinuação impede a refutação. Com os iluministas há uma nova forma de
se escrever a história, muito mais simples que a erudita, com menos citações e com afirmação
alegórica, evitando o jogo de refutação da disputio medieval.
O tema do luxo desdobra-se para o tema das leis que geram medo. As mulheres
romanas tem coirmãs o luxo e a devassidão. A Lei Júlia em relação ao adultério não produzia
os efeitos de virtude, mas de castigo; a lei que amedronta. Toda legislação civil depois da
república fora para produzir o medo:

O horrível desregramento dos costumes obrigava os imperadores a criar leis para


acabar, até certo ponto, com o despudor; mas sua intenção não foi a de corrigir
os costumes em geral. Fatos positivos, relatados por historiadores, provam isto
melhor do que todas estas leis que não seriam capazes de provar o contrário.
Podemos ver em Dion a conduta de Augusto sobre este assunto, e de que
maneira eludiu, durante sua pretoria e sua censura, os pedidos que neste sentido
lhe foram feitos. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VII. Capítulo XII).

A ideia de uma Roma totalmente imoral, na linguagem de Montesquieu, “cheia de


depravações”, aponta que as políticas de Augusto e de Tibério tinham um espírito que não
consistia na valorização da virtude republicana dos velhos tempos, nem na criação da honra,
que em momento algum é mencionada junto da palavra monarquia.
As leis de Augusto e Tibério, segundo Dion, tinham o espírito do medo, e assim, a
busca moral dentro do Império faz da monarquia uma tirania:

Podemos encontrar nos historiadores julgamentos rígidos que foram feitos, sob
Augusto e sob Tibério, contra o impudor de algumas damas romanas; mas ao
nos revelarem o espírito destes reinados, eles nos revelam o espírito destes
julgamentos. Augusto e Tibério pensaram principalmente em castigar a
devassidão de seus parentes. Eles não estavam castigando o desregramento dos
costumes, mas certo crime de impiedade ou de lesa-majestade que eles haviam
inventado, útil para impor respeito, útil para sua vingança. Daí que os autores
romanos protestem tão fortemente contra essa tirania. (MONTESQUIEU 1749:
1ª Parte. Livro VII. Capítulo XII).

Tibério usou das antigas leis para punir mulheres, não por efeitos de crimes, mas se
tinham desobedecido a lei. Em nota, Montesquieu cita: proprium id Tiberio fuit, scelera
reperta priscis verbis obtegera (TÁCITO. Anais IV, cap. XIX :Era um aspecto característico
de Tibério ocultar sob termos antigos crimes novos). Mas, tais disposições não eram para
todos. A moralização das mulheres tinha um alvo certeiro, as damas esposas e filhas dos
senadores. Tibério queria controlar o senado a partir da família de cada senador.
Para Montesquieu a conclusão consiste em:

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Enfim, o que eu disse, que a bondade dos costumes não é o princípio do governo
de um só, nunca se verificou melhor do que sob estes primeiros imperadores; e
se duvidarem disto basta ler Tácito, Suetônio, Juvenal e Marcial.
(MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VII. Capítulo XII).

Quarto argumento – a corrupção universal

Eis um dos trechos mais antiabsolutistas do “Espírito das Leis”. Montesquieu se


pergunta, quando a monarquia se corrompe? Responde à sua própria questão dizendo que
quando os “maiores se tornam os escravos” de um homem: quando os principais de um povo
se tornam instrumentos de um homem. O maior sinal disto tudo é que quando a honra é
colocada em contradição, alguém pode estar coberto de infâmias, como Dion, que afirmou
que Tibério criava ornamentos triunfais à delatores e dignidades falsas, referência ao Cardeal
Dubois , regente até a maioridade de Luís XV. E acima de tudo:

Corrompe-se quando o príncipe transforma sua justiça em severidade; quando


coloca, como os imperadores romanos, uma cabeça de Medusa em seu peito;
quando assume aquele aspecto ameaçador e terrível que Cômodo mandava
colocar em suas estátuas. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro VII. Capítulo
XII).

A monarquia corrompe-se quando cada um em particular se torna covarde, sua


vaidade está a serviço da grandeza que podem ter ao servir. Acreditam que se deve tudo ao
príncipe faz com que nada se deva à pátria. Mas obediência cega ou interesseira ao monarca
cria uma enorme insegurança política, isola o monarca sob tantos elogios e servidão
interessada a ponto de Montesquieu perguntar, se toda esta bajulação e “escravidão
voluntária” (DE LA BOÉTIE 1999) “não seria um crime de lesa-majestade contra ele”?

Quinto argumento – Liberto ou burgueses no poder

Os libertos são sinais do despotismo sob o Império Romano:

Assim, no governo de muitos, é muitas vezes útil que a condição dos libertos
esteja um pouco abaixo da dos ingênuos, e as leis trabalhem no sentido de
acabar com o desgosto que sentem por sua condição. Mas no governo de um só,
quando o luxo e o poder arbitrário reinam, não se deve fazer nada neste sentido.
Os libertos encontram-se quase sempre acima dos homens livres: dominam na
corte do príncipe e nos palácios dos grandes e, como estudaram as fraqu ezas de
seu senhor e não suas virtudes, fazem-no reinar não pelas virtudes, mas pelas
fraquezas. Tais eram em Roma os libertos da época dos imperadores.
MONTESQUIEU 1749: 2ª Parte. Livro XV. Capítulo XIX).

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A Roma despótica teve um grande período, amado pelos iluministas, como todos: o
estoicismo. Nada era mais digno que o estoicismo para Montesquieu, ele realçava apenas as
coisas nas quais havia grandeza: o desprezo pelos prazeres e pela dor. O estoicismo é o
melhor exemplo de filosofia política, porque:

Somente ela sabia fazer cidadãos; somente ela fazia os grandes homens;
somente ela fazia os grandes imperadores. Façam por um instante abstração das
verdades reveladas; procurem em toda a natureza e não encontrarão objeto maior
do que os Antoninos; Juliano, o próprio Juliano um sufrágio assim obtido não
me tornará cúmplice de sua apostasia, não, não houve depois dele príncipe mais
digno de governar os homens (MONTESQUIEU 1749, 5ª Parte. Livro XXIV.
Capítulo X).

Para os estoicos, são vãs as riquezas, qualquer grandeza humana; também a dor, a
tristeza e os prazeres. O domínio destes homens é trabalhar para a felicidade de todos. Para
Montesquieu, esta felicidade estava baseada no trabalho de exercer seus deveres com a
sociedade:

parecia que encaravam o espírito sagrado que acreditavam existir neles mesmos
como uma espécie de providência favorável que velasse pelo gênero humano.
(MONTESQUIEU 1749, 5ª Parte. Livro XXIV. Capítulo X).

A exceção estoica não impediu o fim do Império Romano. Destino concluso, afinal,
o medo, sua força e sua corrupção anulariam suas conquistas, sociedade, e qualquer outra
vantagem.
Ao final do século XVII, Tácito torna-se leitura obrigatória para o debate político
(LEVILLAIN 2005: 143-154.). Este fenômeno intelectual e político denomina-se tacitismo:

Durante o período moderno, o tacitismo definia-se antes de tudo por sua


característica transfronterística. A Europa era constituída por países com
regimes políticos e religiosos diferentes, mas a diversidade destes regimes
políticos e religiosos eram transcendidos pelo que se chamava, desde o século
XV, de “República das Letras.” (LEVILLAIN 2005: 145).

Qual o conteúdo do tacitismo? Uma ambiguidade como nenhuma outra. Havia os que
o consideravam o Maquiavel (STÉPHANE 2003) do Mundo Antigo. Outros um severo crítico
da tirania, como Montesquieu.
A tirania em Montesquieu consiste em duas formas, a primeira como força física,
uma espécie de monopólio da violência (WEBER 1999) sob a égide de um homem. A
segunda forma de tirania é exercida pela opinião de um só, que fere a opinião geral daquele

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país. Como exemplo de tirania, Montesquieu não vai ao oriente naturalmente déspota, mas
aponta para Roma, para deixar claro mais uma vez o perigo desta herança:

Dion conta que Augusto quis ser chamado de Rômulo, mas, quando soube que o
povo temia que ele quisesse tornar-se rei, mudou de ideia. Os primeiros romanos
não queriam rei, porque não podiam suportar seu poder; os romanos de então
não queriam rei para não ter de suportar seus modos. Pois, ainda que César, os
triúnviros, Augusto fossem verdadeiros reis, tinham mantido toda a aparência da
igualdade, e sua vida privada encerrava uma espécie de oposição ao fausto dos
reis da época; e quando não queriam reis, isto significava que queriam conservar
suas maneiras e não adquirir as dos povos da África e do Oriente.
(MONTESQUIEU 1749: 3ª Parte. Livro XIX. Capítulo III).

Mas, Augusto conserva-se no poder frente à opinião contrária dos Romanos:

Dion conta que o povo romano estava indignado contra Augusto por causa de
certas leis demasiado duras que ele havia criado, mas que assim que ele mandou
voltar o comediante Pílades, que as facções tinham expulsado da cidade, o
descontentamento cessou. Tal povo sentia mais vivamente a tirania quando se
expulsava um saltimbanco do que quando se suprimiam todas as suas leis.
(MONTESQUIEU 1749: 3ª Parte. Livro XIX. Capítulo III).

Para Montesquieu, Augusto é um tirano:

Todos os atos de augusto e todas as sua normas tendiam visivelmente para uma
para o estabelecimento de uma monarquia. Sila livrou-se da ditadura, mas, em
toda sua vida, em meio a seus atos de violência, vê-se o espírito republicano:
todos os seus regulamentos, apesar de tiranicamente executados, tendiam sempre
para uma certa forma de república. Sila, um homem arrebatado, conduziu os
romanos violentamente a liberdade; Augusto, um tirano ardiloso, conduziu -os
suavemente À escravidão.

A conclusão deste parágrafo merece um destaque especial:

Sob o comando de Sila, enquanto a República recobrava as forças, todos


clamavam contra a tirania; sob o comando de Augusto, enquanto a tirania se
fortalecia, só se falava em liberdade. (MONTESQUIEU 2002: 103-104)

Quem são os tiranos de Tácito e que se tornaram os tiranos de Montesquieu? Em


“Considerações” aparecem como tiranos a listagem dos Annales de Tácito, do Livro 1. César,
Augusto e Tibério, são os que mais aparecem. Fazendo uma ressalva, O uso do termo tirano,
no Mundo Antigo significava alguém que usava de força. Montesquieu o estendeu para
déspota (VOLPILHAC-AUGER 1985: 150).
Calígula e Cláudio aparecem citados; Nero, quase esquecido. Para Montesquieu,
estes não eram os piores, afinal, o sangue que corria pelo mundo romano não deixava dúvida

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do despotismo. O que Montesquieu realmente temia não era os que grassavam nos palcos de
Racine, não eram os famosos monstros romanos, mas, os que deixavam o povo cego. Pior que
o sangue derramado, era a cegueira de um povo.
Montesquieu pensa no tirano como vítima de todo um universo sem moral. Não
sendo virtuosos, nem o povo, nem o senado, cada general pode tomar seu lugar. O medo
corrompe. O elogio é falso. Quem resistirá? (MONTESQUIEU 2002: 118-119).
O tirano moderno é Luís XIV, adornado de espetáculos, confiante na cegueira do
povo, os nobres, e rodeado por libertos, burgueses:

Montesquieu encontra em tácito quando se impõem a sua imagem do tirano


moderno que reina desde Versailles. Temos visto que a seus olhos, a
aproximação de Louis XIV de Augusto, com efeito, ele não é apenas seu
sucessor, ele é mais cruel e perigoso ainda, que o seu similar. A leitura de tácito
convida Montesquieu a ver que o despotismo na França não é somente uma
ameaça, já é uma realidade, introduzido por um príncipe hábil e dissimulador.
(VOLPILHAC-AUGER 1985: 150).

No entanto, o antiabsolutismo de Montesquieu, assim como o de Henri de


Boulainvilliers (1727), não culpa diretamente o rei. Para eles, o rei é vítima de uma sociedade
corrupta, como fora a República Romana no caso de Montesquieu, ou como foi o fim do
Império Romano, no caso de Boulaivilliers.
Os novos poderes corrompem as leis tradicionais fundamentais do governo francês.
Leis francas, antigas, que limitam o poder do rei, protegendo sob direitos e deveres,
constituindo-o na possibilidade da justiça. Maus historiadores como Dubos (1734), e maus
conselheiros como Mazarino, em especial, burgueses, antigos libertos romanos como Colbert,
dariam uma educação muito distante da verdadeira fundação da França.
Foucault não se cansou de repetir este tema ao ver a construção da história moderna.
Mais do que qualquer outro, teorizou sobre as lutas na arena da História. Para ele, a História é
um intensificador de poder, narrar significa legitimar e celebrar, criar hereditariedade com o
poder e, ao mesmo tempo, vincular o poder.
Quem ensina o rei? Com certeza não são os nobres da fronda, outrossim, alto clero e
grandes burgueses. A denúncia que Montesquieu realiza, junto a Boulainvilliers, consiste em
dizer que a nobreza perdeu seu papel dentro da monarquia. A nobreza perdeu o saber, a
nobreza ficou cega, a nobreza não viu seu sangue derramar. Seu castigo é a perda da honra e
consequente perda do Estado. Por isso conclui:

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O verdadeiro alvo de todos esses historiadores ligados À reação nobiliária será o
mecanismo de saber-poder que, desde o século XVII, vincula o aparelho
administrativo ao absolutismo do Estado. (FOUCAULT 2002 : 155).

Toda a história feita pelos nobres, em um nível quase que revolucionário, como
Boulainvilliers, com a “luta das raças” e Montesquieu, com o “Espírito das Leis”, fora uma
reação a um esquecido elo do sistema de poder, que a nobreza deixou de lado. O elo é a
história, que sempre foi jurídica.
Uma vez desprezado pelos nobres, quem o assumiu? Foucault responde:

Essa peça estratégica, menosprezada pela nobreza, fora, em seu lugar, ocupa da
pela Igreja, pelos clérigos, pelos magistrados, depois pela burguesia, pelos
administradores públicos, pelos próprios financistas. (FOUCAULT 2002 : 155).

Os nobres perderam o saber com o rei. Por diversas razões a monarquia, que não vive
sem nobreza, corrompeu-se, virou despotismo. O saber histórico jurídico é a saída para o rei.
O rei precisa conhecer os problemas da França, deixar de ser vítima do despotismo, tornar-se
um monarca honrado, reestabelecendo este princípio no reino.
Todo jogo histórico-político-epistemológico, harmonicamente criado no “Espírito
das Leis”, consiste em salvar a monarquia. Mas, se as leis fundamentais da república foram
destruídas por César e Augusto, quais os fundamentos da França que Montesquieu observa
em ruínas sob absolutismo?
A queda de Roma aconteceu na corrupção que resultou em César. O mal que fora o
Império Romano terminará da mesma maneira que começou: com o medo.

Tal foi o fim do Império do Ocidente. Roma se havia engrandecido por só ter
tido guerras consecutivas: por uma sorte inacreditável, cada nação só a atacava
depois de outra ter sido arruinada. Roma foi destruída porque todas as nações
atacaram simultaneamente e nela penetraram por toda parte. (MONTESQUIEU
2002: 115).

Salvar a Monarquia

Na Europa, o que se institui com o domínio bárbaro foram as leis feudais. A


verdadeira face da monarquia, cujo princípio é a honra, e a sua natureza é

a natureza do governo monárquico, isto é, daquele onde um só governa com leis


fundamentais. Eu falei dos poderes intermediários subordinados e dependentes:
de fato, na monarquia, o príncipe é a fonte de todo poder político e civil. Estas
leis fundamentais supõem necessariamente a existência de canais médios por

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onde flui o poder: pois, se existe num Estado apenas a vontade mo mentânea e
caprichosa de um só, nada pode ser fixo e, consequentemente, nenhuma lei pode
ser fundamental. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro II. Capítulo IV).

Além da “lei fundamental”, algo associado ao “mecanismo das origens” (MARTINS


2012: CAP 3), deve existir os canais médios. Quem são os canais médios?

O poder intermediário subordinado mais natural é o da nobreza. De alguma


maneira ele entra na essência da monarquia, cuja máxima fundamental é: sem
monarca, não há nobreza; sem nobreza, não há monarca; mas tem-se um
déspota(MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro II. Capítulo IV).

E ainda, outra condição da monarquia consiste em não ser confundida com o


despotismo; precisa-se, ainda, de um depósito das leis.

Este depósito só pode estar nos corpos políticas, que anunciam as leis quando
elas são elaboradas e as lembram de quando são esquecidas. A ignorância
natural da nobreza, sua desatenção, seu desprezo pelo governo civil exigem que
exista um corpo que retire incessantemente as leis da poeira onde ficariam
soterradas. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte. Livro II. Capítulo IV).

Talvez esta seja uma citação que tenha faltado a Foucault para complementar sua
teoria do esquecimento das leis e do governo civil pela nobreza. Assim, o próprio
Montesquieu diagnostica, por meio de teoria, “epistemologia política”, ou seja, estrutura um
sistema de pensamento para produzir ideias a respeito da política afirma:

O Conselho do príncipe não é um depósito conveniente. É, por sua natureza, o


depósito da vontade momentânea do príncipe que executa, não o depósito das
leis fundamentais. Além do mais, o Conselho do monarca muda sem parar; não é
permanente; não poderia ser numeroso; não tem, em um grau suficiente, a
confiança do povo: logo, não se encontra em condições de esclarecê-lo nos
tempos difíceis, nem de fazê-lo voltar à obediência. (MONTESQUIEU 1749: 1ª
Parte. Livro II. Capítulo IV).

Onde não há leis fundamentais, o que se tem? A reposta é simples: onde não há leis
fundamentais há o despotismo. O que limita nestes estados o absoluto desmando do príncipe
é, na verdade, a religião. Não há despotismo sem poder religioso.
Utilizando Newton, em dobra 2, empirismo e racionalismo, afirma que o princípio da
monarquia não é a virtude. E isso não significa que os homens sejam maus, na verdade:

O governo monárquico supõe, como dissemos, preeminências, hierarquia e até


uma nobreza de origem. A natureza da honra é requerer preferências e
distinções; está, pois, por essência, colocada neste governo. (MONTESQUIEU
1749: 1ª Parte. Livro III. Capítulo VI).

89
Em teoria,

Dir-se-ia que é como o sistema do universo, onde há uma força que afasta
continuamente do centro todos os corpos, e uma força de gravidade que os traz
de volta: A honra move todas as partes do, corpo político; liga-as com sua
própria ação; e assim todos caminham no sentido do bem comum, pensando ir
em direção a seus interesses particulares. (MONTESQUIEU 1749: 1ª Parte.
Livro III. Capítulo VI).

O nobre, que busca ser citado, honrado, lembrado, louvado por um grande ato, que
envolveu esforço, tempo, dedicação e até mesmo heroísmo, beneficiou a todos. Esta louvação
é a honra. A ação reconhecida. É por ela que o Estado monárquico age, pois a honra é sua
força de coesão.
As leis da monarquia são as leis feudais. O gosto por estas leis criam em
Montesquieu uma bela imagem:

É um belo espetáculo o das leis feudais. Um carvalho antigo eleva -se; o olho vê
de longe suas folhagens; aproxima-se, enxerga o caule, mas não percebe suas
raízes: é preciso cavar a terra para encontrá-las. (MONTESQUIEU 1749: 6ª
Parte. Livro XXX. Capítulo I).

Montesquieu “cava a terra” para dizer que as leis feudais são provenientes dos povos
que destruíram o Império Romano. Conquistaram este Império, para lembrar o direito de
conquista (MONTESQUIEU 1749: 2ª Parte. Livro X. Capítulo III). Trata-se da Germânia.
Para fortalecer seu argumento, escreve em dobra 1, antigos e modernos, e dobra 2,
racionalismo e empirismo:

César, quando fazia a guerra contra os germanos, descreve os costumes deles; e


foi sobre estes costumes que pautou algumas de suas empresas. Algumas
páginas de César sobre esta matéria são volumes. Tácito escreveu um livro
especial sobre os costumes dos germanos. É curto, este livro, mas é um livro de
Tácito, que resumia tudo porque via tudo. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte.
Livro XXX. Capítulo I).

Esta confiança nos textos antigos se justifica pela dobra 1, a presença da


Antiguidade, e, também, a confiança nos antigos viajantes, que justifica a dobra 2.

Estes dois autores encontraram-se em tal acordo com os códigos das leis dos
povos bárbaros que possuímos, que, lendo César e Tácito, encontramos por toda
parte estes códigos e, lendo estes códigos, encontramos por toda parte César e
Tácito. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo I).

90
A partir destes dois autores que o “labirinto das leis feudais” será desvendando, o fio
de meada. O primeiro passo fora encontrar o início da vassalagem, a hierarquia entre os
germanos. Duas citações lhe são importantes. A primeira, de César

Que os germanos não estavam ligados à agricultura; a maioria vivia de leite, de


queijo e de carne: ninguém possuía terras nem limites que lhe fossem próprios;
os príncipes e os magistrados de cada nação davam aos particulares a porção de
terra que queriam e no lugar que queriam e os obrigavam no ano seguinte a ir
para outro lugar (liv. IV da Guerra das Gálias, cap. XXI) (MONTESQUIEU
1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo III).

Cita Tácito "que cada príncipe tinha uma tropa de pessoas que se uniam a ele e o
seguiam" 2. O germano, acompanhado por uma multidão de jovens é um homem honrado.
Estes jovens o seguem, são o ornamento de sua dignidade. Quanto mais corajosos e fortes,
mas jovens ao derredor.
Estes povos vivem da guerra. O príncipe, segundo Montesquieu, não consegue
persuadir a lavrar a terra, estabelecer-se, pois a rapina constante revela muito mais o gosto
pelo sangue dos outros do que pelo suor de sua própria face. Esta profunda ligação entre o
príncipe e os guerreiros, e os guerreiros e os jovens produziu o que se chama de vassalagem.
No entanto, alerta Montesquieu, vassalagem sem feudos. Afinal, o príncipe não era
proprietário de terras para poder fazer distribuição.
Os francos viviam dessa vassalagem, mas, diferente de Boulainvilliers (TYVAERT
1974: 521-547), não ocuparam todas as terras da Gália e a dividiram em feudos. Se o rei
tivesse sob seu poder todos os feudos divididos e todos os vassalos, seria como o Sultão da
Turquia (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo V), onde disporia da
propriedade de qualquer.
Montesquieu narra que as Gálias foram invadidas por diversas nações germânicas.
Visigodos em Narbonésia e o sul, os borguinhões no oriente, os francos o resto,
provavelmente, vivendo da antiga vida pastoril.
Godos e borguinhões fizeram acordo com os romanos: paz em troca de trigo. Já os
francos, não. De qualquer modo, a narrativa de Montesquieu procura observar a origem da
servidão neste período:

A lei dos borguinhões, legislando sobre as duas nações, distingue formalmente,


numa e na outra, os nobres, os ingênuos e os servos. Logo, a servidão não era
uma coisa particular aos romanos, nem a liberdade e a nobreza aos bárbaros.
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo VI).

2
Germânia XXI. Nota de Montesquieu.

91
As leis sálicas3 e ripuária não provam a tese de Boulainvilliers, que teriam os francos
criados uma escravidão sobre os galo-romanos.

Como seu livro está escrito sem nenhuma arte e ele escreve com a simplicidade,
a franqueza e a ingenuidade da antiga nobreza da qual havia saído, todos são
capazes de julgar as belas coisas que diz e os erros nos quais incorre. Assim, não
o examinarei (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo VI).

Não detalhando os pontos e equívocos de Boulainvilliers, Montesquieu apenas se


solidariza com o colega de nobreza e de luta política:

Direi apenas que ele tinha mais espírito do que luzes, e mais luzes do que saber;
mas este saber não era desprezível porque, de nossa história e de nossas leis, ele
conhecia muito bem as grandes linhas. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro
XXX. Capítulo VI).

De um lado, Boulainvilliers conjurou contra o terceiro estado – representado pelos


galo-romanos. Por outro lado, coube ao padre Dubos conjurar contra o segundo estado – a
nobreza. O ponto de vista de Montesquieu a esta batalha antiabsolutista pode ser retratada por
um mito antigo:

Quando o Sol deu a Faetonte o seu carro para conduzir, lhe disse: "Se subires
alto demais, queimarás a morada celeste; se desceres baixo demais, reduzirás a
terra a cinzas. Não vás por demais à direita, cairás na constelação da Serpente;
não vás por demais à esquerda, cairás na do Altar: conserva-te entre as duas.”
(Ovídio, metamorfoses liv II).

O que sugeriu a ideia de um regulamento geral, elaborado na época da conquista, foi


o número imenso de servos no início da “terceira raça”, com Hugo Capeto. A tese de
Montesquieu, da servidão sob a dinastia capetiana (987 a 1328) se construiu durante todo
período da conquista. Na primeira raça, merovíngia, havia muitos livres, tanto entre os
francos, quanto entre os romanos.
No entanto, lavradores, habitantes das cidades, até por volta de 987, foram se
tornando servos. No início da primeira raça, os merovíngios havia administração de alguns
romanos, burgueses, senadores, cortes de justiça, na terceira raça, apenas duas distinções:
senhores feudais e servos.

3
A lei sálica tem sido tratada como muito mais como mito do que uma realidade jurídica. BARNAVI Elie.
Mythes et réalité historique : le cas de la loi salique. In: Histoire, économie et société. 1984, 3e année, n°3. p.
323-337.

92
A servidão vai aumentando na medida em que há enfrentamento. A paz com
germanos não criava rapina, mas respeito. Foram as rebeliões e lutas por heranças entre
famílias que deram origem ao aumento de servos. Tudo isso, afirma Montesquieu , continuou
durante a segunda raça, a dinastia carolíngia.

Uma infinidade de terras que homens livres faziam render tornaram-se passíveis
de mão-morta. Quando um país perdia os homens livres que o habitavam,
aqueles que possuíam muitos servos tomaram ou conseguiram a cessão de
grandes territórios e neles construíram aldeias, como pode, nos ver em diversas
cartas. Por outro lado, os homens livres que cultivavam as artes viram -se
transformados em servos que deviam exercê-las; as servidões devolviam às artes
c ao cultivo o que se lhes tinha retirado. Era comum que os proprietários das
terras as doassem as igrejas para mantê-las eles mesmos no censo, acreditando
contribuir com sua servidão para a santidade das igrejas. (MONTESQUIEU
1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XI).

Montesquieu discute os tributos para enfrentar os argumentos do padre Dubos


(LOMBARD 1920: 194-196). Em seu argumento, toda e qualquer tributação que os francos
ou os romanos faziam não era digna de fé, afinal, nos becos da erudição, e no excesso de
demonstração de conhecimento, faltam-se as provas (dobra2), que os iluministas tanto
queriam:

O que mais custa àqueles cujo espírito vagueia numa vasta erudição é procurar
suas provas onde elas não sejam estranhas ao assunto e encontrar, para falar
como os astrônomos, o lugar do sol.
O abade Dubos abusa das capitulares, da história e das leis dos povos bárbaros.
Quando ele quer que os francos tenham pagado tributos, aplica a homens livres
o que só pode ser compreendido dos servos; quando quer falar de sua milícia,
aplica a servos o que só podia envolver homens livres. (MONTESQUIEU 1749:
6ª Parte. Livro XXX. Capítulo VI).

Mesmo sujeito ao Imperador Romano, gauleses e romanos continuavam a pagar


tributos? Esta pergunta se estabelece pelo tipo de documentação que revelaria as atribuições
de poder durante os primeiros séculos da França. Entre estas fontes, Gregório de Tours,
Capitulares, cartas paroquiais, divisões episcopais e tantos outros.
Na verdade, para Montesquieu, não se tem como saber a exatidão destes tributos,
mas é certo que, se existiram, foram substituídos por serviços militares. Uma atribuição de
homens livres, tanto dos que estavam durante as primeiras invasões, quanto dos fugidos das
regiões ibéricas, temerosos dos mouros.
Estes homens livres eram isentos de tributos, mas estavam obrigados à guerra.
Montesquieu se vê obrigado a demonstrar tantos detalhes históricos para enfrentar o inimigo
de Boulainvilliers, o Abade Dubos:

93
Suplico que o leitor me perdoe o aborrecimento mortal que tantas citações
devem causar-lhe: eu seria mais breve se não encontrasse na minha frente o livro
do Estabelecimento da monarquia francesa nas Gálias, do abade Dubos. Nada
atrasa mais o progresso dos conhecimentos do que um livro ruim de um autor
célebre, porque antes de instruir é preciso começar por desvendar o erro.
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XX).

Dubos procurava afirmar o absolutismo romano, fazendo com que os francos


submetessem à grandiosa cultura romana. O exame do livro do Abade Dubos é uma oposição
absoluta, porque minhas ideias são perpetuamente contrárias às dele; e, se ele encontrou a
verdade, eu não a encontrei (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIII).
Um livro sedutor, muito bem escrito, adjetiva Montesquieu. No entanto, este livro
necessita do que os empiristas da nova geração de historiadores, os iluministas exigem aquilo
que Montesquieu chama de provas.

Porque quanto mais provas faltam, mais se multiplicam as probabilidades;


porque uma infinidade de conjeturas são postas como princípio e delas se tiram
como consequências outras conjeturas. O leitor esquece-se de que duvidou e
começa a acreditar. E, como uma erudição sem fim está colocada, não no
sistema, mas ao lado do sistema, o espírito é incessantemente distraído por
acessórios e não cuida mais cio principal. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte.
Livro XXX. Capítulo XXIII).

Trata-se de um “colosso de pés de barro”, três volumes para provar uma total
ausência de fundamentação: o absolutismo justificado pela história de Dubos. A principal tese
de Dubos é que os francos não tinham sido conquistadores das Gálias, mas foram convidados
a tornarem-se reis no lugar dos romanos, ou seja, trocando uma servidão por outra. A que
responde Montesquieu:

Esta pretensão não pode ser aplicada à época em que Clóvis, entrando nas
Gálias, pilhou e tomou as cidades; tampouco pode ser aplicada à época em que
desafiou Siágrio, oficial romano, e conquistou o país que este vigiava; ela só
pode estar então relacionada com a época em que Clóvis, que se havia tornado
senhor de uma grande parte das Gálias pela violência, teria sido chamado pela
escolha e o amor dos povos para a dominação do resto do país. E não é
suficiente que Clóvis tenha sido aceito, é preciso que tenha sido chamado; é
preciso que o abade Dubos prove que os povos preferiram viver sob a
dominação de Clóvis a viver sob a dominação dos romanos ou sob suas próprias
leis. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

Para Dubos, haveria uma tal república armórica, que teria convidado Clóvis como
rei. O estranho disso tudo que não há literatura alguma sobre esta república. Não há dado
empírico, nem mesmo a conjectura se sustenta; dobra 2:

94
Dubos prova que os romanos, que ainda estavam submetidos ao império,
chamaram Clóvis? Absolutamente. Prova que a república dos armóricos tenha
chamado Clóvis e feito algum tratado com ele? De modo algum, de novo. Longe
de poder dizer-nos qual foi o destino dessa república, ele não saberia nem
demonstrar sua existência e, embora a acompanhe desde a época de Honório até
a conquista de Clóvis, embora relate com uma arte admirável todos os
acontecimentos daqueles tempos, ela permaneceu invisível nos autores.
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

É preciso provar como as províncias da Gália se revoltaram e formaram uma


república que teria sobrevivido a Clóvis. Onde estão as provas? Um conquistador quando
entra em um Estado e o submete pela força e pela violência, e depois, o estado inteiramente
submetido, há razões (dobra 2) suficientes para entender que da invasão ao estabelecimento
da monarquia, não houve nenhum. Entretanto, a não ser a conquista.

Tendo este ponto falhado, é fácil perceber que todo o sistema do abade Dubos
desmorona de ponta a ponta, e, todas as vezes que ele tirar alguma consequência
do princípio de que as Gálias não foram conquistadas pelos francos, mas que os
francos foram chamados pelos romanos, poderemos sempre negá-la.
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

Eis a tentativa de argumentar que Clóvis teria recebido dignidades romanas baseada
na carta de São Remígio. Carta meramente de congratulação pela subida ao trono. Mas,
Dubos faz dela uma carta em que Clóvis tenha sucedido Childerico como senhor da milícia.
E ainda, Clóvis, ao final do reinado teria sido feito procônsul pelo imperador Anastácio, algo
que não está fundamentado em nada.
Montesquieu procura na ausência da legislação objetiva, antiga, original, típica de
uma cultura envolta no “agenciamento das origens”, para demonstrar, do mesmo modo que
todos os historiadores que debateram o tema, que na ausência do documento escrito, na
ausência da prescrição, havia o costume. O senhor do costume, do fato, do acontecido, das
formas de fazer é o senhor do direito fundamental da monarquia feudal.
Para contrariar o dito proconsulado de Clóvis, Montesquieu afirma:

Tenho até uma razão para isto. Gregório de Tours, que fala do consulado, não
diz nada sobre o proconsulado. Este proconsulado teria mesmo durado apenas
seis meses. Clóvis morreu um ano e meio após ter sido feito cônsul; não é
possível fazer do proconsulado um cargo hereditário. Por fim, quando o
consulado e, se quiserem, o proconsulado lhe foram dados, ele já era o senhor da
monarquia e todos os seus direitos estavam estabelecidos. (MONTESQUIEU
1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

Toda tentativa de fazer a monarquia francesa herdeira do Império Romano, segundo


Montesquieu, não pode ser fundamentada em nada. O uso da documentação feita pelo abade
95
adversário é equivocada, falta-lhe crítica da dobra 2, racionalismo e empirismo, ou seja,
sofrem da mais pura falta de critérios racionais sobre a ausência de critérios empíricos. Na
desordem de um Império que cai e de uma monarquia que se ostenta, o que fazem os
escritores? Adulam segundo a maré, conforme a ordem dos ventos, modernamente, dir-se-ia
que são como birutas de aeroporto

Que supõe a adulação além da fraqueza daquele que é obrigado a adular? Que
provam a retórica e a poesia senão o próprio uso destas artes? Quem não ficaria
espantado ao ver Gregório de Tours que, após ter falado dos assassínios de
Clóvis, disse que, no entanto, Deus prosternava todos os dias seus inimigos
porque eles caminhavam por seus caminhos? Quem pode duvidar de que o clero
tenha ficado muito satisfeito com a conversão de Clóvis e não tenha tirado deste
fato grandes vantagens? Mas quem pode duvidar de que ao mesmo tempo os
povos não tenham enfrentado todas as desgraças da conquista e o governo
romano não tenha cedido diante do governo germânico? (MONTESQUIEU
1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

A teoria de Dubos, baseada em “birutas de aeroporto”, pois não tem critérios sobre
suas fontes a não ser o de contradizer Boulainvilliers. Os germanos não teriam mudado nada
na Gália e teriam eles mesmos se transformados em romanos. Com ironia, Montesquieu fala
de Alexandre Magno como se fosse um diplomata pronto a se submeter à Pérsia.

Ao falar da constituição da nobreza francesa, Dubos afirma que teria nos


primeiros tempos da monarquia duas ordens entre os francos. E que as diversas
dinastias posteriores teriam que ser buscadas entre romanos e saxões. Esta
opinião se basearia na lei Sálica(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX.
Capítulo XXIV).

Ao ler a Lei Sálica, Montesquieu observa as seguintes ordens, duzentos soldos de


composição pela morte de qualquer franco, trezentos soldos de composição pela morte de um
romano conviva do rei, cem soldos de composição pela morte de um romano proprietário de
terras, quarenta e cinco soldos de composição pela morte de um

É surpreendente que seu próprio erro não o tenha feito descobrir seu erro. De
fato, teria sido muito extraordinário que os nobres romanos que viviam sob o
domínio dos francos tivessem uma composição maior e tivessem sido
personalidades mais importantes do que os mais ilustres dos francos e seus
maiores capitães. Que probabilidade pode ter o fato de que o povo vencedor
tivesse tido tão pouco respeito por si mesmo e tanto respeito pelo povo vencido?
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

Montesquieu afirma categoricamente que os francos tinham apenas uma ordem que
só poderia ser julgada pelo rei. No entanto, colocando a moralidade dos textos de Dubos em

96
questão, aponta que o abade vai até a Turquia para dizer como era a nobreza franca. A
Turquia, lugar tão corrompida na obra de Montesquieu. Aparece aí um dos propósitos do
despotismo turco aparecer tanto no “Espírito das Leis.” Para Dubos:

Turquia de que lá se eleve às honras e às dignidades gente de baixo nascimento,


como se queixavam durante os reinados de Luís, o Bonachão, e de Carlos, o
Calvo? (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

A que o próprio Montesquieu responde:

Não se queixavam disto na época de Carlos Magno, porque este príncipe sempre
diferenciou as antigas famílias das novas, o que Luís, o Bonachão, e Carlos, o
Calvo, não fizeram. (MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo
XXIV).

O recurso retórico para encerrar o livro XXXII contra Dubos, do qual não se pode
duvidar da luta política que o “Espírito das Leis” representa:

O público não se deve esquecer de que deve ao abade Dubos várias excelentes
composições. E sobre estas belas obras que deve julgá-lo, e não sobre esta. O
abade Dubos incorreu nela em grandes erros porque teve mais tempo sob olhos o
conde de Boulainvilliers do que seu assunto. Tirarei de todas as minhas críticas
apenas esta reflexão: se este grande homem errou, que não deverei eu temer?
(MONTESQUIEU 1749: 6ª Parte. Livro XXX. Capítulo XXIV).

Conclusão

Para demonstrar o antiabsolutismo teórico e histórico de Montesquieu observou-se


como a Roma Republicana torna-se corrupta e que esta corrupção é a construção de um
Império, sem virtudes e sem glórias; além disso, culminando com o discurso germanista,
contrariando a pretensão monárquica de legitimar seu despotismo na herança do Império
Romano. A evocação de uma espécie de República Franca, para uma Monarquia Franca,
surge como resposta ao sentimento corrupto da monarquia francesa e despótica.

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99
Identidade, gênero e cultura

100
APOLO E MUSAS, LIRAS E CÍTARAS.
ESTUDO DA RELEITURA DO LEGADO CLÁSSICO NA ICONOGRAFIA URBANA
DE PELOTAS E OUTRAS CIDADES DO BRASIL MERIDIONAL (ARROIO
GRANDE, BAGÉ, JAGUARÃO E PINHEIRO MACHADO)

Fábio Vergara Cerqueira1

Entre nós reviva Atenas


Para assombro dos tiranos;
Sejamos gregos na glória,
E na virtude, romanos.
Hino Rio-Grandense

Durante muito tempo, afirmou-se que nossa identidade cultural era resultado da
fusão das três raças, a raça branca, negra e indígena. Hoje, apesar do conceito biologizante de
raça ter cedido lugar ao conceito antropologizante de etnia, as próprias pesquisas genéticas
afirmam que a média do brasileiro possui em torno de 30% da bagagem genética européia,
30% de bagagem africana e 30% de bagagem genética indígena, os 10% restantes ficando por
conta da hereditariedade extremo e próximo oriental, majoritariamente populações de origem
japonesa e árabe, entre outras origens asiáticas.
Estas informações de ordem biológica vêm, contudo, justapor-se à percepção do
legado multi-étnico. Se pensarmos em nosso Patrimônio Cultural, é presumível que ele deva
expressar esta pluralidade de legados étnicos constitutivos de nossa formação histórica. Nesse
sentido, os estudos históricos e culturais para se compreender a vinculação entre nossa cultura
e estas origens demonstram-se um estudo significativo para a compreensão de nossa
identidade cultural.
Se pensarmos nossa cultura como um presente resultante de um processo de
formação cultural desenvolvido ao longo de nossa história, deveremos estar atentos, ao
considerarmos nosso Patrimônio Cultural, à forma, como ao longo deste processo, o presente
dialogou com o passado. Dito de outro modo, como os vários presentes, ao longo dos séculos
de nossa história brasileira, apropriaram-se e reinterpretaram elementos dos vários passados

1
Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Antropologia
Social, com concentração em Arqueologia Clássica. Professor do Doutorado e Mestrado em Memória Social e
Patrimônio Cultural (UFPel). Professor do Mestrado em História (UFPel). Bolsista Produtividade CNPq.

101
relacionados às bagagens culturais trazidas com os diferentes componentes étnicos que
formaram nossa cultura.
Dessa forma, perceberemos que diferentes gerações, sob diferentes influências,
codificaram e recodificaram, através de variadas manifestações culturais, a diversidade de
legados componentes de nossa cultura, de modo que, em nosso patrimônio cultural, ficaram
plasmados elementos destas diversas releituras e recriações do passado, através das quais
nossa identidade cultural se vincula, tanto ao passado indígena, quanto africano e europeu,
além de outras origens continentais.
O desfile das Escolas de Samba, no Carnaval das cidades brasileiras, é um excelente
exemplo deste processo de mixagem cultural, misturando faraós, odaliscas, sereias, índias,
orientais, entre outros tipos evocativos da variedade cultural, presente e pretérita, evocados
pela sua relação identitária que coabita as dimensões lúdica e estética envolvidas no processo
carnavalesco de criação poética, visual, musical e coreográfica. Assim entendemos, por que,
no ano de 2004, uma escola de samba do Carnaval carioca decidiu homenagear as reduções
guaraníticas do Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que a escola vencedora do Carnaval
porto-alegrense foi aclamada com um enredo referente ao Egito Antigo. Aí nos lembramos,
também, da antiga marchinha carnavalesca que sugeria a origem de nossa identidade cultural
no Egito: “viemos do Egito, atravessamos o deserto do Saara”.
Neste artigo, nos ocuparemos com analisar a presença do legado clássico em nosso
patrimônio cultural, tema já bastante analisado sob vários enfoques, da Literatura à
Arquitetura, do Cinema às Artes Plásticas, da ciência à religiosidade. Esta pesquisa é um
estudo do patrimônio cultural brasileiro, que se insere dentro do campo de estudos mais
amplo, denominado hoje de “estudos da recepção da Antiguidade”. Trata-se de uma área que
tem cativado um número cada vez maior de interessados e, na mesma proporção, de críticos,
que acusam não se tratar de estudos sérios, voltados aos temas relevantes da pesquisa sobre o
Mundo antigo. Contudo, independente do que possam pensar, não são um modismo. Os
estudos da recepção do clássico são quase tão antigos quanto os próprios estudos clássicos. A
presença do clássico no Renascimento, na Europa moderna, é algo que motivou os estudos
centrais de alguns dos pais fundadores dos estudos da Antiguidade: Winckelmann, no século
XVIII, Burckhardt, no XIX, e Warburg, no XX, procuraram, cada um ao seu modo, entender
a transmissão do clássico para o mundo ocidental.
Nosso foco, porém, não é Dante, nem Botticelli, nem Montiverdi, nem Motzart ou
Shakespeare. Nosso foco será a interpretação da iconografia urbana produzida entre a segunda
metade do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX, na cidade de Pelotas. Essa escolha se

102
deve a vários fatores. O primeiro deles é bastante banal: trata-se da cidade em que o autor
deste artigo atua profissionalmente, motivo pelo qual estabelece uma relação de fruição da
paisagem urbana que suscita a pergunta sobre a relação entre o legado clássico plasmado no
espaço público e a formação cultural da cidade. O segundo fator resulta da relevância da
questão patrimonial nesta cidade, que foi uma das cidades brasileiras incluídas no Programa
Monumenta, do Ministério da Cultura, que consistiu em um programa de restauração de
prédios e monumentos históricos de cidades brasileiras, executado na primeira década do
século XX, financiado pelo BID, com contrapartida do Ministério da Cultura e governos
estaduais e municipais. Outros motivos poderiam ser acrescidos, mas me contentaria em
ressaltar que, assim como São Luís do Maranhão, a cidade de Pelotas, por muitas vezes, desde
o séc. XIX, gostou de autodenominar-se “Atenas do Sul”. Quando cheguei nesta cidade,
surpreendi-me com a circulação de um jornal alternativo assim denominado, Atenas do Sul, o
que já me serviu de alerta de que haveria algo a ser compreendido aí.
Quando falamos aqui de “iconografia urbana”, referimo-nos a um conjunto de imagens
figurativas que nos remetem à imagética greco-romana. Esta iconografia possui suportes
variados: estátuas de ferro ou bronze em monumentos (Figura 1) ou chafarizes (Figura 2);
estuques ornamentais de forros (Figura 3) ou fachadas de prédios (Figura 4); ou ainda
esculturas de ornamentação de fachadas arquitetônicas. Esta iconografia apresenta
reinterpretações oitocentistas da figuração de divindades gregas ou de elementos da cultura e
cotidiano do mundo grego e romano antigo.

Figura 1 – Escultura em bronze de Mercúrio. Não há


consenso sobre a sua localização original. Possivelmente
tenha sido colocada sobre o Mercado Central de Pelotas,
após a reforma de 1912. Acervo: Secretaria Municipal de
Cultura de Pelotas.
[Fotografia: do Fábio Vergara Cerqueira.]

103
Figura 2 - Fonte das Nereidas em funcionamento, após a reforma
realizada com financiamento do Programa Monumenta,
inaugurada em 2003. A fonte, inaugurada em 1874, situa-se ao
centro da Praça Cel. Pedro Osório. No plano médio do conjunto
escultórico, quatro musas, uma delas com uma lýra.2 [Fotografia:
Gilberto Carvalho, 2004.]

Figura 3 - Figura principal do medalhão que integra a


ornamentação em estuque do forro da Sala de Música da
Residência Conselheiro Francisco Antunes Maciel (Casa 8),
situada na esquina da Praça Cel. Pedro Osório e rua Barão de
Butuí, construída em 1878. A figura feminina alada e com a
cabeça coroada com raios, flanqueada por dois Eros com
instrumentos musicais, segura uma cítara, que a aproxima do
universo de Apolo e das Musas.3 [Fotografia: Cristina Rosiski,
2002.]

2
Foi colocada nesta localidade dentro de um programa de canalização de água para o consumo da crescente
população urbana, iniciado em 1871 por meio de contrato com Hygino Durão, responsável pela construção de
uma caixa d'água e quatro chafarizes. Na praça Coronel Pedro Osório, em 25 de junho de 1873, foi colocado o
primeiro chafariz, que entrou em funcionamento em 1874, conhecido hoje como Fonte das Nereidas, fonte
fabricada em uma funilaria francesa, a qual foi responsável pela fabricação da fonte de Edimburgo, na Escócia,
de maiores proporções, da qual a fonte pelotense é uma cópia idêntica. Sua fabricação é atribuída ao artista
francês A. D. Sonnevolre.
3
Foi construída para o Conselheiro Maciel, filho do tenente-coronel Eliseu Antunes Maciel, casado com
Francisca de Castro Moreira (filha do Barão de Butuí e viúva de José Maria Chaves), irmão do Barão de São
Luís e primo do Barão de Três Serros e da Baronesa de Arroio Grande. Chegou a Deputado Provincial e
Deputado Geral pelo Partido Liberal, foi Conselheiro do Império e Ministro no Gabinete Lafaiete. O projeto da
residência é atribuído a José Izella Merote, autor da Capela da Santa Casa, da Biblioteca Pública e do Palacete
Braga (atual sede do Clube Comercial). Este arquiteto é considerado o grande mestre local da substituição do
modelo colonial luso-brasileiro pelo ecletismo histórico.

104
Figura 4 - Escultura arquitetônica de Apolo tocando cítara,
decorando a fachada principal do Club Caixeral, com frente para a
Praça Cel. Pedro Osório, construído no início do séc. XX.
[Fotografia: Gilberto Carvalho, 2004.]

A riqueza desta iconografia urbana, ainda conservada na cidade de Pelotas, deve-se a


dois fatores primordiais: a proeminência da economia pelotense, em nível nacional, no séc.
XIX, e a crescente recessão econômica local na segunda metade do séc. XX, época em que
muitas cidades brasileiras viram sua paisagem urbana neoclássica e eclética ceder lugar à
chamada “selva de pedra”, a dita cidade “genérica”, onde o progresso foi sinônimo de
verticalização e destruição do “velho”, substituindo-o pelo “novo”, como foi o caso de várias
praças cujo paisagismo e monumentos foram substituídos pelo concreto: um exemplo desta
prática urbanista, que ocorreu às centenas por todo o país, foi a Praça Roosevelt em São
Paulo. A cidade de Pelotas, por outro lado, presenteia as gerações atuais com a Praça Cel.
Pedro Osório, reciclada no âmbito do Programa Monumenta. Esta praça-jardim é o núcleo do
conjunto de imagens urbanas que são objeto de nossa atenção e para as quais se voltam as
digressões conceituais apresentadas neste artigo (Figura 5).

105
Figura 5 - Imagem panorâmica da Pça. Cel. Pedro Osório, evidenciando o paisagismo da
praça e as fachadas neoclássicas, com destaque, à esquerda (lado oriental da praça), aos
prédios atualmente conservados e tombados pelo IPHAN, identificados como Casa 2, Casa 6
e Casa 8, cuja linguagem neoclássica das fachadas data das décadas de 1870 e 1880. [Acervo:
Coleção Nelson Nobre, Universidade Católica de Pelotas.]

Histórico da cidade de Pelotas

Para compreendermos por que o espaço urbano de Pelotas recebeu uma densidade
tão elevada de imagens que nos reportam ao mundo antigo, registro da riqueza material desta
cidade em épocas passadas, precisamos fazer uma breve apresentação do seu histórico.
O município de Pelotas se localiza no sul do Brasil, no estado do Rio Grande do Sul,
numa zona de intersecção entre a região serrana conhecida como Serra dos Tapes e a margem
ocidental da planície sedimentar interna da Laguna dos Patos e Canal São Gonçalo. A
ocupação da região se consolidou a partir de 1779, em virtude da exploração empresarial do
charque (carne bovina salgada). Às margens do arroio Pelotas, lentamente formou-se o
povoado. Em 1812 – ainda submetida à autoridade da Câmara Municipal da vila de Rio
Grande, mas já com um expressivo aglomerado populacional – foi elevada à situação de
freguesia, denominada Freguesia de São Francisco de Paula, a qual, em 1814, contava com
2.416 pessoas.
A elevação ao status de Vila de São Francisco de Paula, que significava a autonomia
política, foi efetivada em 1832, devido ao crescimento progressivo da empresa charqueadora,
bem como à crescente urbanização e crescimento populacional. Em 1835, foi elevada à

106
categoria de cidade, recebendo a denominação de Pelotas, em homenagem a uma embarcação
de couro, de suposta origem indígena, usada na região pelos primeiros habitantes.
O enriquecimento de Pelotas se deu através da produção de charque com base numa
estrutura de trabalho escravista. A utilização da mão-de-obra escrava se desdobrava numa
rede de atividades pecuárias, charqueadoras, domésticas e fabris (olarias, produção de velas,
sebo, cal). A penúria e sofrimento do trabalhador escravo, imagem invertida do
enriquecimento dos latifundiários, proprietários das charqueadas, se contrapunha a uma vida
de luxo e requinte desses últimos.
A consistência do desenvolvimento econômico gerado pela atividade saladeiril
tornou Pelotas uma cidade atraente para investidores e imigrantes. Desse modo, num primeiro
momento, estabelecem-se fábricas a partir da rede produtiva baseada no gado (produção
industrial de sebo, velas e cal); num segundo momento, porém, Pelotas vê surgirem indústrias
independentes do complexo saladeiril, como as fábricas de cerveja, as tecelagens, fábricas de
carro e carruagens, bem como indústria química e farmacêutica.
Ao longo da segunda metade do séc. XIX, a cidade passou por um processo de
desenvolvimento bastante significativo, no que se refere à modernização arquitetônica e
urbanística. Na década de 1860, o centro da cidade já se encontrava com uma malha urbana
em formato de xadrez, constituída de 52 quarteirões e 8.838 pessoas na zona urbana num total
de 13.537 pessoas no município.
A Praça Coronel Pedro Osório localiza-se no centro do segundo loteamento de
urbanização da cidade, datado de 1832. Nossa pesquisa apontou constituir-se o centro
nucleador deste Patrimônio Cultural que nos propomos estudar, formado por releituras da
herança da cultura clássica.
Conforme mapa da cidade de Pelotas de 1835, a antiga Praça da Regeneração (atual
Praça Cel. Pedro Osório) ficou ao centro do núcleo urbano com traçado geométrico. A praça,
criada com o nome de Praça da Regeneração, posteriormente foi denominada, durante o
Segundo Império, Praça Dom Pedro II.
Em 1832, foram erigidas, diante da praça, em seu limite setentrional, a Câmara
Municipal e a Escola Pública, e, entre esses dois prédios, o Theatro Sete de Abril, palco de
entretenimento e cultura que animavam a nova comunidade. Como símbolo da autonomia
administrativa, foi na Praça da Regeneração que se colocou o Pelourinho. No referido mapa
de 1835, aparecem poucas edificações nos entornos da praça, destacando-se Casa 2 (então
residência do charqueador José Vieira Viana) e Casa da Banha, dois prédios históricos

107
tombados, respectivamente, pelo IPHAN e IPHAE4. A praça, no entanto, permaneceu durante
muitos anos bastante alagadiça; sua efetiva urbanização ocorreu somente nos anos 1870,
quando se tornou o centro de todo um sistema hidráulico, com a instalação do chafariz das
Nereidas. Entre os finais da década de 70 e inícios da década de 80, os entornos da praça
tornaram-se um verdadeiro canteiro de obras, recebendo as edificações da atual Prefeitura
Municipal, Biblioteca Pública Pelotense, Casa 8, Casa 6, reformas da Casa 2. Na segunda
década do séc. XX, alguns destes prédios são ampliados (Biblioteca Pública Pelotense) ou
reformados (Theatro Sete de Abril), recebendo novas construções marcadas pela
monumentalidade (Clube Caixeiral). Estes espaços, somados a prédios situados em ruas
adjacentes, com seus monumentos e edificações, constituem ainda hoje esta paisagem urbana
marcada por uma iconografia clássica reinterpretada, sendo esta reinterpretação do Mundo
Antigo um componente plasmado em nosso Patrimônio Cultural.

Premissas analíticas para a compreensão do processo de recepção e interpretação do


Legado Clássico em Pelotas e cidades da região da fronteira meridional

Quando é feita a pergunta por qual motivo Pelotas “imitou”, com tanta intensidade,
aspectos da Grécia e Roma antigas em sua paisagem urbana, respostas banais se repetem. De
um lado, a matriz materialista afirma que era uma forma de legitimar a escravidão, uma vez
que a riqueza da cidade charqueadora se baseou na exploração desta forma de mão de obra
servil. De outro lado, a mística da Atenas do Sul alimenta um imaginário aristocrático da
cidade, que relaciona as citações ecléticas de figuras e narrativas greco-romanas a uma
suposta superioridade cultural de Pelotas relativamente a outras cidades da região e do país.
A fase inicial desta pesquisa sobre o Legado Clássico no Patrimônio Cultural
brasileiro, estudado sob o prisma arqueológico da Cultura Material, cujos resultados primários
são apresentados neste artigo, aponta que estas explicações não se sustentam. Como veremos,
não era exclusividade da aristocracia escravocrata o cultivo das referências clássicas, além do
que esta produção de imagens de matriz greco-romana continuou por aproximadamente
quatro décadas após o final do regime escravista. De outro lado, ainda hoje constatamos a
participação deste legado na paisagem urbana das cidades brasileiras, em maior ou menor
grau de conservação. Em cidades próximas a Pelotas, como Jaguarão e Pinheiro Machado,
algumas imagens de deuses gregos ou objetos greco-romanos integram o cenário urbano,

4
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, vinculado ao Ministério da Cultura, e Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Estadual, vinculado à Secretaria de Estado de Cultura do Rio Grande do Sul.

108
ornamentando pinturas internas ou fachadas de prédios particulares, clubes, cemitérios ou
teatros. Poderíamos citar aqui vários exemplos, mas nos contentemos em lembrar o Teatro
Minerva, situado na distante cidade de Areia, no interior das Alagoas, remanescente do
mesmo período5.
Com estas palavras, queremos anunciar nossa linha de raciocínio, que será
fundamentada ao longo deste artigo: 1) a apropriação do clássico presente na iconografia
urbana não é uma estratégia de legitimação da escravidão; 2) a apropriação do clássico é um
fenômeno nacional, característico da forma de urbanização e modernização urbana que
caracterizou nosso país entre o Segundo Império e República Velha; 3) a apropriação do
clássico constitui um processo de reinterpretação, cujas ênfases variam conforme a região,
apesar da recorrência icônica de algumas imagens, como atributos de Hermes (o caduceu) ou
Apolo (a lira); 4) esta reinterpretação do clássico foi nuclear no processo de formação de
identidade cultural brasileira no momento de sua intensa urbanização vivida durante a
segunda metade do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX; 5) as marcas deixadas pela
apropriação do clássico elaborada neste período são constitutivas de nosso Patrimônio
Cultural, e portanto merecedoras de estudo e conservação; 6) não basta constatar e conservar
o neoclássico nos prédios e monumentos históricos, é necessário, aos moldes da metodologia
arqueológica, catalogar as ocorrências imagéticas e perguntar pelo seu sentido no processo de
constituição da identidade cultural brasileira no Segundo Império e República Velha.
Alguns paradigmas de interpretação da recepção do clássico já estavam colocados no
início do século XX. De um lado Winckelmann, com a ideia de “imitação”; de outro,
Burckhardt, com o conceito de “redespertar”. Um peca pela ideia de cópia, não enfatizando os
processos de recriação, de releitura. O outro dá a ideia de que as tradições clássicas tenham
adormecido e, em um momento de luzes, “redespertem”. Aby Warburg, por sua vez, forja o
conceito de Nach-leben, de “pós-vida”, por vezes traduzido erroneamente como
sobrevivência, como se se tratasse de algo que quase morreu, mas, apesar de tudo, consiga
sobreviver. Buscando entender o Nascimento da Venus de Botticelli, Warburg, conforne
interpretação de Felipe Charbel Teixeira (2010), chega ao conceito de um “estudo da
mobilização inconsciente, em pinturas e esculturas, de forças emotivas (patéticas)
herdadas do (e reavivadas no) contato com a tradição antiga”. Ou ainda, seguindo com as
palavras de Teixeira, para decifrar o paradigma warburgiano:

5
Primeiro teatro a ser construído na Paraíba, em 1858.

109
Ele se refere (...) não apenas à sobrevivência de certas formas representacionais,
como a Ninfa, entendidas como tópicas figurativas, ou seja, lugares-comuns visuais
mobilizados conscientemente pelos pintores (...), mas ao revigoramento mesmo de
certas forças psíquicas arraigadas na memória coletiva, cristalizadas como
espectros em imagens dotadas de intensa força (TEIXEIRA, 2010: 139).

Em recente obra de Giorgio Agamben (2007: 18) sobre a recepção da tradição das
ninfas, este define as “fórmulas passionais” usadas por Warburg como “cristais de memória
histórica” dotados – e isto nos interessa muito – de uma dupla dimensão: originalidade e
repetição. Este modelo, das “fórmulas passionais”, criado por Warburg para explicar a
transmissão das imagens da Antiguidade (GINZBURG, 2009: 53-54), remete a uma vertente
do inconsciente. E aqui ressaltamos a particularidade de seu modelo: desenvolver um método
de pesquisa focado no sentido histórico das imagens, mas baseado ao mesmo tempo na
emoção humana e balizado na interface com testemunhos literários, combinada a uma
atenta percepção das noções de tradição e memória.

O Hino Rio-grandense e o lugar do clássico na identidade cultural

Para interpretarmos o sentido do legado clássico na cidade de Pelotas, no séc. XIX,


localizada na então Província de São Pedro, considerando sua relação com a cultura regional,
começamos nossa reflexão com o Hino Rio-grandense, hino de forte apelo identitário para o
gaúcho, ao remeter as emoções de pertença regional ao episódio da Revolução Farroupilha,
trabalhando na memória social e identidade cultural rio-grandense como a matriz do heroísmo
de espírito republicano teria levado esta província a se rebelar contra a tirania do Império.
Hoje o hino oficial do estado é cantado conforme a versão abaixo:

Como a aurora precursora


do farol da divindade,
foi o Vinte de Setembro
o precursor da liberdade.

Mostremos valor, constância,


nesta ímpia e injusta guerra,
sirvam nossas façanhas
de modelo a toda terra. (BIS)

Mas não basta pra ser livre

110
ser forte, aguerrido e bravo,
povo que não tem virtude
acaba por ser escravo.

Esta versão foi estabelecida em 1966, no período da Ditadura Militar, durante o


Governo Ildo Meneghetti, consoante a Lei 5213, de 05 de janeiro, que eliminava a segunda
estrofe do hino, a qual fora preservada na versão estabelecida em 1934. Naquele ano, durante
os preparativos da comemoração do centenário da Revolução Farroupilha (1835-1845),
solicitou-se a Antonio Tavares Corte Real que fizesse o estudo para definir a versão oficial do
hino. Diante de três versões alternativas para o Hino Rio-grandense, escolheu como oficial a
letra de Francisco Pinto Fontoura, com música do Maestro Joaquim José Medanha. Estes
versos teriam sido escritos durante os primeiros anos do período revolucionário. Para
resguardar o espírito farroupilha decantado na comemoração de seu centenário, Corte Real
manteve a íntegra do poema, preservando a segunda estrofe, a qual foi eliminada na
reformulação do hino realizada durante o período da censura militar.
O trecho do hino que foi cortado – ou censurado? – era especificamente o trecho em
que assistimos ao diálogo entre o presente e o passado, em que o republicanismo farroupilha
encontra-se com o legado clássico:

Entre nós reviva Atenas


Para assombro dos tiranos;
Sejamos gregos na glória,
E na virtude, romanos.

Estas palavras são representativas de uma forma de apropriação do legado clássico


pelo imaginário do séc. XIX, onde a referência ao mundo antigo não se dá pela apologia,
mesmo que velada, à escravidão, mas sim pela oposição à tirania.
Esta estrofe e seus usos pela identidade rio-grandense nos servirá de ponto de partida
para a reflexão sobre o lugar do clássico no nosso Patrimônio Cultural, com base no estudo de
caso da iconografia urbana pelotense, remanescente dos períodos do Segundo Império e
República Velha.
O percurso histórico da estrofe de inspiração antiquisante, atribuída a Francisco Pinto
Fontoura, suscita-nos duas questões:

111
1) Por que incluir, no Hino Farroupilha, que mais tarde, em 1934, foi definido como o hino
oficial do estado do Rio Grande do Sul, composto no fervor do ímpeto revolucionário
republicano, a menção a Atenas e Roma, como baluartes da liberdade, virtude e resistência à
tirania?
2) Por que retirar esta estrofe, por meio de um instrumento legal definidor do hino oficial do
estado, eliminando-se assim a vinculação entre a identidade regional e o legado político
greco-romano?
Inicialmente, é mais fácil responder à segunda pergunta. Para a ideologia do período
ditatorial militar, a menção a Atenas e Roma era inconveniente, na medida em que antepunha
os conceitos de virtude, de um lado, e tirania, do outro. De certo modo, dentro do espírito de
censura política da ditadura militar brasileira, a reprimenda feita pelo autor do hino à
autoridade imperial, caracterizando-a como tirânica, poderia expressar ideias “subversivas” de
questionamento da ordem política autoritária. A apologia à liberdade, associada a Atenas, e à
virtude, ligada a Roma, potencialmente poderiam instrumentalizar um discurso político de
oposição ao regime militar, ao qual serviria a acusação de tirania. Percebemos que Atenas e
Roma funcionariam, nestes versos, como metáfora de democracia, causando, nas palavras do
poeta farroupilha oitocentista, o assombro dos tiranos ...
Para respondermos à primeira pergunta, precisamos pensar sobre o que consistiu a
apropriação do legado clássico na formação da identidade cultural de nosso país, uma vez que
o republicanismo riograndense farroupilha não foi um fenômeno regional isolado, mas um
tipo de movimento regional republicano de reação à autoridade imperial recorrente na
primeira metade do séc. XIX, constituindo, portanto, uma página na constituição de nossa
identidade nacional.
Apesar do desinteresse de parte significativa dos historiadores brasileiros pela
questão do patrimônio cultural e memória social, sobretudo no que concerne ao papel do
legado clássico na formação de nossa ideia de nação, uma vez que costumam considerar a
historiografia da Antiguidade Clássica como algo distante de nossa realidade, um dos
historiadores que constituem a espinha dorsal da historiografia brasileira preocupou-se em
diagnosticar este legado: Sérgio Buarque de Hollanda, em sua obra A Visão do Paraíso, cuja
primeira edição foi em 1959, propôs-se estudar os efeitos do imaginário clássico, do séc. XV
à Primeira Grande Guerra Mundial. O relançamento desta obra, pela editora Brasiliense, em
2000, traduz a retomada deste tema por uma parcela dos historiadores brasileiros que, em
sintonia com arquitetos, antropólogos, arqueólogos e outros cientistas sociais, passaram a

112
envolver-se com os estudos que se situam dentro do triângulo Identidade – Patrimônio –
Memória.
A percepção de que o legado clássico ocupa um espaço no imaginário do mundo
moderno, atuando, entre outros processos, na formação das identidades nacionais ocidentais, é
um fenômeno que começou a inquietar, do mesmo modo, a alguns historiadores da
Antiguidade, preocupados em introduzir nos estudos do mundo antigo o diálogo entre o
Antigo e o Moderno. Em 1984, foi publicada, nesse sentido, a obra de Moses I. Finley, The
Legacy of Greece: a new appraisal. O autor aponta que a relação com o passado clássico não
resulta de simples herança genealógica, não sendo mero fruto de uma tradição contínua. Os
conhecimentos que hoje possuímos sobre o mundo antigo, e que permitem à nossa geração
reinterpretar esta tradição e se apropriar deste legado à luz de nossas ansiedades políticas e
culturais contemporâneas, são resultados de sucessivas reapropriações e reinterpretações dos
testemunhos da Antiguidade: do diletantismo e antiquarismo renascentista, passando pelas
releituras plásticas e musicais, ao espírito científico do séc. XIX, nunca houve leituras
imparciais da Antiguidade. Movimentos antiquisantes como o parnasianismo setecentista e o
filo-helenismo oitocentista correspondem a tomadas de posição sobre o seu presente, do ponto
de vista político ou cultural – isto vale para parnasianos mineiros como Cláudio Manoel da
Costa e Tomás Antonio Gonzaga, ou para autores malditos, como Lord Byron, considerado
herói da libertação dos gregos do jugo otomano, ou mesmo Oscar Wilde, considerado
apologista do “amor que não pode ser nomeado”, referência à sua condição homossexual,
associada com frequência ao conhecido homoerotismo grego.
Francisco Marshall poderia ser citado como um dos historiadores brasileiros da
Antiguidade que se preocupa, atualmente, com a interpretação do lugar do legado clássico na
formação da identidade nacional. Conforme suas palavras, a relação com o passado clássico
“decorre especialmente de uma opção que os indivíduos e coletividades têm realizado ao
longo dos séculos (...)” (MARSHALL, 2005: 21).
Gostaria de avançar no diálogo com este helenista conterrâneo, uma vez que estuda o
mesmo fenômeno, referente ao mesmo período, no que concerne à capital do estado, Porto
Alegre. Ao interpretar o clássico na paisagem das cidades brasileiras, Marshall (2005: 23)
constata a

(...) presença muito significativa desta tradição cultural em cidades como esta Porto
Alegre, repleta de informação neoclássica, [percebendo] um tecido de imagens e
memórias culturais que informa sobre a identidade e os projetos de nossos
conterrâneos de cerca de 100 anos atrás.

113
Ao estudar especificamente o Clássico na capital gaúcha, Marshall (2005: 24) afirma
que

A Porto Alegre neoclássica é um rico fenômeno de recepção do mito antigo, pois dá


testemunho da formação da cidade, no momento de seu amadurecimento político e
econômico, à luz de ícones e concepções resgatadas diretamente das épocas de
Péricles e de Cícero. Junto com o busto daquele líder da democracia ateniense,
postado entre deidades romanas, em meio às figuras que adornam a frente da antiga
prefeitura: no paço solene, os símbolos do lugar, a sua grande dimensão, [traduzem]
o projeto de inserção histórica daquela comunidade, no momento republicano de
refundação da identidade e de florescimento social e econômico da região.

Interessa-me aqui ressaltar o questionamento feito por Marshall (2005: 24) à


historiografia do patrimônio histórico das cidades brasileiras, uma vez que compartilhamos de
sua posição:

Os historiadores da cidade conseguem identificá-la [Porto Alegre] como


neoclássica e eventualmente ler algumas alegorias da iconografia urbana, mas
raramente percebem qual neoclassicismo é este, que valores, textos e doutrinas do
mundo clássico são resgatados e monumentalizados – a recepção do mundo antigo.

A visão de Marshall sobre a apropriação do legado clássico como uma teoria da


recepção do mundo antigo é compartilhada pelo autor deste artigo: considero necessário
perceber a especificidade que diferencia as formas particulares de apropriação do Clássico nas
diferentes cidades brasileiras, conforme o perfil cultural, econômico, social e étnico que
marca os processos de urbanização em sua historicidade única. Ou seja, uma vez que a
individualidade de cada cidade pode ser percebida por meio de suas expressões patrimoniais,
cada cidade tem suas ênfases e escolhas no processo de releitura e reapropriação da
Antigüidade Clássica, as quais são expressão de sua identidade social. Para tanto, com o rigor
do espírito classificatório da Arqueologia, as manifestações deste processo de apropriação do
legado clássico devem ser inventariadas e classificadas.

Apolo e Musas revividos: liras e cítaras na iconografia urbana de cidades do Extremo


Sul do Brasil

O estudo de caso da Iconografia Urbana de Pelotas, que complementa o estudo


teórico desenvolvido neste artigo, foi apresentado na comunicação “Apolo e Musas revividos:
liras e cítaras na iconografia urbana de cidades do Extremo Sul do Brasil”, como parte da
mesa redonda “Mitos Antigos e Recepções Modernas: Estudos de Iconografia”, coordenada

114
pela profa. Dra. Kátia Maria Paim Pozzer, que integrou a programação oficial do Congresso
da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, realizado no Rio de Janeiro, em outubro de
2012.
Proponho, com base na sistematização das evidências iconográficas, uma
possibilidade de interpretação do sentido do clássico na identidade cultural de Pelotas e da
região sul, em que os elementos associados a Apolo e às Musas prevalecem (Figuras 2, 3 e 4),
secundados por atributos e representações ligadas a Hermes (Figura 1).
Os monumentos públicos, somadas às esculturas e ornatos arquiteturais, compõem boa
parte do cenário do que aqui chamamos iconografia urbana, no sentido não somente de ser
integrante da vida da cidade, mas por estar exposta ao olhar nas ruas das cidades. A lira ou
cítara, assim como as Musas, são recorrentes como parte do repertório iconográfico urbano de
cidades da época. A Fontes das Nereidas, inaugurado em 1873, na Praça Cel. Pedro Osório,
em Pelotas, idêntica (mas em proporções menores) ao chafariz principal de Edimburgo é um
belo exemplo. Entre as quatro Musas representadas, uma delas segura uma lira (Figura 6. Ver
Figura 2).

Figura 6 – Esculturas em bronze de quatro Musas


no corpo central da Fonte das Nereidas. Elas
portam saberes e atividades artísticas, intelectuais
e científicas. Uma delas, vincula à música, segura
uma lira. [Fotografia: Gilberto Carvalho, 2004.]

115
Constatamos a presença da lira, como ornato adossado às fachadas, naqueles prédios
em que isto é mais previsível, como a fachada do Theatro Sete de Abril 6 e o do Teatro
Guarani. No primeiro caso, a representação resulta da reforma de 1916, que conferiu à
fachada um misto de traços Art Nouveau e Art Déco, com elementos ornamentais associados
às artes do palco, como seria previsível (Figura 7); no segundo, inaugurado em 1921, foi
colocada acima da fachada, na área da platibanda, próxima à figura do índio Guarani que se
destaca sobre o frontão, inspirado na ópera de Carlos Gomes.

Figura 7 – Detalhe da fachada do Theatro Sete de Abril, sobre uma


das janelas do foyer, em que se vê, qual um belo ornato, lira
estilizada, com 5 cordas e braços corniformes. Motivos florais
acompanham o movimento da curva dos braços do instrumento, o
que reforça o caráter ornamental.7 [Fotografia: Gilberto Carvalho,
2004.]

A presença da lira ou da cítara greco-romana, em fachadas de teatros ou óperas


construídos entre a segunda metade do século XIX e o primeiro quartel do século XX, é
bastante freqüente. Como exemplos, podermos trazer aqui alguns teatros e óperas: o Teatro
Massimo Bellini de Catânia, na Sicília8, onde a cítara é usada como ornamento incorporado

6
Prédio inaugurado em 1833.
7
O teatro foi inaugurado em 1833, mantendo-se desde então em atividade praticamente ininterrupta, até 2010.
Foi reformado no inicio da década de 1980, após sua municipalização e tombamento federal pelo IPHAN, que o
reconheceu como um importante integrante do patrimônio cultural brasileiro edificado, não somente pelo seu
valor arquitetônico, mas por ter sido palco de intensa atividade cultural ao longo de mais de 170 anos. Seu prédio
original possuía sóbria fachada neoclássica, seguindo padrão interno elisabetano, em formato de lira (ou
ferradura). Possivelmente, foi o primeiro prédio, na cidade de Pelotas, a diferenciar-se do padrão luso-brasileiro,
adotando elementos clássicos em sua fachada. No ano de 1916, foi inaugurada a remodelação da fachada do
teatro, realizada pelo arquiteto José Toniese, que lhe conferiu o que na época se definiu como um aspecto
“moderno”, consistindo na adequação da mesma ao estilo Art Nouveau. Na verdade, mistura elementos Nouveau
e Déco. Apesar de abandonar a simplicidade dórica original, manteve, em alguns ornatos, o eco de simbolismos
clássicos, de modo que o Legado Clássico que antes se traduzia no rigor da fachada neoclássica deslocou-se para
a sutileza de alguns detalhes iconográficos.
8
Prédio inaugurado em 1890.

116
aos gradis, colocada acima de uma máscara de teatro (Figura 8); o Teatro Rossini de Santa Fé,
na Argentina9, sobre cujo frontão vemos a imagem triunfal de um Apolo citaredo (Figura 9);
ou mesmo o Teatro Arthur Azevedo de São Luís, no Maranhão10, no qual optou-se por colocar
a imagem da cítara em destaque, no frontão que arremata sua harmoniosa fachada neoclássica
(Figura 10).

Figura 10
Figura 8
Figura 9
Figura 8 – Detalhe da grade do Teatro Massimo Bellini, em Catania, na Sicília: uma cítara estilizada, com cinco
cordas, sobre um máscara de teatro. Aos seus braços se acrescentam elementos e terminações que lhe dão um
aspecto floral. [Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2006.]
Figura 9 – Apolo citaredo, entre duas personagens femininas sentadas, sobre a fachada do Teatro Rossini, em
Santa Fé, Argentina. [Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2010.]
Figura 10 – Cítara estilizada, com 5 cordas, em destaque ornamentando o frontão da sóbria fachada neoclássica
do Teatro Arthur de Azevedo, de São Luís, Maranhão. [Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2011.]11

É interessante observar que existe um contraste entre duas situações de representação


de instrumentos musicais sobre fachadas de teatro: de um lado, a representação de
instrumentos usadas à época da construção da casa de espetáculos, como é o caso do
bandolim, cítara, pandeiro, clarim e clarinete representados sobre o corpo principal da fachada
do Theatro Sete de Abril, sobre as portas de acesso12; de outro, a representação estilizada de

9
Inaugurado em 1932 e construído pela Sociedade Italiana de Ajuda Mútua Vittorio Emanuelle III.
10
O teatro, em estilo neoclássico, sendo segundo mais antigo do Brasil em funcionamento, foi inaugurado em
1817.
11
A obra, iniciada em 1816, resultou a ideia de dois comerciantes portugueses, que, diante do crescimento da
cidade resultante do ciclo do algodão, viram a necessidade que a população tinha de uma casa de espetáculos.
Foi inagurado em 1817, com o nome de Teatro União, em homenagem ao Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarve. Foi o quarto teatro construído na cidade, que se destacou pelo conforto e grandiosidade de suas
instalações. Seu estilo neoclássico, no Brasil, na segunda década do século XIX, era uma novidade de vanguarda,
absolutamente contemporâneo ao que se fazia na capital do Império. Em 1852 seu nome foi mudado para Teatro
São Luiz, e, na década de 1920, numa homenagem ao dramaturgo maranhense Arthur Azevedo (1855 – 1908),
recebeu o seu nome atual.
12
Tanto o bandolim quanto a cítara faziam parte da boa educação de uma moça na virada do século XIX para o
XX. Temos notícias de orquestras de meninas da sociedade pelotense formadas exclusivamente por bandolins.

117
liras e cítaras de inspiração greco-romana, que não eram mais usados como instrumentos
musicais no século XIX e início do século XX. Eu diria que este contraste intencionalmente
salienta o caráter icônico que a representação dos instrumentos de Apolo e das Musas carrega.
Quer dizer mais do que simplesmente os instrumentos que eram usados na performance
musical da época – uma vez que, de fato, ninguém sequer saberia construir uma kithára na
época.
A lira e a cítara nas fachadas dos teatros, delineadas sob forma estereotipada, nos
remetem a um esquema iconográfico que, ao reportar atributos da música greco-romana
antiga, o que de fato faz é afirmar um ideal que encontra neste símbolo antigo revivido a sua
representação. Trata-se, usando a expressão de Warburg, da Nachleben, “pós-vida”, da
música grega, dos instrumentos de Apolo, que aviva uma memória de longa duração, através
da silhueta e corpo idealizado do instrumento. Ao mesmo tempo, porém, ostentada na fachada
destes prédios, icônica, de forma difusa, a lira coloca um conjunto de ideais que se cria
marcarem o progresso da humanidade. O lugar deste progresso seria a cidade; sua forma
social, a vida urbana; seu paradigma de modernidade, os ideais de ciência, equilíbrio, beleza e
racionalidade, que se acreditava terem como origem a Antiguidade greco-romana.
Por simbolizar mais do que os palcos e suas artes, a lira ou cítara foram escolhidas
também para adornar a fachada de prédios que não estavam ligados diretamente à função
cênica ou musical, como é o caso da lira encimando a fachada lateral do prédio do Club
Caixeiral, em Pelotas, cuja imponente sede foi inaugurada em 1904 (Figura 11).

Figura 11 – Ornamento figurativo em forma de cítara greco-


romana, com quatro cordas, envolto em motivos florais, sobre
uma fita, coroa a parte central da fachada lateral, encimando o
número que informa a data da construção da sede do clube
(1904). Observe-se o detalhe de que sobre a travessa superior
foi colocada uma concha vieira, ornato bastante freqüente nos
estilos neoclássico e eclético, que faz remissão ao mito de
Afrodite. [Fotografia: Gilberto Carvalho, 2004.]

Neste caso, porém, pode-se arguir que se trata de uma instituição que incluía
interesses culturais, sintomático do fato de ter sido criada nos salões da Sociedade
Terpsichore, em 1879, e de ter possuído no início do século XX uma biblioteca cujo acervo

118
chegou a contar com mais de 10 mil volumes. Situação análoga se verifica no Clube
Jaguarense13, que ostenta uma escultura de Apolo citaredo sobre sua fachada. (Figura 12).

Figura 12 – Estátua arquitetônica


de Apolo citaredo, sobre a fachada
do Club Jaguarense.14 [Fotografia:
Fábio Vergara Cerqueira, 2009.]

Parece-nos significativo destacar o uso da imagem de liras ou cítaras adornando


fachadas de residências da região da fronteira extremo-meridional do Brasil. Podemos aqui, à
guisa de ilustração, apresentar os exemplos de uma casa de Arroio Grande (Figura 13) e outra
de Pinheiro Machado (Figura 14), ambas localizadas junto à praça central ou arredores
imediatos, datadas da primeira metade do século XX. É como se o proprietário da casa,
através da representação de uma lira ou cítara na fachada de sua casa, quisesse se mostrar
comprometido com os ideais de modernidade e urbanidade, ancorados na tradição cultural
greco-romana, que eram simbolizados pelos instrumentos de Apolo e pelas Musas. E a força
do ícone é tal que o motivo se descola do instrumento, e vira ornamento.

Figura 13 – Frontão que ornamenta a platibanda


de uma casa do início do século XX, em Arroio
Grande, encimado por três compoteiras e adornado
por uma lira estilizada, com três cordas e braços
corniformes, representada em relevo.
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2011.]

13
Fundado em 1881.
14
O prédio, que segue a tendência do ecletismo histórico, recentemente sofreu desabamento de parte de seu
telhado, o que causou danos à fachada..Uma vez a que a cidade de Jaguarão foi reconhecida pelo IPHAN como
Cidade Histórica (em 2010), em razão, entre outros motivos, da grande concentração de prédios no estilo eclético
em sua área central, foi incluída no PAC-Cidades Históricas, de modo que o IPHAN e os técnicos locais estão se
empenhando em viabilizar a recuperação do prédio.

119
Figura 14 – Casa do final da primeira metade do século XX, na
praça central de Pinheiro Machado, possui adornos em forma de
lira corniforme sobre a platibanda. Observe-se que um motivo
vegetal se acomoda sobre a parte superior da lira, reforçando seu
caráter ornamental.
[Fotografia: Acervo LEPAARQ, Universidade Federal de
Pelotas, 2006.]

É talvez por esse caminho que possamos compreender porque o uso da imagem da
lira ou cítara, alçada a uma função icônica, associa-se tanto a instalações de caráter cultural,
associativo ou propriamente musical, quanto a prédios aos quais estas funções não estão
vinculados – casos em que percebemos a elevação das silhueta da lira à condição de um
ornato, quase se desvinculando da representação do instrumento musical.
Como exemplo da associação da lira a instituições de caráter cultural, podemos
lembrar o logotipo usado à época da fundação do Conservatório de Música de Pelotas, em
1918, que representa uma alegoria masculina (alada), tocando uma lira (Figura 15). Não é
necessário aqui dizer que nenhum aluno imaginaria, à época, que frequentaria o conservatório
para aprender a tocar lira! Conforme Isabel Porto Nogueira,

Era usado nos programas de concerto do Conservatório, que fazem parte do acervo
do Centro de Documentação. É uma figura recorrente em diversos tipos de
documentos do acervo, sugerindo que tenha sido considerada emblemática da
escola, posto que constantemente usada.15

Reforçando o simbolismo do cordófono grego como marca da missão institucional, vê-


se até hoje, sobre a mesa que recepciona os visitantes que ingressam no prédio, um enfeite de
madeira, em forma de lira, que, segundo os depoimentos dos professores e funcionários mais
antigos, “esteve sempre ali” (Figura 16). Não há necessidade de se reproduzir aqui alguns dos
exemplares de quadros de formatura na forma de lira, existentes igualmente no Instituto
Musical de Belas Artes (IMBA), de Bagé.

15
Informação passada por mensagem de e-mail (em 04/01/2012).

120
Figura 15

Figura 16

Figura 15 – Logotipo institucional, usado nos programas de concerto do Conservatório de Música de Pelotas na
época de sua fundação. Qual uma alegoria da música, compõe-se da imagem de um jovem alado tocando uma
lira grega. Acervo do Centro de Documentação Musical do Conservatório de Música da Universidade Federal de
Pelotas.
Figura 16 – Escultura de madeira em forma de lira, com 4 cordas, usada como decoração na mesa situada no
hall de entrada do conservatório. Acervo Conservatório de Música da UFPEL [Fotografia: Raquel Heidrich,
2005]

No caso em que a lira é incorporada à decoração numa função de enfeite, de ornato,


há situações em que a sua figuração como instrumento musical é mais clara, pelo seu contexto
iconográfico, em outros, é apenas icônica, como referência à função musical do objeto, e há
outros ainda, por fim, em que ela de fato é apenas um ornato.
Os bibelôs e enfeites de mesa são bom exemplo do caso em que há um contexto
iconográfico que remete à função musical, e mesmo ao seu contexto original greco-romano,
abordado de forma idealizada. Estes objetos eram muitos comuns no final do século XIX e
primeiras décadas do século XX. Abundam hoje em antiquários e “mercados de pulgas”: por
exemplo, na Feira de San Telmo, em Buenos Aires, encontramos alguns destes objetos, como
a base de abajur, em que um jovem avança tocando lira (Figura 17), ou a base de prata, na
qualo vemos uma mênade tocando lira, à frente de outra, que dança, em êxtase dionisíaco,
segurando um tirso (Figura 18).

121
Figura 17 – Base de abajur, de
inspiração clássica, com um
personagem tocando lira. À venda
em antiquário da Feira de San
Telmo, localizado na Rua Defensa,
em Buenos Aires (exposto na
vitrine).
[Fotografia: Fábio Vergara
Cerqueira, 2010.]

Figura 18 – Base de prata de uma baixela de cristal. Os


pegadores, nas extremidades, são acompanhados de
imagens de mênades soprando aulos. Na imagem
principal vemos um thíasos dionisíaco, composto por três
figuras: uma mênade tocando lýra lidera o grupo, seguida
por outra mênade, que dança em êxtase com um tirso. À
venda em antiquário do bairro San Telmo, Buenos Aires
(exposto na vitrine).
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2010.]

Um exemplo em que ela assume um papel icônico, são as pequenas cadeiras usadas
nas salas de música: nos saraus, que ocorriam nestes ambientes, a cítara representada no
espaldar da cadeira remetia diretamente à função musical, localizada em um antiquário de
Buenos Aires (Figura 19). Já no banco de metal que se situa no pátio do Museu Carlos
Barbosa, em Jaguarão, a lira, que vemos no seu encosto, se distancia da remissão direta à
prática musical e assume aqui mais propriamente o papel de um ornato (Figura 20).

122
Figura 19 – Pequena cadeira de madeira com espaldar que contém a
imagem de cítara estilizada, com quatro cordas. Na condição de
ornamento, recebe, assim com outros exemplares, detalhes com
aspecto de elemento vegetal. Objeto à venda no interior de um
antiquário da rua Defensa, no bairro San Telmo, em Buenos Airtes.
De acordo com o proprietário do estabelecimento, trata-se de uma
cadeira que pertencia ao mobiliário das salas de música, usada
durante os saraus. Fotografia feita com autorização oral do
proprietário.
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2010.]

Figura 20 – Banco de ferro com decoração do espaldar em


forma de lira estilizada, com três cordas, no jardim do Museu
Carlos Barbosa em Jaguarão, datado do começo do século
XX. No mesmo jardim, há um banco de dois lugares com o
mesmo ornato. Fotografia autorizada pela responsável pela
visitação, por se tratar de imagem externa.
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2012.]

Finalmente, temos os casos em que a lira, quase esquecida a sua função musical,
figura apenas como um ornato, tal qual um motivo floral ou geométrico. Dois exemplos, em
Pelotas, seriam o gradil que ornamenta a platibanda da fachada de uma casa situada na rua
Benjamin Constant, no bairro do Porto (Figura 21), e a platibanda de um prédio Art Déco
localizado na esquina da avenida Gen. Osório com a rua Gen. Neto, em que o motivo da lira
se repete ao longo da fachada (Figura 22 e detalhe).

Figura 21 – ornato em forma de lira


estilizada em uma platibanda em ferro.
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira,
2012.]

123
Figura 22 – conjunto da platibanda, com os ornatos estilizados em forma simplificada de lira.
[Fotografia: Fábio Vergara Cerqueira, 2012.]

Figura 22 (detalhe) – visualização de detalhe em forma de lira da platibanda. [Fotografia: Fábio Vergara
Cerqueira, 2012.]

Em busca do diálogo com os testemunhos históricos

Ao seguirmos estes passos, rastreando as evidências da iconografia urbana,


procuramos localizar testemunhos históricos que dessem ressonância a esta intensidade das
releituras do Legado Clássico, processadas no período correspondente à parte do Segundo
Império e República Velha.
Na sistematização dos dados iconográficos levantados, destacou-se a recorrência de
signos culturais relativos à música grega antiga, condensados sobretudo no ícone da lira, que
de certa forma funciona como uma metáfora de todos os valores culturais da Antigüidade
Clássica, dos quais a autodenominada “Atenas do Sul” desejava ser herdeira. Encontramos
um fulcro especial para interpretarmos este repertório imagético na denominação das
sociedades teatrais e musicais existentes na época, que foram objeto de levantamento
sistemático pela historiadora Beatriz Ana Loner, em sua obra A construção da classe operária
em Pelotas e Rio Grande, publicada em 2001
A maioria destas sociedades possuíam denominações que nos remetiam igualmente a
música grega antiga, constituindo um caso notável de apropriação do Legado Clássico. A
mais antiga é a sociedade Terpsychore, ativa desde 1865, vinculada ao comércio, tendo
124
exercido um importante papel na criação do Club Caixeiral (LONER, 2001: 130) 16 .
Terpsychore era uma das musas gregas, relacionada à atividade musical. Outras três musas
foram citadas nas denominações de sociedades musicais e teatrais: Melpomene, Euterpe e
Thalia.
A notícia mais antiga que possuímos da Sociedade Melpomene data de 1884. Sobre
seu estatuto, sabemos da obrigatoriedade de seus diretores serem empregados no comércio
(LONER, 2001: 130)17. Duas décadas e meia depois, em 1909, verifica-se o funcionamento
da Sociedade Recreativa Euterpe, formada por artesãos e possuindo corpo cênico18. A musa
Thalia, vinculada ao teatro, exerceu grande fascínio, de modo que três sociedades
reivindicaram sua proteção. A Associação Filhos de Thalia, atuante em 1883, Thalia do
Areal, em funcionamento até 1902, e Filhos de Thalia, em 1906 (LONER, 2001: 130).
A Associação Filhos de Thalia era composta por artesãos e pequenos patrões
(LONER, 2001: 130)19. A Thalia do Areal contava com grande simpatia popular. Conforme
observa B. A. Loner, a sociedade estava localizada em um

bairro de trabalhadores das charqueadas pelotenses, a existência desse grupo indica


que, mesmo setores do proletariado considerados rústicos e com origem nacional,
viam na arte teatral uma forma de diversão e de expressão de seus anseios.

Mais do que isto, chama-nos a atenção a apropriação do Legado Clássico processada


por setores populares, desfazendo a visão histórica preconceituosa (relativamente à tradição
clássica) de que a vinculação identitária ao clássico seria um fator distintivo da identidade
social das elites que, durante o período imperial, beneficiaram-se da escravatura e por este
motivo teriam recorrido a elementos greco-romanos como forma de justificar o contraste entre
a “modernidade” da cidade emergente e a selvageria da escravidão.
Reforçando esta linha de raciocínio, observemos que a Filhos de Thalia, nova
entidade criada em substituição à anterior, era composta por negros (LONER, 2001: 130)20.
Deste modo, constatamos que o recurso à tradição clássica, sobretudo condensada em ícones
relativos à música grega antiga, mas completado por representações variadas concernentes ao
domínio de proteção de Hermes (Mercúrio), constitui um processo de construção de
identidade social que atinge a expressão do conjunto da sociedade, não se restringindo a
setores da elite. Esta constatação consolida a interpretação que estamos construindo de que a

16
A Pátria, 12/02/1890. Correio Mercantil, 13/03/1892, 09/04/1890.
17
Correio Mercantil, 10/06/1884.
18
Opinião Pública, 19/01/1909, 11/01/1900.
19
A Pátria, 22/09/1883.
20
Opinião Pública, 02/06/1906, 06/06/1908.

125
apropriação do Legado Clássico ocupa um lugar de destaque na identidade social do modelo
de vida urbano que era forjado pela Pelotas da virada do séc. XIX para o séc. XX.
Foram identificadas ainda outras oito sociedades musicais, da quais possuíam
denominações concernentes ao Legado Clássico. Entra as demais, um possuía denominação
cristã, a Sociedade Musical Santa Cecília, que era uma banda musical do período imperial
composta por trabalhadores, que não permitia a participação de negros. A Sociedade Musical
União revela, por meio deste conceito, vinculações com ideais maçônicos, que valorizavam a
solidariedade, e com o princípio do associativismo, que caracterizou este período de formação
da classe trabalhadora da região, fato constatado na composição desta banda, da qual
participavam trabalhadores. Havia ainda o Clube Beethoven e a Philarmônica Pelotense,
ambos de natureza benemerente, fundados por senhoras da sociedade local: o primeiro foi
fundado, em 1892, e patrocinado pela D. Angélica Borges da Conceição, a Baronesa da
Conceição21; o segundo incluía em sua diretoria senhoras abastadas, tendo sido fundado pela
Dna. Flora Antunes Maciel, a Baronesa do Arroio Grande, com o objetivo de incentivar a
música e realizar concertos na cidade (LONER, 2001: 136-37; OLIVEIRA, 2002: 10-11).
Das quatro sociedades musicais restantes, três delas faziam referência à lira e uma ao
deus Apolo, o deus músico. A Sociedade Musical Apollo era uma banda musical do período
imperial composta por trabalhadores, característica comum à Lyra Artística de Pelotas, à Lira
Artística, e à Lyra Pelotense, as duas últimas do período republicano22. A peculiaridade da
Lyra Artística de Pelotas era sua composição multi-étnica, tendo inclusive elementos negros
em sua diretoria (LONER, 2001: 136, esp. nota 134).
Note-se que a maior parte das sociedades musicais que se utilizavam de nomes de
proveniência grega, atinentes à música grega antiga (nomes de Musas, a divindade Apolo e a
lira), vinculavam-se a grupos de trabalhadores, no início trabalhadores do comércio e, mais
tarde, após a Abolição da Escravatura, trabalhadores negros das charqueadas pelotenses de
extração notadamente popular.
Na reinterpretação do clássico, paralelamente a simbolismos políticos, a música teve
um caráter icônico central, manifesto tanto na iconografia, com uma cidade povoada por liras
e cítaras, como na denominação de entidades culturais e artísticas, com alusão predominante
às Musas, a Apolo, e a seu instrumento, a lira. Constatamos assim o quanto o imaginário
social da época processou uma releitura do Legado Clássico na construção de sua identidade
social, na qual o ícone da lira grega ocupava um lugar central, como metáfora dos valores

21
Correio Mercantil, 05/05/1892.
22
A Lyra Pelotense, em 1911, fundiu-se com a Sociedade Beneficente Harmonia dos Artistas.

126
humanistas universais atribuídos à Herança Clássica com os quais o modo de vida urbana
emergente queria se identificar, como forma de legitimação e decodificação de suas práticas
sociais cotidianas.

Considerações finais

Valores associados ao imaginário que se tinha destas divindades eram ativados nas
idealizações que norteavam o projeto de urbanização e modernização vivido no Segundo
Império e República Velha. O levantamento da iconografia urbana de inspiração clássica nos
centros históricos de Pelotas, Jaguarão, Arroio Grande, Pinheiro Machado e Bagé, cidades
localizadas na fronteira meridional do Rio Grande do Sul, revelam Apolos e Musas, liras e
cítaras, como um repertório visual de releitura do clássico focada na música.
A lira simbolizaria o ideal da ‘civilização greco-romana’, paradigma da modernidade
que motivava a urbanização – certamente, na matriz européia aqui reciclada, as inspirações
para este ideal eram buscadas não somente no avanço do conhecimento dos textos clássicos,
graças sobretudo à solidez da filologia germânica do século XX e ao papel do ensino das
letras clássicas na educação da época, mas também, e quiçá principalmente, em virtude da
enxurrada de imagens e objetos remanescentes do Mediterrâneo antigo que se apresentaram
efusivamente ao olhar do europeu em razão dos milhares de vestígios, integrais ou
fragmentários, que foram trazidos a lume pelas Grandes Escavações, realizadas entre as
últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX.
A presença deste ícone funciona como um mecanismo de filiação à tradição cultural
clássica, que sob vários aspectos condensou-se, ao longo de séculos, desde a Antigüidade, em
torno de uma representação cultural da lira como símbolo da cultura humanista como um
todo. O recurso à imagem da lira, aqui assumindo um papel icônico, revelaria o apreço que a
cultura musical e a vida intelectual desfrutavam entre a elite e os setores médios e emergentes,
como símbolo da sociabilidade urbana, ao mesmo tempo em que por ele perpassam valores
amplos do que se entendia por urbanidade, civilização, progresso.
O que propus, na primeira parte deste artigo, foi apenas apresentar um conjunto de
pressupostos, que servem de base para a sistematização e interpretação que proponho destas
manifestações do Clássico no Patrimônio Cultural pelotense, identificadas por meio de sua
manifestação na Cultura Material, particularmente no que convencionamos chamar aqui
Iconografia Urbana. Por meio desses pressupostos, procuro modelar uma linha de análise da

127
recepção do Clássico verificada na Cultura Material e na Iconografia das cidades brasileiras,
que compõe nosso Patrimônio Cultural e nossa Memória.
Assumimos, em suma, que, além de evidenciar o Clássico no Patrimônio Cultural
brasileiro, compete-nos também a tarefa de interpretar o(s) significado(s) que subjaz(em) à
forma de sua (re)-apropriação. Neste artigo, centrado na meta de compreender o caso da
cidade de Pelotas, procurei formular bases para buscar compreender o significado da recepção
e reinterpretação do Legado Clássico nas cidades gaúchas em parte dos séculos XIX e XX,
mas que podem igualmente servir para se pensar este fenômeno transcultural em outras
regiões e cidades do Brasil.

Agradecimentos
Agradeço, pela prospecção de imagens urbanas nas cidades da Zona Sul do RS e pelos
debates sobre o patrimônio cultural da região, à equipe do Programa Memoriar, e em especial
à Luísa Lacerda Maciel, à Mariciana Zorzi, à Neuza Janke e à Jezuína Kohls Schwantz.
Agradeço ainda à Isabel Porto Nogueira, pelas imagens do Conservatório de Música, e,
finalmente, a Gilberto Carvalho e Cristina Rosisky, pela cedência das fotografias de sua
autoria. Os conceitos, informações e raciocínios aqui apresentados são de estrita
responsabilidade do autor.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007.

FINLEY, M. I. (Ed.) The legacy of Greece. A new appraisal. Oxford: Oxford U.P., 1984.

HOLLANDA, S.B. de. A visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000 [1959].

LONER, Beatriz Ana. A construção da classe operária em Pelotas e Rio Grande. Pelotas:
Editora Univeristária da UFPEL, 2001.

MARSHALL, F. Arqueologia clássica e patrimônio nacional, Cadernos do LEPAARQ.


Textos sobre Antropologia, Arqueologia e Patrimônio. Pelotas: Editora da Universidade
Federal de Pelotas, vol. 2, n. 4, p. 19-26, 2005.

OLIVEIRA, Maria Augusta Martiarena de. Memória Fotográfica do Conservatório de


Música (1918 – 1969). Monografia (Conclusão de curso, Licenciatura em História)-Instituto
de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2002.

TEIXEIRA, Felipe Charbel. Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas. História e
Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p. 134-147, 2010.

128
A IMAGINAÇÃO DO PASSADO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE GREGA: O
CASO DA ARQUEOLOGIA CLÁSSICA NO SÉCULO XIX

José Geraldo Costa Grillo1

Introdução

A Arqueologia em geral vem atentando, já faz um bom tempo, para o campo


discursivo de sua disciplina, bem como para as epistemologias que moldam seus discursos.
Assim, a história das arqueologias tem posto à luz seus quadros interpretativos, possibilitando
a crítica de suas práticas discursivas (cf. FUNARI, 2007: 30). O mesmo se passa no caso
particular da Arqueologia Clássica, que também se repensa por meio de análises, cada vez
mais frequentes e contundentes, de seu discurso, buscando detectar os escritos fundadores e as
condições de sua produção e assim compreender como a disciplina constrói seu objeto de
conhecimento (cf. SHANKS, 1996: 92-118; FUNARI, 2002: 121-124; 2011: 213-217).
O campo da Arqueologia foi fortemente impactado ao longo dos anos 1990 pelo
surgimento de estudos interessados na relação entre nacionalismo e construções de
identidades nos tempos passados. Tomou-se consciência de que tanto o passado tem sido
usado com determinadas intenções, como do fato deste nunca ser um campo neutro de
discurso, uma vez ser descrito por narrativas arqueológicas profundamente imbricas no
interior de realidades sociopolíticas atuais (cf. MESKELL, 1998: 1-3). Nessa direção, Pedro
Paulo Abreu Funari (2007: 28) afirma que “a Arqueologia Histórica liga-se, de forma
umbilical, às noções de identidade, tratando de sociedades, de uma forma ou de outra,
relacionadas ao arqueólogo”.

1. Argumento

As relações do presente com o passado têm gerado um intenso debate entre os


pesquisadores, implicando em um intrincado jogo que permeia as sociedades atuais. A
Arqueologia Clássica, no quadro das ciências modernas, é uma disciplina recente, que,
mesmo com raízes longínquas no tempo, remonta às primeiras décadas do século XIX. No
contexto europeu da época, no qual se estabeleciam dois movimentos, o dos Estados

1
Professor de História da Arte Antiga no Departamento de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo.
Nacionais e o da expansão colonial, as pesquisas arqueológicas adquiriram uma nova
dimensão, expressa de modo particular nos países que estavam em busca de suas identidades
nacionais. O caso da Grécia é, nesse sentido, exemplar, uma vez que seu passado desempenha
importante papel no imaginário grego atual.

2. Arqueologia, nacionalismo e identidade

Um dos primeiros arqueólogos a demonstrar que a Arqueologia opera dentro de


determinados contextos foi Bruce Graham Trigger (1984). Percebendo que havia considerável
variação, de um país ou de uma região do mundo para outra, no modo como arqueólogos
problematizam e interpretam os registros arqueológicos, examinou como essas variações
revelam fatores que influenciaram suas pesquisas e constatou três diferentes contextos sociais:
o nacionalismo, o colonialismo e o imperialismo; cada qual produzindo um tipo distinto de
arqueologia a ele associada.
A tomada de consciência do caráter ideológico dessas arqueologias levou os
arqueólogos a abandonarem o foco primário sobre a evolução e concentram-se em interpretar
os registros materiais de povos específicos. No contexto do modelo histórico-cultural,
arqueologias de cunho nacionalista foram usadas para reforçar e mesmo sustentar o orgulho e
os valores de nações ou de grupos étnicos (cf. Trigger, 1984: 358; 1989: 174; 1995: 273-277).
O nacionalismo requer, para isso, a elaboração de um passado, seja ele real ou inventado, e,
tanto num caso como no outro, os dados arqueológicos são manipulados conforme os
propósitos nacionalistas, sendo o maior deles a construção de uma nação (cf. KOHL &
FAWCETT, 1995: 9-10; KOHL, 1998: 223).
O processo de construção de uma nação implica, portanto, a formação de
identidades. A Arqueologia desempenha nessa esfera um papel preponderante, pois a
materialidade de seu objeto de pesquisa tem forte apelo no imaginário contemporâneo;
fenômeno que se explica devido à concretude dos monumentos e objetos históricos, sua
visibilidade nos museus e seu valor icônico. Os mesmos se ligam ao tema das identidades
porque podem ser mobilizados e dispostos conforme essa finalidade (cf. MESKELL, 2007:
24). Atitude bastante frequente, como se verá a seguir.

3. O caso da Grécia

130
No estudo mais recente sobre a arqueologia grega, Anastasia Sakellariadi (2010),
enfatizou que o desenvolvimento da arqueologia na Grécia foi determinado pelo papel central
desempenhado pela Antiguidade Clássica no imaginário europeu em geral e no grego em
particular.
Ao abordar o tema da construção do passado pelos Gregos modernos, Michael
Shanks já observava como a restauração do Partenon para dar boas vindas ao rei Oto da
Bavária a sua capital, Atenas, “foi um claro símbolo da unidade ideológica entre as ideias
classicistas e a expressão do poder do Estado” e de como “monumentos arqueológicos
tornaram-se verdadeiros emblemas do novo Estado grego depois de 1821” (SHANKS, 1996:
79).
O arqueólogo grego Yannis Hamilakis foi quem mais desenvolveu esta temática. “A
Grécia, diz ele, é ao mesmo tempo um país e um topos no imaginário ocidental, uma realidade
e um mito, um bem nacional e uma reivindicação internacional” (HAMILAKIS, 2007: 58).
Hamilakis chega a essa tese investigando as ligações e associações da Antiguidade
Clássica e seus objetos com a arqueologia e a imaginação da nação. Nesse sentido, procura
responder a uma série de questões inter-relacionadas: por que a necessidade de vestígios
materiais do passado? Como eles operam no processo de se imaginar a nação? Como
contribuem para a ideia de nação e à produção de sua materialidade? Qual o papel da
arqueologia e dos diferentes atores sociais (Estado, intelectuais, instituições etc.)? Por que
certos temas e contextos e não outros?
Está em jogo, portanto, o papel dos vestígios materiais da Grécia antiga e das
práticas arqueológicas dentro do processo de se imaginar a nação (cf. HAMILAKIS, 2007:
57-123). A construção da nação deu-se sobre a base dos seguintes fatores, dentre outros: a
independência nacional da Turquia; a reconstrução de monumentos históricos, como o
Partenon e o templo de Atena Nike na Acrópole; a formação de uma história mítica da nação
por parte dos intelectuais, que valorizou os monumentos clássicos; a proteção das
antiguidades e o surgimento de uma historiografia nacional; a intensificação das atividades
arqueológicas e o surgimento de uma arqueologia nacional; uma política estatal através de
instituições arqueológicas e jornais oficiais; a importância dos artefatos devido ao positivismo
arqueológico que os toma como verdade absoluta e sua divulgação ao público.
Houve, assim, uma redescoberta da herança helênica pelo povo grego em
consequência de processos ligados a desenvolvimentos políticos, bem como o surgimento de
tendências ideológicas, a exemplo da glorificação da Grécia clássica pelas nações europeias.
A realização, em 1905, do primeiro Congresso Internacional de Arqueologia em Atenas, é,

131
quanto a isso, paradigmático; pois, a escolha de Atenas em detrimento de Roma foi uma clara
expressão do triunfo da Grécia na Arqueologia Clássica (cf. DYSON, 2006: 131). A sessão de
abertura deu-se no Partenon, com o discurso inaugural proferido pelo Príncipe dos helenos,
Constantino, duque de Esparta, presidente do congresso e da Sociedade Arqueológica, como
segue:

Sobre o rochedo sagrado da Acrópole, ao qual a Hélade livre devolveu, após


muitos séculos, a serenidade que convém às obras imortais da arte, entre as ruínas
augustas deste templo de Atena, deusa de toda ciência, vós, peregrinos de uma nobre
e piedosa peregrinação, viestes hoje trazer, de todos os pontos do mundo, vosso
tributo de admiração à glória e à beleza da Grécia antiga.
Em nome da Grécia moderna, eu agradeço-vos, Senhores, por terem
respondido com solicitude ao convite que ela vos fez de visitar o país onde
permanecem as grandes lembranças de um passado pleno de glória e de colaborar no
estudo dos monumentos que nos deixou o mundo antigo.
Temos o sentimento que, na medida de nossas forças, cumprimos nosso
dever que nos incumbia de conservar e salvar, de expor e revitalizar os monumentos
de nosso passado nacional, e não poupamos esforços para que nossa pátria se
revelasse como um lar para os estudos antigos. Temos, igualmente, a convicção que
o patrimônio deixado por nossos ancestrais é um tesouro comum a todos os povos
civilizados. Com esse fim, sempre nos empenhamos em sermos liberais ao extremo
dando a todas as nações nossa autorização e cooperação, a fim de que possam tomar
parte, em solo helênico e com os helenos, do combate geral pela ciência.
Podeis ver um efeito desta colaboração cordial entre as nações na convocação
deste congresso. Não há outro objetivo que o de servir ao progresso da ciência
arqueológica, o concurso e a união do mundo civilizado. Assim, é com confiança
que esperamos esta jornada, sabendo que podemos contar com a boa vontade e
entusiasmo de todos para uma obra, da qual ousamos tomar a iniciativa, nós helenos
modernos, filhos e herdeiros dos antigos helenos.
A cidade de Atenas está honrada por vossa presença. O povo heleno se
felicita comigo em acolher convosco os representantes eminentes de tantas nações
poderosas e este expressivo corpo de eruditos e mestres incontestáveis da ciência
arqueológica. Estendendo-vos a mão em sinal de hospitalidade, eu digo do fundo do
coração: ‘sejais bem-vindos’.
Entre as obras-primas da arte antiga, que trazem nelas ‘como um sopro de
eternal juventude e uma vida perenemente jovem’, no seio de um povo que pratica
com amor a religião de seu passado e segue avante sua marcha, confiando em seu
destino, colocai vossas mãos em obra alegremente, servos diligentes das Musas
antigas, e estejam seguros de que mundo civilizado, que representais, aplaudirá a
vossa nobre emulação, tão preciosa que é a honra do espírito humano.
Em nome do Rei dos Helenos, Jorge I, eu proclamo a abertura do primeiro
Congresso Internacional de Arqueologia (Comptes rendus, 1905: 88-91).

O discurso do príncipe exprime a cristalização de um processo desenvolvido ao


longo do século XIX no qual a Arqueologia dos mundos grego e romano se tornaria
“Clássica”, uma vez estar dedicado ao estudo de “civilizações” que chegaram ao ápice de seu
amadurecimento e tornaram-se, assim, modelos a serem seguidos. No interior desse processo,
o “nacionalismo” e a “construção identitária” encontram seu lugar de ser na base de um
“passado ideal”.

132
À voz príncipe, proclamando a “invenção da nação”, fazem o coro as das autoridades
gregas, que discursam na sequência; primeiro P. C. Carapanos, Ministro da Instrução Pública
e vice-presidente do congresso, e depois P. Cavvadias, Diretor Geral de Antiguidades e
Museus (cf. Comptes rendus, 1905: 91-100). Após eles, pronunciam-se os arqueólogos
representantes das instituições estrangeiras em Atenas: W. Dörpfeld do Instituto Alemão, A.
Wilhelm do Instituto Austríaco, R. C. Bosanquet da Escola Britânica, T. W. Heermance da
Escola Americana e M. Holleaux da Escola Francesa; os quais, ainda que voltados para outros
temas, respaldam, por assentimento ou simples presença, a idealização das autoridades gregas
(cf. Comptes rendus, 1905: 100-109).
Nesse contexto, o estabelecimento da antiguidade clássica como capital simbólico da
nação grega resultou da adoção do ideal ocidental do helenismo (cf. MORRIS, 2000: 37-76).
Todavia, houve uma passagem desse helenismo ocidental para um indígena, tipicamente
grego (cf. HAMILAKIS, 2007: 112-119). A Grécia moderna foi inventada por uma
convergência dos processos colonial e nacional, ou seja, por fatores externos no primeiro caso
e internos no segundo. Se por um lado, a Europa colonial, através do mecanismo do
helenismo ocidental baseado em uma narrativa linear de continuidade entre o passado grego e
seu presente, inventou a Grécia moderna, por outro, é necessário enfatizar que a narrativa
nacional helênica emancipou-se desse conceito adaptando-o e transferindo-o para si mesma.
Seja como for, nessa linha de pensamento, a Grécia moderna foi inventada do
presente para o passado com a ajuda da arqueologia. O problema desse processo formativo é
que a busca no passado pela etnicidade de uma nação atual pode até legitimar o presente, seu
principal objetivo, mas cria, ao mesmo tempo, um sentido pseudo-histórico de continuidade
(cf. KOTSAKIS, 1998: 51); pois, ocorre em seu desenrolar o apagamento das diferenças, seja
no próprio passado, seja deste em relação ao presente. O que se chama de Grécia antiga nunca
foi totalmente grega e muito menos homogênea, sendo, pelo contrário, heterogênea, como o é
também a atual.
A Arqueologia já abandonou em larga medida as grades narrativas universais, que
dariam conta de explicar o todo não importa a época e o lugar, e tem se voltando a estudos
contextuais, nos quais as diferenças culturais, a diversidade social e as múltiplas identidades
não são apagadas, mas, antes, valorizadas (cf. MESKELL, 1998: 6). Guinada que move a
disciplina de uma arqueologia de caráter nacionalista, com sua busca de uma identidade única,
a uma arqueologia do nacionalismo e das identidades com todas facetas que a cultura material
permitir identificar.

133
Considerações finais

O objetivo desse estudo foi o de mostrar como foram, num mesmo processo, o
passado imaginado e a identidade grega moderna construída, bem como o de explicitar os
mecanismos envolvidos nessa invenção tanto do passado quanto do presente. Foram
privilegiados, para tanto, os estudos mais recentes que contribuíram para a passagem de uma
arqueologia de caráter nacionalista para uma arqueologia do nacionalismo.
O foco não esteve somente na arqueologia do nacionalismo, mas também na
arqueologia das identidades, que tanta ênfase tem posto no diverso, no diferente, no outro,
tomado justamente na sua condição de outro. Arqueologias que no caso abordado se unem em
uma crítica genealógica de seus discursos e de suas práticas com o intuito partilhado de ao
menos tentar um estudo do passado mais livre do presente e com as feições dele próprio.

Agradecimentos
Agradeço aos meus professores Haiganuch Sarian e Pedro Paulo Abreu Funari e aos meus
colegas Glaydson José da Silva, Renata Senna Garraffoni e Rafael Rufino. Menciono o apoio
institucional da UNIFESP, da UNICAMP, do MAE-USP e da FAPESP. A responsabilidade
pelas ideias restringe-se ao autor.

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présidence de S. A. R. Le Prince Royal des hellénes, président de la Société Archeologique.
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135
O PRÍNCIPE CARATACO: NACIONALISMO E CONSTRUÇÕES IDEOLÓGICAS
DO MASCULINO A PARTIR DO SÉC. XVI

Renato Pinto1

Pautando e delineando o pensamento pós-colonialista, há pelo menos cinco décadas,


estão o questionamento do aspecto altruísta dos impérios e o foco no uso da violência para
alinhar os povos colonizados aos ditames das metrópoles (MATTINGLY, 2006/7: 11-5).2 A
maior parte dos estudiosos que produziram trabalhos sobre o colonialismo ou imperialismo
após a Segunda Guerra Mundial teve de incluir em suas reflexões o processo de
descolonização do mundo. Embora tal processo esteja inacabado para alguns (ver SAID,
1995: 35)3, seu impacto foi inegável nas disciplinas de Humanidades, em especial, na escrita
da História.4
Este estudo se insere no contexto pós-colonialista e nos estudos sobre imperialismo
porque procura questionar como figuras e ideologias do passado, neste caso, do mundo
romano, são resignificadas no mundo moderno a fim de legitimar o poder colonizador dos
impérios ocidentais. A este procedimento tem se dado o nome de “Usos do Passado”.
Nos estudos pós-coloniais, os usos do passado são compreendidos como um recurso
comum e estão entre as estratégias mais ubíquas na legitimação e interpretação do presente. O
que fomenta tal apelo não é apenas a discordância sobre o que aconteceu no passado e sobre o


Este estudo é uma adaptação de parte de minha tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação de
História do IFCH-Unicamp: Duas Rainhas, um Príncipe e um Eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do
masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana. Partes do texto aqui apresentado estão
publicadas nos Anais do XXVI Simpósio Nacional da ANPUH, 2011.
1
Professor de História Antiga da UFPE. Pós-doutor pelo MAE-USP. Doutor em História Cultural pelo IFCH-
Unicamp. Pesquisador Associado do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP-USP).
2
Nas negociações de poder não há apenas um discurso que se tornará hegemônico, ou mesmo que consiga criar
condições para que sua ação na sociedade seja totalmente congruente e livre de contradições, desde o momento
de sua própria criação. Desta forma, é temerosa a aceitação de que os colonizados foram vítimas passivas,
incapazes de compreender as forças que os cercavam (CORNWALL & LINDISFARNE, 1994: 8).
3
Edward Said aponta para a continuidade da influência do Imperialismo europeu do séc. XIX e do começo do
séc. XX. Importante lembrar que a Grã-Bretanha manterá Hong Kong como colônia até o fim do séc. XX.
Embora seja contrário às teorias totalizantes, para Said, é praticamente impossível desvencilhar-se das
influências do Imperialismo europeu (SAID, 1995: 36).
4
Um dos desdobramentos desta inflexão foi a maneira como acadêmicos dos países que haviam passado pela
experiência colonizadora notaram a parcialidade das fontes que tratavam de suas histórias e aquelas dos impérios
ocidentais. Foi propugnada uma maior asserção crítica dos documentos textuais. Outrossim, a cultura material,
enquanto fonte, ganhou impulso e autonomia como construtora de uma outra forma de conhecimento que
pudesse dialogar com o texto, deixando para trás qualquer pecha de simples objeto de ilustração
(GARRAFFONI, 2008: 139). Entre os importantes trabalhos de arqueólogos que tratam das influências dos
poderes imperiais no pensamento pós-colonial, ver: HINGLEY (2000), MATTINGLY (1997) e FUNARI,
HALL & JONES (1999).
que foi o passado, mas, sim, a incerteza se o passado é mesmo passado, concluído, ou se
continua, ainda que em diferentes formas (SAID, 1993: 1).
Eric Hobsbawm argumenta que as tradições que parecem ou se pretendem antigas
são, em verdade, quase sempre de origem muito recente. Estas tradições ditas antigas são
inventadas para dar sentido a diversas práticas que implicam a continuidade com o passado
(HOBSBAWM & RANGER, 1983: 1). Tanto as nações colonizadoras quanto as que lograram
chegar à independência vêm construindo seu passado, criando tradições que são exploradas
politicamente por grupos radicais e governos títeres. Desta forma, a reconstrução do passado
ganha força não como algo que pode ser estudado de forma isolada, mas como um elemento
que fomenta nossas ações no presente (SAID, 1995: 33-5 e 48-9).
A Renascença Inglesa (séc. XVI e início do XVII) fez com que os textos latinos se
tornassem mais conhecidos e foi possível para alguns estudiosos fazer uma ligação direta
entre o Império Romano, a Gália e o passado da Inglaterra. Um certo contato se deu entre os
trabalhos de antiquários da península itálica e os da Inglaterra. Ainda assim, a Inglaterra
tendia a ser enfatizada como única, separada de todo o contexto do passado romano do
continente (PIGGOT, 1989: 19). Este isolamento não era bem aceito por toda a
intelectualidade inglesa, que também buscava por elementos clássicos em suas origens. Havia
a tentativa por parte de antiquários e de intelectuais do período em propor uma ligação entre
as populações cristãs do Ocidente e os povos da Antiguidade, em especial gregos (inclusive
troianos) e romanos. No processo, foram criados mitos de origem que se utilizaram do
passado romano, celta, viking, anglo-saxão e normando da Bretanha. Tal interesse por
narrativas de origem fazia com que o passado fosse usado para criar laços de ascendência e
justificar o status quo da época, além de propor um destino para as nações e embriões de
estados nacionais (HINGLEY, 2000: 3; SMILES, 1994: 1).5
Nos estudos sobre os usos do passado, embora haja um predomínio de publicações
vindas de países europeus outrora metrópoles de impérios no séc. XIX, no Brasil,
pesquisadores de vários segmentos têm tratado do tema dos usos do passado, e oferecem uma
perspectiva sul-americana, o que contribui para enriquecer e diversificar os debates. Entre as
principais obras, destaco a de Glaydson José da Silva (2007), a respeito das apropriações do
passado durante o regime de Vichy.
Para minha reflexão neste texto, argumento que as identidades nacionais e o
sentimento nacionalista têm tido um papel preponderante como elementos que mobilizaram

5
Entre as principais obras que denunciam o uso do passado clássico como legitimador dos impérios modernos
estão Hingley (2000) e Mattingly (2006/7).

137
intelectuais de variadas origens e categorias na busca por uma herança cultural e política no
passado. Muitas vezes, trata-se de um processo de invenção acrítico de um passado
inexistente ou muito distinto do representado. O estudo de caso aqui é o da figura do príncipe
bretão e Carataco e de sua ressignificação como símbolo de masculinidade nas artes e no meio
acadêmico a partir do séc. XVI. A representação de sua imagem serviria aos propósitos do
nascente estado inglês, como aporte de um passado clássico, e sua masculinidade seria
reificada e ressaltada como virtude herdada pela nação moderna.

O Pós-Modernismo e a ideologia do masculino

Nas últimas duas décadas houve um aumento nas publicações que estudam os
homens e o masculino. Podem ser citadas aqui Manhood in the Making (1990), de David
Gilmore; The Image of Man (1996), de George Mosse; Fashioning Masculinity (1996), de
Michèle Cohen; e Dislocating Masculinity (1994), organizado por Andrea Cornwall e Nancy
Lindisfarne. Tanto hoje em dia como no passado, o termo “homem” tem sido usado por
muitos como se fosse uma categoria universal. Já houve inúmeras tentativas para encontrar a
essência que definiria o significado de ser “homem” ou “masculino”. Todavia, palavras como
“masculino” e “homem” podem ser mais bem compreendidas enquanto partes de um discurso
que se pretende hegemônico, e quando estudadas em detalhe nos seus usos quotidianos e nos
contextos em que as pessoas falam sobre suas derivações. Desta forma, a complexidade de
seus significados fica logo visível (CORNWALL & LINDISFARNE, 1994: 2).
Os discursos do masculino que se pretendem hegemônicos criam diferenças e
hierarquizam o mundo a partir de normas, e envolvem a legitimação das posições de poder
ocupadas por certos grupos de homens, ou mesmo de mulheres, que se identificam com a
criação dos atributos designados ao masculino num cenário ideológico, historicamente
determinado. Como consequência, as formas do “masculino hegemônico” culturalmente
exaltadas como “corretas” só podem ser encontradas nas experiências de um grupo muito
reduzido de pessoas. Mas são essas construções que determinam, em larga medida, os padrões
de normatividade em suas sociedades. Nota-se que, em diferentes sociedades, e em diferentes
momentos, os discursos da masculinidade hegemônica enfatizaram certos atributos tidos
como masculinos, e produziram determinados subordinados, diferentes redes de
poder, e desigualdades sociais (CORNWALL & LINDISFARNE, 1994: 20).
Apresentarei alguns exemplos de como a imagem do príncipe bretão Carataco, filho
do rei-cliente Cunobelino, emergiu no séc. XVI e seguiu até o séc. XIX como uma figura

138
heróica que abarcava atributos associados à masculinidade ideal, em diversos contextos
históricos. Primeiro, mostrarei como Carataco aparece nas fontes clássicas para, então,
apresentar outras reconstruções modernas de sua imagem em peças de teatro, romances, e em
gravuras e pinturas.

O príncipe bretão clássico

Há indícios de que Augusto teria cogitado uma invasão das ilhas da Bretanha já em
34 a.C., e que pretendia estar presente à campanha. Contudo, entrementes, assinou-se um
tratado político entre tribos bretãs e Roma, talvez resultado da própria ameaça de invasão. De
qualquer forma, as atividades diplomáticas entre Roma e a Bretanha6, que já existiam desde a
campanha de Júlio César na ilha em 55 a.C., intensificaram-se a partir de então. Augusto
reconheceu o direito de alguns reis-clientes, ou seja, governantes que prometiam lealdade aos
interesses romanos em troca de benefícios, como a manutenção de sua dinastia no poder ou o
acesso ao comércio com Roma, por exemplo.
Durante o governo de Calígula, por volta dos anos de 39 e 40 d.C, outra tentativa
infrutífera de invasão se desenhou (Díon Cássio, 59.25). Parece ter ocorrido no momento em
que o longo reinado do rei-cliente Cunobelino 7 teria chegado ao fim. Segundo as fontes
clássicas (Suet., Caligula 44.2), um de seus filhos, Admínio, havia procurado o socorro de
Roma para resolver problemas sucessórios.
Em História Romana, Díon Cássio (60.20), quando descreve a efetiva invasão da
Bretanha em 43 d.C. pelas legiões de Cláudio, faz menção à existência de outros filhos do
então falecido Cunobelino e às suas altercações com Roma. Entre os herdeiros do rei-cliente,
são citados os nomes de Carataco e Togodumno. Estes príncipes teriam se indisposto com a
política romana e levantado seus súditos contra os interesses do Império. De certo, um bom
pretexto para que Cláudio se lançasse naquela campanha de conquista. Mas haveria outros
fatores envolvidos, como a precária situação política do imperador em vista de sublevações de
senadores e generais naquele período de seu governo, por exemplo. Uma grande conquista
militar poderia lhe angariar o prestígio necessário para permanecer no poder.

6
Opto neste artigo por chamar de Bretanha ou Bretanha Romana a província romana, que, grosso modo,
equivaleria ao território atual da Ilha da Grã-Bretanha. Há, contudo, a possibilidade de se utilizar o termo
Britânia, ou, ainda, sua denominação latina: Britannia.
7
Há muitas moedas de ouro cunhadas na Bretanha com as efígies de Cunobelino, seguindo estilo clássico
romano, e adotando o título de Rex. Acredita-se que tenham sido batidas mais de um milhão de unidades
(Mattingly, 2006/7: 74).

139
A resistência organizada pelos sucessores de Cunobelino, em especial, a do Príncipe
Carataco, provaria ser de difícil controle, e não se extinguiria tão cedo. O volume de moedas
com o nome de Carataco descobertas pelos arqueólogos parece indicar que seu poder ao sul
do Tâmisa era considerável, supranacional, e abrangeria muitas tribos. Poderia haver um sinal
de unificação de poderes sob seu governo (SALWAY, 1993: 75). Tácito (Ann. 12.31-6)
descreve como Carataco teria logrado arregimentar várias tribos para seu intento e, após
escapar das legiões romanas estacionadas no leste da ilha, organizar uma grande resistência na
região onde hoje está o País de Gales. Ainda segundo Tácito, Carataco somente foi capturado
em 51 d.C, após a traição da rainha dos brigantes, Cartimandua, que o teria posto a ferros
antes de entregá-lo aos romanos (Ann. 12.36).
Após seu aprisionamento, Carataco teria sido levado para Roma, onde deveria ser
executado em um triunfo organizado para o imperador Cláudio. Mas, segundo Tácito, o bretão
comandava tal autoridade em sua voz, e demonstrava tão claramente o sacrifício do desapego
com sua própria sorte em prol da de seu povo, que acabou por merecer a compaixão de
Cláudio, que o teria perdoado e deixado viver. Carataco teria mostrado grande gratidão para
com o veredito e agradecido a Cláudio e à sua esposa, Agripina (Ann. 12.36-7).
Foi desta maneira que a figura de Carataco entrou para a história romana e a da
Bretanha Romana: um herói da resistência ao invasor, dotado de virtudes que iam desde a
eloquência capaz de comover os romanos, ao sentimento de renúncia da própria vida e de
doação inconteste ao seu povo. Em uma percepção tradicional e normativa de masculinidade,
ser homem implicaria entender que é descartável diante de um bem coletivo maior ou de sua
condição masculina per se. Mas a aceitação do destino deve ser entusiasmada e romantizada,
feita com “graça” (GILMORE, 1990: 224-5). Ou seja, Carataco não compartilharia da
selvageria que seria logo mais observada em algumas representações da figura de Boudica8, a
rebelde rainha dos icênios, que se levantaria contra os romanos, alguns anos depois, durante o
governo de Nero (37 – 68 d.C).

O príncipe masculino moderno


No século XVII, a Inglaterra jacobina 9 mostrou um grande entusiasmo com a
aproximação entre a figura de Augusto e os feitos do governo de Jaime I (1567-1625). Em um
movimento para reconciliar o crescente nacionalismo inglês com o desejo de encontrar suas

8
Também conhecida como Bodiceia em parte da literatura histórica brasileira.
9
Neste estudo, o termo “jacobino” se refere, grosso modo, ao período do reinado de Jaime I (Jaime VI, da
Escócia), de 1567 a 1625.

140
raízes no classicismo, os intelectuais do reino tiveram de lidar com o paradoxo representado
pela derrota para Roma e o ingresso no mundo tido como civilizado, o greco-romano. Neste
processo de autoidentificação, o binarismo hierárquico dos gêneros foi o eixo do campo
discursivo no qual foram construídas as imagens de rainhas violentas ou traidoras e de
príncipes agraciados com as virtudes consideradas natas da conduta masculina. Para o
propósito das comparações entre governantes masculinos e femininos, não houve dificuldades
em adotar malabarismos que incluíram o anacronismo histórico. Embora separados por mais
de vinte anos na história da Bretanha Romana, Boudica e Carataco se coexistem nos discursos
nacionalistas e naqueles de origens indentitárias do pós Renascimento Inglês (Mikalachki,
1998: 101).
No séc. XVI, uma série de representações teatrais realçou a importância do passado
romano da Inglaterra, e, em um discurso nacionalista, focou na unidade e na necessidade de
criar resistência ao invasor que poderia vir de novo do continente, a qualquer momento
(HINGLEY, 2008: 53). O teatro jacobino pode contribuir para a compreensão do pensamento
imperial inglês em um momento fundamental da formação do que seria, mais tarde, o Império
Britânico. Uma das mais importantes personalidades intelectuais do período foi o escritor,
poeta e dramaturgo designado como William Shakespeare (1564 – 1616).
Em 1611, Shakespeare teria escrito a peça Cimbelino (Cymbeline), um relato do que
teria ocorrido na Bretanha após as expedições de Júlio César, antes de uma suposta invasão de
Augusto. A peça utiliza textos de autores clássicos para a criação de alguns personagens,
enquanto outros são ficcionais. O personagem principal é o rei Cunobelino, pai do Carataco
clássico, que também está representado na peça com o nome de Arvirargus. Cimbelino é uma
aproximação entre as políticas expansionistas de Roma e o governo de Jaime I, que mostra
como os bretões se tornam muito mais civilizados à medida que absorvem a cultura e as
formas de vida romanas. Cunobelino é retratado como um rei totalmente “romanizado”, tendo
muitos oficiais romanos em sua corte e fazendo repetidas viagens a Roma (HINGLEY, 2008:
54). Em Cimbelino, o contato contínuo com Roma traz para a Bretanha Romana o ethos da
honra masculina, importado do ideal moralista de Augusto (Idem). Contudo, em um dado
momento, os bretões são traídos por uma rainha malévola e têm de lutar contra os invasores.
Jodi Mikalachki (1998) interpreta Cimbelino como um romance masculino (p. 96).
Para a autora, a ansiedade jacobina com os papeis dos gêneros e com a ameaça da figura da
mulher com excessivo poder fazia com que a complexa ligação entre o passado romano e o
período de expansão imperial de Jaime I emergisse na dramaturgia como formulação de uma
fraternidade masculina da nação. As peças jacobinas geralmente terminavam com um

141
desenlace exclusivamente masculino, estando ausentes todas as figuras femininas, quer seja
porque morriam, ou porque eram banidas por sua incompetência, por mais que
compartilhassem de grande sentimento nacionalista, também (MIKALACHKI, 1998: 96-7 e
104).
Os trabalhos de George Mosse (1985) sobre as conexões entre nacionalismo e
sexualidade definem o nacionalismo como uma ideologia de fraternidade eminentemente
masculina, unida pelo sentimento de temor da emasculação advinda do homoerotismo
masculino sexual, 10 e que preconizava o degredo da mulher e do feminino a um papel
marginal na sociedade. Apesar do trabalho de Mosse se concentrar no séc. XVII, estudos
recentes apontam que a formação de sociedades masculinas teve um papel fundamental na
construção de discursos nacionalistas na Inglaterra, já no séc. XVI (MIKALACHKI, 1998:
96).
Cimbelino de Shakespeare alimenta o mito da Bretanha Romana totalmente
masculinizada, e por extensão, da Inglaterra jacobina. A fim de estarem a salvo dos romanos e
da traição da rainha má, os príncipes Arvirargus e seu irmão se escondem com Belarius, um
nobre bretão que, para proteger os príncipes, sequestra-os ainda jovens e os leva para uma
caverna no País de Gales. Há aqui uma série de referências aos fortes laços afetivos entre os
homens e a criação de um ideal de família toda ela masculina. Embora se sintam lá
protegidos, os príncipes optam por enfrentar o inimigo romano em certo momento, pois
observam que não estão mais em contato com a realidade de seu país, ferido pela invasão do
inimigo externo e ameaçado pela malícia feminina interna. Uma alusão à alegoria da caverna
de Platão, poderíamos argumentar. Para Mikalachki, a fuga da caverna também quebra a
fantasia androgênica da Bretanha Romana de Shakespeare e funciona como um ritual de
passagem masculino (MIKALACHKI, 1998: 106).
Os príncipes bretões, a fim de entrarem para a história da nação, têm de sair daquele
“útero masculino”, um tropo que parece ser um núcleo familiar de homens, que lhes oferece
toda a proteção. A caverna pode ser um ambiente que os protege da ameaça feminina, mas, ao
mesmo tempo, não permite que realizem a prática sexual da penetração da mulher,
condenando-os à esterilidade. A saída da caverna para entrar na história “é uma versão da
entrada da Bretanha na história por meio da invasão romana. Assim como os príncipes, a

10
O homoerotismo poderia ser mais bem aceito nas concepções de amizade masculina enquanto uma relação
platônica entre homens, não sexual. De qualquer forma, a linha divisória entre o “ato selvagem” da
homossexualidade e o do platonismo homoerótico nunca foi muito clara na sociedade do séc. XVII e ambas as
formas poderiam ser vistas como contrárias às normas do período (MOSSE, 1985: 67).

142
Bretanha também teria ficado fora da história se não tivesse travado batalha com os romanos
(MIKALACHKI, 1998: 106)”.
A psicanalista Janet Adelman interpreta a complexidade histórica da relação entre os
bretões e Roma como um conflituoso desejo de fusão que convive com outro, o da autonomia
(ADELMAN, 1992: 207). Para Mikalachki, o contato da Bretanha com Roma, ainda que
como parte derrotada, foi fundamental para criar seu discurso de identidade autonomista na
modernidade. A Bretanha Romana ocupou um lugar de destaque a partir do séc. XVI porque
fornecia imagens de laços masculinos que eram características do nacionalismo moderno, ao
mesmo tempo em que ajudava a exorcizar de sua história o feminino selvagem que desafiava
tanto sua independência diante de outras nações europeias quanto sua respeitabilidade interna
(MIKALACHKI, 1998: 107).
A facúndia de Carataco diante do imperador Cláudio seria continuamente elogiada e
eligida como um sinal de hombridade e de atitude sóbria por cronistas do início da Idade
Moderna inglesa. Será comum mostrar a figura de Boudica como sua antítese. No séc. XVII,
o antiquário e historiador William Camden (1551-1623) apresentava, ao início de sua crônica
“Grave Speeches and Witty Apothegms of Worthy Personages of this Realm in Former
Times” contida na obra Remaines concerning Britain: their languages, names, surnames,
allusions, anagrammes, armories, monies, empreses, apparell, artillarie, wise speeches,
proverbs, poesies, epitaphs11, uma longa citação da arenga de Carataco, em detrimento das
poucas linhas que concede às falas de Boudica tiradas dos textos clássicos.
John Milton, na obra History of Britain (1971), primeiro publicada em 1670, cita o
discurso de Carataco porque ele representa magnanimidade, sobriedade e destreza pugnaz,
mas recusa-se a fazer o mesmo com o atribuído à Boudica, por considerar que sua fala nada
mais é do que uma fábula perniciosa criada pelos autores clássicos para depreciar os valores e
princípios que norteiam a separação entre masculino e feminino na Bretanha (Mikalachki,
1998: 102-3).
John Fletcher produziu, entre 1609 e 1614, uma peça chamada Bonduca, que passou
por uma série de adaptações ao longo dos séculos, sendo a última no ano de 1837. Nela,
Caratach, personagem baseado no histórico Carataco, aparece como primo de Boudica, rainha
dos icênios, algo que não é jamais citado nas fontes clássicas. A personagem Bonduca
(Boudica) é descrita como uma valente Virago, ou seja, uma mulher com características
masculinas (GREEN, 1982: 309) e sua coragem está associada a sua disposição de lutar até a

11
Disponível no site http://www.archive.org/details/remainesconcerni00camd. Acessado em 23/12/2010.

143
morte. Contudo, Fletcher também a caracteriza como afoita e teimosa, vícios tidos como
femininos, e que a tornariam incompatível para liderar política- ou militarmente uma tribo ou
um país (Williams, 1999: 23). As poucas vitórias dos rebeldes são atribuídas ao comando de
Caratach, não à Bonduca. Entretanto, quando da derrota final diante dos romanos, esta é fruto
da falta de comedimento da rainha e de seu desatinado envolvimento com "coisas de
homens". Ao final da peça, seu primo ordena que ela se cale e vá para casa tear12, chamando-a
de mulher tola e bestial (HINGLEY & UNWIN, 2006: 131).
Ainda no mesmo período, os atributos masculinos nas construções da imagem de
Carataco se traduziram em papeis de gênero diante do matrimonio. Inspirado na obra de John
Fletcher, o ator e dramaturgo George Powell (1658- c.1714) produziu uma peça chamada
Bonduca: or The British Heroine, apresentada no Theatre Royal. Powell admitiu que fizera
alterações no original de Fletcher, mas deu-lhe grande aclamação (HINGLEY & UNWIN,
2006: 137). Na versão de Powell, o foco passa a ser Carataco, um general, que, após perder a
batalha, engaja-se em um diálogo com o governador romano Suetônio Paulino, que lhe
oferece sua amizade. O diálogo segue desta maneira (apud HINGLEY & UNWIN, 2006:
138):

Caratach No Roman! No! I wear a British Soul:


A Soul too great for slav’ry …’

Suetonius Was Rome, too poor a Mistress,


To wed thee to her Arms? …

Caratach Rome, Sir, ah no! She bids a Price too small,


To bribe me into life. My bleeding Country
Calls me to Nobler Wreaths …
And when her Caratach dies in such a Cause
A British Tomb outshines a Roman Triumph.13

Na peça de Powell, Roma exerce o papel feminino, no caso, rechaçada pelo príncipe.
Carataco recusa-lhe o matrimônio, numa referência ao teor de controle do homem sobre a
mulher. Apesar de dar ênfase ao papel masculino de Carataco, esta peça foi uma das primeiras
a abrir o espaço dos palcos para atrizes femininas.14

12
Tear parece ter sido a atividade mais apropriada para as mulheres do período jacobino inglês (MACDONALD,
1987: 49).
13
Em tradução livre: Carataco: “Não romano! Não! Eu carrego uma alma britânica. Uma alma muito grande para
a escravidão”. Suetônio: “Teria Roma sido uma amante tão ruim para que se entregasse aos seus braços em
matrimônio?”. Carataco: “Roma, senhor, ah, não! Ela vale muito pouco para me subornar por toda a vida. Meu
país, ferido, conclama-me para coroamentos mais nobres. E quando seu Carataco morrer por tal causa, um
túmulo britânico brilhará muito mais do que um triunfo romano”.
14
As primeiras atrizes profissionais começaram a subir aos palcos ingleses a partir de 1660 (HINGLEY &
UNWIN, 2006: 139). Neste caso, tratou-se da atriz Frances Mary Knight, que fez o papel de Boadicea. De fato, a

144
Entre os anos de 1897 e 1898, o compositor inglês Edward William Elgar produziu
uma cantata, acompanhada de um libretto, de autoria de Harry Arbuthnot Acworth (1897/8),
folclorista e arqueólogo amador (MCGUIRE, 2007: 50 e 65). Na cantata, Elgar reconta a
história da derrota do personagem Caractacus para os romanos e seu discurso heroico diante
de Cláudio. Elgar e Acworth são geralmente vistos como propugnadores do Império
Britânico, e a cantata foi tida como apologética ao imperialismo inglês, configurando-se como
uma alegoria da presença inglesa na Índia (MCGUIRE, 2007: 58).
Para a composição do libretto, Acworth bebeu de fontes clássicas, como Tácito e
Díon Cássio, mas, também, da obra de James McKay, The British Camp on the Herefordshire
Beacon, de 1875.15 A fim de criar um contexto ainda mais heroico para o príncipe Carataco,
McKay tentou associar sua imagem ao cristianismo, ao afirmar que sua filha, Eigen, havia
sido convertida à nova religião, quando em Roma, e que o próprio Carataco poderia muito
bem ter sido um adepto dos ensinamentos de Cristo (MCGUIRE, 2007: 60; MCKAY, 1875:
175).
Na cantata, o heroísmo e o apelo nacionalista de Carataco estão evidenciados no
discurso que pronunciou diante de Cláudio:

“Faça o pior para mim: poupe meu povo,


que lutou pela liberdade em nossa terra natal.
Não são escravos, seja sábio e ensine-lhes
a ordem, as leis, e a liberdade ao lado de Roma” 16

Reveladora de grande parte do pensamento imperial inglês ao fim da era vitoriana, a


obra de Elgar e de Acworth demonstra uma significativa fixação com o heroísmo pastoril
inglês. Na cantata, o espírito nacionalista de Carataco e seu apego à terra natal teriam sido os
grandes motivos para sua decantada libertação (MCGUIRE, 2007: 72).
O discurso de Carataco diante de Cláudio ganhou representações imagísticas nas
gravuras e pinturas do século XVIII, também. Na ilustração anônima Caractacus before the
Emperor Claudius at Rome, de cerca de 1800, Carataco é retratado seminu, com grilhões, mas
em posição de destaque, com altivez e dignidade diante de César (Fig.1). Seus músculos estão

personagem de Boudica servirá como oportunidade para que muitas atrizes do período jacobino possam atuar no
teatro (HINGLEY, 2006: 138-9).
15
McKAY, J. (1875) The British Camp on the Herefordshire Beacon: fifteen short essays on Scenes and
Incidents in the Lives of the Ancient Britons. Houve uma republicação da obra em 2009, feita por Kessinger
Publishing, LLC.
16
ACWORTH, H. A. (1897-8) Libretto to E. Elgar’s opera Caractacus. Londres: EMI Records, 1977. Cena VI.
Apud HINGLEY, 2000: 76. Trad. livre do autor.

145
bem definidos, dando-lhe uma aparência bastante masculina, em contraste com a do
imperador, dotado de certa afetação.

Fig. 1 – Gravura: Caractacus before the Emperor


Claudius at Rome, c. 1800. A força física de
Carataco contrasta com a fragilidade e afetação do
imperador Cláudio. Anônima. © Trustees of the
British Museum; Google Images.

Algo semelhante parece ocorrer com a gravura Caractacus at the Tribunal of


Claudius at Rome, publicada por Robert Pollard, feita a partir da pintura em óleo de Henry
Fuseli (Johann Heinrich Füssli, em alemão), de 1792 (Fig. 2). Nela, Carataco, um homem de
mais idade, apresenta-se com indignação diante da corte de Cláudio. Sua figura parece ser a
mais masculina, em contraste com o excesso de luxo estampado nas outras imagens ao seu
redor. Carataco está cercado de sua família, mas há uma clara prevalência de imagens
femininas ou andróginas, como o caso do imperador, com as pernas cruzadas de forma
bastante afetada, em direto contraste com a figura masculina e tonificada do corpo do
prisioneiro bretão.

146
Fig. 2 – Gravura: Caractacus at the Tribunal of Claudius at Rome, 1792. A representação de Carataco pode ser a
alegoria da masculinidade diante da aparência efeminada do imperador. Publicada por Robert Pollard, 1792, a
partir da tela de Henry Fuseli (Johann Heinrich Füssli), Library of Congress, Prints & Photographs Division, LC-
DIG-pga-00226, Washington DC, EUA.

A imagem de Carataco como herói de resistência foi importante em meados do séc.


XVIII, quando a Inglaterra estava em constante conflito com o continente, em especial, com a
França, com o movimento de independência na América e com outros povos das próprias
ilhas britânicas. Em 1759, a obra de Shakespeare, Cimbelino, foi reutilizada por outros
dramaturgos, como William Hawkins, tendo partes adaptadas para o novo momento político
da Inglaterra. Poucos anos mais tarde, em 1761, foi David Garrick quem voltou ao texto de
Cimbelino para buscar inspiração contra os inimigos do Império Britânico. Para o arqueólogo
Richard Hingley, as novas versões da obra de Shakespeare estavam inseridas em uma
mentalidade intelectual britânica que procurava mostrar como os bretões haviam sido
independentes, mesmo durante o controle romano da província (HINGLEY, 2008: 211, 226-
7).

Considerações finais

147
Procurei mostrar que conceitos e ideologias associadas às fontes textuais e materiais
da Antiguidade foram (e continuam sendo) reinterpretados para legitimar os discursos
normativos do mundo moderno. Há uma grande relação entre os sentimentos nacionalistas e a
sexualidade humana. No caso em questão, o grande ponto de conexão foram os discursos que
pregavam a importância da respeitabilidade nos movimentos nacionalistas fomentados, em
especial, a partir do séc. XVIII. O conceito de respeitabilidade, que hoje possui um
significado bem mais criticado em nossa sociedade, possuía atributos muito mais voltados ao
desejo das políticas nacionalistas dos séculos XVII, XVIII e XIX, em particular na Europa, de
controlar os costumes, a moral e normatizar as atitudes sexuais do estado. Aqueles que
estivessem fora dos padrões criados seriam párias ou anomalias, fadados a serem estudados
pela medicina catalogadora do séc. XIX (MOSSE, 1985: 1). Os ideais de masculinidade e o
lugar do feminino, no público e no privado, foram fortalecidos neste processo de criação
discursiva da respeitabilidade. No campo da sexualidade humana, as representações de figuras
do passado, como a do Príncipe Carataco, parecem ter servido como valiosos aparatos
ideológicos modernos de legitimação política e social das normas de conduta de homens e
mulheres. Os conceitos epistemológicos envolvidos nos estudos sobre Usos do Passado
podem servir como importante arcabouço teórico-analítico desses fenômenos.

Agradecimentos
Pelo convite para participar deste volume, sou muito grato aos seus organizadores: Pedro
Paulo Abreu Funari, Glaydson José da Silva e Renata Senna Garraffoni. Estendo meus
agradecimentos à FAPESP pelo apoio financeiro durante meu doutorado no IFCH-Unicamp e
em meu pós-doutoramento no MAE-USP; e ao apoio institucional do Departamento de
História da Universidade Federal de Pernambuco. O autor é o único responsável pelo
conteúdo do texto.

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150
A ANTIGUIDADE: SEUS USOS, SUAS APROPRIAÇÕES

Renata Cardoso Belleboni-Rodrigues1

A antiguidade ‘não é boa ou ruim por natureza’. Como toda herança, isso
depende do uso que dela se faz (DABDAB TRABULSI, 1998: 248).

Na atualidade há um interesse entre alguns historiadores com os usos historiográficos


que foram feitos do passado, pois, foi observado que ocorreram apropriações nada
preocupadas com a preservação de uma memória (ou mesmo com os lugares de memória,
como dissertou Nora [1993]) ou ainda com os “fatos tais como aconteceram”, como teria dito
Ranke. Ao contrário, averiguaram-se usos que deturparam contextos, reinventaram intenções
e recriaram a história.
Usar o passado e recriar a história. Não estamos falando de discursos históricos
possíveis ou verossímeis sobre o passado, ou de opções de enredos que se apresentam aos
historiadores no momento da escrita da história (WHITE, 2001), mas de discursos que
realmente desconsideram as fontes como fios ou rastros (GINZBURG, 2007).
Investigações sobre os usos do passado têm evidenciado que, desde o século XVIII,
encontramos discursos historiográficos e/ou arqueológicos que tomam a prática acima
descrita como algo inerente às pesquisas históricas. No entanto, temos ciência de que certas
apropriações que são feitas do tempo ido podem se mostrar problemáticas ao ofício do
historiador. Temos conhecimento, igualmente, que estas escritas da história estão inseridas em
contextos particulares.
Podemos, no entanto, retornar no tempo e questionar se a própria Antiguidade usou
de sua antiguidade. Perguntamo-nos sobre como os oradores políticos teriam usado de sua
história, de seu passado glorioso, de suas vitórias contra os inimigos (helenos ou não) para os
debates que decidiriam sobre a paz e/ou a guerra. Podemos ainda refletir sobre como a cultura
cristã se utilizou dos textos mitológicos para, por um lado, execrá-los e, por outro, mostrar a


Este texto traz considerações apresentadas e debatidas no XXVI Simpósio Nacional de História (2011), no
contexto do simpósio temático Antiguidade e Modernidade: usos do passado, com a comunicação: A
Antiguidade como objeto político-cultural.
1
Doutora em História Cultural pela Unicamp, professora adjunta da Faculdade de Ciências e Letras de Bragança
Paulista (FESB) e do Centro Universitário Claretiano.
superioridade dos textos cristãos, ou mesmo como fizeram uso dos formatos destes textos e
outros filosóficos para revelar sua própria história.
Retomando as pesquisas realizadas tendo como delimitação temporal o século XVIII,
encontramos na obra Os gregos, os historiadores, a democracia (2002), de Pierre Vidal-
Naquet, toda uma discussão sobre o ‘grande desvio’, ou seja, acerca da interpretação contínua,
no tempo, de todo texto do passado. Por ora, das considerações apresentadas ali, nos interessa,
mais especificamente, o capítulo oitavo intitulado ‘Tradição da democracia grega’. Neste, o
autor retoma o livro Democracia antiga e moderna, de Moses I. Finley, destacando e
questionando o paradoxo do título: “pode haver uma comparação séria entre a democracia
grega e a nossa?” (2002: 235).
Mas foi justamente o que os lideres da Revolução Francesa fizeram. Não
necessariamente tomando a democracia antiga como modelo, mas criando uma identificação
com o mundo Greco-romano. Todo um simbolismo foi buscado. A este respeito, Castoriadis
(citado por Vidal-Naquet) escreveu:

Todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes e


utiliza os seus materiais – mesmo que seja só para preencher as fundações dos novos
templos, como fizeram os atenienses após as guerras medas. Por suas conexões
naturais e históricas virtualmente ilimitadas, o significante ultrapassa sempre a
vinculação rígida a um significado preciso e pode conduzir a pontos totalmente
inesperados (CASTORIADIS, 1975:168 apud VIDAL-NAQUET, 2002: 239-240)

É interessante observar uma das colocações de Castoriadis: conexões históricas


virtualmente ilimitadas. Os limites existem. A descontinuidade histórica deve ser considerada
e pensada (não necessariamente entendida como ruptura absoluta). Não há uma ligação direta
entre a Grécia da antiguidade e, neste caso, o século XVIII. Os significantes, nas mãos dos
revolucionários, realmente conduziram a pontos inesperados.
Em que Grécia teriam se baseado os líderes da Revolução? Não naquela dos
historiadores. Tucídides era incógnito2, tomaram Plutarco, Vidas Paralelas, como guia. Neste
contexto, de acordo com Vidal-Naquet, a democracia ou foi hostilizada ou descaracterizada.
O exemplo maior era aquele de Esparta, a cidade dos iguais (hómoioi). Ela simbolizava, para
aquele grupo, o que é transparente.
Uma última assertiva do autor para reflexão:

Não diremos que (...) ‘o mundo está vazio desde os gregos’. A Grécia não está na
nossa história... O que está na nossa história, ou pelo menos numa parte de nossa

2
Segundo Vidal-Naquet, Tucídides tornou-se referência no período termidoriano (cf. 2002:250)

152
história, e que não podemos extirpar, porque ela é o passado, é o diálogo com a
Grécia e, antes de tudo, com os textos gregos. A reelaboração da herança grega, ora
sob forma mítica ou ideológica, ora sob forma do trabalho crítico e científico, é um
dos dados da nossa história intelectual, que se exprime na criação, incessantemente
renovada, de novos modos de discurso, de novos conceitos, de novos campos
epistemológicos (VIDAL-NAQUET, 2002: 254-255).

‘Reelaboração da herança grega’. Não se tratou apenas de recepção do passado. Essa


tarefa não parou na/com a Revolução. Novos estudos mostram que houve outros momentos
em que a França buscou por uma (re)definição de sua identidade. O então governo de
Napoleão Bonaparte teria feito dos sítios arqueológicos (e inovações tecnológicas) uma arma
poderosa para alcançar seus intuitos políticos. Campanhas financiadas por seu governo (Egito,
entre 1798-1801, e as escavações de Pompéia e Herculano) contribuíram com o sucesso desse
empreendimento. O resultado das escavações é a tomada dos símbolos do poder romano como
símbolos do próprio poder da França. Esta temática é discutida no artigo Escavar o passado,
(re)construir o presente: os usos simbólicos da Antiguidade clássica por Napoleão Bonaparte
das autoras Raquel Stoiani e Renata Senna Garrafoni (2006). De acordo com as autoras, dois
dos intentos de Napoleão foram o de criar um imperialismo cultural e de “legitimar-se
politicamente e estruturar simbolicamente seu poder” (STOIANI e GARRAFONI, 2006: 70).
Em outras palavras, usadas como aparelhagem didática, as obras inspiradas em eventos da
antiguidade, esquadrinhavam uma linha imaginária e simbólica de continuidade entre aquele
presente e o passado. Segundo as autoras:

... gregos, romanos, celtas, egípcios são recolocados no cotidiano francês, seus
principais símbolos revisitados, produzindo imagens específicas e muitas vezes
homogêneas do passado desses povos, buscando definir a identidade nacional
francesa e justificar seu domínio perante outros povos. Os usos políticos do passado
antigo contribuíram para a demarcação das diferenças e o estabelecimento de
identidades: NÓS (franceses) em oposição a ELES (povos dos territórios
conquistados pela França napoleônica)... Essa situação peculiar, longe de ser
simplista, indica as relações intrincadas entre o passado antigo e a política moderna
e, além disso, expressa o uso da nascente Arqueologia francesa com finalidades bem
definidas e fundamentais na construção simbólica do poder napoleônico e da
identidade francesa (2006: 76-77).

Materialidade e textualidade antigas sendo trabalhadas no campo do simbólico. O


poder não só se materializou como ganhou face própria. Filhos de um tempo áurico são
igualmente áureos. Eis a mensagem divulgada.
Adiantando um pouco no tempo, conforme Carbonell, o século XIX foi um período
de plágio arquitetônico (mais uma vez vemos os grandes monumentos tomados como
símbolos de poder) e, ao mesmo tempo, época em que “as paixões políticas alimentam-se de

153
recordações contraditórias surgidas de um passado recriado” (1992: 93). Este mesmo autor
fez referências o fato de os Estados criarem comissões e institutos com as funções de
inspecionar os monumentos históricos e pesquisar e organizar os documentos de sua história.
Para tanto, o Estado propiciou incentivos para as publicações de documentos inéditos, como o
caso do Corpus Inscriptionum Latinarum (o primeiro Tomo data de 1862) e dos Documentos
inéditos sobre a história da França (1834).

Assim se manifesta, através de um episódio que não foi isolado, a iniciativa do


Estado de tomar a história a seu cargo. Protector do patrimônio, possuidor dos
depósitos de documentos, cada vez mais dispensador do ensino – fixa-lhes os
programas e remunera um número crescente de mestres -, mecenas, protector, fora
das fronteiras, dos seus cidadãos, para os quais conquista alguns privilégios de
extraterritorialidade científica em algumas concessões arrancadas nas rotas
imperiais, o Estado é omnipresente, omnipotente. Como não havia de ser, desde
logo, o discurso dos historiadores um discurso sobre o Estado? (CARBONELL,
1992: 103)

Essa proteção do patrimônio não necessariamente estava ligada à noção de


preservação de um dado passado por sua riqueza e características inerentes. Aqui ele toma o
sentido de poder, ele gera poderes. Supervisionando as ações patrimoniais e seus agentes, o
Estado assegurava o controle sobre o que seria dito sobre os bens, os documentos, etc.,
criando uma máquina propagandista a seu favor.
Naquele cenário da Antiguidade (brevemente reportado) e neste, dos séculos XVIII e
XIX, os contextos devem ser analisados. Voltemos, então, às considerações sobre o chamado
século dos historiadores. Em seu artigo Tradição clássica, ensino e política na França da
Terceira República, Dabdab Trabulsi (2008) nos apresenta a conjuntura do uso da história
antiga com o intuito de combater o cristianismo. No momento em que a ciência se tornou
religião, houve uma busca inquieta pela laicização do ensino. Procurava-se quebrar o poder da
Igreja sobre os currículos escolares. “A Antiguidade clássica é um terreno de conflito. Ela é
um refúgio para os que querem conter ou combater o cristianismo. Por isto, ela interessa”
(DABDAB TRABULSI, 2008:123).
Essas premissas já podiam ser verificadas em outra obra do autor: Religion
Grecque et Politique Française au XIXe siècle. Dionysos et Marianne (1998). Neste
momento, examinou alguns dos autores franceses do período oitocentista. Dentre estes,
estavam Fustel de Coulanges, Ernest Renan, Victor Duruy, Jules Girard, Andrè Bremond,
Paul Decharme e E. Géruzez. Dabdab Trabulsi nos coloca o modo como se deu a escrita dos
discursos sobre a Antiguidade grega naquele contexto em que havia um clima de aversão
entre adeptos do progresso social e da República, de um lado, e dos valores tradicionais na

154
política e na religião, do outro. Ressalta, entretanto, que ao impugnar o Cristianismo, o
politeísmo não tinha suas características enaltecidas ou valorizadas, e sim, tinha suas
"deficiências" avigoradas. No livro, Trabulsi expõe como a História da Antiguidade e de sua
religião participou da obra de laicização dos espíritos, tributando para consolidar a República
francesa. Neste sentido, estas colocações estão em acordo com Glaydson Silva quando diz:
“...o saber sobre o passado, sua escrita e suas leituras são poderes e geram poderes”. (SILVA,
2007: 98).
Sobre os autores franceses citados por Trabulsi, e outros, de demais nacionalidades,
que tomaram a mitologia grega como instrumentos contrários ao cristianismo, Jean-Pierre
Vernant (1999) e Marcel Detienne (1989) também apresentaram algumas considerações. Três
escolas especialmente foram tomadas para análise: a Escola da Mitologia Comparada, a
Escola Antropológica Inglesa e a Escola Alemã de Filologia Histórica .
Para Friedrich Max Müller, que defendia as premissas da Escola de Mitologia
Comparada, o mito era um produto inconsciente da linguagem e o homem a sua vítima e não
o produtor (cf. DETIENNE, 1989: 39). O pensamento mítico teria se desenvolvido e se
caracterizado por meio da linguagem, como uma doença e uma necessidade inerente a ela. A
superioridade intelectual e civilizacional do século XIX foi, assim, no seio dessa escola,
construída a partir da comparação com uma linguagem do inconsciente, absurda com aquela
da razão. Ao se referir à produção historiográfica que seguia este molde, Vernant destacou:

O trabalho do mitólogo comparatista consiste então em reencontrar, através do


labirinto de etimologias, evoluções morfológicas, interferências semânticas, os
valores primeiros que traduziam nas ‘raízes’ da língua, antes que seu sentido se
obliterasse, o contato com a natureza (1999: 193).

Andrew Lang e Edward Burnett Tylor foram os representantes da Escola


Antropológica Inglesa tomados para estudo. Lang afirmou que a ciência mitológica tinha um
enigma pela frente: explicar as coisas, as histórias, as aventuras absurdas, infames, ridículas e
repugnantes dos deuses, dos mortos e dos homens no início dos tempos (cf. DETIENNE,
1998: 16-17). Deste modo, por entenderem que o mito tem lugar na infância da humanidade,
ele deixou de ser compreendido como doença da linguagem para ser explicado como uma
etapa da evolução social e intelectual da humanidade, ou seja, o mito passa a ser visto como
um vestígio do pensamento selvagem. Acerca desta escola Vernant esclarece:
Caracterizado segundo Tylor pelo animismo, dominado segundo Frazer pela magia
simpática, o pensamento selvagem é finalmente relegado pelo sociólogo francês a
uma espécie de gueto, fechado no estágio do pré-lógico, como o esquizofrênico cujo
delírio, parente em muitos aspectos da mentalidade primitiva, é internado em seu

155
asilo... o pensamento selvagem em funcionamento no mito não é apenas diferente de
nosso sistema conceitual; ele constitui, enquanto pré-lógico e místico, o contrário, o
inverso, da mesma maneira que a demência não é apenas algo diferente da razão,
mas seu antípoda. Assim, pondo a tônica nas emoções,... os antropólogos da escola
inglesa têm tendência a conceder prioridade ao ritual, nos fatos religiosos. O mito é
considerado secundário... Explicar o mito é encontrar o ritual ao qual ele
corresponde (1999: 194).

Assim, se o mito fazia parte da infância da humanidade, os homens do século XIX


eram os produtos finais da evolução da mesma, estavam em seu estágio mais avançado.
Quando, onde, de que modo o mito foi se constituindo? Que versões foram
elaboradas? Que elementos da versão original permaneceram? A estas questões os estudiosos
ligados à Escola Alemã de Filologia Histórica (final do século XIX e início do XX) queriam
responder. De que modo? Pautados na análise filológica e cronográfica do mito, dito de outro
modo, com base em análises da literatura. A respeito dessa postura, Vernant dissertou:

Ao mesmo tempo em que contribuiu para reunir a documentação nos instrumentos


de trabalho ainda hoje indispensáveis, essa escola impôs, em sua apresentação dos
fatos, uma visão geral e uma metodologia tão estreitamente positivistas que os
problemas fundamentais do mito se acharam, no caso grego, postos em parênteses...
Essa redução de análise mítica à investigação cronológica e tipográfica conduz
finalmente, expulsando toda a pesquisa científica do sentido, a assimilar o mito à
história. Se o arquétipo de um mito aparece em tal lugar, em tal momento, supor-se-
á que ele traduz tal acontecimento histórico: migração dos povos, conflitos entre
cidades, derrubadas de dinastia etc. No final, chega-se à explicação evemerista...
Mas todo o interesse do mito não vem precisamente da extraordinária distância entre
o acontecimento que acreditamos às vezes poder situar em nossa origem e o ciclo
das narrativas tais como nos chegaram?

Vejamos, assim, o quadro comparativo elaborado por esse helenista após a análise
das escolas de Mitologia Comparada, a Antropologia Inglesa e a Escola Filológica Alemã
(considerando-se as diferentes diretrizes teóricas, mas ponderando sobre os pontos em
comum): a- busca pelas origens (estágios iniciais da linguagem, da evolução social e cultural);
b- noção de que religião e mito são campos distintos; c- abordagens reducionistas do mito (ele
é acidente, uma fantasia redundante etc.); d- entendimento dos símbolos religiosos como
metáforas; e- ora o pensamento mítico é analisado como inferior ao nosso (séculos XIX e
XX), ora, para compreendê-lo, as nossas categorias mentais são lançadas sobre eles (cf.
VERNANT, 1999: 198-199).
As críticas dirigidas por Vernant são compreensíveis e merecem ser analisadas mais
profundamente. No entanto, é igualmente importante verificar que o alvo dessas críticas não
são autores franceses e, talvez mais interessante ainda, seja o fato de que Vernant se utilizou
da História Comparada, da Antropologia e Filologia em seus estudos (estamos cientes aqui de

156
todas as divergências possíveis entre esses métodos – os criticados e os utilizados - e dos
momentos históricos diferentes).
Adentrando no século XX, temos dois exemplos significantes sobre os usos do
passado. Mais uma vez referindo-se aos usos que a França fez do tempo ido. No primeiro
caso, no contexto da França de Vichy, momento em que o país tenta justificar a sua posição
de apoio ao domínio alemão (entre 1940-1944, o território francês foi regido por um regime
anti-republicano cooperador do nazismo e da perseguição e exterminação dos judeus). Mas
como se justificar, que artifícios utilizar numa situação político-militar tão delicada? Usando
dos exemplos do passado. No entanto, mais uma vez a história foi deturpada. A História da
conquista da Gália pelos romanos perdeu seu sentido primeiro para ser apropriada como
modelo de superação: a Gália não foi arruinada quando da derrota frente aos romanos. Ao
invés disso, aos olhos dos partidários do regime nazista, ela foi favorecida ao tornar-se parte
de um império tão superno, pois, como resultado do conflito, nasceu o “povo francês”. Toda
essa discussão pode ser encontrada em artigos e livros do professor Glaydson Silva3. Suas
assertivas nos esclarecem ainda, que da mesma forma que um determinado grupo francês
procurou justificar a dominação alemã, também procurou legitimar a sua própria dominação
perante os povos da África:

...pode-se citar o fato de a França ter se utilizado do discurso das ‘origens nacionais’
com o intuito de justificar a colonização francesa na África e na Ásia. Assim, como
a vitória do império romano sobre a Gália foi uma ‘cruel necessidade’, que fez
surgir a civilização galo-romana, de igual modo figura a presença francesa nestes
continentes, ou seja, o domínio do certo sobre o errado, do desenvolvimento técnico
sobre o atraso tecnológico, enfim, da civilização sobre a barbárie (SILVA, 2005, on
line).

É praticamente dizer que a dominação francesa igualmente foi uma “cruel


necessidade”, e, por isso, justificável perante a história. A história foi utilizada como
legitimadora da dominação.
O segundo exemplo a ser mencionado é aquele discutido por Nicole Loraux em seu
ensaio A democracia em confronto com o estrangeiro4. No texto, a autora analisa um discurso
pronunciado em 2 de maio de 1990, durante a sessão da Assembléia Nacional, por Marie-
France Stirbois (representante da Frente Nacional). Neste discurso, discorrendo sobre a
democracia grega, ela apresentava, em nome de seu partido, um procedimento de exceção de
3
Neste caso específico, foram tomados os apontamentos do ensaio “A antiguidade romana e a (des)construção
das identidades nacionais”, encontrado no livro Identidades, discursos e poder: estudos de arqueologia
contemporânea, organizado por Funari, Orser Jr. e Schiavetto.
4
Parte integrante da obra Gregos, bárbaros, estrangeiros, escrita com Barbara Cassin e Catherine Peschanski
(1993).

157
inaceitabilidade contra o tema em pauta: a luta contra o racismo, o anti-semitismo e a
xenofobia. As grandes questões a serem respondidas com o discurso eram: como lutar contra
essas práticas se a França tomou como modelo de democracia aquela de Atenas? Como não
impor discriminações e se a própria democracia ateniense era discriminatória, excludente?
Loraux aponta os momentos do discurso em que autores e textos antigos e de
helenistas (em específico, Gustave Glotz), foram retirados de seus contextos e lançados sem
maior proteção aos leões. Em outras palavras, trechos de obras antigas e de Glotz foram
praticamente plagiadas, descontextualizadas e usadas como argumentos que legitimavam a
discriminação aos estrangeiros. Mais uma vez as fontes não foram consideradas como tal,
apenas como instrumentos de legitimação de posturas. A assertiva, “...para fazer a ‘história’,
tudo é permitido, da astúcia ao uso da força, passando pela omissão deliberada” (LORAUX,
1993: 23) foi a regra. O discurso da Frente Nacional pareceu um convite à renúncia da
democracia. “Compreende-se, então: a ‘Grécia’ da qual se vale a Frente Nacional é apenas
uma caricatura da Grécia que os historiadores da Antiguidade estudam” (LORAUX, 1993:
32). A própria autora, a partir de alguns exemplos, questiona ser a democracia ateniense
inteiramente discriminatória. Ela relata o caso de uma revolta política em uma das heterias
atenienses, quando seu líder foi um meteco, ou seja, uma agitação política liderada por um
estrangeiro (residente há tempos em Atenas). Outro caso citado e analisado diz respeito à
integração limitada, mas inconteste, dos metecos na cidade, quando do pagamento de
impostos de guerra ou participação no exército. Loraux ainda retoma os anos de 508 a.C.,
momento em que Clístenes incorporou às tribos alguns estrangeiros e escravos-metecos, o que
Aristóteles chamou de ‘fabricação’ da cidadania. “Em poucas palavras, ‘a polis dos cidadãos
não pode existir sem a presença dos estrangeiros’” (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1972 apud
LORAUX, 1993: 16).
O parágrafo final do ensaio mostra a consternação da autora com este tipo de uso do
passado e um convite a uma prática historiadora cuidadosa:

Em nosso presente, para os historiadores, isso significa também combater, cada um


em sua área, tudo o que provém do erro e da falsificação. Fazer história: essa é, sem
dúvida, a melhor resposta aos falsos historiadores que só fingem se interessar por ela
para desqualificar seus métodos e até mesmo sua noção. Em suma, agir no campo do
pensamento, para lembrar o direito imprescritível do que existiu, antes de tudo,
compreendido em seu tempo. Com a esperança de que o leitor deduza por si mesmo
que aqueles que falseiam os dados antigos são os mesmos que, em geral, se dedicam
à falsificação da história do tempo presente” (1993: 33).

158
Falsificação da história. Quantos exemplos ainda citaríamos neste texto. Quando
pensamos no problema do historiador que tem em mãos apenas fragmentos do passado, que
deve considerar inúmeros fatores ao analisá-los... tal problema se minimiza frente à
falsificação. Não ter acesso a uma verdade absoluta faz parte do ofício do historiador, ele está
habituado a esta realidade. Mesmo porque não estamos em busca de dogmas históricos. Mas
falsear?
Os estudiosos Raquel Stoiani, Renata Senna Garrafoni, Glaydson Silva, José Antônio
Dabdad Trabulsi, Charles-Olivier Carbonell, Marcel Detienne, Jean-Pierre Vernant, e Nicole
Loraux, dentre tantos outros, como François Hartog e Pierre Vidal-Naquet debruçaram-se
sobre a temática evidenciando que o passado foi tomado como objeto político-cultural.
Histórias deformadas, recriadas, resignificadas são tomadas como discursos filhos de um
contexto, porém, entendidos como problemáticos em seus resultados. Foram observados os
regimes de historicidade, as formas pelas quais uma sociedade versa sobre seu passado, bem
como o modo particular de determinar uma consciência de si. Averiguou-se, igualmente, e
como já ressaltado, que os fios, os rastros foram desconsiderados. A memória que resultou
desses usos do passado não condizem com a memória dos testemunhos (mesmo que estes
sejam apenas fragmentos do tempo ido).
Embora tenha se buscado as raízes de um povo, portanto, sua identidade primeira,
suas tradições, sua história, o que podemos constatar é que alguns discursos historiográficos
usaram a história (seus escritos, seus monumentos) com uma intenção pequena,
desproporcional ao que a pesquisa histórica tem a oferecer. Não se trataram de meras
recepções de um passado, mas de apropriações indevidas, planejadas de acordo com os
objetivos de poucos, de uma aristocracia política e cultural imersa em ideologias
institucionais. Já se sabe que “...cada época constrói, mentalmente, sua própria representação
do passado, sua própria Roma e sua própria Atenas”. (DUBY, 1980: 44), mas é preciso
verificar o que está por trás do que foi dito.
Os estudos apresentados acima são frutos de esforços de pesquisadores engajados no
entendimento não apenas de contextos históricos, mas também na compreensão de discursos.
Esse é um dos ofícios do historiador: não só dar narratividade e vida a um dado
acontecimento, compreendê-lo e explicá-lo (RICOEUR, 2007), mas analisar toda uma
historiografia produzida sobre ele. Temos uma função política, social, temos um compromisso
com a verdade (não compreendida aqui, é claro, como única e absoluta): não escrevemos
ficções, mesmo que coloquemos uma pitada de subjetividade em nossos escritos. Como já
disse Georges Duby: “estou convencido da inevitável subjetividade do discurso histórico... a

159
História é, no fundo, o sonho de um historiador – e este sonho é grandemente condicionado
pelo meio no qual se insere este historiador” (1980:.41).
Finalizando, tomemos, por último, a assertiva de David Lowental (1985: 412): “é
muito melhor considerar que o passado sempre tem sido alterado do que pretender que sempre
foi o mesmo...”. Mas é igualmente melhor considerar que o uso do passado colabore para uma
escrita da história que considere os rastros, os limites concretos, o compromisso com a(s)
verdade(s) do que pretender que ela forje verdades.

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161
O EGITO ANTIGO NO ESPELHO DA MODERNIDADE BRASILEIRA

Raquel dos Santos Funari1 2

Introdução: o fascínio do Egito antigo

O interesse pelo Egito antigo é secular (BAKOS, 2004). Já os antigos gregos e


romanos se fascinavam com o Egito, sua antiguidade, seus mistérios e coisas estranhas
(FUNARI, 2008; HUMBERT, 1994; 1996; UCKO, 2003). Heródoto de Halicarnasso (484-
425 a.C.) marcou bem essa admiração, ao dedicar todo o livro segundo da sua monumental
obra histórica àquela civilização (VIDAL-MANZANARES, 1993). Os romanos levaram a
mania pelo Egito a novos níveis, com a incorporação de motivos egípcios à sua arte, como
atestam, também, a Pirâmide de Caio Céstio (12 a.C.), em Roma, e a expansão dos cultos a
divindades nilóticas, como Ísis e Osíris (SILIOTI, 2007a). Na modernidade, o Egito apareceu
tanto nas artes, como na religião e na sociabilidade – maçonaria e espiritismo destacam-se -,
tendo a expedição de Napoleão (1798-1801) marcado importante ênfase na criação da
Egiptologia e na expansão da egiptomania (SILIOTI, 2007b). Os meios de comunicação
modernos viriam a multiplicar e amplificar essas tendências (FAZZINI, 1996). Desde o início
do cinema, temas egípcios estiveram presentes com destaque e alguns dos maiores êxitos
cinematográficos de bilheteria tiveram essa civilização por tema, como Cleópatra e, mais
recentemente, O Príncipe do Egito. Na televisão, pululam documentários e ficções
ambientadas no Nilo antigo. Nas revistas de divulgação, essa presença é marcante em todo o
Ocidente (VERCOUTER, 2002).
Também o Brasil foi afetado por esse movimento, o que pode causar certo espanto,
tendo em vista as distâncias históricas e espaciais e as diferenças culturais entre o nosso país e
a antiga civilização egípcia (BAKOS, 2003; SABALLA, 1998). Contudo, essa ligação é
profunda e variada. Desde o início da nação independente, com D. Pedro I (1798-1834),
objetos egípcios formaram parte do Museu Nacional do Rio de Janeiro (BAKOS, 1996;
BELTRÃO e KITCHENS, 1990) e D. Pedro II (1825-1891) não deixou de valorizar essa
antiga civilização (BAKOS, 1998; 2003). A monarquia brasileira foi, diversas vezes,

1
Licenciada em História, Mestre e Doutora em História pela Unicamp, pesquisadora colaboradora em pós-
doutoramento no Departamento de História da Unicamp.
2
A pesquisa de campo, contou com o apoio de três alunos de graduação do curso de História da Unicamp: Ana
Luisa Papi Dei Agnoli, Matheus Gonçalves dos Reis e Matheus Henrique da Silveira.
comparada pela imprensa da época, inclusive por meio de caricaturas, aos faraós. A
maçonaria também se inspirava naquela civilização. No século XX, a presença egípcia esteve
presente tanto por via do Kardecismo, como por uma presença recorrente de obeliscos,
pirâmides, esfinges e outros tantos referenciais aos antigos egípcios. Há pouco, Alessandra
Negrini estrelou o filme Cleópatra (1968), produção nacional de Júlio Bressane sobre a rainha
egípcia. A produção acadêmica sobre o Egito tem crescido, também, desde a década de 1980
(BAKOS, 1993; BRACAGLION, 1993; CARDOSO, 1982; 1986; FUNARI, 2006; 2010;
GRALHA 2005; 2009). Assim, neste capítulo, busca-se explorar a percepção masculina sobre
o Egito antigo pela juventude brasileira, a partir de um estudo de caso levado a cabo com os
alunos de graduação da Unicamp (FUNARI, 2004).

Usos do passado e identidades

Desde há algumas décadas, a historiografia tem mostrado como os usos do passado


são balizadores das interpretações historiográficas (ARNOLD, 2000; BERNAL, 1996; 2005;
CAMPAGNO, 2006; HAMILTON, 2003; HINGLEY, 2008; JENKINS, 1999; MUNSLOW,
1997). No Brasil, em particular, a preocupação com a criação de representações modernas
sobre a Antiguidade tem sido crescente, a partir de diversos pontos de vista (SILVA, 2007).
Em particular, tem-se mostrado como as imagens populares sobre a Antiguidade conformam a
própria historiografia e constituem, portanto, um objeto de estudo de particular relevância. Os
livros didáticos, com suas narrativas escritas e imagéticas, têm se mostrado formadores das
interpretações dos estudiosos, assim como os filmes e outras produções populares (FERRO,
1993). Neste aspecto, não se pode separar a historiografia das percepções ordinárias do
passado, em geral, e em particular no que se refere ao mundo antigo.
Em seguida, a preocupação com as identidades sociais contemporâneas levou à
valorização das diferenças e particularidades (CASTILLOS, 1984; MESKELL, 1998;
MESKELL e JOYCE, 2003; SHAW, 2004). Um dos aspectos mais relevantes constituem as
identidades de gênero, em especial entre os jovens. Tem-se constatado diferenças entre
homens e mulheres nos seus olhares e, por isso, tem-se investido em pesquisas que enfatizem
essas especificidades. Essa abordagem de gênero busca apresentar aquilo que há de original
nas perspectivas de umas e outros. Neste capítulo, a atenção está voltada para o olhar
masculino e, de fato, este estudo dá sequência a pesquisas anteriores sobre o tema (FUNARI,
2004; 2006; 2008), desta vez com uma observação sobre alunos de graduação. Um dos
tópicos mais recorrentes na disciplina ministrada pela docente referiu-se às visões modernas

163
sobre a Antiguidade e um dos temas analisados foi a percepção da civilização egípcia e seu
fascínio (STEER, 2009).
Apresentamos, neste capítulo, os resultados de uma pesquisa de campo com alunos,
do sexo masculino3, e comentamos, de forma breve e inicial, os seus resultados. As discussões
epistemológicas recentes, no âmbito da historiografia, têm ressaltado as relações entre o
presente e o passado, na medida em que as percepções contemporâneas moldam o
conhecimento do passado (cf. http://www.usosdopassado.ufpr.br/apresentacao.html;
GARRAFFONI, 2008). Essas imagens do passado formam-se pelos meios de comunicação e
pela educação formal e informal e influenciam como o público em geral e os historiadores,
em particular, compreendem as épocas pretéritas. O caso da civilização egípcia, objeto dos
mais populares (cf. FUNARI, 2010), permite observar essa relação entre Antiguidade e
Modernidade de forma clara, como veremos.

1. Interesse: Você se interessa pela civilização egípcia?

Respostas Divergentes:

Dentre a categoria denominada “Um pouco”, foram inseridas respostas consideradas


semelhantes, dentre as quais:

3
Os resultados referentes às alunas serão estudados em outro paper, tendo em vista as restrições de tamanho
deste artigo, assim como a comparação dos dados.

164
“ – Sim, razoavelmente.”

“ – Um pouco.”

“ – Moderadamente, sim.”

2. Vocabulário: escreva três palavras que, para você, classificam a civilização egípcia.

3. Mídia impressa: você costuma ler notícias sobre o Egito Antigo? Descreva as
publicações nas quais você costuma ler noticias sobre a civilização egípcia. Registre,
abaixo, que temas você leu ou estudou ou estudou sobre o Egito Antigo.

165
Entre os meios de comunicação citados, encontram-se as revistas Galileu, Super
Interessante e Aventura Na história, telejornais (matérias sobre o assunto Egito Antigo),
manuais de história e arqueologia egípcia, além de fontes da internet. Destaca-se o uso
também, juntamente com os manuais acadêmicos, de documentação, o que ocorre graças ao
ambiente onde ocorre a pesquisa, o curso de graduação em História. Entre os temais mais
relacionados de leitura, estão descobertas de novas áreas arqueológicas como tumbas,
pirâmide, entre outros. Um assunto de grande interesse do público masculino foi a
legitimação do poder no período de Ptolomeu e a mitologia em geral. Dentre as respostas,
chama atenção, ao ser questionado sobre assuntos dos quais costuma ver, o entrevistado
respondeu ser o canal “National Geographic”, revelando que o a mídia tem televisiva tem uma
grande influencia no público masculino. Quanto às matérias estudadas em sala de aula, estão
questões relacionadas à escravidão, às relações sociais, homossexualidade, mulheres, questões
religiosas como os deuses antigos, sendo este um dos pontos que chamou a atenção, por se
relacionar com questões geopolíticas, o que pode indicar um avanço no conhecimento do
atual Egito.

4. Filmes: você já assistiu a algum filme que mostre alguma cena ou fato relacionado À
civilização egípcia? Quais filmes? O que mais lhe interessou?

166
Dentre os aspectos que mais chamaram atenção dos entrevistados estão os modos
como o Egito é representado no filme, no que se refere à cultura, a origem e construção os
objetos arquitetônicos e sua grandiosidade, além do fator mitológico, outro aspecto que foi
bastante citado pelos entrevistados.

5. Imagens do Egito antigo: ao falar sobre o Egito, que imagens você associa a essa
civilização?

167
Para alguns itens citados, cabe uma melhor explicação:

- “Deuses”: o termo foi utilizado para definir outros como “As representações dos deuses”,
“Deuses”, “Deuses mitológicos” e “Deuses Antropozoomórficos”.

- “Esfinges”: O termo também foi referenciado por “Esfinge de Gizé”.

6. Turismo: você gostaria de visitar o Egito? O que lhe interessaria visitar o Egito?

168
7. Enigma: que enigmas da civilização egípcia chama sua atenção?

Ao se tratar de enigmas, cada aluno apresentou sua visão, mas que em geral, converge
com a dos outros. Um exemplo são os enigmas relacionados às pirâmides. A maioria referiu-
se na pesquisa a forma como foram construídas (levando-se em conta o avanço tecnológico

169
para o momento), ou suas formas arquitetônicas. Quanto a “tumbas” e “sarcófagos”, os
entrevistados relacionam ao mistério que estes trazem, ao estarem quase sempre, escondidos.

8. Animais egípcios: que animais você associa ao Egito?

9. Egito atual: que informações você tem sobre o Egito atual?

170
A maioria do público masculino não respondeu ou não soube informar qualquer
assunto a respeito do Egito Atual. O item “religião” compreende as respostas que
mencionavam o islamismo como religião de maior abrangência no país.

10. Egiptomania: que nomes de pessoas do Egito Antigo você conhece? Por que razões
você acha que muitas pessoas no Brasil são fascinadas pela civilização egípcia?

171
11. Enigmas: que enigmas sobre a civilização egípcia você gostaria de decifrar?

Novamente, assim como na pergunta sete, os detalhes das pirâmides, ou arquitetura,


referem-se à forma como se deu a construção com tal nível técnico, considerado avançado
para a época. Observa-se um elevado número de respostas como “Não sabe/Não Respondeu”.
Tal fator pode dever-se ao desconhecimento de enigmas em específico, levando a pessoa a
não opinar.

Conclusão

O interesse pelo Egito Antigo é majoritário entre os entrevistados, com predomínio,


entre os homens, de símbolos associados ao poder, como as pirâmides e que, para alguns,
poderia até mesmo apresentar conotações fálicas.
Isso não parece ser casual. Ao contrário, reflete a expectativa masculina de comando
social, refletida na vida social, em geral, e escolar em particular. De fato, embora a maioria
dos professores sejam mulheres, em todos os níveis de ensino, os cargos diretivos
educacionais estão, de maneira muito majoritária, em mãos de homens. Isso significa que há
uma percepção muito difundida no sentido de que os homens se relacionam ao poder
(FOUCAULT, 1984; 1991). Isso acaba por estar refletido neste estudo.

172
Em seguida, aparecem os aspectos religiosos da civilização egípcia. O Egito atual,
embora não seja bem conhecido, chama atenção também pela religiosidade. Isso pode estar
em relação com as conotações misteriosas e religiosas da maçonaria e do espiritismo, aspectos
tão marcantes da presença egípcia antiga no Brasil. Dentre as personalidades egípcias antigas,
a mais popular continua na ser Cleópatra, seguida de Nefertiti, o que, claro, remete à beleza
feminina associada às duas rainhas. Também nestes casos, talvez se possa ver um olhar
masculino atento à beleza, mas de forma muito particular e mesmo contraditória, pois são
rainhas, poderosas por definição. Em que medida o fascínio masculino por mulheres
dominadoras pode estar em jogo aqui não se pode dizer, mas não deixa de ser algo sugestivo.
Por fim, as fontes de informações não convencionais são as mais marcantes, por
meio do cinema. Podemos concluir, desta breve análise, que os jovens têm informações sobre
o Egito por meio dos meios de comunicação e continuam fascinados por aspectos ligados ao
poder, à religiosidade e à beleza feminina. Não é à toa, portanto, o predomínio, nos livros
didáticos, na mídia e na sociedade em geral, das imagens do Egito ligadas a pirâmides e às
grandes beldades do mundo antigo. O Egito atual, não fosse pelas revoltas populares que
abalaram o país desde 2011, passaria quase despercebido. O Egito antigo, contudo, não pode
ser desvencilhado das imagens atuais produzidas sobre aquele distante passado.

Agradecimentos
Este capítulo é o resultado de uma atividade de pesquisa de pós-doutoramento no
Departamento de História da Unicamp, a respeito do ensino de História, no segundo semestre
de 2010 e resulta, de forma mais direta, de disciplina ministrada no curso de graduação em
História da Unicamp e contou com o apoio dos alunos: Ana Luisa Papi Dei Agnoli, Matheus
Gonçalves dos Reis e Matheus Henrique da Silveira. Agradeço aos três e a todos os alunos
que participaram da pesquisa. Agradeço, ainda, os seguintes colegas: Margaret Bakos, Renata
Senna Garraffoni, Júlio César Gralha, Richard Hingley, Lynn Meskell e Glaydson José da
Silva. Menciono, ainda, o apoio institucional do Departamento de História da Unicamp. A
responsabilidade pelo artigo e suas ideias, contudo, restringe-se à autora.

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176
OS LIMITES DA ROMANIZAÇÃO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA INTERAÇÃO
CULTURAL ENTRE OS MUNDOS CLÁSSICO E CELTA.

Nelson de Paiva Bondioli1

Em 1975 Arnaldo Momigliano publicou um dos seus mais conhecidos estudos sobre
a Antiguidade: Os Limites da Helenização. A obra de Momigliano propõe uma reflexão,
indicada no subtítulo de sua edição em português, a Interação Cultural das Civilizações
Grega, Romana, Céltica, Judaica e Persa.
A interação cultural entre diferentes povos é também, neste estudo, o ponto central
de análise, entretanto, diferentemente da obra de Momigliano, não nos concentraremos no
povo Grego, mas buscaremos compreender as relações entre os povos Clássicos, com ênfase
nos Romanos, e Celtas partindo como princípio norteador de uma reavaliação do conceito
“Romanização”.
A historiografia moderna já vem há algum tempo refletindo sobre o uso deste
conceito, sua ressignificação, e até mesmo a possibilidade de adoção de um novo jargão
descarregado da seguinte conotação primária: a supressão de uma cultura “bárbara” e sua
subseqüente substituição por uma cultura “civilizada”. Neste artigo, portanto, daremos
prosseguimento a este tipo de reflexão e abordaremos os problemas conceituais relativos à
“Romanização” trazendo à análise tanto fontes materiais como textuais para a construção de
nosso argumento, residindo nesta forma, uma possível chave explicativa que entendemos
carecer ao estudo de Momigliano, pois este, ao tratar das relações entre Gregos/Romanos e
Celtas, utilizou-se primariamente de fontes textuais – além de concentrar quase que
exclusivamente nos relatos sobre uma única região/cidade da Gália, Massália.
Certamente pode-se dizer que tanto o objetivo quanto o objeto de Momigliano era
bastante diferente do que apresentaremos neste estudo: enquanto o autor trabalha com a
Helenização no mediterrâneo, a perspectiva aqui apresentada passa pelo(s) processo(s) de
Romanização, mas o que realmente une estas duas pesquisas reside no fato de que
procuraremos demonstrar que a própria Romanização deve ser repensada a partir de um
recorte cronológico diferente do qual é atualmente estabelecido: a inteiração cultural entre
Romanos e Celtas é muito anterior à conquista de Gália em meados do século I a.C.

1
Doutor em História pela UNESP-Assis.
Este artigo está separado em três partes: A primeira em que faremos uma breve
análise de elementos da cultura material que se circunscrevem na relação do Mundo Clássico
– tanto Grego quanto Romano – com os Celtas a partir do século IV a.C., seguida de uma
reavaliação do conceito de Romanização buscando compreender o uso e aplicação do mesmo
e seus significados e, por fim, buscaremos compreender porque seu uso se restringe ao
período posterior à formação do Império Romano argumentando que as vias de inteiração
cultural entre Romanos e Celtas estavam em uso desde um período bastante anterior, cabendo
assim questionarmos o motivo de sua exclusiva aplicação ao período imperial.

I) Celtas e o Mediterrâneo

O contato entre Celtas e Gregos é bastante conhecido – e reconhecido – pelos


arqueólogos através do estudo da cultura material desde, ao menos, o século VI a.C. De fato,
o próprio Momigliano (1991: 53-56) se atenta aos elementos das culturas Hallstatt 2 e La
Tène3, porém fazendo pouco – ou quase nenhum – uso dos mesmos na construção de seu
argumento e análise.
Propomos aqui que uma avaliação acerca dos enterros “principescos” da cultura
Hallstatt providencia evidências suficientes para superarmos qualquer tipo de visão de um
“passado estático”, isto é, no qual os diferentes grupos culturais encontram-se isolados, sem
comunicação, ignorantes dos desenvolvimentos sociais e culturais um dos outros. Ao
contrário, o que aprendemos com o estudo destas fontes é que o contato entre estes povos era
fluído e, talvez mais importante, começamos a perceber os indícios do que apontaremos como
uma tradição Celta de longa data: a adaptação de elementos culturais estrangeiros seguindo
modelos característicos locais, baseado em necessidades e aspirações locais. Dois dos
melhores exemplos que encontramos desta “tradição”, encontram-se nas câmaras funerárias
de Hochdorf e Vix, nas regiões de Baden-Wurttemberg na Alemanha e Côte-d’Or na França,
respectivamente.
Na câmara de Hochdorf há dois elementos principais os quais gostaríamos de trazer à
atenção: O primeiro é um caldeirão de bronze colocado no canto sul da câmara próximo ao
corpo do “príncipe” (BIEL, 2001: 110-113). O caldeirão é adornado por três figuras de leões
em bronze e, como aponta James (1993: 26-27), embora certamente o caldeirão se trate de

2
Nome dado a “etapa” de desenvolvimento dos povos chamados celtas entre c. 800 e 450 a.C.
3
Nome dado a “etapa” seguinte de desenvolvimento dos povos Celtas de c. 450 a.C. ao início do Império
Romano.

178
uma importação grega, os estilos de dois dos leões diferem-se muito do terceiro,
provavelmente tendo sido este último uma criação local de acordo com estilo artístico
próprio:

Primeiro Leão Grego do Caldeirão. Imagem Disponível em: http://www.iath.virginia.edu/

Terceiro Leão do Caldeirão: Adaptação Celta. Imagem Disponível em: http://www.iath.virginia.edu/

O segundo item, ou na verdade grupo de itens, que gostaríamos de chamar à atenção


é o conjunto de nove pratos de bronze acompanhados de nove chifres para bebida suspensos
na parede norte da câmara mortuária. A importância destes objetos reside no fato de
encontrarem-se arranjados de acordo com o numero ideal de um symposion Grego, o que
levou diversos arqueólogos a perceber este elemento como uma conexão com o mundo e a
cultura Grega (CUNLIFFE, 1997: 57-62).
O enterro de Vix, contemporâneo ao de Hochdorf, também demonstra o interesse
destes povos com objetos e elementos culturais estrangeiros. Não apenas encontramos o
maior vaso/jarra de bronze que se tem registro, sendo obviamente uma importação grega
(MOHEN, 2001: 105-106), mas encontramos também um elemento inusitado no torque de
ouro que a “princesa” de Vix usava no pescoço. Lembrando-se que este é um adereço usado
essencialmente no chamado mundo Celta, notamos que em suas pontas estão presentes dois
pequenos pégasos de ouro, figuras estas que dispensam comentários a respeito de sua
participação na mitologia grega assim como da ausência de quaisquer outras representações
no mundo Celta:

179
Detalhe de Pégaso em Torque de Ouro. Imagem Disponível em: http://www.iath.virginia.edu/

De fato, uma consideração sobre os diversos objetos encontrados tanto no enterro


de Hochdorf como no de Vix, nos leva a conclusão que existia um grande contato entre estas
regiões com partes mais distantes do mediterrâneo, da Grécia à Etrúria. Mas, o que realmente
nos chama a atenção é que o contato com o mundo Grego não representou uma simples
assimilação de sua cultura pelos Celtas, mas ao contrário, houve uma adaptação de idéias de
acordo com a própria estrutura social local. Que os elementos que abordamos fazem parte de
uma demonstração de poder e riqueza dos indivíduos enterrados e suas famílias está mais do
que claro; é uma ostentação de riqueza que somente as classes mais altas poderiam arcar.
Assim, propomos que a inserção dos elementos culturais Gregos deve ser entendida dentro de
um panorama local, uma forma de demonstração de poder no que este tange à extensão das
redes de relação do indivíduo/família com as áreas geograficamente mais distantes.
Se o contato com o mundo Grego aparece então focado em relações de
troca/comércio, o contato entre Celtas e Romanos aparece, principalmente nas fontes
literárias, focado junto às operações militares, especialmente dos séculos II ao I a.C. Tal fato,
entretanto, não significa que não houve existência pacífica entre os dois povos: existe ampla
evidência material, a partir do próprio século VI a.C., como as inscrições bilíngues Celta-
Latim na península itálica (HAYWOOD, 2001: 42). Apesar disso, acreditamos que não tenha
sido de fato até o século IV a.C., momento de intensa mobilidade demográfica na Europa
Central, que eles tenham marcado sua presença dentro do mundo Romano.
As relações entre Celtas e Romanos se estreitaram – de uma forma ou de outra –
principalmente após o século II a.C. com a anexação da Gália Transalpina (Gallia

180
Narbonensis) como província Romana e consolidada como a mais importante rota de ligação
com a Espanha (GOLDSWORTHY, 2006: 26). O século II a.C. é também um momento de
intenso comércio entre a Gália e a península Itálica especialmente reconhecido pela
quantidade enorme de ânforas de vinho romanas (Dresser I) encontradas por toda a Gália, da
província Transalpina a Armorica, e da Aquitânia ao Reno (CUNLIFFE, 1997: 312).
Ao século I a.C. estes dois povos já se encontravam profundamente conectados, ao
ponto de que o vergobreto4 Éduo Diviciacus veio para Roma em 61 a.C. buscando auxílio do
Senado contra invasores Germanos, um pedido ignorado até Júlio César se tornar procônsul
da Gália (GOLDSWORTHY, 2006: 246).
Toda esta digressão em relação ao contato entre os Celtas, Gregos e Romanos
fundamentou-se na necessidade de uma breve contextualização que nos permitirá, a partir da
próxima seção deste estudo, questionarmos o significado do conceito de “Romanização”, sua
utilização e validade para o entendimento das relações entre Celtas e Romanos.

II) Romanização: Conceitos e Limitações

O termo Romanização, apesar de cunhado pelo historiador alemão Theodor


Mommsen no final do séc. XIX deve sua “força” à análise do historiador britânico Francis
Haverfield sobre o que este chamou de Romanização da Bretanha Romana. A Romanização é
caracterizada como um processo civilizador no qual Roma doa aos provincianos sua língua,
arte, cultura e religião, substituindo – ainda que não completamente e de uma única vez – suas
contrapartes locais (HAVERFIELD, 1912). A proposta de Haverfield encontrou ampla
aceitação no meio acadêmico de modo em que podemos afirmar que a imagem criada por este
historiador permanece, inclusive aos dias de hoje, como o modelo hegemônico de reflexão
acerca do contato entre os Romanos e os diferentes povos.
Existem duas razões principais para este fato, sendo que a primeira, acreditamos,
reside naquilo o que Webster comentou em seu trabalho: “Nós retemos em geral uma visão
positiva do Imperialismo Romano” (1999: 17) e, em segundo lugar, como corolário da
primeira, A visão positiva que temos em grande parte se dá devido a uma visão histórica em o
ocidente como um todo é entendido como herdeiro do mundo Clássico.
Apesar destas considerações, nos últimos anos, especialmente após o começo da
década de 90, novos estudos a respeito dos encontros culturais entre diferentes povos na

4
Nome dado a mais importante magistratura eleita anualmente entre os éduos.

181
Antiguidade vêm sendo realizados trazendo novas perspectivas de compreensão e se
afastando do “modelo Haverfield” de análise.
Na verdade, os processos de inteiração cultural entre Romanos e os povos por eles
conquistados passaram a ser questionados a partir mesmo de sua denominação:
“Romanização” não deve mais ser entendida como o “tornar Romano”, mas sim como
múltiplos processos de negociação de identidades, de ressignificação e adequação de objetos e
símbolos de uma cultura para outra levando a criação de novos elementos – ou se não de uma
nova cultura – que não são puramente Romanos ou Provinciais.
Se no modelo Haverfield a Romanização não passa de uma substituição da cultura
“bárbara” por uma “civilizada”, as novas análises do termo consideram-no não como
aculturação/adoção do modo de viver romano, mas sim adaptação orientada em modelos
característicos locais, tal qual observamos em relação aos elementos materiais apresentados
na seção anterior.
O alargamento do conceito de Romanização gerou, ao menos, duas importantes
posições acadêmicas para sua utilização: De um lado encontramos autores que propõem a
abolição do termo e o uso de um novo jargão para tratar dos processos de inteiração cultural
como, por exemplo, o conceito e “Criolização” (WEBSTER, 2001) tendo em vista uma
posição pós-colonialista de interpretação de encontros culturais e, de outro lado, autores que
apesar de negarem o valor explicativo do conceito Romanização em si mesmo, acreditam na
manutenção do termo buscando explicitar o seu significado em todas as situações específicas
sob análise (WOOLF, 1998).
Em nosso estudo consideramos de grande valia ambas iniciativas, embora possuam
também suas limitações: Até o momento, não encontramos um consenso entre os especialistas
sobre um novo termo a ser usado no lugar de Romanização ao passo que devemos considerar
o valor explicativo de um conceito em sua capacidade de generalização o que torna
dispendioso e problemático o uso de “Romanização” nos diversos estudos, pois este pode
significar diferentes premissas para os diferentes autores e assim tornando sempre necessário
retomar o seu conteúdo.
Manteremos neste trabalho o uso do termo Romanização na acepção em que
apresentamos acima, ao diferenciá-lo do “tornar Romano” de Haverfield, e passaremos agora
a questioná-lo, não mais em seu significado propriamente dito, mas em sua aplicação: se a
Romanização se trata de um processo de inteiração cultural, por que ele é usado
principalmente para invocar o período após a formação do Império Romano?

182
Como demonstramos na primeira parte deste artigo, o contato entre o mundo Celta e
Mediterrâneo é antigo – ao menos desde o século VI a.C encontramos evidenciais matérias de
sua existência – e, de certa forma, podemos também afirmar que está bem estabelecido ao
menos desde o século II a.C entre Romanos e Celtas. Apesar destes elementos, permanece o
uso do termo Romanização para o período do século I d.C. em diante, assim sendo,
dedicaremos a parte final de nosso trabalho para a análise deste fato.

III) Interação Cultural entre Celtas e Romanos

Apesar das novas acepções para o conceito de Romanização, colocando os povos


Celtas como agentes ativos – e não receptores passivos da cultura Romana – no contato com
os Romanos e mesmo na construção de uma nova identidade seja ela denominada Imperial ou
Galo-Romana (WOOLF, 1997), argumentamos que permanece no meio acadêmico uma visão
essencialmente unilateral deste movimento.
A compreensão de nosso argumento se dá pela percepção de que existem
implicitamente anexos ao conceito de Romanização – mesmo dentro das supracitadas novas
acepções do termo – duas noções que o caracterizam: A noção de “ação deliberada” e a
“primazia da percepção Romana”.
Em 1987, Michael Jones publicou um artigo em que questionava a eficácia da
Romanização na Grã-Bretanha. Chamaremos a atenção os seguintes trechos:

A política consciente de Roma era o uso da língua latina para moldar


ideias enquanto criava uma vida pública baseada no modelo urbano Romano, assim
fundindo as culturas Romanas e nativas. Esta política era bem deliberada e seu
sucesso necessário para assegurar a segurança dentro da enorme extensão geográfica
do Império (grifo nosso) (JONES, 1987: 127).

A primeira fase da Romanização envolvia a conquista, pacificação e


ocupação militar direta. ... A segunda fase da Romanização tipicamente começava
com a retirada das tropas armadas e o fim da ocupação militar direta (JONES, 1987:
128).

As passagens acima mostram de uma maneira bastante clara que a Romanização


dentro do modelo Haverfield é vista como um projeto: é uma ação planejada e pensada em
Roma ou, como afirma Charles Ebel, podemos notar o “O zelo missionário dos Romanos em
Romanizar” (1988: 572), tendo em vista determinados fins, como a “assimilação” pela cultura
nativa da cultura Romana e a segurança no interior do Império.

183
Se a Romanização depende da vontade de Roma, a percepção de seu “começo”, isto
é, de sua implementação será, necessariamente, aquela estipulada pelos próprios Romanos.
Assim sendo, podemos nos perguntar por que se tentamos entender a Romanização como uma
forma de inteiração cultural e de negociação de identidades seu estudo depende de uma
unilateralidade, isto é, necessariamente da vontade Romana.
Certamente não pensamos em negar que existiu uma política Romana de colonização
das províncias conquistadas especialmente após a organização de Roma e seus territórios em
um Império, entretanto, argumentamos que a aplicação deste recorte cronológico ignora por
completo toda a historicidade dos encontros e trocas culturais que não são menos importantes
para os povos que foram anexados posteriormente ao Império.
Na verdade, a periodização do conceito de Romanização torna-se unilateral como
argumentamos, pois sua aplicação se dá no momento em que este aparece como pauta
relevante aos Romanos sem levar em consideração que os contatos entre os Romanos e os
outros povos já possuía efeitos e consequências socioculturais para todos os envolvidos
mesmo antes do período Imperial, no caso específico deste estudo, os povos Celtas da Gália
desde o século VI a.C.
Poderia se argumentar que existe uma questão de escala a ser considerada, que após a
conquista de Júlio César da Gália em meados do século I a.C. e a anexação da Gália como
província Romana intensificou/acelerou-se os processos de mudança social e inteiração com
os Romanos. Propomos, entretanto, que este argumento não é completamente válido: Se é
verdade que houve uma intensificação do contato entre estes povos, não podemos descartar
mudanças significativas nas estruturas sociais dos Celtas em períodos anteriores. Neste
mesmo estudo citamos um exemplo destas mudanças com a forma de governo entre os Éduos
que se assemelhava bastante ao modelo do senado Romano – frisa-se, entretanto, que é um
modelo alterado de acordo com necessidades e paradigmas locais –, no mesmo sentido,
busquei em minha dissertação de mestrado argumentar que é possível que a própria
organização e estrutura do sacerdócio Celta (druidas e vates) pode também ser um elemento
que ao seu modo resulta das interações entre os Romanos e Celtas em período anterior ao
século II a.C. dentro do que foi citamos como a longa “tradição celta” de adaptação cultural
seguindo modelos próprios (BONDIOLI, 2011).

Conclusão
Nosso objetivo neste estudo foi propor uma reavaliação do conceito de Romanização
e o seu uso na historiografia contemporânea. Demonstramos que nas últimas duas décadas

184
vêm-se tentado afastar o modelo “Haverfield” de compreensão da Romanização em prol de
uma visão na qual tanto Romanos quanto nativos são sujeitos ativos na negociação de suas
identidades e cultura. Entretanto, buscamos demonstrar também que apesar destes esforços, é
necessário que haja uma ampliação no recorte cronológico no qual o termo Romanização é
inserido: Se tratamos de inteiração cultural, não podemos simplesmente ignorar séculos de
contato entre o mundo mediterrâneo e o mundo Celta com base em uma visão unilateral em
que ele apenas tomará importância quando houver o interesse Romano em criar uma política
própria de regulamentação.
A inteiração entre Romanos e Celtas, ou mesmo Romanos e nativos de outras
províncias conquistadas, embora se intensifique após a organização do Império Romano
possui um longo histórico com características específicas de cada região. Se quisermos que
Romanização saia de fato de uma visão colonialista de troca da “barbárie” pela “civilização”,
é necessário que apliquemos este conceito fora do paradigma de uma ação Romana
deliberada, e circunscreva-o nas trocas culturais que acompanham os povos em questão ao
longo de sua história.

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185
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_________. Becoming Roman: The origins of the Provincial Civilization in Gaul. Cambridge:
Cambridge University Press. 1998.

186
BOUDICA NAS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO

Tais Pagoto Bélo1

1- Boudica, da Antiguidade ao presente: usos do passado

Os escritores antigos, Tácito (1914) e Dião Cássio (1925), escreveram em primeira


mão sobre Boudica nas obras Anais, A vida de Agrícola e História de Roma. Diziam que ela
tinha vivido no primeiro século depois de Cristo, por volta dos anos 60 a 61 d.C., durante a
presença do Império Romano na ilha da Bretanha e que foi uma rainha Bretã, da tribo dos
Iceni, junto com seu marido Prazutago.
No início, sua tribo tinha uma boa relação com os romanos, mas os contratempos
entre eles se iniciaram com o governo de Suetonius Paulinus (Tácito, 1914), o qual começou a
fazer algumas exigências que os Bretões não concordaram em cumprir. Nesse contexto,
decorreu-se a morte de seu companheiro, suas filhas foram violentadas e ela foi açoitada pelos
oficiais romanos. Depois desse episódio, decidiu, numa ação de vingança, formar um exército
contra os assentamentos do Império.
A estratégia da guerreira iniciou-se enquanto os romanos estavam investindo contra
uma tribo de druidas na ilha de Mona. Ela, junto com sua tribo e os Trinovantes, iniciaram um
ataque contra Camulodunum, atual Colchester, depois Londinium, atual Londres e mais tarde
Verulamium, atual Saint Albans, seguindo-se logo a batalha final contra o exército romano.

1
Doutoranda do Departamento de História/ IFCH/UNICAMP; Orientador: Pedro Paulo Abreu Funari; Agência
de Fomento: FAPESP; Contato: taispbelo@gmail.com
Fig.1. Mapa da Antiga Bretanha: conquistas de Boudica2.

A investida dos romanos contra a tribo de druidas aconteceu devido ao fato que eles
eram homens sagrados e respeitado pelos Bretões, tendo assim, livre acesso à todas as tribos.
Esta movimentação facilitava a comunicação e troca de informações de uma tribo Bretã a
outra. Sentindo-se ameaçados os romanos investiram um ataque contra os druidas.
Os escritores da Antiguidade tinham como função contar aos romanos, por meio de
suas narrativas, os grandes feitos do Império. Eles faziam parte de uma sociedade que era
desacostumada a ver uma mulher como governante e muito menos como comandante de um
exército. Dessa forma, Boudica foi descrita por eles como uma mulher masculinizada, que
tinha o tamanho, a voz e as armas de um homem (Cássio, 1925), além da ineficácia de sua
liderança (Tácito, 1914).
Contudo, estes textos antigos foram lidos e relidos posteriormente, e assim, autores e
artistas readaptaram essa mesma história, em muitos casos, de acordo com o contexto social
em que viviam. Essas obras são poemas, peças de teatro, esculturas, livros, pinturas, trabalhos
políticos e até charges que envolveram a figura feminina de Boudica.
Sendo assim, com o uso de fontes e documentos, assim como A Vida de Agrícola e
gravuras de obras escritas sobre Boudica, este artigo tem como intuito mostrar como o uso do
passado pode carregar em si representações que ainda são utilizadas até o presente, mas que
estas podem sofrer mudanças em seu contexto simbólico, devido ao valor que é colocado

2
http://umsoi.org/2010/04/27/boudicca-l%E2%80%99amazzone-che-sfido-l%E2%80%99impero/20/07/2001,
Acessado em: 18/12/2011)

188
sobre elas e por atitudes cotidianas que fazem com que esse passado seja sempre lembrado. E
que assim, uma memória seja alimentada, a qual pode ser responsável, por tempos em tempos,
em construir e completar uma memória coletiva, que, segundo Halbwachs (1990), é uma
corrente de pensamentos contínuos, que nada tem de artificial, já que retém do passado
somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém.
Dessa forma, “onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na
memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo”
(BENJAMIN, 1995), ou seja, um não existe sem o outro.
Sendo assim, pode-se perceber que algumas coisas são sempre lembradas e outras
não, como se tivesse um julgamento para isso, ou simplesmente porque não se tem um motivo
político social para se lembrar de outro fato. Dessa forma, Boyer (1996) menciona que talvez
de forma inconsciente e outras vezes explicitamente, os fragmentos e traços da arquitetura de
uma cidade, por exemplo, são manipulados, mas algumas coisas permanecem, são inseridos
em um contexto contemporâneo e controladas pelas circunstâncias de mudanças e desejos
(BOYER, 1996).
Sendo assim, a fonte escrita antiga aqui trabalhada é A Vida de Agrícola de Tácito
(1914), um dos primeiros documentos a citar Boudica, que provavelmente foi escrito entre
outubro de 97 d.C. e janeiro de 98 d.C. (PETERSON, 1914) e é classificado como uma
biografia, pois é uma homenagem a Agrícola, o qual narra a sua vida, além de seus atos de
guerra na Bretanha, até sua morte.
Diante da obra de Tácito (1914), a memória que ficou foi a da personagem Boudica,
que foi sutilmente citada em A vida de Agrícola, mas que, ao longo do tempo, se tornou uma
figura polêmica, de inspiração patriótica e de gênero, além de ser responsável pela construção
de uma identidade nacional.

2- Boudica e os Bretões em A Vida de Agrícola

Tácito, autor da obra A Vida de Agrícola, nasceu em 54 d.C. e morreu em 117 d.C,
ou seja, por volta dos 63 anos. Seu pai foi provavelmente um agente imperial na Bélgica e da
cavalaria romana. Além disso, foi pupilo de Quintiliano e no ano 78 d.C. se casou com a filha
de Agrícola, o qual passou a ser seu sogro. De 79 d.C. a 81 d.C, ele publicou Diálogo dos
Oradores e, com isso, ganhou o título de questor. Logo depois, em 88 d.C. se tornou pretor. E
ainda, do ano de 89 d.C. a 93 d.C. se ausentou de Roma, possivelmente para ser governador
de uma província menor. No entanto, em 97 d.C. se torna cônsul e no ano seguinte publica A

189
Vida de Agrícola e Germania; de 105 d.C. a 109 d.C. publica Histórias; e três anos depois
torna-se procônsul da Ásia, sendo que seu último trabalho escrito foi em 116 d.C., com a
publicação dos Anais, morrendo no ano seguinte, depois de sua obra estar pronta (Peterson,
1914).
A obra, A Vida de Agrícola, faz parte de um volume maior dos registros de Tácito
(1914), que ainda inclui Histórias e os Anais, é como se fosse um fascículo e é considerada
uma apologia ao seu sogro, Agrícola. Essas fontes possuem uma série de contradições e
percebe-se que foram escritas longe do palco das ações ou muito posteriores a elas (PINTO,
2011).
Publicada depois da morte do protagonista, o autor desta biografia inicia o texto
dizendo que a vida que ele está preste a descrever já se foi e que gostaria de prestar uma
homenagem, mostrando que ninguém imagina que as chamas que queimam o corpo de
Agrícola, no pátio do Fórum, queima também a voz do povo, da liberdade do Senado e da
consciência da humanidade (Tácito, 1914).
Neste sentido, Tácito homenageia Agrícola como uma forma de não o esquecer, pois
o poder político era o elemento mais importante do mundo romano em que vivia
(MACHADO, 1998), e o fato de ser lembrado é ter esse poder, mesmo depois de morto,
porque isso marca a importância de seus atos, e que, assim, fica como uma herança familiar
para as gerações seguintes. Dessa forma, a impressão que se tem da obra, ao longo de sua
leitura, é que ela foi preparada antes da morte de Agrícola e que ele próprio elaborou-a junto a
Tácito (1914), com a idéia de ser publicada posteriormente a sua morte.
A biografia, durante o Império Romano, funcionava como uma representação do
poder político da personalidade, ela conta atos virtuosos da pessoa. Entretanto, muitos desses
dados poderiam sofrer alterações durante a redação do texto ou mesmo serem inventados para
poder glorificar os atos do biografado (Machado, 1998).
Tácito (1914) escreveu que Agrícola nasceu em 13 de junho de 40 d.C. e morreu em
23 de agosto de 93 d.C., com 54 anos, além de traçar toda a herança familiar e educação do
mesmo. Adiciona que seus avós eram procuradores de César, ou seja, um posto que envolvia
a ordem superior dos cavaleiros. Seu pai tinha um cargo no Senado e foi notável pelo seu
interesse em retórica e filosofia (Tácito, 1914).
Em relação às mulheres da família, dizia que a mãe de Agrícola, Julia Procilla, era
simplesmente uma mulher de rara virtude, e que sua esposa, Domitia Decidiana, era uma
mulher de alta linhagem e que a vida do casal era harmoniosa, de muito afeto e de grande
sacrifício das duas partes. Dizia também, que uma boa esposa tem a glória eterna em relação a

190
má esposa que só tem a culpar a si mesma (Tácito, 1914). A mulher romana, principalmente
aquela de boa linhagem, poderia ser considerada inteligente, sábia, saber ler, escrever e
poderia ser culta, porém nunca estaria presente em um posto de liderança política ou de
exército.
São narrados, também, os atos de guerra que ocorreram na Bretanha, lugar onde
Agrícola teve seu aprendizado sobre combate e foi comandado por Suetonius Paulinus, um
general cuidadoso e prudente, nas palavras de Tácito (1914). Foi nesse período que houve
uma investida do Império Romano à ilha de Mona (Anglesey), contra uma tribo druídica,
mais exatamente entre os anos de 59 d.C. e 62 d.C. Por volta de 60 d.C e 61 d.C., os nativos,
liderados por Boudica, avançaram sobre o assentamento romano de Camulodunum, atual
Colchester, marcando a primeira vez que Agrícola foi para o campo de batalha (Tácito, 1914).
Consequentemente, o exército da guerreira seguiu para outro assentamento romano,
Londinium, atual Londres e mais tarde para Verulamium, atual Saint Albans. A descrição que
Tácito (1914) faz desse episódio é que os veteranos foram massacrados e as colônias
queimadas, além do exército romano ficar sem suas bases (Tácito, 1914).
Agrícola foi transferido de soldado para comandante da 20o legião por Mucianus,
além de ter se tornado patrício por Vespasiano, que o colocou a cargo da província de
Aquitânia, ou seja, um posto de significativa distinção e com a promessa de ser cônsul
(Tácito, 1914). E quando conseguiu essa última posição prometeu sua filha a Tácito (1914).
A noção geográfica de Tácito era péssima. Em seu entendimento, a ilha da Bretanha
era como dois triângulos com uma das pontas de cada um voltada para a ponta do outro, como
se fosse um machado duplo. O lugar de encontro das pontas era chamado de ístmo de Clyde
and Forth; no triângulo de cima, ou no norte, ficava a Caledônia e no sul estaria a Bretanha
propriamente dita; ao leste estaria a Germânia e a oeste a Espanha. Descreveu a geografia da
ilha, falando do mar, das montanhas, dos rios, do clima, dos estuários, das florestas, além dos
fortes, assentamentos e dos nativos.
Em relação à esses últimos, foi analisado os aspectos físicos desse povo e apontou
que os cabelos vermelhos e os largos membros lembravam os povos de origem germânica. O
cabelo ondulado poderia ser de origem ibérica, já que a Espanha ficava a oeste da ilha, em sua
concepção. Salienta ainda, que esse povo que se porta como os gauleses são iguais a eles e
que os traços hereditários poderiam ter persistido, ou porque eram cobertos pelo mesmo tipo
de clima. Chegou a conclusão que os gauleses foram em outros tempos à ilha da Bretanha e
ali se desenvolveram (Tácito, 1914).

191
Também foi mencionado que este povo fazia os mesmos tipos de celebrações, tinham
as mesmas superstições e que a língua não era muito diferente da dos celtas do continente.
Contudo, esses últimos fugiam em qualquer perigo à vista, enquanto os Bretões não se
deixavam ficar efeminados por passarem longos períodos em paz. Na batalha, a força dos
Bretões estava em sua infantaria, mas tinham algumas tribos que lutavam com carroças, como
a própria Boudica. Seus comandantes sempre tinham um posto de honra e os combatentes
eram meros retentores (Tácito, 1914).
Ao descrever as batalhas contra os Bretões, o autor chama-os de covardes e que só
lutam por ganância e por rebeldia, enquanto os romanos lutavam por suas famílias. Ao
mencionar Boudica, salienta que ela persuadiu sua tribo a pegar em armas contra os romanos.
Tácito (1914) a apresenta como uma mulher de origem nobre e diz que os Bretões não
reconheciam a distinção em relação ao sexo de seus governantes. Além do mais, explica que
ela poderia até liderar os Brigantes (não comenta sobre os Iceni), para queimar a colônia e
bramir em campo, porém que, por ser mulher, nunca teria sucesso em batalha. Ao contrário
dos romanos, que proferiu que lutavam como homens destemidos, homens que nunca
falhariam em relação à liberdade e que nunca se tornariam penitentes (Tácito, 1914).
Diante das perspectivas de comum dominação masculina romana, Tácito (1914) e
mesmo Dião Cássio (1925), descreveram Boudica como uma figura bárbara e incomum no
que rege a liderança de um exército e, assim, autores posteriores, seguindo os mesmos
pensamentos, quase sempre a apresentaram como algo diferente, uma anomalia, pois ela
ultrapassou os limites do papel feminino perante a sociedade em que esses escritores viviam.
Entretanto, mesmo sendo, muitas vezes, descrita de forma negativa, Boudica foi
constantemente relembrada, da Antiguidade até os dias de hoje, devido ao seu gênero e pelos
seus atos, ou seja, pelo fato dela ter sido uma mulher que levou seu povo à batalha.

3- Boudica ao longo do tempo

Em 1360 Giovanni Boccaccio, ao visitar a biblioteca do monastério de Monte


Cassino na Itália, resgatou vários documentos clássicos, entre eles as obras de Tácito. Sendo
assim, grande parte da obra Anais foi recrutada entre os anos de 1410 a 1430 e, na segunda
metade do século XV, muitas dessas obras foram copiadas e editadas, inclusive a de Tácito.
Depois disso, Tácito teve uma grande influência na história e no pensamento político da
Europa do século XVI em diante e sua obra ficou disponível a um grande número de
estudiosos (DUDLEY & WEBSTER, 1962; MARTIN, 1981).

192
Seguindo a viagem de Cristovão Colombo em 1492, os interesses da Europa se
voltaram à América. A expansão do conhecimento do mundo teve um impacto dramático na
Bretanha e resto da Europa, particularmente por causa da descoberta dos ‘selvagens’, povos
nativos encontrados durante a exploração do Novo Mundo (HINGLEY & UNWIN, 2005).
Durante os anos de 1530 houve a quebra do reinado de Henrique VIII, da Inglaterra,
com a Igreja, a qual levou o governo a receber diretamente pressões políticas que duraram até
o reinado de Elizabeth (BRIGDEN, 2000). Enquanto a Inglaterra se tornou protestante, a
imagem de Roma foi resguardada com ambivalência, pois era ligada ao Papa e ao catolicismo
(SHEPHERD, 1981). Essa foi a ocasião ideal para os ingleses resgatarem seu passado bretão
e sua história de origem e de associarem os ‘selvagens’ da América com os nativos da
Bretanha.
A contradição entre bravura e ‘selvageria’ estava no cerne dos relatos ingleses dos
séculos XVI e XVII e a imagem da Boudica era parte desse processo. De um lado, ela era
vista como exemplo de selvageria nativa e resistência contra a dominação romana, e de outro
como uma honrada personagem que lutou contra Roma e sua opressão. Boudica era
apresentada como uma figura complicada nos relatos modernos mais antigos (HINGLEY &
UNWIN, 2005).
Durante o século XVI, houve mulheres que governaram a Escócia e a Inglaterra,
Mary Stuart e Elizabeth. Apesar de muitas vezes essas mulheres terem sido taxadas,
condenadas e desmoralizadas, elas não compareciam para liderarem pessoalmente seus
exércitos nesta época. Boudica tornou-se uma figura que representava o excesso ‘selvagem’,
considerado inevitável para uma mulher no governo e, assim, não era apreciada de maneira
normal. Essa imagem que foi, em geral, delineada por homens, foi tirada dos relatos clássicos,
bíblicos e medievais para o início da Idade Moderna. Os relatos clássicos foram
reinterpretados em um contexto contemporâneo a esses escritores e passaram, de certa forma,
a denunciar as idéias de governantes e seus gêneros a partir de pensamentos anteriormente
construídos nessa sociedade.
Séculos depois, como os escritores dos tempos Elizabetanos tinham um grande
interesse em figuras virtuosas, Boudica se tornou o foco da atenção sendo retratada como uma
mulher patriota que lutou bravamente contra os romanos. Além disso, como o pai de Henrique
VIII era do País de Gales e os galeses eram considerados descendentes diretos dos celtas,
Elizabeth I, filha de Henrique VIII, se identificou muito com Boudica, sendo as duas figuras
focos de comparações e contrastes (MIKALACHKI, 1998). Contudo, a imagem da mulher no

193
poder, no século XVI, não era vista de forma positiva devido a idéias e pensamentos do
passado (MENDELSON & CRAWFORD, 1998).
No início do século XVII ainda se faziam comparações entre Elizabeth e Boudica,
como, por exemplo, na obra de John Speed (1611), The History of Great Britaine, obra que
mostrava Boudica como uma figura positiva inspirada na rainha Elizabeth I. Depois da morte
de Elizabeth em 1603 e a tomada do reino por James I, a figura da Boudica apareceu de forma
muito mais crítica. Nos séculos XVII e XVIII os escritores manipulavam as informações das
fontes clássicas e utilizavam a figura de Boudica para dar significado a alguns pontos da
sociedade em que viviam (HINGLEY & UNWIN, 2005).

Fig.2. Gravura do livro de John Speed (1611)3.

Trabalhos como o de Thomas Heywood (1640), ‘The exemplary lives and


memorable acts of nine the most worthy women of the world’; e Esther Sowernam4 (1617 ou
1985), ‘Esther Hath Hanged Haman’, falavam de uma forma positiva sobre Boudica (Hingley
& Unwin, 2005).

3
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
4
Provavelmente este era um pseudônimo, ou seja, um homem que escrevia com nome de mulher (Hingley &
Unwin, 2005).

194
Fig.3. Gravura do livro de Heywood (1640)5.

Como pode ser visto, as gravuras feitas de Boudica lembravam muito a rainha
Elizabreth I e não uma rainha Bretã, principalmente por causa de sua vestimenta,
diferenciando-se em alguns aspectos, assim como as tatuagens e a lança na figura da obra de
Speed (1611).
Entre os anos de 1609 a 1614 a história de Boudica foi contada por John Fletcher
(1609 ou 1979) em uma peça de teatro que, posteriormente, foi adaptada por Geoge Powell
em 1696 e mais tarde por George Colman em 1778 e 1837. Fletcher deixou claro que suas
visões foram baseadas nos relatos de Cássio (1925) e Tácito (1914) e que, provavelmente,
tinha lido Ubaldini e Holinshed. Dessa forma, roubava detalhes dos escritores, porém
inventava ações para fazer com que sua peça ficasse mais dramática. Contudo, nelas, as
mulheres tinham papéis negativos e, além de mostrar que Boudica era totalmente inadequada
para lidar com negócios masculinos, como por exemplo, política e guerra. Ele deixou claro
que os britânicos se tornaram gloriosos quando se juntaram aos romanos (WILLIAMS, 1999;
Crawford, 1999). O caráter negativo que Fletcher dá a Boudica teve maiores impactos nos 50
e 100 anos posteriores a estréia de sua peça.
Em 1753 (ou 1797), Richard Glover estreou a peça Boadicea, que representava a
personagem principal como totalmente hostil e seus atos falhos eram sempre associados ao
seu gênero, além de demonstrar que essa peça era uma versão exagerada do trabalho de
Fletcher.

5
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.

195
Fig.4. Ilustração da peça de teatro de Glover (1753)6.

Como pode ser observado, Boudica foi desenhada muito semelhante a rainha
Elizabeth I até anos depois de sua morte, assim como pode ser observado nesta ilustração da
peça de teatro de Glover (1753), ela possui até uma coroa, o que não era de costume dos
Bretões.

Fig.5. Gravura da obra de Holinshed (1578 ou 1586)7.

A obra de Raphael Holinshed, The Chronicles of England, Scotland and Ireland


(1577 ou 1586), também fazia comparações com a rainha Elizabeth I.

6
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
7
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.

196
Fig.6. Gravura de Bernard (1790)8.

A rainha Boudica desenhada na obra New Complete and Authentic History of


England, de Edward Barnard, publicado em 1790.

Fig.7. Boudicia, ilustração da obra de Sammes (1676)9.

Esta figura, chamada Bodicia, foi retirada da obra Britannia Antiqua Illustrata de
Aylett Sammes, de 1676, ainda lembra muito a rainha Elizabeth I.
O tema da Boudica em sua carroça de guerra foi utilizado na capa do trabalho de
Tobias Smollett (1758), ‘Complete History of England’, que a descrevia como uma mulher de
espírito masculino e irresistível eloquência. A ilustração foi feita por Charles Grignon que se
baseou no trabalho de Francis Hayman (HINGLEY & UNWIN, 2005).

8
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
9
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.

197
Fig.8. Gravura da obra de Grignon, 175710.

No início do século XVIII, Boudica foi modelada como uma figura patriota e heróica
e como uma inspiração nacional da literatura e da arte. No final do século XIX e início do
XX, ela foi redesenhada por poetas, autores de peças de teatro e outros artistas, como uma
figura de resistência a Roma. Um dos escritores mais importantes que retratou essa visão foi
William Cowper na obra ‘Boudicea: An Ode’, em 1782, que a apresenta como uma imagem
assexuada de triunfo e heroísmo britânico e que seus atos embasavam o desenvolvimento do
Império Britânico como um ícone imperial (HINGLEY, 2000). Além disso, foram removidos
da obra todos os aspectos que figuravam a ambição e a agressão de Boudica e, assim, sua
imagem foi construída de forma a ser aceita nessa época (HINGLEY & UNWIN, 2005).
Nos últimos anos do século XIX e início do XX, a imagem de Roma foi associada ao
fato de que o orgulho nativo fora humilhado pelo exército romano e que a ilha toda foi
efetivamente convertida em uma colônia. Sendo assim, nesta época, vários escritores,
incluindo aqueles que escreviam para crianças, discutiam o impacto romano sobre a Bretanha,
atitude esta que acabou conduzindo a reafirmação do orgulho nacional e a uma exploração da
oposição dos antigos bretões contra Roma (HINGLEY & UNWIN, 2005). Uma das obras que
traz esse tipo de argumento é ‘Stories of the Land we live in: or England’s History in easy
language’, de William Locke, publicado em 1878.
Dessa forma, desde meados do século XVIII, Boudica foi modelada como uma
figura de inspiração nacional da literatura e da arte, devido a expansão do Império Britânico,

10
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.

198
mostrando suas origens e a grandeza de seu passado. Contudo, a partir desse momento, sua
retratação não era mais como uma rainha e sim como uma guerreira poderosa.

fig.9. Ilustração da obra de Havell (1831)11.

Esta é a Ilustração de Boudica da obra de R. Havell, de 1831, que demonstra a


recuperação do passado Bretão.

fig.10. Ilustração intitulada ‘Will follow me?’12.

Essa ilustração é de A. S. Frost, tirada da obra Our Island Story, escrita por H. E.
Marshall, de 1905, a qual parece um ato em que Boudica está chamando seu povo para a luta
dizendo Will follow me?, lembrando os atos das feministas dessa época.

11
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.
12
http://www.sheshen-eceni.co.uk/boudica_photo.html, Acessado em: 18/12/2011.

199
fig.11. Peça de teatro de 1909.

Nessa foto, Boudica foi interpretada pela atriz Miss Elizabeth Kirby, na peça A
Pageant of Great Women, em 1909.
Muitos trabalhos, até os dias de hoje, mencionam os atos de Boudica, dentre eles
estão livros infantis, assim como por exemplo, a obra de Valerie Wilding, que é indicado para
meninas de 9 a 12 anos.

fig.12. Boudica and her Barmy Army13.

No site sobre o livro a história é descrita da seguinte forma:

You've probably heard of Boudica...She is dead famous for: - galloping to battle in a


rattling chariot - being big and kinda scary - getting very, very angry with her
Roman rulers But have you heard that Boudica: - learned to use weapons when she

29
(http://www.jacketflap.com/bookdetail.asp?bookid=0439963575#azcomsection, 25/03/2005, Acessado em:
19/12/2011).

200
was a little girl - chopped off the Emperor Claudius's head (well, sort of) - burned
London to the ground? Yes, even though she's dead, Boudica's still full of surprises.
Now you can get the inside story with Boudica's secret diary, get all the news from
the Roman Messenger and the British Bugle and find out just how Boudica and her
barmy army seriously put the wind up the Romans. Dead Funny - Dead Gripping -
Dead Famous.
(http://www.jacketflap.com/bookdetail.asp?bookid=0439963575#azcomsection,
25/03/2005, Acessado em: 19/12/2011)

Outro trabalho inédito é da artista Alexia Sinclair, que além de trabalhar com
desenhos digitalizados de várias mulheres da história européia, também trabalha com
fotografias de modelos para revistas de moda. Na verdade, suas modelos se passam pelas
personagens e seus desenhos são baseados nelas, por isso suas imagens remetem a uma beleza
muito contemporânea, ou seja, as personagens de seus desenhos são esguias, com rostos
perfeitos e cabelos aveludados como as modelos de passarela.

fig.13. Boudica – The Celtic Queen (AD 26-61)14, 2007, de Alexia Sinclair.

Conclusão

Conclui-se que por muitos séculos a figura de Boudica foi sendo reescrita e
repensada por vários artistas e escritores que sempre quiseram contar suas próprias versões de
maneira criativa e escrever seus relatos de modo crítico. Esses contos, que figuram relatos
sobre o passado e, portanto, utilizaram um senso histórico, foram elaborados para terem
audiência, e as obras de Boudica não eram exceções. As informações criadas, apesar de não

14
(http://alexiasinclair.com/portfolio, Acessado em: 19/12/2011).

201
mostrarem a verdade, constituem um elemento fundamental para a compreensão do
pensamento do homem do passado, pois um fruto artístico pode contar muitas coisas sobre
seu autor.
Nos dias atuais, Boudica é retratada tanto por homens quanto por mulheres, seja em
peças de teatro, novelas, óperas, dramas ou websites. Contudo, em geral, pela variação devido
ao gênero do autor, ainda se tem diferenças nas maneiras em que ela é ilustrada. Em várias
dessas produções ela é retratada como uma mulher nobre e honesta que lutou contra o poder
do Império Romano e, em alguns websites, ela é até demonstrada como uma figura mítica.

Agradecimentos
Agradeço em primeira instância ao apoio institucional da FAPESP, ao Prof. Pedro
Paulo Abreu Funari pelo apoio e orientação, a Renata Senna Garraffoni e ao Glaydson Silva
por terem aceito minha apresentação no Simpósio Temático Antiguidade e Modernidade, do
XXVI Simpósio Nacional de História (ANPUH), além da oportunidade de publicação dessa
exposição e por fim, a todos meus colegas que estiveram presente durante esta comunicação e
àqueles que terão paciência de lerem esse artigo.

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203
ESCAVANDO POMPEIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX:
ARQUEOLOGIA, NACIONALISMO E IDENTIDADES EM CONFLITO

Renata Senna Garraffoni1


Pérola de Paula Sanfelice2

Do início

Escolher um tema, recortá-lo, buscar bibliografia, conversar com o/a orientador/a,


rotinas da pesquisa pela qual todos passam em algum momento da vida acadêmica. No
entanto, idas à biblioteca em busca de uma referência qualquer pode nos surpreender, nos
fascinar de maneira inesperada. E diante de uma provocação ao acaso, daquelas fisgadas de
canto de olho que só um livro amarelado pode provocar em intensidade, o que fazer? Seguir
em frente e manter firme o objetivo de pegar a referência marcada ou parar um segundo e
puxar aquele livro esquecido ali no canto que espera calmamente para ser relido? Não
podemos imaginar quantas pessoas que lerão as reflexões a seguir já estiveram diante desse
dilema, mas o certo é que o presente trabalho é fruto de um acaso, de um encontro inesperado
na biblioteca da UFPR. Como esse primeiro encontro não foi planejado, mesmo que não tenha
sido possível pensar sobre ele de imediato, decidimos que não deveríamos perder a
oportunidade de investir no seu potencial.
Foi assim, portanto, que começamos essa parceria para discutir alguns dos discursos
de Maiuri: quando uma das autoras desse capítulo, Pérola, resolveu, ainda na graduação, que
gostaria de estudar Pompeia como tema de pesquisa individual – na ocasião era bolsista do
PET-História e uma das atribuições era desenvolver uma pesquisa de iniciação científica - e
foi conversar com a Renata, professora de História Antiga no Departamento de História, sobre
uma provável orientação, ela pediu que fosse à biblioteca da UFPR ver o que havia de
bibliografia sobre o tema. Enquanto olhava pelas estantes em busca de algo mais novo sobre o
sítio, esbarreou com antigas publicações do arqueólogo e polêmico superintendente das
escavações de Pompeia Amedeo Maiuri, algo que chamou a atenção, já que eram primeiras
edições. Se por um lado, naquele momento, optamos deixar os livros de fora da estratégia de

1
Professora do Departamento de História/UFPR. Tutora do PET-História/UFPR. resenna93@hotmail.com
2
Doutoranda em História/UFPR, bolsista CAPES/Reuni. perolasanfelice@gmail.com
estudos que acabou por desdobrar no mestrado da Pérola, sobre pinturas de Vênus nas paredes
de Pompeia3 e, posteriormente, o doutorado4 em desenvolvimento, por outro, nunca deixamos
de pensar os textos de Maiuri ali encontrados, pois as obras não são tão fáceis de achar no
Brasil e estavam disponíveis na nossa biblioteca.
Foi somente com o desenvolvimento das atividades do grupo de pesquisa sobre usos
do passado 5 que, finalmente, tivemos a possibilidade de fazer uma primeira proposta de
abordagem aos livros, escrevendo em conjunto um texto intitulado ‘Em tempos de culto a
marte por que estudar Vênus? Repensando o papel de Pompeia durante a II Guerra’ 6. Mais
tarde, diante da oportunidade de participar do simpósio temático realizado na Anpuh de 2011
em São Paulo sobre as leituras dos clássicos na modernidade, achamos que seria um bom
momento retomar e aprofundar a leitura daqueles livros de Maiuri que encontramos,
explorando aspectos que não foram contemplados no primeiro texto que produzimos,
construindo uma parceria de pesquisa independente de nossos temas de pesquisa de origem,
mas que tem resultado em reflexões importantes para ambas as autoras.
Ao longo de nossas conversas sobre a questão, percebemos que há inúmeras
possibilidades de abordar os livros e optamos por propor uma reflexão sobre a maneira como
Maiuri descreve algumas pinturas parietais, criando um campo de legitimação dos valores
nacionalistas e de normatização das relações entre homens e mulheres no período em que as
escavações foram executadas sobre sua responsabilidade. A partir dos comentários das
pessoas presentes no simpósio temático, aos quais agradecemos imensamente, reelaboramos
alguns pontos de vista, refinamos argumentos e decidimos, para essa ocasião, aprofundar a
discussão e propor um ensaio sobre alguns temas polêmicos: a relação tensa entre a
arqueologia clássica e fascismo e os reflexos dela na constituição das interpretações sobre o
passado romano e as relações de gênero e etnicidade no contexto em que os trabalhos foram
publicados. O foco nessa discussão é, em nossa opinião, fundamental para entendermos o
próprio estabelecimento dos conceitos na área e para buscarmos leituras alternativas para o
passado romano. Para tanto, gostaríamos de iniciar expondo nosso posicionamento teórico.

3
Sanfelice, Pérola de Paula. Amor e sexualidade em ruínas: as pinturas da deusa Vênus nas paredes de
colonia cornelia veneria pompeianorun. Dissertação de Mestrado. Curitiba. UFPR., 2012. Com apoio e
financiamento CAPES.
4
Sanfelice, Pérola de Paula. Sob as cinzas de vulcão: Sexualidade, amor e religiosidade nas pinturas de
Pompeia. Tese em andamento. Bolsista CAPES/REUNI.
5
http://www.humanas.ufpr.br/portal/usosdopassado/
6
Capítulo de livro de nossa autoria no prelo. Será publicado em Saberes e Poderes no Mediterrâneo Antigo:
Estudos Ibero-Latino-Americanos, pela Universidade de Coimbra.
Da teoria

Os estudos sobre o mundo greco-romano têm passado por um momento de


questionamentos e, aos poucos, incorporando uma consciência crítica sobre seu lugar na
academia e na política na modernidade. Como afirmou Glaydson José da Silva (2007), se o
universo grego ou romano sempre fora visto como um campo de estudos tradicional,
conservador e hierárquico, a partir das últimas duas décadas, muitos estudiosos têm buscado
questionar esses ranços históricos, propondo uma revisão teórico-metodológica profunda.
Nesse processo de repensar o lugar dos clássicos, a Arqueologia passou a
desempenhar um importante papel, pois a escavação e a preservação da cultura material não
são neutras, mas realizadas a partir de dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais e
psicológicas, influenciando nosso entendimento do passado (LAWRENCE & SHEPHERD,
2006). Essas novas abordagens, como bem definiu recentemente Rafael Rufino (2013: 5-7),
baseado em Bernal (2005) e Hingley (2010), constituem em provocações para se pensar a
contemporaneidade dos estudos clássicos e suas finalidades políticas no presente, pois a
manutenção de regimes autoritários não provém somente da repressão do Estado, mas
também dos valores simbólicos construídos a partir da cultura material. É dialogando com
essa perspectiva, portanto, que situamos a nossa reflexão, cuja ideia central é focar em
Pompeia, cidade romana soterrada pela explosão do vulcão Vesúvio em 79 d.C., e discutir
como a cultura material escavada foi selecionada e moldada durante os trabalhos de campo
liderados por Amedeo Maiuri, no momento de ascensão do fascismo italiano e logo após do
final da II Guerra.
Quando começamos a ler os livros de Maiuri e os estudos de época, o que nos
chamou a atenção logo de imediato foi como a Itália se apropriou de elementos da
Antiguidade a serviço de governos autoritários, construindo e reconstruindo o passado e o
presente de maneira particularmente intrincada. Com uma unificação tardia (1859-1870), a
Itália obteve, na sua união política, um dos maiores eventos de sua História. Durante esse
processo de unificação Roma foi eleita sua capital e é sobre esta cidade que o líder fascista
Benito Mussolini conduzirá, posteriormente, a sua marcha, evocando a continuidade e a
herança da Antiga Roma Imperial. Como afirma Silva (2007:38) a Roma fascista constrói a
Roma ideal, fazendo com que Roma antiga e Itália moderna sejam inseparáveis durante o
fascismo.
Os exemplos dessa intrincada sobreposição são vários e não se restringem a
Pompeia, nosso objeto de estudo, basta pensar em um dos mais ambiciosos projetos
arqueológicos realizados durante o fascismo, a escavação e a restauração de dois dos
monumentos públicos de Augusto situados em Roma: Ara Pacis que visava simbolizar o
período de paz e prosperidade vividos durante a Pax Romana, e o Mausoléu de Augusto, que,
segundo rumores, Mussolini tinha como ambição transformar o monumento em seu próprio
túmulo (SQUIRE, 2011). Nesse sentido, a Arqueologia romana floresceu por toda a Itália,
durante o período fascista, como principal mecanismo de campanha e propaganda do regime,
fundamentando sua identidade a partir das conquistas militares dos antigos romanos,
valorizando, sobretudo um ideal de masculinidade, àquele vinculado ao bom guerreiro.
Mussolini foi também apresentado como o 'novo Augusto’, a fim de equiparar o seu
regime com a estabilidade do reinado do imperador Augusto, contudo, com o propósito de
tornar-se o novo Imperador, procurou um elemento de diferenciação das imagens dos antigos
governantes, representando-se despido na maioria das vezes, como fica evidenciado nas
esculturas produzidas durante o seu governo (SQUIRE, 2011)7.

Figura 1- Mussolini, Imperador Romano (Hibbert, 1985)

7
Franco, na Espanha, também se esmerou em equiparar-se a Augusto. Sobre essa questão em específico veja
(RUFINO, 2013) e, também, o texto de Rufino na presente coletânea.
Figura 2- Representação de Mussolini a cavalo (Squire, 2011)

Dessa forma, em um contexto político no qual passado e presente se mesclam para


formar discursos de poder, a academia passa a desempenhar um papel importante. Disciplinas
como História e Arqueologia foram fundamentais nas elaborações identitárias italianas e,
também, de outros regimes autoritários que assolaram a Europa durante o século XX.
Chamadas ora para legitimarem ascendências étnicas, ora para conferir direitos territoriais
pautados na ancestralidade de ocupação dos espaços, as duas disciplinas empregaram
profissionais na busca da oficialização de suas heranças e, também, na adequação do presente
aos, então considerados, ideais romanos.
A partir dessas considerações é possível perceber o surgimento concreto de um
problema que a arqueologia clássica precisa enfrentar: como lidar com essa herança no pós-
guerra? O que fazer com a falta de pessoas dispostas a escavar nos momentos de reconstrução
europeia do pós-guerra ou com os usos da cultura material para denegrir a imagem dos outros
povos, a manipulação de resultados para dar suporte a determinados ideais? Betina Arnold
(1990), embora trabalhe com pré-história na Alemanha, chama atenção para a urgência de
encarar esses problemas e buscar meios de lidar com eles e não silenciá-los. Como destaca a
estudiosa, discutir tais fatos não implica em condenar arqueólogos pelas decisões tomadas no
passado, mas em estar consciente que regimes totalitários ou autoritários deixaram marcas
profundas na disciplina, criando conceitos excludentes, formas de pensar o mundo elitistas,
homogêneas e normativas. Reconhecer tais limites seria, segundo Arnold, o primeiro passo
para combater o conservadorismo e criar abordagens alternativas, pluralizando as formas de
perceber o passado e multiplicando os sujeitos que experimentaram outras realidades.
Neste contexto, o que buscamos como essa reflexão não é julgar, mas sim criar
espaços para pensar compromissos políticos de rever modelos interpretativos, em especial
aqueles nos quais grupos sociais foram sistematicamente silenciados ou oprimidos. Isto posto,
passamos a uma breve descrição das escavações de Pompeia durante a superintendência de
Maiuri para, em seguida, discutir as bases de poder nas quais os discursos gerados
posteriormente foram produzidos.

As escavações durante a superintendência de Maiuri em Pompeia e a construção de uma


identidade nacional

Amedeo Maiuri foi Superintendente das escavações de Pompeia de 1924 a 1961.


Durante todo o período do regime fascista, seu trabalho era supervisionar e gerenciar os sítios
na região da Campânia, sul da península itálica, interpretar a escavação e os relatórios
elaborados por seus subordinados e, por fim, publicar os resultados. Este arqueólogo foi um
escritor profícuo, ao longo de sua vida, escreveu centenas de publicações, não só em revistas
acadêmicas, mas também para a imprensa popular. Assim, uma das razões para a nomeação
de Maiuri provavelmente foi sua trajetória excepcional de publicações arqueológicas, e,
sobretudo, o fato deste estudioso estar promovendo o passado imperial romano, elemento
importante para justificar a política fascista de seu presente (ZARMATI, 2005).
Foi o arqueólogo Amedeo Maiuri quem sugeriu a Mussolini que Herculano, cidade
vizinha a Pompeia, fosse reaberta para escavação e, como resultado, entre 1927-1942, o
governo fascista investiu nas escavações deste sítio. Uma das características mais notáveis
das escavações realizadas por Amedeo Maiuri foi a maneira como organizou a empreitada no
sítio, retirando cerca de vinte metros de material vulcânico compacto da erupção do Vesúvio
com o uso quase que exclusivo de trabalho manual. Do ponto de vista operacional, conseguiu
formar uma equipe completa que lhe permitiu enfrentar cada fase do trabalho, desde a
escavação, restauração, decoração e acabamento do sítio a fim de tornar o local um museu a
céu aberto.
A arqueóloga Louise Zamarti (2005) aponta que, pesquisas recentes, realizadas pelo
Projeto de Conservação de Herculano, revelaram que cerca de cinquenta por cento das
estruturas de parede que vemos na cidade, são reconstruções que datam da década de 1930.
Portanto, esses dados evidenciam que tanto Herculano quanto Pompeia se tornaram
simulacros, reconstruções artificiais do passado criado pelos arqueólogos, a fim de dar ao
visitante uma impressão de como era a vida nas cidades, imediatamente antes da erupção.
Devido ao estado de conservação notável do sítio, o visitante poderia pisar em uma sala e ver
artefatos recontextualizados como móveis, ânforas e objetos de uso cotidiano e sentir que
estavam em uma antiga cidade romana congelada no tempo. Maiuri almejava, desta forma,
apresentar uma visão real da vida em uma cidade romana no período imperial e, assim,
fomentar uma imagem do passado inteiramente de acordo com a ideologia fascista e seu
discurso de romanità.
Além dos projetos de escavações arqueológicas e reconstruções das antigas cidades
da Campânia, a Itália fascista se empenhou em limpar a cidade de Roma de alguns aspectos
de seu passado indesejado. Dessa maneira, foram destruídos alguns monumentos medievais e
renascentistas, visto que foram tomados como “símbolos de uma decadência da qual o regime
não se via como herdeiro”. (SILVA, 2007: 41). Como podemos averiguar nos discursos do
próprio Duce:

É necessário liberar das deformações medíocres toda a Roma antiga, mas ao lado da
antiga e medieval é necessário criar a monumental Roma do século XX. Roma não
pode, não deve ser simplesmente uma cidade moderna, no sentido contemporâneo e
banal da palavra, ela deve ser uma cidade digna de glória e esta glória renovada sem
cessar, para ser transmitida, como herança da era fascista, às gerações posteriores.
(Discurso proferido em 01 de janeiro de 1926. apud SILVA, 2007:42).

Nessa passagem fica bem claro como relações intrincadas com o passado romano
foram se estabelecendo, símbolos foram resignificados com o intuito de purificar a cidade de
um passado não glorioso, não útil, ação que também ocorreu nos contextos da antiga cidade
vesuviana de Pompeia, já que em alguns momentos de sua escavação artefatos foram
destruídos, sobretudo aqueles que possuíam conotações sexuais indesejáveis. Essa clara
intervenção política definiu estéticas, valores e memórias, modificou cidades e selecionou os
modos de vida a serem preservados ou exaltados e os que deveriam cair no esquecimento.
No caso específico de Pompeia, onde uma grande quantidade de material de cunho
sexual foi encontrado, aquilo que não foi descartado no ato da escavação acabou sendo
descontextualizado e enviado diretamente à coleção secreta Museu Nazionale di Napoli.
Durante o regime fascista a visita à coleção secreta do museu foi controlada: a sala só poderia
ser acessada por artistas com documentos válidos, que atestasse sua profissão, mediante a
permissão oficial (CAVICCHIOLI, 2004). Essa postura de controlar o que deveria ser exposto
ou de desvalorizar os extratos mais baixos da cidade onde estavam os povos nativos
supostamente dominados pelos romanos, expressa a construção do ideal fascista de
superioridade, de poder, de domínio e exclusão. Além disso, contribui para a definição dos
campos e objetos de estudo da arqueologia, isto é, o universo masculino de dominação e
imposição de poder8.
A atitude diante dos objetos de cunho sexual nos interessou em particular, pois
evidencia um aspecto particular desse tipo de construção de identidade nacional: quando se
recorreu ao passado imperial de Roma, em busca de uma identidade gloriosa para o presente
fascista, excluiu-se uma série de possibilidades de interpretações e temas de estudo que, desde
essa perspectiva, demonstraria fraquezas, entre eles a sexualidade daquele passado, tornando-
o assexuado. Desse modo, o que gostaríamos de destacar é o fato de que, ao se selecionar um
tipo de cultura material que deve ser preservada ou descartada, optava-se por um determinado
tipo de passado a ser construído.
Nesse sentido, pensar as formas de lidar com artefatos de conotações sexuais nas
escavações de Pompeia nos levou a percorrer caminhos desafiadores, pois o tema da
sexualidade, além ser considerado um tabu social ao longo do século XX, foi controlado por
diferentes formas de políticas e, também, entendido como algo secundário no campo das
Ciências Humanas. Mesmo diante das dificuldades, resolvemos nos arriscar por esse caminho
por acreditamos que esse recorte é fundamental para entender as formas de controle e as
relações de poderes que se estabeleceram sobre os corpos na modernidade e sobre os
discursos acerca dos romanos. Na busca de problematizar melhor essa questão, retomamos
algumas questões teóricas que foram fundamentais para que pudéssemos pensar sobre essa
relação tensa entre cultura material, fascismo, identidade e sexualidade.
Partindo, portanto, das perspectivas que se delineiam desde a segunda metade do
século XX, recorremos a estudiosos que, segundo Feitosa e Rago (2008: 108), ajudaram a
recuperar “[...] de um enorme ostracismo acadêmico, obras literárias, inscrições e imagens
com conotações sexuais”. Tais estudiosos/as estavam ligados a debates que tomaram maior
corpo a partir de pesquisas relacionadas à História das Mulheres e passaram a ocupar
diferentes espaços a partir década de 1960, articulados com desenvolvimento da segunda onda
do feminismo nos Estados Unidos e em parte da Europa. Nessas culturas, as rupturas
ocorreram nas experiências sociais, modificando categorias que até então eram interpretadas
como naturais. Esse é o ambiente que possibilitou o surgimento de novos questionamentos,
como é o caso da categoria de análise de gênero decorrente do movimento feminista.

8
No caso da coleção secreta do Museu Nazionale di Napoli fica evidente a definição de valores morais.
Cavicchioli (2004:23) afirma que no processo de criação da identidade italiana a doutrina fascista não se
considerava herdeira de uma sexualidade tão explícita.
Segundo Joan Scott, a maior contribuição da “História das Mulheres” e do gênero foi
destronar o sujeito universal da historiografia dominante, herdeira do iluminismo, com a
participação diferenciada dos dois sexos (1995: 08-09). Assim, a partir da década de 1970,
"gênero" tem sido uma categoria de análise utilizada para questionar, entre outras coisas, a
diferença sexual, a situação das mulheres e o domínio masculino. A partir do feminismo, e em
consequência do “gênero”, novas abordagens foram possibilitadas acerca do “eu”, do
conhecimento e do poder, o que intensificou a crítica às narrativas estáveis e explicativas da
História.
Para entender o gênero como uma relação social, as teóricas feministas começaram a
desconstruir os significados que se dá ao que é considerado biológico, ao sexo, gênero e
natureza. Dessa forma, o gênero enfatiza o caráter fundamentalmente social e cultural das
distinções baseadas no sexo, afastando assim reducionismos ligados à naturalização. Contra
as visões normativas relacionadas ao sexo, Louro (2000) afirma que, por meio de processos
culturais, definimos o que é, ou não é, natural; produzimos e transformamos a natureza e a
biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Desse modo, os corpos ganham sentido
socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita sempre no
contexto de uma determinada cultura e, portanto, com suas marcas. As possibilidades da
sexualidade, ou seja, das formas de expressar os desejos e prazeres, também são sempre
socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto,
compostas e definidas por relações sociais e elas são moldadas pelas redes de poder de uma
sociedade.
Mesmo que essas preocupações sejam relativamente recentes, nos estudos clássicos,
tem se mostrado bastante profícuas. Voss (2000) defende que os dados arqueológicos podem
ser ferramentas importantes para entender a expressão da sexualidade humana em diferentes
épocas, dinamizando nossa visão acerca do passado. Nesse contexto, pensar como as imagens
de conotação sexual ou erótica, e os papéis de gênero aparecem nos discursos de Maiuri nos
parece um caminho desafiador, pois implica em pensar em uma dinâmica intrincada, ou seja,
nos impulsiona a refletir sobre como o passado romano foi escrito e reapropriado, em alguns
trechos de suas obras, indicando uma perspectiva permeada por relações de força que
legitimam um determinado tipo de discurso sobre modos de viver e, ao mesmo tempo, ao
desconstruir os conceitos empregados, criamos espaços plurais para que irrompam linhas de
fuga que permitam o surgimento dos conflitos e contradições no passado e presente. Diante
dessa perspectiva, entender o contexto da produção do discurso seria o primeiro passo para
desconstruir o consenso e, consequentemente, as formas homogêneas e naturalizadas de se
perceber o passado, para, em seguida, buscar meios alternativos a noção de História-herança,
ou seja, propor leituras que prezem pela ruptura, pelo dissenso, pela diversidade.

Os discursos identitários propostos por Maiuri

Como mencionado anteriormente, a Arqueologia floresceu em toda a Itália durante o


período fascista sendo, portanto, muito influenciada por suas perspectivas políticas e
ideológicas. As reconstruções e apropriações desenvolvidas por Maiuri, feitas a partir dos
sítios arqueológicos e dos artefatos encontrados nas cidades de Herculano e Pompeia, foram
uma declaração de continuidade da superioridade cultural italiana ao longo dos tempos, desde
o período imperial romano até o presente fascista. Alguns dos resultados do trabalho de
campo foram publicados posteriormente, proporcionando um discurso bastante particular que
gostaríamos de focar nesta ocasião.
Nesse sentido, destacamos que as narrativas históricas desenvolvidas no contexto
fascista ou no período imediatamente posterior, foram permeadas por um discurso patriarcal e
excluíram da memória social a diversidade das relações humanas, entre estas, destacamos as
interpretações a respeito das identidades étnicas e de gênero, as quais se apresentam de
maneira bem definidas nas leituras de Maiuri. Para desenvolvermos esta reflexão, optamos
por um recorte e, selecionamos algumas análises de pinturas parietais desenvolvidas nas
obras: Roman Painting e Pompeian Wall Paintings.
A obra Roman Painting é uma publicação do início da década de 1950, a qual traz
imagens e discussões das pinturas romanas como um todo. Maiuri divide o livro em seis
capítulos: recua suas discussões à época pré–romana no território do sul da península itálica;
em seguida, discute as pinturas oficiais em Roma; as pinturas parietais do território da
Campânia; pinturas que representam temas específicos (épicos, mitológicos, divinos, retratos,
etc.); paisagens naturais de Pompeia e, por fim, cenas do cotidiano. Entre todos os tópicos,
Maiuri concentra seus comentários nas pinturas da Campânia, discute a respeito de suas
composições e enfatiza as edificações mais importantes desta região.
Já a obra Pompeian Wall Paintings, é um pequeno livro semelhante a um catálogo de
divulgação das pinturas consideradas mais importantes de Pompeia. Esta é uma publicação do
início da década de 1960, na qual consta apenas uma introdução a repeito das escavações, das
construções públicas e, por fim, sobre as casas de Pompeia. Em seguida, o autor foca a sua
abordagem nas imagens propriamente ditas, ao todo são dezenove imagens, sendo dezessete
destas relacionadas aos deuses romanos e duas apresentando pessoas nativas da Campânia.
É a partir de alguns exercetos destas análises, de ambas as publicações, que
desenvolveremos nossa abordagem. O que gostaríamos de propor é uma reflexão sobre como
tais discursos estão permeados por uma estética de valorização da guerra, do mundo
masculino, da definição de papéis de gênero no tempo presente a partir de experiências
políticas autoritárias. Para tanto, dentre as várias imagens e seus significados atribuídos por
Maiuri, focamos em duas temáticas específicas: uma leitura sobre as imagens dos deuses
Marte e Vênus e de duas imagens que apresentam pessoas comuns da Campânia.
A escolha destas divindades específicas para a presente reflexão se deu, justamente,
pelos seus atributos mitológicos. Vênus está intimamente relacionada com o universo
feminino e com as práticas sexuais, enquanto Marte, amante de Vênus, é o deus da guerra e
protetor de Roma. É importante ressaltar que Vênus era a divindade protetora da cidade de
Pompeia. No momento em que foi anexada por Sila, ao Império Romano, no ano de 80 a.C.,
passou a chamar-se Colonia Cornelia Veneria Pompeianorum, tal fato explica a enorme
quantidade de pinturas, esculturas e grafites espalhados pela região que remetem a deusa. E
Marte, protetor de Roma era um ícone da cultura romana, pois o povo romano considerava-se
descendente deste deus, porque Rômulo era filho de Reia Silva com Marte. E isso não passou
despercebido por Maiuri, que recontextualizou as pinturas que representavam tais divindades
a partir de uma leitura bastante marcada pelos ideais de superioridade masculina e ocidental.
A primeira interpretação que chamamos atenção é para a figura Namoro de Marte e Vênus, na
casa de Marcus Lucretius Fronto (V, 3, 12) 9 em Pompeia. Nela Vênus está sentada, vestida e
sendo tocada por Marte, Maiuri a descreve desta forma em Roman Painting:

Figura 3- Namoro de Marte e Vênus (MAIURI, 1953:78)

9
Todas as casas de Pompeia são identificadas por um sistema de numeração, cada casa é conhecida pela região,
insula e o número da porta, por exemplo, (I, 10,4) significa região I, insula 10, porta 4, (WALACE-HADRILL,
1994:1).
[1] Envolta sob um manto, Vênus está sentada, com o ar meditativo de uma jovem
noiva, em uma sala com grandes janelas, com a vista para um peristilo. É um quarto,
como é provado pelo sofá revestido de um tecido rico e acolchoado. Estando de pé
ao lado da deusa, Marte (Ares) usa um manto azul e um capacete de crista. Ele está
tentando deixar nu os seios da deusa, mas ela recatadamente o detém, na verdade,
ela nos lembra muito mais uma dama romana bem-educada do que uma a Afrodite
amorosa. (Tradução das autoras – edição inglesa de 1953.)10

Uma imagem possui múltiplos sentidos e as suas leituras são permeadas pelo olhar
do presente de quem as lê, nesse sentindo, é interessante perceber como Maiuri se posiciona
diante desta figura: afirma que a mão da deusa parece impedir Marte de tocar em seus seios e
sugere que ela se assemelha a uma educada moça romana. Embora acredite que a cena fizesse
menção às núpcias de Vênus e Marte, quando a chama de “jovem noiva”, delineia papéis de
gênero, pois deixa claro que a ação é masculina ‘...ele está tentando deixar nu os seios...’
enquanto que a deusa recatada o afasta e se retrai. Mesmo que se trate de uma cena de
núpcias, os gestos da deusa Vênus não são interpretados como um consentimento ou um
incentivo ao cortejo de seu amante. A deusa é percebida como a representação de uma
mulher exemplar, que controla os ímpetos do homem conquistador e, propositalmente, o
autor desvincula a imagem da deusa do erótico. Essa percepção fica mais evidente na análise
de uma cena semelhante, a pintura denominada Marte e Vênus, localizada na Casa de Marte
e Vênus (VII, 9, 33) em Pompeia. A pintura segue o mesmo padrão iconográfico da figura
comentada anteriormente, que a propósito, é um tema representado com frequência nas
paredes da cidade vesuviana. Assim escreve em Pompeian Wall Painting:

10
Wrapped in a mantle, Venus is seated, with the gravely meditative air of a young bride, in a room with big
windows overlooking a peristyle. It’s a bedroom, as is proved by the couch draped in a rich fabric and thickly
cushioned. Standing beside the goddess, Mars (Ares) wear a blue chlamys and a crested helmet. He is trying to
bare the goddess' breast, but demurely she restrains him; in fact she reminds us far more of a well-bred Roman
lady than of laughter-loving Aphrodite. (MAIURI, 1953: 77)
Figura 4- Marte e Vênus (Maiuri, 1960: 25)

[2] Sentada sobre um bloco retangular de pedra, a deusa do amor se inclina contra o
ombro de seu amante. Por sua vez, por meio de seu sinuoso torso ela
complacentemente chama atenção para a perfeição da sua beleza nua (...). Ela está
adornada ricamente com joias e simboliza seu domínio sobre Marte, por manter em
suas mãos sua longa lança. O deus da guerra esta vestido com um manto de cor
púrpura, a mão direita segura o tecido de Vênus, enquanto a esquerda acaricia o
braço dela. Dois cupidos alegres brincam com peças da armadura que ele descartou.
A adição desses dois personagens é uma característica da maneira como os pintores
da Campânia tratam este tema. Eles eram, acima de tudo interessados em humanizar
as figuras, suavizando a tipificação ideal dos originais gregos. Ainda mais
importante para esse efeito, do que a adição de detalhes é a individualização das
características das principais figuras. A beleza da nossa Vênus é, evidentemente, de
um tipo rural, enquanto os gestos embaraçados e a convencional inexpressividade de
Marte, privado de sua armadura e completamente subjugado pelo amor, são
definitivamente mais uma reminiscência de um jovem e rústico cavalheiro da
Campânia do que de um grande Senhor da guerra. (Tradução das autoras) 11

Nesta análise, Maiuri reconheceu o namoro de Vênus e Marte, até mesmo o possível
domínio da deusa do amor sobre o deus da guerra. Contudo, ao aceitar a influência que
Vênus exerce sobre Marte, ao ponto de desarmar seu amante, Maiuri afirma que esta possui
uma beleza tipicamente rural, ou seja, suas qualidades já não são tão prestigiadas e a compara

11
Seated upon a low rectangular block of stone, the goddess of love leans back against her lover's shoulder. By a
slight sinuous turn of her torso she complacently draws attentions to the perfection of her naked beauty (…) She
is decked with costly jewels and it token of her dominion over Mars she holds his long lance in her hand. The
god of war is clothed in a purple mantle, his right hand clasps the folds of Venus' drapery while his left caresses
her arm. Two cheerful cupids play with pieces of the armour he has discarded. The addition of these lively
fellows is characteristic of the way the painters of the Campania treat this theme. They were above all interested
in humanizing and mellowing the ideal typification of the Greek originals. Even more important for this purpose
than the addition of details is the individualization of the features of the main figures. The beauty of our Venus is
evidently of a rural type, while the stiff, embarrassed gestures and conventional inexpressiveness of Mars,
deprived of his armour and completely subjugated by love, are definitely more reminiscent of some rustic young
gentleman of the Campania than of the great Lord of war (MAIURI, 1960: 24).
às mulheres do campo e não às damas recatadas como na interpretação anterior. E Marte, por
ter abandonado suas armas e se envolver amorosamente com a sua companheira, já não se
parece nada com um deus da guerra e sim com um mero jovem “rústico” da Campânia. Desse
modo, é importante ressaltar, que Maiuri evita atrelar elementos de cunho sexuais às
expressões religiosas, principalmente as que se reportam ao deus Marte, símbolo da cultura
romana, sobretudo ao que se refere ao Império e seus domínios.
Ao comparamos estas duas análises, consideramos importante destacar a maneira
como Maiuri classifica as figuras de Vênus representadas nas cenas, no trecho [1], pelo fato
da deusa parecer repelir o amante é considerada ‘uma romana bem-educada’, já no excerto
[2] por ter subjugado o deus Marte, ela é ‘evidentemente, de um tipo rural’. Assim,
destacamos o modo o qual Maiuri desenvolve suas interpretações, vinculando às mulheres e
homens a papéis de gênero bem delineados: mulheres da elite recatadas, mulheres do campo
rudes e sem polidez, por isso mais propensas ao sexo. Já os homens que amam não são bons
guerreiros, como vimos no segundo trecho, o qual Marte, enamorado de sua amante, se
assemelhava mais a ‘um rústico cavalheiro da Campânia do que de um grande Senhor da
guerra’.
Aqui uma série de aspectos podem ser pensados acerca das imagens sobre a cultura
romana que estão sendo construídas nesse discurso específico: há uma valorização do homem
guerreiro, aquele que age, e da submissão da mulher recatada. Esses seriam os valores
essenciais e, portanto, o que se esperava dos romanos de elite, em uma contraposição direta
aos hábitos dos povos nativos da Campânia, pois são caracterizados como rudes, fracos e, por
isso, inferiores e mais erotizados. É interessante notar que ambas as pinturas se encontram em
casas pompeianas, no mesmo ambiente urbano, mas Maiuri cuidadosamente separa os
universos, deixando claro sua visão do mundo romano e como esse serviria de exemplo para
os papéis de gênero e identidade de seus leitores da Itália moderna.
É importante atentar-se que, atualmente, os pesquisadores ressaltam modelos
interpretativos que valorizam a contextualização da imagem no seu local de achado
(CLARKE, 2003; FUNARI & ZARANKIN, 2001; GRAHAME, 1995). Neste caso em
específico, podemos estabelecer que ambas pinturas estão dispostas no tablinum12, o qual
tinha como função acomodar reuniões, sobretudo, aquelas relacionadas aos negócios, desse
modo, é questionável a afirmação de que a pintura mais erotizada (figura 02) provavelmente
pertencesse a alguém que possuía um gosto mais rude, de uma esfera inferior, na medida em

12
De acordo com a catalogação e mapas apresentados na obra: CARRATELLI, G. P. (1990-2003). Pompeii,
pitture e mosaici. Roma: Istituto della enciclopedia italiana.
que o próprio ambiente da imagem, uma sala de reuniões, é um local de prestígio social em
uma casa romana, era no tablinum13 que os homens de importância habitualmente recebiam
visitas para formar acordos e alianças.
Outro aspecto a ser ressaltado é que estas imagens faziam parte de um padrão
representativo da época, mitologia de Marte e Vênus era recorrente nas casas pompeianas14.
Inclusive, algumas possuem elementos muito semelhantes às imagens anteriormente
apresentadas, como é o caso da imagem a seguir (figura 5), em que Vênus e Marte estão
representados nas mesmas posições e há a presença das mesmas figuras mitológicas. Esta
imagem também está localizada em um tablinum, enfatizando a importância da representação
dos deuses neste ambiente.

Figura 5- Vênus e Marte (Carratelli, 1990-2003: 765)

Com um padrão representativo de Marte e Vênus, análogos às imagens acima


apresentadas, e que consequentemente se contrapõem as argumentações de Maiuri, temos a
figura 4, presente num tablinum, pode-se notar que Marte toca de forma explícita os seios de
Vênus, não havendo traço algum de discrição nos gestos da deusa.

13
O tablinum era um cômodo adjacente ao atrium (considerado o coração da casa), normalmente era num plano
elevado com diferença de alguns centímetros. O tablinum poderia ser fechado a partir do átrio, por meio de
cortinas ou portas, funcionava também como um local de cultos divinos, para celebrar rituais religiosos.
14
Para mais informações ver: (SANFELICE: 2012).
Figura 6- Marte tocando os seios de Vênus (CARRATELLI, 1990-2003: 609)

Nesse sentido, pode-se averiguar que nas interpretações de Maiuri há uma clara
definição de comportamentos e papéis sociais em oposições binárias e claramente constrói
escalas de valores sobrepondo a elite romana, considerada superior em seus hábitos
refinados, aos povos nativos da Campânia, definidos como rudes e propensos ao sexo. Tal
estética pode ser evidenciada quando este apresenta duas imagens muito famosas de pessoas
comuns da Campânia, uma conhecida como o “Casal Terêncio” e a outra popularmente
reconhecida por ser uma representação da antiga poetisa “Sapho”. A imagem do casal foi
assim descrita por Maiuri:

Figura 7- O retrato de um casal (Maiuri:1960; 47)


Os retratos são resultantes de uma longa tradição local. Anteriormente havia
comentado de que nestas peculiares interpretações de temas mitológicos destinados
ao gosto popular, os pintores da Campânia representaram deuses e heróis com
recursos bastante específicos, escolheram seus modelos a partir da população rústica
que vivia na região.[...] A peça mais conhecida entre os retratos pompeianos é o
painel que mostra um casal, que num primeiro momento, foi erroneamente
identificado como Publius Paquius Proculus e sua esposa. [...] Atualmente, é
geralmente aceito que a pintura no salão da casa em que foi encontrada, representa
seu proprietário e sua esposa, o bom padeiro e não patrício Proculus. Mesmo que o
homem tenha sido representado com o queixo apoiado em um rolo de papiro, a testa
baixa e cabelo arrepiado, as altas maçãs do rosto e vulgares, as características
vigorosas, claramente imprimem nele um homem do povo. Sua jovem esposa é de
um modelo mais refinado. Seu delicado rosto oval é iluminado pelos escuros e
amendoados olhos, sua pose espontânea transmite uma expressão de vivacidade e
também uma tensão pelo fato de querer posar artificialmente como uma pessoa de
educação, com uma tábua e um estilete pressionando seus lábios .[...] 15 (MAIURI,
1960: 46- tradução das autoras).

No trecho destacado fica mais evidente a percepção que Maiuri tinha do povo da
Campânia, ao descrever o que considerava ser o retrato fiel de um romano, o autor
primeiramente justifica a aparência física dos indivíduos ao afirmar que era uma prática
recorrente entre os pintores romanos selecionar como modelos para suas pinturas “a
população rústica que vivia na região”. Ao qualificar esse povo como rústico, Maiuri
descreve explicitamente o que seria este adjetivo, um homem de testa baixa, com as maças do
rosto sobressalientes, enfim, características vigorosas que imprimem nessa figura “um
homem do povo”. Por possuir tal aparência, Maiuri minimiza o fato deste homem estar
segurando um pergaminho, o que indicaria um teor de educação a este padeiro. Outra questão
que fica clara na imagem é a percepção de que uma mulher não poderia pertencer à cultura
letrada, quando o arqueólogo se refere à esposa do padeiro, afirma que está apenas simulando
um refinamento, e isso ficaria evidenciado na expressão tensa da mulher retratada. Essa
mesma interpretação é reproduzida na análise da imagem da suposta poetisa Safo:

15
Pompeian portrait painting is the natural outcome of a long line of a local development. We have already seen
that in those rather peculiar interpretations of mythological subjects intended to appeal to popular taste the
Campanian painters represented gods and heroes with quite especific human features for which they chose their
models from the rustic population among which they lived. […] The most powerful piece of Pompeian
portraiture known to us is the panel showing a couple, first erroneously identified as Publius Paquius Proculus
and his wife. […].To-day it is generally accepted that the painting in the tablinum or best parlour of the house
represents their proprietor and his wife, the good baker and not patrician Proculus. Even if the man is shown
with his chin resting on a roll papyrus, his low forehead and bristly hair, high cheek-bones and vulgar, vigorous
features clearly stamp him as a man of the people. His young wife is of finer mould. Her delicate oval face is lit
up by the dark almond-shaped eyes to which her spontaneous coquetry has imparted an expression of mobile
vivacity despire the strain of posing artificially as a person of education with tablets and stylum pressed to her
lips. (MAIURI, 1960: 46)
Figura 8- O retrato de uma dama (Maiuri:1960; 45)

[Entre os mais conhecidos retratos em forma de medalhões é o de uma jovem


mulher, que foi tomada por Safo. Esta identificação sugestiva, mas bastante
arbitrária delegou a esta pintura a fama pelo seu valor artístico, porém não podemos
negar que ele é uma das mais notáveis representações de uma mulher que chegou até
nós desde a antiguidade, tanto no que diz respeito ao retrato quanto a realização
artística. A moça, que está cuidadosamente vestida e maquiada, olha para nós com o
rosto firme e olhar inteligente. O volumoso cabelo castanho é preso por um filete de
ouro a partir do qual os cachos escapam, a fim de cobrir a testa e as orelhas e dar
uma aparência melancólica, e mostrar um rosto romântico com seus grandes olhos e
boca graciosamente delineadas. [...] De acordo com a moda da época, a moça é
retratada numa pose convencional escolhida por pessoas cultas: segura uma tábua de
cera em uma mão e um estilete em outra, o qual pressiona contra os lábios, que visa
aparentar um momento de reflexão ou inspiração.[...]..Sem dúvida alguma, há tanto
a ideia quanto a sensação de uma representação da inocência expressa no rosto da
moça, mas sua pose parece refletir mais a ideia de como formular uma carta de
amor do que uma moça que esteja parada para ouvir a inspiração apaixonada das
musas de Safo.] 16 (MAIURI, 1960: 44- Tradução das autoras).

Primeiramente Maiuri afirma que esta imagem é a mais notável representação de


uma moça romana, elogia o olhar da figura e também o seu penteado “preso por um filete de
outro”. Contudo o arqueólogo afirma que a pose apresentada pertence a pessoas educadas,
quase sugerindo, como o fez na interpretação anterior, uma simulação de inteligência e
erudição. Tal sugestão pode ser evidenciada quando o autor classifica a aparência da poetisa

16
Among the best known of medallions is the portrait of a young woman, which has been taken for that Sappho.
This suggestive but quite arbitrary identification has won for this painting a renown of proportion to its artistic
value though we cannot deny that it is one of the more remarkable female likenesses that have come down to us
from antiquity, both as regards portraiture and artistic realization. The girl, who is carefully dressed and made
up, looks at us full face with firm and intelligent gaze. The wealth of chestnut hair is held down by a golden
fillet from which the curls are allowed to escape so as partly to cover forehead and ears and frame pensive,
romantic face with its large eyes and beautifully cut mouth. […] In accordance with the fashion of her day, the
girl is shown in the conventional pose chosen for people education: a wax tablet in one hand and in other the
stylum pressed to the lips in what appears to be more of reflection or inspiration. […]There is undoubtedly both
thought and feeling of a fresh and innocent kind expressed in the face of this girl but in her conventional pose
she seems rather to reflect upon how to formulate a passage in love-letter than to listen to the impassioned
inspiration of the Sapphic Muse (MAIURI, 1960: 44).
como romântica e, principalmente, ao afirmar que esta oferece a impressão de que vai
escrever uma carta de amor e não uma obra literária. Tais comentários reforçam a percepção
que Maiuri tinha das mulheres, desvinculando-as de qualquer possibilidade de erudição e
colocando-as no campo das sensações.
Nesse sentido, a partir dessas imagens, o que encontramos são definições bastante
objetivas que indicam a visão de Maiuri do mundo romano durante o início do Principado,
focado nos valores masculinos de força e de imposição de domínio sobre povos conquistados
e menos cultos, e de figuras femininas recatadas, submissas e não educadas. Essa postura
expressa nos trechos das obras comentadas indica uma visão do mundo romano dividida em
pares de oposição como elite/povo, nobre/decadente, recatado/obsceno, deuses/homens,
homens/mulheres e ajudam a moldar exemplos claros da moral a ser seguida por aqueles que
teriam acesso às obras de divulgação dessas pinturas.
Esse aspecto pedagógico nos chamou a atenção: ao se colocar em um lugar de
neutralidade, dizendo em detalhes cada aspecto das imagens destacadas, percebemos um tom
que mescla acuidade científica – inserindo algumas imagens em determinadas tradições de
pintura e questionando interpretações – com temas de senso comum que focam na cor da
pele, formato do rosto e valores morais. Assim, Vênus pode ser recatada senhora romana ou
rude camponesa, Marte transita de homem conquistador a rústico soldado, os homens são
vulgares e do povo, as mulheres até belas, mas menos inteligentes. O que mais intriga é como
esse discurso didático constrói valores claros do que consiste o ideal de gênero para as elites
– homem forte, mulher recatada –, para o povo – homens rudes e até uma suposta delicadeza
feminina que contrasta com a óbvia falta de intimidade com os instrumentos de escrita –
deixando claro quem são os mais aptos à liderança e aqueles que, mesmo tentando, são
incapazes de atingir o ideal de cultura.
Todos os adjetivos empregados são cuidadosamente escolhidos, reforçando a
separação dos mundos, chegando ao ponto chave, a relação entre aparência física e moral: as
mulheres, seja como Vênus ou como humanas, são belas, recatadas e românticas ou ingênuas,
mas nem sempre aptas a escrever algo relevante enquanto os homens são mais variados. Na
figura [3] Marte vestido como guerreiro é o protótipo do soldado conquistador que age,
aspecto suficiente para o contexto, sem grandes ressalvas. Já na figura [4], como comentamos,
torna-se rude por estar despido, um jovem rústico, o mesmo tom da descrição da figura [7].
No caso do padeiro chega a ser explícito descrevendo o ‘cabelo arrepiado’ e a ‘face vulgar’.
Esses exemplos não deixam dúvidas sobre os valores inerentes: beleza feminina, para ser
ideal e não forçada deve vir atrelada ao recato e as feições de masculinidade valorizada não
deixam espaço para a nudez prazerosa ou traços físicos dos camponeses. Atrelar o físico com
traços morais define, portanto, lugares de gênero e raças no passado e presente. Diante desse
quadro, acreditamos ser importante ressaltar que essas publicações tornam a arte romana, com
seus deuses e personagens, mais próxima dos italianos do pós-guerra, mas ao mesmo tempo,
criam um consenso, uma simbologia que molda visões de mundo e legitima uma sensação de
perenidade. Pelos relatos apontados, passado romano é um espelho da Itália moderna, divido
em pessoas mais ou menos evoluídas, mais ou menos instruídas, mais ou menos aptas a
liderança. Os ecos dessas supostas semelhanças naturalizam os lugares de homens e mulheres
no presente e a legitimidade dos lugares de poder são enfatizadas pelas pinturas de Pompeia,
transformadas em testemunhos didáticos da ordem vigente.
Essa reflexão nos leva a pensar, também, quais imagens sobre cultura romana que
estão sendo construídas nesse discurso específico: há uma valorização do homem guerreiro,
aquele que age, e da submissão da mulher recatada. Esses seriam os valores essenciais e,
portanto, o que se esperava dos romanos de elite, em uma contraposição direta aos hábitos
dos povos nativos da Campânia, pois são caracterizados como rudes e fracos. Maiuri define
comportamentos e papéis sociais em oposições binárias, como comentamos, e claramente
constrói escalas de valores sobrepondo a elite romana, considerada superior em seus hábitos
refinados, aos povos nativos da Campânia, e por comparação do sul da Itália, definidos como
rudes e propensos ao sexo.
Como já apontou Cooley (2003), Amadeo Maiuri é o superintendente mais polêmico
do século XX. Embora boa parte de Pompeia tenha sido escavada neste período, Cooley
aponta que cada vez mais estudiosos têm criticado as restaurações inadequadas por ele
propostas ou mesmo suas publicações, que mais indicavam uma percepção fascista do que era
o Império do que uma estética romana propriamente dita.Voltar às publicações de Maiuri
significa, nesse contexto proposto, identificar os silêncios ou as descaracterizações e pensar os
impactos que causaram nas interpretações posteriores. Essa posição ajuda a rever e
desconstruir pressupostos normativos e, no caso das pinturas mencionadas, a repensar seus
locais arqueológicos, reinserindo-as em seu contexto religioso, tão habilmente esquecido na
voz de Maiuri, ou mesmo no de valorização da alfabetização entre as pessoas comuns. Ou
seja, trazer à tona os preconceitos, desatrelar a cultura romana de valores impregnados por
pressupostos raciais comuns durante o fascismo, rever pressupostos de naturalização do sexo
são atitudes que ajudam a repensar as relações afetivas e as crenças dos antigos e modernos a
partir de uma perspectiva mais plural.
Considerações finais

O encontro com os textos de Maiuri, que foi ao acaso, como comentamos, não deixa
de ser incômodo e, por isso, desafiador. Se é fato que os estudos clássicos foram utilizados
para legitimar posturas autoritárias e excludentes, é urgente o esforço para rever esse quadro e
buscar por formas alternativas de entender o passado romano. Acreditamos que é o
reconhecimento dessas ambiguidades que se torna possível entender o mundo romano não
como uma sociedade homogenia, mas formada a partir de uma pluralidade de sujeitos. Esta
perspectiva possibilita o questionamento de parâmetros culturais absolutos que foram
estabelecidos ao longo do século XX e aplicados ao mundo romano. Por fim, defendemos que
voltar nossos olhos para uma releitura do passado é uma atitude política na busca por
interpretações mais libertárias e também um convite para contemplarmos uma vida não-
fascista, como propôs Foucault (1977), não devemos combater apenas esse fascismo histórico
de Hitler e Mussolini, mas o fascismo que está em todos nós, que assombra nossos espíritos e
nossas condutas cotidianas. Nesse sentido, acreditamos que a nossa prática política deve
servir como um intensificador do pensamento e multiplicador de experiências de vida
cotidiana, enfatizando sempre a sua fluidez e as suas contradições.

Agradecimentos
Agradecemos todos os participantes do Simpósio Temático Usos do passado realizado
na Anpuh (USP-SP) em julho de 2011 pelos comentários e discussão. Além disso, cabe
mencionar o apoio do programa de pós-graduação em História da UFPR e a bolsa REUNI de
doutorado de Pérola Sanfelice. A responsabilidade das ideias recaem apenas sobre as autoras.

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c, acessado em julho de 2010.
ANTIGUIDADE NA MODERNIDADE:
OS USOS DO PASSADO COMO POSSÍVEL ABORDAGEM EXPLICATIVA

Julio Gralha1

As primeiras reflexões...

Nas últimas duas décadas aproximadamente a relação entre a História Antiga e a


Modernidade/Contemporaneidade se estreitaram de modo que objetos da Antiguidade
passaram a compor e a fundamentar uma parte dos estudos da Modernidade e do Mundo
Contemporâneo por meio de análises comparativas, e em boa parte, por meio dos usos do
passado, ou seja, uso das práticas sociais, culturais, religiosas e políticas do Mundo Antigo
como forma de legitimidade de ações na Modernidade e na Contemporaneidade.
No campo da História (e da Arqueologia também), em termos de Brasil, é possível
identificar as contribuições de Pedro Paulo Funari (2010, 2012), Raquel Funari (2010),
Renata Garraffoni (2012), Glaydson Silva (2004) e Margareth Bakos (2004) entre outros.
Fora de nosso país podemos citar as contribuições de Bernal (2003), Droit (1991), Dubuisson
(2001), Hingley (2001) e Humbert (1996).
No campo específico da Egiptologia, por exemplo, dois conceitos foram
desenvolvidos no final dos anos 90: o de Egiptomania definido como a reinterpretação e o re-
uso de traços da cultura do antigo Egito, de uma forma que lhe atribua novos significados
(BAKOS, 2004: 5) e o conceito de Egiptosofia desenvolvido por. Erik Hornung — egiptólogo
que fez contribuições significativas à Egiptologia.

.... a terra do Nilo foi a fonte de toda sabedoria e baluarte da ciência hermética.
Assim começou uma tradição que ainda esta viva hoje, e a qual me aventura a
chamar de Egiptosofia (Egyptosophy).

... Egiptosofia: o estudo de um Egito imaginário visto como fonte profunda de toda
ciência (tradição) esotérica (HORNUNG, 1999: 1-3).

Por outro lado, a análise do professor Glaydson José da Silva2 parece central para o
desenvolvimento dos usos do passado no que se refere às mudanças dos domínios da história
a partir também dos anos 90:

1
Professor Adjunto de História Antiga e Medieval da UFF-ESR; Coord. do Núcleo de Estudos em História
Medieval, Antiga e Arqueologia Transdisciplinar (NEHMAAT). Prof. Pesquisador do NEA-UERJ; Pós-
doutorando em História (PPGH-UERJ).
Do auxílio epistemológico de outras áreas do conhecimento humano à consolidação
da interdisciplinariedade como práxis de pesquisa e de uma narrativa positiva e
ensimesmada a uma História problema, o presentismo, como colorário de todas
essas inquietações, talvez seja uma das conseqüências mais incômodas e, ao mesmo
tempo, uma das que mais contribuições teóricas aportou à História Antiga (SILVA,
2004: 26).

A partir destas práticas interdisciplinares e aportes teóricos o próprio estudo das


relações entre a Antiguidade e o Mundo Contemporâneo, entre o passado e o presente na
escrita da História do Mundo Antigo tem sido, desde então objeto de inúmeros trabalhos
recentes salienta o referido pesquisador (SILVA, 2004: 26).
Neste contexto é possível verificar que o uso de práticas e elementos do Mundo
Antigo a serviço de uma lógica que justifica certas ações, que expresse formas de
legitimidade, e que passa ser levada em conta no processo de construção de identidades e
alteridades possibilitam análises e estudos comparativos fundamentadas tanto em elementos
do Mundo Antigo quanto do Mundo Moderno e Contemporâneo.
Um bom exemplo neste contexto seja o trabalho e Arnaldo Momigliano (2004) que
trata da escrita da história a partir da análise das obras de historiadores do mundo antigo,
sobretudo Heródoto e Tucídides, de forma a compreender o papel do historiador, da escrita da
história, e do retorno da narrativa. Outro bom exemplo são os estudos de François Hartog
(1999 e 2001) que também tratam da escrita da História, das formas da narrativa e os usos da
História tais como a “História como a mestra da vida.”
Assim sendo, os usos do passado de um mundo antigo egípcio e greco-romano e suas
relações com o Mundo Moderno e Contemporâneo configuram processos de construção de
legitimidades, memórias e imaginários. Em parte tais construções são geradoras ou são
geradas pelo fascínio e sedução que temas relativos ao Egito antigo, Grécia e Roma antiga
suscitam nos indivíduos e nos grupos sociais. Devemos levar em conta que o mundo greco-
romano denota para estes indivíduos ou grupos sociais princípios relativos à civilidade, à
justiça, ao conhecimento, à cultura e a razão. Valores legados ao homem moderno.

A difícil quebra de paradigmas

Podemos perceber que a abordagem explicativa tomando por base os usos do


passado é relativamente recente e deste modo críticas são levantadas por colegas no que diz
respeito à condução da pesquisa nesta área. De fato, uma abordagem que foge aos paradigmas

2
Professor Adjunto de História Antiga da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
atuais da academia parece ser alvo de críticas, mas como em outras situações, trata-se de um
momento de acomodação de idéias. Afinal nem sempre o novo é assimilado de forma
positiva.
A crítica mais freqüente toma por base que o pesquisador não teria condições de
abordar em uma mesma pesquisa uma análise comparativa de elementos da Antiguidade e da
Modernidade/Contemporaneidade, ou seja, tal pesquisador não teria suficiente domínio das
áreas de Antiga e Moderna/Contemporânea — sobretudo um pesquisador da área de
Antiguidade — de modo a conduzir um trabalho de forma satisfatória.
Esta análise nos parece simplificada tendo em vista diversos trabalhos desenvolvidos
nesta área. Ao que parece a quebra do paradigma de trabalhar com duas áreas aparentemente
distintas ainda é visto como dificuldade para certos colegas. Entretanto, não é preciso ir
muito longe, basta um estudo básico da arquitetura nazista e fascista para se verificar que a
forma de legitimidade das relações de poder adotada tem profunda relação com elementos
simbólicos greco-romanos.
Uma outra crítica que se pode literalmente “ouvir” em certos momentos — pois
dificilmente são escritas — leva em conta que a História Antiga, e mesmo a História
Medieval, “não servem pra nada” e por essa visão, seriam dispensáveis ou quando são vistas
com importância sua relevância parece ser minimizada no desenvolvimento das Ciências
Humanas e nas cruciais situações da Contemporaneidade. É possível que este tipo de crítica
tenha contribuído para que pesquisadores de História Antiga desenvolvessem projetos de
modo a demonstrar que esta área possui também uma parcela significativa de contribuição nas
abordagens históricas que envolvem as Ciências Humanas e Contemporaneidade, e que
formas de legitimidade e relações sociais foram desenvolvidas com base no Mundo Antigo.
Como exemplo, podemos citar a arte, a arquitetura, o direito e a organização política.
Todavia, não foi somente esta razão, podemos inferir que um grupo significativo de
pesquisadores também foi mobilizado pela percepção que em diversas situações de impacto
para a humanidade (como as guerras mundiais) na Modernidade e Contemporaneidade
elementos culturais, sociais e mitológicos foram tomados do mundo greco-romano ou de
outras sociedades complexas da Antiguidade e do Medievo como propaganda e legitimação
de ações.
O fato é que os usos do passado podem ser qualificados como uma alternativa de
abordagem e uma forma comparativa de análise que vem se consolidando gradualmente e
possivelmente daqui alguns anos seja compreendida melhor e aceita pelos críticos.
As primeiras análises...

Na nossa pesquisa a expressão material dos usos do passado se remete a arquitetura e


a iconografia de prédios públicos e monumentos funerários (mausoléus e túmulos), mas pode
levar em conta também moradia de particulares que possuem elementos significativos do
Mundo Antigo. Tais construções são aqui compreendidas como cultura material e desta forma
podem ser “lidas”, uma vez que, possuem significados, e estão carregadas de intenção
expressando assim uma dada legitimidade. De certa forma, esta cultura material representa a
ação de um indivíduo ou grupos sociais que se utilizam de uma comunicação não verbal. Ou
seja, uma arquitetura que possui um discurso material com elevado grau de eficiência de
comunicação. Tendo isso em vista, a afirmativa de André Zarankin parece ser pertinente ao
fazer uma análise da Arqueologia da Arquitetura:

A construção das relações sociais por meio de discursos materiais é uma estratégia
eficiente da reprodução do poder (ZARANKIN, 2002: 14).

A contribuição do antropólogo Bruce G. Trigger (1996: 34) também é importante


neste contexto defendendo a Arquitetura Monumental como a forma visível e durável de
consumo (consumo de recursos e energia) que desempenha um papel importante na formação
do comportamento político e econômico dos seres humanos nas sociedades mais complexas
(que podemos compreender como sociedades antigas e modernas).
Tendo isso em mente podemos identificar elementos marcantes na arquitetura como
legitimação nas relações de poder tais como colunas, escadarias e obeliscos. Os dois
primeiros relativos ao mundo greco-romano e o último relativo ao Egito antigo. A
contribuição da arquitetura neoclássica (séculos XVIII-XIX) e eclética (séculos XIX-XX) são
significativas como exemplos da releitura de elementos variados do Mundo Antigo.
Dentre os prédios públicos do Rio de Janeiro podemos citar o Teatro Municipal
(1910) em parte fruto da reforma Pereira Passos, o Palácio Tiradentes (1922-26) e o
Ministério da Fazenda (1943) durante o governo Vargas, cujas colunas e escadarias denotam
relação de poder e civilidade em uma monumentalidade que impacta o espectador, na maioria
das vezes de forma agradável.
A construção do Palácio teve início em 1922 em parte em função das comemorações
do centenário da Independência, mas o momento era conturbado em função do estado de sítio
imposto. Desta forma o Palácio, ainda embrionário, acabou congregando os Estados e
políticos em função de uma disputa por doações de móveis e utensílios por parte dos
Governadores que deste modo revelavam prestígio e poder. Os painéis internos ao redor da
grande cúpula, por exemplo, foram alvo de estudo e aconselhamentos. Segundo a pesquisa do
professor Marcio Romão, Afonso Rodrigues de Azevedo consultou Affonso Tunay diretor do
Museu Paulista para definir que obras e cenas deveriam ser pintadas.
A nova câmara foi construída no local da antiga Câmara Imperial e da cadeia velha
vistas como obras decadentes, em certa medida, da mesma forma que o regime monárquico
que há três décadas havia sido suplantado por uma república carente de símbolos. Desta
forma o Palácio era significativo, pois, tornar-se-ia expressão material, visível desta república
em função do projeto arquitetônico em estilo eclético, o que permitiu chamar a atenção pela a
utilização harmoniosa de elementos greco-romanos tais como: a longa escadaria, colunas em
estilo coríntio neoclássica, imagens representando a Justiça e Paz em estilo greco-romano,
diversos grupos de imagens neoclássicas representativas do poder e do trabalho tendo a
imagem de Tiradentes uma postura altiva com sua longa túnica e cabelos longos além de
estar em lugar privilegiado compondo um triângulo imaginário com a estátua da Justiça e da
Paz. Este triângulo é percebido melhor quando o observador se coloca há alguns metros a
frente da estátua de Tiradentes. Assim sendo, como símbolo republicano a estrutura pretende
impactar ou sensibilizar o espectador de forma emocional.
Outro elemento do mundo antigo que tem sido constantemente usado nas áreas
urbanas é o obelisco. Peça única em granito tendo aproximadamente oito andares e centenas
de toneladas representou no Egito antigo o raio petrificado do sol. Na Modernidade e na
Contemporaneidade seu uso parece estar ligado a definir marcos espaciais e políticos em
avenidas e praças. Normalmente no seu “corpo” era transcrito — como no Egito antigo —
uma propaganda política ou de grupos ligados a obra ou mensagem simbolizada por este
obelisco. Uma pesquisa realizada por discentes da profa. Dra. Margareth Bakos catalogou por
volta de 200 destas peças no Brasil.
Figura 01: Palácio Tiradentes construído no local da antiga cadeia e Câmara do Império serviu de
sede para a Câmara de 1926 a 1960, quando ocorreu a transferência da Capital Federal para Brasília. A
esquerda é possível identificar a imagem de Tiradentes inserida de forma central no conjunto que
antecede a escadaria (Julio Gralha/2013).
Figura 02: Colunas em estilo coríntio neoclássico, mas a obra como um todo “pertence” a arquitetura
eclética. Os capitéis, a trave e parte do teto são finamente trabalhados de modo a concentrar a atenção
daqueles que visitam o espaço (Julio Gralha/2013).
Figura 03: Obelisco usado como marco da Avenida Central (atualmente Rio Branco) no Rio de
Janeiro em função da inauguração em 1906. A placa de bronze faz alusão ao prefeito Pereira Passos e
rememorando e eternizando o momento (Julio Gralha/2013).

Em termos da expressão da materialidade do indivíduo o túmulo do marques do


Paraná (falecido em 1856) e do escritor, médico e dramaturgo Claudio de Souza (falecido em
1954) são significativos. Ambos no cemitério São João Batista no Rio de Janeiro.
A arte e a arquitetura funerária do túmulo do Marquês do Paraná, tem por base o
Egito antigo por meio da egiptomania e egiptosofia. A sepultura tem forma piramidal, tendo
um pórtico bem caracterizado como egípcio antigo encimado por um Sol alado. Além disso,
possui uma série hieróglifos desconexos — sem tradução possível —, uma esfinge e uma
jovem (aparentemente um arauto), mas com atributos da deusa Isis, a grande mãe. Os
elementos egípcios, em parte helenizados (com elementos da cultura grega), estabelecem
relações culturais e talvez místicas com este passado, uma vez que, ao que parece, o Marquês
do Paraná pertencera a Maçonaria.
A sepultura de Claudio de Souza possui uma arquitetura funerária com clara relação à
mitologia e ao teatro grego. Tem por base a reprodução de um teatro grego no qual as moiras
parecem encenar a vida diante dos espectadores que lá queiram parar, apreciar e ler na base do
teatro o nome do indivíduo falecido agora rememorado por aqueles que o visitam.
Na mitologia grega as moiras são três irmãs que determinavam o destino dos homens e
dos deuses. Poderiam ser mulheres de aspecto sinistro ou não dependendo do “olhar” do
indivíduo (no caso da sepultura em análise elas não possuem aspectos sinistros) ou grupo
social produtor da arquitetura. Cloto que segura o fuso fabricava o fio da vida, Láquesis
responsável tecer a vida e o destino e por Átropos que no momento certo ceifava a vida
determinando o final da existência.
Ambos os túmulos estão situados no cemitério São João Batista que fundado em
1852 seguem orientação católica, mas que permitiu (e permite) as mais diversas
manifestações artísticas. Além disso, a partir dos anos 30 do século XX, foi escolhido como
local de sepultamento dos segmentos médios de “bons recursos” da sociedade.
A apropriação de elementos da Antiguidade na arquitetura funerária também teria
por objetivo estabelecer prestígio e relações de cooperação e cooptação —, tanto na esfera
social quanto na esfera cultural. Por outro lado, os usos do passado e a legitimidade
permitiriam uma forma de rememoração daqueles que deixaram esta vida estabelecendo assim
um sentido de eternidade a um dado evento histórico ou grupo social, mas sobretudo, a
lembrança e a rememoração do indivíduo promotor da ação — é o caso dos exemplos do
Marquês do Paraná e do escritor Claudio de Souza. Assim sendo, os usos do passado também
se configurariam em práticas culturais exercidas pelos grupos sociais de modo a construir
memórias coletivas (HALBWACHS, 2004), memórias sociais (BURKE, 2000:67-89) e
imaginários sociais (BACZKO, 1904: 296-331) de um determinado sujeito histórico de um
evento histórico ou grupo social.
Podemos observar neste sentido, que os grupos humanos parecem construir
memórias coletivas a partir de memórias individuais. Peter Burke salienta que a visão
tradicional da relação entre a história e a memória não é relativamente simples, mas nos serve
como base para uma de suas análises a cerca da prática de certos historiadores.
Em um dado momento “a função do historiador era de ser o guardião da memória
dos acontecimentos públicos, quando escritos para proveitos dos autores, para lhes
proporcionar fama, e também em proveito da posteridade, para aprender com o exemplo
deles” (BURKE, 2000: 67-89). Além disso, o passado lembrado pode se tornar um mito — a
mitogênese — em certas situações.
Em um contexto social e cultural, a memória então se tornaria memória social
segundo Burke e poderia justificar ações no presente com referência ao passado, pois a
expressão da materialidade desta memória social se traduziria pelo uso da arquitetura e da
iconografia. Como exemplo, podemos citar mais uma vez a arquitetura e iconografia
neoclássica que expressa a Grécia antiga por meio de uma memória, de um saber organizado e
racional ao alcance dos cidadãos.
Mas como chegamos a esta premissa? Será que todos que olham a fachada de uma
construção compreendem isso? Certamente que não, mas o contato popular, informativo e
científico com a civilização egípcia, grega e romana, por exemplo, permitiu a construção de
uma memória coletiva possível de ser expressa na arquitetura sendo de certo modo
compreensível ao espectador.
Neste momento fundamentamos o segundo conceito aplicado nesta pesquisa que
pode ser traduzido a partir da obra de Maurice Halbawsch (2004) que afirmou que as
memórias são construídas por grupos sociais. São os indivíduos que lembram, mas são os
grupos sociais que determinam o que é memorável. Assim sendo os indivíduos estabeleceram
lembranças e sentidos para a arquitetura antiga e os grupos sociais da cidade do Rio de
Janeiro estabeleceram o que deveria ser memorável.
As contribuições de Peter Burke, Maurice Halbawsch e Bruce Trigger podem
fundamentar a expressão da materialidade no campo da arquitetura e da iconografia. Contudo,
cabe ressaltar que a legitimidade do poder, seja política, social ou cultural passa a ser definida
como algo material, visível e palpável a partir de uma ação ou ações formuladas no plano das
idéias — possivelmente através da construção de memórias coletivas — intimamente ligadas
a um projeto que pode ter um caráter político, no caso de prédios públicos e um caráter
cultural e social no caso de monumentos funerários.
Bronislaw Baczko (1984: 309) salienta que “o imaginário social é, pois, uma peça
efetiva e eficaz do dispositivo de controlo da vida coletiva e, em especial, do exercício da
autoridade e do poder”. Enfim, o poder da propaganda e do convencimento são perceptíveis
também no mundo moderno e devem ser analisados. Mas, esta expressão da materialidade
aparentemente só teria este “poder” por estar fundamentada nas práticas culturais e sociais
aparentemente na forma de memórias coletivas.

Arquitetura e Iconografia: uma leitura possível3

Trabalhamos com a hipótese metodológica que a iconografia e a arquitetura de


construções urbanas e monumentos funerários podem ser lidos. Seus significados podem ser
compreendidos ou traduzidos de modo a tentar em certa medida torná-los claros aos
pesquisadores do século XXI, desta forma então desenvolvemos métodos de análise de forma
a identificar nestes artefatos — a Cultura Material — a expressão das relações de poder, das
práticas culturais e sociais.
Para compreender a função da imagem e utilizar uma metodologia de análise para o
corpus iconográfico formulamos um quadro de análise a partir do trabalho de Jacques
Aumont (2002), que trata de questões teóricas sobre imagem, suas funções, relações com o
real e como podem ser vistas.
Escolhemos para este artigo três elementos para analisar a função da imagem que são
designadas pelo autor como “modos” (AMOUNT, 2002: 77).

1. O modo Simbólico Inicialmente as imagens serviram de símbolos; para ser mais exato,
de símbolos religiosos, vistos como capazes de dar acesso à esfera do sagrado pela
manifestação mais ou menos direta de uma presença divina.

A arquitetura e a iconografia de monumentos funerários podem ter conotação


mágico-religiosa e permitem acesso às esferas do sagrado pela manifestação mais ou menos
direta de símbolos divinos. No que se refere aos monumentos urbanos e funerários na cidade
do Rio de Janeiro a arquitetura e a iconografia podem expressar a materialidade das relações
de poder a partir de elementos culturais e sociais da Antiguidade. Mas especificamente com
relação à arquitetura e iconografia funerária um certo apelo místico e mágico pode ser
identificado.

3
Baseado no capítulo V da tese de doutorado apresentada a UNICAMP: GRALHA, Julio. A Legitimidade do
Poder no Egito Ptolomaico: Cultura Material e Práticas Mágico-religiosas. Campinas: UNICAMP, Tese de
Doutorado, 2009.
2. O modo Epistêmico. A imagem traz informações (visuais) sobre o mundo, que pode ser
conhecido inclusive em alguns de seus aspectos não visuais (mapas)... Mas essa função
geral de conhecimento foi muito cedo atribuída às imagens.

Em nossa pesquisa tal conhecimento (mensagem, idéia e sentido) podia ser extensivo
aos segmentos sociais. Ora de forma diferenciada (um grupo social apreende um determinado
conhecimento na arquitetura e na iconografia diferentemente de outro segmento social), ora
de forma coesa (uma determinada imagem contida na arquitetura, na iconografia, e nos
monumentos urbanos e funerários da cidade do Rio de Janeiro poderiam passar para todos os
segmentos uma mensagem única).

3. O modo Estético. A imagem é destinada a agradar seu espectador. A oferecer-lhe


sensações (aisthésis) específicas. Esse desígnio é sem dúvida também antigo...

Podemos dizer que em nosso objeto de estudo que a forma teria tanto a de função de
impressionar pela monumentalidade quanto pela “beleza” (cores, textura e etc.).
Uma outra forma de metodologia que desenvolvemos tomou por base os nove
elementos identificados pelo egiptólogo Richard H. Wilkinson (1994) para analisar a imagem
na arte egípcia.
O método se baseia na interpretação por meio do significado de nove tipos de
símbolos básicos em uma cena. São eles: a forma, da dimensão, da localização, do tipo de
material, da cor, dos números, dos hieróglifos, das ações e dos gestos.
Apesar de inicialmente serem aplicados para a Egiptologia de um modo geral os
tipos de símbolos básicos podem ser aplicados em outras áreas da História.

Forma:

O simbolismo da forma pode aparecer em dois níveis: o primeiro nível quando um


objeto sugere conceitos e idéias de forma direta. Por exemplo: a fachada com elementos
clássicos no Palácio Tiradentes.
O segundo nível acontece quando este simbolismo é indireto. Por exemplo, a
sepultura de Claudio da Silva na qual as Moiras encenam a vida em um teatro. Ou seja, o
teatro da vida. Segundo Wilkinson (1994: 29) a forma seria um dos meios, nos programas de
arquitetura, para estabelecer a ordem no seu mundo.
Dimensão:

A dimensão dos objetos e figuras na iconografia denota poder, força e importância.


Deste modo, estruturas de grandes proporções como o Palácio Tiradentes, a Biblioteca
Nacional e o Teatro Municipal poderiam impactar os espectadores da cidade e denotar poder,
prestígio e civilidade de certos grupos sociais. Assim como a dimensão de certas câmaras e
recintos pode denotar poder e legitimidade através da monumentalidade destes locais.

Localização:

A localização absoluta de uma estrutura ou objeto e a colocação de objetos em


determinados locais tem relevância simbólica, em parte pela orientação, seja ela baseada nos
pontos cardinais, no curso do Sol, no posicionamento das estrelas, ou áreas geográficas.
Por exemplo: construir o Palácio Tiradentes “sobre” o Parlamento Imperial pode não
somente ter sido por uma questão de espaço, mas pode ter levando em conta a idéias de
sobrepor um prédio público “decadente” representativo do Império. Esta localização parece
ser significativa.

Material:
A natureza do material tem relevância, assim sendo; metais, madeiras e rochas
possuíam valor e poder simbólico em função das práticas culturais e sociais. Desta forma o
ouro era importante por simbolizar uma substancia imperecível e divina, e também o Sol.
Assim como uma fachada em mármore denotaria poder pela riqueza do material.

Cor:
A cor poderia dar individualidade e vida a uma imagem, além disso, havia o valor
simbólico e atributos culturais ligados às cores.

Número:
Além da ideia de quantidade, os números podem ter valor simbólico. Assim o
número quatro poderia significar a “coisa completa”, plena, totalidade e de certa forma
também poderia significar a estabilidade, os quatro pilares e os pontos cardiais. As quatro
“torres” da Biblioteca Nacional, além de estética poderiam passar ao espectador a impressão
de estabilidade.
Hieróglifo:

Como a escrita hieroglífica era considerada Medu-Netjer, ou seja, “palavras do deus” a


utilização de certos signos para formar uma cena denotaria poder das palavras divinas. Na
arquitetura urbana e funerária da cidade do Rio de Janeiro estes hieróglifos podem ser
encontrados em locais específicos e podem ter um sentido para determinados grupos sociais.
De certa forma este elemento é o mais raro de ser encontrado.

Ações:
Uma cerimônia talhada ou pintada em uma estrutura, a descrição de um ritual na
fachada de um prédio público ou um grupo de estátuas executando uma determinada ação
denotam uma ação simbólica e legitimidade.

Gestos:
Os gestos estão associados de certa forma as ações, mas por si só podem indicar
submissão, domínio, proteção e invocação.
Análise da Arquitetura

Como exemplo, passamos a uma análise preliminar. A idéia central neste momento é
demonstrar o método.

ARQUITETURA – Catálogo e Descrição


Num. de ordem: 001
Título: Palácio Tiradentes

Local: Centro do Rio de Janeiro, próximo a Praça XV


Orientação: Não identificado
Período Histórico: Primeira República – República Velha
Datação: 1922-26
Monumento: Prédio Público construído para ser a Câmara dos Deputados
Descrição: O Palácio Tiradentes foi construído em 1926 e passou a ser a Câmara dos
Deputados. Em estilo eclético priorizou elementos greco-romanos de modo a
permitir que um imaginário social de civilidade, cultura, razão e justiça
fossem percebidos pelo espectador.
Função: Câmara dos Deputados e símbolo da República.
Observação: —
Referência Bibliográfica: Não identificada

ANÁLISE DA ARQUITETURA – Função como Imagem


Modo Simbólico
As estatuas das divindades e de Tiradentes, e a fachada com sua escadaria, colunas e cúpula permitem um caráter mágico ou
de um culto civil relativo à república enfatizando elementos de civilidade greco-romano.

Modo Epistêmico
Os elementos greco-romanos e a imagem de Tiradentes expressam civilidade, progresso, razão, justiça e poder.

Modo Estético
O monumento causa impacto ao espectador pela monumentalidade. A organização da fachada, as escadarias, as colunas, e a
imagem de Tiradentes podem sensibilizar o espectador/observador de forma agradável e atraente.

ANÁLISE DA ARQUITETURA – Tipologia de Wilkinson


ANÁLISE DA ICONOGRAFIA (2) TIPOLOGIA DE WILKINSON
Elementos encontrados (X)
Forma Dimensão Localização Ações Cor Número Hieróglifo Material Gestos
X X X X X X X X

Forma: A estrutura tem forma retangular composta com a fachada com sua colunata, escadaria, e
divindades civis representativas da república.

Dimensão: O complexo possui dimensão significativa de modo a impactar o espectador.

Localização: A orientação do complexo não foi avaliada neste momento.

Ações: O triangulo formado por Tiradentes, a Justiça e a Paz denotam equilíbrio e os pilares da República

Cor: Tom de ocre claro que contrasta sensivelmente com o entorno.

Número: Igualdade de número denotando equilíbrio.

Hieróglifo: Não encontrado algo similar.

Material: A construção teve relativo baixo custo, uma vez que, um tipo de massa foi usado para a fachada.

Gestos: A altivez de Tiradentes e de outras divindades nos convida a observar.

Considerações

O Palácio Tiradentes sensibiliza o visitante estabelecendo legitimidade pela monumentalidade, por memórias coletivas que
rememoram a civilidade, a razão, e o trabalho. Desta forma, este Palácio se legitima coma a casa das decisões.

Considerações Finais

Neste capítulo tivemos a intenção de demonstrar que os usos do passado podem ser
vistos como abordagem metodológica e investigativa possível, e que análises comparativas
podem ser levadas a efeito de forma a contribuir com as Ciências Humanas. A apropriação de
elementos do mundo antigo (social, cultural ou política), permite a legitimação de ações e o
estabelecimento de cooperações ou cooptações dependendo da relação que os grupos sociais
pretendem dar aos elementos apropriados.

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Posfácio
Usos do passado e recepção: um debate

Pedro Paulo Abreu Funari,


Glaydson José da Silva,
Renata Senna Garraffoni

Os estudos de recepção surgiram no âmbito da literatura, como parte do esforço de


entender a permanente reapropriação literária das formas e conteúdos pretéritos, como parte
da compreensão da intertextualidade. As disciplinas mais afeitas ao tema são os estudos
literários, culturais e de comunicação (ESCOTEGUY e JACKS, 2005), como lembra Janice
Radway (2008) e isto não é fortuito. Recepção é um termo latino antigo que significa “trazer
de volta, retomar”1 e que se relaciona ao ato de comunicação entre um emissor e um receptor.
A recepção envolve, neste aspecto semiótico, a reprodução, mais ou menos fiel, de uma
emissão, como no uso do termo para designar a qualidade da recepção de uma imagem ou
som. Isto significa que haveria um original que seria recebido, tempos depois e vivenciado de
alguma maneira. Assim seriam as comédias latinas de Plauto, Os menecmos e o Anfitrião, a
origem ou fonte e a Comédia dos erros de William Shakespeare (HARDIN, 2012) a recepção.
Este uso do termo recepção expandiu-se para além dos estudos literários, mas fiel,
em grande medida, ao par origem/recepção, nem sempre tão apropriado para as análises
históricas. Seria coerente considerar a criação dos feixes por Mussolini uma recepção dos
antigos fasces? O fascismo seria uma recepção? Ou, então, para ficarmos em algo mais atual e
menos autoritário: seria a democracia uma recepção proveniente da antiga Atenas? Ou
melhor, o uso do conceito de recepção, com sua pressuposição de uma essência antiga, de
uma origem tida como começo absoluto e que traz em si a história futura e determina o curso
de todas as coisas (GRELL, 1993: 128), e que se reapresenta numa época posterior, seria o
mais profícuo? Parece-nos que o termo usos do passado (FOWLER, 1987; KRISTIANSEN,
1993) possa dar mais conta das relações de poder (HALL, 2005) nas invenções posteriores
inspiradas em precedentes. A todo tempo, as sociedades constroem-se a partir das
experiências e percepções subjetivas sobre o passado. Isto já acontecia nas sociedades
humanas mais antigas, a ponto que alguns autores chegam a propor que o ser humano pode
ser definido como aquele que usa o passado para compor o presente, na forma, por exemplo,
da gestualidade que permite a confecção de artefatos líticos de geração a geração.

1
Recipio, “tomar de volta, retomar”, como em recipere suas res amissas, “recuperar suas coisas perdidas” Liv.
3, 63.
Nas sociedades que se utilizam da escrita, tanto mais, os usos do passado passam
pela tradição, pela transmissão não apenas oral, como escrita (GOODY, 2000). A tradição,
contudo, não deve ser entendida como uma transmissão de algo que está lá na origem, algo
que subjaz ao sentido do termo, já que tradição significa “trazer algo2” do passado para o
presente, como um aprendizado. O próprio conceito de uso do passado tem sido criticado por
alguns por pressupor que há um passado objetivo lá trás a ser usado no presente,
negligenciando com isso que, ao se conceber, discursivamente, os documentos no passado e
sua leitura no presente, passado e presente passam a ser entendidos como dimensões
construídas, no presente, pelos historiadores. De fato, o que chamamos de uso 3 é uma
invenção contemporânea, uma experiência no presente, ainda que mantenha uma relação com
o que se escreveu sobre o passado. A construção do passado está no presente e serve a fins
contemporâneos (JONES, 1997). O conceito de usos do passado, à diferença de recepção
literária, surgiu no âmbito da teoria social e enfatiza as relações de poder subjacentes ao
mundo contemporâneo. O que se pode concluir desse debate entre os que enfatizam conceitos
diversos como recepção e usos do passado é que não convém pensar o passado sem atentar
para as condições contemporâneas de produção historiográfica. Recepção ou usos do passado,
ambos os conceitos ressaltam tal ligação umbilical.

Referências bibliográficas

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HALL, J.D. The Long Civil Rights Movement and the Political Uses of the Past, The Journal
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2
Cf. Quint. 1, 12, 1: nec tamquam tradita sed tamquam innata, “nem tanto aprendida, como inata”.
3
Cf. Ter. Phorm. 1, 2, 23, Mi usus venit, hoc scio, “sei-o pela experiência, pelo uso”.
HARDIN, R.F. England's Amphitruo before Dryden: The Varied Pleasures of Plautus's
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L. New Directions in American Reception Study. Oxford, Oxford University Press, 2008, 237-
350.
SOBRE OS AUTORES

Alexandre Galvão Carvalho

Graduado, Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Desde
1998 é professor do Departamento de História da Universidade Estadual da Bahia – UESB. É
líder do Grupo de Pesquisa: Historiografia do Mundo Antigo – UESB, cadastrado no CNPQ.
Atualmente coordena o projeto de pesquisa “A economia antiga: a contribuição de Karl
Polanyi.”, com o financiamento da PPG/UESB. É autor, na condição de organizador, dos
livros “Interação social, reciprocidade e profetismo no mundo antigo” e “Economia Antiga:
história e historiografia”, com capítulos escritos nos dois livros. Publicou artigos no periódico
PHOÎNIX e na revista eletrônica NEARCO. É membro da editoria científica da Revista
Politeia: História e Sociedade do Departamento de História da UESB

Andrés Alarcón-Jiménez

Antropólogo (com ênfase em arqueologia) formado pela Universidade Nacional da Colômbia


(1997-2003), orientado pela Profa. Ana María Groot de Mahecha. Concluiu Mestrado em
História Cultural (2006- 2008), no IFCH UNICAMP, sob a orientação de Pedro Paulo Funari
e com bolsa do Convênio PEC-PG da CNPq e o Doutorado em História Cultural (desde 2009-
2013), na mesma instituição, orientado também, pelo professor Funari, e com bolsa da CNPq.
Trabalha nas áreas de Arqueologia Histórica, História Cultural e atualmente desenvolve
trabalhos de pesquisa sobre temáticas relacionadas com Arqueologia do sujeito, livros de
texto de História brasileiros e colombianos, identidade, teoria histórico-genética da cultura e
escrita da História.

Rafael Augusto Nakayama Rufino

Graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina (2007), mestre em História


Cultural pela Unicamp (2013), onde atualmente cursa o doutorado. Membro do Grupo de
Pesquisa (CNPq) Antiguidade e Modernidade: Usos do Passado, coordenado pelos
professores Glaydson José da Silva (UNIFESP) e Renata Senna Garraffoni (UFPR) e
Pesquisador do Laboratório de Arqueologia Pública – Paulo Duarte
(LAP/NEPAM/UNICAMP). Os interesses de pesquisa giram em torno da História antiga e os
usos políticos do passado; relação entre Arqueologia, Política e Poder; dimensão discursiva
das identidades.

Renata Cerqueira Barbosa

Atua na área de Usos do Passado, Teoria da História, História do Brasil, História Antiga e
História Medieval. É doutora em História pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de
Mesquita Filho" Campus de Assis (Março/2011), possui graduação e especialização em
História pela Universidade Estadual de Londrina (1998/1999) e mestrado em História pela
Universidade Federal do Paraná (2002). Atuou no ensino Fundamental e Médio de 2003 a
2006, e no ensino superior de 2000 a 2012 como professora colaboradora do Departamento de
História da Universidade Estadual de Londrina - UEL. É pesquisadora do Núcleo de Estudos
Antigos e Medievais da UNESP/Assis - NEAM, do grupo Antiguidade e Modernidade: Usos
do passado - CNPQ e do Grupo de Pesquisa Gênero, Sexualidade e Sociedades - USC. Pós-
doutorado iniciado em Março de 2011 – IFCH - Unicamp, sob a supervisão do professor Dr.
Pedro Paulo Abreu Funari.

Cláudio Umpierre Carlan

Professor Adjunto 3 de História Antiga da Universidade Federal de Alfenas – MG; Pós


Doutorado em Arqueologia pela UNICAMP (NEPAM / Laboratório de Arqueologia Pública);
Doutor em História Cultural pela UNICAMP; Professor Visitante da Universidade Carlos III
de Madrid (Espanha – 2010 - 2011), estágio de doutorado na Universidade de Barcelona /
Espanha; Autor e organizador de livros sobre numismática e Império Romano.

Adilton Luís Martins


Formado em Filosofia e em História, Adilton Luís Martins tem dedicado sua carreira
acadêmica à interdisciplinariedade. Na Unicamp, defendeu sua tese sobre Montesquieu como
historiador de Roma, tratando, fundamentalmente, de alinhar a metodologia histórica e
filosófica em busca da formação do pensamento e da ação modernos. Assim, não apenas
aproxima estas duas disciplinas - a História Antiga e a História Moderna. Ademais, tem
procurado aproximar as Ciências Humanas das novas tecnologias e do grande público, por
meio da Revista Aulas www.unicamp.br/~aulas, na qual atua como editor executivo. Em 2010,
lançou o livro “Arestas do Poder” trabalho em que procura delinear o anti-absolutismo como
uma luta essencialmente historiográfica – ao intentar demonstrar como as origens antigas
podem definir a crença política moderna, na França de Luís XIV. Suas áreas de pesquisa e
interesse são, de modo geral, o Iluminismo francês, Ensino de Filosofia, História Antiga,
História das Ideias e usos do passado.

Fábio Vergara Cerqueira

Graduou-se no curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (1989) e concluiu doutorado em Antropologia Social, com concentração em
Arqueologia Clássica, pela Universidade de São Paulo (2001). Bolsista Produtividade CNPq
em Arqueologia. Atualmente é professor Associado do Departamento de História da
Universidade Federal de Pelotas, lecionando nos cursos de Licenciatura e Bacharelado em
História, Bacharelado em Museologia e Bacharelado em Antropologia, com Habilitação em
Arqueologia. Entre 2006 e 2009, foi professor do Mestrado em Ciências Sociais. É professor,
desde 2007, do Programa de Doutorado e Mestrado em Memória Social e Patrimônio
Cultural, e, desde 2009, do Mestrado em História. Nesta universidade, foi diretor do Instituto
de Ciências Humanas por dois mandatos (2002-2010), coordenador do Curso de História
(2000-2002), coordenador do Laboratório de Antropologia e Arqueologia (2001-2012) e do
Museu Etnográfico da Colônia Maciel (desde 2006), integrando ainda a coordenação do
Laboratório de Estudos da Cerâmica Antiga (desde 2011) e do Circuito de Museus Étnicos
(desde 2008). Foi Presidente (2001-2003) e Vice-Presidente (2004-2005) da Sociedade
Brasileira de Estudos Clássicos, tendo sido Presidente do V Congresso da Sociedade
Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC), realizado em 2003. Atuou como coordenador
nacional do GT de História Antiga da Associação Nacional de História (ANPUH) entre 2007
e 2008. Tem experiência na área de História Antiga, com ênfase em Arqueologia Histórica e
Arqueologia Clássica, atuando principalmente nos seguintes temas: música, arqueologia,
antiguidade clássica e iconografia. Nos últimos anos, tem-se dedicado às áreas de Memória
Social e Patrimônio Cultural, bem como à gestão museológica e arqueológica, dedicando-se
aos temas da identidade, etnicidade, preservação, cultura material e patrimônio imaterial.

José Geraldo Costa Grillo

Graduado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2003) e doutor em


Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (2009),
com período sanduíche na École Française d’Athènes (Atenas, Grécia 2006). Atualmente é
professor no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. Tem
experiência nas áreas de História da Arte, de Arqueologia e de História, com ênfase em
História da Arte Antiga, Arqueologia Clássica e História Antiga, atuando principalmente nos
seguintes temas: Arte da Antiguidade Clássica.

Renato Pinto

Doutor em Histórica Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É Mestre


em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
(MAE-USP), onde também concluiu seu pós-doutoramento. O pesquisador estuda o processo
de expansão cultural e territorial do Império Romano, chamado de “romanização”, desde seu
mestrado, com ênfase nas questões identitárias surgidas na província da Britannia. Durante
seu doutoramento, dedicou-se a pesquisar como os discursos das relações de gênero e das
práticas sexuais romanas afetaram a interpretação da antiguidade a partir do séc. XVI na
Inglaterra, e, mais tarde, moldaram parte da conceituação do Império Britânico. Atualmente, é
Professor de História Antiga no Departamento de História da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e Pesquisador Associado do Laboratório de Arqueologia Romana
Provincial Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (LARP/MAE-
USP), onde estuda a presença da cultura material das religiões “romanas” e “nativas” e sua
potencial influência nas transformações identitárias entre os habitantes da Britannia.

Renata Cardoso Belleboni-Rodrigues

Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1996), mestrado e doutorado em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas
(2001 e 2006). Atualmente é professor adjunto da Fundação Municipal de Ensino Superior de
Bragança Paulista e professora/tutora no Centro Universitário Claretiano (educação a
distância). Tem experiência na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas:
Antigüidade Grega, Historiografia Antiga e Moderna sobre a Antigüidade e Religiosidade e
Mitologia Grega.

Raquel dos Santos Funari

Licenciada em História (UniBH), mestre e doutora em História pela Unicamp, colaboradora


do Departamento de História da Unicamp autora de O Egito dos faraós e sacerdotes (São
Paulo, Atual), O Príncipe do Egito (São Paulo, Annablume/Unicamp) e co- autora da coleção
Aprender Juntos História(São Paulo, SM), entre outros livros e diversos artigos acadêmicos e
de divulgação científica.

Nelson de Paiva Bondioli

Formado em História pela Universidade Federal de Viçosa e Master of Arts em Early Celtic
Studies pela Universidade de Cardiff. Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis), sobre Identidade e Religião romana ao início do
Principado. Entre outros temas, desenvolve também pesquisas sobre os povos Celtas da Gália,
com atenção especial aos druidas e o druidismo nos séculos I a.E.C. ao I E.C., e as trocas
culturais entre Celtas e Romanos.

Tais Pagoto Bélo

Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(2002). É Mestre em Arqueologia (2007) pelo programa de Pós-graduação do Museu de
Arqueologia e Etnologia (MAE/USP). Sua iniciação científica teve como tema a cerâmica de
bucchero Etrusca e no mestrado trabalhou com Arqueologia Brasileira, estudando os artefatos
líticos e cerâmicos do sítio Água Limpa, município de Monte Alto, SP. Doutora pela
Unicamp, junto ao departamento de História, sob a orientação do Prof. Pedro Paulo A. Funari.
Sua pesquisa tem como objeto a figura feminina de Boudica, guerreira e rainha Bretã,
envolvendo o estudo de teoria de gênero, literatura, história e arqueologia.

Renata Senna Garraffoni

Professora no Departamento de História na Universidade Federal do Paraná. Tem experiência


em História Antiga, desenvolvendo pesquisa sobre os seguintes temas: cultura popular
romana, cultura material e literatura latina, gladiadores romanos e releituras do mundo antigo
na modernidade. Foi vice-presidente da SBEC, Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos,
editora da Revista Classica da mesma instituição e, atualmente, é tutora do PET-
História/UFPR e vice-líder do grupo de pesquisa CNPq Antiguidade e Modernidade: História
Antiga e Usos do Passado (http://www.humanas.ufpr.br/portal/usosdopassado/).

Pérola de Paula Sanfelice

Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é bolsista e


pesquisadora pela Capes, desenvolvendo pesquisas relacionadas à História antiga e aos Usos
do passado, com ênfase particular para as pinturas e cultura material da antiga cidade romana
de Pompeia. Atualmente, sua investigação está relacionada com as representações das
divindades romanas vinculadas às práticas sexuais e aos rituais de fertilidade, tais como
Hermafrodito, Vênus, Marte, Priapo, Cibele, Baco e Isis. Partindo do estudo de caso
pompeiano a autora evidencia as particularidades da cultura material desta cidade, a fim de
propor uma compreensão mais crítica do Império Romano como um todo, interpretando as
divindades dentro de um contexto sociocultural, que possibilita a análise da vida cotidiana
como parte das subjetividades humanas.

Julio Gralha

Professor adjunto de História Antiga e Medieval da Universidade Federal Fluminense do


Campus de Campos dos Goytacazes (UFF-ESR). Graduado em História pela UERJ, Mestre
em História Social pela UFF e Doutor em História Cultural pela UNICAMP e Pós doutorando
pela PPGH-UERJ. É especialista em Egito Faraônico e Ptolomaico, Usos do Passado na
cidade e nas práticas religiosas/mágicas recentes. Coordenador do Núcleo de Estudos em
História Medieval, Antiga e Arqueologia Transdisciplinar (NEHMAAT – UFF/ESR),
coordenador do curso de História (UFF/ESR) e Professor Colaborador do Núcleo de Estudos
da Antiguidade (NEA-UERJ). Editor da Revista Mundo Antigo (Revista eletrônica). Autor do
Livro Deuses, Faraós e o Poder (2002) e co-autor em publicações tais como: New
Perpectives on the Ancient World: Modern Perceptions, ancient representations (Oxford
2008), As Religiões que o Mundo Esqueceu (Editora Contexto 2009), História Militar do
Mundo Antigo (Anablume 2012), Práticas Alimentares no Mediterrâneo Antigo (NEA/UERJ
2012), Viagens e Viajantes: cultura, imaginário e espacialidade (UEMA 2012), Mulheres na
Antiguidade (NEA/UERJ 2012).

Pedro Paulo Abreu Funari


Bacharel em História (1981), mestre em Antropologia Social (1986) e doutor em Arqueologia
(1990), sempre pela Universidade de S. Paulo, livre-docente em História (1996) e Professor
Titular (2004) da Unicamp. Professor de programas de pós da UNICAMP e USP,
Distiguished Lecturer University of Stanford, Research Associate - Illinois State University e
Universidad de Barcelona, atual líder de grupo de pesquisa do CNPq, assessor científico da
FAPESP, foi colaborador da UFPR, UFPel, docente da UNESP (1986-1992) e professor de
pós-graduação das Universidades do Algarve (Portugal), Nacional de Catamarca e del Centro
de la Provincia de Buenos Aires e UFRJ. Supervisionou 13 pós-doutoramentos, 28
doutoramentos, 34 mestrados. Na Unicamp, Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos
(2007-2009), representante do IFCH na CADI (2005-2009), membro da CAI/Consu (2009),
Assessor do Gabinete do Reitor e Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp
(2009-2013), apresentador do programa da RTV Unicamp "Diálogo sem fronteira", desde
2011. Participa do conselho editorial de mais de 50 revistas científicas estrangeiras e
brasileiras. Publicou e organizou mais de 80 livros e reedições e de 210 capítulos nos Estados
Unidos, Inglaterra, Austrália, Áustria, França, Holanda, Itália, Espanha, Argentina, Colômbia,
Brasil, entre outros, assim como mais de 530 artigos em mais de 130 revistas científicas
estrangeiras e brasileiras arbitradas, como Current Anthropology, Antiquity, Revue
Archéologique, Journal of Social Archaeology, American Antiquity, American Journal of
Archaeology, Dialogues d' Histoire Ancienne. Foram publicadas mais de 70 resenhas de seus
livros, mais de 30 delas em revistas estrangeiras de ponta e participou de mais de 300 bancas.
Projetos conjuntos com pesquisadores estrangeiros resultaram na visita de numerosos
estudiosos, das principais instituições de pesquisa do mundo (Universidades de Londres, Paris,
Saint Andrews, Boston, Southampton, Durham, Illinois, Barcelona, Havana, Buenos Aires,
Londres, CNRS). Co-editou enciclopédias como Encyclopaedia of Historical Archaeology,
Oxford Encyclopaedia of Archaeology e Encyclopaedia of Archaeology (Academic Press).
Participou de mais de 400 eventos e organizou mais de 115 reuniões científicas. Foi Secretary,
World Archaeological Congress (2002-2003), membro permanente do conselho da Union
Internationale des Sciences Préhistoriques e Protohistoriques (UISPP) e sócio da ANPUH,
ABA, SAB, SBPH, SHA, SAA, WAC, ABIB, AAA, Roman Society. Líder de Grupo de
Pesquisa do CNPq, sediado na Unicamp e vice-líder de dois outros grupos. Editor de coleção
de livros com 33 volumes, a maioria com apoio da FAPESP, CNPq, CAPES, FAPEMIG e
UNICAMP. Tem experiência na área de História e Arqueologia, com ênfase em História
Antiga e Arqueologia Histórica, além de Latim, Grego, Cultura Judaica, Cristianismo,
Religiosidades, Ambiente e Sociedade, Estudos Estratégicos, Turismo, Patrimônio, Relações
de Gênero, Estudos Avançados.

Glaydson José da Silva


Professor de História Antiga da Universidade Federal de São Paulo. Possui graduação em
História pela Unesp/Franca (1996) e mestrado, doutorado e pós-doutorado, também em
História, pela Unicamp (2001, 2005 e 2010), com estágio doutoral realizado junto à
Université de Paris I – Sorbonne e Musée des Antiquités Nationales de Saint-Germain-en-
Laye (2003-2004). Realizou também, no ano de 2011, estágio pós-doutoral junto à
Universidade de Estrasburgo. Foi diretor adjunto e diretor do Centro de Estudos e
Documentação do Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica,
da Unicamp, entre 2007 e 2009 e 2009 e 2011, respectivamente. Foi vice-diretor e diretor da
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp (2010-2012). Foi coordenador
nacional do GT de História Antiga da ANPUH. É líder do grupo de pesquisa Antiguidade e
Modernidade: usos do passado, cadastrado no CNPq. Tem experiência na área de História,
com ênfase em História Antiga (Roma, Gália e Gália romana). Desenvolve pesquisas
relacionadas às leituras da Antiguidade em contextos contemporâneos, interessando-se pelo
mundo antigo como presença que historicamente reaparece e se reformula pelas múltiplas
visões e interesses do presente.

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