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HERMENÊUTICA
EXEGESE E
HERMENÊUTICA
Marília/SP
2022
Diretor Geral | Valdir Carrenho Junior
“
A Faculdade Católica Paulista tem por missão exercer uma
ação integrada de suas atividades educacionais, visando à
geração, sistematização e disseminação do conhecimento,
para formar profissionais empreendedores que promovam
a transformação e o desenvolvimento social, econômico e
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EXEGESE E HERMENÊUTICA
PROF. FRANCISCO BENEDITO LEITE
SUMÁRIO
CAPÍTULO 01 EXEGESE E HERMENÊUTICA 07
SUMÁRIO
CAPÍTULO 14 COMPARAÇÃO ENTRE TRADUÇÕES BÍBLICAS 177
EM LÍNGUA PORTUGUESA
CAPÍTULO 1
EXEGESE E HERMENÊUTICA
Introdução
Na presenta aula, veremos que exegese e hermenêutica são domínios nos quais
se incluem, respectivamente, os procedimentos analíticos e os procedimentos
interpretativos dos textos sagrados. Também saberemos que tanto uns quanto outros
são aplicados à literatura sagrada judaico-cristã – isto é, à Bíblia – desde a época do
Mundo Antigo e, por isso a aplicação da exegese e da hermenêutica para estudar a
Bíblia possui uma longa tradição intelectual.
Saberemos que ao longo dos séculos, no Ocidente, a hermenêutica e a exegese
aderiram aos desenvolvimentos filosófico-científicos alcançados pela cultura ocidental
e assim, aplicaram-nos aos seus objetos de pesquisa, que eram seus livros sagrados,
que compõem a Bíblia. A aplicação de procedimentos de análise e interpretação
amplamente reconhecidos no contexto acadêmico-científico permitiu tanto aos judeus
quanto aos cristãos lerem criticamente as obras literárias nas quais estão registradas
suas experiências de fé.
O resultado dessas pesquisas histórico-literárias realizadas a partir da exegese
e da hermenêutica na maioria das vezes não converge com a expectativa que o
leitor não especializado tem, porque os leitores dos textos sagrados geralmente
são religiosos fieis que entendem literalmente uma mensagem que muitas vezes
é simbólica ou codificada, ou ainda, pode ser uma mensagem que por ser antiga
demais deveria ser lida criticamente e reinterpretada para ser aplicada ao mundo
atual.
Diante desses esclarecimentos, deve-se reconhecer que o mais importante é que o
estudante tenha consciência do desafio que significa a análise e a interpretação dos
textos sagrados, pois exige, ao menos temporariamente, suspender os pressupostos
de fé, para dirigir um olhar científico ao desenvolvimento histórico-literário da obra em
que se contém aquilo que o fiel entende ser a revelação de Deus.
1. Exegese
intelectuais, mas para conseguir ler o texto inserido em seu contexto, pois somente
assim a mensagem que lá está será compreendida.
Na maioria das vezes que alguém que não é especializado analisa e interpreta
um texto bíblico, o estudo não parte da tentativa da reconstrução do contexto
histórico e cultural em que o texto foi escrito, não parte do ‘mundo’ do texto. O
leitor sem expertise faz uma leitura a partir de sua própria visão de mundo, de
sua própria noção de certo e errado, de seus valores e cultura – chamamos esse
conjunto de noções de ideologia. Se isso ocorre a consequência será que ao invés
de extrair a mensagem do texto, na verdade, o que acontecerá é que essa pessoa
colocará no texto uma mensagem que não estava lá, porque era um pressuposto
que estava na compreensão do intérprete, do qual ele não conseguiu se dissociar
antes de realizar sua abordagem do texto.
Nesse caso, o analista realizará uma “eisegese”, e não uma exegese. Eisegese
é uma forma irônica de nomear a prática de colocar forçosamente no texto uma
mensagem que nunca lhe pertenceu. Significa forçar o texto a se adequar àquilo
que não faz parte do contexto em que foi produzido com o objetivo de oferecer
uma explicação aos leitores do nosso mundo sem fazer o esforço de estudar o
ambiente histórico-social e cultural no qual o texto foi escrito.
Infelizmente a história do estudo e da interpretação bíblica mostra que ao longo
da História aconteceu com muita frequência de colocarem no texto mensagens
que não lhe pertenciam originalmente. É muito corriqueiro que as denominações
religiosas tentem forçar o texto bíblico a concordar com sua doutrina.
Diante desse problema, podemos destacar dois elementos sobre a verdade que
subjaz ao texto. Em primeiro lugar, a verdade, como dissemos, é aquilo que não
pode ser escondido, por isso ela sempre vem à tona novamente e isso acontece
pela renovação das pesquisas. Em segundo lugar, a verdade, apesar de ser aquilo
que não pode ser escondido, nunca é conhecida em sua totalidade, porque é maior
que a existência humana individual, por isso cada um conhece uma de suas partes,
cada um tem seu próprio ponto de vista de um de seus aspectos, mas não de
sua totalidade, conforme nos conta aquela antiga parábola indiana “Os cegos e
o Elefante”, que você já deve ter ouvido alguma vez na sua vida.
Um grupo de cegos ouviu dizer que um animal estranho, chamado elefante, havia
sido trazido para a cidade, mas nenhum deles estava ciente de sua configuração e
forma. Por curiosidade, eles disseram: “Precisamos inspecionar e conhecê-lo pelo
toque, do qual somos capazes”. Então, eles o procuraram e, quando o encontraram,
tentaram tateá-lo. No caso da primeira pessoa, cuja mão pousou na tromba, disse:
“Este ser é como uma cobra grossa”. Para outro cuja mão chegou à orelha, parecia
uma espécie de leque. Quanto a outra pessoa, cuja mão estava sobre a perna, disse,
o elefante é um pilar como um tronco de árvore. O cego que colocou a mão de lado
disse que o elefante “é uma parede”. Outro que sentiu o rabo, descreveu-o como
uma corda. O último sentiu sua presa, afirmando que o elefante é aquilo que é duro,
liso e como uma lança.
Essa versão da párabola Os Cegos e o Elefante está disponível na Wikipedia
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Cegos_e_o_Elefante>
Para alcançar essa verdade que sempre foi alvo de interesse do ser humano em
todas épocas e em torno da qual se desenvolveu o que chamamos de cultura e suas
demais instituições intelectuais, é necessário retroagir na história para conhecer o
mundo do texto, mas não somente isso. Também precisamos conhecer o texto em
seus estágios anteriores, por isso é necessário conhecer o texto em seu idioma original,
conhecer os manuscritos nos quais os textos foram escritos antes de pertencerem
às edições modernas, conhecer a pré-história oral dos textos, quando eram discursos
orais, antes de serem escritos.
Os procedimentos analíticos que investigam tanto o mundo do texto quanto sua
história formaram o que chamamos de metodologia da exegese histórico-crítica (vamos
resumir e mencionar apenas “exegese” para se referir a isso). Exegese, você já entendeu
o que significa, quanto ao restante do nome do domínio científico (metodologia [...]
histórico-crítica), esse se justifica porque os procedimentos da exegese são tanto
históricos, porque como na historiografia, estuda-se e se investiga o passado; quanto
críticos, porque, como na crítica da literatura, investigam-se textos de diversos gêneros.
(FITZMYER, 1997, p.27)
Os principais procedimentos da exegese que conhecemos hoje começaram a ser
aplicados à Bíblia pelos teólogos a partir do século XVIII, mas ninguém nega que
procedimentos exegéticos rudimentares são aplicados às escrituras cristãs desde os
primeiros séculos da atual era. Como podemos apontar o teólogo cristão chamado
Orígenes de Alexandria que preparou uma versão da Bíblia chamada Exapla, na qual
estavam colocadas lado-a-lado seis versões do texto bíblico para comparar as leituras
deles. (FITZMYER, 1997, p.18)
Então sabemos que parte dos procedimentos exegéticos já existia há mais de
um milênio, inclusive, foram utilizadas no mundo grego antes do surgimento do
cristianismo. Os primeiros a procederem com a análise de textos foram chamados
pelos gregos de “filólogos”. A palavra filólogo significa algo como “aquele que ama
as palavras”, pois era exatamente isso que se observava naqueles estudiosos, eram
pessoas que apreciavam e valorizavam cada um dos caracteres que estavam grafados
nos manuscritos da famosa biblioteca de Alexandria, no Egito.
Do apreço que tinham pelas palavras e, na verdade, até mesmo por cada letra,
surgiu no Egito, no século IV a.C. a ciência chamada Filologia. O domínio dessa área
do saber era a produção, a edição, a publicação, a preservação e tudo mais que
estivesse relacionado com os livros. Os filólogos sabiam identificar quanto tempo
aquele determinado texto tinha sido escrito, sabiam identificar se a autoria daquele
livro era falsa ou verdadeira, sabiam tudo o que era possível saber sobre um livro pela
expertise que possuíam.
Depois de passado muito tempo, partir do século XV, período chamado Renascimento,
época em que se despertou no povo do Ocidente um grande interesse pelo conhecimento
da Antiguidade, a ciência chamada Filologia ganhou grande notoriedade, pois foi por
meio dela que julgaram se os documentos eram verdadeiros ou falsos e qual era o
sentido pretendido por seu autor.
O exemplo mais destacado da importância da atividade filológica pode ser indicado
pelo feito do humanista Lorenzo Valla (1407-1457), que provou que o documento que
atestava que o Imperador Constantino doou as terras de Constantinopla para a Igreja
Católica Romana era uma falsificação recente e de modo algum poderia remontar à
Antiguidade. Assim, por meio da filologia, Lorenzo Valla apontou um embuste.
Os teólogos cristãos aplicaram procedimentos críticos e literários já existentes –
como os que foram usados por Valla – à análise de seus próprios textos e ainda os
desenvolveram mais, para que fossem adequadamente aplicados ao conteúdo dos
textos sagrados, respeitando a natureza histórico-literária deles.
No século XVIII, com o surgimento do Iluminismo, que é o movimento filosófico
que permitiu os primeiros desenvolvimentos da Ciência, como a concebemos hoje,
ocorreram avanços significativos em todas as áreas do saber, e com a filologia não
foi diferente.
FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 11
EXEGESE E HERMENÊUTICA
PROF. FRANCISCO BENEDITO LEITE
ANOTE ISSO
2. Hermenêutica
A palavra “hermenêutica” também vem da língua grega, sua origem está relacionada
com “Hermes”, que é a divindade grega à qual se atribui a capacidade da comunicação.
Nas pinturas, esse deus tem seu capacete e seus pés alados, o que pretende indicar a
mobilidade e a rapidez, das quais supostamente ele é capaz, e, por inferência, indica-
nos também que essas qualidades são requeridas para uma comunicação eficaz.
Relacionado com o nome desse membro do panteão helênico está o verbo grego
“hermeneúo”, que significa “interpreto, traduzo”. Os dois significados dessa palavra estão
relacionados porque, em certo sentido, toda tradução é uma interpretação e vice-versa.
Assim, pela hermenêutica objetiva-se a interpretação do texto, buscando-se a clareza
da comunicação de sua mensagem. Em outros termos, mas com o mesmo significado,
pela hermenêutica busca-se traduzir um texto, ainda que não seja necessário verter
o conteúdo que foi escrito de um idioma para outro.
Nesse sentido, traduz-se a mensagem de determinado texto para as pessoas que não
teriam condições de compreendê-la sem que passasse por um processo de releitura
e explicação, que é sinônimo de interpretação, portanto também de hermenêutica.
Em suma, de acordo com essas explicações, hermenêutica é sinônimo de
interpretação, por isso pode ser definida como arte ou teoria e treino de interpretação.
Para oferecer uma formulação mais técnica, podemos parafrasear o que Paul Ricoeur
afirmou sobre o assunto. O estudioso explicou que hermenêutica é: “a teoria das
operações de compreensão em sua relação com a interpretação dos textos” (2006,
p.100).
A hermenêutica surgiu primeiro entre os teólogos que queriam interpretar o texto
bíblico para entender o seu sentido profundo, mas ao longo dos séculos passou a
existir hermenêutica filosófica, hermenêutica jurídica e outros tipos de hermenêutica,
que representam a aplicação de procedimentos interpretativos em diversos tipos de
textos.
O já mencionado teólogo do Mundo Antigo Orígenes de Alexandria, além de ter
realizado procedimentos exegéticos/filológicos, também foi um dos grandes intérpretes
da Bíblia de todas as épocas. Em sua busca por uma compreensão aprofundada das
escrituras, ele distinguia três leituras da Bíblia: o literal, o moral e o espiritual.
O modelo de leitura da Bíblia de Orígenes não é um modelo para nós hoje em dia,
mas é importante porque mostra que desde a Antiguidade já se buscava o sentido
aprofundado das escrituras, buscava-se aquilo que não é evidente. Na Idade Média,
o pontapé inicial dado por Orígenes para a prática de uma leitura aprofundada das
escrituras sagradas foi ampliado, pois aos três níveis de leitura que já existiam foi
acrescentado o escatológico.
A ideia de Orígenes era a de que todo texto bíblico pode ser lido, pelo menos, de
três maneiras diferentes. Na Idade Média acrescentou-se mais um modo de leitura,
mas, de qualquer forma, compreendia-se que a Bíblia tinha uma narrativa externa que
era compreendida por qualquer um, por ser literal, mas tinha também uma exortação
moral, um apelo que deveria ser atendido e um sentido espiritual que só poderia
ser entendido pelos cristãos que não leriam a Bíblia como um livro ordinário, esses
eram iniciados num conhecimento específico. Na Idade Média também se diria que
todo texto é escatológico porque aponta as coisas últimas [greg. escháton] que estão
relacionadas com a morte e o Juízo Final.
Para essa perspectiva da hermenêutica, os sentidos da escritura não estão escondidos
dentro do texto e precisam ser extraídos como se mencionou ser o caso da busca
que se faz por meio da exegese. Isso ocorre porque a exegese extrai-se a mensagem
porque no meio de um texto antigo, escrito em outra língua e vindo de um mundo
com outra cosmovisão, o conteúdo fundamental poderia ser ignorado por causa da
incapacidade de compreender o material textual. Diferente disso, a hermenêutica busca
potencializar a mensagem à que se chegou por meio da exegese.
Diz-se ‘potencializar a mensagem’ porque não há uma única interpretação, mas
múltiplas possíveis. Pela interpretação a mensagem do texto bíblico pode ser
diferentemente aplicada. A mensagem precisa chegar a contextos da vida real que
se renovam a cada momento, apesar desses não fazerem parte do ‘mundo do texto’,
como dissemos.
Não há interpretação certa nem errada, apesar de existir “limites para a interpretação”,
como afirmou o intelectual Umberto Eco (2010). O que há são intepretações plausíveis
e implausíveis. Plausível é aquilo que pode ser verdadeiro, embora não se tenha como
provar sua veracidade. De acordo com essa ideia a interpretação se move dentro de
um campo de confiabilidade e não de um rigoroso critério de certo e errado.
Há leituras de um determinado texto que correspondem a interpretações mais
afastadas do conteúdo de um determinado texto bíblico, mas desde que não extrapole
certos limites, essa leitura é considerada plausível. Chama-se conjectura o tipo de
conclusão a que se chega a partir de uma possibilidade vaga que é dada pelo texto.
Essa leitura pode ser tão reveladora quanto às novidades que apresenta, mas o nível
de confiança que essas informações oferecem é muito frágil.
Por outro lado, há leituras cujas interpretações estão muito próximas do conteúdo
do texto bíblico, são comentários que parafraseiam aquilo que está escrito e por
isso revelam pouquíssimo que não seja evidente pela própria leitura. Como há pouca
novidade revelada, o nível de confiabilidade é alto.
De acordo com tudo isso que estamos aprendendo, como procedimento de estudo, a
hermenêutica nasceu da interpretação do texto sagrado, do desejo de sua compreensão
apurada, e a partir daí se desenvolveu progressivamente de múltiplas formas, as quais
passaram a estar relacionadas com as diversas áreas do saber, de modo que expandiu
as fronteiras da Teologia para ser recebida também pela Filosofia, pelo Direito, pela
Psicanálise e eventualmente por outras áreas das ciências humanas. Aqui no nosso
estudo vamos ficar só com a hermenêutica bíblica, e mencionar em um momento e
outro a fermenêutica filosófica. Estamos mencionando a abrangência da expansão
da hermenêutica apenas para destacar sua valorização fora do domínio da Teologia.
Retomando o assunto da potencialidade das interpretações, devemos saber que a
hermenêutica estabelece regras e critérios (embora não sejam rígidos) para uma leitura
coerente das escrituras, como dissemos, para o desenvolvimento de interpretações
plausíveis. Isso é uma necessidade importantíssima para todo aquele que quer se
aprofundar no conhecimento bíblico. A respeito disso, lemos o seguinte:
De acordo com esse excerto, a Bíblia, o livro sagrado dos cristãos, precisa ser
interpretada porque as diferentes compreensões que se têm a respeito de seu
conteúdo e de sua mensagem levam à divisão dos cristãos e, o que é mais grave,
sem procedimentos de interpretação, a Bíblia pode servir para abusar e manipular
outras pessoas, fazendo delas objetos de seu domínio, por isso é necessário que se
reivindique uma hermenêutica que aponte para uma interpretação plausível da Bíblia.
Para apontar mais um de seus significados, a palavra plausível pode ser entendida
como “aceitável” ou “razoável”, isto é, existem muitas interpretações possíveis do texto
bíblico, e não apenas uma forma de interpretar que seja indiscutivelmente a única
verdadeira. Apesar disso, há limites para as interpretações, e esses limites são indicados
pelos resultados que se pode chegar pela aplicação dos procedimentos hermenêuticos.
Desde o Mundo Antigo os judeus e cristãos praticam a hermenêutica, isto é, desde
muito tempo eles interpretam seus textos sagrados para compreender os sentidos que
estão contidos nele e para atualizar sua mensagem para que seu uso fizesse sentido
em renovados contextos histórico-sociais e culturais, mesmo que não fossem mais
os contextos dos autores originais.
Mencionamos mais de uma vez o nome de Orígenes, teólogo cristão do Mundo
Antigo, agora acrescentamos o nome do teólogo (se preferir pode chama-lo também
de filósofo) judeu Filon de Alexandria (25 a.C-45 d.C.) que interpretou o conteúdo do
Antigo Testamento de acordo com a filosofia grega, com a intenção de mostrar aos
intelectuais de mentalidade grega de sua época que o judaísmo era uma religião
razoável, na verdade, de acordo com a expressão de seu pensamento, o judaísmo era
intelectualmente a mais elevada das religiões.
Para conseguir explicar que o judaísmo era tão elevado quanto o pensamento
filosófico dos gregos, Filon interpretava muitas passagens da Bíblia como se fossem
alegoria, isso é, passagens cujas ocorrências históricas são menos importantes do
que o sentido espiritual para o qual elas apontam. Como Filon precedeu Orígenes e
ambos habitaram a mesma cidade, que outrora foi centro filosófico do Mundo Antigo,
é certo que Orígenes foi influenciado por Fílon.
Trataremos de mais teólogos como esses, que interpretaram as escrituras de modo
renovador ao longo de nossas aulas, no momento, apenas queremos apontar que, por
um lado, a interpretação dos textos sagrados renova seus sentidos de modo plausível,
permitindo a Filon e Orígenes apontar para a razoabilidade do conteúdo da Bíblia a
partir da leitura alegórica; por outro lado, o procedimento exegético também impede que
sejam realizadas afirmações absurdas a partir da mensagem de um determinado texto
bíblico. Isso significa – repetimos mais uma vez – que são múltiplas as interpretações
possíveis, mas há certos limites, conforme já dissemos.
3. Exegese e hermenêutica
Conclusão
CAPÍTULO 2
HERMENÊUTICA BÍBLICA: ARTE
E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO
Introdução
“A Palavra de Deus se renova a cada manhã” – Você já deve ter ouvido essa frase,
não é verdade?
Bem, essa afirmação é uma conclusão retirada do texto de Lamentações 3.23, no
caso, não é bem isso que o versículo quer dizer, pois em vez falar da Palavra de Deus,
o texto fala da “benignidade” de Deus. No entanto, o que interessa é que, em certo
sentido, podemos, sim, afirmar que a Palavra de Deus se renova, pois as múltiplas
interpretações do texto sagrado renovam nossas compreensões sobre ele, por isso
nesta unidade trataremos da hermenêutica como arte e técnica da interpretação.
- Você conhece a história da interpretação do texto bíblico?
- Já ouviu dizer que a hermenêutica nasce da Teologia Bíblica e invade as outras
áreas das humanidades?
- Você sabia que existem técnicas de interpretação para o texto bíblico, mas que
uma boa hermenêutica também exige postura ética diante das Escrituras Sagradas?
Para discutir essas e outras questões sobre a interpretação do texto bíblico e sua
história é que dedicamos nossa presente aula.
1. Significado de hermenêutica
Desde a época dos Pais da Igreja (a essa altura você já sabe que essa denominação
é dada aos primeiros teólogos cristãos ortodoxos que viveram entre o século I e V e
interpretaram a fé cristã a partir da filosofia grega), a hermenêutica era um procedimento
fundamental para se interpretar a Bíblia. Na verdade, os cristãos não foram os primeiros
que a utilizaram.
Temos a informação de que um judeu helenizado chamado Fílon de Alexandria
(Alexandria, 15 a.C. – Alexandria, 45 d.C) já tinha desenvolvido um procedimento de
interpretação bíblica – neste caso, do Antigo Testamento – que tinha a intenção
de explicar os textos a partir da filosofia grega para que a religião dos judeus fosse
respeitada também pelos gentios – ou seja, os não judeus – que faziam parte da
elite intelectual do grande centro intelectual que era a cidade egípcia, construída ao
estilo grego, chamada Alexandria – onde o próprio Fílon nascera e passara a sua
vida inteira atuando como mestre de filosofia e religião judaica – já que lá havia uma
grande colônia de judeus da diáspora (assim chamamos os judeus que viviam em
colônias fora do território da Palestina).
Alexandria foi considerada a capital intelectual do mundo Greco-Romano nos
primeiros séculos da era cristã. Tratava-se de uma pólis, ou seja, uma cidade construída
ao estilo das cidades gregas e que por isso possuía edifícios e instituições da cultura
grega, como o hipódromo, o teatro, a ágora, etc. Desenvolver-se-ia ali também a famosa
Biblioteca de Alexandria, um grande centro intelectual da época.
Fílon que nasceu nesta cidade, mesmo sendo de linhagem judaica, era admirador da
cultura e da filosofia gregas. Seu propósito era manter a reputação das duas culturas
ao mesmo tempo, tanto a de seus descendentes judeus; quanto a helenística (grega),
uma vez que o helenismo, que é o modo de pensar e o estilo de vida dos gregos,
dominava todos os ambientes ilustrados do Mediterrâneo naquela época.
Como intelectual, Filon acabava enfrentando ataques dos dois lados, pois os judeus
entendiam que todos os outros povos eram idólatras, porque não cultuavam ao Deus
único que havia se revelado a Moisés no deserto, segundo suas próprias tradições;
por seu turno, os gregos se gabavam de ter inventado a filosofia e desprezavam a
ignorância de todos os outros povos e sobremodo dos judeus, que eram considerados
ateus porque em sua religião não havia imagem de Deus.
Para apaziguar ambos os lados, Fílon desenvolveu uma proposta de interpretação
alegórica das escrituras, de acordo com a qual, as narrativas bíblicas são alegorias a
serem interpretadas filosoficamente. Assim, o que interessa nos textos bíblicos não é
a literalidade de seu conteúdo, mas sim o sentido oculto que apenas os leitores com
1
Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram
todos debaixo da nuvem, e todos passaram pelo mar. 2E todos foram
batizados em Moisés, na nuvem e no mar, 3E todos comeram de
uma mesma comida espiritual, 4E beberam todos de uma mesma
bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e
a pedra era Cristo. 5Mas Deus não se agradou da maior parte deles,
por isso foram prostrados no deserto. 6E estas coisas foram-nos
feitas em figura [typoi], para que não cobicemos as coisas más,
como eles cobiçaram. 7Não vos façais, pois, idólatras, como alguns
deles, conforme está escrito: O povo assentou-se a comer e a beber,
e levantou-se para folgar. 8E não nos forniquemos, como alguns deles
fizeram; e caíram num dia vinte e três mil. 9E não tentemos a Cristo,
como alguns deles também tentaram, e pereceram pelas serpentes.
10
E não murmureis, como também alguns deles murmuraram, e
pereceram pelo destruidor. 11Ora, tudo isto lhes sobreveio como
figuras [typikōs], e estão escritas para aviso nosso, para quem já
são chegados os fins dos séculos. 12Aquele, pois, que cuida estar
em pé, olhe não caia. 13Não veio sobre vós tentação, senão humana;
mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar acima do que podeis,
antes com a tentação dará também o escape, para que a possais
suportar. (I Co 10.1-13)
é sombra do que viria acontecer no Novo Testamento, como alude: a passagem por
baixo da nuvem e pelo mar são figuras (em certo sentido são “alegorias”) do batismo,
o maná é figura do pão comido na eucaristia, a água vertida da pedra é figura do vinho
tomado na eucaristia, a pedra ferida para saciar a sede do povo de Israel é o próprio
Cristo que foi ferido para oferecer perdão dos pecados ao povo que viria a ser a Igreja.
Vejamos agora uma profecia real do profeta Isaías, da qual parte para realizar uma
interpretação, que está disposta logo a seguir.
1
Canta alegremente, ó estéril, que não deste à luz; rompe em cântico,
e exclama com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais
são os filhos da mulher solitária, do que os filhos da casada, diz o
Senhor (Is 54.1).
21
Dizei-me, os que quereis estar debaixo da lei, não ouvis vós a lei?
22
Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava,
e outro da livre. 23Todavia, o que era da escrava nasceu segundo a
carne, mas, o que era da livre, por promessa. 24O que se entende por
alegoria [alēgoroumena]; porque estas são as duas alianças; uma, do
monte Sinai, gerando filhos para a servidão, que é Agar. 25Ora, esta
Agar é Sinai, um monte da Arábia, que corresponde à Jerusalém que
agora existe, pois é escrava com seus filhos.
26
Mas a Jerusalém que é de cima é livre; a qual é mãe de todos nós.
27
Porque está escrito: Alegra-te, estéril, que não dás à luz; Esforça-te
e clama, tu que não estás de parto; Porque os filhos da solitária são
mais do que os da que tem marido. 28Mas nós, irmãos, somos filhos
da promessa como Isaque. 29Mas, como então aquele que era gerado
segundo a carne perseguia o que o era segundo o Espírito, assim é
também agora. 30Mas que diz a Escritura? Lança fora a escrava e seu
filho, porque de modo algum o filho da escrava herdará com o filho
da livre. 31De maneira que, irmãos, somos filhos, não da escrava, mas
da livre. (Gl 4.21-31)
No esquema interpretativo utilizado por Fílon, Paulo e os Pais da Igreja, o texto possui
dois pólos, o primeiro é chamado “figura” e o “segundo” é chamado “consumação”. A
ideia é que a figura é uma referência a algo que acontecerá no futuro, assim, o evento
que acontece naquela narrativa é de pouca importância, o que interessa mesmo é o
evento indicado por ele, que acontecerá no futuro.
Temos nos dois pólos, ou seja, em ambas as passagens – isto é, na figura e na
consumação – eventos históricos, nenhum dos dois eventos é compreendido como
4. Renascimento
A situação mudaria de modo mais significativo a partir do século XV, com o
Renascimento. Nessa época a Igreja Católica Romana possuía uma absoluta hegemonia
sobre todos os aspectos da vida da sociedade de então, mas é óbvio que em muitos
momentos essa hegemonia foi conquistada com imposição violenta ou falaciosa.
Um desses casos era o documento falsificado que a Igreja Católica apresentava para
legitimar suas posses em Bizâncio. Segundo esse documento, o Imperador Constantino
(272 d.C. – 337 d.C.), antes de sua morte, redigiu um testamento, por meio do qual, ele
doava suas terras à Igreja Católica. No século XV, os estudos humanísticos começaram
a ser estimulados na Itália, assim voltaram a estudar as línguas antigas, como grego
e hebraico e se desenvolveu a filologia, uma ciência que estudava os textos e os
relacionava com a época em que foram escritos. Foi então que o humanista Lorenzo
Valla (1407 – 1457), dotado dos conhecimentos mencionados, conseguiu provar que
aquele documento era falso, pois a situação construída no texto era anacrônica, isto
é, apontou que seria impossível que aquele testamento tivesse sido produzido naquela
época em que o Imperador Constantino viveu. Não apenas isso, mas outros indícios
materiais, como o suporte do texto escrito, a caligrafia e o idioma e o estado de
preservação do documento provaram que aquilo só podia se tratar de uma falsificação.
Esse episódio tem importância indireta no que diz respeito à leitura da Bíblia, no
entanto, mostra que culturalmente o mundo estava mudando com o advento da nova
época e graças à ciência filológica, não seriam mais aceito com tanta facilidade qualquer
embuste.
Na esteira desse novo momento, Erasmo de Roterdã (1466 – 1536) destacou-se
como grande humanista, responsável por criar uma edição crítica da Bíblia Grega
(Novo Testamento). Sua realização foi notável, porque ele buscou os manuscritos
gregos do Novo Testamento que estavam disponíveis e os colecionou em um livro.
As diferenças existentes entre os manuscritos eram indicadas em nota de rodapé.
Foi a edição elaborada por Erasmo que possibilitou a Lutero a tradução do Novo
Testamento grego para o vernáculo – no caso, para a língua alemã –, pois antes
do feito de Erasmo não havia um Novo Testamento completo em língua grega e os
leitores – na época clérigos – estavam simplesmente impossibilitados de ler o Novo
Testamento em sua língua original, e isso mudava significativamente as interpretações
possíveis dos textos sagrados.
Assim, podemos dizer que as reflexões desenvolvidas na época da reforma
protestante são frutos do Renascimento, pois foi nessa época que surgiu a ênfase
na importância de retornar à leitura de fontes do mundo antigo nos idiomas originais
e, a partir desse pressuposto, entende-se também que a Bíblia deve ser interpretada
por si mesma, não pela tradição eclesiástica.
Esse foi o pontapé inicial para que surgisse uma hermenêutica protestante, a partir
de Martinho Lutero (1483 – 1546) e João Calvino (1509 – 1564). Por um lado, os
reformadores têm métodos de interpretação semelhantes, porque criticam e se opõem
à leitura alegórica das Escrituras e, para substituí-la, em seu lugar colocam a ênfase da
leitura literal dos eventos bíblicos e a importância destes para a história da salvação.
Por outro lado, cada um dos reformadores tem sua determinada leitura característica
das escrituras. Para Lutero “Cristo é o centro interpretativo das escrituras”, e Cristo
é a graça que se contrapõe à Lei, portanto, em sua teologia, o Antigo Testamento é
contraposto ao Novo, como judaísmo ao cristianismo, as obras à fé, a glória à cruz;
por isso Lutero afirmou que no centro do cânon cristão está a Carta aos Romanos,
enquanto Tiago é uma “carta de palha”, porque fala de obras e não da fé. Por sua vez,
para Calvino: “A soberania de Deus” é o núcleo para a interpretação das escrituras, pois
sua ênfase está no domínio que Deus tem da História e em sua ação de justificação
dos eleitos e punição dos ímpios, uma visão um tanto legalista da fé, como é de se
esperar, já que Calvino se formou em Direito e não em Teologia.
A interpretação das Escrituras realizada pelos reformadores levou gradativamente
ao surgimento da metodologia da exegese histórico-crítico, mas antes que chegasse
o século XVIII, o célebre humanista e reformador Filipe Melanchton (1497 – 1560)
permitiu que os protestantes de sua época voltassem a ler a Bíblia dogmaticamente.
Dizem inclusive que Melanchton foi responsável pelo surgimento de uma escolástica
protestante, ou seja, foi responsável por encorajar o tipo de leitura da Bíblia que fora
contestado por seus antecessores reformadores protestantes, e assim os ensinamentos
de Lutero e Calvino se solidificam como dogmas através das confissões de fé e dos
catecismos que foram elaborados no século XVII. O que não era o objetivo de Lutero
nem de Calvino, uma vez que estiveram mais atrelados à interpretação da Bíblia do
que à dogmática.
A consequência da hermenêutica bíblica produzida pelos protestantes foi a resposta
católica, dada pelo movimento chamado Contra-Reforma. No Concílio de Trento (1545-
1563) reafirmou-se, em oposição às exigências protestantes no que diz respeito à
Bíblia, que o método oficial de leitura da Bíblia é o alegorizante, a essa altura chamado
de Quadriga; reafirmou-se também que a Vulgata Latina é a única versão oficial das
escrituras; que o latim é o idioma oficial da igreja, por isso a Bíblia não deve ser traduzida;
e que o Papa, o magistério e a tradição são autoridades ao lado das escrituras.
protestante Dietrich Bonhoeffer (1906 – 1945), que morreu aos trinta e seis anos de
idade nas mãos dos nazistas, podemos falar de “teologia secular”, que se trata de uma
reflexão teológica que está preparada para enfrentar as novas condições da sociedade
contemporânea sem negar sua fé nem os postulados científicos.
As respostas à hermenêutica desenvolvida nessa época – início do século XX – são
os movimentos antitéticos: por um lado, o “liberalismo”, que aceita como positivos
todos os avanços da ciência e critica a própria tradição cristã; por outro lado, o
“fundamentalismo”, que nega a ciência quando entra em atrito com a fé – mesmo os
postulados científicos que já foram demonstrados – e continua afirmando a literalidade
de textos por mais implausíveis que sejam, o que é inconcebível a qualquer que recebeu
educação depois do século XVIII. A proposta de Bonhoeffer ficou restrita aos teólogos
protestantes.
O liberalismo propriamente dito foi um movimento que durou apenas um período
curto da história, pois devido às crises proporcionadas pelas duas Grandes Guerras, o
otimismo que se tinha pela ciência fez o movimento sucumbir, uma vez que a ciência
foi utilizada nos confrontos bélicos para destruição de vidas humanas. Além disso,
foi desmentido o otimismo com o qual os liberais descreviam o ser humano, que era
entendido como naturalmente bom e dotado da capacidade de desenvolvimento ético.
No que diz respeito aos, fundamentalistas, a existência desse movimento
permanece até hoje, como bem sabemos por exemplos em nossa sociedade. Existem
fundamentalistas protestantes, católicos e judeus – eventualmente em outras religiões
também, como no islamismo, mas disso não vamos tratar agora. Apesar de algumas
particularidades, os diferentes grupos fundamentalistas se assemelham na maior
parte do conteúdo de seu pensamento e de sua postura na sociedade contemporânea.
Os fundamentalistas afirmam enfaticamente que a Bíblia é infalível, suficiente e
inerrante, sendo suas histórias consideradas factuais, rejeitam qualquer outra forma de
Revelação (inspiração individual, magistério eclesiástico, profecias modernas, teologia
natural), afirmam que o livro sagrado deve ser interpretado literalmente, salvo nas partes
visivelmente conotativas. No entanto, eles ignoram que todas essas afirmativas com
essas determinadas ênfases surgiram apenas no século XIX e XX, pois antes disso
não eram pressupostas por nenhum cristão nesses termos descritos.
Segundo o argumento deles, Jesus Cristo nasceu virginalmente, é plenamente
divino, seus milagres ocorreram historicamente e sua ressurreição e seu retorno
apocalíptico devem ser encarados como eventos concretos que respectivamente
de modo diferente e a falta de consciência que também as suas certezas são frágeis
porque se aprumam em elementos de fé desenvolvidos no século XIX.
Desde essa época e do surgimento da polaridade existente entre fundamentalistas
e liberais, a difícil tarefa que devemos realizar é nos colocar entre esses extremos,
sem negar as colunas basilares da fé cristã e assim perder nossa piedade em troca
de postulados científicos como foi o caso dos liberais, ao mesmo tempo, sem deixar
nos tornarmos fanáticos religiosos como os fundamentalistas. Talvez uma atualização
possível seja o desenvolvimento e atualização de uma teologia secular, como a de
Bonhoeffer.
ANOTE ISSO
O célebre teólogo Rudolf Bultmann (1884-1976) afirmou que toda leitura bíblica é
dotada de pressupostos.
6. A hermenêutica de Schleiermacher
Tendo tratado de alguns importantes momentos de interpretação da Bíblia na história,
podemos agora divagar e retornar um pouco atrás cronologicamente para apresentar
algumas das ideias do estudioso que ficou conhecido como o pai da hermenêutica
moderna, Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (Breslau, 1768 — Berlim, 1834).
A ideia é que toda comunicação manifesta uma estranheza que faz necessária a
interpretação, não apenas os textos sagrados e os tratados científicos que só podem ser
compreendidos por iniciados, mas também a conversa fiada necessita de hermenêutica
O objetivo de compreender um autor melhor do que ele próprio poderia dar conta
de si é proposta por Schleiermacher porque a referida estranheza não é um acidente
no percurso da comunicação, mas é constituinte dela, algo que fica mais evidente
em determinados gêneros como a poesia, mas não é uma característica exclusiva
sua, pois segundo essa teoria o “mal-entendido” é universal na comunicação humana.
Assim, a hermenêutica deve ser realizada dialeticamente, isto é, através de um diálogo
entre o intérprete e o autor da obra interpretada. Os elementos a serem analisados
devem ser compreendidos primeiro particularmente, depois universalmente, para
que se construa um postulado sobre esse terminado elemento textual é necessário
idas e vindas em diálogo com ele. É como se intérprete agisse primeiro por intuição,
tentando compreender os elementos do texto por advinhação – daí o nome: método
divinatório – e, depois dessa primeira leitura, comparasse o mesmo elemento textual
com outros textos – método comparativo. No método comparativo estão inclusos os
procedimentos de análise psicológica do autor e de análise filológica-sintática, isto é,
análise linguística propriamente dita.
Mais importante do que seguir estritamente a metodologia proposta por
Schleiermacher, é compreender que sua obra propõe que nas ciências humanas são
plausíveis diferentes interpretações sobre um mesmo objeto, de modo diferente das
análises feitas em ciências exatas, as quais sempre chegam exatamente aos mesmos
resultados. Esta obra é uma crítica a validade da pretensa objetividade científica no
que diz respeito às ciências do espírito.
O saber humanístico é intuitivo e por isso é também relativo. Aquele indivíduo que
se põe a interpretar, na verdade, é ele próprio interpretado pelo objeto sobre o qual se
debruça, pois as experiências e idiossincrasias pessoais – chamadas em seu conjunto
de subjetividade – influenciam inevitável e irreversivelmente no resultado final da
Conclusão
Nesta etapa de nosso aprendizado sobre hermenêutica, passamos pelo seu significado
a partir da etimologia da palavra, depois pela definição popular e em seguida entramos
em discussões mais específicas sobre a história da hermenêutica como uma área do
saber teológico que desenvolveu e se tornou útil também para outras áreas do saber.
Mantivemo-nos tratando exclusivamente da hermenêutica bíblica, embora saibamos
que há ricas pesquisas de hermenêutica teológica, que tem uma teoria a parte que
é mais abrangente. Nosso objetivo foi apresentar a hermenêutica como ferramenta
para interpretação do texto sagrado e para que não fossemos extremamente teóricos,
fornecemos exemplos de interpretações aplicados ao texto bíblico.
Seguimos o roteiro de Schleiermacher, o qual é considerado pai da hermenêutica
moderna. Como o subtítulo de sua obra sugere, a hermenêutica é tanto uma arte quanto
uma técnica, desta forma exige do intérprete, ao mesmo tempo, responsabilidade ética
e conhecimentos técnicos específicos. Nem uma nem outra etapa da interpretação
pode ser menosprezada para a boa realização do exercício hermenêutico.
CAPÍTULO 3
HERMENÊUTICA
COMO DESAFIO ÉTICO
Introdução
1. Exercícios hermenêuticos
Para você ter uma ideia do que é o pressuposto, do qual estamos falando, podemos
dar alguns exemplos do que estamos falando, quando mencionamos a subjetividade.
E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim,
e disse: Alcancei do SENHOR um homem. E deu à luz mais a seu
irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra.
E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma
oferta ao Senhor. E Abel também trouxe dos primogênitos das suas
ovelhas, e da sua gordura; e atentou o Senhor para Abel e para a
sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-
se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o Senhor disse
a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se
bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem,
o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele
deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que,
estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e
o matou. E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele
disse: Não sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que
fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E
agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber
da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te
dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então
disse Caim ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa
ser perdoada. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face
me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo
aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto
qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor
um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse.
E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de
Node, do lado oriental do Éden. E conheceu Caim a sua mulher, e
ela concebeu, e deu à luz a Enoque; e ele edificou uma cidade, e
chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho Enoque;
E a Enoque nasceu Irade, e Irade gerou a Meujael, e Meujael gerou
a Metusael e Metusael gerou a Lameque. E tomou Lameque para si
duas mulheres; o nome de uma era Ada, e o nome da outra, Zilá. E
Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e têm
gado. E o nome do seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que
tocam harpa e órgão. E Zilá também deu à luz a Tubalcaim, mestre
de toda a obra de cobre e ferro; e a irmã de Tubalcaim foi Noema.
E disse Lameque a suas mulheres Ada e Zilá: Ouvi a minha voz; vós,
mulheres de Lameque, escutai as minhas palavras; porque eu matei
um homem por me ferir, e um jovem por me pisar. Porque sete vezes
Caim será castigado; mas Lameque setenta vezes sete. E tornou
Adão a conhecer a sua mulher; e ela deu à luz um filho, e chamou o
seu nome Sete; porque, disse ela, Deus me deu outro filho em lugar
de Abel; porquanto Caim o matou. E a Sete também nasceu um filho;
e chamou o seu nome Enos; então se começou a invocar o nome do
Senhor.
No entanto, esse texto não é “história”, é mito, por isso seu significado não se submete
à interpretação racional, mas sim ao simbolismo. A narrativa de Gênesis 4 é didática
para os leitores de todas as pépocas, pretende mostrar que todo homicídio é na
verdade um fratricídio porque todos os seres humanos são irmãos e que todo aquele
que comete assassinato recebe o peso da culpa de seu erro, que é como se fosse
uma marca física. De tão grave que é esse erro, aquele que o comete deixa de ser
uma pessoa sociável, mas fica marcada para que ninguém mais se depare com ele
e torne-se outra vítima de sua crueldade.
Apesar de muito rudimentar, essa interpretação do versículo 15 é coerente. No
entanto, no século XIX, nos Estados Unidos, nos estados do sul, uma sociedade racista
que mantinha segregados os negros, que haviam deixado de ser escravos havia pouco
tempo, esse texto foi interpretado com base no racismo que dominava o pensamento
dos pastores brancos da época. Segundo uma hermenêutica da época, a marca recebida
por Caim era a cor negra. Assim, os pastores racistas ensinavam que ser negro era
uma maldição dada por Deus e que a escravidão e a posterior segregação eram parte
da punição imposta por Deus aos descendentes de Caim que carregavam a culpa de
seu ancestral. Isso legitimava a condição que os negros viviam naquela sociedade.
A condição de inferioridade do negro era um pressuposto da sociedade estadunidense
daquele determinado contexto, que vivia sobre aquela determinada condição. Não pode
deixar de ser considerado um pressuposto racista, por tanto mentiroso, pernicioso e
contrário à própria Palavra de Deus. Qualquer pressuposto deste tipo deve ser excluído
das interpretações bíblicas contemporâneas. Talvez essa história seja, considerada muito
forte para os leitores de nosso mundo contemporâneo, mas há muitos pressupostos
como esses que estão nas interpretações bíblicas por aí a fora.
texto bíblico ao ser proclamado é Palavra de Deus revelada, portanto, não pode ser
preconceituosa.
como o messias prometido por Deus por intermédio dos profetas do Antigo Testamento
não é a leitura exegética, mas sim a fé que temos nele e “fé” não é assunto técnico,
é um sentimento intimo de confiança e compromisso produzido pelo Espírito Santo.
Vejamos como três teólogos de três contextos e épocas diferentes interpretaram
a parábola do bom samaritano. Primeiro leremos o texto (Lc 10:25-37), depois as
interpretações
Esse posicionamento ético diante do texto bíblico não significa, de modo algum,
isenção da metologia técnica para realização dos procedimentos exegéticos, pois
esta também é uma etapa importante da interpretação que já fora pressupsosta por
Schleiermacher.
Seguindo esses procedimentos, tanto o subjetivo, ético e interpretativo (método
divinatório), quanto o técnico, exegético, filológico-sintático (método comparativo),
far-nos-emos dignos da ministração do texto sagrado, como indivíduos engajados
nos valores do Reino de Deus e tecnicamente preparados.
Será que já aconteceu com você de realizar uma leitura bíblica e assimilar nessa
leitura um conteúdo que não está presente no texto só porque você foi ensinado
desse jeito?
Vou dar dois exemplos:
1. De acordo com Gálatas 2.16, a salvação não é dada pela prática de obras?
Correto? Confira o texto na Bíblia antes de continuar a leitura e responda para si
mesmo se essa afirmação está certa ou errada.
Pronto? Já leu o texto? Concordou com a afirmação?
Se você concordou, sua leitura foi conduzida por uma afirmação equivocada, pois
o texto não diz que a salvação não é dada pela prática de obras, mas sim, que
a salvação não é dada pela prática de “obras da Lei”. Veja o texto novamente. A
omissão dessas duas palavras significa muito para a compreensão do texto, pois
dizer que um a salvação é dada pelas obras da Lei, significa que o legalismo não
pode salvar ninguém, mas não significa que as boas obras, aliadas a fé – é óbvio –
não salvam as pessoas do pecado.
Para que não sejam cometidos abusos por parte daqueles que interpretam as
escrituras, no que diz respeito à imposição de pressupostos ilegítimos, a hermenêutica
bíblica é combinada com a metodologia da exegese-histórico-crítica. Ao longo de nossas
aulas vamos entender cada um dos procedimentos fundamentais da exegese bíblica
e vamos também fazer exercícios práticos de interpretação, mas nesse momento
vamos apenas apresentar alguns relatos sobre o surgimento da metodologia.
Nessa citação, o padre erudito afirma que o método de análise das escrituras em
vigência em sua igreja, conhecido como metodologia da exegese histórico-crítica, é
semelhante ao que foi utilizado pelos chamados Pais da Igreja (primeiros intérpretes
cristãos das escrituras a serem autorizados pela igreja institucionalizada) desde os
tempos primordiais do cristianismo. Mesmo tendo consciência de muitas mudanças
ocorridas ao longo dos séculos, compreende que permanece em vigência o uso do
mesmo método de interpretar as escrituras, o qual foi evoluindo com o passar do
tempo, mas sem perder sua essência, mantendo alguma continuidade com a antiga
tradição católica.
Por outro lado, o teólogo luterano Udo Schnelle entende que a metodologia da
exegese histórico-crítica se origina em outro momento e de outra maneira:
Observamos nas palavras sublinhadas que o magistério da Igreja Católica não abriu
mão de afirmar que “a Bíblia é a Palavra de Deus”. É importante observar que “Palavra”,
iniciada com letra maiúscula, traz a importância teológica que a compara com Jesus
Cristo, pois, a leitura dogmática dos próprios textos da Bíblia indica que Jesus é a
“Palavra de Deus” (Jo 1.1); e também permite notar que não há referência interna na
Bíblia que considere que um livro (nesse caso, a própria Bíblia) seja a Palavra de Deus.
Livre de anacronismos é fácil compreender que a Bíblia não foi considerada Palavra
de Deus pelos primeiros cristãos, pois os autores dos livros bíblicos não tinham
consciência de que estavam redigindo um texto que posteriormente seria considerado
‘o livro sagrado dos cristãos’. Os textos bíblicos não afirmam nada a respeito de em
seu próprio conteúdo, não afirmam a medida dos livros inspirados por Deus (cânon),
não há nada escrito neles sobre si mesmos, não indicam com clareza o que pensam
sobre os outros livros que entrariam no conteúdo que comporia a Bíblia. Coube à
Igreja Cristã delimitar quais são os livros canônicos e afirmar como esses livros se
organizam e como são inspirados.
Conclusão
Nessa aula, aprendemos que há uma metodologia de pesquisa do texto bíblico que
é amplamente aceita entre católicos e protestantes e esses procedimentos de estudo
permitiram que a análise da Bíblia se tornasse científica, a partir de procedimentos
filológicos e históricos, mesmo que para isso seja necessário suspender certas
afirmações dogmáticas.
A utilização da metodologia da exegese histórico-crítica é realizada em combinação
com os procedimentos hermenêuticos para que o intérprete não cometa abusos
interpretativos quando se coloca a refletir sobre o texto sagrado. A exegese permite
ao estudioso entender o que é mensagem do texto sagrado e o que foi relacionado a
esse texto pela cultura humana ao longo da história. Uma vez que tenha condição de
fazer essa distinção, o estudioso da Bíblia terá condições de proclamar a mensagem
da Bíblia.
Os procedimentos da metodologia da exegese histórico-crítica serão apresentados
na sequência das aulas. Dedicaremos cada aula a um procedimento ou a um assunto
relacionado com a exegese. Entremeado na apresentação desses procedimentos estão
as práticas interpretativas para que você entenda na prática como interpretar e analisar
a Bíblia a partir das ferramentas oferecidas pela hermenêutica e pela exegese.
CAPÍTULO 4
CONHEÇA AS
ESCRITURAS SAGRADAS
Introdução
A Bíblia é um livro cujos textos ora relatam acontecimentos ora refletem pensamentos
ora reproduzem poesia e sabedoria antigas, mas em qualquer dos casos as expressões
que dela emanam sempre estão relacionadas com a cosmovisão do Mundo Antigo e o
ambiente histórico-social das nações que se localizavam nos arredores do Mediterrâneo
naquela época.
Uma vez que sabemos que há um grande abismo entre a pessoa que lê o texto
bíblico hoje e o mundo em que os textos bíblicos foram escritos, tomamos consciência
de que é um grande desafio analisar e interpretar a Bíblia para transmitir a mensagem
que ela contém às nossas audiências contemporâneas.
Não podemos ignorar que a história da produção e da transmissão dos textos bíblicos,
primeiro como obras individuais e depois como obra que surge a partir de manuscritos
colecionados que passaram a integrar o mesmo volume, é cronologicamente longa
e editorialmente complexa.
Para o leitor iniciante não é fácil entender a questão autoral relacionada aos textos
bíblicos nem as diferenças que existem na quantidade e na ordenação de livros das
versões da Bíblia dos judeus, dos católicos romanos e dos protestantes.
Diante de todas essas questões complicadas, surge a necessidade de nos dedicarmos
ao conhecimento dessas informações tão importantes para que só depois disso,
prossigamos com nossa reflexão sobre a análise e interpretação da Bíblia.
Verificaremos as listas de livros que estão nas Bíblias dos judeus (Bíblia Hebraica)
e nas Bíblias cristãs (católica e proteste). É certo que existem outras versões da Bíblia,
mas não vamos estuda-las aqui. Também vamos entrar em contato com os idiomas
bíblicos, o hebraico, que é a língua do Antigo Testamento, e o grego, que é a língua do
Novo Testamento. Conheceremos os alfabetos e algumas informações sobre essas
línguas que foram consideradas sagradas pelo povo de Deus.
1. A Bíblia Sagrada
A Bíblia Sagrada é uma obra composta por vários livros – 72 segundo os católicos
romanos e 66 segundo os protestantes. Cada livro que compõe a Bíblia tem sua
própria história, e por isso deve ser estudado independentemente dos outros. Nesse
sentido, podemos dizer que a Bíblia não é apenas um livro, mas, sim, uma biblioteca
(SKA, 2015, p.21), pois seu conteúdo comporta livros de diversos gêneros, autores e
épocas diferentes.
Em sua maior parte, esses livros individuais circularam independentemente dos
outros que futuramente se uniriam a eles para compor à Bíblia. A compilação (processo
que colocou esses livros lado-a-lado e os transformou em um volume) foi realizada
depois que todos os livros já tinham sido escritos.
Como obras individuais, cada um dos livros bíblicos tem seu próprio autor, seu
próprio estilo, suas próprias características literárias e trazem reflexos e informações
circunstanciais do determinado contexto histórico-social e cultural em que foram
escritos.
Também a teologia, isto é, a reflexão sobre Deus que se contém em cada um desses
livros, não é idêntica. Ao invés disso, há vasta pluralidade de visões sobre Deus e o
sagrado nas escrituras. Apesar de todos livros expressarem a fé do povo em seu
Deus, ao longo da história, há diferentes formas de interpretar a revelação divina nas
diversas obras que compõem a Bíblia.
De todas as diferenças existentes entre os livros bíblicos, há uma cujo conhecimento
é fundamental para entendermos a composição da Bíblia, trata-se da divisão de seu
conteúdo em duas partes, Antigo Testamento de um lado e Novo Testamento de outro.
Vamos tratar de cada uma dessas duas partes e de seus respectivos conteúdos a
seguir.
antigo, na verdade, esses livros são o único testamento deles, pois, de acordo com a
crença judaica, seu conteúdo continua plenamente válido e atual, e é considerado a
totalidade da revelação que Deus lhes deu.
Enquanto isso, os cristãos entendem que, apesar de serem livros inspirados por
Deus, as obras que compõem o Antigo Testamento devem ser interpretadas à luz
da nova revelação, que é Jesus Cristo, cujos relatos estão na outra porção da Bíblia,
chamada Novo Testamento.
A palavra “testamento” remete ao compromisso entre Deus e seu povo. No lugar
de testamento poderia ser utilizada a palavra aliança, em língua hebraica berit e em
língua grega diateke. A ideia que esse termo traz aos judeus e aos cristãos é que a
Bíblia estabelece um compromisso, um pacto entre Deus e os seres humanos, no
qual a graça divina é o princípio mantenedor e as escrituras têm papel fundamental
quanto à narrativa da história e do significado desse compromisso.
Pois bem, os judeus chamam de Bíblia Hebraica a porção de livros que os cristãos
nomeiam de Antigo Testamento. Esse nome foi dado ao livro sagrado dos judeus por
causa da língua em que seu texto foi escrito. O hebraico é um idioma semítico, que
é uma das diversas línguas dos povos que habitaram a região onde se localiza hoje
a nação de Israel, esses povos eram chamados de semitas, e um de seus legados
para as gerações futuras foram suas línguas, como é o caso do hebraico, falado até
hoje em Israel.
Vejamos na tabela a seguir o conteúdo da Bíblia Hebraica na primeira coluna, da
Bíblia Católica na segunda e Bíblia Protestante na terceira.
1. É fácil perceber que a maior parte dos livros aparece nas três colunas;
2. Há apenas seis livros (Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria e Eclesiástico)
que aparecem exclusivamente no Antigo Testamento da Bíblia católica romana;
3. Os livros contidos exclusivamente no Antigo Testamento da Bíblia católica romana
são chamados de Deuterocanônicos;
4. Os Deuterocanônicos são livros que foram escritos em grego, por isso os judeus
não os aceitaram em seu cânon, mas os primeiros cristãos, sim;
5. Posteriormente, na época da Reforma Protestante, os Deuterocanônicos foram
excluídos da Bíblia protestante, que optou por seguir a lista de livros dos judeus.
6. A lista de livros do Antigo Testamento da Bíblia protestante é idêntica à da
Bíblia Hebraica;
7. Apesar de serem idênticas as listas de livros da Bíblia Hebraica e do Antigo
Testamento da Bíblia protestante, há distinção na ordem e na forma como os
livros aparecem.
8. Alguns livros que estão divididos em dois volumes no Antigo Testamento das
Bíblias cristãs aparecem na Bíblia Hebraica como um único volume. Esse é o
caso de I e II Samuel, I e II Reis, I e II Crônicas, Esdras e Neemias.
9. Na Bíblia Hebraica o Rolo dos Doze Profetas é um livro só, enquanto que nas
Bíblias cristãs são doze livros apresentados com estruturas independentes.
10. A Bíblia Hebraica tem seus livros divididos em três classificações: Lei, Profetas
e Escritos, enquanto que as Bíblias cristãs classificam seus livros em quatro
categorias: Pentateuco, Livros Históricos, Livros Sapienciais e Poéticos e Livros
Proféticos (Profetas Maiores e Menores).
11. Há 24 livros da Bíblia Hebraica, no Antigo Testamento da Bíblia protestante há
39 e no Antigo Testamento da Bíblia católica há 45. No entanto, a diferença de
conteúdo entre as três versões da Bíblia é que a católica romana possui os seis
livros Deuterocanônicos que não faz parte de nenhuma das outras versões da Bíblia.
12. A diferença na ordem dos livros bíblicos existente na Bíblia Hebraica e as bíblias
cristãs reflete concepções teológicas distintas. A Bíblia Hebraica ordena seus
livros de acordo com a importância teológica de cada uma de suas três partes,
enquanto as bíblias cristãs organizam seu cânon cronologicamente. Ainda que
essa cronologia não seja exata, é um princípio organizativo.
ANOTE ISSO
BÍBLIA TEB: Bíblia Tradução Ecumênica – 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
A BÍBLIA DE JERUSALÉM: Nova edição, revista. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
Quanto à língua hebraica, como já mencionamos é uma das línguas faladas pelos
antigos povos semitas e até hoje é utilizada pelo povo de Israel. Trata-se de um idioma
cuja escrita é linear (horizontal) feita da direita para a esquerda, ao contrário do modo
como escrevemos em português e nas demais línguas neolatinas (espanhol, francês,
italiano e romeno) e anglo-saxãs (inglês, alemão e outras) e outros idiomas ocidentais.
O hebraico possui 22 letras, não contém vogais, mas foram incluídos sinais
massoréticos para que os leitores que não são falantes nativos dessa língua
conseguissem realizar a vocalização do idioma quando lerem as palavras escritas.
Imagine como é difícil ler um idioma que só possui consoantes e que os sons vocálicos
deveriam ser presumidos com base na memória que você tem por causa do uso oral
do idioma. Os sinais massoréticos funcionam como pontinhos colocados sobre e sob
as letras para representar a vocalização.
1 א Alef ’
ּב
2 Bet B
ב
ג
3 Guímel ɡ (g duro)
גּ
ד
4 Dalet D
דּ
5 ה He H
6 ו Vav V
7 ז Zayin Z
8 ח Het H
9 ט Tet T
10 י Yod Y
ּכ Kaf K
11 כ Khaf Kh
ך Kaf final K
12 ל Lamed L
מ Mem M
13
ם Mem final M
נ Nun N
14
ן Nun final N
15 ס Samek S
16 ע Ayin ‘
ּפ Pe P
17 פ Phe Ph
ף Pe final P
צ Tsade Ts
18
ץ Tsade final Ts
19 ק Kof K
20 ר Resh R
שׁ Sin S
21
שׂ Shin Sh
ּת
22 Tav T
תּ
Alguns trechos da Bíblia foram escritos em outro idioma semítico, o aramaico. Essa
língua utiliza o mesmo alfabeto que o hebraico e também se escreve da direita para
a esquerda. Geralmente as faculdades de Teologia não enfatizam tanto seu estudo,
porque foi utilizado para escrever apenas pequenas porções dos textos bíblicos, como
trechos do livro de Daniel e do livro do profeta Jeremias.
O povo judeu adotou o aramaico depois que voltou do exílio babilônico, que terminou
cerca de 538 a.C. Isso significa que após ter tido contato com nações estrangeiras,
o povo judeu adotou um idioma estrangeiro e abandonou o hebraico. No entanto, o
hebraico continuou sendo usado na liturgia e no ensino da Torah, enquanto que o
aramaico foi utilizado para linguagem cotidiana.
Os judeus não deixaram seu antigo idioma sagrado morrer e o cultivaram a partir
da leitura e do ensino das escrituras. Ao longo dos séculos, o povo judeu não o utilizou
para a comunicação cotidiana, mas quando foi formado o moderno Estado de Israel,
o hebraico foi adaptado para a modernidade, para que fosse a língua oficial.
O aramaico tinha sido adotado pelos judeus depois do exílio babilônico, porque
naquela época essa era a principal língua de contato entre as nações daquela região
do mundo. O aramaico exercia um papel semelhante ao que o inglês exerce em nosso
mundo. Posteriormente, com o surgimento de outros impérios, o aramaico perdeu
importância e hoje em dia é falado apenas por pequenos grupos que habitam a Síria.
e protestantes ocorreu apenas no século XVI, e nessa época a porção dos livros
que correspondem ao Novo Testamento já estava estabelecida. O problema que
houve quanto aos chamados deuterocanônicos, do Antigo Testamento, foi porque
os protestantes se basearam na lista de livros judaicos para definir o cânon de seu
Antigo Testamento. Veremos isso com detalhes mais adiante. O que importa nesse
momento é deixar claro que não houve esse problema no que diz respeito ao Novo
Testamento. Na parte da Bíblia, que na concepção cristã é a mais importante, católicos
e protestantes não têm discordâncias.
Há quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), dos quais os três primeiros
são chamados sinóticos porque são muito semelhantes (sinótico significa que esses
livros têm “um mesmo ponto de vista” sobre a vida de Jesus), enquanto que João
possui algumas coincidências com os outros evangelhos, mas tem outro ponto de
vista sobre a narrativa da vida de Jesus. Em suma, evangelho é o gênero dos livros
que narram a vida e o ensino de Jesus.
Há um livro que narra a história das origens da Igreja Cristã, chamado Atos dos
Apóstolos, o qual é atribuído ao autor do terceiro evangelho, Lucas. Este pode ser
considerado um livro histórico, apesar de não ser história de acordo com os critérios
de historicidade que temos no mundo atual.
Há outros dezessete textos que foram escritos no formato de correspondências, ou
posteriormente foram moldados para se parecerem com correspondências. O gênero
desse material é chamado “carta” ou “epístola”. A maior parte desse material é atribuída
ao apóstolo Paulo, o restante é atribuído a outros apóstolos. São supostamente enviados
para comunidades cristãs ou para indivíduos cristãos.
Um documento do Novo Testamento é anônimo, na forma como aparece nas
versões modernas da Bíblia cristã. Trata-se de Hebreus, que parece ser um tratado
teológico com ensinos ministrados em momentos em que cristãos estavam deixando
sua religião e voltando a ser judeus.
Por fim, há um livro intitulado Apocalipse, cujo autor se identifica como João.
Seu conteúdo descreve uma visão recebida por Deus, a qual revela eventos que
supostamente acontecerão em breve, quando os ímpios serão punidos e os justos
serão recompensados, de acordo com o plano que Deus estabeleceu desde o princípio.
A ideia é que os cristãos devem suportar os sofrimentos pelos quais estão passando,
pois em breve Deus os recompensará.
Veja como se organiza o Novo Testamento:
Mateus
Evangelhos sinóticos Marcos
Evangelhos
Lucas
João
Livro Histórico Atos dos Apóstolos
Romanos
I Coríntios
II Coríntios
Gálatas
Efésios
Filipenses
Epístolas Epístolas atribuídas a Paulo Colossenses
I Tessalonicenses
II Tessalonicenses
I Timóteo
II Timóteo
Tito
Filemon
Tratado teológico Hebreus
Tiago
I Pedro
II Pedro
Epístolas Atribuídas aos apóstolos I João
II João
III João
Judas
Revelação Apocalipse
Mencionamos que a Bíblia Hebraica ficou assim conhecida por causa do idioma
em que ela foi escrita, mas apesar disso, o Novo Testamento foi escrito em outro
idioma, o grego.
A dúvida que pode ter surgido na sua cabeça é: Por que o Novo Testamento foi escrito
em grego, se em sua maioria seus autores eram judeus? Por que não escreveram na
mesma língua que tinha sido escrito o Antigo Testamento que já era um livro sagrado
para eles?
A resposta é que na época em que os escritores do Novo Testamento elaboraram
os seus livros, a língua grega era a mais falada naquela região do mundo já havia
pelo menos quatro séculos. Isso aconteceu porque o Imperador Alexandre, o grande,
dominou uma grande região do Mundo Antigo e espalhou por ela a cultura grega,
tanto suas instituições quanto sua língua.
Assim, o grego era a língua mais falada no mundo, a língua dos intelectuais, e os
judeus começaram traduzir a Bíblia Hebraica para o grego a partir do século IV a. C.
Fizeram isso para que seu livro sagrado fosse compreendido por um grupo maior de
pessoas, no qual se incluem intelectuais, filósofos, viajantes etc.
A tradução da Bíblia Hebraica para a língua grega ficou conhecida como Septuaginta,
ou Bíblia dos setenta, que também pode ser indicada pelos algarismos romanos LXX.
O número setenta de seu título corresponde à lenda de que a Bíblia Hebraica foi
traduzida para o grego por setenta anciãos que trabalharam individualmente, e cada
um deles traduziu o texto sozinho, no entanto, no final quando foram comparadas as
setenta traduções gregas, todas elas estavam idênticas.
Essa lenda era contada para justificar que o processo de tradução foi inspirado por
Deus, pois uma coincidência dessa proporção não aconteceria por acaso. De acordo
com os judeus, aquele acontecimento só poderia ter acontecido como manifestação de
uma intervenção divina em aprovação ao empenho de traduzir as escrituras sagradas.
Quando os primeiros cristãos escreveram seus livros, a Septuaginta era mais lida
que a Bíblia Hebraica, então eles fundamentaram sua crença de que Jesus era a
revelação da nova aliança de Deus com a humanidade mais na Septuaginta do que
na Bíblia Hebraica. Assim, os cristãos das origens consideraram que o grego era seu
idioma sagrado.
Αα Alfa A
Ββ Beta B
Γγ Gama G
Δδ Delta D
Ε ε Épsilon e (breve)
Ζζ Zeta Dz
Ηη Eta e (longo)
Θθ Teta Th
Ιι Iota I
Κκ Kappa K
Λ λ Lambda L
Μμ Mi M
Νν Ni N
Ξξ Csi Ks
Ο ο Ómicron o (breve)
Ππ Pi P
Ρρ Ró R
Σ σ,ς Sigma S
Ττ Tau T
Υυ ypsilon Y
Φφ Fi F
Χχ Chi Kh
Ψψ Psi Os
Ω ω Ômega o (longo)
Depois que os cristãos usaram principalmente a Bíblia em idioma grego por alguns
séculos, surgiu a tradução para o idioma latino, a qual recebeu o nome de Vulgata
Latina. Isso ocorreu porque o latim era o idioma mais falado no Império Romano, era
a língua oficial na época em que o cristianismo tornou-se a religião hegemônica.
O nome vulgata está relacionado com o termo “vulgar” da língua portuguesa, no
sentido em que a língua do povo é vulgar, é popular. A utilização dessa palavra parte
do mesmo princípio que mencionamos a respeito do grego koiné. É a língua falada
pelo povo simples em suas relações comunicativas cotidianamente, não o idioma
dos intelectuais refinados.
O Pai da Igreja Jerônimo (347 d.C. - 420 d.C.) foi o responsável pela produção da
Vulgata Latina. A importância desse empreendimento está em oferecer à Igreja uma
versão da Bíblia que esteja no idioma oficial e predominante, uma vez que nessa época
o grego e o hebraico já haviam se tornado idiomas arcaicos.
A cristandade (termo que se refere aos cristãos durante a Idade Média) tinha o latim
como sua língua oficial, porque era o idioma do Império Romano e como grandes
teólogos escreveram em latim (Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona, Gregório, o
grande, e muitos outros), gradativamente este passou a ser o idioma oficial da igreja
e por isso também passou a ser considerado sagrado.
A Vulgata contém os livros do Antigo Testamento da Bíblia católica e o conteúdo do
Novo Testamento conforme o conhecemos hoje em dia. Essa versão das escrituras
foi usada durante a Idade Média como única versão autorizada da Bíblia, embora
reconhecidamente não fosse a versão que está escrita no idioma original.
Durante o século XVI, vários movimentos humanistas, católicos e universitários
incentivaram e realizaram o acesso aos textos em hebraico e grego. Os reis da Espanha
incentivaram e investiram no conhecimento do hebraico e do grego e produziram
edições críticas da Bíblia e material para estudo dos idiomas bíblicos. O humanista
Erasmo de Roterdã produziu a primeira edição crítica do Novo Testamento.
Por sua vez, também no século XVI, os protestantes realizaram suas traduções da
Bíblia para os idiomas modernos a partir das línguas originais e rejeitaram a Vulgata.
No Concílio de Trento, a Igreja Católica reiterou que a Vulgara era sua versão oficial
das escrituras e rejeitou as traduções protestantes. Mesmo assim, a Igreja Católica
durante o século XX abriu-se para o estudo crítico das escrituras.
Considerações finais
CAPÍTULO 5
ANÁLISE DIACRÔNICA E
SINCRÔNICA DA BÍBLIA
Introdução
1
Junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando
nos lembramos de Sião.
2
Sobre os salgueiros que há no meio dela, penduramos as nossas harpas.
3
Pois lá aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e
os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos uma
das canções de Sião.
4
Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha?
5
Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha direita da
sua destreza.
6
Se me não lembrar de ti, apegue-se-me a língua ao meu paladar; se não
preferir Jerusalém à minha maior alegria.
7
Lembra-te, Senhor, dos filhos de Edom no dia de Jerusalém, que diziam:
Descobri-a, descobri-a até aos seus alicerces.
8
Ah! filha de babilônia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir
o pago que tu nos pagaste a nós.
9
Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras.
2.1.1. Forma
2.1.2. Gênero
conforme era antes, por isso, constitui seu gênero certo tom de lamentação, que
pode ser verificado nas palavras do Salmo. Isso mostra que os gêneros bíblicos
não sempre são puros, é possível que haja mistura neles, como é o caso desse
que estamos estudando, que pode ser entendido como uma canção de Sião e ao
mesmo tempo como um lamento.
Forma e gênero sempre são analisados juntos pela exegese bíblica, isso significa
que se a forma é uma balada, o gênero deve ser compreendido a partir daí, e, nesse
sentido, a canção de Sião parece sugestiva para sua classificação. Ao mesmo
tempo, podemos conjecturar que a repetição do ritmo da balada que era tocada
na harpa promove um tom melancólico, típico da lamentação.
Mesmo assim, devemos acrescentar algumas informações sobre subgêneros
dessa canção de Sião. Em primeiro lugar, conforme já mencionamos, podemos
indicar as lamentações no conteúdo do Salmo 137, pelas próprias palavras desse
salmo, sem a necessidade de recorrer à balada, isso é evidente pelo sentimento
que o salmista declara diante da destruição de Jerusalém e da zombaria dos
babilônios que pedem que ele entoe uma canção de Sião.
Além disso, devemos observar que os três últimos versículos (v. 7-9) são
imprecações. No sentido literal do termo, imprecação é o desejo de que alguma
coisa ruim aconteça. No salmo, deseja-se mal a Edom, a Babilônia e às crianças
da Babilônia.
Se fosse uma oração a ser realizada no culto, essas imprecações não poderiam
estar aí, mas como se trata de uma balada que é entoada em celebrações
extralitúrgicas voltadas à lamentação, as imprecações podem muito bem estar
aí, por mais que nos cause mal estar lê-las hoje em dia.
Schökel e Carniti (1993) fazem questão de enfatizar que “lamentação” é diferente
de “súplica”. Há muitos salmos de súplica que são nomeados popularmente de
salmos de lamentação, mas essa indefinição não pode ser mantida, porque os
salmos de súplica concluem-se com súplicas feitas a Deus, diferentemente do
salmo de número 137, que é o único exemplar de salmo de lamentação, que acaba
com imprecação após o lamento.
Para entender a diferença entre lamentação e súplica, leia o salmo 102 abaixo e
compare com o conteúdo do 137, que estamos estudando.
2.1.3. Datação
2.1.4. Local
Com base nos argumentos desenvolvidos para responder as questões sobre a forma,
o gênero e a datação do salmo 137, desenvolveu-se também uma hipótese sobre a
localidade à qual remete essa canção de Sião. A ideia é que se pode situar o lugar
concreto em que esse salmo era entoado pelos judeus no período do exílio babilônico.
Kraus (2014) explica que por se tratar de um salmo entoado durante uma liturgia
de lamentação por causa da distância e da destruição de Jerusalém, seu conteúdo
deve ter sido cantado em celebrações feitas pelos judeus na Babilônia em celebrações
desenvolvidas especificamente para essa finalidade.
O salmo menciona “junto aos rios da Babilônia” (v.1), e isso pode se referir às
regiões inundáveis de um dos rios da Babilônia, quer seja Eufrates, Tigre ou Quebar. É
possível que as reuniões tenham ocorrido em casas de anciãos, que reuniam o povo
para lamentar o que ocorreu a Jerusalém e manifestar esperança numa declaração
profética sobre o futuro.
Já dissemos, mas não parece inoportuno repetir, por conter imprecações, esse
salmo não deve ter sido entoado em Jerusalém, antes era uma balada que fazia parte
de uma celebração extralitúrgica realizada na Babilônia durante o período do exílio.
ANOTE ISSO
2.2.1. Personagens
Dado que é ao mesmo tempo uma canção de Sião e uma lamentação, o salmo 137
possui um eu-lírico. Na poesia, esse nome é dado à personificação da voz que recita
o conteúdo poético. Fazem isso porque todo discurso tem um “eu”, isso é, tudo o que
é pronunciado precisa ter sido pronunciado por alguém. Esse alguém é chamado de
narrador em textos narrativos, mas em textos poéticos é o “eu lírico”.
No caso específico dos salmos, chamamos o eu-lírico de “salmista”. Como podemos
verificar, no salmo 137, o salmista é um judeu exilado que sofre zombaria daqueles
que levaram os judeus cativos, pois parece evidente que o pedido de uma canção é
uma ironia. No caso da análise sincrônica, não se pergunta por quem é o autor do
texto, mas sim, por quem é o eu-lírico, isso é, a voz interna ao texto. É certo que há
um autor que compôs a poesia, mas essa é uma preocupação da análise diacrônica.
Além do eu-lírico, há outros personagens no texto, há outros judeus, pois os verbos
dos primeiros versículos estão no plural, apesar disso, não se pode nomear nem
especificar nenhum dos personagens do salmo, sabe-se apenas que formam junto
com a voz que recita um “personagem-bloco”, expresso pelo “nós”.
A construção poética é realizada a partir dos olhos de quem recita seu conteúdo,
nesse caso, o eu e o grupo no qual ele está inserido, que sabemos que são judeus
exilados, são os protagonistas. Na verdade, como são um coletivo, é melhor dizer que
forma um protagonista, pois sem passar por esse personagem-bloco não há poesia.
“Aqueles que nos levaram cativos” são outro personagem-bloco, pois também aí
temos um grupo no qual não podemos distinguir individualidade, por isso pode-se
dizer que no conteúdo poético, assim como o “nós” dos primeiros versículos, “aqueles
que nos levaram cativos” também são uma unidade coletiva.
Evidentemente o personagem-bloco descrito como “aqueles que nos levam cativos”
são os babilônios. Assim não é difícil concluir que são os antagonistas, pois são
descritos como zombadores, que pedem uma canção de Sião para escarnecer da
condição de exilados na qual os judeus encontram-se naquele momento. Só para
refrescar nossa memória, antagonista é o vilão de uma história, é aquele que se opõe
à personagem principal.
Há a utilização do recurso poético-literário do paralelismo no versículo 3, pois
“aqueles que nos levaram cativos” é sinônimo de “os que nos destruíram”. A utilização
dessa estratégia é muito frequente na poesia hebraica, baseia-se colocar em paralelo
sinônimos ou antônimos para produzir efeito poético. Note como os sujeitos e as
ações desses sujeitos, quando comparadas, demonstram que são a mesma coisa.
aquele que está do lado do protagonista, sua função na narrativa é a de adjuvante. Esse
nome é dado àquele que colabora para o personagem principal alcançar seu objetivo.
Jerusalém, embora saibamos que é uma cidade e não uma pessoa, aparece
personificada no salmo. Há um recurso poético-literário que se chama “prosopopeia”,
trata-se de atribuir personificação a algo que não é humano, como se faz com Jerusalém
nesse salmo.
Os filhos de Edom, a filha de Babilônia e os filhos (também de Babilônia), que são
objetos das imprecações, isso é, objeto dos desejos maus do salmista, são personagens
secundários no salmo 137. Também esses são personagens-bloco, por “filhos de
Edom”, pretende-se se referir a população de Edom, que é uma nação hostil vizinha
de Israel; por “filha de Babilônia” refere-se à própria Babilônia, e por “filhos” refere-se
às crianças que serão a futura geração de adultos babilônios, aos quais se deseja o
mal porque um dia tornar-se-ão adultos e serão tão cruéis como “aqueles que nos
levaram cativos”.
2.2.2. Ambiente
2.2.4. Estrutura
da maior alegria. Percebamos que o salmista diz isso dirigindo-se à própria cidade,
como se fosse uma pessoa, o salmista ama tanto a cidade e sofre tanto com sua
destruição que chega personaliza-la como se fosse um ser humano com quem se
pode dialogar.
Os versículos 7-9 são imprecações. Como já explicamos, são coisas malignas que
os judeus na condição de exilados desejam que aconteçam aos povos de Edom e
da Babilônia. Essas imprecações são comunicadas ao Senhor, porque o povo deseja
que ele se lembre do que Edom e Babilônia fez a Israel, e assim retribua-os a mesma
proporção de violência que receberam. A imprecação contra Babilônia é dividida em
duas partes, a primeira, contra filha de Babilônia, que representa a própria nação, e
a segunda contra os filhos de Babilônia, que na verdade, refere-se às crianças, que
segundo as palavras do salmo 137, devem ser esmagados contra os rochedos enquanto
crianças, para eu não se tornem adultos.
cabeças das crianças babilônias nas rochas. No entanto, isso não é um trabalho
exegético, antes, é um trabalho hermenêutico.
Apenas para não deixar você que estudou essa aula sobre diacronia e sincronia
sem nenhuma resposta quanto à teologia do salmo 137, podemos dizer que nesse
salmo expressa-se a condição humana daqueles que se vem destituídos, vitimados
e humilhados por seus inimigos, contra os quais não têm força alguma para reagir.
Diante dessa situação resta o lamento e a indignação pela situação diante de Deus.
Essa indignação muitas vezes incorre em desejo de vingança, em vontade de revidar
na mesma moeda. O salmo não afirma que Deus aprova o desejo humano de vingança,
apenas o descreve, e assim traça um retrato realista do ser humano.
Considerações finais
CAPÍTULO 6
HISTÓRIA E GEOGRAFIA
DO ANTIGO TESTAMENTO
Introdução
Nessa aula, vamos aprender sobre história e geografia bíblica, porque sem obter
esses conhecimentos específicos não teremos condições de fazer uma interpretação
coerente da Bíblia, nem sequer poderemos realizar uma exegese bem fundamentada.
Afirmamos isso, porque sem saber em que contexto histórico e em que ambiente
geográfico ocorreram as narrativas bíblicas, ficaremos na abstração e na subjetividade.
Isso é, reduziremos a Bíblia à condição de livro de autoajuda, que pode até servir como
motivação para pessoas que precisam de um incentivo para viver a própria vida, mas
não podem ser conteúdo de proclamação na comunidade de fé, nem conteúdo de
investigação científica, porque tanto em um quanto em outro caso, o que se busca é
sempre a verdade.
Esses conhecimentos são necessários porque são eles que colocam nossos pés
no chão, isso é, são eles que situam a história do Antigo Testamento na realidade
concreta de eventos reais, dentro da história da civilização humana e de um contexto
geográfico particular.
Não é por acaso que o conteúdo dessa aula está repleto de mapas, pois para
entender geografia bíblica você precisa ver nos mapas as representações das regiões
geográficas citadas na Bíblia e as divisões politicas que foram feitas ao longo da
história. A maioria desses mapas está na Nova Bíblia Pastoral (2014).
No conteúdo abaixo, a história acompanha a geografia e vice-versa. Situamos na
história, cada uma das divisões políticas apresentadas nos mapas. Ao mesmo tempo,
os mapas servem para situar a localização histórica daquilo que ocorreu nos relatos
da Bíblia.
Por enquanto, vamos nos dedicar a entender só a história e a geografia bíblica
que se referem ao Antigo Testamento, mas na aula que está na sequência dessa,
A história do povo de Deus começa com os patriarcas, que, segundo o conteúdo das
narrativas bíblicas, foram homens a quem o deus único, Yahweh, revelou-se, estabeleceu
uma aliança (se preferir, um pacto) e lhes prometeu bênçãos e descendência, caso
fossem fieis.
O livro de Gênesis relata que Abraão, Isaque e Jacó foram peregrinos na região
que hoje chamamos de Antigo Oriente Médio. A trajetória que realizaram ao percorrer
territórios desde a Mesopotâmia (Ur dos caldeus), mais ao norte, até o Egito, mais ao
sul, teve como objetivo o reconhecimento da terra que Deus lhes dera por herança, a
eles e seus descendentes, uma faixa de terra que contém várias cadeias de montanhas,
o vale do Jordão, uma área fértil e o lago de Genesaré, entre tantas outras coisas
importantes que estão nessas terras.
Esse território dado por Deus aos patriarcas era habitado por cananeus, que dali
seriam expulsos com a ajuda do próprio Deus, que, segundo a crença que eles mesmos
tinham, lutaria junto com seu povo em batalhas encarniçadas até a extinção ou total
submissão desses povos nativos que eram vistos como impedimento para a instalação
de Israel na terra.
Apesar de cruel e repulsiva para nosso ponto de vista hoje, é isso que está registrado
nos primeiros livros da Bíblia, um Deus que favorece um povo na batalha contra outros
povos. Aqui estamos fazendo uma leitura sincrônica, mas nunca é demais prestar
atenção em passagens como essa para percebermos que nos textos bíblicos há uma
ideologia que corresponde ao povo daquela época e não pode mais ser compartilhada
por nós, senão legitimaríamos genocídios, contrariando o ensino de paz que se manifesta
em outras passagens da Bíblia Hebraica, mas principalmente no Novo Testamento,
por meio de Jesus.
Assim, lemos no primeiro livro da Bíblia, que Abraão, Isaque e Jacó reconheceram
o território que Deus lhes daria, mas não se apossaram dele, e a posse de verdade
dessa terra ocorreria apenas em época bem posterior, depois que as tribos de Israel,
que estavam sendo escravizadas no Egito, fossem libertas de faraó e conduzidas à
terra prometida por Moisés, a quem Deus deu sua Lei (a Torah).
Podemos dizer que foi na região chamada Antigo Oriente Médio (apresentada
graficamente no mapa abaixo) que ocorreu a totalidade (ou quase a totalidade) das
narrativas do Antigo Testamento. Foi nesse território que surgiram grandes civilizações
antes das clássicas (Grecia e Roma), as quais formaram grandes impérios que se
sucederam no domínio da região.
Em nossas leituras da Bíblia com frequência reparamos menções aos nomes dos
impérios que dominaram a região. Sem dificuldades lembramo-nos de impérios como
o egípcio, o assírio, o babilônico, o medo-persa, o greco-macedônico e o romano (este
último só é mencionado no Novo Testamento).
O próprio povo de Israel esteve submetido ao domínio desses impérios na maior
parte de sua história. De acordo com a narrativa do Antigo Testamento, Senaqueribe,
imperador assírio, invadiu e devastou o reino de Israel em aproximadamente 722 a.C.;
Nabucodonosor, imperador babilônico, invadiu e devastou o reino de Judá cerca de 586
a.C. (II Cr 36.6-21); Ciro, imperador medo-persa, foi chamado de messias por permitir a
repatriação dos judeus (Is 45.1); e o imperador seleucida Antíoco IV Epífanes é aludido
no livro de Daniel como um chifre insolente que persegue o povo de Deus (Dn 7.8).
Tudo isso mostra como é importante entender de história e geografia bíblica para
se compreender a sucessão de eventos nas narrativas do Antigo Testamento. Sem
entender onde se localizam as nações e o movimento expansionistas dos impérios e
sem entender ao menos basicamente a cronologia histórica da sucessão dos impérios
que dominaram a região, não se pode interpretar a Bíblia.
Então você pode me perguntar: - Por que essa região era alvo de tamanho interesse
dos imperadores do Antigo Oriente Médio? Parece certo que a principal razão desse
interesse todo é a localização onde se assentaram as tribos de Israel, tanto porque
se encontrava no caminho entre as grandes potências da época quanto por estar na
região do crescente fértil. O que significa “crescente fértil”? Responderei essa pergunta
no item a seguir.
3. Crescente fértil
O nome crescente fértil foi dado à região que, conforme verificamos no mapa abaixo,
inclui parte do Egito, Palestina e Fenícia, Assíria, e Mesopotâmia. Seria melhor dizer que
a região abarca desde o Golfo até o delta do Nilo. A designação “crescente fértil” foi
dada porque o desenho que forma essa região fértil se assemelha a uma lua crescente.
As chuvas que ocorrem nas regiões montanhosas que cercam o crescente fértil
proporcionaram o abastecimento tanto de grandes rios como o Tigre e o Eufrates,
quanto de pequenos rios como o Jordão. O rio Nilo, é abastecido por chuvas que
ocorrem na Etiópia.
Chama a atenção o fato de se tratar de uma amplitude de terra fértil cercada por
regiões desérticas ao sul (deserto sírio e arábico) e ao oeste (deserto egípcio) e regiões
montanhosas ao norte e ao leste. Note que se localizam nesse território os grandes
rios Tigre e Eufrates na Mesopotâmia e Nilo no Egito.
De acordo com Gênesis (2.10-14), o jardim do Éden se localizava justamente entre
os rios Tigres e Eufrates, além de outros que também são mencionados no texto
bíblico. Isso não foi escrito na Bíblia por acaso, pois as regiões em que passavam
rios como esses eram consideradas verdadeiros paraísos e acabavam sendo alvos
de frequentes disputas pelas potências que surgiam no Mundo Antigo.
De acordo com as narrativas do Torah, que são os cinco primeiros livros da Bíblia,
o povo de Israel peregrinou pelo deserto e se assentou na terra de Canaã, também
chamada de Palestina, a qual se encontra dentro dessa região fértil em forma de arco.
Nessa terra habitavam os cananeus, em pequenas cidades-Estado, como veremos
a seguir.
Crescente Fértil
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Crescente_F%C3%A9rtil#/media/Ficheiro:Mapa_da_crescente_f%C3%A9rtil.png
O nome Palestina foi dado pelos romanos à região que era chamada pelos nativos
de Canaã, em referência aos vários povos que lá habitavam, os cananeu, os quais
se estabeleceram naquela área por meio de várias pequenas cidades-Estado, isso é,
cidades que eram politicamente independentes, apesar de serem pequenas.
De acordo com as narrativas da Torah, antes do povo de Israel se estabelecer
nessa região, o Império Egípcio tinha os tomado como vassalos e exigia pagamento
de impostos desses pequenos reinados. Ao que se indica nas narrativas dos livros de
Josué, as cidade-Estado de Canaã estavam em decadência quando o povo de Israel
chegou à região, por isso não foi difícil tomar essas regiões de seus antigos habitantes.
Apesar da ruína em que se encontravam a maioria desses pequenos reinos cananeus,
os povos denominados na Bíblia como edomitas, moabitas e amonitas (nações de
Edom, Moabe e Amom) estavam bem estabelecidos politicamente e assentados em
uma região extensa, por isso formaram uma faixa do lado leste desde o sul até o norte
e assim contiveram a expansão territorial de Israel, que não conseguiu tomar seus
territórios. Os filisteus permaneceram habitando o lado oeste, como povo marítimo
que era, estava assentado às margens do Mediterrâneo.
Se já dissemos que o nome Canaã era utilizado por causa dos povos nativos dessa
terra, o nome Palestina foi dado pelos romanos que denominaram a região tomando
como referência o nome da Filisteia.
De acordo com os livros de Josué, Juízes e I Samuel, antes que se constituísse
como uma monarquia à semelhança das nações vizinhas, Israel se compunha como
uma federação de doze tribos que estavam unidas pela crença no deus Yahweh que
libertou o povo do Egito (GOTTWAND, 2004).
Quanto à geografia física da região, há um corredor formado pelo vale do rio Jordão,
o qual flui para a direção norte, vai do monte Hermon até Arabá. Ao extremo sul do
território está o Mar Morto, ponto mais baixo da Terra. Há várias cadeias de montanhas
que atravessam o país, a própria cidade de Jerusalém está localizada a 750 metros
acima do nível do mar. A região mais fértil provavelmente é a Shefelá, na Judeia, a
qual possui clima temperado e está localizada na região centro-sul de Israel, entre
120 e 450 metros acima do nível do mar.
mais extenso e do número maior de tribos, o assim chamado Reino da Samaria não
ficou com a antiga capital, Jerusalém, cidade na qual foi construído o templo de
Yahweh, por isso fundaram outro lugar dedicado ao culto, que se localizava na cidade
de Siquém.
A maior parte dos livros do Antigo Testamento foi escrita sob o ponto de vista de
Judá, por isso nesses textos o Reino do Norte é praticamente uma caricatura daquilo
que realmente foi históricamente no passado. Nota-se a clara intenção de diminuir
as instituições do Reino do Norte e associar sua religião à idolatria, enquanto se
exaltam as instituições e religião do Reino do Sul. É o claro caso de dois irmãos que
brigaram. Apesar de serem tão semelhantes, criticam-se tanto um ao outro sem se
olharem no espelho.
Como já mencionamos, o Reino do Norte cairá primeiro, diante da invasão do
Império Assírio, comandado por Senaqueribe, e o Reino do Sul cairá pelas mãos de
Nabucodonosor, imperador da Babilônia. Ciro, imperador medo-persa, permitirá que os
judeus refundem sua nação em torno de suas tradicionais instituições: sua religião,
seu templo e a Torah; enquanto isso, os efeitos da devastação foram mais marcantes
para Samaria.
Em época posterior ao domínio sucessivo dos impérios sobre a Palestina, o único
período em que Judá voltará a ter autoniomia política é durante a dinatia hasmoneia,
que durou de 164 a. C.-37 a. C. De acordo com os dois livros dos Macabeus, um
exército rebelde liderado pelos chamados irmãos macabeus, conseguiu expulsar os
seleucidas da região. A esta altura esse império já estava muito fragilizados e não
era nem sombra da potência que foi no passado. Para esclarecer as terminologias
para você, os seleucidas são uma continuidade do Império Greco-Macedônico que se
subdividiu em quatro partes.
Na sequência à expulsão dos invasores, os macabeus conseguiram não apenas
autonomia politica, mas também a submissão de algumas nações vizinhas, a
imposição de sua religião sob os domínios conquistados, a cunhagem de moedas e
o estabelecimento de uma dinastia régio-sacerdotal.
No entanto, a época do domínio dessa dinastia é vista como período de apostasia
pelos judeus piedosos devido à unificação dos poderes sacerdotal e real sob a mesma
pessoa e sua linhagem, uma vez que esse tipo de coisa é duramente condenável na
tradição antiga de Israel. De acordo com I Samuel 13.8-15, Deus rejeitou Saul como
rei de Israel porque ele quis realizar o serviço sacerdotal que não lhe cabia. Além
disso, aborreceu muito o povo, a corrupção dos reis hasmoneus e a admiração que
eles tinham pela cultura grega, o que era associado à idolatria.
Provavelmente foi nessa época que uma parcela dos sacerdotes judeus deixou
o templo e suas mediações e foi habitar o deserto do Mar Morto, onde construíram
a comunidade ascéptica e apocalítica de essênios, a qual deixou à posteridade os
chamados Manuscritos do Mar Morto, que foram encontrados no deserto de Qumran
a partir do fim da década de 1940.
6. Exílio babilônico
Faz-se necessário uma rápida digressão para tratar de um assunto que foi
mencionado, mas não devidamente explicado, trata-se do exílio babilônico, para o qual
a corte do Reino de Judá foi conduzida após a destruição de Jerusalém executada pelo
Imperador Nabucodonosor e no qual permaneceria até que o Imperador medo-persa
Ciro permitisse o retorno para Judá, afim de reconstruirem as muralhas de Jerusalém.
Esdras e Neemias trazem a história da reconstrução da cidade santa, mas não
ocorre apenas isso, depois do retorno do exílio, o povo de Judá torna-se coeso no
que diz respeito à religião. O exílio representou uma lição para o povo, de acordo com
a qual ficou o sentimento que era necessário obedecer a Lei de Deus para que ele
nunca mais permitisse que seu povo fosse punido daquele jeito.
Inclusive, há uma frase que diz que Israel foi para o exílio e voltou judeu. A ideia que
essa frase sugere é que a religião dos judeus surgiu somente depois do retorno da
Babilônia. O que ocorreu não foi apenas a coesão do povo em torno do pacto que a
Lei representa, conforme os livros de Esdras e Neemias demonstram, mas, além disso,
efetuou-se o próprio desenvolvimento religioso do judaísmo, que aderiu influências
advindas da sabedoria da Babilônia, que na época era um dos centros intelectuais
do mundo antigo.
Muitas das crenças do judaísmo surgiram após o cativeiro, sem dúvida, a crença
em anjos, em paraíso celeste e punição após a morte, a existência do mal como ente
autônomo, viagens celestiais – que na Bíblia também são chamadas de arrebatamento
– a ressurreição dos mortos, o fim do mundo e possivelmente outras coisas que não
mencionamos, mas formaram a identidade dos judeus na posteridade.
Essas ideias todas floresceram entre os judeus somente depois do contato com
a cultura babilônica, e a prova de que essa influência foi decisiva está no fato de que
judeus conservadores como os saduceus, que eram sacerdotes, e israelitas que não
foram enviados para o exílio, como os samaritanos, não partilharam dessas crenças
porque não tiveram contato com os babilônios.
Considerações finais
Ao longo dessa aula, fizemos um passeio pela geografia e história de Israel. Foi
realmente um passeio porque nosso objetivo foi apenas o de oferecer uma introdução
CAPÍTULO 7
HISTÓRIA E GEOGRAFIA
DO NOVO TESTAMENTO
Introdução
1. O Reino da Judeia
Como você pode ver na imagem abaixo, o mapa de Judá já estava significativamente
diferente em vista do último que vimos quando tratamos do assunto como está
registrado no Antigo Testamento.
Na época de Jesus, ao lado da Judeia estava Decápolis, que era uma província
da Síria, composta por dez cidades construídas ao estilo grego. Apesar de Gadara
ser mencionada nos evangelhos sinóticos como uma cidade de criadores de porcos,
cemitérios e endemoninhados, na verdade, era chamada de princesa de Decápolis,
por causa de seu desenvolvimento econômico e próspero comércio.
Pereia e Idumeia tinham sido conquistadas pelos asmoneus e passaram a fazer
parte do território do Reino da Judeia. A Galileia e Samaria também foram territórios
conquistados pelos asmoneus. Estavam separadas do Reino do Sul, desde muito
tempo, como ficamos sabendo que aconteceu após terem perdido a relação com o
Reino do Sul na ocasião da divisão dos reinos provocada por Jeroboão I.
A Galileia da época de Jesus era uma região pobre, não é por acaso que, segundo
as narrativas dos evangelhos sinóticos, Jesus realizou tantas curas e milagres nessa
região, tendo em vista que sua população realmente era muito carente. Todavia o Mar
da Galileia, também chamado de Lago de Genesaré ou Mar de Tiberíades (todos esses
três nomes se referem ao mesmo lago) era fonte de trabalho para muitos pescadores,
que vendiam os peixes pescados ali para os romanos.
A Samaria, assim como a Galileia, era uma região recriminadas pelos Judeus, que
habitavam o sul, pois samaritanos e galileus não eram considerados judeus legítimos,
por causa da invasão e destruição que o Reino do Norte sofrerá nas mãos do imperador
assírio Senaqueribe. Lembra-se da parábola do bom samaritano (Lc 10.25-37)? Jesus
ensina-a aos discípulos para incentivar a superação desse preconceito.
Pelos evangelhos, sabemos que a Palestina era região repleta de pessoas famintas,
endividadas, doentes e vítimas da exploração estrangeira. Não é por acaso que Jesus
multiplica os pães e conta parábolas que mencionam dívidas, trabalhadores diaristas
(os jornaleiros) e sementes que não geminam nos solos que caem. Todo esse conteúdo
está nas parábolas de Jesus fazia parte do contexto daquela região e época.
A própria condenação de Jesus à cruz deve ser entendida à luz desse ambiente, pois,
como já dissemos, na época de Jesus ocorriam muitas manifestações revolucionárias
em todas as regiões da Palestina, então um homem que atraia a atenção das pessoas
e proclamava o reino de Deus passava a ser visto como uma ameaça de revolução
e por isso tinha que ser combatido o quanto antes pelas autoridades civis romanas.
Os primeiros cristãos eram judeus como outros quaisquer, com diferença de crerem
que Deus havia cumprido as promessas que fez aos seus antepassados judeus por
meio de Jesus, enquanto os outros judeus não acreditavam nisso. Exceto por essa
crença particular, os primeiros cristãos eram semelhantes em tudo aos outros judeus,
o livro de Atos dos Apóstolos descreve a atividade dos crentes em Cristo nos átrios
do templo de Jerusalém, se os cristãos fossem pessoas que não eram bem recebidas
entre os outros judeus, eles não estariam ali, justamente na proximidade do Templo.
Com o passar do tempo, no entanto, ocorreria a guerra civil judaica que tomaria
conta de toda a Palestina. Por causa dessa ocorrência, os partidos judaicos uniram-
se contra os romanos para batalhar ferrenhamente pela expulsão dos romanos do
território deles. Nessa época, a partir do ano 66 d.C., os cristãos foram expulsos das
sinagogas e do convívio dos demais judeus, pois não aceitaram participar da guerra,
porque isso exigiria deles agir com violência contra os inimigos, algo impensável para
quem acreditava no testemunho de Jesus, que morreu pacificamente sem esboçar
reação contra os algozes.
Esse foi um momento marcante para os cristãos, pois o cristianismo deixou de ser
uma seita judaica e passou a ser uma religião à parte. Assim tiveram que desenvolver
uma identidade própria, escolhendo o seu dia de culto no domingo (dia da ressurreição)
para diferenciar-se do dia de culto dos demais judeus, o sábado; abriram mão de
submeter os pagãos que se convertiam ao cristianismo à estrita Lei judaica; e é provável
que a cristologia tenha se desenvolvido significativamente a partir dessa época.
Os fariseus que criticam Jesus e sua atividade em quase todo momento que aparecem
nos evangelhos são um retrato das discussões que os cristãos frequentemente tinham
com os fariseus em período posterior a 66 d.C., muito mais que um relato fiel da vida
de Jesus. O surgimento da igreja doméstica, que ao mesmo tempo se assemelha e se
diferencia da sinagoga judaica, também ocorre nessa época. Além disso tudo, a realização
da evangelização cristã no território pagão passou a ser mais efetiva do que a que se
realizava na Judeia, porque no geral, os cristãos não eram perseguidos pelos romanos.
A partir desse momento, perpetuou-se a divisão entre judeus e cristãos que existe
até hoje, cada religião seguiu seu próprio caminho e considerou que a outra era uma
manifestação da apostasia em vista dos mandamentos do Deus único que se revelou
a Israel.
O apóstolo Paulo foi um fariseu que reconheceu que Jesus Cristo era o cumprimento
das antigas profecias feitas aos ancentrais judeus ao receber uma visão do próprio
FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 95
EXEGESE E HERMENÊUTICA
PROF. FRANCISCO BENEDITO LEITE
Jesus quando ia para Damasco para perseguir os cristãos. Uma vez que se entendeu
vocacionado pelo próprio Cristo ressuscitado para anunciar o evangelho, engajou-se
no anúncio da mensagem do evangelho para os judeus das comunidades da diápora
e também para os pagãos que habitavam nessas cidades.
O procedimento de Paulo era mais ou menos o seguinte, ele fazia sua missão em
cidades importantantes do Império Romano, lá estando, dirigia-se a uma sinagoga,
que era o lugar em que os judeus estudavam a Torah. Nesse ambiente, ele tomava a
palavra e, a partir da Escritura, anunciava que Jesus era o messias que fora prometido
pela Lei e pelos profetas. Anunciava que Jesus veio ao mundo, morreu, ressuscitou
e agora deve se revelar em breve em poder e glória, destruir os poderes do mal e
recompensar os fieis.
Com frequência o apóstolo era expulso da sinagoga, mas alguns judeus acreditavam
na sua mensagem e, junto com alguns pagãos que se convertiam ao cristianismo
(pois Paulo também pregava em lugares públicos das cidades do Império Romano),
formavam um pequeno grupo que fundava uma igreja na cidade do Império Romano
em que residiam.
As igrejas paulinas eram comunidades não hierarquicas que funcionavam como
núcleos de resistência à política segregadora do Império Romano (HORSLEY, 2004),
eram compostas por poucas pessoas, no máximo vinte indivíduos. Esse pequeno
agrupamento era incentivado a praticar a solidariedade, a anunciar o amor com todos
os seres humanos e se rejeitar a qualquer tipo de prática de violência. A fé que Jesus
Cristo é o filho de Deus dava coesão ao grupo e inspirava as boas obras que realizavam,
enquanto esperavam o fim do mundo e a recompensa eterna.
Pouco se sabe das primeiras celebrações cúlticas cristãs, mas podemos afirmas
que nelas havia o anúncio da palavra do evangelho a partir da leitura e pregação
da Escritura (nessa época só havia disponível o Antigo Testamento). Também havia
entoação de salmos e louvores ao Cristo (Fp 2.5-11 – essa passagem é hino ao Cristo)
e partilha do pão eucarístico em obediência ao mandamento de Jesus (I Co 11.23-25).
Ao estabelecer uma comunidade, Paulo deixava-a e partia para outra cidade para
fundar uma nova igreja. Para não perder o contato com seus irmãos e irmãs em Cristo,
o apóstolo se comunicava com eles por meio de correspondências, as quais ele nunca
imaginaria que se tornariam Escritura ao lado dos evangelhos, do Antigo Testamento e
dos outros textos bíblicos, pois o apóstolo pensava apenas na comunicação imediata
que precisava manter com as comunidades que resistiam à opressão romana.
O lugar mais próspero da atividade paulina foi a Ásia Menor (atual Turquia), que
era uma região onde havia várias cidades-Estado, construídas ao estilo grego, que por
isso recebiam o nome pólis. Paulo só fundou igrejas em pólis, nunca em uma aldeia.
Ele agia assim, porque entendia que das grandes cidades, o evangelho chegaria às
pequenas por meio dos forasteiros que vinham aos centros comerciais e culturais do
Império Greco-Romano e ali poderiam ser evangelizados e levar a mensagem para
seus vilarejos longínquos. Paulo acreditava que se o evangelho fosse anunciado nas
cidades grandes, o movimento em direção ao interior ocorreria naturalmente.
A orientação ética quanto á solidariedade e resistência é óbvia nas cartas paulinas,
mas não há nesses textos a ideia da existência de uma instituição, pois tanto o
apóstolo quanto os crentes acreditavam que o fim do mundo ocorreria em breve com a
manifetação de Cristo, por isso não precisariam se preocupar com a institucionalização
de seu movimento. O objetivo desses crentes era o anúncio do evangelho ao maior
número possível de pessoas o quanto antes, já que mundo ia acabar e quem não
reconhecesse que Jesus Cristo era o filho de Deus e se opusesse a toda maldade
que Império Romano praticava seria eternamente condenado.
Abaixo vemos na representação gráfica as quatro viagens missionárias realizadas por
Paulo, de acordo com a Bíblia Pastoral (2014) e que também estão disponíveis online.
Não sabemos muito sobre a morte do apóstolo Paulo, a não ser o que é dado
pela tradição cristã antiga. Provavelmente ele foi decaptado após ter sido preso e
conduzido até Roma. De qualquer forma, o legado deixado pelo apóstolo dos gentios é
importantíssimo para a Igreja Cristã, não apenas pelas igrejas que fundou e pelo ensino
que ele próprio ministrou, mas também por ter desenvolvido o gênero de comunicação
por meio de cartas, que continuou a ser usado por outros líderes cristãos após sua
morte.
No cânon cristão, treze cartas são atribuídas a Paulo (Romanos, I e II Coríntios,
Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I e II Tessalonicenses, I e II Timóteo, Tito e
Filemon). Desse total de cartas, sabemos que oito muito provavelmente foram escritas
por ele (Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Filipenses, I e II Tessalonisenses e Filemon),
outras duas têm a autoria paulina altamente questionada (Efésios e Colossenses) e
três, em absoluto, não foram escritas por Paulo (I e II Timóteo e Tito).
Isso significa que o apóstolo Paulo foi imitado pela liderança cristã desde muito
cedo na história do cristianismo, inclusive, outras pessoas se passaram por ele para
fruir de sua autoridade entre as comunidades cristãs. Há ainda outros líderes cristãos
que, apesar de não se passaram por Paulo, pretenderam seguir seu exemplo por meio
do envio de cartas. Esse foi o caso das chamadas cartas católicas: Tiago, I e II Pedro,
I, II e III João e Judas. Sabe-se que os apóstolos que dão nome a essas cartas não
foram verdadeiramente os autores desses documentos, pois na época em que foram
escritas, os apóstolos já tinham falecido.
Na história do cristianismo, o período em que as chamadas cartas católicas foram
escritas é nomeado de Catolicismo Primitivo, pois depois da morte do apóstolo Paulo
e de todas as testemunhas oculares de Jesus, o cristianismo passou a se organizar
como instituição que reconhecia sua existência no mundo por período indeterminado.
Assim, organizaram uma hierarquia, um sistema disciplinar e uma tarefa de combate
às falsas doutrinas, as heresias.
Nessa época, que está entre o fim do século I e início do século II, foram escritos, além
das cartas católicas, as cartas que falsamente são atribuídas a Paulo (I e II Timóteo e
Tito), o tratado teológico conhecido como Hebreus, a obra em dois volumes de Lucas
(evangelho e Atos dos apóstolos), alguns trechos tardios do evangelho conforme João
e o Apocalipse.
Todos esses textos, exceto o Apocalipse, demonstram conformidade com a não
ocorrência da parusia, que é a vinda gloriosa de Jesus Cristo que põe fim à história da
humanidade. Os primeiros textos do Novo Testamento que foram escritos, tais como o
evangelho conforme Marcos e as cartas paulinas autênticas, deram a entender que a
parusia ocorreria durante o período de vida dos primeiros cristãos, por isso não havia
motivos para se preocupar com o desenvolvimento de uma instituição.
O Apocalipse é uma exceção, pois apesar de ter sido escrito tardiamente, compartilha
o sentimento de grande expectativa pela vinda de Cristo que está nos primeiros escritos
cristãos. Além disso, João (que não é o mesmo do 4º evangelho, nem das epístolas
joaninas) é um profeta judeu que está exilado em Patmos e envia um texto apocalíptico
para circular entre sete igrejas da Ásia Menor, no qual há exortações para cada uma
das comunidades que lá estão estabelecidas.
O ponto de vista de João é o de um judeu, por isso proíbe o consumo de carne
sacrificada ao ídolo (Ap 2.14), coisa que Paulo tolerava (I Co 8.4). Em sua visão do
paraíso, o visionário João vê uma Nova Jerusalém, que tem doze portas, uma para
cada tribo de Israel, isso é, uma restauração de Israel, na qual, portanto, os pagãos,
caso sejam recebidos, pertencem à segunda classe.
Essa rápida passagem pelos textos que compõem o Novo Testamento nos mostra
que há pluralidade nas comunidades cristãs desde a origem do cristianismo. Não é
possível encontrar um discurso monolítico, pois há desde o começo manifestações
de um cristianismo judaico, um cristianismo da diáspora, um cristianismo preocupado
com a instituição, um cristianismo apocalíptico e outros que não foram mencionados
nesse texto.
Considerações finais
assim como com suas camadas literárias. Ao ler a bibliografia indicada e outras obras
eruditas, você poderá confirmar o que aprendeu e se aprofundar no conhecimento
dessas noções, assim como desenvolver uma análise crítica.
O importante é situar os eventos do Novo Testamento na história e no ambiente em
que aconteceram de fato, evitar anacronismos e distopias. Assim manteremos nossos
pés no chão ao analisar e interpretar as escrituras sagradas com responsabilidade e
apego à verdade, que é tão preciosa para a proclamação do evangelho tanto quanto
para a pesquisa científica.
CAPÍTULO 8
A FORMAÇÃO DO
CÂNON BÍBLICO
Introdução
Já apresentamos para vocês quais são os livros da Bíblia Hebraica e das Bíblias
cristãs em suas versões católica e protestante. Também conhecemos as principais
traduções da Bíblia para a língua portuguesa. A partir de agora discutiremos a história
e a motivação teológica que levou esses livros a fazerem parte das escrituras sagradas
dos judeus e dos cristãos, e também discutiremos a contrapartida envolvida nesse
processo, a saber, o processo que levou certos livros a não serem incluídos na Bíblia.
Para começar a discussão, devemos lembrar – de acordo com o que já estudamos
– que os livros que estão na Bíblia foram escritos individualmente e circularam como
obras independentes antes de serem compilados e formarem as escrituras sagradas,
quer judaicas, quer cristãs.
Então a questão sobre a qual nos debruçamos a partir de agora é a seguinte: Por
que alguns livros foram aceitos como inspirados por Deus e colocados ao lado de uma
série de outros livros, enquanto outros foram rejeitados? Em outros termos, a mesma
pergunta pode ser feita assim: Por que alguns livros foram canonizados e outros não?
Verificaremos que os livros que foram eleitos para compor a Bíblia não foram
escolhidos arbitrariamente por um e outro indivíduos que selecionaram os livros ao seu
bel prazer. Ao invés disso, o procedimento de seleção de livros que seriam canonizados
– que formariam o canôn, a Bíblia – aconteceu ao longo de um processo histórico e
foram propostos critérios claros para aceitação ou rejeição dos livros.
Então outras perguntas às quais somos remetidos são: Quais foram os critérios
estabelecidos para que os livros fossem aceitou no cânon ou rejeitados? Uma vez que
esses critérios foram estabelecidos, eles foram também cumpridos ou foram usados
apenas como formalidade?
Vamos responder todas essas perguntas, mas antes precisamos entender direitinho
o significado de uma palavra que foi repetida várias vezes nessa introdução, devemos
1. Cânon
O termo “cânon” vem da língua hebraica, na qual é utilizado para designar o instrumento
que o carpinteiro usa para medir, o qual tem a mesma função que atribuímos a uma
régua ou a qualquer outro instrumento de medida.
Como o sentido literal da palavra é esse, por extensão, o termo passou a significar
metaforicamente “medida padrão”, no que se refere a um regulamento, no qual há
uma determinada lista de recomendações, para ser mais preciso, uma “regra”. Assim,
a palavra regra tornou-se uma das possibilidades de se entender o termo “cânon”.
Devido ao surgimento de muitos livros supostamente sagrados, surgiu gradativamente
entre judeus e cristãos, a necessidade de uma “medida padrão” dos livros que realmente
eram amplamente aceitos como sagrados. Passou a ser necessário desenvolver a
noção de “regra de fé”. Em contrapartida a esses restariam outros livros que seriam
rejeitados e ficariam fora dessa lista de livros.
Desse modo, “a regra de fé”, “a medida padrão”, dos livros sagrados passou a ser
chamada de “cânon”, e os livros que o formariam seriam chamados de canônicos, pois
eram considerados livros que estavam dentro da regra de fé, dentro da medida padrão.
Essa informação, logo de cara, deixa claro que são as instituições religiosas
(nesse caso, seja judeus ou cristãos) que compilaram seus livros sagrados, e não o
contrário, pois – como será observado – não foram os livros sagrados que formaram
as instituições religiosas.
Para definir quais seriam os livros canônicos, as instituições tiveram que estabelecer
critérios e cada uma tinha necessidade de estabelecê-los diferentemente, pois tinham
necessidades particulares. Vejamos a seguir agora quais foram.
Os primeiros cristãos eram judeus que acreditavam que Jesus era o messias
prometido por Deus aos seus ancestrais, de acordo com o que estava em seus livros
sagrados. Mesmo tendo fé que Jesus era o messias, esses judeus se mantinham
fieis a todas as tradições de seu povo. Eram fieis a essas tradições ao guardarem o
sábado como dia santo, ao praticarem dietas alimentares, ao praticarem as demais
exigências e ao se absterem das proibições que estavam prescritas na Lei.
Sabe-se que até a década de 70 d.C. os judeus eram tolerantes com a pluralidade
de movimentos que existia dentro da religião deles. Existiam judeus que eram
conservadores, por isso não aceitavam doutrinas que entendiam ser novidade, como
a ressurreição dos mortos e o juízo final (saduceus); existiam judeus que entendiam
que a manifestação do Reino de Deus aconteceria na terra em breve, mas para isso era
necessário engajamento de todo o povo ao guardar a Lei de Deus (fariseus); existiam
também aqueles que praticavam a Lei de modo muito mais rigoroso que os outros
grupos e por isso resolveram viver em isolamento, em uma comunidade alternativa
(essênios); e entre outros movimentos, existiam os chamados cristãos, que eram
judeus que acreditavam que Jesus era o messias.
Apesar da pluralidade de expressões, todos esses grupos eram judeus. Sem usar
o termo com conotação negativa, podemos dizer que saduceus, fariseus, essênios
e cristãos eram ‘seitas’ de uma mesma religião, que era o judaísmo antigo. Apesar
das diferenças que tinham entre si, todos esses judeus conviviam razoavelmente
bem (exceto os essênios que se isolaram no deserto por opção própria). O templo
de Jerusalém era aberto para as diferentes seitas judaicas e as sinagogas, que eram
agrupamentos de judeus para ensino da Lei, era frequentado por diferentes grupos
judaicos.
Essa realidade mudaria a partir da década de 70 d.C., quando aconteceu a guerra
dos judeus contra os romanos. Naquela ocasião, os judeus se uniram para formar
exércitos que tinham a finalidade de combater e expulsar a presença opressora dos
soldados romanos que ocupavam o território deles. O problema foi que os cristãos
não aderiram à convocação dos outros judeus e não aceitaram participar de uma
guerra armada, porque Jesus tinha ensinado a oferecer a outra face, quando alguém
lhe der um tapa em uma delas (Lucas 6.29). O próprio Jesus tinha sido morto sem
expressar reação, vítima de violência, por isso os cristãos não deveriam agir de modo
diferente do que fez o mestre deles.
A consequência imediata da recusa da participação dos cristãos na guerra foi a
expulsão deles do templo de Jerusalém e das sinagogas, a exclusão deles do cenário
da vida pública na Judeia, em certos momentos aconteceu até a perseguição de
todos que se declaravam crentes em Cristo. Em um prazo um pouco mais extenso, a
Por esses critérios, ficaram excluídos os livros chamados a partir daí de Deutero
canônicos (Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria e Eclesiástico) por terem sido
escritos em língua grega e não terem antiguidade suficiente.
Implicitamente, também de acordo com esses critérios, a língua hebraica passou
a ser reconhecida como o único idioma no qual Deus inspirou as escrituras. Como
resultado a Septuaginta, que era uma versão grega da Bíblia usada havia séculos
pelos próprios judeus foi formalmente rejeitada pelo judaísmo.
Assim foi formado o cânon judaico, a partir de 24 livros (cf. Aula 2) escritos em
língua hebraica, que gozavam de antiguidade e eram amplamente reconhecidos pelos
judeus. O livro sagrado dos judeus estava definitivamente fechado.
A ordem desses livros, como já aprendemos, era a seguinte: Lei (em hebraico: Torah),
Profetas (em hebraico: Neviim) e Escritos (em hebraico: Ketuvim). As iniciais dessas
três palavras hebraicas formam o acróstico TNK, que é pronunciado Tanakh, que é a
palavra que os judeus utilizam para se referir à Bíblia Hebraica.
A ordenação dos livros da Bíblia Hebraica de acordo com as três classificações
estabelece uma hierarquia na autoridade dos livros bíblicos para o judaísmo. Em
primeiro lugar a Lei, a Torah, é o coração da Tanakh; em segundo lugar, os livros dos
profetas, Neviim, são interpretações da Torah, por isso fruem de uma influência inferior;
por sua vez, os Escritos, Ketuvim, estão na superfície da Tanakh, são cânticos, provérbios,
Quanto ao cânon cristão, sua formação se prolongou até o século IV d.C., mas
seus rudimentos já tinham sido dados na época em que os judeus afastaram os
cristãos de seu convívio comunitário. Podemos dizer isso, porque a Septuaginta – que
é tradução da Bíblia Hebraica para a língua grega, junto com a qual estão também
os livros chamados de Deuterocanônicos – foi rejeitada pelos judeus e aceita pelos
cristãos sem nenhum problema.
Ao que tudo indica, as autoridades do judaísmo do século I d.C. rejeitaram a
Septuaginta, que tinha sido feita pelos próprios judeus, porque era com base na tradução
grega que os cristãos estavam apontando que Jesus Cristo cumpriu as profecias e
deveria ser reconhecido como messias enviado por Deus. Apesar de ser um livro judeu,
a Septuaginta estava sendo mais usada por cristãos do que por judeus, e por isso
o judaísmo a abandonou. Em contrapartida, os cristãos aceitaram como canônicos
tanto os livros da Septuaginta, quanto sua língua, pois nela foram baseados os livros
escritos pelos seguidores de Jesus.
O desafio maior que os cristãos enfrentaram foi para a formação do cânon do Novo
Testamento, pois sua religião, após a separação do judaísmo, era caracterizada como
um movimento marginalizado, muitas vezes perseguida tanto por judeus quanto por
antes que os evangelhos, mas devido a não narrarem praticamente nada a respeito
da vida de Jesus na terra, mas ao invés disso, ensinarem como os cristãos devem
viver a fé no Jesus Cristo ressuscitado, esse documentos foram colocados depois
dos evangelhos, para que a vida de Cristo precedesse a doutrina a respeito de Cristo.
Outras cartas (Tiago, I e II Pedro, I, II e III Pedro e Judas) e documentos (Hebreus), que
foram escritas sob o nome de outros apóstolos, apesar de eles não terem realmente sido
seus autores, foram colocadas na sequência das cartas paulinas, como complemento
à doutrina que a Igreja Cristã entende necessária para a vida de fé.
Por fim, o Apocalipse foi colocado no cânon, como um termo ao seu conteúdo, já
que é um livro que trata das últimas coisas, do julgamento final. O problema é que
a linguagem desse livro está repleta de desejo de vingança e de manifestações de
violências, que parecem difícil ser associadas àquele Jesus que ensinou a dar a outra
face.
Não por acaso, o Apocalipse teve dificuldade para ser aceito no cânon, mas conseguiu
o status de canônico, desde que seja compreendido que está em último lugar, isto é,
depois da revelação de Jesus Cristo encarnado (evangelhos) e depois dos ensinos e
doutrinas necessários para a vida de fé (cartas).
Esse é o conjunto de livros que formou o cânon do Novo Testamento, mas para
que fosse alcançado esse resultado, os cristãos fizeram muito esforço em torno da
busca pela unidade que originalmente não tinham. Fizeram isso porque no século II
d.C. começaram a surgir muitos escritos cristãos novos, cuja doutrina era estranha
ao conteúdo dos livros que já tinhas sido amplamente divulgado.
Surgem escritos que são atribuídos a autores cristãos, mas negam doutrinas
fundamentais, como a encarnação e a ressurreição de Jesus Cristo. Também negam
que o cristianismo tenha relação com o judaísmo e, por conseguinte, negam que o
Antigo Testamento e o Deus que se revelou aos judeus seja o mesmo Deus Pai de
Jesus Cristo.
O pensamento ao qual esses escritos remetem ficou conhecido como Gnosticismo. O
segmento maior dos cristianismo rejeitou suas ideias e seus escritos foram considerados
espúrios e não deveriam ser lidos pelos cristãos. Posteriormente esses livros ficaram
conhecidos como “apócrifos”, que quer dizer “escondidos”, por serem proibidos.
Havia também muitos outros livros que pareceram espetacularistas demais quanto
comparados aos demais livros canonizados. Um livro antigo chamado Apocalipse
de Pedro, por exemplo, narrava em detalhes os sofrimentos do inferno e os deleites
do paraíso. Parece que esse tipo de especificidade não era bem recebido porque
a linguagem de toda a Bíblia cristã, tanto Antigo quanto Novo Testamentos é bem
lacunar. Enfim, esses escritos apocalípticos também foram considerados espúrios e
sua autoria falsificada.
Os cristãos também estabeleceram critérios para que um livro fosse canonizado:
1) Língua grega;
2) Antiguidade;
3) Autoria apostólica;
4) Amplo reconhecimento.
De uma vez por todas, os livros canônicos foram estabelecidos no século IV, quando
foi lavrado, entre os anos 492 e 496, o documento enviado pelo bispo de Alexandria,
Atanásio (295-373 d.C.), o qual continha a lista de livros sagrados que atendiam os
critérios que mencionamos aciama.
Assim como o judaísmo entende que a Torah é o das escrituras, os cristãos
também têm uma forma de hierarquizar os documentos que compõem sua Bíblia. O
entendimento é que o evangelho é o centro da Palavra de Deus, que se expressa pelas
escrituras. À luz do evangelho devem ser lidos os restantes dos livros do Antigo e do
Novo Testamento cristão. É com esse propósito que as liturgias da Igreja Católica
Romana e das igrejas protestantes realizam três leituras bíblicas regularmente, com
o objetivo de apontar que o evangelho é o centro e que as outras partes da Bíblia são
iluminadas por ele.
Diante do que foi exposto, você deve ter ficado esclarecido quanto ao processo
histórico que levou à formação do cânon. Isso significa que a lista dos livros que
foram aceitos na Bíblia foi desenvolvida ao longo da história da Igreja. Nada disso
aconteceu por acaso ou do dia para a noite, nem caiu do céu uma lista completa de
livros sagrados.
Como surgiu a partir de um processo longo e complexo, o cânon teve várias
configurações até que chegasse à sua forma final, como a conhecemos hoje, quer
seja o cânon católico romano, quer seja o protestante. Afinal de contas, a diferença
entre eles é apenas de seis livros e mais alguns trechos aqui e acolá, nada que altere
a estrutura do livro sagrado.
As igrejas de diferentes regiões tinham cânons diferentes no Mundo Antigo. Em
Roma, por exemplo, aceitavam a I Carta de Clemente de Roma como canônica, na Síria
aceitavam no cânon um documento chamado Didaquê e em Alexandria, aceitavam o
texto chamado Epístola de Barnabé. Ao mesmo tempo que, por um lado, os grupos
cristãos de diferentes regiões tinham livros exclusivos em seus cânons, por outro
lado, cada um deles tinha a ausência de alguns livros que eram aceitos pelos demais
cristãos.
Quando, no século IV, o cânon foi estabelecido graças ao trabalho de Atanásio
de Alexandria entre outros pais da Igreja, os cânons particulares tiveram que ser
abandonados para que o cânon católico fosse aceito em todas as igrejas cristãs
do mundo conhecido. Assim, pela uniformização da Igreja, as comunidades cristãs
tiveram que retirar de seus cânons livros que eram reconhecidos como canônicos e
incluir livros que não eram reconhecidos.
Independentemente dos motivos pelos quais isso tenha ocorrido, algumas
comunidades cristãs não aderiram ao cânon católico. Sabe-se que parte dessas
comunidades cristãs resistiram à Igreja Católica, mas outra parte simplesmente esteve
isolada do processo de institucionalização eclesiástica que se desenvolvia na Europa
ocidental. As igrejas antigas que não têm o cânon idêntico ao da Igreja Católica Romana
são as chamadas ortodoxas, dentre as quais há: a grega, a eslavônica, a georgiana,
a armênia, a síria, a cópta, a etíope e a assíria do Oriente.
Não vamos falar em detalhes a respeito de cada um desses cânons particulares,
porque não vem ao caso no momento. Apenas vale a pena sabermos que essas
Igrejas Ortodoxas têm suas Bíblias sagradas com diferentes conjuntos de livros. A
Igreja Ortodoxa Etíope, por exemplo, manteve em seu cânon o antigo livro apócrifo
de Enoque, que por muito tempo foi desconhecido no Ocidente, embora tenha sido
lido pelos primeiros cristãos. Outro exemplo, no cânon ortodoxo sírio o número de
salmos é 155. Os diferentes cânons mostram a pluralidade da Igreja Cristã Antiga e
nos ensinam até hoje a respeitar os diferentes grupos cristãos.
ANOTE ISSO
VERMES, Gesa. Os Manuscritos do Mar Morto. Trad. Julia Bárány Bartolomei e Maria
Helena de Oliveira Tricca. São Paulo: Editora Mercuryo, 1991.
Talvez você já tenha ouvido falar dos Manuscritos do Mar Morto, mas agora
precisamos entender um pouco mais sobre esse importante conjunto de livros antigos.
Os Manuscritos do Mar Morto tratam-se de uma variedade de livros sagrados que
foram encontrados nas cavernas do deserto de Qumran. No meio dessa variedade
existiam livros que fazem parte da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) e outros que
não foram canonizados, mas eram considerados sagrados para os qumramitas, que
eram os judeus sectários que habitaram o deserto de Qunram para viver a sua religião
separadamente dos outros judeus, que eles consideravam apóstatas.
Os livros encontrados em Qunram podem ser classificados em três grupos: Textos
que pertenceram a algum cânon cristão, em primeiro lugar (1.1) Textos Bíblicos:
Nesse grupo encontram-se todos os textos do Antigo Testamento (conforme o cânon
protestante), exceto Ester. Dentre estes existem textos em aramaico, chamados
targumim, e sete textos em grego; (1.2) Quatro textos deuterocanônicos em aramaico
e, ou hebraico: Tobias, Eclesiástico, Carta de Jeremias (Baruc 6) e o Salmo 151; (2)
Livros Pseudoepígrafos: I Enoque, Jubileus, Testamento dos Doze Patriarcas, Genesis
Apócrifo, Textos de Noé, Texto de Jacó, Textos de José, Texto de Caat, Textos de Moisés,
Textos de Josué, Textos de Samuel, Textos de Davi, Textos de Jeremias, Textos de
Ezequiel, Textos de Daniel, Texto de Ester; (3) Textos sectários: (3.1) Pesharim bíblicos
(Pesharim são antigos comentários bíblicos judaicos), Pesharim específico: esses são
os comentários realizados à luz do ensino de um líder da seita, conhecido como Mestre
Outra biblioteca antiga foi encontrada num deserto, o que ocorreu em 1945, no
Egito. O material encontrado ficou conhecido como Biblioteca Gnóstica de Nag
Hammadi. Trata-se de um conjunto de livros escritos na antiga língua copta. Esses
livros pertenceram a um grupo cristão sectário chamado gnóstico, que era considerado
pelos Pais da Igreja como hereges devido às doutrinas contidas em seus livros.
Os gnósticos rejeitavam a herança judaica do cristianismo e aderiram à filosofia
e aos ensinos gregos de modo muito mais radical e aprofundado que outros grupos
cristãos. Isso significou a rejeição do Antigo Testamento, a rejeição da crença de que
o Deus dos judeus fosse o mesmo pai de Jesus Cristo, assim como a rejeição de toda
tradição relacionada a Israel e a rejeição da doutrina da ressurreição do corpo, pois os
gnósticos acreditavam que a matéria é ruim e apenas o espírito é bom. Os gnósticos
realmente tinham doutrinas muito estranhas para os outros grupos cristãos e isso
os levou a serem rejeitados.
Com o desenvolvimento do cristianismo católico, os gnósticos foram perseguidos e
possivelmente foi por isso que esconderam seus livros nas areias do deserto do Egito.
Lá os manuscritos se mantiveram preservados por séculos e, após serem encontrados,
foram estudados pelos teólogos, editados, traduzidos para as línguas modernas e
publicados.
Mais uma vez, a descoberta desses livros serve para proporcionar a nós o conhecimento
das diversas concepções cristãs que existiram no Mundo Antigo. Foram encontrados treze
códices, nos quais estão registrados o conteúdo de cinquenta e dois livros, os quais em
alguns casos estão duplicados e por isso totalizam cinquenta e três lviros, como está na
lista a seguir: No total há:(1) Oração do Apóstolo Paulo; (2) Apócrifo de Tiago; (3) O Evangelho
da Verdade; (4) Tratado sobre a ressurreição; (5) Tratado tripartite; (6) Apócrifo de João, versão
longa; (7) Evangelho de Tomé; (8) Evangelho de Filipe; (9) Hipóstase dos Arcontes; (10) Sobre
a origem do mundo; (11) Exegese da alma; (12) Livro de Tomé, o adversário; (13) Apócrifo
de João, versão curta; (14) Livro Sagrado do Grande Espírito Invisível; (15) Eugnostos; (16)
Sabedoria de Jesus Cristo; (17) Diálogo do Salvador; (18) Apócrifo de João, versão curta; (19)
Livro Sagrado do Grande Espírito Invisível; (20) Eugnostos; (21) Apocalipse Copta de Paulo; (22)
Primeiro Apocalipse de Tiago; (23) Segundo Apocalipse de Tiago; (24) Apocalipse de Adão; (25)
Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos; (26) O Trovão: a mente perfeita; (27) Discurso autorizado;
(28) O Conceito do nosso grande poder; (29) A República de Platão; (30) O Discurso sobre o
Oitavo e o Nono; (31) A Oração de Ação de Graças; (32) Asclépio 21-29; (33) Paráfrase de Sem;
(34) Segundo tratado do grande Sete; (35) Apocalipse gnóstico de Pedro; (36) Ensinamentos
de Silvano; (37) As três estelas de Sete; (38) Zostrianos; (39) A Epístola de Pedro a Filipe; (40)
Melquisedeque; (41) O Pensamento de Norea; (42) Testemunho da Verdade; (43) Marsanes; (44)
A Interpretação do conhecimento; (45) Exposição Valentiana; (46) Alógenes; (47) Hipsifrone;
(48) Sentenças de Sexto; (49) Evangelho da Verdade; (50) Protenoia trimórfica; (51) Sobre a
Origem do Mundo; (52) Evangelho de Maria Madalena;
Considerações finais
CAPÍTULO 9
CRÍTICA TEXTUAL
Introdução
Você sabia que o livro que chamamos de Bíblia vem de um contexto do Mundo
Antigo em que os livros eram escritos e copiados à mão? Você já pensou que se toda
vez que alguém fazia uma cópia à mão da Bíblia, essa pessoa cometesse pelo menos
um erro (geralmente cometia muito mais), isso levava ao surgimento de uma nova
versão do texto? Se isso acontecia – e ocorria de fato – a consequência é que surgia
um número de novas versões conforme o número de novas cópias.
O estudo das diferentes variantes das passagens bíblicas que estão nos textos
escritos à mão, chamados de manuscrito, é a crítica textual, procedimento ao qual
nos deteremos a aprender ao longo dessa nossa aula. Este é um importante passo a
ser dado para se realizar um estudo aprofundado do texto bíblico.
Trata-se de definir qual o texto a ser estudado a partir das variantes textuais, o que
é feito a partir do conhecimento dos textos que estão nos manuscritos. Esse tipo de
pesquisa é realizado com o objetivo de se chegar tão perto quanto possível do texto
original, que não existe mais, já que sabemos que todos os autógrafos originais se
perderam de uma vez por todas.
– Prontos para o desafio dessa unidade?
geralmente cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha. Também havia outro material que
poderia ser utilizado como superfície para a escrita, o papiro, que foi desenvolvido
pelos egípcios que o obtinham a partir de uma planta típica da região do Nilo. Tanto
um quanto outro material era muito caro e por isso era muito valorizado.
Naquela época, o número de pessoas alfabetizadas era muito reduzido, apenas
uma pequena porcentagem da população do Mundo Antigo sabia ler. Um número
ainda menor tinha a habilidade da escrita. Era raro o hábito de leitura individual, em
vez disso, o que acontecia com frequência é que o membro de uma comunidade que
sabia ler realizava a leitura para o grupo todo, sendo ele o único a portar o manuscrito
em mãos.
Se o número de pessoas alfabetizadas no mundo antigo era tão pequeno, isso
significa que aqueles que tinham a capacidade de ler compunham um grupo seleto,
o que os caracterizava também como um grupo detentor de certo poder. Certamente
é por esse motivo, além de outros mais específicos, que os copistas com frequência
se viam no direito de alterar os textos que estavam sendo copiados. Muitas vezes
corrigiam sua teologia ou alteravam seu conteúdo supostamente para melhorar sua
compreensão.
Existiam copistas que eram escravos encarregados da função da escrita, existiam os
chamados amanuenses, que eram algo semelhante ao que chamamos de secretários,
que exerciam essa função por salário ou porque queriam colaborar gratuitamente
com a divulgação por escrito do conteúdo ensinado por seu determinado mestre.
Isso significa que quando estamos dizendo que os copistas tinham certo poder, não
estamos nos referindo a poder econômico, mas ao poder que um conhecimento que
era possuído por poucos lhes proporcionava.
Sabe-se, então, que ao menos parte das cópias que eram feitas foram produzidas
por profissionais que copiavam os textos a partir da versão que tinham acesso direto.
Nesse caso, o copista copiava o texto enquanto lia um manuscrito que estava ao
alcance de sua visão.
Mas os copistas também trabalhavam de outro jeito. Havia casos em que vários
copistas ouviam ao mesmo tempo um leitor que lhes ditava o conteúdo a ser escrito
e assim transcreviam para a superfície material o conteúdo oral do leitor, desse modo
era possível se produzir várias cópias ao mesmo tempo.
Era comum que os copistas profissionais cometessem erros, como o de copiar
duas vezes a mesma palavra ou mesma linha, pular uma determinada palavra ou uma
determinada linha. Erros como qualquer um de nós já cometeu quando teve que copiar
um longo texto à mão. Porém, quando o copista era amador, esses erros aconteciam
com muito mais frequência, inclusive no mesmo manuscrito.
O tinteiro no qual estava contida a tinta, feita de elementos naturais, era colocado
sobre um móvel para que o copista molhasse a pena antes de escrever cada palavra
ou parte de cada palavra. O problema é que se uma mosca pousasse na tinta e depois
pousasse sobre a superfície em que o texto estava sendo copiado poderia danificar o
trabalho, borrando as palavras ou alterando o significado de algumas delas, pois na
língua hebraica as vogais são grafadas com pontinhos, chamados sinais massoréticos,
conforme já explicamos anteriormente.
Para aproveitar o máximo possível da superfície material, seja do pergaminho ou
do papiro, os copistas utilizavam tanto quanto possível de seu espaço. Muitas vezes
restauravam os pergaminhos e papiros, raspando o que estava escrito antes para
reutilizá-los, e assim escreviam outro texto sobre essa superfície. O material que foi
raspado e reutilizado é chamado de palimpsesto.
Também com o propósito de valorizar o precioso espaço destinado à escrita, os
copistas com muita frequência usavam abreviaturas de palavras comuns que eles
presumiam ser compreensíveis para os leitores de sua época. Abreviavam, por exemplo,
a palavra grega “Theós” [port. Deus] por “TS”, a palavra “Kýrios” [port. Senhor] por “KS”,
a palavra “Yios” [port. filho] por YS e outras abreviações feitas por processo semelhante
– diga-se de passagem, apesar de termos transliterado, as palavras citadas são da
língua grega, por isso escritas com letras gregas.
No Mundo Antigo não havia a convenção de separar as palavras. Todas as letras
do texto inteiro eram unidas indistintamente. Também não existia distinção de letra
maiúscula para início dos parágrafos e nomes próprios e minúsculas para o restante.
O texto todo era escrito em letra maiúscula ou minúscula. A separação entre palavras
e a distinção entre letras maiúsculas e minúsculas só surgiu posteriormente, próximo
da Idade Média.
Se as condições em que um copista profissional trabalhava para exercer seu oficio
no Mundo Antigo não eram nada fáceis, imagine como eram as condições de trabalho
em que um copista amador escrevia seus textos. O material era ainda mais escasso,
dada a falta de recursos para compra-lo; sua ortografia muitas vezes deixava a desejar;
sua habilidade para copiar não era tão aperfeiçoada; e os instrumentos de trabalho
também eram inferiores. Essa precariedade toda resultaria em cópias inferiores às
dos profissionais.
FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 118
EXEGESE E HERMENÊUTICA
PROF. FRANCISCO BENEDITO LEITE
2. Os manuscritos
O livro conhecido no nosso mundo como Bíblia Sagrada é uma coletânea de textos
que foram escritos individualmente ao longo de séculos do mundo antigo, época em
que os livros eram escritos à mão, sobre superfícies materiais como o pergaminho e
o papiro, conforme acabamos de descrever.
Na maioria dos casos, esses livros que comporiam a Bíblia, depois de terem sido
escritos e circularem como obras independentes, foram agrupados e formaram o
cânon, que é a medida de livros considerados inspirados por Deus, de acordo com
critérios estabelecidos pelas autoridades religiosas que o adotaram.
Há diferentes cânons, por exemplo, os judeus entendem como canônica a mesma
porção de livros que os cristãos chamam de Antigo Testamento, mas com a diferença
no modo como esses livros se constituem; a Igreja Católica Romana considera que são
canônicos quarenta e cinco livros que estão na porção da Bíblia chamada de Antigo
Testamento mais vinte e sete livros que estão na porção da Bíblia que é chamada de
Novo Testamento; enquanto que para as igrejas protestantes, o número de livros que
compõem o Novo Testamento é o mesmo, mas apenas trinta e nove livros compõem
o Antigo Testamento, isto é, não consideram igualmente inspirados seis livros do
cânon católico romano. Por sua vez, as igrejas ortodoxas (Igreja Ortodoxa Copta,
Igreja Ortodoxa Etíope, Igreja Ortodoxa Síria e outras) também têm diferentes cânons,
diferentes “medidas” para os livros considerados inspirados.
Vamos deixar a discussão sobre o processo histórico que levou ao surgimento
da ideia de cânon e suas medidas para uma aula futura. No momento, o que deve
estar claro para nós é que a Bíblia não foi escrita por uma única mão. Muito diferente
disso, a escrita da Bíblia foi realizada, provavelmente, ao longo de mais de um milênio
(ou, pelo menos, quase um milênio), por diversos autores, mas também por diversos
copistas que realizaram alterações no conteúdo do texto bíblico ao inserirem redações
explicativas, glosas, correções e erros conscientes e inconscientes.
O fato é que não existe nem sequer um texto original da Bíblia. Isto é, os autógrafos
originais não existem mais. Nomeiam-se autógrafos, os textos que foram escritos
pelos autores bíblicos, os textos originais, a partir dos quais todas as outras cópias
seriam feitas.
O que complica ainda mais a situação é que não existem sequer cópias feitas
diretamente desses autógrafos. Os manuscritos existentes são cópias tardias, ou
seja, cópias feitas a partir de cópias de cópias de cópias... que foram feitas após um
longo processo de alterações dos textos que estavam nos autógrafos.
Esse processo de multiplicação de versões de cópias diferentes umas das outras
e também dos autógrafos, que foram perdidos, exige que aqueles que se propõem
a estudar profundamente o texto bíblico realizem uma busca pelo texto original (ou,
pelo menos, pelo texto mais próximo possível do original), essa pesquisa é chamada
de crítica textual.
3. A crítica textual
ANOTE ISSO
Conheça as edições críticas da Bíblia disponíveis nas livrarias para estudantes brasileiros:
Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2011.
O Antigo Testamento foi escrito em hebraico, língua dos judeus, por isso sua edição crítica é
chamada de Bíblia Hebraica. Esse conteúdo corresponde à totalidade dos livros considerados
inspirados por Deus pelos judeus.
Septuaginta (LXX) – Editio Altera – Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes
edidit Alfred Rahlfs. Barueri (São Paulo), SBB (Sociedade Bíblica do Brasil) & Deutsche
Bibelgesellschaft, 2011.
A Septuaginta, que também pode ser indicada pelo numeral romano LXX, possui mesmo
conteúdo da Bíblia Hebraica, traduzido para a língua grega, mais alguns livros que não foram
canonizados pelos judeus por terem sido escritos em grego; Essa obra foi produzida pelos
próprios judeus na cidade egípcia de Alexandria a partir do século IV a.C.
Novum Testamentum Graece. NESTLE, Eberhard et al (Eds.). 28 ed. rev. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 2012.
O Novo Testamento foi escrito totalmente em língua grega pelos cristãos. Embora em sua
maioria, os autores cristãos tivessem origem judaica, eles escreveram em grego porque
era a língua mais falada no mundo em que viveram e também porque queriam manter o
padrão de linguagem da Septuaginta, já que eles tinham lido essa versão da Bíblia.
Bíblia Sacra Vulgata. Iuxta Vulgatam Versionem. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2020.
Trata-se da edição crítica da tradução dos conteúdos da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento
para a língua latina, realizada pela primeira vez no Mundo Antigo por Jerônimo, séc V d.C.
chamar atenção para o fato de ter publicado o Novo Testamento em sua língua original
para que os estudiosos da época pudessem acessar o conteúdo no idioma original ao
invés de uma tradução latina, que impedia seu leitor de conhecer importantes termos
teológicos que só podem ser compreendidos e devidamente interpretados a partir da
língua original. Não é por acaso que o reformador alemão Martinho Lutero realizou a
primeira tradução da Bíblia para uma língua vernácula, no caso, para a língua alemã
utilizando essa edição crítica do Novo Testamento.
A edição preparada por Erasmo pode ser considerada modesta para quem olha para
ela a partir do nosso contexto, no século XXI, mas, na verdade, foi um grande avanço
científico para a Teologia e proporcionou desenvolvimentos muito significativos para
o conhecimento da história, da formação e da transmissão dos textos que viriam a
compor a Bíblia.
Na sequência da edição crítica preparada por Erasmo, muitas outras foram
publicadas. A edição crítica mais atualizada que temos no momento é a 28ª edição do
Novo Testamento Grego, também conhecida como Nestle-Aland, ou ainda NA28. Essa
edição traz em suas páginas o texto grego reconstituído a partir do que os estudiosos
que a elaboraram entenderam ser a melhor opção em vista das variantes textuais
(lições) disponíveis, e no rodapé traz as indicações das variantes textuais para que
o leitor tenha acesso ao conteúdo de todos os manuscritos e os leiam criticamente.
Imagem 1: Novum Testamentum Graece. NESTLE, Eberhard et al (Eds.). 28 ed. rev. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012, p.481, (Rm 1.1-14).
Essa é a imagem de uma página da NA28. Mesmo sem entender a língua grega,
você vai compreender como essa obra deve ser utilizada para se realizar a crítica
textual. Veja, do lado direito da página estão notas de concordância bíblica, que são
irrelevantes para a crítica textual, por isso não precisamos refletir sobre elas.
Olhe agora a parte inferior da página. Isso, sim, é importante. Abaixo, no rodapé
(ou pé de página), estão as variantes. Há a indicação do número do versículo bíblico
e, em seguida, letras, que podem ser gregas, hebraicas, latinas e ainda outras, que
indicam os manuscritos nos quais essa variante aparece. Para entender cada uma
dessas letras, há um manual que acompanha a NA28. Vamos ver a nota de rodapé
mais de perto, como na imagem a seguir:
Imagem 2: Nota de rodapé do Novum Testamentum Graece. NESTLE, Eberhard et al (Eds.). 28 ed. rev. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012, p.481.
Tomemos como exemplo o conteúdo que está nessa imagem, na terceira linha, a
partir de: “•7” [...]. Esse número refere-se ao versículo 7 do texto bíblico (Rm 1.7), no
qual está escrito: “πᾶσιν τοῖς οὖσιν ἐν Ῥώμῃ ἀγαπητοῖς θεοῦ, κλητοῖς ἁγίοις, χάρις ὑμῖν
καὶ εἰρήνη ἀπὸ θεοῦ πατρὸς ἡμῶν καὶ κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ”. [transliterado: pâsin toîs
oûsin en Rōmē agapētoîs theou, klētoîs agíois, cháris hymîn kaí eirēnē apó theou patrós
ēmōn kaí kyríou Iēsoû Christoû; traduzido: todos que estão em Roma, amados de Deus,
santos escolhidos, graça a vós, e paz, de Deus nosso pai e do Senhor Jesus Cristo].
Após essa indicação há letras que se referem a manuscritos (G, Or1739mg). “G” é
abreviação para Codex Boernerianus, um códice do século IX. “Or” é a abreviação do
nome de um antigo teólogo cristão, Orígenes. mg
indica “na margem”, significa que
na margem da cópia de um dos livros de Orígenes havia a citação desse versículo,
que, no caso, concordava com o manuscrito G. Depois disso temos o texto grego:
εν αγαπη θεου [transliterado: en agape theou; traduzido: no amor de Deus], por fim,
há a indicação de que “G” segue (it) a tradição da Vulgata Latina (vg), e de um antigo
comentador bíblico, chamado Ambrosiaster (Ambst).
Assim, a nota de rodapé indica que no Codex Boernerianus, na margem de uma cópia
de um livro de Orígenes, na tradição majoritária da Vulgata Latina e no comentador
Ambrosiaster, ao invés de “amados de Deus”, aparece escrito “no amor de Deus”. Desse
modo, o versículo que aparece na maioria das Bíblias assim: (1) “todos que estão em
Roma, amados de Deus, santos escolhidos, graça a vós, e paz, de Deus nosso pai e
do Senhor Jesus Cristo”, apareceria assim: (2) “todos que estão em Roma, no amor
de Deus, santos escolhidos, graça a vós, e paz, de Deus nosso pai e do Senhor Jesus
Cristo”.
Podemos nos perguntar: Por que a versão 1 foi preferida no lugar da versão 2? A
resposta é que o Codex Boernerianus, no qual aparece a variante textual, é do século
IX, enquanto os manuscritos em que aparece a outra variante são mais antigos e
mais confiáveis. Também as outras testemunhas (cópia do livro de Orígenes, Vulgata
Latina e Ambrosiaster) em que “no amor de Deus” aparece no lugar de “amados de
Deus” são mais tardias e menos confiáveis.
Esses são critérios para a crítica externa, pois se referem às informações externas
ao texto, como (a) múltipla atestação – a frequência da aparição de uma variante; (b)
manuscritos antigos e confiáveis – como apontamos no exemplo, o manuscrito do
século IX em que aparece a variante, e as outras aparições da determinada lição, são
menos confiáveis quando comparados com a variante que aparece em manuscritos
mais antigos e confiáveis; (c) manuscritos independentes entre si – como também
vimos no exemplo, todas as vezes que aparece a lição “no amor de Deus”, trata-se,
provavelmente, de manuscritos de uma mesma genealogia, ou seja, a variante foi feita
pela primeira vez em G e dela foi copiada na Vulgata Latina e nos outros documentos
menos importantes. Não há atestação da aparição dessa lição em outras genealogias.
Há também os critérios da crítica interna, ou seja, uma crítica que pode ser feita
com base exclusivamente no conteúdo interno da lição. Assim existe (a) a lição mais
difícil é preferível – isso significa que a variante que é mais difícil de ser compreendida
ou possui algum embaraço tem mais possibilidade de ser a original do que a outra,
porque a tendência dos copistas era corrigir as dificuldades aparentes e não criar mais
dificuldades teológicas para o texto; (b) a lição mais breve é preferível – a tendência
dos copias era aumentarem textos que entendiam lacunares, para explica-los, e não
diminuir textos mais extensos; (c) estilo e teologia do autor – é necessário ver se
qual das lições aparece em outros textos do mesmo autor, por exemplo, o texto lido,
de Romanos 1.7, é do apóstolo Paulo, então deve-se verificar se em um dos outros
seis textos de Paulo no Novo Testamento (além de Romanos, I e II Coríntios, Gálatas,
Filipenses, I Tessalonicenses e Filemon) aparecem as fórmulas: “amados de Deus”
ou “no amor de Deus”.
No caso da lição estudada, os critérios internos não são muito relevantes, pois
as duas variantes são fórmulas que não apresentam dificuldades teológicas, nem
dimensões muito diferentes. Quanto ao critério “c”, também não há nada de decisivo
nisso, embora “amados de Deus” seja mais comum ao linguajar de Paulo. A crítica
interna fica irrelevante, porque o problema já foi resolvido pela crítica externa, embora
em outros exercícios de crítica textual é possível que acontece o contrário, e a crítica
interna seja mais decisiva que a externa. Tudo dependera da particularidade da variante
estudada.
Considerações finais
Ficamos sabendo que os livros que compõem a Bíblia foram redigidos individualmente
e cada um deles foi escrito à mão, e que esse processo levou à multiplicação de
versões porque cada texto que era copiado continha erros cometidos pelos copistas
que acabavam se perpetuando para a sequência dos que futuramente fossem copiados
daquela mesma versão e não apareciam em outras versões copiadas de outros
manuscritos. Assim se formaram genealogias de textos.
Entendemos que a crítica textual, que é um importante passo a ser dado para se
realizar um estudo aprofundado das escrituras, é o procedimento utilizado para buscar
a melhor versão do texto diante da multiplicidade de manuscritos que correspondiam
a uma mesma passagem bíblica, é a busca do texto mais próximo possível do original
perdido, que é chamado de autógrafo original.
Descobrimos que as edições críticas da Bíblia já fizeram o serviço mais difícil, que
é o agrupamento de todas as variantes encontradas dos manuscritos bíblicos. Então
ficou possível selecionar o melhor manuscrito para se interpretar uma determinada
passagem bíblica, basta consultar a nota de rodapé de uma dessas edições críticas
e decifrar o significado de suas abreviaturas e símbolos.
CAPÍTULO 10
OS GÊNEROS LITERÁRIOS DA
BÍBLIA E SUA PRÉ-HISTÓRIA
Introdução
Para entender os gêneros dos textos bíblicos, precisamos primeiro reconhecer que
esses textos antigos tiveram uma pré-história num período em que eram discurso
oral, o que ocorreu antes de se tornarem textos escritos nos manuscritos que seriam
copiados, editados e canonizados como Sagrada Escritura.
A importância em conhecer a pré-história do texto está relacionada com a
identificação dos contextos em que o discurso oral foi proferido antes de ser escrito.
Esse conhecimento indicará que os textos bíblicos não são fruto da mente criativa de
um autor, como a literatura fictícia em geral, pois no caso da Bíblia, o texto foi vivido
antes de ser escrito.
Assim entenderemos que a exegese e a hermenêutica bíblica exigem que o gênero de
um texto seja estudado junto com a história de seu desenvolvimento formal. Somente
depois desse esclarecimento, poderemos partir para o estudo dos gêneros literários
na forma como estão estabilizados nas escrituras após um longo processo histórico
de desenvolvimento.
“E grande multidão o seguia, porque via os sinais que operava sobre os enfermos.
E Jesus subiu ao monte, e assentou-se ali com os seus discípulos” (Jo 6:2-3).
evangelhos e o mesmo vale para a menção do domingo como dia em que o relato
ocorreu, refere-se à passagem de Atos, mas podemos supor que outras passagens
tenham ocorrido no mesmo dia.
Assim, podemos resumir o seguinte cenário a partir dessas informações:
Além do contexto em que cada texto é construído, também aprendemos por meio
desses versículos mais algumas coisas importantes sobre os ensinamentos, discursos
e narrativas na Antiguidade, as quais se diferenciam significativamente do que acontece
na contemporaneidade. Por exemplo, não apenas Jesus, mas os mestres em geral, quer
sábios quer religiosos quer ensinadores de outros tipos, realmente atraiam multidões.
Na era em vivemos, embora ainda exista, está cada vez mais raro ver casos de pessoas
abandoarem suas vidas particulares para acompanhar um mestre ou peregrinar em
sua direção. Também é difícil reunir multidão em torno de um discurso e mais raro
ainda que pessoas estejam dispostas a ouvir uma mesma pessoa falando por horas
seguidas sem parar. No Mundo Antigo tudo isso era bem comum.
No Mundo Antigo não havia muitos meios de entretenimento, a maioria das pessoas
era analfabeta e absolutamente não tinha acesso a livros, que eram objetos raros
e caríssimos, então ouvir ensinamentos e histórias ocupava parte considerável do
tempo que as pessoas tinham disponível quando não estavam trabalhando. Nesse
contexto histórico, os oradores e contadores de histórias eram hábeis na sua capacidade
discursiva, pois conseguiam prender a atenção de seu auditório por horas a fio sem
que tivessem o desejo de ir embora. Os contadores de histórias tinham uma admirável
capacidade de decorar de cabeça narrativas imensas sem alterar muito o conteúdo do
que narravam. As pessoas comuns ficavam vidradas na história que lhes era contada
como se fosse um espetáculo repleto de efeitos especiais.
No ambiente onde surgiram as primeiras comunidades cristãs, as coisas ocorriam
mais ou menos do modo que acabamos de descrever. A maioria das pessoas era
analfabeta, mas é possível que houvesse pelo menos um letrado (às vezes havia
mais de um) que lia diante da comunidade um texto dos evangelhos ou uma carta
ou o livro do Apocalipse. Caso não houvesse nenhum letrado, alguém que tinha boa
memória e habilidade retórica, narrava de acordo com a própria memória diante do
grupo que ali se reunia, uma narrativa que poderia ser do Antigo Testamento, da vida
de Jesus ou de um dos Apóstolos.
É difícil saber exatamente como era a homilia dos primeiros cristãos, pois não se sabe
se apenas a leitura/narrativa já era considerada uma proclamação ou se os oradores
teciam comentários elaborados por eles mesmos. De qualquer forma, essas reuniões
eram extensas, pois todos estavam dispostos a participar delas por bastante tempo.
3. A pré-história do texto
Você já entendeu que o livro chamado Bíblia, tanto na versão canonizada pelos judeus,
quanto na versão canonizada pelos cristãos, é a compilação de várias obras literárias
escritas no Mundo Antigo e que, apesar de terem sido elaborados em processos
independentes, os textos que a compõem foram unidos e canonizados por instituições
religiosas que estabeleceram critérios para o reconhecimento de seus livros sagrados
em reuniões conciliares.
Também já deve ter entendido que esses livros, tanto antes de serem canonizados
quanto depois, estiveram submetidos às práticas editoriais precárias que eram comuns
no Mundo Antigo, as quais ocasionaram a multiplicação das versões dos textos bíblicos
que estavam nos manuscritos que chegaram até o conhecimento dos estudiosos do
Mundo Moderno.
Agora aprenderemos sobre a pré-história do texto, isto é, a ‘forma’ (preste bem
atenção nessa palavra) que os textos possuíam antes de serem escritos, ou ainda,
a configuração discursiva que possuíam as narrativas que viriam a se tornar textos
bíblicos na época em que eram discursos orais, quando eram proferidos em contextos
típicos da vida das comunidades primitivas. Esse estudo recebe o nome de crítica das
formas ou história das formas.
Uma vez que entendamos que os textos que estão na Bíblia, anteriormente foram
discursos orais, como propôs o estudioso alemão Hermann Gunkel (1862-1932) no
século XIX, a tarefa seguinte será buscar em que contexto esse discurso foi proferido
e qual era a sua função na determinada comunidade em que ele era reproduzido
oralmente em ocasiões típicas.
Certamente essa é uma tarefa bastante difícil, porque a oralidade é uma forma
de comunicação muito menos instável que a linguagem escrita, pois, por um lado,
enquanto a escrita fica registrada em um documento e assim pode ser conhecida
pela posteridade, apesar de qualquer avaria que o envelhecimento e as reproduções
possam lhe causar; por outro lado, o conhecimento da linguagem oral depende da
memória de testemunhas. Nesse caso, sempre ocorre o fim de uma memória quando
o seu portador chega ao fim da vida, pois qualquer pessoa que tenha ouvido um
discurso oral, por mais que pretenda ser fiel, acaba por alterar seu conteúdo quando
o repassa adiante.
A única chance existente para o conteúdo de um discurso oral sobreviver e chegar
à posteridade é sendo registrado por escrito, pois sua circulação de boca em boca
transforma substancialmente seu conteúdo – todo nós conhecemos a brincadeira de
telefone sem fio e sabemos seu resultado, né?
Além disso, também sabemos que um discurso que era guardado na memória
ao se tornar texto escrito passa por alguns processos que certamente alterarão seu
conteúdo voluntária ou involuntariamente. Todo processo de transmissão comunicativa
altera significativamente o conteúdo transmitido. A mensagem nunca passa ilesa pelos
processos de comunicação e transmissão entre dois ou mais elementos.
Mas mesmo que seja uma tarefa difícil, esta é uma importante etapa da exegese
bíblica, pois permite classificar os textos bíblicos de acordo com sua história sócio-
discursiva. Isso é possível porque o texto bíblico não se resume a palavras escritas
sobre o papel a partir da criatividade e da mente fértil de um autor, ao invés disso, o
texto tem uma história discursiva na qual tinha funções ativas na vida da sociedade
que o veiculou oralmente.
O contexto em que o discurso oral tinha papel ativo na sociedade é chamado pela
exegese bíblica de Sitz im Leben. Esse conceito, que foi cunhado por Gunkel, vem da
língua alemã e é difícil de ser traduzido com precisão para a língua portuguesa, mas
geralmente o traduzimos por “lugar vivencial”.
Nesse ponto encontramos uma importante característica da literatura bíblica, trata-
se de textos que surgiram a partir de práticas recorrentes em comunidades primitivas.
Que tipos de práticas são essas? São os mais diversos eventos cotidianos, por exemplo,
ensinos de um mestre, peregrinações, funerais, visitas ao templo, lamentos, súplicas,
Esse salmo antes de ser registrado por escrito e se perpetuar como literatura sagrada
era um cântico que os peregrinos entoavam enquanto caminhavam para Jerusalém, para
onde se locomoviam para participar das celebrações realizadas no templo. Ao longo da
caminhada que começava nas aldeias em que viviam até chegarem à cidade em que
se localizava o templo, as pessoas iam cantando e celebrando a comunhão (...que os
irmão vivam em união), os antepessados (Arão), a terra que Deus lhes havia dado (Sião
e Hermon) e assim continham a própria ansiedade e criavam um clima favorável ao culto
do qual participariam juntos no templo de Jerusalém ao fim daquela caminhada.
Verifiquemos outro exemplo:
Já este salmo é uma súplica que pode ter sido proferida em uma ocasião de
sofrimento concreto, como por exemplo, a impossibilidade de pagar os credores
após um caso de endividamento que uma pessoa se envolveu ao pedir empréstimo
para prover sustento à sua família. Diante dessa situação, a pessoa que se encontra
em dificuldade faz uma oração em forma de súplica porque entende que a sua
situação não é favorável e só Deus poderá ajudá-la.
Nos dois exemplos dados acima, realizamos leituras de salmos porque, nesse
caso, é mais fácil analisar seus gêneros a partir de seu contexto, conforme
esboçamos acima. Apesar disso, todos os textos da Bíblia podem ser analisados,
pois todos os textos têm um gênero e uma pré-história.
Por exemplo, os Provérbios eram ditados populares, geralmente dotados de uma
estrutura poética, como uma rima, com uma métrica ou outro recurso literário.
Esses ditados populares estavam na boca dos homens sábios que os reproduziam
para ensinar o povo sobre coisas cotidianas como conviver com o vizinho (Pv
25.17), ser uma boa dona de casa (Pv 31), valorizar o trabalho (Pv 6) etc.
As narrativas sobre os juízes que foram libertadores de Israel (Débora, Gideão,
Sansão e outros) eram contadas a um grande grupo de familiares por um ancião,
em torno do qual se reunia um grande círculo de pessoas interessadas em conhecer
a história de seus ancestrais que foram inspirados por Deus.
Para citar dois exemplos do Novo Testamento: temos os textos que foram
canonizados como epístolas, em sua maioria, eram pregações cristãs primitivas
realizadas nas comunidades; os evangelhos eram relatos a respeito de Jesus,
polêmicas sobre os ensinos de Jesus que conflitavam com os ensinamentos
judaicos tradicionais, memórias de sua morte, testemunhos de sua ressurreição
e outros tipos de narrativas que foram contadas pelos primeiros cristãos para
divulgar (proclamar) o nome de Jesus, e depois foram unidas num livro e chamadas
de evangelho.
4. Gêneros bíblicos
• Narrativas: Gênero que aparece com mais frequência na Bíblia, por isso
pode ser subclassificado. Diferente da historia moderna, a narrativa bíblica é
assumidamente teológica e tendenciosa. O relato é assumidamente é construído
partir dos valores do narrador. Como era de se esperar na época, as narrativas
são livres, não partem de pressupostos científicos. Contar histórias era o principal
passatempo no mundo antigo, por isso existiam tantas narrativas que eram
contadas em reuniões de diversos tipos.
• Evangelho: Todos conhecem os quatro livros que recebem este título. Porém, esse
gênero é a compilação de vários gêneros menores, como proferimentos de Jesus,
mitos, lendas, parábolas, história da paixão etc. O livro de Atos dos Apóstolos
pode ser classificado como evangelho, por se tratar de uma continuação direta
do evangelho de Lucas, mas independente de Lucas é melhor classificado como
uma narrativa histórica.
• Novela: Trata-se de um gênero que se constitui como uma narrativa que possui
um início, um meio e um fim. Às vezes aparece como uma inserção independente
do material que a rodeia, como podemos ver na Bíblia os relatos sobre José do
Egito (Gn 37-50) e Jó (Jó 3-42.10).
• Poético: Esse gênero não serve para classificar os livros poéticos, mas também
os textos poéticos que por várias vezes estão inseridos em narrativas (Jz 5; Ex
15 2; Fl 2.5-11; Jo 1.1-18). São canções, poemas e ditados populares.
• (...)
Uma lista dos gêneros bíblicos não pararia por aí se pretendêssemos citar todos os
que já foram reconhecidos no livro sagrado. Uma lista completa seria muito extensa.
Sobre os gêneros do Novo Testamento, o exegeta Klaus Berger (1940-2020) elaborou um
livro intitulado Formas Literárias do Novo Testamento (1998) cuja intenção era classificar
todos os textos neotestamentários em gêneros e subgêneros. Até hoje, essa é a obra
mais completa sobre o assunto.
Quanto ao Antigo Testamento, não nenhum livro tão completo para a abordagem
dos gêneros que tenha sido traduzido para a língua portuguesa, por isso o estudante
deverá descobrir os gêneros com base na estrutura das perícopes e em comentários
bíblicos e outras fontes de pesquisa.
FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 137
EXEGESE E HERMENÊUTICA
PROF. FRANCISCO BENEDITO LEITE
Devemos ainda acrescentar que há duas obras bem atualizadas sobre o assunto que
foram publicadas recentemente, uma sobre o Antigo e outra sobre o Novo Testamento.
Trata-se de Introdução ao estudo das formas literárias do Primeiro Testamento (2021) e
Introdução ao estudo das formas literárias do Segundo Testamento (2021).
Considerações finais
Há muito mais a ser estudado sobre os gêneros, pois há muitas outras formas de
classificá-los e subclassificá-los, de acordo com o tipo de análise que se pretende
realizar e do recorte do texto que será estudado. Por esse motivo, ao invés de passar
uma lista exaustiva de gêneros e subgêneros, nosso objetivo foi apresentar a noção
de Sitz im Leben (ou “lugar vivencial” se você preferir), que está diretamente atrelada
ao estudo sobre os gêneros literários da Bíblia.
A lista de gêneros bíblicos que foi apresentada traz os mais importantes e recorrentes
da Bíblia e geralmente a terminologia mais aceita, mas é provável que você encontrará
outras formas de nomear os gêneros e até mesmo outras considerações sobre
uma determinada foram literária. Isso não será problema, desde que seja mantida a
importância que a oralidade exerceu no desenvolvimento histórico da formação do
texto bíblico. O importante é você não partir para análise do texto em sua forma final
achando que ele já surgiu como texto escrito, como fruto de uma mente autoral criativa.
O procedimento da crítica das formas não é nada fácil de ser realizado, assim como
não são fáceis os procedimentos anteriores. Por esse motivo, precisamos continuar
nos aprofundando e vamos fazer isso de modo prático na penúltima unidade desse
material. No entanto, antes disso, vamos aprender as estratégias literárias da Bíblia, os
recursos poéticos e retóricos típicos da Bíblia que ajudam a caracterizar os diversos
gêneros.
CAPÍTULO 11
ESTRATÉGIAS
LITERÁRIAS DA BÍBLIA
Introdução
Nossa dica para você se lembra das figuras de linguagem é assistindo os vídeos do
professor Noslen que estão disponíveis no YouTube. O conteúdo é transmitido de
forma didática e bem-humorada.
Aula 1: https://www.youtube.com/watch?v=n0e75nRstcU
Aula 2: https://www.youtube.com/watch?v=Hi-2LNNg4SE
1.1. Hipérbole
Essa figura aparece com muita frequência na Bíblia porque é característica das
línguas semíticas. Em primeiro lugar, significa “exagero deliberado”, como, por exemplo,
quando se diz: “Eu irei mesmo que chova canivetes”. Quem fala isso, não quer que
seu interlocutor imagine que realmente pode cair canivetes do céu, mas quer dizer
que apesar de qualquer evento inesperado, como uma tempestade forte, ou outra
eventualidade, nada o impedirá de ir onde ele pretende naquele determinado dia.
Na Bíblia Hebraica esse recurso de linguagem é muito comum e recorrente. A
expressão: “como o pó da terra” é um exemplo (Gn 13.16a, Gn 22.17; Gn 41.49; Js
11.4; I Sm 13.5), pois é a expressão de algo incontável, nesse caso, sempre que está
escrito que um grupo é semelhante ao pó da terra, quer se dizer que é incontável.
Além desse exemplo, em I Reis 1.40 há um texto que narra uma grande celebração
que “fez a terra retinir”, que também é uma hipérbole recorrente na bíblia, pois por mais
que o evento seja grandioso a terra não retine de verdade, é apenas uma expressão
de linguagem utilizada para descrever um evento estrondoso.
A expressão “todo Israel” (II Sm 3.37; I Rs 18.19; II Sm 16.22 e outras passagens)
também é uma hipérbole, porque por mais que um evento seja conhecido ou tenha a
participação de um grande número de pessoas, nunca será conhecido por absolutamente
todos, por isso só é admitido como figura de linguagem (cf. II Sm 17.11; Jz 6. 15; II
Sm 18. 8; Jz 20.1-2; I Rs 8. 63; Dn 3.19; Et 5.14).
No Novo Testamento, a linguagem de Jesus é muito marcada pelo uso de hipérboles.
Por exemplo, quando ele dizia que os fariseus coavam o mosquito, mas deixavam
passar o camelo; que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha que
um rico entrar no reino dos céus; que é necessário tirar a trava que está no próprio
olho antes de apontar o cisco que está no olho do irmão. Enfim, há muitos exemplos
ao longo dos discursos de Jesus (Cf. Mt 23.23-24; Mt 19.24; Mt 18.8-9)
1.2. Metáfora
Essa palavra pode se referir a vários tipos de figuras de linguagem, mas aqui
estamos utilizando-a para abordar a comparação não explicita, como por exemplo,
quando um locutor de futebol diz: “o chute do atacante é uma bomba”. Nesse caso,
o narrador quer dizer que o atacante tem um chute potente como uma bomba,
mas fala isso sem usar nenhuma palavra que designa a comparação “como”,
“semelhante” etc.
Os salmos, que são poesias e cânticos, sempre usam a metáfora como recurso para
apresentar comparações que nos fazem pensar nos atributos de Deus. Por exemplo:
O Senhor é torre forte (9.9), rocha (28.1), escudo (3. 3), refugio (18.2), luz (27.1) e
pastor (23.1), entre outras comparações possíveis. Todas essas metáforas pretendem
mostrar a força e a proteção proporcionadas por Deus.
Por se tratar da principal figura de linguagem, que é muito recorrente em qualquer
tipo de comunicação, seja cotidiana, seja poética, seja erudita, suas ocorrências são
incontáveis, encontramo-las em todas as partes da Bíbllia (cf. Is. 40. 6; Sl 18.1; Mt
5.13; Lc 13. 32; Jo 6.48; Jo 10. 7-9; Jo 10.11-14;; Mt 25.32; I Co 12.27; Ef 5.23).
1.3. Símile
1.4. Metonímia
1.5. Sinédoque
1.6. Simbolismo
A utilização desse recurso já é mais complexa, pois em boa parte dos casos pretende-
se comunicar uma mensagem cifrada, que só pode ser compreendida por aqueles
que têm instrumentos para decifrar os códigos da linguagem. Toda a literatura e
toda a arte são repletas de simbolismos, o problema é que quando não se tem seus
códigos, a interpretação realizada pode ser absurda e afastar-se totalmente do que o
narrador ou autor pretendeu.
Nem sempre a linguagem simbólica pode ser interpretada objetivamente. Em muitos
casos, o símbolo trazido em um texto ou em um discurso tem como referente um
mito ou um elemento do inconsciente que não é apreensível pela racionalidade.
Um bom exemplo disso está nas características de Jesus que João descreve no
livro do Apocalipse, passagem na qual está escrito que ele tem cabelos brancos, olhos
como de fogo, pés como latão reluzente, roupas brancas (...) (Ap. 1.12-19). Nem tudo
pode ser decodificado, mas é perceptível a densidade simbólica dessas descrições.
Em alguns casos, como acontece em certas parábolas de Jesus (Mc 2) e no livro
de Daniel (Dn 2.31-45), o simbolismo é evidente ou explicado na própria narrativa. Há
riscos em interpretar como simbólico o que é literal e interpretar como literal o que é
simbólico, por isso é necessário se aprofundar no conhecimento da linguagem bíblica
para não cometer excessos nem omissões nas interpretações que se realiza (Cf. I Rs
11.30-31; Os 1.2).
1.7. Eufemismo
Parece que a segunda opção é a melhor, pois depois de introduzir o assunto você
explica melhor e diminui o impacto da notícia.
Na Bíblia a suavização de termos pesados, chamada de eufemismo, é um recurso
utilizado com muita frequência. Em muitos casos é usado pelos próprios autores
bíblicos, mas em outros casos é o tradutor que faz uso dele de modo indevido. Parece
que a intenção dos tradutores bíblicos é livrar a barra das personagens bíblicas, dos
autores dos livros da Bíblia e do próprio Deus.
O apóstolo Paulo afirma desejar que aqueles que ensinam a circuncisão se castram
logo de uma vez (Gl 5.12), mas as traduções substituem o verbo castrar para suavizar
o tom da ironia do apóstolo. Em outro caso, Paulo afirma que tudo que ele tinha
conquistado ele passou a considerar “bosta”, mas as traduções substituem esse termo
por “monturo”, “escória”, “lixo” (Fl 3.8).
Além desses exemplos de suavização na tradução, há casos em que o eufemismo
é proporcionado pelos autores, como, por exemplo, quando ao invés de mencionar que
um homem e uma mulher tiveram relação sexual, menciona-se que se “conheceram”,
ou quando se diz que Rute descobriu os pés de Boaz, também se referindo à relação
sexual (Rt 3.7).
Em Atos dos Apóstolos, a morte por apedrejamento de Estevão é narrada da seguinte
forma: “E, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes imputes
este pecado. E, tendo dito isto, adormeceu” (At 7:60), quando se quer dizer claramente
que Estevão morreu. O apóstolo Paulo também usa “sono” e o verbo “dormir” para se
referir à “morte” (I Ts 4.15). (Cf. Ex )1.5; Is 6.2b; Ez 16.26; At 7.60; I Ts 4.13-15; Jz 3.24).
1.8. Alegoria
Nessa passagem a vinha que não produz os frutos pretendidos pelo agricultor é
uma alegoria feita para se referir a Israel, e isto está explicito no fim da passagem.
Se não existisse uma explicação clara, ficaria a dúvida quanto ao seu referente, mas
mesmo assim não deixaria de ser uma alegoria. (Sl 80.8-16; Ez 17.1-10; Is 5.1; Mt.3.12;
Mt.23.4; Ef. 6.13; Pd).
Há casos em que fica uma dúvida se o texto é alegórico ou não, porque não há
uma explicação, como na passagem que mencionamos. Assim, fica o risco de tomar
como alegoria uma passagem literal ou como literal uma passagem alegórica. Há
ainda outra dificuldade, pois mesmo que o texto seja uma alegoria, não se sabe qual
é o sentido literal ao qual pretende remeter.
1.9. Parábola
Realmente é possível imaginar que existem vinhateiros tão maus quanto os que
são descritos em Mateus 21.33-46?
Será que uma dona de casa procura tanto uma moeda e depois se alegra tanto por
tê-la encontrado? Ou será que um pastor que tem tantas ovelhas dedica-se tanto a
buscar a única que se perdeu? Ou ainda, será que um pai ama tanto seu filho a ponto
de recebê-lo depois de tantos erros que ele cometeu? Ao menos é isso que somos
levados a questionar, de acordo com o conteúdo da tríplice parábola do “achar o que
estava perdido” (Lc 15.11-32).
Será que há realmente noivas tão tolas que esquecem o azeite para lamparina e outras
tão cruéis que não repartem o azeite que têm com as companheiras? E há noivos tão
cruéis que rejeitam suas noivas porque elas vacilaram e se esqueceram de trazer azeite
para suas lamparinas enquanto os esperavam para as núpcias? (Mt 25.1-13).
Há realmente a possibilidade de uma tomada de atitude tão radical quando alguém
rejeita o convite para o banquete? (Mt 22.1-22)
É possível que um patrão seja tão arbitrário ao assalariar de modo igual os trabalhadores
de sua vinha independentemente de quantas horas trabalharam? (Mt 20.1-16)
O grão de mostarda realmente cresce a ponto de se tornar uma árvore? (Mt 13.31-32)
O semeador realmente desperdiça tanto assim suas sementes, lançando-as em
lugares em que não geminam? (Mc 4.1-20)
Parece que todas essas parábolas e as outras que não foram mencionadas são
narrativas de eventos desproporcionais em vista da realidade concreta, pois só essa
desproporcionalidade é capaz de expressar o reino de Deus, o amor de Deus e a
relação entre ele e o ser humano.
A obra de Paul Ricoeur Hermenêutica Bíblica (2006) apresenta uma interpretação inovadora das parábolas de Jesus. Vale a pena acessar esse material.
Imagem disponível em: https://www.amazon.com.br/hermen%C3%AAutica-b%C3%ADblica-Paul-Ricoeur/dp/8515034239
1.10. Fábula
1.11. Personificação
1.12. Ironia
havia pão em Belém, isto é, não havia pão na casa do pão (Rt 1.1), isso é uma ironia,
mas só pode ser percebida por quem entende a palavra em hebraico.
A linguagem de Jesus também é repleta de ironias, de modo destacado, observamos
a utilização que Jesus faz desse recurso quando discute com os fariseus: “Eu pergunto:
O que é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a vida ou destruí-la?” (Lc
6.9). Essa é uma pergunta irônica, pois a resposta é óbvia, mas, ao fazê-la, Jesus
coloca em evidência a inconsistência do ensino dos fariseus. (Cf. II Sm 6.20; I Rs 18.
27; Jó 12.2; Am 4.4-5; II Co 11.5; Jz 3.24-25; Et 6.6; Jó; I Rs 18.27; I Co 4.10).
1.13. Paradoxo
1.14. Antítese
1.15. Catacrese
A catacrese é a utilização de uma palavra para uma finalidade que não está
relacionada com seu significado original ou primário. Por exemplo, o termo “pé de
mesa” é uma catacrese, porque, na verdade, pé é uma parte do corpo humano e só é
utilizado dessa forma pela ausência de outro termo que corresponda melhor ao que
se descreve. Não é incomum a utilização dessa figura ao longo da Bíblia, veja por
exemplo: “braços do rio” (Gn 2.10), “boca do poço” (II Sm 17.19)
1.16. Litotes
Essa figura é muito comum nos livros atribuídos a Lucas, mas aparece também com
certa recorrência ao longo da Bíblia. Normalmente se diz que a litotes é o contrário
da hipérbole, pois enquanto a hipérbole é um exagero e está relacionada com a
desproporcionalidade, por meio da litotes promove-se uma atenuação. Lembre-se
que na linguagem de Lucas está escrito: “não pouco/poucos” (At 12,18; 14.28; 19.24;
21.39; 27.20). Nesse caso, quando se fala em “não pequena tempestade” (At 27.20),
na verdade, quer se dizer “uma tremenda tempestade”. Veja também: Salmos 51.7;
Isaías 45:3; e I Tessalonicenses 3.2b.
ANOTE ISSO
Quando fazemos exegese, nossa pesquisa parte do texto bíblico em sua língua
original e em seu contexto original, por isso devemos verificar se a figura que
aparece na tradução que estamos lendo também está presente na edição em língua
original e se as figuras que aparecem na edição em língua original também aparece
para nós na tradução para a língua portuguesa.
Considerações finais
CAPÍTULO 12
A LINGUAGEM
NEOTESTAMENTÁRIA E
SUA RELAÇÃO LITERÁRIA
COM A BÍBLIA HEBRAICA
Introdução
A partir de agora veremos que apesar de Antigo e Novo Testamentos terem sido
escritos em épocas muito distantes, em línguas distintas e partilharem de crenças
significativamente diferentes, encontramos nas escrituras cristãs elementos que
se desenvolveram a partir das características e fundamentos da Bíblia Hebraica e
proporcionaram coesão às duas partes do conjunto de livros canônicos.
Veremos que mesmo que os cristãos tenham escrito seus textos sagrados em
língua grega, eles mantiveram as características da Bíblia Hebraica tanto na língua,
quanto no estilo dos livros que eles consideraram que era a revelação da nova aliança
que Deus tinha feito com a humanidade.
Os cristãos se mantiveram atrelados às narrativas da Bíblia Hebraica que passariam
a ser consideradas por eles como Antigo Testamento, pois entenderam que aquelas
histórias antigas dos judeus deveriam ser reinterpretadas à luz da manifestação de
Jesus Cristo.
Assim, eles liam o Antigo Testamento e aplicavam uma interpretação tipológica
para iluminar aqueles textos de acordo com a fé que eles tinham no Cristo. Esse tipo
de leitura foi muito utilizado pelos cristãos, apesar de sabermos que há ressalvas a
serem feitas quanto a esse método em nossos dias.
Já explicamos que a Bíblia cristã foi escrita em hebraico e grego. Não mencionamos,
mas também há pequenas porções do Antigo Testamento que foram escritas em
língua aramaica, que é um idioma que usa o mesmo alfabeto que o hebraico e em
muitos sentidos as duas línguas assemelham-se, pois derivam do mesmo tronco
linguístico. Realmente só algumas pequenas porções da Bíblia foram registradas na
língua aramaica (Ed 4.8–6,18; 7.12-26; Dn 2.4b–7.28; Jr 10.11; Gn 31:47), por isso não
precisamos falar muito sobre as propriedades dessa língua.
Devemos, no entanto, compreender que o hebraico e o aramaico são línguas
semíticas, idiomas que têm certas semelhanças e uma relação histórica aproximada.
O importante de tratar das línguas semíticas nesse momento é que além de terem
sido faladas pelo povo judeu ao longo do período histórico em que os livros bíblicos,
tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, foram escritos, é que ambas também
influenciaram a língua grega que foi utilizada pelos autores dos livros cristãos. Isso
aconteceu porque a língua grega da Bíblia não é ‘pura’ – por assim dizer –, antes é
está repleta de influências desses dois idiomas semíticos.
A princípio pode parecer estranho imaginar como se deu essa influência das línguas
semíticas sobre a língua grega dos autores do Novo Testamento, mas se estudarmos
o assunto com um pouco mais de profundidade entenderemos o que aconteceu e
veremos que o assunto não é tão complicado assim. Trata-se de um processo histórico
comum que acontece no desenvolvimento das línguas e acaba por torna-las repletas
de estrangeirismos. Isso não incomum, basta pensar na língua portuguesa que falamos
hoje e no número de palavras de outros idiomas que a incorporou.
A história da influência das línguas semíticas sobre o grego bíblico pode ser narrada
mais ou menos da seguinte forma: no século I d.C. os judeus não falavam mais
o hebraico, pois o aramaico tinha se tornado a língua utilizada por eles desde que
retornaram do cativeiro babilônico (c.538 d.C.). O hebraico era considerado uma língua
sagrada, mas tinha deixado de ser utilizado na comunicação cotidiana. Mesmo tendo
muito carinho e devoção pelo hebraico que era a língua dos ancestrais, os judeus
deixaram fala-la.
Algo semelhante ao que ocorreu ao latim nos nossos dias, ocorreu também ao
hebraico naquela época e contexto, pois apesar de não ser mais usado na comunicação
verbal, o latim atualmente continua sendo a língua sagrada para os católicos romanos
e também é utilizado em certos ramos das ciências, como na Biologia, para atribuir
nomes científicos às espécies animais, por exemplo. Com o hebraico aconteceu, o
mesmo, pois apesar de não ser utilizado na linguagem cotidiana era a língua sagrada,
preservada pelas autoridades judaicas.
se submeteu a Roma, mas Roma se submeteu a Grécia”. O que se quer dizer com
isso é que apesar de Roma ter dominado a Grécia no sentido imperialista, no que diz
respeito à cultura, Roma aceitou se submeter a Grécia e reconheceu a elevação da
tradição grega na língua, na Filosofia e em outros domínios do saber erudito.
Uma vez que viviam no contexto desse mundo repleto de pluralismo linguístico
que estamos descrevendo, os primeiros cristãos, que em sua maioria eram judeus,
preferiram escrever seus livros sobre a vida de Jesus e seus textos epistolares em
língua grega, pois o público para o qual esses textos se destinavam era composto em
sua maioria por judeus e na minoria por não judeus e por isso o grego seria a melhor
opção, pois boa parte dos judeus entendia o grego, mas os não judeus não entendiam o
aramaico nem o hebraico. Escrever em grego, nesse caso, foi uma questão de inclusão.
Nesse processo não se ignora também a importância da Septuaginta (LXX), pois
essa era a tradução mais utilizada pelos judeus helenizados, isso é, pelos judeus que
aprenderam a língua grega, e acabou sendo a versão da Bíblia mais importante para
os primeiros cristãos, que pouco a pouco deixaram de usar a Bíblia Hebraica até que
já no séc. II d.C. estava totalmente relegada, como literatura exclusiva dos grupos
judaicos que rejeitaram os cristãos.
Apesar de escreverem em grego, como já afirmamos, os autores do Novo Testamento
que passaram a elaborar seus textos a partir da primeira metade do séc. I d.C. eram,
em sua maioria, judeus, e o aramaico era a primeira língua deles, então acabavam por
escrever utilizando as palavras do grego, mas, em certo nível, acomodavam aquele
conteúdo vocabular à sintaxe semítica. É como aquele estudante de inglês dos nossos
dias que aprende as palavras do idioma inglês, mas não sabe formar frases como um
falante nativo, porque ainda não domina o idioma. Quando esse estudante de inglês
tenta escrever uma frase inteira em inglês o conteúdo escrito que resulta de sua
tentativa de se expressar por escrito em língua inglesa fica confuso para os nativos,
pois apesar do vocabulário estar correto, a sintaxe, isso é, a ordenação das palavras,
não segue as estruturas da língua inglesa que aqueles que a falam desde o nascimento
adquiriram naturalmente e a dominam sem realizar grande esforço intelectual.
Era mais ou menos isso o que acontecia com parte dos escritos do Novo Testamento
em diferentes proporções. O que chama atenção é que essa escrita em língua grega
se perpetuou graças a transmissão da Septuaginta e dos livros do Novo Testamento.
O resultado disso é o que chamamos de grego koinê – nesse sentido, koinê significa
‘comum’ e diferencia-se do grego clássico, utilizado pelos filósofos, historiadores e
transmiti-lo, reproduziu literalmente a mesma palavra que tinha sido usada por Jesus
em língua aramaica.
língua semítica quer em língua grega. Não por acaso, essa característica simples é
uma das mais marcantes da língua bíblica e não deveria ser ignorada muito menos
omitida pelas traduções. Deixar de incluir os ‘es’ nas traduções da Bíblia para os idiomas
modernos significa ignorar a oralidade inerente aos evangelhos e ao Apocalipse. Assim,
sem a conjunções, o texto fica mais literário e menos oral.
Veja na passagem a seguir por quantas vezes aparece a conjunção “e”, levando em
conta que está em destaque apenas as vezes que a conjunção apareceu no início de
uma oração:
Depois destas coisas, olhei, e eis que estava uma porta aberta no
céu; e a primeira voz, que como de trombeta ouvira falar comigo,
disse: Sobe aqui, e mostrar-te-ei as coisas que depois destas devem
acontecer. E logo fui arrebatado em espírito, e eis que um trono estava
posto no céu, e um assentado sobre o trono. E o que estava assentado
era, na aparência, semelhante à pedra jaspe e sardônica; e o arco
celeste estava ao redor do trono, e parecia semelhante à esmeralda.
E ao redor do trono havia vinte e quatro tronos; e vi assentados sobre
os tronos vinte e quatro anciãos vestidos de vestes brancas; e tinham
sobre suas cabeças coroas de ouro. E do trono saíam relâmpagos,
e trovões, e vozes; e diante do trono ardiam sete lâmpadas de fogo,
as quais são os sete espíritos de Deus. E havia diante do trono um
como mar de vidro, semelhante ao cristal. E no meio do trono, e
ao redor do trono, quatro animais cheios de olhos, por diante e por
detrás. E o primeiro animal era semelhante a um leão, e o segundo
animal semelhante a um bezerro, e tinha o terceiro animal o rosto
como de homem, e o quarto animal era semelhante a uma águia
voando. E os quatro animais tinham, cada um de per si, seis asas, e
ao redor, e por dentro, estavam cheios de olhos; e não descansam
nem de dia nem de noite, dizendo: Santo, Santo, Santo, é o Senhor
Deus, o Todo-Poderoso, que era, e que é, e que há de vir. E, quando
os animais davam glória, e honra, e ações de graças ao que estava
assentado sobre o trono, ao que vive para todo o sempre, Os vinte e
quatro anciãos prostravam-se diante do que estava assentado sobre
o trono, e adoravam o que vive para todo o sempre; e lançavam as
suas coroas diante do trono, dizendo: Digno és, Senhor, de receber
glória, e honra, e poder; porque tu criaste todas as coisas, e por tua
vontade são e foram criadas (Apocalipse 4).
esse nome quanto o livro de Atos dos Apóstolos são os livros redigidos com maior
domínio da língua grega, portanto, sem influência significativa das línguas semíticas.
Hebreus também é um livro redigido no alto estilo da língua grega. A escrita desse
texto não deixa nada a desejar se comparado a qualquer texto escrito por filosofo,
historiador ou outro intelectual que tenha o grego como sua língua materna.
Curiosamente as epístolas de Tiago e I Pedro também são escritos elevados, no
que diz respeito aos padrões da língua grega. Isso seria um sério indicativo de que os
apóstolos Tiago e Pedro – judeus da Galileia, sem acesso a alta cultura helênica – não
teriam a mínima condição de redigir esses textos, tampouco ditá-los a um amanuense,
pois se uma pessoa ditasse um certas palavras e o escritor que ouve esse ditado
alterasse tanto o estilo daquilo que foi ditado para colocar nos padrões linguísticos
elevados, o significado do texto se alteraria de tal forma que seria incorreto atribuir a
autoria àquele que supostamente o ditou.
Então, fica claro que há diferentes níveis de uso da língua grega ao longo dos livros
que compõem o Novo Testamento. Veja o que afirma Daniel Wallace sobre isso:
ANOTE ISSO
Wallace (2009) também aborda o nível literário individual dos autores do Novo
Testamento, classificando-os nos seguintes três níveis: “semítico/vulgar”, “coloquial”
e “koinê literário” e classificando cada um dos textos neotestamentários da seguinte
forma:
segunda aliança foi dada por meio de Jesus Cristo a toda humanidade, por meio de
sua vida, morte e ressurreição.
Isso significa que o Antigo e o Novo Testamento são mais do que os livros, são
a história da salvação que se deu por meio da revelação de Deus à humanidade em
duas etapas. No entanto, como os livros que compõem a Bíblia em suas duas partes,
Antigo e Novo Testamento, são os registros da revelação de Deus a humanidade,
torna-se razoável chama-los, tanto um quanto outro, de testamentos. Nesse caso,
chamar as duas partes da Bíblia de testamentos é usar como recurso a figura de
linguagem chamada sinédoque – lembra que a sinédoque é a “substituição da parte
pelo todo, ou vice-versa”?
Bem, agora vamos voltar ao assunto principal, que é a influência do hebraico no
Novo Testamento. Vamos refletir sobre a seguinte passagem bíblica: “E perto da hora
nona exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni; isto é, Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46).
Se você ler essa passagem inserida no texto que a contém, observará que Jesus
estava absolutamente sozinho na cruz, não havia ninguém ao seu redor, a não ser os
dois condenados à crucifixão agonizantes que morreram mais ou menos no mesmo
momento que ele. Se esta era a situação, como é possível que alguém o tenha ouvido
o clamor de Jesus?
É possível que alguém argumente e tente explicar que uma determinada pessoa
ouviu o grito de Jesus, mesmo estando distante e contou esse testemunho para um
dos apóstolos e assim esse acontecimento foi registrado por escrito, mas é muito
difícil que isso realmente tenha acontecido, pois a crucificação ocorria em um lugar
afastado e muito dificilmente alguém ficaria ali tão perto do crucificado a ponto de
entender as palavras que ele pronunciava.
Na verdade, é muito mais plausível que ao invés de ter acontecido como um fato
testemunhado por alguém que levou a notícia, que posteriormente foi registrada por
escrito no evangelho, o lamento de Jesus antes de sua morte solitária seja uma
projeção de uma passagem do Antigo Testamento, pois no Salmo 22 descreve-se o
clamor de um justo que se constrói desse mesmo modo: “Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste” (Sl 22.1a).
Ainda que ninguém tenha visto Jesus realizando esse clamor, para os primeiros
cristãos que tinham fé que ele era o messias enviado por Deus para cumprir as
promessas que estão registradas na Bíblia Hebraica, fazia todo sentido supor que
ele era aquele em quem a leitura do Antigo Testamento alcançava sua plenitude.
Isso acontece em várias passagens dos evangelhos, pois muito mais do que relatar
acontecimentos históricos, esses livros narram a fé que os primeiros cristãos tinham em
Jesus como aquele que foi enviado por Deus para cumprir as profecias da antiga aliança.
Vejamos outro exemplo. No evangelho, narra-se que quando Jesus foi batizado
aconteceu o seguinte: “E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho
amado em quem me comprazo” (Mc 1.11). No entanto, há um salmo com o seguinte
conteúdo: “o Senhor me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” (Sl 2.7). Nesse caso, o
salmo que descrevia o rei Davi como aquele que foi gerado por Deus, agora é aplicado
a Jesus, pois ele é o verdadeiro filho de Deus que cumpre essa profecia. De acordo
com essa concepção, o texto foi aplicado a Davi apenas transitoriamente, mas foi
Jesus quem o levou à sua plenitude.
Em passagens como essas, o que acontece é a atualização de textos do Antigo
Testamento a partir da revelação de Jesus, como se o Antigo Testamento fosse
profecia que se realiza no Novo. É como se todo o Antigo Testamento fosse o grande
fundamento para o Novo Testamento, mas do modo como os cristãos interpretaram,
o sentido primário do Antigo Testamento tornou-se menos importante que o sentido
secundário, que se aplica à vida de Jesus.
Esse recurso interpretativo foi praticado pelos judeus antes do surgimento dos
cristãos, seu nome é tipologia ou figura. Por muitos séculos, manteve-se como a
principal forma de aplicar o conteúdo bíblico a outros contextos que não eram os
propriamente seus. Na Idade Média era a principal forma de ler a Bíblia.
Apenas no século XVI, com a Reforma Protestante, é que foi dada ênfase à
importância de se compreender o contexto histórico-social de uma passagem bíblica
para compreendê-la a partir daquilo que ela pretendia expressar e não a partir de um
contexto posterior ao qual ela era forçada a se adaptar.
Hoje em dia devemos manter o respeito pela leitura bíblica tipológica realizada pelos
judeus antigos, pelos primeiros cristãos e pelos intelectuais da Idade Média, mas se
quisermos realmente compreender a mensagem do texto bíblico, devemos examinar
o contexto histórico-social em que o texto foi concebido e tentar descobrir qual era o
objetivo de seu autor em seu ambiente e diante de seus interlocutores.
Se, ao invés de fazermos isso, aplicarmos o texto bíblico à nossa realidade concreta
sem levarmos em conta a distância histórica e geográfica existente entre as duas
ANOTE ISSO
Considerações finais
CAPÍTULO 13
EDIÇÕES DA BÍBLIA EM
LÍNGUA PORTUGUESA
Introdução
A Bíblia é o livro que todo cristão precisa ter sempre ao alcance de suas mãos, pois
por meio dela pode ter acesso à história do povo de Deus, à vida e ensinos de Jesus
e da Igreja primitiva, pode também encontrar edificação e consolo em momentos
de insegurança e infelicidade, assim como pode se defender dos falsos ensinos que
surgem a todo momento a respeito de assuntos relacionados à fé.
De acordo com o que acabamos de argumentar, o teólogo tem na Bíblia tanto o
conteúdo da revelação quanto o conteúdo para a pesquisa histórica. Parte teólogos
O que você precisa ter consciência diante dessa miríade de opções que o mercado
de Bíblias coloca diante de você, é que cada edição da Bíblia foi preparada com um
propósito específico. Nenhuma versão da Bíblia que nos apresentam está isenta de
pressupostos que nos são transmitidos na medida em que realizamos a leitura de
seu material.
Isso significa que quando estamos fazendo nossa leitura da Bíblia em língua
portuguesa, sem perceber, estamos recebendo junto com o conteúdo das escrituras
a interpretação do tradutor e dos editores. Há um ditado italiano que diz: “Traduttore
traditore”, o que significa “Tradutor traidor”, pois intencionalmente ou não o tradutor
acaba sendo infiel ao texto que traduz. Em determinados momentos faltam-lhe recursos
na língua vernácula para traduzir uma palavra que está na língua original, em outros
momentos as possibilidades são múltiplas e ele acaba tendo que fazer uma escolha
arbitrária. O fato é que o sentido do texto original nunca será totalmente preservado
numa tradução.
Não ignore que aquelas edições que trazem nota de rodapé ou notas em colunas
entre o conteúdo do texto bíblico ou ainda aquelas que trazem as palavras de Jesus
em vermelho ou colocam sinais e símbolos em determinados trechos para chamar
atenção de passagens específicas têm o propósito de determinar o tipo de leitura que
você faz da Bíblia. Sem perceber, essas pequenas intromissões que os editores fazem
no texto acabam mudando a sua interpretação textual. Em determinados casos, o
leitor é manipulado pelo editor e chega a conclusões que não fazem parte daquilo
que está no campo da interpretação possível.
Mas não são apenas essas edições modernas da Bíblia que manipulam a sua
leitura do texto sagrado. Em certo sentido, podemos dizer que todas as publicações
da Bíblia possuem elementos editoriais que tentam manipular a leitura do conteúdo
textual. Isso acontece porque além de traduzir o texto que se considera sagrado,
também se inserem divisões nas passagens bíblicas e se colocam títulos para cada
uma delas. A maioria dos livros bíblicos não tem autor, mas as edições modernas
quase sempre mencionam o nome do autor dos livros bíblicos no cabeçalho que se
coloca na primeira pagina de cada livro bíblico. A divisão de capítulos e versículos
bíblicos também é uma inferência editorial. Até mesmo os títulos dos livros bíblicos
são proposições editoriais em certos casos.
Vamos citar alguns exemplos: Pense no Evangelho conforme João, em que parte
de seu conteúdo se menciona o nome “João”? Se em nenhuma parte de seu conteúdo
há esse nome, porque lhe atribuíram esse evangelho? Não seria correto nomeá-lo de
Evangelho conforme o discípulo amado?; Já notou que os salmos 42 e 43 da Bíblia
protestante são apenas um salmo na Bíblia católica e que isso indica que os editores
da Bíblia Hebraica (igual a Bíblia protestante) e da Septuaginta (igual a Bíblia católica)
determinaram de modo diferente a dimensão ou dimensões do salmo ou dos salmos
em questão?; Já notou que o texto bíblico que alguns dizem ser a epístola de Paulo aos
Hebreus, na verdade, não é epístola, não é de Paulo e não foi enviada para os hebreus?
Notou que os livros que se dividem em dois volumes no Antigo Testamento da Bíblia
cristã (I e II Samuel, I e II Reis, I e II Crônica e Esdras e Neemias) são considerados
um único volume na Bíblia Hebraica porque as leituras de suas narrativas são feitas
de modo diferente por um e outro grupo religioso?
Bem, se você ainda não tinha notado nada disso não se preocupe, pois a maioria
dos leitores comuns percebe qualquer dessas observações que acabamos de fazer.
Apesar de agora ter percebido essas coisas todas, não se empolgue ainda, pois há
muito mais que se observar ao longo da extensão do conteúdo de nossas bíblias.
Diante de todos esses problemas pouco perceptíveis ao leitor comum fica evidente
que o teólogo precisa conhecer as edições bíblicas para usá-las de acordo com suas
intenções e de acordo com as característica da determinada edição que foi escolhida.
É possível estabelecer critérios sobre qual Bíblia usar com um grupo católico ou
protestante, com um grupo de leigos ou de intelectuais. O teólogo, mesmo que não
domine o hebraico e o grego, que são as línguas bíblicas, deve saber pelo menos
comparar as traduções com as versões originais para que saiba em que momentos
uma determinada edição está mais próxima ou mais afastada do texto que foi escrito
na língua original.
Muitas palavras que estão na tradução da Bíblia que estamos acostumados a ler
têm significados que a maior parte dos leitores desconhece. Entre tantos exemplos
possíveis, podemos citar os seguintes: ethnys significa “nação” e na maior parte das
vezes é traduzida por gentil; apóstolos literalmente significa “enviado” e acaba sendo
mantido “apóstolo” mesmo em língua portuguesa; assim como apokalipsis significa
“revelação”, mas também não é traduzido na maior parte das versões da Bíblia em
língua protuguesa.
Essa tradução é a mais popular entre os protestantes até hoje. Trata-se da primeira
tradução do Antigo e do Novo Testamento para a língua portuguesa feita a partir das
línguas originais, hebraico e grego. A tradução foi realizada mais ou menos em 1700,
pelo ministro da Igreja Reformada Holandesa João Ferreira de Almeida (1628-1691). Ao
longo dos séculos essa tradução vem recendo diversas adequações. A versão Revista
e Corrigida (RC ou ARC) manteve a tradução do textus receptus, que era o documento
que se tinha disponível na época em que a tradução foi feita. A versão Revista e
Atualizada (RA ou ARA) segue o mesmo padrão da JFA, mas incorporou a tradução
de manuscritos melhores, que antes não estavam acessíveis. É característico dessas
Bíblias manter a tradução do texto em língua portuguesa atrelada ao texto da língua
original. Isso tem o lado positivo que é a fidelidade à proposta do texto original, mas tem
também o lado negativo, que é a sintaxe e o vocabulário pouco familiares aos leitores
mais simples de nossas comunidades. As pessoas acabam ficando sem entender
algumas palavras e tendo dificuldade para compreender as estruturas dos períodos
e orações. O site Bíblia Online (https://www.bibliaonline.com.br/acf) disponibiliza
várias versões da tradução JFA, algumas delas pretendem atualizar seu conteúdo.
exitosamente muitos termos antigos das outras traduções que a precederam na história
da leitura da Bíblia no Brasil.
A BJ é uma edição indicada para teólogos, possui uma tradução primorosa, que é
muito preocupada com a preservação dos sentidos dos textos originais vertidos para a
língua portuguesa. As notas explicativas de termos específicos e estudos introdutórios
para cada um dos livros bíblicos são auxílio significativo para a exegese. Existem
edições com estudos ampliados e outras com estudos resumidos. No que diz respeito
à tradução, como dissemos, sua intenção é manter o texto atrelado à língua original,
sobretudo o Antigo Testamento possui uma língua que destaca os termos hebraicos.
Por ser católica, seu conteúdo inclui os livros deuterocanônicos. Apesar disso, seu
projeto editorial não incluiu uma perspectiva católico-romana na interpretação, ao
invés disso, destaca-se a perspectiva exegética. Seu padrão se baseia numa edição
francesa de 1998, a qual foi organizada por respeitáveis biblistas da École Bíblique de
Jérusalem, daí vem seu nome.
Essa edição da Bíblia está relacionada com o empenho de encontrar uma leitura
bíblica a partir da realidade da América Latina, por isso sua linguagem é próxima da
do cotidiano. É uma Bíblia usada por teólogos, dada a qualidade de sua tradução e
de seus estudos e notas. Sobretudo, sua leitura é favorável à Teologia da Libertação
Latino-Americana, pois oferece chave de leitura sociopastoral aos textos bíblicos. Nem
todo o seu conteúdo é uma tradução original, alguns trechos foram extraídos da BJ.
bíblico. Sua leitura é indicada para momentos devocionais e reflexões livres sobre a
Bíblia, mas não para o estudo bíblico erudito. Tem o mérito de ser a primeira tradução
católica que não se baseia na Vulgata Latina, mas parte do hebraico e do grego.
A Bíblia do Peregrino destaca-se por causa de seus estudos que valorizam o ambiente
semítico que faz parte do mundo bíblico. No que diz respeito à tradução, é baseada
em uma edição espanhola, por isso são mais úteis seus estudos e notas do que o
texto principal.
Essa é uma tradução feita a partir das línguas originais que, apesar disso, tenta
manter o texto próximo da Vulgata Latina, que é uma versão muito importante para a
Igreja Católica Romana. As novas edições foram melhorando a tradução e corrigindo
erros das edições anteriores. O estudo bíblico que se contem na Bíblia Sagrada CNBB
tem significativa importância para os estudiosos da Sagrada Escritura.
Trata-se de uma proposta de tradução que deixou o texto bíblico mais acessível
para o público leitor do século XX e para fazer isso precisou abrir mão de ser uma
tradução de palavra por palavra. Ao invés disso, opta por traduzir os sentidos das
orações, e assim fica mais distante do texto original e do sentido pretendido por ele.
Seu surgimento ocorreu a partir de uma iniciativa internacional de atualização da
linguagem bíblica, sua primeira versão no Brasil foi a Bíblia na Linguagem de Hoje,
que recebeu muitas críticas na época, as quais foram significativamente superadas
pela NTLH. Sem dúvidas essa tradução alcançou o êxito de ser uma Bíblia mais fácil
de se compreender, mas teologicamente deixa a desejar em vista da JFA e de outras
Bíblias utilizadas por teólogos. Dada sua natureza, essa Bíblia não é recomendada
para estudo bíblico em nível erudito. Tanto editoras católicas quanto protestantes
publicam essa tradução, com a diferença da existência dos deuterocânonicos nas
católicas e a ausência dos mesmos nas protestantes.
Essa edição tem o mérito de conter uma tradução da Bíblia feita integralmente
por brasileiros, assim como os estudos bíblicos o são. A proposta dessa tradução
é oferecer ao leitor uma Bíblia em língua portuguesa de alto nível, diferente da JFA
que mantinha elementos do hebraico e do grego que de certo modo prejudicavam a
estética da nossa língua.
A Bíblia é traduzida desde, pelo menos, a época de Esdras e Neemias (leia Ne 8.8).
Naquela época, era necessário fazer uma tradução oral ou falada para o aramaico,
necessidade sentida ainda nos tempos de Jesus. No entanto, a mais antiga
tradução da Bíblia em forma escrita é a Septuaginta, que foi feita ao longo dos
últimos 200 ou 300 anos antes de Cristo.
Conheça mais sobre a história da tradução da Bíblia no site da Sociedade Bíblica do
Brasil.
<<https://biblia.sbb.org.br/historia-da-traducao-da-biblia>>
Esse material é importante para todo estudioso brasileiro da Bíblia Sagrada, pois
nele oferece-se uma importante opção de tradução do texto hebraico para a língua
portuguesa. Alguns sentidos de palavras que foram esquecidos são restaurados nessa
versão das escrituras. Os estudos são fundamentados no judaísmo moderno, por
isso é válido para conhecimento da religião judaica, mas nem tanto para a exegese.
Trata-se de um material publicado pela editora oficial da comunidade judaica, a Sêfer.
3. Bíblia Interlinear
linhas que alternam entre texto em língua original e texto em língua portuguesa, também
contém duas colunas estreitas com duas traduções usadas por grupos evangélicos,
a JFA e a NTLH.
Além dos resultados que se alcança pela consulta direta aos volumes da Bíblia
Interlinear, também pode-se usar esse material para entender as propostas das outras
traduções da Bíblica. Mesmo que o estudante não domine as línguas originais, é
possível buscar o entendimento das opções feitas pelos tradutores a partir da leitura
comparada.
Conclusão
CAPÍTULO 14
COMPARAÇÃO ENTRE
TRADUÇÕES BÍBLICAS EM
LÍNGUA PORTUGUESA
Introdução
contexto da vida e do pensamento teológico do apóstolo Paulo. Vamos ser breves nesse
comentário para que sua leitura do texto não seja determinantemente influenciada
por ele.
1. Texto grego de Romanos 1.1-7 conforme a 28ª edição crítica do Novo Testamento
Nestlé-Aland
1
Παῦλος δοῦλος Χριστοῦ Ἰησοῦ, κλητὸς ἀπόστολος ἀφωρισμένος εἰς
εὐαγγέλιον θεοῦ, 2ὃ προεπηγγείλατο διὰ τῶν προφητῶν αὐτοῦ ἐν γραφαῖς
ἁγίαις 3περὶ τοῦ υἱοῦ αὐτοῦ τοῦ γενομένου ἐκ σπέρματος Δαυὶδ κατὰ
σάρκα, 4τοῦ ὁρισθέντος υἱοῦ θεοῦ ἐν δυνάμει κατὰ πνεῦμα ἁγιωσύνης ἐξ
ἀναστάσεως νεκρῶν, Ἰησοῦ Χριστοῦ τοῦ κυρίου ἡμῶν, 5δι’ οὗ ἐλάβομεν
χάριν καὶ ἀποστολὴν εἰς ὑπακοὴν πίστεως ἐν πᾶσιν τοῖς ἔθνεσιν ὑπὲρ τοῦ
ὀνόματος αὐτοῦ, 6ἐν οἷς ἐστε καὶ ὑμεῖς κλητοὶ Ἰησοῦ Χριστοῦ, 7πᾶσιν τοῖς
οὖσιν ἐν Ῥώμῃ ἀγαπητοῖς θεοῦ, κλητοῖς ἁγίοις, χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη ἀπὸ
θεοῦ πατρὸς ἡμῶν καὶ κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ.
εὐαγγέλιον θεοῦ,
(o) evangelho de Deus
2
ὃ προεπηγγείλατο διὰ τῶν προφητῶν αὐτοῦ ἐν γραφαῖς
o qual ele prometeu anteriormente por os profetas dele em (as) Escrituras
ἁγίαις
Sagradas
3
περὶ τοῦ υἱοῦ αὐτοῦ τοῦ γενομένου ἐκ σπέρματος Δαυὶδ κατὰ
σάρκα,
Acerca de o Filho dele do vindo de (a) semente de Davi segundo a
carne,
5
δι’ οὗ ἐλάβομεν χάριν καὶ ἀποστολὴν εἰς ὑπακοὴν
por meio de quem viemos receber graça e apostolado para (a) obediência
6
ἐν οἷς ἐστε καὶ ὑμεῖς κλητοὶ Ἰησοῦ Χριστοῦ,
entre os quais estais também vós chamados de Jesus Cristo
7
πᾶσιν τοῖς οὖσιν ἐν Ῥώμῃ ἀγαπητοῖς θεοῦ, κλητοῖς ἁγίοις,
a todos os que estais em Roma amados de Deus, chamados santos
χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη ἀπὸ θεοῦ πατρὸς ἡμῶν καὶ κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ.
graça a vós e paz de Deus (o) pai[2] nosso[1] e Senhor Jesus Cristo.
1
Paulo, escravo de Cristo Jesus, escolhido apóstolo separado para a boa-notícia de
Deus, 2a qual fora prometida por meio de seus profetas em escrituras santas 3a respeito
do filho dele, nascido da semente de Davi, segundo a carne, 4designado filho de Deus
em poder, segundo espírito de santificação da ressurreição de mortos. Jesus Cristo,
o nosso senhor. 5Por meio do qual recebemos graça e apostolado para obediência de
fé em todas as nações pelo seu nome. 5Entre as quais estão vocês também, eleitos
de Jesus Cristo. 7A todos vocês que estão em Roma, amados de Deus, escolhidos
santos, graça a vós e paz de Deus, nosso pai, e do senhor Jesus Cristo.
No que diz respeito ao seu gênero, a perícope bíblica que citamos é uma saudação
que segue um padrão recorrente nas cartas paulinas autênticas. O apóstolo Paulo
apresenta-se como autor da carta, professa uma fórmula cristológica e saúda seus
interlocutores com seu cumprimento típico, “graça e paz (...)”.
Nota-se que o modo como Paulo se comunica com a comunidade de Roma remete
à oralidade, parece que os crentes de Roma são amigos chegados de Paulo, mas,
na verdade, a igreja de Roma não foi fundada por Paulo, e é possível que ele tenha
conhecido pessoalmente apenas poucas pessoas da comunidade.
Sobre o “lugar vivencial” em que precisamos situar cada texto bíblico, nesse caso, a
saudação da epístola aos Romanos tem sua manifestação concreta na vida da igreja
5. Perspectivas de tradução
as pessoas falam no dia-a-dia. Também entendo que existe o modelo das traduções
teológicas, as quais a qualquer custo tentam salvar as expressões teológicas, ainda
que para fazer isso seja necessário interferir no resultado das traduções, impedindo-
as de se tornarem versões plausíveis do texto em língua original. Por fim, afirmo que
há traduções explicativas, isso é, tentativas de tornar o texto traduzido mais palatável
para o público leitor que não tem escolaridade e teria dificuldades para entender os
termos eruditos e as lacunas textuais que se mantêm em algumas traduções feitas
para a língua portuguesa.
Achamos que é um critério importante, quando avaliamos a qualidade das traduções,
verificar se elas estão preocupadas em incluir o maior número possível de leitores, mas
entendemos também que isso seja possível de se realizar com êxito sem exagerar
nas simplificações e nas inserções ilegítimas feitas no texto.
Abaixo nos orientaremos por esses critérios para avaliar as traduções que acessamos.
Entendemos que uma mesma edição da Bíblia pode ter sua tradução orientada
ao mesmo tempo por mais de um desses modelos que acabamos de descrever.
Apontaremos esses efeitos na prática no texto a seguir:
Devemos começar dizendo que nem mesmo a Bíblia Interlinear pode escapar da
crítica, veja como em seu texto insere-se o artigo definido entre parentes em toda
parte do texto. A língua grega possui artigos definidos, assim como os temos na
língua portuguesa, se o autor quisesse colocá-los no texto, tê-los-ia escrito e isso
esclareceria que sua intenção é definir os termos nominais que estão na sequência
dos artigos. No entanto, quando não há artigo antes de substantivos, a tradução deve
colocar um artigo indefinido (um, uma), pois esse artigo não possui correspondente
na língua grega e sua função é reconhecida pela ausência de artigo definido. Salvo
exceções que feitas por causa do estilo em língua portuguesa, as quais podem muito
bem ser indicadas na versão final da tradução dentro de chaves, colchetes ou outra
forma de sinalizar.
Assim, ao menos os artigos definidos que foram colocados antes de Escrituras
(v.2), espírito (v.4) no texto do Novo Testamento Interlinear (2004) deveriam ser evitados
para não alterar deliberadamente o sentido pretendido pelo autor. Em outros casos,
se a tradução preferir inserir os artigos para não prejudicar o estilo do texto em língua
portuguesa, pode fazer isso colocando algum sinal nesses artigos definidos que não
fazem parte do texto escrito em língua original.
Sabemos que esse tipo de coisa ocorre no Novo Testamento Interlinear (2004) porque
a editora que a publica, a Sociedade Bíblica do Brasil, é a mesma que publica e várias
versões da tradução da Bíblia de João Ferreira de Almeida. Nesse sentido, manter
os padrões da Almeida é preservar sua legitimidade na sociedade contemporânea e
mantê-la no mercado. Além disso, no que diz respeito à comercialização de Bíblias, a
Sociedade Bíblica do Brasil atende um grande público de evangélicos conservadores que
não gostam de traduções que se afastam da tradicional leitura que estão acostumados
a fazer por meio das versões amplamente divulgadas de João Ferreira de Almeida.
Nesse caso, há uma questão comercial que determina as opções de tradução que
estão no Novo Testamento Interlinear (2004), que deveria ser tão literal quanto possível.
Note que o Novo Testamento Interlinear (2004) mantem na linha das palavras
correspondentes do português algumas palavras que mencionamos que muito
evidentemente não são as melhores opções para os termos bíblicos, como é o caso
de “servo”, “evangelho” e “gentios”. Além disso, a colocação de palavras com iniciais
maiúsculas em termos como “Escrituras Sagradas”, “Filho” e “Senhor” são uma
interpretação que sugere significados teológicos ao leitor. Tudo isso são elementos
bem sutis, mas surtem efeitos de sugestionar aqueles que a utilizam.
A tradução recentemente realizada pelo filólogo português Frederico Lourenço (2018)
é a mais literal das que analisamos. Essa tradução opta pelas palavras “escravo” [greg.
δοῦλος; transl. doûlos], “boa-nova” [greg. εὐαγγέλιον; transl. euaggélion] e “nações” [greg.
ἔθνεσιν; transl. ethnesin], que são as primeiras acepções dadas a cada um dos termos
gregos, os quais são traduzidos de outras formas pela maioria das outras versões
como veremos a seguir. Além disso, Lourenço evita o uso de artigos definidos em
lugares que na língua grega teríamos artigos indefinidos. Quando é necessário, por
causa do estilo, ele coloca o artigo definido entre chaves para indicar que não faz
parte do texto original.
Já a Nova Bíblia Pastoral (2014) opta pelo vocábulo dotado de peso teológico
“evangelho”, quando precisa verter para a língua portuguesa o termo εὐαγγέλιον [transl.
euaggélion]. Além disso, repete esse termo no versículo 2, isso é, quando no texto em
língua grega aparece o pronome relativo ὃ [transl. hò], a Pastoral (2014) substitui-o pela
palavra “evangelho”, que tinha acabado de aparecer no texto. O recurso é plausível,
mas é uma opção que ressalta o termo evangelho aos leitores.
vem a seguir foi escrito por Paulo, mas deve ser dito que traduz o nominativo Παῦλος
[transl. Paulos] pelo genitivo “de Paulo”, que não aparece em grego. Se essa fosse a
intenção do apóstolo, ele teria escrito “τοῦ Παῦλοῦ” onde se lê simplesmente “Παῦλος”.
Nesse caso, a carta segue padrões epistolares da época, em que começa pela menção
ao nome do remetente, a alteração feita pela Bíblia do Peregrino (2007) não modifica
o sentido, mas afasta sintaticamente as palavras da tradução das palavras do texto
grego.
Destacamos, além disso, que na Bíblia do Peregrino (2017), no versículo 6, opta-
se pela não recomendada tradução de ἔθνεσιν [transl. ethnesin] por “povos”, cujo
correspondente em língua grega seria λαοῖς [transl. laoîs]. Em outro momento ocorre
de optar-se pela inclusão de um verbo para proporcionar uma tradução explicativa a
uma oração de estrutura lacunar, escrita ao estilo semítico, que é frequentemente usado
pelos autores do Novo Testamento, isso acontece quando o verbo “anunciar” é colocado
entre εἰς e εὐαγγέλιον [transl. eis - euaggélion] (v.1). Em outro momento realiza-se a
tradução “responder com fé” onde literalmente deveria estar “obediência de fé [greg.
ὑπακοὴν πίστεως; transl. hypakoèn písteōs]. Também nesse caso o objetivo é realizar
uma tradução explicativa, o que ocorre mais uma vez no versículo 4, com “Nascido
fisicamente da linhagem de Davi”. Chamamos atenção para o fato de, apesar do objetivo
da Bíblia do Peregrino (2007) ser o de oferecer uma perspectiva de leitura semítica
tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, ao realizar uma tradução explicativa,
a linguagem lacunar, apesar de ser a mais marcante das características da língua
semítica que transparece no grego bíblico, acaba sendo ignorada pelos seus editores.
A Bíblia de Jerusalém (2002) também é explicativa no sentido em que explicamos
acima, e assim omite o estilo semítico. Observamos isso em pelo menos dois momentos:
em primeiro lugar, ao incluir a preposição “para” antes do verbo “anunciar” no versículo
1; em segundo lugar quando insere o pronome possessivo “sua”, para se referir a
ressurreição dos mortos de Jesus, que, todavia, é presumida pelo genitivo da língua
grega, no versículo 4.
Nessa tradução, chama atenção a opção da palavra ao mesmo tempo metafórica
e erudita “estirpe” para traduzir σπέρμα [transl. spérma] (v.3), o que afasta qualquer
possibilidade de suscitar a relação genealógica concreta, e não apenas simbólica, de
Jesus com Davi.
É interessante o uso que A Bíblia de Jerusalém (2002) faz da palavra “missão” onde
outros tradutores foram literalistas ao optarem por “apostolado” [ἀποστολὴν; apostolèn]
e para que seu projeto seja realizado, essa versão da Bíblia opta por uma tradução
explicativa, que em nossa opinião, às vezes exagera.
O versículo 3 é uma evidência de seu exagero na intromissão que faz no texto. Note
que traduzir: “como homem era descendente de Davi” certamente é desproporcional para
“τοῦ γενομένου ἐκ σπέρματος Δαυὶδ κατὰ σάρκα” [transl. tû genoménu ek spérmatos
David kata sarka]. A preocupação teológica dessa opção de tradução é evidente, a
intenção claramente é aludir que Jesus tinha uma natureza “como homem” e outra
“como Deus”, que não está explicita, mas o leitor catequizado é levado a concluir,
porque faz parte da cristologia ortodoxa.
Tratando ainda da NVI (2003), note que no versículo 5, “por causa de seu nome”
é a tradução de: ὑπὲρ τοῦ ὀνόματος αὐτοῦ [transl. hypèr tû onómatos] que apesar de
estar no fim do versículo, a tradução coloca ao lado de “Por meio dele” [transl. δι’ οὗ;
di’ hû]. Não há problema em alterar a ordem dos elementos, mas sim em transformar
em causa, na língua portuguesa, aquilo que era mediação no texto grego. Colocar o
verbo “chamar” e o sintagma nominal “um povo” nesse versículo é forçar a barra para
preencher as lacunas tipicamente semíticas. Podemos considerar a mesma coisa
sobre o verbo “pertencerem” que aparece no versículo 6.
A Bíblia Ave Maria (2017), que também pretende ser uma tradução acessível a todos
os públicos, com uma linguagem próxima à do cotidiano, traz em sua tradução do
versículo 3: “descendente de Davi quanto à carne”, que apesar de não trazer a palavra
σπέρμα [transl. spérma] para a língua portuguesa como “semente”, faz algo interessante,
que é manter a palavra “carne”, que várias traduções substituíram por termos como
homem, humano, etc. Por outro lado, não nos parece tão interessante assim a tradução
forçosa do versículo 5: “levar em seu nome a todas as nações pagãs à obediência
na fé”, pois traduzir ἔθνεσιν [éthnesin] por “nações pagãs” é atribuir simultaneamente
sentido étnico e religioso à palavra para adequá-la a visão de mundo judaico-cristã de
épocas posteriores que vê a possibilidade de nomear as religiões e tradições culturais
dos povos europeus com o mesmo termo “pagão”.
Quanto à NTLH, sinceramente não vale a pena nos desgastarmos na realização de
comentários sobre ela, porque não é uma tradução, antes trata-se de uma paráfrase
da Bíblia. Apenas destacamos que nessa versão, o remente da Carta ao Romanos,
que está registrado no primeiro versículo foi transformado em um discurso direto, na
sequência do qual está o restante do conteúdo que continua escrito em discurso direto
simplificado, evitando-se as subordinações. No restante, basta dizer que na NTLH a
perícope de Romanos 1.1-7 está repleta de termos que não têm correspondentes no
texto grego, substantivos como: “santidade divina”, “honra” (v.3-4), “serviço” e “povo”
(v.7); e verbos como: “escrevo”, “chamou”, “anuncie” (v.1), “provou” (v.3-4), “deu”, “crerem”
(v.5) e “escrevo” (v.7).
Conclusão
O que mais se destaca nas traduções da Bíblia para a língua portuguesa são os
modelos explicativos que fazem com que o texto em língua portuguesa tenha as lacunas
da linguagem semítica que subjaz o grego koinê dos autores bíblicos preenchidas
por termos que não estão nos textos do Novo Testamento. Isso acontece porque
nas línguas semíticas, tanto o hebraico quanto o aramaico, prevalecem as estruturas
nominais. Não há subordinação, nem variedade de preposições.
Os primeiros cristãos, apesar de escrever em grego, tinham o aramaico como língua
de nascimento e os textos que eles escreviam acabavam sendo influenciados por
essa estrutura de língua que fazia parte do pensamento deles. Os preenchimentos
das lacunas com explicações que são feitas nas traduções para a língua portuguesa
acabam interferindo nas estruturas dos textos e também nos sentidos de certas
palavras.
Ao comparar as traduções desse texto, notaremos que a ideologia, isso é, o
conjunto de valores compartilhados por um determinado grupo da sociedade em
uma determinada época da história, faz muita diferença na hora em que os tradutores
realizam suas opções de tradução. Isso fica claro pelo modo como é constrangedor
para as traduções tradicionais da Bíblia em língua portuguesa verter a palavra grega
dûlos [greg. δοῦλος] para a nossa língua a partir de sua primeira acepção, que é
“escravo” (LEITE, 2020).
Essa dificuldade em assumir o sentido verdadeiro da palavra está diretamente
relacionada com a triste realidade da escravidão na história das sociedades ocidentais,
a qual, inclusive, foi legitimada pela maioria dos cristãos, tanto católicos quanto
protestantes, até o século XIX, quiça em época posterior de modo menos deliberado,
mas também real, por meio da segregação racial em sociedades pós-escravagistas.
Mesmo depois que a escravidão dos negros foi abolida, a sociedade segregadora se
sentia constrangida em reconhecer que Paulo se apresentava em suas cartas como
“escravo”, provavelmente por isso preferia traduzir a palavra δοῦλος [transl. dûlos] por
“servo”, que, sem dúvida, aqui é colocada como um eufemismo da palavra que substitui.
Se Paulo e até mesmo Jesus, além de outros cristãos, fossem denominados
“escravos”, isso significaria que aqueles que sofreram os efeitos da escravidão na
sociedade moderna eram semelhantes aos primeiros cristão. A burguesia, detentora
dos meios de produção, que, nesse caso, inclui, por exemplo, as imprensas evangélicas
desde o século XVI (época em que a tradução de João Ferreira de Almeida começou
a ser publicada), não se sente confortável assumindo isso.
Para qualquer pessoa escolarizada, a diferença entre os significados das palavras
“servo” e “escravo” é evidente, pois o escravo é um objeto de seu senhor, enquanto
o servo é livre para buscar outro senhoril. Além disso, a palavra “servo” refere-se a
uma classe social da Idade Média, época na qual a escravidão foi proibida na Europa.
Enquanto isso, o Império Romano, na qual surgiu o cristianismo, tinha a maioria absoluta
de sua população composta por escravos.
Nota-se também que as traduções lidas tendem a manter sem tradução os termos
que foram consagrados pela Teologia, como é o caso da palavra evangelho, que é a
vernaculização de εὐαγγέλιον [trad. euaggelion]. Apesar das traduções optarem por
‘aportuguesar’ essa palavra grega, “boa-nova”, “boa-notícia”, “bom-anúncio” ou alguma
outra possibilidade de tradução semelhante, caso fosse usada, deixaria o significado
do texto mais claro para o leitor leigo que desconhece o significado específico de
“evangelho”. Ainda devemos levar em conta que essa palavra tinha um significado
específico no contexto em que foi escrita e depois de incorporada à língua portuguesa
e passados muitos anos, adquiriu outro. Pela leitura de “evangelho” ninguém presume
que Paulo fala de boa-notícia.
Parece ser um problema mais grave dos tradutores a tentativa de manter oculto o
significado de certas palavras, o que fazem por meio do oferecimento de traduções
que, por serem palavras eruditas, acabam escamoteando o sentido do termo grego
que foi traduzido para português. Os tradutores fazem isso quando a palavra grega
pode entrar em choque com uma doutrina da Igreja Cristã contemporânea que parece
não ser presumida pelo autor do texto bíblico.
Por estranho que pareça isso acontece quando verificamos que a expressão “semente
de Davi segundo a carne” é traduzida por: “descendência de Davi segundo a carne”; ou
“nascido fisicamente da linhagem de Davi”; ou ainda quando colocam a palavra erudita
“estirpe” no lugar em que se espera a palavra mais conhecida por leitores indoutos
refere-se pejorativamente à religião daquele que não é judeu nem cristão, porque
acaba sendo válido no uso corriqueiro para designar todos que não são monoteístas.
No grego antigo, o termo ἔθνυς [éthnys] significa nação, como já nos referimos acima,
mas na utilização que o Novo Testamento faz dessa palavra, o vocábulo serve também
para designar toda a nação que não é a Judeia. De acordo com essa compreensão,
todas as nações são pagãs, exceto a dos judeus. A questão é que manter a palavra
“pagão” na tradução é insistir em uma visão de mundo que em certo sentido manifesta
um sentimento preconceituoso, que pode ser compreensível nas sociedades do Mundo
Antigo, mas é difícil de se compreender na contemporaneidade, em que religiosos
deveriam prezar pela tolerância, diálogo interreligioso e ecumenismo e não religiosos
pela tolerância e civilidade. A tradução gente ou gentil é erudita, por isso oculta o
sentido “nação” para leitores mais humildes de nosso tempo.
CAPÍTULO 15
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO
DO SALMO 23
Introdução
De alguma forma essas palavras surtem efeito nas pessoas desde a antiguidade.
Realmente são palavras acolhedoras, sobretudo em momentos em que nos sentimos
sem rumo na vida. É muito bom acreditar que há quem nos guie num mundo que
parece descambar em direção ao abismo.
Desde os primeiros séculos os cristãos aplicaram esse texto a Jesus, pois entenderam
que o salmo 23/22 referia-se a Jesus, apesar de ter sido escrito muito antes da era
cristã. Não foi por acaso que os cristãos das primeiras gerações procederam com
esse tipo de interpretação, pois no evangelho conforme João, o próprio Jesus afirma
a respeito de si mesmo: “eu sou o bom pastor” (Jo 10.11).
Gradativamente a leitura devocional que se faz desse versículo conduziu ao
esquecimento do seu contexto original, que são as peregrinações que o povo de Israel
fazia em direção ao templo. Não apenas isso, mas os cristãos ficaram tão fascinados
com a leitura do primeiro versículo que se esqueceram de prestar atenção no restante
do salmo, que tem tantas outras coisas importantes para se atentar.
Diante dessa situação em que se encontra o salmo 23/22 é muito importante
aplicar os procedimentos de análise (exegese) e interpretação (hermenêutica) sobre
o seu conteúdo, para que assim seja possível realizar uma leitura aprofundada e
responsável de seu conteúdo.
Na sequência vamos caminhar juntos para realizar um estudo erudito do nosso tão
precioso salmo, o qual servirá de exemplo a seguir quando quisermos fazer exegese
e hermenêutica de outro texto do Antigo Testamento.
2. Texto hebraico
3. Texto grego
4. Leitura do Salmo 23
1
Salmo de Davi
O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará.
2
Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas
tranqüilas.
3
Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor
do seu nome.
4
Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria
mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me
consolam.
5
Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos,
unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda.
6
Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os
dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias.
ANOTE ISSO
Septuaginta (LXX) – Editio Altera – Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes edidit Alfred
Rahlfs. Barueri (São Paulo), SBB (Sociedade Bíblica do Brasil) & Deutsche Bibelgesellschaft, 2011.
A Septuaginta, que também pode ser indicada pelo numeral romano LXX, possui mesmo
conteúdo da Bíblia Hebraica, traduzido para a língua grega, mais alguns livros que
não foram canonizados pelos judeus por terem sido escritos em grego; Essa obra foi
produzida pelos próprios judeus na cidade egípcia de Alexandria a partir do século IV
a.C.
Novum Testamentum Graece. NESTLE, Eberhard et al (Eds.). 28 ed. rev. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 2012.
O Novo Testamento foi escrito totalmente em língua grega pelos cristãos. Embora em sua
maioria, os autores cristãos tivessem origem judaica, eles escreveram em grego porque
era a língua mais falada no mundo em que viveram e também porque queriam manter o
padrão de linguagem da Septuaginta, já que eles tinham lido essa versão da Bíblia.
Biblia Sacra Utriusque Testamenti – Editio Hebraica et Graeca. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,
2001.
Essa edição crítica da Bíblia coloca os conteúdos da Bíblia Hebraica Stuttgartensia e do
Novo Testamento Grego lado-a-lado. Não se trata de uma obra que reproduz um modelo
do mundo antigo, antes é a compilação de duas edições críticas que têm por objetivo
facilitar a vida do estudante do nosso mundo contemporâneo que poderá usar apenas
um volume para estudar duas edições críticas.
Bíblia Sacra Vulgata. Iuxta Vulgatam Versionem. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2020.
Trata-se da edição crítica da tradução dos conteúdos da Bíblia Hebraica e do Novo
Testamento para a língua latina, realizada pela primeira vez no Mundo Antigo por
Jerônimo, séc V d.C.
5. Comentários introdutórios
A imagem de Deus como pastor é observada nos versículos de 1-4, nos quais se
menciona claramente: “O senhor é o meu pastor (...)” e na sequência dessa afirmação,
segue-se uma descrição da proteção e do cuidado que o pastor tem com a ovelha,
que é identificada com aquele a quem pertence a voz que declama o salmo, que
podemos chamar de salmista.
No entanto, a partir do versículo 5, não é mais a imagem do pastor e da ovelha que
estão em vigência, mas sim, a do anfitrião e do hóspede, pois tudo o que se afirma
nesses versículos está relacionado com a hospitalidade que se espera de um excelente
anfitrião no contexto de Israel no Mundo Antigo, pois o salmista declara que habitará
na casa do Senhor, tamanha é sua hospitalidade que lhe é oferecida.
Veja essa proposta de estruturação a seguir:
I. Cabeçalho (v.1)
II. Imagem de Deus como pastor (v.1-4)
A. Tema da solicitude (v.1)
B. Descrição do descanso (v.2)
C. Descrição da proteção (v.3-4)
III Presença de Deus no Templo (v.5-6)
A. Os fieis como hóspedes de honra (v.5)
B. Confiança e promessa (v.6) (STADELMANN, 2000, p.170)
região dos mortos (v.4), não haverá medo, porque até mesmo lá estará o pastor junto
de sua ovelha e com seus instrumentos de pastoreio, “vara e cajado”, proporcionará
consolo (e correção – uma vez que essa conotação está na língua original) à ovelha,
caso corra algum risco ou tente se desencaminhar (v.4).
Depois dessas metáforas pastoris, a chave de leitura muda e passa a estar na
relação de um anfitrião e seu hóspede porque “preparar uma mesa”, “ungir a cabeça” e
“transbordar a taça” referem-se ao tratamento que uma pessoa dava ao seu convidado
quando chegava em sua casa como visitante. Uma mesa farta para alimentar aquele
viajante que veio de longe e está faminto, depois a unção que era dada para perfumá-
lo e uma taça cheia de vinho para que ele se sentisse relaxado (v.5) em vista da longa
trajetória que percorreu até chegar naquele ponto. A consequência desse tratamento
é que o hóspede sentirá que a bondade e a misericórdia proporcionadas pelo anfitrião
continuarão a segui-lo depois que ele partir, por isso seu desejo é habitar naquela
casa, a casa do Senhor, a casa de Deus, perpetuamente.
6. Crítica textual
Vamos apontar apenas as mudanças mais significativas que foram feitas nesse
texto, apesar de termos consciência da existência de várias alterações de menor
importância em vários pontos do salmo.
No versículo 6 o verbo “retornarei” da Bíblia Hebraica foi substituído pelo verbo
“habitarei” na Septuaginta. A ideia original seria a de que o hóspede desejará retornar
à casa do Senhor depois de receber uma acolhida tão boa quanto a que o Senhor lhe
proporcionou, mas essa ideia foi substituída pelo desejo de habitar.
É bem provável que essa modificação foi feita de propósito por algum copista que
tentou relacionar o hóspede da casa do Senhor ao levita, que era aquele israelita que
literalmente vivia na casa do Senhor, por ser encarregado de executar os serviços do
templo, por serem de uma classe sacerdotal.
Há também outras diferenças notáveis entre a Septuaginta e a Bíblia Hebraica.
Vejamos duas delas:
Nesses casos, não se sabe ao certo quais são as lições originais, nem porque
foram modificadas, já que parece não haver mudança de sentido significativa. Seria
necessário um estudo sistemático do aparato crítico das edições críticas da Bíblia,
mas não faremos isso nesse estudo e nos conteremos com essas informações.
A mudança de “O Senhor é meu pastor” para o “Senhor me pastoreia” pode significar
apenas uma opção de tradução feita pelo tradutor por algum motivo subjetivo. A
mudança pode oferecer subsídios para uma interpretação diferenciada, mas as
diferentes opções de texto não se afastam tanto assim no que se refere ao sentido.
Entre “o meu cálice transborda” e “o seu cálice embriagante”, é possível que a segunda
opção seja mais confiável, porque é a mais difícil de se presumir. Na exegese bíblica,
a versão mais difícil de se compreender tende a ser a mais antiga, porque a mais fácil
pode representar uma correção feita por um copista. Nesse caso, é provável que um
copista tenha lido “o seu cálice embriagante” e tenha querido substituir por algo que
fosse mais sugestivo, como é o caso da outra versão, de acordo com a qual “o meu
cálice transborda”, isso é, na condição de hóspede é me dado um cálice transbordante.
7. Gênero literário
Conforme aprendemos o gênero dos textos bíblicos estão relacionados com seu
lugar vivencial, que é o lugar concreto e a função prática que tinham na vida das
pessoas da comunidade primitiva que primeiro os pronunciou como discurso oral.
Nesse caso, o salmo 23 parece estar relacionado com os peregrinos das diversas
regiões de Israel que viajavam para Jerusalém, para uma das festas celebradas no
templo. Ao longo dessa viagem os peregrinos recitavam salmos, como parece ser o
caso deste.
Diante dos perigos da viagem, os viajantes confessavam que o Senhor era o pastor
deles, que os protegia diante dos perigos do caminho, e quando chegavam ao Templo,
sentiam-se tão bem acolhidos por Deus que tinham desejo de retornar, e a concretização
desse desejo de retorno ocorria regularmente, pois em breve haveria outra festa no
templo.
O verbo “retornar” foi substituído pelo verbo “habitar” por uma alteração de um
copista que pretendeu apontar no texto a personagem do levita, que habita no Templo
de Jerusalém, mas assim perdia espaço o peregrino que estava na versão original
do salmo.
Portanto, o texto pode ter seu gênero chamado de “salmo de peregrinação”, porque
o percurso dos peregrinos que tinham como destino as festividades do Templo de
Jerusalém foi o contexto vivencial (Sitz im Leben) desse texto bíblico.
8. Interpretação Cristã
O salmo 23 foi acolhido no Novo Testamento como uma profecia que se concretiza
em sua plenitude em Jesus Cristo, por isso, no evangelho conforme João capítulo
10, o próprio Jesus afirma: “Eu sou o bom pastor (...)”. Na sequência desse texto,
descreve-se a diferença que o bom pastor tem em vista do mercenário.
Assim, o antigo salmo de peregrinação, que usava metáforas para expressar a
confiança em Deus e as sensações de participar das festividades realizadas no Templo
de Jerusalém transformou-se em uma profecia que aponta para o Cristo, mas, além
disso, seu conteúdo foi espiritualizado, pois a ideia de Jesus como pastor é transposta
não mais para a jornada em direção à Jerusalém, mas também para a jornada da vida.
A leitura cristã entende que Jesus é o pastor que guia as vidas dos fieis em
circunstâncias diversas, tanto de descanso e nutrição quanto em circunstancias difíceis,
como se expressa pelo vale da sombra da morte. Diante dessas dificuldades, o Senhor
(Jesus) oferece a seus fieis uma mesa farta, a unção e um cálice cheio, a ponto de
eles desejem retornar a casa do Senhor, que, nesse caso, é a igreja.
Apesar da plausibilidade da interpretação simbólica feita pelos cristãos a respeito
desse salmo, deve-se estar claro o quanto está afastada do sentido original e da
expressão de fé daqueles que primeiro recitaram esse conteúdo enquanto peregrinavam
para Jersualém. Ao ler esse salmo, os cristãos fizeram um uso metafórico daquilo que
já era uma metáfora, e assim deixaram-no ainda mais distante do sentido original.
9. Exegese e hermenêutica
a história do texto que vem desde o lugar vivencial que levou o texto a ser produzido
até chegar à interpretação dos primeiros cristãos.
Se você já entendeu que a interpretação cristã é um procedimento próprio da
hermenêutica, agora deve entender também que toda a pesquisa que está relacionada
com o texto em seu contexto e em suas línguas originais são procedimentos
característicos da exegese.
Ao longo de tudo o que estamos aprendendo, apenas mencionamos as diferenças
entre os dois domínios na Aula 1 e não fizemos divisões rígidas entre o que pertence
à hermenêutica e à exegese, mas cabe deixar claro que à hermenêutica corresponde
a interpretação e à exegese a análise.
No momento de aplicar os procedimentos – como exemplificamos nessa aula –
os exegéticos veem antes dos hermenêuticos, pois primeiro é necessário analisar e
só depois interpretar.
É natural que haja uma tensão entre os diferentes níveis do texto, mas aquele que
se propõe a analisar e interpretar a Bíblia precisa ter um jogo de cintura e saber coletar
do texto investigado as informações que sua audiência precisa. Se seu auditório é
acadêmico e laico, pode-se apresentar uma exegese estritamente científica, sem apelo
teológico; por outro lado, se o auditório é a comunidade de fé, deve-se oferecer uma
interpretação que proclame a fé cristã sem informações cientificas que soem como
pedantes.
Em todos os casos o teólogo deve ter sensibilidade com as informações que
manipula e com aqueles que compõem sua audiência, deve saber coletar e transmitir
as informações adequadamente, de acordo com as diferentes expectativas que se
colocam em seu discurso.
Considerações finais
Ao concluir essa unidade e o material no qual está contida, entendemos que foi
apresentado aos alunos os rudimentos da exegese e da hermenêutica. Ainda que
tenhamos resumido alguns de seus procedimentos e simplificado outros, o aluno
deve ter entendido do que se tratam os procedimentos de análise e interpretação
que precisamos fazer para levar a sério o sentido e a história dos textos sagrados.
Conforme foi mencionado no começo desse material, a aplicação do método pode
ser aplicada a qualquer texto sagrado, mas a tradição judaico-cristã é a que há mais
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