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Materiais de Apoio

Infância e Desenvolvimento – Enquadramento Psicanalítico

Ana Isabel Pereira 2021/2022

1. PRINCIPAIS MOLDURAS TEÓRICAS PSICANALÍTICAS SOBRE A INFÂNCIA

 Teoria do Desenvolvimento psicossexual, Freud

 Passagem da Posição Esquizo-Paranóide para a Posição Depressiva, Klein

 Processos de separação-individuação, Mahler

 Função Continente-conteúdo, α/β, Aparelho para pensar os pensamentos, Bion

 Handling e Holding, Good-enough Mother, Winnicott

 Conflito estético, Claustrum, Meltzer

Qualquer que seja a conceptualização, há uma noção transversal: o desenvolvimento é


pautado por conflitos que lhe são próprios. Confrontado com os conflitos normativos o
desenvolvimento, a criança (sujeito em devir) mobiliza um movimento plural e dinâmico que
pode permitir a elaboração desses conflitos e a progressão em termos de desenvolvimento ou
pode dar lugar a fixações, mais ou menos rígidas, que podem conduzir a rupturas
desenvolvimentais.

2. COMPILAÇÃO DAS CONCEPÇÕES PSICANALÍTICAS DA INFÂNCIA

Esta compilação procura orientar o aluno nas diferentes etapas do desenvolvimento infantil
no modelo psicanalítico, enunciando os conflitos normativos (e sua tarefa de elaboração) e os
desafios/riscos que colocam à criança.

Inclui diferentes concepções, de Freud a Meltzer, para descrever a experiência das


diferentes fases de desenvolvimento psicoafectivo (para aprofundamento, consultar “O
Rorschach na Clínica Infantil”).

Cabe ao clínico, em processo de avaliação psicológica ou psicoterapia, situar a criança em


termos do seu desenvolvimento, compreendendo as respostas que a criança mobiliza em
termos da resolução dos conflitos próprios a cada etapa. As diferentes modalidades psíquicas
podem ser usadas num eixo progrediente ou num registo de fixação, enquistamento e ruptura
desenvolvimental.
EIXO ELABORATIVO/NORMATIVO EIXO DA FIXAÇÃO/RUPTURA
EXPERIÊNCIA DA ORALIDADE
Estabelece o modelo das primeiras relações objectais. Indiferenciação anobjectal dos estados simbióticos.
Base do Narcisismo (continuidade, coesão identitária, Se predominam as más experiências, a frustração
diferenciação interno-externo, investimento positivo da engendra a inveja, que determina uma relação
representação de si). essencialmente dual e parcializada, numa busca (parcial
Relação dual pré-genital: estar cheio ou estar vazio, também) das qualidades idealizadas do objecto.
dependência ou agressividade. Em vez da unificação do objecto total (ambivalência), a
avidez oral acentua a clivagem entre o dentro e o fora e
cristaliza os mecanismos de projecção.
Omnipotência das imagos pré-genitais que suscita temor
ou avidez, mobilizando a agressividade oral.
Predomínio da noção de falta e de carência (que reenvia a
uma ferida narcísica muito precoce).

EXPERIÊNCIA DA ANALIDADE
Oposições fundamentais que sustentam os processos de Coincide com a elaboração da posição depressiva,
individuação, estabelecendo a diferenciação entre o dentro e podendo reactivar angústia de separação e de perda do
o fora, continente e conteúdo, condição necessária para o objecto. Se encontrar uma falha no meio (real ou
acesso ao simbolismo. fantasmática) o risco de catástrofe depressiva pode
Ordena os conflitos psíquicos, apelando para mecanismos de tornar-se maciço.
controlo. Dinâmica expulsar-reter: remete para a As expressões têm um carácter mais cru e bruto assente
possibilidade de possuir um continente capaz de gerir o na provocação (defesas hipomaníacas).
sistema de abertura e fecho de Ego – coesão identitária. Mobiliza defesas como a anulação e a denegação.
Mobiliza mecanismos como a formação reactiva e o
isolamento.

EXPERIÊNCIA FÁLICA / GENITAL


Elaboração do Édipo: implica o acesso ao reconhecimento da Se, por via da castração, surge um fantasma de destruição
diferença de sexos e de gerações, a representação sexuada ou de morte (problemática identitária)
de si e a representação das imagens parentais. Má elaboração da posição depressiva (problemática da
Relação de objecto edipiano, angústia de castração, declínio perda de objecto): tentativa de conservar o objecto
do édipo (a renúncia ao objecto edipiano implica a edipiano, exacerbando a rivalidade e as ameaças de
necessidade de elaborar de novo a posição depressiva). sanção.

EXPERIÊNCIA DA LATÊNCIA
Saída da crise edipiana e tempo de experiências elaboradoras O risco está associado quer à ausência da latência, como a
– período de transição entre a sexualidade infantil e o início uma latência demasiado maciça.
da puberdade. A criança refém da excitação sexual (masturbação
Função de adaptação: investimentos escolares, sociais e compulsiva…) assinala a fragilidade do seu Ego, a
intelectuais; integração das leis do mundo, do princípio da incapacidade de criar defesas sólidas capazes de a
realidade, da frustração ultrapassável. protegerem e de lhe permitirem outras formas de
As relações de objecto diversificam-se. A relação com o pais investimento (repressão, deslocação, racionalização,
dessexualiza-se. Os sentimentos hostis atenuam-se e a sublimação).
ternura manifesta-se sem culpabilidade. Por outro lado, a existência de conflitos não elaborados
pode constituir uma fonte de inibição: a carência
fantasmática durante a latência é a expressão do
envasamento defensivo de neuroses infantis graves – há
algo que castra o desejo de conhecer das crianças.
3. EIXOS DE ANÁLISE PARA A AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E FORMULAÇÃO PSICANALÍTICA
DE CASOS

EIXO DE ANÁLISE A QUE SE REPORTA ONDE SE EXPRESSA

Relação entre o perceptivo e o projectivo – Provas Projetivas, Desenhos e Jogo


analisamos o investimento do sistema Livre: estados confusionais, recurso a
perceptivo pela realidade interna (dimensão transparências ou rigidez e controlo e
fantasmática), procurando perceber vazio fantasmático;
modalidades de sobreinvestimento e a
rigidez ou flexibilidade desses mundos. Provas instrumentais: questão dos
limites, fronteiras, dentro-fora,
O sobreinvestimento da dimensão perceptiva continente, capacidade de conter,
reduz ao concreto e ao manifesto esvaziando desorganização espacial e perceptiva;
o mundo interno, mas, por outro lado, a
invasão pela efervescência da vida interna Provas Cognitivas: valor simbólico dos
Contacto com a Realidade também impede a conquista e a produção insucessos;
simbólica.

A negociação entre os constrangimentos do


real e os contributos fantasmátcos assenta
numa tripla actividade – perceber,
representar e simbolizar – que acompanha o
próprio desenvolvimento da criança até à
adolescência: o espaço psíquico constrói-se a
partir da experiência inicial da ausência,
amplifica-se no decorrer do advento edipiano
e regula-se na fase da latência.

Avaliar o balanceamento entre processo Provas Projetivas, Desenhos e Jogo


primário e secundário, permitindo esclarecer Livre: diferenciação ou confusão,
a diferenciação tópica do psiquismo e o grau capacidade de fantasiar;
de permeabilidade entre as instâncias.
Provas instrumentais: por exemplo,
A qualidade dos procedimentos de passagem da cópia para a memória na
pensamento está condicionada pelo acesso FCR;
Processos de Pensamento às construções simbólicas (referencial
bioniano: excitação sensorial – contenção – Provas Cognitivas: análise dos
simbolização – pensamento). subtestes que remetem mais
directamente para o recurso à função
O símbolo consolida-se ou degrada-se? O simbólica;
símbolo fica disponível ao distinguir-se da
coisa (elaboração da posição depressiva) ou
não há diferenciação suficiente?

A identidade constrói-se num continuum Provas Projetivas, Desenhos e Jogo


entre a desagregação (angústia de Livre: diferenciação ou confusão,
Identidade fragmentação e fantasma de aniquilamento), limites, transparências, simetrias,
a difusão (dificuldades de delimitação e temas de desintegração,
diferenciação) à integração (experiência de aniquilamento e morte;
ser inteiro e separado).
Provas instrumentais: coesão dos
limites, capacidade de organização
perceptiva ou dispersão;

Provas Cognitivas: subtestes de


realização remetem muito para as
questões identitárias - Cubos,
Composição de Objectos;

As experiências oral, anal e fálica determinam Oralidade: Ter, estar preenchido,


formas específicas de satisfação, de relação estar vazio, morder, devorar. Buracos,
de objecto e de expressão fantasmática desenhos vazios, simetrias, fixação em
(conferir ponto 2). detalhes perceptivos de vazio.

Analidade: Temas sádicos, defesas


hipomaníacas, percepções de
explosão, luta contra as pulsões anais
(recurso a modalidades defensivas
como formação reactiva, isolamento,
Conflito/Problemática anulação e denegação – ex. temática
do nojo).

Genitalidade: Pode ser mais infiltrada


de analidade – expressa no eixo
dominação-submissão; Quando mais
destacada da analidade: gordo, grande
forte – pequeno, fraco; Símbolos
sexuais claros – chaminé, vaso;
Angústia de castração: o que falta ou o
que é cortado, sem desencadear
fantasma de destruição ou morte.

Os temas da problemática reflectem os Angústias Psicóticas: Angústia de


fantasmas, cuja representação pode ser, ou morte, de fragmentação, de
não, acompanhada de angústia. A abordagem perseguição, ameaça de perda de
da angústia decorre do recurso a diferentes coesão interna. Pode ser vivida muito
modalidades defensivas. Importante intensamente – expressão quente,
distinguir a angústia de mal-estar difuso bruta, não ligada -, mas nem sempre
como “medo de ser julgado, de não ser há expressão da angústia: frieza, não
aceite” que são sinais de falta de afirmação investimento afectivo, desapego.
de si, de persistência de uma certa
dependência do adulto. Angústias Pré-Psicóticas: Angústia de
perda do objecto, ligada à falta de
Tipo de Angústia diferenciação e problemática
anaclítica

Angústias Neuróticas: Angústia de


Castração – (1) no registo fóbico:
bloqueios paralisantes acompanhados
de mal-estar corporal evidente e da
insistência sobre o carácter perigoso,
ameaçador da realidade; (2) no
registo histérico: dramatização e
teatralismo que carregam grande
sofrimento e apelo ao outro; retorno
do recalcado; (3) no registo obsessivo:
dúvida e sentimento de incerteza ou
descarga ansiosa face a temas
agressivos.

Na criança, predomina a permeabilidade de Provas Projetivas, Desenhos e Jogo


registos. Livre: apelo ao controlo, apelo à
relação com o clínico, apelo ao
Na criança pequena predominam as defesas fantasma;
primitivas do ego, implicadas nos processos
identitários (a recusa, a clivagem, a Provas instrumentais: modos de
projecção). É no período de latência que se apreensão na FCR;
devem instalar as modalidades mais
elaboradas e resultantes da interiorização Provas Cognitivas: subtestes remetem
dos conflitos (recalcamento, isolamento, para diferentes modalidades de
formação reactiva). funcionamento (ex.: Código, Pesquisa
de Símbolos, Completamento de
Organização Defensiva Nunca há uma substituição total das defesas Gravuras – favorece o recurso ao
mais primitivas, pelas defesas mais evoluídas: controlo e objectividade);
umas e outras são desigualmente solicitadas
consoante as situações. A actividade
defensiva só se torna patológica se houver
empobrecimento e entraves duradouros à
elaboração dos conflitos.

Defesas por recurso à realidade:


(Equivalente aos procedimentos da Série A,
Rigidez) Têm um valor adaptativo que
depende do desenvolvimento e evolução da
criança, mas tb pode bloquear qualquer
outro procedimento e reduzir as associações
e configurações a uma busca de adequação e
conformismo empobrecedores.

Defesas por recurso ao afecto:


(Equivalente aos procedimentos da série B e
C, Labilidade e Evitamento do Conflito) Forte
carga de angústia que tb oculta a expressão
fantasmática. Predominínio de adjectivos,
considerações subjectivas, expressão de
emoções. Pode conduzir a bloqueios em que
o recalcamento impede a representação ou,
por exemplo, à sideração fóbica.

Defesas por recurso à fantasia:


(Equivalente aos procedimentos da série E,
Emergência Processo Primário) O recurso à
fantasia, de forma até mais livre e incontida,
faz parte da infância. No entanto, a invasão,
sem apelo ao real, desorganiza, transborda e
impede o manejo de diferentes níveis de
funcionamento. Isto é tanto mais evidente
quanto o período de latência se instaura.

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