Você está na página 1de 6

Corpos em chama

O fogo de uma paixão adolescente

Uma viagem interestelar.

S entado na calçada, em frente à igreja, olhando para o céu e


refletindo sobre mim, vejo uma moto se aproximar. Es-
condo meu celular me prevenindo de um possível assalto, a
pacata cidade de São Tomé não é mais tão pacata assim. Mas
para minha sorte, ou azar, é Michael.
— O que tá fazendo aí sozinho? Querendo ser roubado? —
ele diz, parando perto de mim.
— Nada, apenas admirando o céu — digo, sem olhar para
ele.
Nós dois ficamos sem falar nada por alguns minutos.
Aproveito para me levantar e ir andando no rumo de casa pelo
canteiro central da avenida. Michael liga a moto e me acom-
panha.
— Você tá melhor? — ele murmura.
Sobre um surto repentino, exclamo:
— O que é que você acha? Me fala! Quando você me olha,
acha que tô bem? Ou só consegue olhar pra si mesmo?
— O quê? Como assim? Do que tá falando?
— De nada, Michael. Esquece!
— Por que não me fala o que tá acontecendo?
Vou para o outro lado da calçada, onde ele não pode me
acompanhar mais de perto porque é contra mão.
— Willian, estou falando contigo, pô! — Ele buzina, ten-
tando chamar minha atenção, mas não paro de andar.
Meu peito aperta, meu orgulho luta para não chorar na
frente dele, não posso, seria muito humilhante para mim.

Wítallo Rusiver 108


Corpos em chama
O fogo de uma paixão adolescente

A ardência se espalha pelos meus olhos enquanto mante-


nho-os abertos contra o vento para as lagrimas secarem antes
de cair
Michael me chama mais uma vez.
— O que foi? — digo, me virando para ele com os olhos ma-
rejados.
— Me conta porque tá agindo assim comigo? — ele diz com
um olhar confuso.
Estou muito agitado para pensar no que falo, os pensa-
mentos vêm na cabeça e já saem automaticamente pela minha
boca.
— Sério? Tá me fazendo essa pergunta depois de tudo que
fez essa tarde?
Michael fica nervoso, já reparei. Meu primeiro ato é conti-
nuar andando, mais de pressa. Estou sem nenhum filtro entre
meu cérebro e minha boca, não posso continuar assim perto
dele, mas ele volta a acelerar e me acompanhar.
— E-Eu... não...
— Você não o quê, Michael? — digo.
— Eu não sei por que tá tão bravo comigo, Will.
Michael está me olhando, as sobrancelhas dele se ar-
queiam enquanto engole em seco. Ele sabe que eu sei que ele
sabe, que ele sempre soube. Mas parece que quer me ouvir fa-
lar, ouvir sair cada detalhe da minha boca. Será que é para de-
pois me dar um fora? Ou sair espalhando pele escola toda para
todos me chamarem de patético? Ou para eu ser exposto na
frente de toda a igreja e ser disciplinado por ser gay?
— Porra, Michael! — Ele se assusta, pois é a primeira vez
em que me ouve falar palavrão. — Eu me apaixonei por você —
exponho. Parece que minhas palavras estalam entre nós. — E
você vai lá e fica com minha amiga! É sério isso? Você tem

Wítallo Rusiver 109


Corpos em chama
O fogo de uma paixão adolescente

qualquer garota que quiser aos teus pés, mas vai e fica com a
Estefany? Na minha casa, na minha frente e na minha cama.
Fala sério, cara! — A última frase reverbera no ambiente.
Um silêncio grita entre a gente.
Continuo a andar. Meu coração está acelerado, meu esto-
mago revirando como se as borboletas estivessem explodindo
dentro de mim. Imbecil. Imbecil. Imbecil. Imbecil. Bato na mi-
nha cabeça repetidas vezes.
Ainda totalmente calado, ele volta a me acompanhar.
Posso sentir a vibração dele daqui. Seu rosto está sério, como
se estivesse prendendo a respiração para não soltar nada por
impulso.
De cabeça baixa e olhando fixo para o painel da moto, Mi-
chael sussurra:
— Acho que no fundo eu já sabia.
Minhas desconfianças sobre ele saber de algo sempre es-
tiveram certas, não tinha como não saber o que estava tão na
cara, pelo menos na nossa.
— Eu sempre tive certeza disso — digo, e ele assente.
— Sobe aí.
— Pra quê?
— Sobe, por favor.
O tom de voz dele é tão minucioso que não me resta outra
alternativa a não ser acatar seu pedido.
Me aproximo dele. Sem palavras, subo na motoneta e, não
sabendo se devo ou não o tocar, ponho minhas mãos cuidado-
samente nos ombros dele. Estou muito nervoso, parece que to-
dos os meus atos podem ter consequências desastrosas sobre
mim, até um simples toque.
— Pra onde tá me levando? — pergunto, e ele fica em silên-
cio, pilotando cada vez mais rápido.

Wítallo Rusiver 110


Corpos em chama
O fogo de uma paixão adolescente

Michael pega a pista que nos liga com uma outra cidade
vizinha e, com a velocidade que estamos, logo passamos pelo
último bairro de São Tomé.
Olho para trás e vejo apenas as luzes dos portes e das casas
ficando cada vez mais longe, até sumir por completo. Nessa
hora começo a ter um pouco de medo. Percebendo minha apre-
ensão, ele solta uma de suas mãos do guidão e direciona as mi-
nhas até seu peito. Entendo o recado e o abraço. A cada batida
do coração dele, um sentimento, um sorriso, uma respiração
profunda que me conectava com a nossa chama.
Entramos em uma estrada de terra e, apesar de ser tarde
da noite e bastante escuro, não sinto mais medo.
Michael para na beira de um rio, que ilumina o ambi-
ente com suas águas que correm refletindo a luz da Lua e das
estrelas.
Desço da moto e o sondo por alguns segundos, os olhos
dele refletem o brilho da Via Láctea que paira sobre nossas ca-
beças. Eles parecem até pertencer a constelação de sagitário,
feitos especialmente para mim.
— Vem. — Michael me puxa pelo braço.
Nos sentamos em um tronco de arvore na beira do igarapé,
sentindo a brisa fria do vento sobre nossos rostos.
— Desde que me falou que gosta das estrelas, esse lugar me
lembra você.
— Esse lugar é incrível! — digo, admirando as infinidades
de estrelas que cintilam.
Michael está de cabeça baixa fazendo rabiscos com um pe-
daço de galho na areia úmida e cheia de resto de folhas em de-
composição.
— Eu... acho que gosto de meninas e meninos. — A respira-
ção dele sai rígida e frenética.

Wítallo Rusiver 111


Corpos em chama
O fogo de uma paixão adolescente

Rapidamente meu foco deixa de ser as estrelas e passa a


ser seu rosto.
— Quero dizer, acho que gosto de ti — acrescenta de pressa.
Caramba! Apesar de ser sempre o que quis ouvir, eu não
imaginava que seria tão bom escutar isso da boca dele.
— Eu... só fiz aquilo hoje pra te atingir — continua. — A ver-
dade é que eu não tava conseguindo aceitar que você mexeu
comigo desde sempre. — Ele respira fundo. — A incerteza de ser
correspondido tava me enlouquecendo.
A cabeça dele ainda está abaixada. Desde que começou a
falar, Michael evita meus olhos. Então, ele solta um riso sem
graça e procede:
— O que tem a me dizer? — ele pergunta em um sussurro.
Eu te amo, quero ficar contigo para sempre. Estou disposto
de enfrentar tudo e todos pela gente. Por você!
— Eu não consigo manifestar minha felicidade em pala-
vras em saber disso — digo com um grande sorriso, e ele me
olha sem graça, abaixa a cabeça de novo e volta a rabiscar o
chão.
— -E-Eu... ainda não beijei...
— Você nunca beijou meninos?
Ele confirma com a cabeça.
— Nunca, apenas meninas.
Sinto-me imensamente feliz com essa notícia, talvez eu
possa ser o primeiro garoto dele, e ele o meu.
— Se serve de consolo, eu nunca beijei nenhum dos dois.
Michael me sonda, planejando a próxima ação.
— Eu nunca senti isso antes — ele diz.
— Nem eu — digo. — Quero dizer, eu já gostei de outro cara,
mas nada comparado com que tô sentindo agora, esse turbi-
lhão de emoções.

Wítallo Rusiver 112


Corpos em chama
O fogo de uma paixão adolescente

Esse parece ser um momento oportuno para dizer o quanto


amo esse sorriso lindo e safado que só ele consegue ter. Dizer
que amo o cheiro do perfume amadeirado dele extremamente
masculino.
Me levanto em direção ao rio. Aprecio o reflexo trepidante
da lua minguante sobre a água. Ele observa meus passos e, se-
gundos depois, sinto suas mãos envolvendo minha cintura e a
respiração forte dele em meu pescoço. Meus pelos se arrepiam,
e no mesmo instante passa uma estrela cadente. Desejo que
esse momento jamais acabe.
Michael me vira e acaricia meu rosto, meus olhos piscam
por algumas vezes e, em um abrir e fechar, os lábios dele tocam
os meus. Boca fresca e molhada com gostinho de hortelã. Que
delícia. Segurando meu pescoço intensamente, sua boca estala
junto a minha.
Sinto a língua dele entrelaçar a minha como se estivessem
em uma valsa cósmica, como duas estrelas binarias explo-
dindo em supernova.
Sinto-me literalmente vagando pelo universo, porém des-
cobrindo o mistério do céu de sua boca. Não sei se fui arreba-
tado pela estrela cadente e agora estou voando em cima de um
cometa pelos confins da galáxia.
— Te levei nas estrelas? — diz ele, sorrindo entre meus lá-
bios.
— Sem dúvidas.
— Mal posso esperar para te levar além delas.

Wítallo Rusiver 113

Você também pode gostar