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Faculdade de Letras
Departamento de Letras Vernáculas
Setor de Literatura Brasileira
Profª. Maria Lucia Guimarães de Faria
1. As duas águas
Em 1956, João Cabral organizou uma coletânea de seus poemas a que deu o
título Duas águas, apontando dois estilos de escrever poesia:
Desde o início do poema, o acordo em “i” grito-fio (os fios de sol de seus gritos
de galo) costura uma solidariedade semântico-formal, poético-social, que unifica a
tessitura da manhã e a urdidura do poema. A aproximação grito-fio é arquitetada
pela imaginação, a partir principalmente da conjugação sonora criada pelo “i”, vogal
mais alta, estridente e “fina” da língua portuguesa. É o som agudo do “i” que sugere
imaginar o grito como um fio. O som cria o sentido.
Se o tecer a manhã é simbólico e leva o poema além de si mesmo, o tramar o
poema é que dá corpo a este simbolismo. Sem o “obrar” do poema, isto é, sua
construção, os gritos dos galos não se fariam teia, e a teia tênue não se faria manhã, e
a manhã, tenda, e a tenda, toldo, e o toldo, luz, e a luz, força ascensional (balão).
O vigor do poema não está em seu conteúdo, mas em sua forma. O seu poder
de comunicar não está no que, mas no como diz. É o seu FAZER (1a água) que torna
possível o seu DIZER (2a água).
Veja-se, por exemplo, a espantosa plasticidade dos três primeiros versos da 2a
estrofe, o trabalho da imaginação material e dinâmica fazendo-se linguagem. A
maciça assonância do fonema nasal /en/ faz do texto uma massa que se vai
enformando em imagens, imagens que concretizam e dão a ver o toldo, a todos
envolvendo e abrigando.
Os verbos no gerúndio – encorpando, erguendo, entretendendo – esticam a
massa da manhã, alongam a operação formativa e incrementam a sua duração. Por sua
vez, a percussão sonora do “t” – teia / tela / tenda / toldo / todos – disciplina e
arredonda o tecer, dá ritmo ao trabalho.
A preposição “entre” em conjugação com o verbo “entrem” – sugere-se a ideia
de entrar no entre, isto é, participar de um acordo, urdir uma concordância – prepara
a culminância – conceitual e plástica – do poema: entretendendo. A palavra inventada
tem uma função reunidora (entre), pois dentro dela ressoam a tenda que o poema
construiu, a tendência à solidariedade, poética e socialmente viável/fiável, e o
entendimento recíproco (entreentendendo), cuja tessitura, tênue mas encorpada, o
poema “afiança”, como o seu maior legado.
De modo inverso, verifica-se que um poema todo voltado para o FAZER como
Uma faca só lâmina (ou: serventia das ideias fixas) (1955), que radicaliza o seu
construir-se como ato de linguagem, não exclui um direcionamento para fora de si,
embora este só se viabilize pelo discurso poético, numa engenhosa articulação entre
o real e o textual. Na encruzilhada dialética das duas águas, a ausência tematizada
pelo poema tanto é estratégia composicional quanto atributo maior da faca só lâmina,
como aponta Antonio Carlos Secchin.
O extenso poema se desenvolve integradamente ao longo de nove blocos,
encabeçados pelas letras A, B, C, D, E, F, G. H e I. Os núcleos imagéticos, ou “ideias
fixas”, se propõem no que se pode chamar o “Prólogo” do poema – bala, relógio, faca
– e são desdobrados nos diversos blocos até serem “recolhidos” no “Epílogo” para
fechar e concluir o pensamento que se argumenta poética e imageticamente durante
todo o poema. Em virtude da extensão do poema, cito apenas o “Prólogo”, o primeiro,
o penúltimo e o último blocos (A, H e I) e o “Epílogo”, suficientes para que se perceba
o “arco” e o “desenho” do poema.
aquele que opera com a linguagem, “olhos mais frescos para / o seu vocabulário”,
transformando “um material doente” em “agudeza feroz”.
A poética de João Cabral recusa a poesia da doçura, do encantamento e da magia
em favor de uma poesia de intervenção social e aguçamento da reflexão crítica.
Como se disse antes, esta intervenção e este aguçamento se patenteiam e se tornam
operantes mediante um bem-tramado trabalho formal, cujo EFEITO é corrigir “a
atenção que lê mal” e despertar a consciência do leitor para um drama humano e
social que clama por providências urgentes. Para tanto, o poeta põe em ação um
vocabulário acre, que aprende com a faca “o exemplo de seu dente”, uma sintaxe
quebrada, cheia de arestas, que impede a leitura fluida e escorreita, e um ritmo
entrecortado, com profusão de enjambements, que confere uma certa urgência ao
discurso. Se o dizer do poeta é essencial e tem destino certo, é o fazer que aparelha a
sua eficácia social e contundência crítica.
Todo o bloco I argumenta e demonstra o ganho de incisividade que a
incorporação da qualidade-faca acrescenta à poesia. A lâmina “torna mais alerta /todo
aquele que a guarda” e “sabe acordar também / os objetos em torno”. Ativado pelo
potencial galvânico da faca, “tudo o que era vago, / toda frouxa matéria” “ganha nervos,
arestas”, e esse benefício vale “para quem sofre a faca” e para tudo em volta, que “ganha
/ a vida mais intensa, / com nitidez de agulha / e presença de vespa” e põe-se “a
funcionar / com todas suas quinas”. Em suma, o homem que aprende com a faca,
“sofrendo aquela lâmina / e seu jato tão frio”, sai da posição passiva e resignada e,
desperto para a possibilidade de uma ação efetiva, “passa, lúcido e insone, / vai fio
contra fios”.
Vale ressaltar o caráter metafórico da argumentação do poeta, que não está
aconselhando a humanidade a armar-se de violência contra o outro. É da poesia que ele
está falando, poesia que, segundo defende, deve trocar a ociosidade contemplativa e
edulcorante por um trabalho de conscientização e um estímulo à ação. É para exercer
este efeito sobre o leitor que a estratégia-faca é adotada pelo poeta e praticada em
todos os níveis da construção poética. Lembremo-nos de que o poema todo se
desenvolve paralelamente em dois planos, o da realização do poema propriamente
dito e o da avaliação dos recursos mais eficazes para que ele alcance as suas metas.
O fluxo poético se dobra e se duplica de um contrafluxo metapoético e reflexivo, que
o leitor pode testemunhar e acompanhar. Caminham lado a lado um pensar poético e
um poetar pensante.
É justamente em virtude desta minuciosa e arguta reflexão acerca do arcabouço
retórico do poema, cujo objetivo é afiná-lo e ajustá-lo o mais rigorosamente possível à
realidade visada, que o epílogo do poema traz uma surpresa e uma revelação
inesperada. O poeta recupera todas as metáforas trabalhadas – faca, relógio, bala – e
procede a um trabalho regressivo, de certo modo desmanchando o trajeto
metafórico empreendido pelo poema. A “evolução criadora” do poema é barrada em
nome de uma involução que quer chegar àquilo que motivou toda a aventura poética.
O poema que, até então, andara “para a frente” num processo de especificação e
detalhamento cirúrgico da adequação dos expedientes criativos à ausência tematizada,
subitamente se lança a um movimento de volta, destecendo a trama tecida e
desnudando a sua insuficiência. Este é também um modo de evidenciar a ausência,
núcleo do poema.
Resgatando o passo-a-passo entrelaçado que o fizera descer de uma metáfora à
outra, o poeta “volta” da faca e “da imagem em que mais / [se deteve], a da lâmina”
para “subir” “à outra imagem, àquela de um relógio” e desta “àquela outra, / a primeira,
a da bala”. O trajeto propriamente poético se encerra aqui, mas o objetivo deste retorno
ainda não se desvelou. Das metáforas, o poeta retrocede “à lembrança / que vestiu tais
imagens”, afirmando que ela “é muito mais intensa / do que pôde a linguagem”. Recua,
por fim, “à presença / da realidade, prima, / que gerou a lembrança / e ainda a gera
ainda”, sustentando que a realidade, matéria prima, primeira, primigênia, primordial, é
“tão violenta” que “ao tentar apreendê-la / toda imagem rebenta”.
“Haveria aí uma confissão do fracasso da linguagem?”, pergunta-se o crítico
Antonio Carlos Secchin. Concordando com José Guilherme Merquior, ele considera
que a “realidade enquanto processo é inapreensível, não se esgotando em nenhuma de
suas manifestações”. João Cabral traduziria, assim, “o preenchimento, parcial e
possível, de uma incompletude, que persiste sempre em aberto”.
A repetição do advérbio temporal “ainda” no último verso da penúltima estrofe
do poema fornece uma pista sobre a relação linguagem-realidade. A realidade, prima,
gerou a lembrança, que motivou o poema, mas segue promovendo lembranças, que
propiciarão, talvez, outros poemas. Nem a lembrança nem o poema exaurem a
realidade, que, pujante, pulsa em plenitude antes e depois de ambos. A linguagem é
pouco? A afirmação final do poema não é exatamente essa. O que se constata ao
término do longo empreendimento poético é a sempre incontível e incontornável
excessividade da realidade.
1.1. 1.3.
Se diz a palo seco O cante a palo seco
o cante sem guitarra; é um cante desarmado:
o cante sem; o cante; só a lâmina da voz
o cante sem mais nada; sem a arma do braço;
1.2. 1.4.
O cante a palo seco O cante a palo seco
é o cante mais só: não é um cante a esmo:
é cantar num deserto exige ser cantado
devassado de sol; com todo o ser aberto;
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Mas eu vi Manuel Rodríguez, e ao susto, peso e medida,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo, sim, eu vi Manuel Rodríguez,
mais mineral e desperto, Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
o de nervos de madeira, mas demonstrar aos poetas:
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha, como domar a explosão
lenha seca de caatinga, com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
o que melhor calculava a flor que traz escondida,
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão e como, então, trabalhá-la
roçava a morte em sua fímbria, com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
o que à tragédia deu número, sem poetizar seu poema.
à vertigem, geometria
decimais à emoção
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer
Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.
Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.
o poeta rompe com o lirismo entorpecedor, que ele associa à noturnidade, em nome de
uma poesia da claridade e do despojamento, dentro da qual as imagens da subtração,
mais do que um desempenho poético, adquirem um relevo ético.
(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite).
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.
Flor é o salto
da ave para o voo:
o salto fora do sono
quando seu tecido
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posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.
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4. A poética da pedra
Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.
Mineral é para o poeta, sobretudo, a própria página em branco, espaço vazio e deserto
onde erigir, sem o regalo de sonhos ou quimeras, o poema. Ouçam-se as estrofes iniciais
da segunda parte de “Psicologia da composição”:
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
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2.
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Mas divergem os dois labores num ponto capital: enquanto o catar feijão exclui
a pedra, “imastigável, de quebrar dente”, o escrever a procura e a cultiva, dando acordo
ao ditame máximo do Formalismo Russo. “Obstruindo” a leitura desatenta e casual, a
pedra aguilhoa a atenção, prolongando a experiência poética, ativando a percepção
do poema como construção de linguagem e impondo uma parada reflexiva que se
desdobra em conscientização e quiçá mudança, atitude, ação.
A mesma atenção que o poeta requer de si mesmo no ato de composição, ele a
exige do leitor como resposta e intercâmbio. A alternância sufixal com que o poeta
modifica os adjetivos “fluvial” e “flutuante” para “fluviante, flutual”, tornando a língua
simultaneamente familiar e estranha, instável, faz parte da estratégia de
perceptibilização com que ele “açula” o leitor. Afinal, se o risco é problemático no
catar feijão, ele é efeito visado no escrever. O risco contém dentro de si a isca para
provocar o leitor. A rima risco-isca acopla os dois sentidos e a ambos potencializa,
dando nascimento ao verbo iscar, que repercute o gesto mais agudo da poesia-pedra.
A pedra é, portanto, um elemento-chave do universo poético de João Cabral
de Melo Neto e por si só o resume, podendo ser identificado em todos os níveis de sua
produção. O estudioso Antonio Carlos Secchin a surpreende como característica tanto
de sua temática quanto de seu desempenho formal e demonstra que o universo cabralino
comporta uma:
c) estilo-pedra: cante a palo seco, só a lâmina da voz, onde “não medra a magia”.
Poesia da míngua, do “menos”, constituída por uma pronunciada prática de subtração;
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Fontes:
SECCHIN, Antonio Carlos. Uma fala só lâmina. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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