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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras
Departamento de Letras Vernáculas
Setor de Literatura Brasileira
Profª. Maria Lucia Guimarães de Faria

O ENGENHEIRO JOÃO CABRAL DE MELO NETO

1. As duas águas

Em 1956, João Cabral organizou uma coletânea de seus poemas a que deu o
título Duas águas, apontando dois estilos de escrever poesia:

1ª água = o FAZER = poemas que exigem um contato silencioso com o texto,


uma leitura paciente e reflexiva, uma vez que sua execução compreendeu um rigoroso
trabalho de construção e elaboração

2ª água = o DIZER = poemas em voz alta, que visam à comunicação e


ressaltam a função social da literatura

Na verdade, entre as duas águas existe uma complementaridade dialética,


porque em João Cabral o dizer engajado na função social de comunicar não negligencia
o fazer técnico-construtivo, haja vista a elaborada sintaxe imagética do poema “O rio”,
incluído por João Cabral na 2ª água.
Mesmo os poemas cabralinos de patente teor social, como “Tecendo a manhã”
e “Rios sem discurso”, esquivam-se aos lugares comuns do dizer participante,
especialmente através de uma engenhosa articulação metalinguística que faz
convergirem os níveis semântico e formal.

2. A complementaridade do fazer e do dizer em alguns poemas notáveis

O primeiro deles é o famoso “Tecendo a manhã”, incluso no livro A educação


pela pedra, de 1966. Mais do que o brado social que proclama, o que notabiliza este
poema é o apurado trabalho linguístico-imagético que dá voz ao brado.

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Desde o início do poema, o acordo em “i” grito-fio (os fios de sol de seus gritos
de galo) costura uma solidariedade semântico-formal, poético-social, que unifica a
tessitura da manhã e a urdidura do poema. A aproximação grito-fio é arquitetada
pela imaginação, a partir principalmente da conjugação sonora criada pelo “i”, vogal
mais alta, estridente e “fina” da língua portuguesa. É o som agudo do “i” que sugere
imaginar o grito como um fio. O som cria o sentido.
Se o tecer a manhã é simbólico e leva o poema além de si mesmo, o tramar o
poema é que dá corpo a este simbolismo. Sem o “obrar” do poema, isto é, sua
construção, os gritos dos galos não se fariam teia, e a teia tênue não se faria manhã, e
a manhã, tenda, e a tenda, toldo, e o toldo, luz, e a luz, força ascensional (balão).
O vigor do poema não está em seu conteúdo, mas em sua forma. O seu poder
de comunicar não está no que, mas no como diz. É o seu FAZER (1a água) que torna
possível o seu DIZER (2a água).
Veja-se, por exemplo, a espantosa plasticidade dos três primeiros versos da 2a
estrofe, o trabalho da imaginação material e dinâmica fazendo-se linguagem. A
maciça assonância do fonema nasal /en/ faz do texto uma massa que se vai
enformando em imagens, imagens que concretizam e dão a ver o toldo, a todos
envolvendo e abrigando.
Os verbos no gerúndio – encorpando, erguendo, entretendendo – esticam a
massa da manhã, alongam a operação formativa e incrementam a sua duração. Por sua
vez, a percussão sonora do “t” – teia / tela / tenda / toldo / todos – disciplina e
arredonda o tecer, dá ritmo ao trabalho.
A preposição “entre” em conjugação com o verbo “entrem” – sugere-se a ideia
de entrar no entre, isto é, participar de um acordo, urdir uma concordância – prepara
a culminância – conceitual e plástica – do poema: entretendendo. A palavra inventada
tem uma função reunidora (entre), pois dentro dela ressoam a tenda que o poema
construiu, a tendência à solidariedade, poética e socialmente viável/fiável, e o
entendimento recíproco (entreentendendo), cuja tessitura, tênue mas encorpada, o
poema “afiança”, como o seu maior legado.

O segundo poema é “Rios sem discurso”, também de A educação pela pedra.


Nele se verifica uma articulação metapoética análoga à observada em “Tecendo a
manhã”.

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:

isolada, estanque no poço dela mesma,


e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,


chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

A construção do percurso fluvial é também uma reflexão sobre o discurso


poético. Curso (do rio) e discurso (do texto) con-fluem, confundem-se num mesmo
fluir: o fio da sintaxe da água tece a trama da sintaxe do texto. Rio e poema correm,
discorrendo, isto é, cursam, discursando.
Aqui também o FAZER construtivo-formal é que patrocina o DIZER social-
participante: o imbricamento entre o des-curso do rio rompido e o discurso linguística
e imageticamente preciso faz falar o rio sem discurso.
Aliás, este rio diz mais em seu não dizer. Ele não diz, porque foi-lhe cortado o
discurso ao estancar-se-lhe o curso. Mas ele diz, porque o poeta fez do seu des-curso
um discurso vigoroso, porque seco, entrecortado e sinuoso – um discurso líquido seco!
Que é de um rio se lhe cortam o devir, que constitui o seu ser? Estaca-se,
estanca-se, estoca-se em poços, torna-se estanque – veja-se a insistência com que o
poeta encontra sinônimos semânticos e sonoros para a mesma ideia. Em lugar da fluidez
loquaz, o que há são palavras em situação dicionária, paralíticas, mudas. É chocante,
violenta, brutal, a imagem da “água cortada em pedaços”. E é absurda para o
pensamento racional, embora vivamente compreensível para a imaginação criadora, a
imagem de um rio roto.
O poeta desconstrói a realidade objetiva e em seu lugar constrói, pelo discurso,
uma realidade poética que projeta na paisagem uma dor e uma esperança. O discurso-
rio pode reatar-se. Mas é preciso que, seguindo o fio do discurso do texto, os poços se
enfrasem, e as frases curtas, entrecortadas, seccionadas por vírgulas, readquiram a
fluidez da sintaxe-água.
“Tecendo a manhã” e “Rios sem discurso” são poeticamente sinônimos. Se
entretendendo para todos no toldo e sentença-rio de um discurso único são imagens
isomórficas, metáforas uma da outra: elas dizem o mesmo, mas o mesmo não cessa de
tornar-se outro. É o caso também de se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo e
para que todos os poços se enfrasem. As quatro imagens sugerem e invocam uma
mesma ação conjunta cujo resultado a todos beneficiará.
Uma das ideias-fixas do universo cabralino – a de uma solidariedade exequível
– realiza-se em ambos os poemas de forma poeticamente impactante, por obra do
desdobrar-se incessante de certos núcleos imagéticos-base. Estas ideias-imagens

acoplam de maneira inextricável o DIZER e o FAZER, e é esta interpenetração


dinâmica que constitui a força peculiar do discurso de João Cabral.

De modo inverso, verifica-se que um poema todo voltado para o FAZER como
Uma faca só lâmina (ou: serventia das ideias fixas) (1955), que radicaliza o seu
construir-se como ato de linguagem, não exclui um direcionamento para fora de si,
embora este só se viabilize pelo discurso poético, numa engenhosa articulação entre
o real e o textual. Na encruzilhada dialética das duas águas, a ausência tematizada
pelo poema tanto é estratégia composicional quanto atributo maior da faca só lâmina,
como aponta Antonio Carlos Secchin.
O extenso poema se desenvolve integradamente ao longo de nove blocos,
encabeçados pelas letras A, B, C, D, E, F, G. H e I. Os núcleos imagéticos, ou “ideias
fixas”, se propõem no que se pode chamar o “Prólogo” do poema – bala, relógio, faca
– e são desdobrados nos diversos blocos até serem “recolhidos” no “Epílogo” para
fechar e concluir o pensamento que se argumenta poética e imageticamente durante
todo o poema. Em virtude da extensão do poema, cito apenas o “Prólogo”, o primeiro,
o penúltimo e o último blocos (A, H e I) e o “Epílogo”, suficientes para que se perceba
o “arco” e o “desenho” do poema.

Assim como uma bala e sempre, doloroso,


enterrada no corpo, de homem que se ferisse
fazendo mais espesso contra seus próprios ossos.
um dos lados do morto;
A
assim como uma bala Seja bala, relógio,
do chumbo mais pesado, ou a lâmina colérica,
no músculo de um homem é contudo uma ausência
pesando-o mais de um lado; o que esse homem leva.

qual bala que tivesse Mas o que não está


um vivo mecanismo, nele está como bala:
bala que possuísse tem o ferro do chumbo,
um coração ativo mesma fibra compacta.

igual ao de um relógio Isso que não está


submerso em algum corpo, nele é como um relógio
ao de um relógio vivo pulsando em sua gaiola,
e também revoltoso, sem fadiga, sem ócios.

relógio que tivesse Isso que não está


o gume de uma faca nele está como a ciosa
e toda a impiedade presença de uma faca,
de lâmina azulada; de qualquer faca nova.

assim como uma faca Por isso é que o melhor


que sem bolso ou bainha dos símbolos usados
se transformasse em parte é a lâmina cruel
de vossa anatomia; (melhor se de Pasmado):

qual uma faca íntima porque nenhum indica


ou faca de uso interno, essa ausência tão ávida
habitando num corpo como a imagem da faca
como o próprio esqueleto que só tivesse lâmina,

de um homem que o tivesse, nenhum melhor indica

aquela ausência sôfrega


que a imagem de uma faca E tudo o que era vago,
reduzida à sua boca, toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
que a imagem de uma faca ganha nervos, arestas.
entregue inteiramente
à fome pelas coisas Em volta tudo ganha
que nas facas se sente. a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
H e presença de vespa.
Quando alguém que os sofre
trabalha com palavras, Em cada coisa o lado
são úteis o relógio, que corta se revela,
a bala e, mais, a faca. e elas que pareciam
redondas como a cera
Os homens que em geral
lidam nessa oficina despem-se agora do
têm no almoxarifado caloso da rotina,
só palavras extintas: pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.
umas que se asfixiam
por debaixo do pó Pois entre tantas coisas
outras despercebidas que também já não dormem,
em meio a grandes nós; o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,
palavras que perderam
no uso todo o metal sofrendo aquela lâmina
e a areia que detém e seu jato tão frio
a atenção que lê mal. passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.
Pois somente essa faca
dará a tal operário *
olhos mais frescos para
o seu vocabulário De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
e somente essa faca que mais condensa o homem
e o exemplo de seu dente quanto mais o mastiga;
lhe ensinará a obter
de um material doente de volta dessa faca
de porte tão secreto
o que em todas as facas que deve ser levada
é a melhor qualidade: como o oculto esqueleto;
a agudeza feroz,
certa eletricidade, da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
mais a violência limpa porque é de todas elas
que elas têm, tão exatas, certamente a mais ávida;
o gosto do deserto,
o estilo das facas. pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
I àquela de um relógio
Essa lâmina adversa, picando sob a carne,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta e dela àquela outra,
todo aquele que a guarda, a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
sabe acordar também porém forte a dentada
os objetos em torno
e até os próprios líquidos e daí à lembrança
podem adquirir ossos. que vestiu tais imagens

e é muito mais intensa e ainda a gera, ainda,


do que pode a linguagem,
por fim à realidade,
e afinal à presença prima, e tão violenta
da realidade, prima, que ao tentar apreendê-la
que gerou a lembrança toda imagem rebenta.

A ideia do poema já está contida no título-imagem: uma faca só lâmina é puro


gume, corte afiado, ferino, lacerante. A imagem reúne duas noções contrárias e
convergentes, que constituem a própria “tese” defendida e incentivada pelo poema.
Uma faca é constituída de um cabo e de uma lâmina. Privada do cabo, ela dá concretude
ao vazio, tornando-o quase visível e palpável. A ausência grita na imagem da faca só
lâmina. Por outro lado, exatamente porque privada do cabo, ela potencializa o seu
poder de cortar, já que fere tanto quem a maneja como quem é atingido. Engendra-se
daí a noção de uma carência que se fortalece de seu próprio vazio.
O poema “se arma” de suas ideias-imagens a fim de apreender, capturar e
traduzir a ausência da maneira mais contundente possível. Paralelamente aos esforços
para fazê-lo, o poema expõe o próprio procedimento adotado para esta realização.
Em outras palavras, o poema dá a ver o método de elaboração do texto.
Vejam-se, por exemplo, as estrofes introdutórias. O poeta “testa” uma série de
metáforas a fim de verificar qual seria a mais ajustada à representação da realidade
visada. Ele começa com a bala, desdobra-a em três estrofes, até que, da própria
imagética gerada pelo pensamento mobilizado pela bala, impõe-se a metáfora do
relógio, cujos desdobramentos, já orientados pelo direcionamento da metáfora da bala,
desembocam na metáfora da faca, que arrecada o saldo das metáforas anteriores e
agudiza o seu sentido.
A nota distintiva do prólogo é que ele se abre propondo uma comparação –
“Assim como” – que não encontra termo de conclusão dentro do próprio prólogo. As
oito quadras se sucedem pontuadas por vírgulas ou pontos-e-vírgulas, dando
proliferação a um pensar por imagens, que apenas se complexifica sem revelar o
elemento em comparação. Como disse Benedito Nunes, as estrofes apresentam uma
série de “comparantes sem comparado”.
Apenas na primeira estrofe da parte A se esclarece o foco da comparação: a
ausência. O estratagema de não mencionar (= ausência) o tema das comparações (=
ausência) encena e dramatiza a noção que se quer representar (= ausência). Poder-se-
ia dizer, abusando do efeito repetitivo: a ausência da ausência potencializa a ausência.
Nas estrofes seguintes, os motivos imagéticos retornam um a um, agora
explicitamente propostos como modo de dizer “o que não está”. A faca mostra-se,
afinal, o mais apto e afiado dispositivo metafórico para o vivo cortante da ausência que
se quer representar, porque “nenhum melhor indica / aquela ausência sôfrega / que a
imagem de uma faca / entregue inteiramente / à fome pelas coisas / que nas facas se
sente”.
Fica muito nítido que o escrever o poema é concomitante ao avaliar
criticamente os meios para a sua execução. Esta é uma caraterística muito
pronunciada da metalinguagem cabralina, atestando uma vez mais que, nele, o dizer e
o fazer são inextricáveis e se alimentam reciprocamente.
A força metapoética do poema se torna mais patente no bloco H. Aqui muito
explicitamente o poeta aborda o fazer poético, realçando a necessidade do relógio, da
bala e sobretudo da faca para sacudir da poesia as “palavras extintas”, “palavras que
perderam / no uso todo o metal / e a areia que detém / a atenção que lê mal”. A lucidez
da lâmina, sua “violência limpa”, é capaz de dar “a tal operário”, vale dizer, ao poeta,

aquele que opera com a linguagem, “olhos mais frescos para / o seu vocabulário”,
transformando “um material doente” em “agudeza feroz”.
A poética de João Cabral recusa a poesia da doçura, do encantamento e da magia
em favor de uma poesia de intervenção social e aguçamento da reflexão crítica.
Como se disse antes, esta intervenção e este aguçamento se patenteiam e se tornam
operantes mediante um bem-tramado trabalho formal, cujo EFEITO é corrigir “a
atenção que lê mal” e despertar a consciência do leitor para um drama humano e
social que clama por providências urgentes. Para tanto, o poeta põe em ação um
vocabulário acre, que aprende com a faca “o exemplo de seu dente”, uma sintaxe
quebrada, cheia de arestas, que impede a leitura fluida e escorreita, e um ritmo
entrecortado, com profusão de enjambements, que confere uma certa urgência ao
discurso. Se o dizer do poeta é essencial e tem destino certo, é o fazer que aparelha a
sua eficácia social e contundência crítica.
Todo o bloco I argumenta e demonstra o ganho de incisividade que a
incorporação da qualidade-faca acrescenta à poesia. A lâmina “torna mais alerta /todo
aquele que a guarda” e “sabe acordar também / os objetos em torno”. Ativado pelo
potencial galvânico da faca, “tudo o que era vago, / toda frouxa matéria” “ganha nervos,
arestas”, e esse benefício vale “para quem sofre a faca” e para tudo em volta, que “ganha
/ a vida mais intensa, / com nitidez de agulha / e presença de vespa” e põe-se “a
funcionar / com todas suas quinas”. Em suma, o homem que aprende com a faca,
“sofrendo aquela lâmina / e seu jato tão frio”, sai da posição passiva e resignada e,
desperto para a possibilidade de uma ação efetiva, “passa, lúcido e insone, / vai fio
contra fios”.
Vale ressaltar o caráter metafórico da argumentação do poeta, que não está
aconselhando a humanidade a armar-se de violência contra o outro. É da poesia que ele
está falando, poesia que, segundo defende, deve trocar a ociosidade contemplativa e
edulcorante por um trabalho de conscientização e um estímulo à ação. É para exercer
este efeito sobre o leitor que a estratégia-faca é adotada pelo poeta e praticada em
todos os níveis da construção poética. Lembremo-nos de que o poema todo se
desenvolve paralelamente em dois planos, o da realização do poema propriamente
dito e o da avaliação dos recursos mais eficazes para que ele alcance as suas metas.
O fluxo poético se dobra e se duplica de um contrafluxo metapoético e reflexivo, que
o leitor pode testemunhar e acompanhar. Caminham lado a lado um pensar poético e
um poetar pensante.
É justamente em virtude desta minuciosa e arguta reflexão acerca do arcabouço
retórico do poema, cujo objetivo é afiná-lo e ajustá-lo o mais rigorosamente possível à
realidade visada, que o epílogo do poema traz uma surpresa e uma revelação
inesperada. O poeta recupera todas as metáforas trabalhadas – faca, relógio, bala – e
procede a um trabalho regressivo, de certo modo desmanchando o trajeto
metafórico empreendido pelo poema. A “evolução criadora” do poema é barrada em
nome de uma involução que quer chegar àquilo que motivou toda a aventura poética.
O poema que, até então, andara “para a frente” num processo de especificação e
detalhamento cirúrgico da adequação dos expedientes criativos à ausência tematizada,
subitamente se lança a um movimento de volta, destecendo a trama tecida e
desnudando a sua insuficiência. Este é também um modo de evidenciar a ausência,
núcleo do poema.
Resgatando o passo-a-passo entrelaçado que o fizera descer de uma metáfora à
outra, o poeta “volta” da faca e “da imagem em que mais / [se deteve], a da lâmina”
para “subir” “à outra imagem, àquela de um relógio” e desta “àquela outra, / a primeira,
a da bala”. O trajeto propriamente poético se encerra aqui, mas o objetivo deste retorno

ainda não se desvelou. Das metáforas, o poeta retrocede “à lembrança / que vestiu tais
imagens”, afirmando que ela “é muito mais intensa / do que pôde a linguagem”. Recua,
por fim, “à presença / da realidade, prima, / que gerou a lembrança / e ainda a gera
ainda”, sustentando que a realidade, matéria prima, primeira, primigênia, primordial, é
“tão violenta” que “ao tentar apreendê-la / toda imagem rebenta”.
“Haveria aí uma confissão do fracasso da linguagem?”, pergunta-se o crítico
Antonio Carlos Secchin. Concordando com José Guilherme Merquior, ele considera
que a “realidade enquanto processo é inapreensível, não se esgotando em nenhuma de
suas manifestações”. João Cabral traduziria, assim, “o preenchimento, parcial e
possível, de uma incompletude, que persiste sempre em aberto”.
A repetição do advérbio temporal “ainda” no último verso da penúltima estrofe
do poema fornece uma pista sobre a relação linguagem-realidade. A realidade, prima,
gerou a lembrança, que motivou o poema, mas segue promovendo lembranças, que
propiciarão, talvez, outros poemas. Nem a lembrança nem o poema exaurem a
realidade, que, pujante, pulsa em plenitude antes e depois de ambos. A linguagem é
pouco? A afirmação final do poema não é exatamente essa. O que se constata ao
término do longo empreendimento poético é a sempre incontível e incontornável
excessividade da realidade.

Em “A palo seco”, assim como em “Uma faca só lâmina”, empregam-se com


grande resultado duas técnicas barrocas, como mostra Secchin. A primeira é a da
intensificação por subtração, tão constante na poética cabralina. A segunda é a da
disseminação e colheita, também frequente em Cabral: nos versos iniciais, propõem-
se metáforas que se espalham pelo poema e se reagrupam nas estrofes finais. No
decurso dos desdobramentos, engendram-se metáforas de metáforas, metáforas de
metáforas de metáforas, numa viagem conceitual e imagética cada vez mais complexa
e removida do mundo empírico.
De “A palo seco”, do livro Quaderna (1959), transcrevo as estrofes da primeira
parte, suficientes para delinear o eixo argumentativo do poema:

1.1. 1.3.
Se diz a palo seco O cante a palo seco
o cante sem guitarra; é um cante desarmado:
o cante sem; o cante; só a lâmina da voz
o cante sem mais nada; sem a arma do braço;

se diz a palo seco que o cante a palo seco


a esse cante despido: sem tempero ou ajuda
ao cante que se canta tem de abrir o silêncio
sob o silêncio a pino. com sua chama nua.

1.2. 1.4.
O cante a palo seco O cante a palo seco
é o cante mais só: não é um cante a esmo:
é cantar num deserto exige ser cantado
devassado de sol; com todo o ser aberto;

é o mesmo que cantar é um cante que exige


num deserto sem sombra o ser-se ao meio-dia,
em que a voz só dispõe que é quando a sombra foge
do que ela mesma ponha. e não medra a magia.

O título “A palo seco” presta-se a muitas apreensões. O vocábulo palo, em


espanhol, significa “taco”, “bastão”. Com a expressão “a palo seco”, João Cabral se
refere a um tipo de canto da tradição flamenca, em que, no dizer de José Américo
Bezerra Saraiva, “se privilegia a voz humana, desacompanhada de instrumentação
musical, um tipo de canto primitivo, extremamente forte, emotivo e gutural”. Ainda
segundo Saraiva, “Palo Seco é também uma família tipográfica que reduz o signo a seu
esquema essencial, em que as maiúsculas reassumem as formas fenícias e gregas e as
minúsculas se conformam à base de linhas retas e círculos unidos”. Aparentemente, em
certas regiões do Nordeste, a expressão “a palo seco” significa “só, desamparado,
desprotegido”.
Todas estas definições convergem na valorização de um tipo de situação que se
sustenta de si mesma, estabelecendo-se a despeito de todas as adversidades, extraindo
força, inclusive, de sua própria penúria e carência. No caso do cante gitano, o solo vocal
é afirmado tematicamente e confirmado formalmente: diz-se o cante sem guitarra, em
seguida, subtraindo-se o instrumento, o cante sem, por fim, cortando-se a preposição,
apenas o cante. O isolamento do signo é a forma mais extrema de manifestar a privação.
Por sua secura desassistida, o cante se identifica com o deserto, com o silêncio
árido, com a lâmina da voz e com o sol escaldante e tórrido do meio-dia. Com razão
Antonio Carlos Secchin chama a obra cabralina de “a poesia do menos”, uma vez que
a subtração é insistente e isomorficamente trabalhada, nos planos do tema e da forma.
A noção de alguma coisa que só pode contar consigo mesma para seu existir
é outra das ideias fixas de Cabral. O cante a palo seco “tem de abrir o silêncio / com
sua chama nua”, porque nele “a voz só dispõe / do que ela mesma ponha”. Imagens
análogas se encontram em muitos outros poemas, a exemplo de “Estudos para uma
bailadora andaluza”, também de Quaderna, do qual cito a primeira e a última partes:

1. como ela é, nas siguiriyas,


Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas, de arrancar-se de si mesmo
que com a imagem do fogo numa primeira faísca,
inteira se identifica. nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,
Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia: que somente ela é capaz
gestos das folhas do fogo, de acender-se estando fria,
de seu cabelo, sua língua; de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.
gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia, 6.
carne de fogo, só nervos, Na sua dança se assiste
carne toda em carne viva. como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
Então, o caráter do fogo madura, quase despida.
nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos, Parece que sua dança
de natureza faminta, ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
gosto de chegar ao fim da folhagem que a vestia.
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim, Não só da vegetação
de atingir a própria cinza. de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
Porém a imagem do fogo do que no Brasil é chita)
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz mas também dessa outra flora

a que seus braços dão vida, vai aos poucos entreabrindo-a.


densa floresta de gestos
a que dão vida e agonia. Ou então é que essa folhagem
vai ficando impercebida:
Na verdade, embora tudo porque terminada a dança
aquilo que ela leva em cima, embora a roupa persista,
embora, de fato, sempre,
continue nela a vesti-la, a imagem que a memória
conservará em sua vista
parece que vai perdendo é a espiga, nua e espigada,
a opacidade que tinha rompente e esbelta, em espiga.
e, como a palha que seca,

A imagética do fogo parece a única habilitada a performar, em seus volteios


ígneos, os gestos do corpo inflamado da bailadora, sua “carne toda em carne viva”.
Compartilham ela e o fogo “o mesmo gosto dos extremos”, a “natureza faminta”, o
consumir-se inteiro até “atingir a própria cinza”. Mas a bailadora suplanta o fogo por
sua capacidade “de acender-se estando fria, / de incendiar-se com nada, / de incendiar-
se sozinha”, potência que ela comparte com o cante a palo seco e com a faca só lâmina.
Outra marca cabralina partilhada pelos poemas da bailadora e da faca é a
explicitação do processo de elaboração do texto. Em “Uma faca só lâmina”, o poeta
“sonda” as metáforas da bala, do relógio e da faca, explorando a sua potencialidade
para capturar e traduzir a ausência. Em “Estudos para uma bailadora andaluza”, o título
já enfatiza o caráter provisório do poema, que se assume como “tentativa” de exprimir
o evento extraordinário do dançar. É como se o poeta estivesse fazendo “rascunhos” ou
“esboços” como “treino” para se aproximar gradualmente da inteireza do fenômeno. A
primeira palavra do poema – “Dir-se-ia” – confessa o alcance quiçá insuficiente das
metáforas que serão arroladas. Em cada uma das partes seguintes, o poeta experimenta
uma série de outras metáforas, em todas realçando o “ensaio” mediante perguntas,
hipóteses, argumentos, contra-argumentos, comparações instáveis e formulações como
“deve ser”, “parece” e “ou então”. Afinal a espiga cede a melhor “aproximação”,
porque, despida da casca folhuda, evidencia a nudez do tronco. É justamente essa a
imagem da bailadora “que a memória / conservará em sua vista”: “nua e espigada /
rompente e esbelta, em espiga”.
Mais uma vez a realidade se impõe com uma força que desafia a capacidade da
linguagem de dizê-la em todas as nuances de sua riqueza. Por outro lado, a dificuldade
funciona como o aguilhão que convida a novos e mais ousados investimentos. Vejam-
se, por exemplo, as estranhas comparações que o poeta imagina para apreender um
dançar que a nada se equipara – cavaleira e égua, telegrafia, camponês e árvore,
estátuas, espiga de milho: não só divergem as metáforas da realidade que as motiva,
como flagrantemente destoam umas das outras.
Constata-se que o poema não é menos válido se discrepar da realidade. Pelo
contrário, a sua força advém justamente de ser outra coisa, algo que nasce como
linguagem e que estrutura seu ser mediante atos estritamente poéticos, o que lhe
confere um significar próprio que “arranca de si mesmo” e o estabelece como um
fenômeno de outra ordem, um fato verbal, e não empírico.
Um aspecto final merece ser destacado: o diálogo Pernambuco-Espanha que se
pode verificar na poesia de João Cabral. Nascido no estado do Nordeste brasileiro, o
poeta serviu durante vários anos como diplomata no país europeu e não apenas se
harmonizou com inúmeros traços da cultura espanhola como identificou convergências

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entre o seu estado e particularmente a região da Andaluzia, seus modos e hábitos.


Inúmeros poemas dão testemunho desse elo poeticamente urdido e traçado.

3. A preponderância do sintático sobre o semântico

Os exemplos apresentados deixam claro que o discurso cabralino jamais


dispensa o FAZER. Ele é ato poético no sentido etimológico do termo (poiein = fazer,
moldar, plasmar). A poesia de João Cabral literalmente se constrói na sintaxe das
operações formais, próxima à linguagem do cinema.
O poeta se posiciona frente ao real, não como admirador deslumbrado, mas
como ENGENHEIRO: o universo é sintaticamente refeito, por edição e montagem.
O poema cabralino se arquiteta inteiramente na linguagem, de tal modo que o objeto
criado não se confunde com a realidade.
A dimensão poética é, portanto, um espaço construído. Não se descreve o real
empírico, mas capturam-se as relações que estruturam os fenômenos de modo a realizar
um processo de reconstrução.
A condição de possibilidade do discurso poético é justamente o desmonte da
realidade como fato para que se dê a sua remontagem como arte. A intervenção
cabralina se consuma na substituição da paisagem-experiência empírica pela
paisagem-experiência lexical. A perícia engenheira de João Cabral desfaz e refaz o
real por atos de linguagem e, como vimos, expõe as vértebras e os andaimes desta
construção num sistemático trabalho de metalinguagem.
A metapoesia cabralina, como demonstrou o estudo dos poemas anteriores, é
extremamente original. Ela se elabora na observação dos processos de constituição
dos objetos. Não se trata somente de patentear o princípio de composição do poema
como poema, mas também de capturar o constituir-se de algo como coisa, seu
configurar-se como forma, seu engendrar-se. Assim, o fazer-se coisa da coisa e o
plasmar-se poema do poema são um e o mesmo ato, poético e metapoético.
Qualquer coisa, portanto, não apenas o poema, pode ser alvo de uma captação
que privilegie e evidencie a forma que a define. Assim, o tecer-se da manhã é fiado
pelo poema, o cante flamenco é exaustivamente perscrutado em seu poder-ser, o dançar
da bailadora andaluza é acompanhado como fenômeno em gestação etc.
Ainda mais original é a atitude do poeta diante de todos esses eventos. Ele se
coloca como aprendiz, extraindo lições de poesia de todas as atividades, inclusive as
mais triviais e cotidianas. O poeta se mantém em estado de aprendizado contínuo do
fazer poético a partir de inúmeros outros fazeres em princípio alheios e estranhos à
poesia. É assim que ele aprende a fazer poesia com o tourear exímio de “Alguns
toureiros”, com a tarefa doméstica de “Catar feijão”, com o bailar proficiente de uma
dançarina, com a concisão perfeita e compacta de um comprimido de aspirina (“Num
monumento à aspirina”) etc. Em “A palo seco”, a penúltima estrofe do poema enuncia:
“Eis uns poucos exemplos / de ser a palo seco, / dos quais se retirar / higiene ou
conselho”. Seja qual for o objeto em foco, implícita ou explicitamente, a poesia
cabralina está sempre falando do acontecer do poema como trabalho da, na e pela
linguagem.
Veja-se, como exemplo, uma das partes do poema “Alguns toureiros”, do livro
Paisagens com figuras (1955):

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Mas eu vi Manuel Rodríguez, e ao susto, peso e medida,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo, sim, eu vi Manuel Rodríguez,
mais mineral e desperto, Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
o de nervos de madeira, mas demonstrar aos poetas:
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha, como domar a explosão
lenha seca de caatinga, com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
o que melhor calculava a flor que traz escondida,
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão e como, então, trabalhá-la
roçava a morte em sua fímbria, com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
o que à tragédia deu número, sem poetizar seu poema.
à vertigem, geometria
decimais à emoção

As imagens “inadequadas” empregadas para capturar Manuel Rodríguez em


ação – deserto, agudo, mineral, o de nervos de madeira, asceta – deixam transparecer
que o poeta está vendo no toureiro algo além dele. Sem dúvida o sujeito poético admira
a perícia e maestria da performance do virtuose. Mas não é esse o foco principal do
poema. Como em tantas outras situações, Cabral está aprendendo com aquele
desempenho irretocável. E que lições ele transpõe para o seu fazer poético? Precisão,
contenção, medida.
Além de afiar a sua poesia no gume do tourear do toureiro, o poeta abre uma
reflexão sobre o fazer poético em geral e expõe suas afinidades e recusas. A poesia do
exagero, da sentimentalização, do descontrole emocional, da inflação verbal, da
ornamentação retórica, não encontra assento em seu universo. Significa isso que não há
passionalidade em sua poesia? De modo nenhum. Mas a passionalidade não leva a
melhor sobre o poeta. A tragédia, a vertigem, a emoção são submetidas a um processo
de composição que as “doma” e depura da “explosão”. Seja emoção, vertigem ou
paixão, o procedimento de construção do poema exige “trabalhá-la / com mão certa,
pouca e extrema”. Certeira e econômica, a “mão serena e contida” impede “que se
derrame / a flor que está escondida”.
Todo um programa de poesia está contido nestes poucos versos. Este
programa é posto em prática ao longo de toda a sua obra e explicitamente reafirmado
em inúmeros outros poemas. Desperfumar a flor e despoetizar o poema são ações
sinônimas que albergam o mandamento máximo da poesia cabralina: não enfeitar a
realidade, não usar a linguagem como “fraude” que esconda o dolo, não obnubilar o
olhar com uma poesia cuja beleza ludibria.
A referência poética à flor acompanha o poeta desde Psicologia da composição,
de 1947, livro composto por três extensos poemas: “Fábula de Anfion”, “Psicologia da
composição” e “Antiode”. Os títulos dos dois últimos são reveladores. À moda da
“filosofia da composição”, de Poe, “Psicologia da composição” põe a nu o ideário
poético visado e os métodos adotados para cumpri-los. “Antiode”, por sua vez, assume
o compromisso de se contrapor à tradição lírica da comoção e do embelezamento
mediante um projeto de enxugamento e sobriedade.
A flor aparece justamente em “Antiode”. Revertendo um processo inicial de
sublimização, manifesto na estrofe de abertura do poema

Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer

e explicitado nas duas estrofes que fecham a parte introdutória,

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

o poeta rompe com o lirismo entorpecedor, que ele associa à noturnidade, em nome de
uma poesia da claridade e do despojamento, dentro da qual as imagens da subtração,
mais do que um desempenho poético, adquirem um relevo ético.

Como não invocar o


vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?

(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite).

A interrogação enfática lançada na terceira parte do poema equivale a uma afirmação.


A lírica enganadora e “infecciosa” da noite é banida.
Na quarta parte, ele retoma a associação poesia-flor já dentro da nova
perspectiva, que distingue e singulariza a sua mundividência poética:

Poesia, não será esse


o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:

flor! Não uma


flor, nem aquela
flor-virtude – em
disfarçados urinóis).

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.

Flor é o salto
da ave para o voo:
o salto fora do sono
quando seu tecido

se rompe; é uma explosão

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posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.

O pensamento desenvolvido nas estrofes acima traz à mente a flor mallarmaica, “a


ausente de todos os buquês”, que provavelmente estava presente ao próprio João Cabral
quando as compôs. A flor que “se diz” num poema não é alguma flor concreta e real –
uma flor –, nem o vazio e gasto símbolo da pureza – flor-virtude –, mas tão somente “a
palavra flor”, pois é como acontecimento de linguagem que se dá o poema. A flor
cabralina propõe um novo tipo de valor poético: o salto que rompe o embaçamento do
sono. E verifica-se aqui a lição que o poema dos toureiros também executa: a
“explosão” é “posta a funcionar / como uma máquina”. Lição 1: pô-la a funcionar,
exercendo domínio sobre a força caótica que poderia dissipar o poema; lição 2:
discipliná-la em máquina, impondo-lhe “peso e medida”.
É assim que se chega à forma do poema. Ela é resultado de um projeto
construtivo, cujas exigências básicas são rigor, lucidez e controle do acaso. Os ecos
de Poe se fazem ouvir aqui. As estrofes da sexta parte de “Psicologia da composição”
deixam claro que não há inspiração (“lance santo ou raro”), nem sorte (“forma
encontrada como uma concha, perdida”), mas o estabelecimento prévio de uma meta a
ser atingida:

Não a forma encontrada


como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida


em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida


como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo


desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.

Vale ressaltar a insistência do poeta sobre a palavra atenção: poesia é trabalho, um


fiar concentrado, cauteloso e dirigido, como o da aranha. Sobressai também a
metáfora das mãos, que em geral figuram o peso de uma subjetividade excessivamente
presente ou uma pressa, uma falta de cuidado e zelo, uma brusquidão, que põem a
perder a fragilidade do tecido (= texto).
Apesar desta lucidez criadora, não é exato falar de uma poesia objetiva de João
Cabral, como alerta Secchin. A objetividade é estratégia discursiva de um sujeito. O
assíduo fio metalinguístico, a elaborada arquitetura imagética, a permanente
isomorfia entre o dito e o dizer denunciam a presença de uma inteligência artística.
O sujeito comparece duplamente, na escolha do objeto e na sua tradução. Toda
percepção revela simultaneamente o percebido e o percebedor. Assinalar um objeto é
inscrever nele a marca especular de um sujeito. O enunciador se inflete no enunciado.

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A escrita do mundo não é autográfica. As coisas falam pelo sotaque de quem as


pronuncia, enfatiza Secchin. A poesia cabralina, sublinha o estudioso, “confessa-se na
3ª pessoa”. Motivos recorrentes, ideias fixas, imagens privilegiadas, entregam um
poeta. Assim, Pernambuco, Espanha, pedra, rio, terra, deserto, faca, canavial, lâmina,
silêncio, sol, são “marcas explícitas de uma autobiografia velada”, nas palavras do
crítico.

4. A poética da pedra

A partir de O engenheiro (1945), terceiro livro de João Cabral, avulta em sua


obra a vertente construtivista e inicia-se um processo que Antonio Carlos Secchin
chama de “desativação onírica”, que traduz, diz ele, um “aguçamento da consciência
poética”.
Nesta desativação, o poeta se aproxima da pedra. O reino mineral se oferece
como suporte privilegiado para uma desemocionalização da poesia.
Uma estrofe de “Pequena ode mineral” já pautava o conselho:

Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.

Mineral é para o poeta, sobretudo, a própria página em branco, espaço vazio e deserto
onde erigir, sem o regalo de sonhos ou quimeras, o poema. Ouçam-se as estrofes iniciais
da segunda parte de “Psicologia da composição”:

Esta folha branca


me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.

Inspirada pela pedra, a poesia cabralina progressivamente se especializa no


aprendizado da concretude, combatendo a concepção egocrática da literatura e
desvencilhando-se do mágico, do escuro e do confidencial. Esta ruptura com a
tradição “poética” é uma das mais renitentes “ideias fixas” do poeta. Poemas como “O
engenheiro” e “Pequena ode mineral” enfatizam o compromisso de claridade e a
deliberação de assumir uma nova forma de conceber o fenômeno poético.
De Pedra do sono (1941), primeiro livro de João Cabral, a A educação pela
pedra (1966), obra de sua maturidade artística, verifica-se um decidido trajeto de troca
do onírico pela carnadura concreta das coisas. A pedra é o elemento-chave deste
novo endereçamento.
A educação pela pedra é ao mesmo tempo a consumação e a explanação do
projeto cabralino. Bastante elucidativo já no título, o programa se esmiúça
didaticamente no poema homônimo, de modo quase “teórico”:

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Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão


(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

O que “aprender da pedra”? Desafetação, impessoalidade, resistência,


concretude, economia. Mas a pedra só ensina “de dentro para fora”: se ela não “entranha
a alma” do aprendiz, tornando-se para ele modo de ser e de existir, ela não passa de
“cartilha muda”.
Outro poema do mesmo livro acrescenta lições ao ensinamento da pedra.
Chama-se “Catar feijão”:

Catar feijão se limita com escrever:


joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
Água congelada, por chumbo seu verso;
Pois para catar esse feijão, soprar nele,
E jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:


o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

Toma-se a tarefa prosaica de catar feijão como aprendizado de escrever e expõe-


se a similitude entre as duas operações: seleção precisa, descarte do indesejável. Tanto
num caso como no outro, “o leve e oco, palha e eco” são recusados. Os quatro
dissílabos, com a paronomásia cacofônica oco-eco, falam de uma leviandade fátua,
característica de um lirismo superficial e inane que a poesia cabralina enjeita. Ao
espelhar-se no catar feijão, o escrever busca um limite, que lhe garanta a disciplina e
a acurácia.

16

Mas divergem os dois labores num ponto capital: enquanto o catar feijão exclui
a pedra, “imastigável, de quebrar dente”, o escrever a procura e a cultiva, dando acordo
ao ditame máximo do Formalismo Russo. “Obstruindo” a leitura desatenta e casual, a
pedra aguilhoa a atenção, prolongando a experiência poética, ativando a percepção
do poema como construção de linguagem e impondo uma parada reflexiva que se
desdobra em conscientização e quiçá mudança, atitude, ação.
A mesma atenção que o poeta requer de si mesmo no ato de composição, ele a
exige do leitor como resposta e intercâmbio. A alternância sufixal com que o poeta
modifica os adjetivos “fluvial” e “flutuante” para “fluviante, flutual”, tornando a língua
simultaneamente familiar e estranha, instável, faz parte da estratégia de
perceptibilização com que ele “açula” o leitor. Afinal, se o risco é problemático no
catar feijão, ele é efeito visado no escrever. O risco contém dentro de si a isca para
provocar o leitor. A rima risco-isca acopla os dois sentidos e a ambos potencializa,
dando nascimento ao verbo iscar, que repercute o gesto mais agudo da poesia-pedra.
A pedra é, portanto, um elemento-chave do universo poético de João Cabral
de Melo Neto e por si só o resume, podendo ser identificado em todos os níveis de sua
produção. O estudioso Antonio Carlos Secchin a surpreende como característica tanto
de sua temática quanto de seu desempenho formal e demonstra que o universo cabralino
comporta uma:

a) semântica-pedra: palavras não poéticas que compõem “antiodes” e “antiliras”,


buscando uma dessentimentalização e um anti-ilusinonismo. Há nele uma marcada
preferência por substantivos concretos e por adjetivos vinculados a experiências
sensoriais;

b) sintaxe-pedra: quebra do discursivo, síncopes, elisões, cortes, profusão de


enjambements, remanejamento da estrutura da frase, gerando a impressão incômoda de
que alguma coisa está faltando;

c) estilo-pedra: cante a palo seco, só a lâmina da voz, onde “não medra a magia”.
Poesia da míngua, do “menos”, constituída por uma pronunciada prática de subtração;

d) fonética-pedra: recusa da música, rejeição ao verso melódico-vocálico e aos metros


cantantes. Primado de uma acústica áspera, rica em encontros consonantais.
Abundância de rimas toantes, que disciplinam o excesso sem adocicar a forma;

e) ética-pedra: capacidade de perdurar, resistência. O poeta perscruta a natureza em


busca de seus valores de dureza. Celebração do claro, no sentido da claridade e da
clareza. Repúdio ao vago, ao informe e ao noturno;

f) espaço-pedra: crescente mineralização dos cenários: praias, deserto, rios, paisagens


ostensivamente cheias de nada.

Tudo isso converge para o se poderia denominar de uma ESTÉTICA-PEDRA,


regida por dois supremos ideais: controle do acaso e refreamento da subjetividade.
A maior influência sobre esta estética é a arquitetura de Le Corbusier, com sua
valorização da funcionalidade, da leveza e da transparência.
A preocupação arquitetônica do poeta alimenta-lhe uma obsessão pela
quaterniformidade, porque o número 4 cria relações fechadas, estáveis, nítidas,
sólidas e duradouras.

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Deste conjunto de fatores, resulta um universo poético extremamente coeso, no


qual o poema se concebe como MÁQUINA DE LINGUAGEM: cada elemento é
funcionalizado, tudo significa, toda palavra ou imagem só se convalida na interrelação
com as outras partes e com o todo. A SINTAXE, agenciador central desta engrenagem,
é responsável pela transformação do caos em ESTRUTURA.
Mas o poeta do rigor formal combate a rigidez formal, a fôrma da forma. Suas
laboriosas construções esgotam-se na vigência do poema ou livro para os quais foram
concebidas, o que significa que a obsessão do rigor ultrapassa qualquer forma que o
suponha realizar integralmente. O Acaso, que se quer controlar, nunca se deixa vencer.
“Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, enunciou o célebre poema de Mallarmé,
mas esta própria insuficiência é o estímulo para novas investidas formais.
João Cabral, inclusive, denuncia a mitificação da onipotência do verbo. A
carência não está na coisa, mas na linguagem que supõe poder captá-la, dominá-la e
possuí-la. A vida antecede e excede qualquer imagem que a queira enformar, como
vimos o poeta reconhecer ao final de “Uma faca só lâmina”. Qualquer formulação é
provisória. Mas é a carência, o horizonte da busca por supri-la, que impulsiona e
substancia a força do discurso.
Nessa luta contínua contra o Acaso atrás de uma suposta e postulada perfeição
formal, João Cabral inventou, no dizer de Antonio Carlos Secchin, uma nova
gramática, que o singulariza no cenário da literatura brasileira.

Fontes:

SARAIVA, José Américo Bezerra. “A constituição de um ethos discursivo em ‘A palo


seco’”. Disponível em: http://files.semio-ce.webnode.pt/200000016-
4900e495a6/Artigo%20de%20o%20charme%20desta%20na%C3%A7%C3%A3o.pdf
(O estudo de Saraiva é voltado para a canção “A palo seco”, do compositor cearense
Belchior. Embora aponte a intertextualidade com o poema de João Cabral, o foco do
estudo é a canção).

SECCHIN, Antonio Carlos. Uma fala só lâmina. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

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