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O DIVINO MERCADO - AS PULSÕES HUMANAS NO MUNDO NEOLIBERAL:


Como os Sete Pecados Capitais se elevaram à categoria de virtudes

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Albert Drummond
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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ANAIS DO CONGRESSO DA SOTER
26º CONGRESSO INTERNACIONAL DA SOTER
DEUS NA SOCIEDADE PLURAL: FÉ, SÍMBOLOS, NARRATIVAS

O DIVINO MERCADO: AS PULSÕES HUMANAS NO


MUNDO NEOLIBERAL — COMO OS SETE PECADOS
CAPITAIS SE ELEVARAM À CATEGORIA DE VIRTUDE

Albert Drummond Lopes*

Resumo: Com a chegada do Capitalismo, a Igreja viu-se obrigada a adaptar-se ao novo mun-
do, por vezes necessitando adequar suas doutrinas morais à nova “lógica” social. Entre essas
doutrinas se encontram os pecados capitais, os sete principais vícios humanos, responsáveis
por encabeçar todo o resto dos males existentes em nós. Se outrora Aristóteles e os padres do
deserto acreditavam que deveríamos controlar, se não extinguir, nossas paixões, hoje, na
contemporaneidade somos estimulados a libertá-las. Todos os pecados capitais, sem exceção,
são tidos como virtudes nesta sociedade neoliberal atual corroída pelo afã consumista: esti-
mulamos a inveja como fórmula substancial para o sucesso; a avareza se tornou um valor
dos bem-aventurados dentro da sociedade consumista; a ira é fomentada pelos
fundamentalistas políticos e religiosos; compramos a gula que nos é enfiada goela abaixo; a
castidade se tornou um pecado grave enquanto a luxúria se limpa da lama em que sujou
durante toda a Modernidade; a ditadura do aparentar ser, do reconhecimento imediato ou do
deixar-se ver inflama o nosso gosto pela vaidade e, por fim, a preguiça se torna a utopia do
capitalismo, no qual se almeja um ócio eterno. Trabalhando com conceitos de moral,
neoliberalismo, pulsões e mercado, pretendo compreender melhor a construção dos valores
morais dentro da doutrina dos sete pecados e sua inversão na sociedade contemporânea.
Palavras Chave: Sete pecados capitais. Neoliberalismo. Moral católica. Inversão de valores.
Pós-Modernidade.

1. Construindo a doutrina dos pecados capitais


A amartia1 é uma expressão utilizada na Poética de Aristóteles, que faz alusão dire-
ta às tragédias gregas e seus heróis. Em sua essência, a amartia é a ignorância combinada
com a ausência criminosa, dispondo de uma parte do indivíduo: uma falha de caráter, que
o torna responsável por sua queda. Nas primeiras traduções latinas da Poética, o conceito
mais abordado de amartia era sua tradução direta a pecado (do latim peccatum), transgres-
são (scelus ou praevaricatio) e ofensa (flagitium), o que nos dá uma ideia do peso moral

*
Historiador e Mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista PROSUP.
email: a_drummond@hotmail.com
1
Amartia ou hamartia, “desmedida” no grego antigo. Sua significação: pecado (DELUMEAU, 2003, p. 358).

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atribuído ao termo. Essa interpretação perdurou por grande parte da Idade Média, convi-
vendo inclusive com outras leituras, tais como falha no caráter e caminhada para o vício.
No período medieval, a palavra vício, do latim (vicium), passa a ser utilizada para
designar uma consequência da amartia. Na Antiguidade Clássica, porém, é que os vícios
humanos já começam a ser abordados como um mal social. Em 300 a.C., Aristóteles abor-
da em Ética e Nicômaco (2001) as constituintes da moral, do bem e da virtude, que estão
diretamente relacionadas às paixões e aos prazeres, contrapondo-se, é claro, aos vícios,
que, por sua vez, poderiam ser controlados e até evitados. No entanto, nossas disposições
morais nasceriam de atividades semelhantes às virtudes e às paixões. As paixões tenderi-
am ao excesso ou à deficiência, já as virtudes levariam à moderação, que está entre dois
extremos, entre dois termos opostos e ambos no mesmo gênero.
Aristóteles compreende que nossas paixões são como os instintos: podemos
trabalhá-los, controlá-los, até evitá-los, mas não podemos extingui-los. Os gregos exem-
plificaram parte do “mal” humano, porém, foi com Evágrio Pôntico que a “doutrina” dos
vícios começou a ser analisada dentro de uma perspectiva cristã. Pôntico traça as principais
doenças espirituais que afligiam os monges, oito males do corpo e da alma sua preocupa-
ção com a “autoflagelação” fez de Pôntico o responsável pelo início do que viria a ser a Teo-
logia Moral Católica, uma vez que ele foi o primeiro a organizar de forma sistemática os
males humanos, oferecendo um aprofundamento dos estudos morais, da alma e do corpo.
Pôntico (2012) é enfático, classificando e analisando cada um dos males listando-os e orde-
nando-os: gula, luxúria, avareza, ira, tristeza, aborrecimento, vanglória e soberba.
Entre 1545 e 1563, durante o Concílio de Trento, a lista dos pecados se tornou fixa
nos preceitos doutrinadores da Igreja, oficializando de vez todo o trabalho acerca da alma
humana e seus defeitos. O discurso sobre os pecados, ao mesmo tempo em que denuncia o
mal e procura inculcar as atitudes legítimas da ética católica é um instrumento valioso pelo
qual a Igreja difunde seus valores no seio da sociedade e aumenta seu controle sobre ela.
Para Baschet, a Igreja empreende dessa maneira uma exploração exaustiva e mi-
nuciosa dos sentimentos e das paixões, que se inscreve em uma arqueologia da psicologia
ocidental; [...] também faz ver, ao mesmo tempo, o mal e o remédio que pode curá-lo [...]
(BASCHET, 2000, p. 380). Por meio da conceituação dos pecados, a Igreja reivindica para si
também o monopólio da missão que lhe permite absolvê-los. Assim, nasce a força pasto-
ral dos conceitos do pecado e do perdão, cujo desenvolvimento, tanto na Idade Média
quanto hoje, é considerável. Tais conceitos visam a potencializar a culpabilidade dos fiéis
e, sobretudo, à valorização dos meios de salvação oferecidos pelos clérigos (BASCHET,
2000, p. 380). Baschet (2000, p. 380) discorre ainda sobre o medo imposto com o uso dos
pecados e sobre como existiu uma hierarquia dentro da lista dos pecados, hierarquia
mutável, uma vez que consegue acompanhar as mudanças sociais.
A Igreja utilizou a lista dos pecados para comedir certos hábitos e (ou) costumes
sociais, envolvendo desde o próprio clero até as classes mais baixas. Por um longo período

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(séculos XII-XIX), a lista foi didaticamente divulgada pelos padres, em sermões e diversas
iconografias – vitrais, pinturas, murais e escritos literários – ilustrando como seriam as
punições aguardadas no Inferno e no Purgatório.

2. A inversão dos valores morais no neoliberalismo


Antes de entendermos como se deu a inversão dos valores morais, é imprescindí-
vel compreender a inserção das principais ideologias responsáveis por modificar a men-
talidade do homem moderno.
Ao longo do tempo, a Igreja Católica acumula uma vasta gama de conhecimen-
tos, opiniões e atuações no que diz respeito aos desvios morais: os conceitos de pecado e
de pecar tiveram extensa evolução durante a história da Igreja, que, com vistas a proteger
suas próprias posições, reordena e modifica a gravidade e a ordem dos mesmos segundo
o contexto histórico. A “versatilidade” da Igreja em adaptar-se fez com que a própria insti-
tuição permanecesse vigente, porém grande parte de sua doutrina se alterou durante a
história. Durante toda a Idade Moderna, a moral católica oscilou, seja pendendo para uma
afirmação ou consolidação de seus preceitos, seja anulando-se, questionada por novas
linhas de pensamentos que surgiam, entre elas o Liberalismo.
Em meados do século XX, “novas” correntes ideológicas surgem: a mais forte e a
“principal” delas foi o pós-modernismo2, que assumiu o direcionamento a uma nova linha
de pensamento, se responsabilizando pela ressignificação de toda uma milenar acepção
desenvolvida pela Igreja durante a história. O pós-modernismo desregulou uma linearidade
dentro da moral católica já construída e validada, invertendo seus valores. “As doutrinas
éticas pressupunham certa homogeneidade local, em que podiam reescrever exigências
institucionais como normas interpessoais e com isso reprimir realidades políticas nas “ca-
tegorias arcaicas do bem e do mal” [...]” (JAMESON apud ANDERSON, 1999, p. 77).
O pós-modernismo trouxe a possibilidade do questionamento e da autonomia,
desconstruindo doutrinas enraizadas, desqualificando-as e oferecendo vastas opções, se o
pós-modernismo projetava o individuo cada vez mais dentro da lógica do mercado, a reto-
mada do liberalismo, o neoliberalismo3, o inseriu de vez. Essa “nova” ideologia trouxe con-
sigo um desejo de liberdade, onde o homem basta-se a si mesmo quando inserido no mer-
cado e, neste particular, a economia não segue leis, mas tendências. (GALVÃO, 1997). Para
Assmann (1989, p. 232), o neoliberalismo fez com que tudo que era produzido pelo homem

2
Neste texto, utilizo o conceito de Frederic Jameson de pós-modernismo: “um novo estágio do capitalismo ou um capitalis-
mo tardio” (JAMESON, 1985). De forma simplificada, seria a desconstrução dos conceitos ideológicos dominantes durante
a Idade Moderna e a valorização do indivíduo e a efetividade da relação entre o indivíduo e o mercado.
3
A partir de 1970, a ideologia liberal retorna, desta vez como Neoliberalismo. É preciso salientar que o prefixo neo não se
refere a uma nova corrente do liberalismo, mas sim à retomada de alguns preceitos liberais no contexto do pós-modernis-
mo. “O centro de toda prática neoliberal é o mercado e, por conseguinte, o consumo.” (GALVÃO, 1997, p. 54-55).

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fosse reduzido à condição de mercadoria; a natureza e todos os recursos naturais e o pró-


prio ser humano, parte dos mecanismos mercadológicos, foram reduzidos a mercadorias.
O sistema de mercado só conseguiu impor-se quando conseguiu impor uma determinada
visão do homem, como marionete dirigida pelo interesse próprio na competitividade do
mercado, dispensando de angustiar-se com esforços de repensar, sempre de novo, as pos-
sibilidades da liberdade própria e alheia, numa conjugação social de ambas. A liberdade
ficou dogmaticamente definida: as relações contratuais do mercado são a única liberdade
possível. [...] Quem parafraseasse, na primeira etapa, o salmo 23(22), aplicando-o (“O Mer-
cado é meu pastor, nada me pode faltar”), hoje poderia rezá-lo com mais devoção ainda, se
estiver de acordo com a ideologia neoliberal. (ASSMANN, 1989, p. 234, 253).

O neoliberalismo definiu novos contornos sobre a relação do homem com a reli-


gião: se por um lado ele a descarta, apoiando-se nos mecanismos disponíveis do merca-
do, por outro ele se agarra de forma fundamentalista e enfática aos diversos “novos” deu-
ses. Este homem não precisa mais de um direcionamento sobre seu agir, sua conduta e
sua ética já que o próprio mercado o oferece.
Os conceitos de ética e conduta estão diretamente ligados a outros dois concei-
tos – moral e moralidade – que, de certo foram desenvolvidos pela Igreja durante seu per-
curso na história. O principal interesse da Igreja era direcionar o homem a uma conduta
que estivesse de acordo com as doutrinas católicas e, para isso, ela desenvolveu um longo
processo de caracterização ou definição das “condições humanas”. Seguindo a linearidade
do desenvolvimento dessas “condições humanas e morais”, passamos por Aristóteles que
definiu os conceitos de vícios e virtudes. Segundo ele, nascemos com virtudes; ao come-
termos a amartia, porém, desviamos nossa essência virtuosa e caímos no vício. Na Idade
Média, a Igreja adaptou e moderou esses conceitos a “condições de pecados e virtudes”. A
Igreja define então nossos vícios e classifica-os como pecados, com os quais nascemos e,
por meio de más influências, podemos cometê-los ou permanecer com eles. Apenas no
início do século XX é que essa concepção iria mudar: em 1915, Freud resgata a ideia de
Aristóteles sobre as paixões humanas (instintivas e pulsionais) e, trabalhando com o con-
ceito de pulsões, desconstrói e desmistifica as ideias de vício e de pecado (ou pecado ori-
ginal) já consolidadas pela Igreja. Para Freud (apud Blanco, 2013), pulsão (do alemão Trieb
que significa broto) é uma forma germinativa do querer, que pode ser estimulada pelo
ambiente em que vivemos. Todos temos essa força natural e tanto os vícios de Aristóteles
quanto os pecados da Igreja nada mais são que pulsões, instintos naturais do ser humano,
que os comete quando a sociedade os estimula. As teorias apresentadas têm um ponto
em comum: vícios, pecados e pulsões podem ser contidos.
A construção do homem neoliberal se dá principalmente através da renúncia ao
instinto: “os prazeres da vida civilizada vêm num pacote fechado com os sofrimentos, a
satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião (FREUD apud BAUMAN, 1998, p.
8). As compulsões do homem neoliberal, suas regulações e supressões são a marca regis-
trada do pós-modernismo resultando nos excessos, antes trabalhados pelos gregos, con-

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denados pela Igreja e, agora, validados pela lógica do mercado. O mercado oferece possi-
bilidades de satisfazer os mal-estares dos homens, as pulsões de Freud elucidam a ques-
tão do medo4 (já que ceder às “paixões” é parte essencial de quem somos) e o mercado nos
estimula a isso. O individualismo, tão cultuado pelo pós-modernismo, fez com que apren-
dêssemos a “honrar” os nossos deveres morais individuais.
Enquanto a Igreja Católica e outras religiões tentam a todo custo um “retorno” de
uma moral altruísta, o mercado “descentra” o individuo estabelecendo uma “‘moral sem
obrigações nem sanções’ segundo as aspirações da massa que se mostra cada vez mais
inclinada a um individualismo hedonista democrático” (LIPOVETSKY, 2005, p. 105).

3. As sete “virtudes” capitais


Jean Delumeau (2003) escreveu sobre a culpabilização do pecado no Ocidente, e
como o homem medieval se sentia (ou o faziam sentir-se) quando cometia pecado: “Na
história europeia, a mentalidade obsessiva foi acompanhada de uma “culpabilização”
maciça, de uma promoção sem precedentes da interiorização e da consciência moral. Em
escala coletiva, nasceu no século XIV uma “doença do escrúpulo” que se amplificou”
(DELUMEAU, 2003, p.9). Na sociedade neoliberal, o conceito de culpa passa a ser consi-
derado obsoleto: para Menninger (apud GUINNES, 2006, p. 18), dentro da teologia pós-
modernista, a noção de “mal” deixou de ser pecado para ser crime (definido legalmente),
e se tornar doença (definida em categorias psicológicas). Em outros termos, a moral “pro-
fana” suplantou as leis morais de salvação eterna, apontando para uma nova perspectiva
em que um grande número de sólidas prescrições morais ainda continua envolvendo uma
incessante busca pelo prazer.5
No neoliberalismo, a noção de pecado se torna minimizada: contrastando com a
tradição milenar dos pecados e virtudes, a cultura pós-modernista é permissiva, induzin-
do e estimulando que o indivíduo faça o que bem quiser e como quiser; a única “punição”
a ser temida é a lei. Deus se tornou meramente mais uma das partes do mercado. Nessa
sociedade transgressiva, têm-se licença para empanturrar-se de comida, dormir com quem
desejar, angariar lucros (mesmo que isso ultrapasse uma “boa ética” social), atacar quan-
do se sentir acuado, competir para suprir frustrações, utilizar os mais diversos recursos
para adquirir uma aparência falsa, ou simplesmente se acomodar. Pode-se até cruzar qual-

4
Se antes, nas Idades Média e Moderna, o homem não cometia pecados porque temia o além-túmulo, a partir de Freud e da
ideologia neoliberal, “cometer pecados” se torna parte de quem somos.
5
O prazer é o ponto vital de todos os vícios, pecados e pulsões. É a busca pelos prazeres momentâneos que nos impulsiona
a pecar. O prazer da vaidade está em despertar a sensação de inferioridade no outro ou de superioridade em si mesmo; o da
inveja está diretamente relacionado à frustração daquele que invejamos; a avareza encontra sua satisfação no lucro; o pra-
zer da acídia está na indiferença ou no “descumprimento”; o ápice da ira encontra-se na intolerância e na violência; o da
luxúria, no sexo, e o da gula, no desregramento.

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quer limite legal ou ético que não seja suscetível de ser descoberto. Os pecados capitais
fazem-se presentes na sociedade neoliberal e permissiva, porém trocaram por virtuoso
seu caráter negativo, e tornaram-se, por vezes, dentro da lógica do mercado, condutas
convenientes e estimulantes.

3.1 A vaidade e a beleza de consumo


De todos os pecados capitais, a vaidade ou soberba6 sempre esteve no topo da
lista como o principal mal humano, fazendo referência direta ao pecado de Lúcifer contra
Deus. Freud (2010) aborda a essência do pecado “contemporâneo” da vaidade, quando
trabalha com a ideia de narcisismo, em que o homem se centraliza de forma a entender
sua “superioridade” e elevar-se à categoria única de Eu.
O neoliberalismo cultua a individualidade: assim, mais do que individualista, o
mercado promove a elevação dos egos e do egoísmo, recrutando cada vez mais conjuntos
massificados de pessoas. A mídia pode ser considerada a maior responsável pelas exigên-
cias comportamentais, incluindo a estética corporal; passamos pela era de ouro do cine-
ma hollywoodiano, com ícones “exemplares” de beleza como Marilyn Monroe, Marlene
Dietrich ou Greta Garbo, renovando o mundo “imaginário” e impondo um novo modelo
de aparências, o das “estrelas”, forçando a adesão ao mito: o de seres excepcionais vivendo
entre os homens, o de seres “feitos para serem amados”. (VIGARELLO, 2006). O conceito
de beleza do início do século XX é trazido para o pós-modernismo e, a partir daí, uma
“ditadura do corpo” se instaura, incitando uma falsa liberdade individual onde todos fa-
zem parte de um mesmo fundamento, tornando o individuo “hipertrofiado7”. No qual é
validado pela coletividade em que o advento de uma sociedade de serviços, a propagação
do consumo, a dependência do individuo a “círculos” sempre mais diferentes da vida so-
cial, estimulam sua aparente autonomia, sua “deslocalização”, enquanto se aceleram as
mobilidades e os mercados. Uma intensa personalização do parecer se impôs como fenô-
meno de massa e também em princípio imediato de valorização (VIGARELLO, 2006).
A sociedade neoliberal é a sociedade do “ser” e do “aparentar ser”. A moral, que
tanto condenava a arrogância, agora cede aos seus encantos superficiais e a vaidade se
torna uma virtude. Dentro da lógica do mercado, exigente de um comportamento cada
vez mais espelhado em pré-definições de ética e beleza, sair dessa linearidade é não estar
apto a conviver com uma sociedade cada vez mais globalizada e observada.

6
São Tomás (2001, pp. 79-82) exclui a soberba da lista dos pecados capitais por considerá-la “megacapital”, a rainha de
todos os outros. Dentre os sete capitais, a vaidade é a que mais se assemelha à soberba. Durante o medievo e parte da
modernidade, o conceito de vaidade fazia alusão à altivez da nobreza, à superficialidade da sociedade de corte e à arrogân-
cia do clero acerca da intelectualidade. O sentido da palavra mudou na sociedade neoliberal ficando restrito somente a um
desejo exagerado de admiração e culto ao corpo e à beleza física.
7
Conceito utilizado por Vigarello (2006, p. 181) para definir o indivíduo como: “[...] um ser que não precisa mais se colocar
do ponto de vista do conjunto; é aquele que a sociedade neoliberal instalou como novo centro de “coerência”, acentuando
e estimulando seu sentimento de se sobressair em toda referência social”.

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3.2 A avareza, a grande rainha do mercado


No início da categorização dos vícios humanos, a avareza se restringia ao acúmulo,
ao guardar para si; tornou-se, posteriormente, sinônimo de egoísmo. Com a chegada do
capitalismo, o pecado da avareza encontrou um campo fértil para de fato desenvolver-se
e assumir sua identidade. Agora, pecar pela avareza é valorizar de forma imoral os bens
materiais e se submeter a qualquer tipo de situação para lucrar.
O Fordismo8, creio, foi o ponto de partida para elevar esse pecado à categoria de
virtude. A absorção da ideia mercadológica fez do indivíduo neoliberal parte do mercado,
absorvendo o dinheiro à identidade humana. Hugo Assman (1989) entende a relação en-
tre mercado e indivíduo como uma analogia “perfeita”, em que uma ideologia de núme-
ros9 apela por mais mercado e se transforma numa promessa vazia da solução de alguns
problemas, como a pobreza, o desemprego e a destruição do meio ambiente. “Aos proble-
mas concretos que aparecem é dada uma só resposta que se repete monotonamente: mais
mercado” (ASSMAN, 1989, p. 265).
As relações de poder estimulam e conduzem a sociedade: se outrora, no medievo,
os mercadores eram o foco das condenações por avareza, no pós-modernismo todos se
tornam mercadores e focos, mantendo relações de compra e venda, lucro e poupança,
produção e consumo, só que agora livres de condenações. Ser avarento é ser social, é ser
oblíquo, é ser capaz de viver de forma saudável num sistema cada vez mais capitalista e
caótico. Deus se tornou o mercado e Wall Street o seu templo:
A avareza tem uma aterrorizante capacidade de se transformar em uma falsa virtude
diante de uma demanda e, mais sugerido que afirmado, a compreensão que a avareza é
realmente o pecado da apostasia, de desejar uma vida sujeita ao controle humano no
lugar de uma vida de vulnerável confiança no invisível (TICKLE, 2005, p. 49).

3.3 A inveja e a garantia de sucesso


Durante toda a Idade Moderna, a inveja serviu para definir e organizar a hierarquia
social: servos, burgueses, nobres e clero. Com a chegada do capitalismo, essa ordem se tor-
nou questionável e quebrável, podendo então qualquer pessoa ser o que quisesse e estar na
posição que quisesse. O Capitalismo possibilita a escalada dentro da hierarquia social.
Epstein (2004) trabalha com o marxismo para explicar o papel da inveja na soci-
edade neoliberal. Para ele, a teoria marxista10 apoia-se na inveja, uma vez que se a revolu-

8
Termo criado por Gramsci para conceitualizar os sistemas de produção em massa, iniciados em 1922. Este conceito define
as inovações técnicas e organizacionais vinculadas à produção e ao consumo em massa (GRAMSCI, 1968).
9
Vejo os números na sociedade neoliberal como uma representação simbólica da relação homem versus mercado.
10
Existem inúmeras temáticas e vertentes a serem estudadas sobre a inveja contemporânea. Uma delas é a Teologia da
Prosperidade. Neste texto focarei a teoria marxista.

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ção do proletariado, como Marx prometeu, tivesse ocorrido, poria fim de vez a toda e qual-
quer condição que originasse a inveja. Epstein (2004) diz que a grande luta de classes diz
respeito a nada menos do que as vantagens invejáveis das classes superiores em relação
às inferiores – vantagens que, mesmo às custas de uma revolução sangrenta, precisam ser
eliminadas. Por esta razão, o marxismo tem sido até descrito como um culto à violência,
sendo a inveja seu permanente estimulante, combustível e motivador.
Por essa perspectiva, pode-se entender melhor a dinâmica da inveja dentro do
pós-modernismo. A inveja pressupõe existirem condições superiores às do invejoso, e pela
lógica do mercado, as destoantes comparações acabam por estimular a competitividade11.
No contexto pós-moderno, portanto, a inveja individual deixa de ser condenada e o mun-
do, de uma forma metafísica, passa ser o grande pecador, que age injustamente oferecen-
do prosperidade àqueles que consideramos indignos dessas “bem aventuranças”. Além
disso, não é o invejado que comete uma ação imoral: o seu triunfo é mais uma expressão
de [...] uma imoralidade do mundo. (ALBERONI, 1996, p. 73).
A distorção dos valores morais se dá quando precisamos do estímulo invejoso
para buscar o sucesso: lidamos, então, com uma pressão social de “ter que, a todo custo,
vencer na vida”, ou dentro da lógica do mercado, “ser bem sucedidos financeiramente”.

3.4 A ira, um pecado justificável


O vício da ira talvez seja o mais contraditório, pois sentir raiva e ódio sempre foi
justificável como um instinto, natural12 a quem o detém. A Igreja considerava pecado so-
mente a raiva dirigida contra Deus: a Inquisição, por exemplo, matou e queimou milhares
de pessoas, de forma intolerante, porém legitimada numa visão fundamentalista de bem.
Questionar a ação da Igreja era considerado heresia, um pecado de ódio contra os “bons”,
uma transgressão, assim como a loucura.
Na sociedade neoliberal, a ira pode ser um estímulo a favor da justiça e do bem
comum, contra quem ameaça a paz e o bem-estar. No entanto, cabe compreender que
bem é esse e a quem a justiça que valida atos de violência se refere. “No ocidente religioso
contemporâneo, a ira não é considerada um problema assim tão sério. É como se fosse
um fenômeno natural, como uma tempestade ou um relâmpago súbito, e talvez seja até
bastante respeitada como uma prerrogativa masculina a um privilégio da autoridade.”
(THURMAN, 2005, p. 34).

11
A competição escrupulosa não é o campo onde se manifesta mais intensamente a inveja; quem aceita disciplinadamente
regras, condutas morais, aprende também a aceitação. A questão principal, porém, é que na sociedade neoliberal, “aceitar”
uma condição é cometer o pecado da preguiça, tão mal visto por essa sociedade em contínuo movimento. Por isso, a(s)
“moral (ais)” que um dia valeram, são ignoradas nessa sociedade e tornam-se um malefício no caminho do sucesso.
12
Quando falo de “instinto natural” recorro à significação das pulsões de Freud.

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No pós-modernismo, a ira se delimita através de leis sobre o que é ou não permi-


tido, uma ética que pode favorecer quem se mantém no topo da cadeia mercadológica.
Nessa sociedade secularizada, os indivíduos perdem seus medos dos “infernos” futuros
mediante uma doutrina de aniquilamento da morte, sentindo-se livres para desafiar a
autoridade do Estado e do mercado13.
A intolerância está intrínseca no homem neoliberal. O mercado individualiza esse
homem e sua autonomia subjetiva se manifesta, na maioria dos casos pela desvalorização
das autoridades morais externas frente àquilo que brota do próprio individuo, tornando a
ira uma coisa boa, quando considerada justa, é claro.

3.5 A luxúria e a dicotomia entre o amor e o sexo


Os domínios e a autonomia do corpo sempre foram uma das principais fontes de
condenação moral da Igreja. Durante a Idade Moderna, as distorções de valores se deram
com os pensamentos “progressistas14”, desconstruindo de forma racional as amarras e ten-
sões sobre o corpo. No pós-modernismo, com a Revolução Sexual, toda conduta referente
à corporalidade foi revista, as relações ficaram “possíveis” e a moral católica declarou guerra
às “novas” definições. O neoliberalismo tentou limpar a lama em que a luxúria chafurdou
por toda a história, enquanto novas formas de extremismo e intolerância religiosa propu-
nham sua extinção de fato.
Não se pode dizer que a luxúria saiu vitoriosa no embate com a religião, mas
pode-se dizer que ela ganhou maior espaço. A “permissividade” das relações sexuais faci-
litou ainda mais a limpeza de sua reputação; no mundo neoliberal o individuo consegue
exercer sua sexualidade (mesmo que alguns segmentos a condenem). A grande questão
restante é a relação dicotômica entre amor e sexo: a religião adota a missão de dar conti-
nuidade à importante virtude do amor15, enquanto a sociedade neoliberal cultiva a liber-
dade sexual, diferenciando precisamente a relação de um com o outro. Dufour (2008) ten-
ta clarear essa dicotomia: existem duas relações de amor: “o amor pelo outro” (o amor
sexual, a luxúria) e “o amor verdadeiro”, o da moral tradicional. No amor pelo outro o
indivíduo pode escolher quem ele quer, inclusive pode pagar por isso (amor comprado16).
Já no “amor verdadeiro” o indivíduo não escolhe o outro, ele é o que te cabe (DUFOUR,
2008, p. 71). De certa forma, as duas formas de amor são afetadas pelas práticas pós-

13
A dinâmica social dos valores liberais não tolheu o aparecimento de movimentos caracteristicamente definidos pelo
espírito sectário e intolerante (LIPOVETSKY, 2005, p. 132).
14
Por pensamentos progressistas me refiro a qualquer linha ideológica que contraria as definições sociais construídas pela
Igreja. Entre eles, o Renascimento, o Iluminismo, o Liberalismo, etc.
15
Aqui me refiro ao que a religião considera parte do amor: a instituição do casamento, a fidelidade e as relações monogâmicas.
(DUFOUR, 2008).
16
Comprado por tudo que a sociedade neoliberal possa oferecer: pornografia, interação virtual e prostituição.

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modernistas, possibilitando a não necessidade de reconhecer a existência do outro. A re-


lação de dicotomia entre moralidade e “liberdade” (ou permissividade) torna a luxúria
uma virtude por vezes exaltada, porém não menos condenada.17

3.6 A gula e sua controvérsia


Já que a gula diz respeito à falta “ética” no comer e no beber, questiona-se: – como
um problema de “boas maneiras” poderia se tornar um dos sete pecados capitais? A res-
posta é que, na Idade Média, os excessos advindos da procura dos prazeres do paladar
foram enquadrados na grave falha de ultrapassar-se conscientemente a medida (amartia)
no comer e no beber. O pecado da gula “era” um pecado de gradação, mas o grau que
parecia importar mais não era tanto o consumo excessivo, mas o apetite, o desejo e a
atenção excessivos: a fixação na comida, no prazer derivado do paladar; “[...] a dor
autoinflingida da fome; e principalmente, as maneiras pelas quais todas essas fixações
relacionadas desviavam a atenção das necessidades mais importantes da alma e do espí-
rito.” (PROSE, 2004, p. 55).
O pós-modernismo traz um pouco da culpabilização medieval ao pecado da gula:
por um lado temos a cobrança da vaidade, do corpo ideal e da criminalização do sujeito
que traz em seu corpo os resquícios de sua fraqueza palatativa; por outro, temos um hábi-
to estimulado pela luxúria, a junção direta do sexo com a comida, mais uma vez associan-
do18, através da publicidade, os prazeres sexuais aos prazeres do paladar (QUELLIER, 2011).
A gula continua sendo um pecado de classe e o consumismo, suas consequências.
O homem neoliberal seculariza e medicaliza o vício do paladar, o que facilita ainda mais
sua absorção pela sociedade: é um mal remediável. A gula elevou-se além dos prazeres do
bem comer e beber; a necessidade de consumo do homem pós-moderno expandiu-se, e
os padrões de felicidade são medidos pelos níveis de consumo: quem consome mais é
mais feliz (HERKENHOFF, 2007). A mídia e a publicidade estimulam essa sociedade
consumista: há comidas cada vez mais elaboradas, a bebida se relaciona ao ensejo para a
expressão, corporal e sexual, e os fast foods oferecem uma facilidade para o homem (em
constante movimento) se satisfazer de forma rápida e saborosa.
A gula se contradiz. Ela é condenada quando é expressa pela gordura, a marca
que provoca no corpo. Pode ser estimulada, porém, quando a cometemos de forma dis-
creta, em prol do convívio, do sexo ou do simples prazer gustativo.

17
A cultura contemporânea esvazia a moralidade de sua dimensão sexual, mas a reintegra pelo viés do protesto feminista;
chancela a liberdade de expressão pornográfica, mas dá origem a novas imposições de censura, ainda que em nome da
liberdade; deixa de pôr no pelourinho a sexualidade, mas reconstrói contradições e conflitos redibitórios acerca dos concei-
tos do que seria digno ou indigno da expressão sexual (LIPOVETSKY, 2005, p. 57).
18
Os pecados do corpo, gula e luxúria, estão diretamente associados: a gula pode ser capaz de gerar a luxúria, seja

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3.7 A preguiça e o paradoxo de mercado


No período medieval, a acídia esteve associada diretamente aos monges, que
podiam ser condenados por sua “melancolia” no viver, que ocasionava um distanciamento
para com Deus. Com o desenvolvimento econômico e, principalmente, com a chegada do
capitalismo a melancolia, a frustração e o descontentamento foram adotados como justi-
ficativa para o “não cumprimento com as tarefas diárias”: então, o pecado da acídia, agora
chamado de preguiça, sai dos monastérios e atinge toda a sociedade.
Seria ela, de todos os sete capitais o único pecado condenável do pós-modernis-
mo? Essa questão tem dois lados: o primeiro aborda a preguiça como um pecado
gravíssimo, uma vez que neutraliza no indivíduo neoliberal o impulso de produzir, estag-
nando, assim, toda a mecânica do mercado; por outro lado, esse mesmo indivíduo
acorrentado a um cotidiano de produção exigem maiores facilidades para o desenvolvi-
mento de suas atividades (WASSERSTEIN, 2005). O mercado, então, cobra uma produção
e em troca oferece (por meio da tecnologia) facilidades. O individuo neoliberal, preso a
um paradoxo contínuo, trabalha para comprar seu conforto.
A preguiça aos poucos foi se tornando um vício permitido, validado pelo merca-
do: ter “direito” a não fazer absolutamente nada, a permanecer no ócio (mesmo que seja
criativo), torna-se uma virtude da elite e uma utopia da grande massa que trabalha conti-
nuamente para um dia chegar à tão almejada ociosidade. Essa nova virtude oferece tem-
po, tempo que vai à contramão de uma sociedade que não pode parar. Trabalha-se muito
para ter-se conforto, trabalha-se exageradamente para ter-se direito a usufruir a preguiça,
o não trabalho.

4. Considerações finais
Junto com o neoliberalismo veio certa descrença sobre os valores morais tradici-
onais. O pós-modernismo renegou a fé na obrigação de viver para o próximo, construindo
um indivíduo que valoriza e atenta principalmente para as questões do “eu”: o eu con-
quistou seu direito de cidadania. O individuo neoliberal não vacila em expor o caráter
individualista de suas preferências, antes condenado pela religião, que inspirava uma éti-
ca de compartilhamento, compaixão e complacência.
O mercado estimula a inversão dos valores morais. Os pecados se tornaram virtu-
des fomentadas pela lógica pós-modernista, e as virtudes se tornaram pecados, por inci-
tarem um comportamento “humanitário” do “um” para com o “outro”. O indivíduo se “li-
berta” das amarras doutrinárias religiosas (ou pelo menos acredita que o faz) tornando
inúteis os valores inerentes ao sacrifício, sejam eles relacionados ao imaginário da vida
eternizada ou a meras finalidades profanas.
Este artigo é apenas uma introdução a um imenso conjunto de idéias, passeando
de forma breve pelos conceitos da sociedade neoliberal e por uma análise sobre os valores

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religiosos e sua inversão histórica. Apoiando-se na doutrina dos pecados capitais, a in-
tenção é elucidar a inversão de valores e a relação entre moral e pós-modernismo. O en-
fraquecimento da noção religiosa, a crescente legitimação dos valores da liberdade pesso-
al e a elevação dos pecados capitais como parte essencial de sustentação à sociedade
neoliberal, contribuíram e contribuem para a atual aceitação ou adoção de uma moral
antes condenada pelo Catolicismo. Acredito que o sucesso dos sete pecados capitais é
explicado por sua capacidade de adaptar-se às realidades em permanente transformação
e por se constituírem em ferramenta de notável eficácia histórica em canalizar, sempre
com fins “econômicos” de controle social, os impulsos humanos. Sendo assim, parte da
construção identitária de um “mercado divino” e de um individuo “autossuficiente” se dá
porque o individualismo ético reconhece necessária a inversão, quando conveniente, dos
valores morais (pecados/virtudes) para sustentar-se e manter-se vigente.

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