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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

KAIO MARCEL DE SOUZA HENRIQUES

O Discurso científico racista e a psicopatologização dos


fenômenos de incorporação

SALVADOR

2022

KAIO MARCEL DE SOUZA HENRIQUES


O Discurso científico racista e a psicopatologização dos
fenômenos de incorporação

Ensaio de conclusão, produto da disciplina Corpo,


Clínica e Política, ministrada pela professora
Suely Aires, no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal da Bahia.

SALVADOR

2022
INTRODUÇÃO

O corpo da biologia e o corpo da psicanálise vêm sendo objeto de considerações no cenário


psicanalítico atual (FORTES, WINOGRAD & PERELSON, 2018). As compreensões de
Freud, e o posterior retorno proposto por Lacan permitem reflexões acerca das implicações
dos diferentes discursos na constituição subjetiva dos sujeitos. Seus estudos implicam na
noção de que corpo e linguagem configuram, ao mesmo tempo, construções atravessadas pela
dialética singular-universal, e que a construção do psiquismo é mediada pela relação com o
Outro.

Associado ao campo da ciência e filosofia políticas, a psicanálise tem caminhado por veredas
teóricas concernentes ao compromisso ético-político com o curso histórico do tempo e espaço
em que são pensadas. A ideia de que a formação do inconsciente é atravessada pelos
discursos e práticas culturais é fundamental para a conversação sobre o estabelecimento de
marcadores sociais que incidem sobre os diferentes corpos.

O presente ensaio se propõe, portanto, a sintetizar o conjunto de aprendizados potencializados


pela participação na disciplina. A partir de um recorte da área de interesse em saúde mental,
pretende-se discutir a construção de hegemonia através do discurso científico baseado na
racionalidade biomédica.

No Brasil, esse discurso entra em operação no campo da psiquiatria como um agente do


princípio de exclusão, fazendo uma inflexão racialista para favorecer o controle e a alienação
de sujeitos negros a partir da medicalização - e consequente patologização - dos fênomenos
de transe de seus corpos, e as experiências de incorporação associadas às práticas religiosas
de matriz africana.

DESENVOLVIMENTO

A oposição razão-loucura na hegemonia da discursividade científica

Discurso relaciona-se a poder e o desejo, argumenta Foucalt (1996), ao explanar sobre os


efeitos de práticas discursivas nas conformações sociais em que se inserem. Ele supõe,
portanto, que “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório(...)” (1996, p.8).

Ponderará o autor que o elemento que revela essa ligação, valendo-se do diálogo com a
psicanálise freudiana, é a interdição. Esta opera atingindo o discurso, aqui compreendido
como “aquilo que manifesta ou oculta o desejo, (...) aquilo que é objeto do desejo(...), o poder
do qual nos queremos apoderar” (FOUCALT, 1996, p.10). Desta forma, interditando saberes,
poderes e discursividades em favor de estabelecer hegemonias das palavras que podem - e
das que não podem - circular com liberdade.

Ao falar sobre a sociedade moderna, Foucalt (1996) mencionará o princípio da exclusão, que
funciona a partir de uma separação e rejeição. A modernidade aliena, rejeita, nega discursos,
e põe em oposição as práticas discursivas que são acolhidas e as que operam deverão operar
fora da norma.

O intelectual camaronês Achille Mbembe, alicerçado e avançando a partir da produção


Foucaltiana, afirma que “a crítica política tardo-moderna (...) tornou o conceito de razão um
dos elementos mais importantes tanto do projeto de modernidade quanto do território da
soberania(MBEMBE, 2016, p.124)”.

Antes e em consonância com Mbembe, Foucalt diz que a oposição entre razão e loucura é
uma das manifestações do princípio da exclusão, evidenciando que “o louco é aquele cujo
discurso não pode circular como o dos outros” (FOUCALT, 1996, p.10) e portanto, é
submetido aos poderes discursivos: seja como ruído (sem valor simbólico), ou como “razão
ingênua” (FOUCALT, 1996, p.11).

Sobretudo o discurso científico será o pilar central da sustentação da soberania da razão na


modernidade. Para Santos (1987:9-10) a ordem científica, “é o modelo de racionalidade que
preside a ciência moderna (..) a partir da revolução científica (...) desenvolvida basicamente
no domínio das ciências naturais” (apud AMARANTE 1996, p.28). Amarante criticará,
assim, esse modelo, e afirmará que além de estabelecer-se como hegemônico, descredencia
outros saberes que exercitam outros princípios, métodos e epistemologias.
Amarante (1996) cartografa o trajeto do saber psiquiátrico que acirrou a descredibilização, e
portanto o princípio de exclusão dos loucos e o livre trânsito de suas palavras e corpos, com
base em critérios científicos e filosóficos - e o livre trânsito de suas palavras e corpos.

O Alienismo, característico do momento de cientificização do paradigma psiquiátrico a partir


de seu alinhamento com a medicina moderna, é entendido pelo autor como segregante,
excludente e violento. A prática dessa disciplina médica valia-se do conceito de Alienação -
equivalido à loucura - para justificar uma clínica que exerce sobre a liberdade seu saber-
poder, a fim de estabelecer uma hegemonia da razão sobre a loucura, e de algumas
coletividades sobre outras.

Nesse contexto, a partir das palavras de Amarante (1996):

“A loucura é entendida como 'alienação', como o estado de contradição da razão,


portanto, como o estado de privação de liberdade, de perda do livre-arbítrio. Se
alguém é alienado, isto é, se não se lhe pertence, não há razão, não há liberdade”
(p.44).

E assim sendo, lhes são impostos o tratamento moral, tendo como principal medida o
isolamento. Conforme citado pelo autor:

o isolamento cientificamente fundamentado afasta o louco da família da sociedade:


"a seqüestração é a primeira condição de qualquer terapêutica da loucura" e, "a
partir desse princípio, o paradigma da internação irá dominar, por um século e meio,
toda a medicina mental" (CASTEL, 1978a:86, apud AMARANTE 1996, p.49)

O caminho teórico percorrido por Paulo Amarante favorece então o entendimento da relação
do início da configuração da Psiquiatria, enquanto disciplina biomédica. Ele caracteriza-a
como inserida no discurso científico que aliena e hierarquiza razão e loucura, sob a pretensa
neutralidade racionalista. Foucault (1996), por sua vez, dirá que o discurso está “longe de ser
esse elemento transparente e/ou neutro”(p.9), e que “Por mais que o discurso seja
aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua
ligação com o desejo e com o poder”(p.10).
O poder, para Foucault (1996), é exercido politicamente pela discursividade biomédica, que
por sua vez é herdeira do racionalismo científico e operará de maneira a exercer controle
sobre as questões da saúde - e, portanto, dos fenômenos elencados como doenças.

Seu conceito basilar de Biopoder, reiterado por Mbembe (2016) como “aquele domínio da
vida sobre o qual o poder tomou o controle” (p.123), nos permite pensar em como “esse
controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população
em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros'' (p.128).

Achille Mbembe dirá que o pensamento de Foucault aponta para a crítica à racionalidade
biologicista, afirmando que parte também dessa discursividade é o princípio que justificará a
separação por raças. De acordo com o camaronês:

“Que a “raça” (ou, na verdade, o “racismo”) tenha um lugar proeminente na


racionalidade própria do biopoder é inteiramente justificável. Afinal de contas, mais
do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta
econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a
prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a
desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los”(p.128).

Depreende-se daí um importante marcador social da diferença na dinâmica do racismo


científico: o corpo, a partir de uma compreensão biologicista e biologizante. Corpo esse
objetificado, assujeitado e a povoar o imaginário coletivo racista como figura alvo de
desprezo, medo e também fascínio.

Do discurso… ao Corpo Negro

Askofaré (2010) tratará de resgatar o conceito de corpo da obra de Jacques Lacan para traçar
um cruzamento com a teoria da linguagem e do laço social e mostrar as relações entre as
discursividades circulantes e os arranjos do corpo social. Evidenciará, inicialmente, a
conceitualização não trivial da tradição psicanalítica que que as noções de corpo e organismo,
como em mútua relação, contudo sem serem coincidentes.
Corrobora com essa ideia a produção de Isildinha Nogueira (1998), que aponta a distinção
entre esquema corporal e imagem do corpo. De acordo com a autora, o primeiro “indica a
condição de representante da espécie do indivíduo”(p.72) enquanto a segunda “é única a cada
um, específica, está ligada ao sujeito, à sua história”(p.71).

Dirá Askofaré (2010), citando Lacan (1970) que o mesmo reconhece que “nenhum avanço
feito por ele sobre a linguagem e seus efeitos poderia ser concebido sem o corpo” (2010,
p.86). Evidenciando que os corpos também são atravessados pela linguagem e por seus atos
que operam no social. Os discursos hegemônicos criam formas, então, de controlar a
circulação e o uso dos corpos, frequentemente pondo-os no lugar de objeto.

Objetificar é destituir outrém da condição de sujeito, assujeitar. Askofaré (2010, p.91)


apontará, contundentemente, que “de acordo com Lacan, (...) a dominação do discurso da
ciência e do discurso capitalista está nos fundamentos desta ruína do Outro (ASKOFARÉ,
2010, p.91).

Por sua vez, Mbembe (2017) reafirmou que o elemento raça, perpassado por marcadores
corporais, será estruturante - e estrutural - nas sociedades. Sobretudo, salienta o papel do ódio
antinegro na conformação do estigma social em torno dos povos africanos e seus
descendentes, com a finalidade de supressão de sua suposta ameaça.

Diz o autor que “ser reduzido ao estado de sujeito racial é se colocar desde o início na
posição do Outro. O Outro é aquele que deve, a todo momento, provar aos outros que é um
ser humano” (p.133).E falando sobre os medos racistas, diz Mbembe (2017) que

“(...)o medo do negro, esse Outro que é obrigado a viver sua vida sob o signo da
duplicidade, da necessidade e do antagonismo. Essa necessidade é geralmente
concebida na linguagem da natureza e dos processos orgânicos e biológicos. De
fato, o negro respira, bebe, come, dorme e evacua. Seu corpo é um corpo natural,
um corpo de necessidades, um corpo fisiológico. Ele não sofre à maneira de um
corpo humano expressivo"(p.136).

Nas palavras de Nogueira (1998):

“Está posta, assim, uma dualidade fundamental, no que tange à estrutura psíquica
do negro: uma dupla lacuna se instaura no processo de tornar-se sujeito, em que o
real de sua condição de negro, enquanto tal, não é reconhecido, é negado e se
nega( p.92).

De acordo com a autora supracitada, a imagem do corpo não provém de um “dado anatômico
natural, como pode ser o esquema corporal, ela se constrói na história do sujeito”(1998, p.
74). Aponta Isildinha Nogueira que a história pessoal conflui com a história social, e dirá que
para pensarmos sobre a constituição do corpo negro enquanto tal, é necessária considerar as
dimensões imaginárias e simbólicas herdeiras do sistema sócioeconômico escravista.

Diz Nogueira: “não obstante a abolição, permaneceria por tempo indeterminado o cativeiro
psíquico de uma imagem que, como o crivo da ciência, justificaria uma ‘inumanidade’ do
negro” (1998, 76). A autora mostra como o pensamento naturalista da época pós-abolição é
marcado pela objetificação do corpo negro.

Nas palavras de David e Vincentim (2020, p. 266),

“produções teóricas começaram a ser elaboradas por diversos intelectuais, com o


intuito de demonstrar uma suposta naturalização das disparidades sociais como falsa
justificativa da manutenção de negros(as) em condição análoga à escravidão.”

Os autores consideram que a produção da ciência psiquiátrica brasileira do período, associado


às compreensões eugenistas da ciência biomédica, cumpriu função material e simbólica na
política de encarceramento da população negra do país. Eles apontam, por exemplo, o racismo
científico na produção psiquiátrica brasileira e suas ideais eugenistas, que buscavam justificar
uma inferioridade racial associada aos negros (DAVID & VINCENTIM, 2020).

Nas palavras de Schwarcz (2001, apud DAVID & VINCENTIM, 2020) sobre essa produção
que acontecia no seio da Faculdade de Medicina da Bahia, na segunda metade do século XX e
a primeira metade do século XX “Na Bahia, é a raça, ou melhor, o cruzamento racial que
explica a criminalidade, a loucura, a degeneração(p. 267)”.

Essa perspectiva da ciência médica eugênica era utlizada para patologizar negros, afirmar sua
suposta periculosidade e ratificar a branquitude no ideário brasileiro. Aparece enquanto
elemento importante dessa equação a associação entre fenômenos culturais africanos e
afrobrasileiros e diagnósticos psiquiátricos, cuja via terapêutica incluía o asilamento
manicomial.

Assim sendo, não é à toa a classificação dos fenômenos de transe e possessão - também
conhecidos como incorporações - nos manuais diagnósticos de transtornos mentais.
BERNICK et al (2019, p.2) caracterizam o transe e a possessão como "manifestações de
ordem fenomenológica e presentes nas religiões, sobretudo de matriz africana e Kardecista".

Citam os autores que “A psiquiatria desde o século XIX tem desprezado e, mesmo,
considerado patológicas as manifestações religiosas e espirituais(MENEZES-JUNIOR;
MOREIRA-ALMEIDA, 2009, apud BERNICK et al 2019, p.2).

Em pesquisa histórica acerca do olhar dos psiquiatras brasileiros sobre esses fenômenos,
Almeida, Oda e Dalgalarrondo (2007, p.35) dizem que
É importante ressaltar que sua vasta produção se insere no grande debate nacional
ocorrido no período próximo da Abolição, quando o “problema do negro” passa a
ser especificamente uma questão científica, vista pelas lentes da teoria da
degenerescência, do determinismo climático e das crenças na inferioridade inata da
“raça negra” e nos malefícios dos cruzamentos étnicos.

As incorporações
Pode a psicanálise, em sua práxis, nos fornecer elementos para pensar esses fenômenos
através de outra ótica, outra ética? Freud (2010) aponta alguns caminhos quando afirma que
“A psiquiatria contesta, naturalmente, que esses casos envolvam espíritos maus que
se infiltraram na psique, mas limita-se a dizer, dando de ombros: “Degeneração,
disposição hereditária, inferioridade constitucional!A psicanálise procura esclarecer
essas inquietantes doenças; ela empreende pesquisas longas e acuradas, produz
conceitos auxiliares e construções científicas” (p.385).
Ao escrever nesse texto sobre Uma Dificuldade da Psicanálise, Freud aponta as descobertas
feitas pela psicanálise até aquele momento com a terceira ferida narcísica para a humanidade.
A ferida que demonstra que “não somos senhores em nossa própria casa”, e que a soberania
da razão não sobrevive após a produção encabeçada por ele acerca do papel das pulsões
inconscientes na vida dos sujeitos.
Essa postura de Freud fará fissura no discurso científico da época, que apontava para a
dissociação mente-corpo, e para a primazia da racionalidade nos ditames da experiência
humana. De acordo com Aires (2014), está na concepção de Afeto, na obra Freudiana, o
elemento de articulação entre a noção de corpo e inconsciente. Essa compreensão é
inaugurada por Freud através das suas pesquisas clínicas diante da “incompreensão dos
sintomas histéricos por parte da medicina de fins do século XIX” (p.43).

Aires(2014) dirá que a obra de Lacan inclui uma inflexão no pensamento Freudiano, ao
articular a sua concepção de corpo à linguagem. Afirmará que corpo e afeto apresentam uma
implicação mútua e que
O corpo deve ser abordado imaginariamente – função da imagem cativante e do
olhar –, mas também em sua relação ao organismo que, apreendido pelo Outro, ou
seja, apreendido simbolicamente, ganha estatuto humano (2014, p.51).

Em consenso com esse pensamento, Nogueira (2010, Apud Conty 1987) fala que com
objetivo de inumanização do negro estabelece-se “uma associação direta das características
do corpo negro com valores morais e éticos depreciativos”(p.77). E que
“esta visão, subsiste ainda, de alguma forma inscrita num dado universo de
teorizações científicas, que deram e ainda hoje dão suporte às representações que
fazem parte das construções imaginárias socialmente elaboradas sobre o negro (p.
77).
Dessa maneira, são necessárias teorizações que disputem os discursos corrente e façam valer
o lugar de sujeito das coletividades em suas verdade. A produção científica precisa
comprometer-se em elaborar o pensamento que inclua a subjetividade, e a maneira como esta
se constrói, na gênese mesma da sua práxis.
O plano discursivo científico é um campo de disputas narrativas, e o choque de visões
diversas sobre si é assunto para Carvalho e Bairrão (2017), que afirmar sobre as tradições de
matriz africana que:
“as semelhanças entre eu e outro são baseadas em critérios heterogêneos que, em
última instância, afirmariam a autonomia e o fortalecimento do coletivo. Enquanto
que os sistemas simbólicos do europeu seriam derivados de modelos homogêneos,
como as políticas centralizadoras e escravistas, impondo-se uma barreira entre o fora
e o dentro numa lógica de dominação e poder, de manutenção das diferenças” (p.
149).
Os autores defendem a ideia de que essas tradições resguardam a relação com a alteridade de
maneira distinta à dos colonizadores, favorecendo a assimilação do eu em relação ao Outro.
Afirmam eles que “A umbanda parece atuar como um radar social para um sagrado que reúne
vivências singulares, muitas vezes destituídas de lugar na sociedade hegemônica” (p.151). É
necessário, portanto uma abordagem etnopsicológica que atribua de acordo com suas prórpias
insignías, faça valer o discurso dessas coletividades de acordo com a sua própria produção
cultural.
Dias e Bairrão (2013, p. 223) afirmam “o corpo e suas propriedades sensoriais e perceptivas
como um verdadeiro lócus de saber capaz de armazenar e refletir memórias coletivas
cognoscentes” nas tradições afrobrasileiras.

Demonstram que nos ritos de possessão e incorporação, manifesta-se a capacidade de


comunicação com os espíritos e entidades, e que estes:

“Tomados como alteridades cognoscentes e familiares, eles


apresentam uma possibilidade de interlocução e subjetivação de
tensões vivenciadas imaginariamente como um embate entre “si
mesmo” e “outros poderes” subjugantes e opressivos” (p. 224).
Concluem os autores:
Na verdade, lacanianamente entendida, o que se passa na possessão é da ordem de
um “atravessamento” em que não faz sentido a dicotomia interior/exterior, em que a
construção da realidade — não redutível ao linguístico, uma vez que o corpo e o
gestual já possuem uma dimensão simbólica — e do que quer que seja da ordem do
indivíduo não é senão uma produção de efeito das (e nas) combinatórias possíveis
entre a presentificação de um real incognoscível e imperativo e o universo cultural
(significante) disponível, assimilado intersubjetivamente através dos encontros
estabelecidos com outros agentes (sejam eles espíritos, deuses, ou pessoas concretas)
socialmente acessíveis.

CONSIDERAÇÕES
O que se considera aqui é o registro narrativo que perpassa a forma que o racismo científico
apodera-se do discurso psiquiátrico para interditar o trânsito de pessoas negras. Utiliza da
pretensão de neutralidade para estabelecer parâmetros de saberes hierarquizados para a
produção da exclusão.

Procurou-se apontar como a hegemonia da razão sobre a loucura se configurou historicamente


como instrumento biopolítico, e como a racionalidade científica colaborou nesse processo, ao
sustentar relações de saber-poder favoráveis à dominação e controle do poder e desejo de uns
por outros.

No Brasil, mostra-se mais evidentemente o papel das teorias eugenistas na tentativa de


perpetuação do embranquecimento da população e exclusão dos povos negros. Manifestada
das maneiras mais explícitas às mais sutis, esse racismo operou e opera de forma a manter as
estruturas racistas do país intactas.

Neste sentido, o campo das discursividades aparece como espaço de embate, em que visões de
mundo se chocam para o estabelecimento de formas de ver, tratar, ser e estar. Foi possível
compreender como os corpos dos sujeitos se constituem em relação com a linguagem e a
política.

Pretendeu-se argumentar como a construção dos corpos negros são ligados aos discursos
circulantes, e como operam para a sua objetificação. Elencou-se os fenômenos de
incorporação, e sua captura pela psicopatologia como mais um elemento do ideário racista
brasileiro.

Buscou-se compreender como esse fenômeno demanda ser tratado em termos epistemológico
não etnocêntricos, e que a verdade dos sujeitos envolvidos possa emergir, a partir do
momento em que são considerados discursivamente como sujeitos.

Procurou-se evidenciar como os rompimentos estabelecidos desde Freud com o discurso


científico hegemônico podem apontar a psicanálise, e sua compreensão de corpo associado à
linguagem e afeto, como potencial fator práxico para a compreensão desses fenômenos
através de uma ótica não medicalizante e comprometida ética e politicamente.

Compreende-se como árdua, profícua e também urgente, a produção de conhecimento que


alicerce sua epistemologia em valores contra-colonizadores. Em especial na Reforma
Psiquiátrica Brasileira, é fundamental a compreensão da associação entre racismo e
manicomialização para a oferta adequada de assistência à saúde mental da população negra.

São importantes os esforços para avaliar as possibilidades de diálogo entre os conhecimentos


alicerçados em epistemologias sul-centradas e a produção clássica em psicanálise.
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