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SALVADOR
2022
SALVADOR
2022
INTRODUÇÃO
Associado ao campo da ciência e filosofia políticas, a psicanálise tem caminhado por veredas
teóricas concernentes ao compromisso ético-político com o curso histórico do tempo e espaço
em que são pensadas. A ideia de que a formação do inconsciente é atravessada pelos
discursos e práticas culturais é fundamental para a conversação sobre o estabelecimento de
marcadores sociais que incidem sobre os diferentes corpos.
DESENVOLVIMENTO
Ponderará o autor que o elemento que revela essa ligação, valendo-se do diálogo com a
psicanálise freudiana, é a interdição. Esta opera atingindo o discurso, aqui compreendido
como “aquilo que manifesta ou oculta o desejo, (...) aquilo que é objeto do desejo(...), o poder
do qual nos queremos apoderar” (FOUCALT, 1996, p.10). Desta forma, interditando saberes,
poderes e discursividades em favor de estabelecer hegemonias das palavras que podem - e
das que não podem - circular com liberdade.
Ao falar sobre a sociedade moderna, Foucalt (1996) mencionará o princípio da exclusão, que
funciona a partir de uma separação e rejeição. A modernidade aliena, rejeita, nega discursos,
e põe em oposição as práticas discursivas que são acolhidas e as que operam deverão operar
fora da norma.
Antes e em consonância com Mbembe, Foucalt diz que a oposição entre razão e loucura é
uma das manifestações do princípio da exclusão, evidenciando que “o louco é aquele cujo
discurso não pode circular como o dos outros” (FOUCALT, 1996, p.10) e portanto, é
submetido aos poderes discursivos: seja como ruído (sem valor simbólico), ou como “razão
ingênua” (FOUCALT, 1996, p.11).
E assim sendo, lhes são impostos o tratamento moral, tendo como principal medida o
isolamento. Conforme citado pelo autor:
O caminho teórico percorrido por Paulo Amarante favorece então o entendimento da relação
do início da configuração da Psiquiatria, enquanto disciplina biomédica. Ele caracteriza-a
como inserida no discurso científico que aliena e hierarquiza razão e loucura, sob a pretensa
neutralidade racionalista. Foucault (1996), por sua vez, dirá que o discurso está “longe de ser
esse elemento transparente e/ou neutro”(p.9), e que “Por mais que o discurso seja
aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua
ligação com o desejo e com o poder”(p.10).
O poder, para Foucault (1996), é exercido politicamente pela discursividade biomédica, que
por sua vez é herdeira do racionalismo científico e operará de maneira a exercer controle
sobre as questões da saúde - e, portanto, dos fenômenos elencados como doenças.
Seu conceito basilar de Biopoder, reiterado por Mbembe (2016) como “aquele domínio da
vida sobre o qual o poder tomou o controle” (p.123), nos permite pensar em como “esse
controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população
em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros'' (p.128).
Achille Mbembe dirá que o pensamento de Foucault aponta para a crítica à racionalidade
biologicista, afirmando que parte também dessa discursividade é o princípio que justificará a
separação por raças. De acordo com o camaronês:
Askofaré (2010) tratará de resgatar o conceito de corpo da obra de Jacques Lacan para traçar
um cruzamento com a teoria da linguagem e do laço social e mostrar as relações entre as
discursividades circulantes e os arranjos do corpo social. Evidenciará, inicialmente, a
conceitualização não trivial da tradição psicanalítica que que as noções de corpo e organismo,
como em mútua relação, contudo sem serem coincidentes.
Corrobora com essa ideia a produção de Isildinha Nogueira (1998), que aponta a distinção
entre esquema corporal e imagem do corpo. De acordo com a autora, o primeiro “indica a
condição de representante da espécie do indivíduo”(p.72) enquanto a segunda “é única a cada
um, específica, está ligada ao sujeito, à sua história”(p.71).
Dirá Askofaré (2010), citando Lacan (1970) que o mesmo reconhece que “nenhum avanço
feito por ele sobre a linguagem e seus efeitos poderia ser concebido sem o corpo” (2010,
p.86). Evidenciando que os corpos também são atravessados pela linguagem e por seus atos
que operam no social. Os discursos hegemônicos criam formas, então, de controlar a
circulação e o uso dos corpos, frequentemente pondo-os no lugar de objeto.
Por sua vez, Mbembe (2017) reafirmou que o elemento raça, perpassado por marcadores
corporais, será estruturante - e estrutural - nas sociedades. Sobretudo, salienta o papel do ódio
antinegro na conformação do estigma social em torno dos povos africanos e seus
descendentes, com a finalidade de supressão de sua suposta ameaça.
Diz o autor que “ser reduzido ao estado de sujeito racial é se colocar desde o início na
posição do Outro. O Outro é aquele que deve, a todo momento, provar aos outros que é um
ser humano” (p.133).E falando sobre os medos racistas, diz Mbembe (2017) que
“(...)o medo do negro, esse Outro que é obrigado a viver sua vida sob o signo da
duplicidade, da necessidade e do antagonismo. Essa necessidade é geralmente
concebida na linguagem da natureza e dos processos orgânicos e biológicos. De
fato, o negro respira, bebe, come, dorme e evacua. Seu corpo é um corpo natural,
um corpo de necessidades, um corpo fisiológico. Ele não sofre à maneira de um
corpo humano expressivo"(p.136).
“Está posta, assim, uma dualidade fundamental, no que tange à estrutura psíquica
do negro: uma dupla lacuna se instaura no processo de tornar-se sujeito, em que o
real de sua condição de negro, enquanto tal, não é reconhecido, é negado e se
nega( p.92).
De acordo com a autora supracitada, a imagem do corpo não provém de um “dado anatômico
natural, como pode ser o esquema corporal, ela se constrói na história do sujeito”(1998, p.
74). Aponta Isildinha Nogueira que a história pessoal conflui com a história social, e dirá que
para pensarmos sobre a constituição do corpo negro enquanto tal, é necessária considerar as
dimensões imaginárias e simbólicas herdeiras do sistema sócioeconômico escravista.
Diz Nogueira: “não obstante a abolição, permaneceria por tempo indeterminado o cativeiro
psíquico de uma imagem que, como o crivo da ciência, justificaria uma ‘inumanidade’ do
negro” (1998, 76). A autora mostra como o pensamento naturalista da época pós-abolição é
marcado pela objetificação do corpo negro.
Nas palavras de Schwarcz (2001, apud DAVID & VINCENTIM, 2020) sobre essa produção
que acontecia no seio da Faculdade de Medicina da Bahia, na segunda metade do século XX e
a primeira metade do século XX “Na Bahia, é a raça, ou melhor, o cruzamento racial que
explica a criminalidade, a loucura, a degeneração(p. 267)”.
Essa perspectiva da ciência médica eugênica era utlizada para patologizar negros, afirmar sua
suposta periculosidade e ratificar a branquitude no ideário brasileiro. Aparece enquanto
elemento importante dessa equação a associação entre fenômenos culturais africanos e
afrobrasileiros e diagnósticos psiquiátricos, cuja via terapêutica incluía o asilamento
manicomial.
Assim sendo, não é à toa a classificação dos fenômenos de transe e possessão - também
conhecidos como incorporações - nos manuais diagnósticos de transtornos mentais.
BERNICK et al (2019, p.2) caracterizam o transe e a possessão como "manifestações de
ordem fenomenológica e presentes nas religiões, sobretudo de matriz africana e Kardecista".
Citam os autores que “A psiquiatria desde o século XIX tem desprezado e, mesmo,
considerado patológicas as manifestações religiosas e espirituais(MENEZES-JUNIOR;
MOREIRA-ALMEIDA, 2009, apud BERNICK et al 2019, p.2).
Em pesquisa histórica acerca do olhar dos psiquiatras brasileiros sobre esses fenômenos,
Almeida, Oda e Dalgalarrondo (2007, p.35) dizem que
É importante ressaltar que sua vasta produção se insere no grande debate nacional
ocorrido no período próximo da Abolição, quando o “problema do negro” passa a
ser especificamente uma questão científica, vista pelas lentes da teoria da
degenerescência, do determinismo climático e das crenças na inferioridade inata da
“raça negra” e nos malefícios dos cruzamentos étnicos.
As incorporações
Pode a psicanálise, em sua práxis, nos fornecer elementos para pensar esses fenômenos
através de outra ótica, outra ética? Freud (2010) aponta alguns caminhos quando afirma que
“A psiquiatria contesta, naturalmente, que esses casos envolvam espíritos maus que
se infiltraram na psique, mas limita-se a dizer, dando de ombros: “Degeneração,
disposição hereditária, inferioridade constitucional!A psicanálise procura esclarecer
essas inquietantes doenças; ela empreende pesquisas longas e acuradas, produz
conceitos auxiliares e construções científicas” (p.385).
Ao escrever nesse texto sobre Uma Dificuldade da Psicanálise, Freud aponta as descobertas
feitas pela psicanálise até aquele momento com a terceira ferida narcísica para a humanidade.
A ferida que demonstra que “não somos senhores em nossa própria casa”, e que a soberania
da razão não sobrevive após a produção encabeçada por ele acerca do papel das pulsões
inconscientes na vida dos sujeitos.
Essa postura de Freud fará fissura no discurso científico da época, que apontava para a
dissociação mente-corpo, e para a primazia da racionalidade nos ditames da experiência
humana. De acordo com Aires (2014), está na concepção de Afeto, na obra Freudiana, o
elemento de articulação entre a noção de corpo e inconsciente. Essa compreensão é
inaugurada por Freud através das suas pesquisas clínicas diante da “incompreensão dos
sintomas histéricos por parte da medicina de fins do século XIX” (p.43).
Aires(2014) dirá que a obra de Lacan inclui uma inflexão no pensamento Freudiano, ao
articular a sua concepção de corpo à linguagem. Afirmará que corpo e afeto apresentam uma
implicação mútua e que
O corpo deve ser abordado imaginariamente – função da imagem cativante e do
olhar –, mas também em sua relação ao organismo que, apreendido pelo Outro, ou
seja, apreendido simbolicamente, ganha estatuto humano (2014, p.51).
Em consenso com esse pensamento, Nogueira (2010, Apud Conty 1987) fala que com
objetivo de inumanização do negro estabelece-se “uma associação direta das características
do corpo negro com valores morais e éticos depreciativos”(p.77). E que
“esta visão, subsiste ainda, de alguma forma inscrita num dado universo de
teorizações científicas, que deram e ainda hoje dão suporte às representações que
fazem parte das construções imaginárias socialmente elaboradas sobre o negro (p.
77).
Dessa maneira, são necessárias teorizações que disputem os discursos corrente e façam valer
o lugar de sujeito das coletividades em suas verdade. A produção científica precisa
comprometer-se em elaborar o pensamento que inclua a subjetividade, e a maneira como esta
se constrói, na gênese mesma da sua práxis.
O plano discursivo científico é um campo de disputas narrativas, e o choque de visões
diversas sobre si é assunto para Carvalho e Bairrão (2017), que afirmar sobre as tradições de
matriz africana que:
“as semelhanças entre eu e outro são baseadas em critérios heterogêneos que, em
última instância, afirmariam a autonomia e o fortalecimento do coletivo. Enquanto
que os sistemas simbólicos do europeu seriam derivados de modelos homogêneos,
como as políticas centralizadoras e escravistas, impondo-se uma barreira entre o fora
e o dentro numa lógica de dominação e poder, de manutenção das diferenças” (p.
149).
Os autores defendem a ideia de que essas tradições resguardam a relação com a alteridade de
maneira distinta à dos colonizadores, favorecendo a assimilação do eu em relação ao Outro.
Afirmam eles que “A umbanda parece atuar como um radar social para um sagrado que reúne
vivências singulares, muitas vezes destituídas de lugar na sociedade hegemônica” (p.151). É
necessário, portanto uma abordagem etnopsicológica que atribua de acordo com suas prórpias
insignías, faça valer o discurso dessas coletividades de acordo com a sua própria produção
cultural.
Dias e Bairrão (2013, p. 223) afirmam “o corpo e suas propriedades sensoriais e perceptivas
como um verdadeiro lócus de saber capaz de armazenar e refletir memórias coletivas
cognoscentes” nas tradições afrobrasileiras.
CONSIDERAÇÕES
O que se considera aqui é o registro narrativo que perpassa a forma que o racismo científico
apodera-se do discurso psiquiátrico para interditar o trânsito de pessoas negras. Utiliza da
pretensão de neutralidade para estabelecer parâmetros de saberes hierarquizados para a
produção da exclusão.
Neste sentido, o campo das discursividades aparece como espaço de embate, em que visões de
mundo se chocam para o estabelecimento de formas de ver, tratar, ser e estar. Foi possível
compreender como os corpos dos sujeitos se constituem em relação com a linguagem e a
política.
Pretendeu-se argumentar como a construção dos corpos negros são ligados aos discursos
circulantes, e como operam para a sua objetificação. Elencou-se os fenômenos de
incorporação, e sua captura pela psicopatologia como mais um elemento do ideário racista
brasileiro.
Buscou-se compreender como esse fenômeno demanda ser tratado em termos epistemológico
não etnocêntricos, e que a verdade dos sujeitos envolvidos possa emergir, a partir do
momento em que são considerados discursivamente como sujeitos.
BERNICK, RM; SOARES, MDS; SAMRSLA, CDA; SIMON, ARL. Transtorno de transe
e possessão na psicopatologia. XXVII Seminário de Iniciação Científica. UNIJUÍ, Rio
Grande do Sul, 2019.
DAVID, Emiliano de Camargo e VICENTIM, Maria Cristina Gonçalves. Nem crioulo doido
nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Saúde
em Debate [online]. v. 44, spe 3 [Acessado 17 Dezembro 2022] , pp. 264-277. Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/0103-11042020E322>. ISSN 2358-2898.
FREUD, Sigmund. Obras Completas Vol.14. História de uma Neurose Infantil, O homem
dos lobos e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, nova ed. revista, 2010.
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Trad. de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017,
250p.