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SABERES
Resumo
O presente artigo é uma leitura sobre a escola pública e as relações de poder que são
estabelecidas no seu interior. Trata-se de um exercício reflexivo advindo de discussões
empreendidas em um grupo de estudo e de vivência educativa desde essa escola, cujo
ambiente é caracterizado por um encadeamento de forças que, inseridas no contexto em que
se apresenta, favorece a hierarquização e sujeição nas relações desta instituição, disciplinar
em sua essência. Assim, aborda relações de poder que são estabelecidas no interior da escola
enquanto organização social, entendendo que os saberes ali ensinados são ainda sumamente
vinculados a uma compreensão tradicional de exercício de poder disciplinar. Toma como
referência autores como Weber (1971, 2002, 2004), Bourdieu (1982), Foucault (1979, 1990,
1995, 2001), Julia (2001), Frago (1995), Geertz (1989), Moreira e Candau (2003), Prata
(2005), entre outros, na perspectiva de depreender as características deste universo escolar
contemporâneo, penetrado por relações tensas, conflituosas, contraditórias, desiguais, e
intencionar, com este entendimento, encontrar novos e diferentes meios de inculcar os saberes
ali sistematizados, criar novas práticas condizentes aos novos tempos e apresentar outros
elementos à cultura escolar. Indica ser necessário considerar os saberes que os alunos já
possuem, em relação a uma compreensão necessária de multicultura com o fito de significar
estes saberes, visando dar novo significado, não somente às relações de poder que ali se
estabelecem, mas também a outros saberes e, consequentemente, à própria cultura escolar.
Trata-se de pensar a escola e a sua cultura em relação ao seu tempo, à contemporaneidade.
Introdução
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Desta forma, o presente estudo objetiva fazer uma análise sobre a instituição escolar,
entendendo-a como uma organização marcada pela configuração social, que tem o papel
precípuo de contribuir para formar sujeitos.
Para que possamos melhor compreender as relações de poder que ali se estabelecem, é
inevitável que nossos estudos busquem tal compreensão em autores que analisam o
funcionamento do poder (FOUCAULT, 1979, 1990, 1995, 2001; BOURDIEU, 1982;
WEBER, 1971, 2002, 2004), para subsidiar uma leitura no interior da escola. Entendemos que
para a compreensão do que consistem as relações de poder, se faz necessário analisar as
formas de resistência e os esforços desenvolvidos que tentam dissociar essas relações. Nesse
aspecto, são de relevância obras que tratam, além da cultura escolar, também da indisciplina
que ali se manifesta como insubmissão e de estudos sobre subjetividade, pois acreditamos que
o sujeito é fruto de seu tempo histórico, das relações sociais em que está inserido, mas é,
também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo como o compreende e como
dele lhe é possível participar.
Relações de Poder
Enquanto organização e instituição social, a escola tem uma função que a distingue
das outras e é parte fundamental na formação das sociedades humanas. A distinção está na
sistematização, no processo formativo que visa inculcar valores, ensinamentos e normas da
sociedade, fazendo a mediação entre os conteúdos historicamente produzidos pela
humanidade e o aluno, procurando formas para que esses conhecimentos sejam apropriados
pelos indivíduos, contribuindo para a formação de novas gerações de seres humanos.
(SAVIANI, 2003).
Tais conhecimentos são selecionados para serem transmitidos e reelaborados
didaticamente para serem apresentados e ensinados (CHEVALLARD, 1991; GABRIEL1,
2000a, 200b, 2002, 2004a, 2004b, 2005, 2006; MONTEIRO, 2001, 2003; LOPES, 2007), o
que nos faz entender que se caracterizam “pela disputa/tensão entre interesses diversos; pela
intenção de 'territorialização' do conhecimento, num movimento de legitimação de grupos,
idéias, sujeitos” (PUGAS e RAMOS, 2008), o que expõe a relação de poder que se manifesta
na organização escolar.
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A referida autora apresenta-se também com o nome de GABRIEL ANHORN.
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"Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem à expiação, nem mesmo exatamente à
repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os
comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de
diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função
dessa regra de conjunto - que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o
ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as
capacidades, o nível, a 'natureza' dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida 'valorizadora', a coação
de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a
fronteira externa do anormal. A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes
das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeneiza, exclui. Em uma palavra,
normaliza" (FOUCAULT, 2001, p.163)
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"O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito
e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes
funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação
genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular,
orgânica, genética e combinatória" (Idem, p.171).
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segunda “age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói;
ela fecha todas as possibilidades” (FOUCAULT, 1995, p. 243), enquanto que
Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são
indispensáveis (...): que o ‘outro’ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja
inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra,
diante da relação de poder, todo o campo de respostas, reações, efeitos, intervenções
possíveis. (FOUCAULT, 1995, p. 243).
Poder e Saberes
razão da escola? Eles se apresentam de um ponto de vista negativo. São efeitos de outros
saberes que encontram ressonância nos alunos, com os quais, em grande medida, parecem
identificar-se mais. Eis uma questão que merece ser investigada com vagar.
Em contrapartida poderíamos falar em necessidade de revisão de formas de exercício
de poder pela escola, pelos professores, a fim de poderem lidar com aqueles saberes de modo
a poder entendê-los para interpretá-los em relação às suas causas e consequente significado
para os alunos. Este é um aspecto. Outro estaria nos modos de lidar com saberes
tradicionalmente veiculados pela escola por meio das diferentes disciplinas. Seria importante
que professores, enfim, educadores, discutissem modos de responsabilizar os alunos no
processo de apreensão de saberes ante o desafio de significá-los desde o que eles já sabem.
Provavelmente, neste aspecto, precisemos recuperar a compreensão de que as relações que os
alunos e professores travam entre si são sumamente mediadas por saberes, conhecimentos.
Estes põem os sujeitos em permanente interação entre eles e estes com os saberes. Por ser ele
prático, social, deve assim ser traduzido para os alunos. Especificamente esta idéia, trazemos
de Lefebvre (1995), para quem o conhecimento humano é social, prático e histórico. Nessa
perspectiva o poder tende a ser ressignificado entre alunos e professores, na medida em que os
saberes podem adquirir outros sentidos, entre eles, os de suas relações com a vida dos
sujeitos, em particular dos alunos.
Tomamos de Lefebvre (1995) o caráter histórico do conhecimento para refletirmos
sobre as devidas possibilidades de tratamento que ele requer. Consideramos então, que a
historicidade não está apenas na validade e/ou temporalidade do conhecimento, mas também
nos modos pelos quais os processos interativos são desenvolvidos nas relações que
estabelecemos enquanto sujeitos que conhecem, com os mesmos. Se, nos processos
conservadores de relação com o conhecimento cabia a memorização exclusivamente, as lições
mecânicas a serem transcritas do quadro, as respostas a perguntas simples demais contidas
nos livros, nos processos interativos, contemporâneos, elas não cabem mais. Os efeitos
positivos dos saberes vêm dos desafios com significado postos para os alunos. Aqui cabe o
desafio do exercício da relação, da comparação, da interpretação e por que não da descrição?
Nos meandros dessas relações cujos saberes que ali circulam seguem trajetórias sinuosas e
por vezes até desorganizadas, num processo de disputa de diversas dimensões, importa pensar
em seus efeitos que são sobremaneira decorrentes dos significados para os alunos dos saberes
a serem aprendidos.
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Com efeito, não é possível descurar que, marcado por um amplo e complexo conjunto
de prescrições e, por assim dizer de exigências de realizações, o currículo com o caráter de
processo e dinamismo voltado para âmbitos de diversos campos de saberes, apresenta
objetivamente implicações as mais variadas: a impossibilidade de a escola atender a essas
muitas frentes. Ela termina por não dar conta, por exemplo, do caráter multicultural de nossa
sociedade contemporânea. E talvez seja esse um de seus maiores limites.
Assim, torna-se imperioso tomar a cultura em suas múltiplas facetas para torná-la um
eixo central do processo da dinâmica curricular e assim poder conferir uma orientação
multicultural às práticas educativas que se desenvolvem na escola. Existe neste aspecto
possibilidades de sintonia com as dificuldades de relacionamento explícitas no cotidiano
escolar. Mas há uma exigência: a de significar o significado de multicultura. Certamente a
compreensão multicultural possa auxiliar sobre as incertezas e indagações dos profissionais
que labutam no interior da escola, tais como: como lidar com essa pessoa tão estranha, que
apresenta tantos problemas, que tem hábitos e costumes tão diferente? Como adaptá-la às
normas, condutas e valores vigentes? Como ensinar-lhe os conteúdos que se encontram nos
livros didáticos? Como prepará-la para os estudos posteriores? Como integrar a sua
experiência de vida de modo coerente com a função específica da escola? São
questionamentos que refletem visões de cultura, escola, ensino e aprendizagem e dificuldades
existentes num ambiente invadido por diferentes grupos sócio/culturais, por vezes ausentes
desse espaço. (MOREIRA e CANDAU, 2003).
Geertz (1989) nos lega um conceito de cultura que se torna fundamental para uma
leitura sobre diversidade cultural ou multiculturalismo, se assim quisermos entender,
justamente porque o traduz como uma teia de significados no qual o homem acha-se envolto.
A idéia de significados é própria a diferentes grupos sociais pela natureza subjetiva que
comporta a diferentes práticas, representações, modos simbólicos sob ou a partir dos quais
diferentes grupos sociais e/ou sujeitos estabelecem convívios sociais. No processo de
convivência direta ou indireta os significados dimensionam sentidos explicativos às suas
existências. Assim, os significados também são múltiplos, daí o sentido de teia. Um
emaranhado de realizações que, por se situarem fundamentalmente a partir de um nível
subjetivo ultrapassam a própria aparência simbólica das práticas, manifestações exteriores de
uma interioridade que precisa ser dada a conhecer a outrem.
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Considerando com Julia (2001) que existem normas a ensinar e condutas a inculcar,
havemos que encontrar novos e diferentes meios de inculcação de saberes, para que
precisemos, talvez, elaborar, criar novas práticas próprias deste tempo e trazermos assim,
outros elementos à cultura escolar, próprios desta contemporaneidade.
Desta forma, a escola, organização que traz historicamente em seu bojo um conjunto
de valores identitários representativos também da relação de forças, de relações de poder, de
relações subjetivas, enfim, requer uma nova forma de pensar-se enquanto instituição social.
Por isso, ainda considerando o entendimento de Julia (2001), que se faz necessário olharmos
as relações internas da escola para que possamos captar as tensões, os conflitos, as
resistências e os apoios. Captando as resistências e os esforços desenvolvidos que tentam
dissociar essas relações estaremos, conforme nos diz Foucault (1995), compreendendo em
que consistem as relações de poder.
Considerações Finais
convívio, da mídia, da produção – para aqueles que desde cedo precisam inserir-se no mundo
do trabalho, enfim. Essas possibilidades sócio-culturais trazem para os alunos uma gama de
experiências, as quais não podem ser descuradas no interior da escola pelos
educadores/professores. Razão pela qual as tradicionais formas de relações de poder devem
ser revistas. Neste caso não se trata de retirar o poder dos educadores, mas reconhecer que o
poder nas relações educativas democráticas adquire significado diferente daquele concentrado
em poucos indivíduos.
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