Você está na página 1de 2

O caso de Rui - excerto

Silvia M. Gasparian Colello Faculdade de Educação da USP


Trabalho apresentado no VI Congresso Estadual Paulista Sobre Formação de Educadores – “Formação de
Educadores: Desafios e Perspectivas para o Século XXI” (Águas de Lindóia, São Paulo, 18 – 22/11/2001)

Esta é a história de Rui, aluno de uma escola particular em São Paulo.


Até os seis anos, ele se desenvolvia normalmente, aprendia com facilidade e tinha bom
relacionamento com os colegas e professores de sua escola.
O drama da sua inadaptação começa quando a família do garoto mudou-se para a Itália. Em 3
anos de vida no exterior, Rui passou por 3 escolas em diferentes regiões do país. A previsível
dificuldade linguística, aprender o italiano e alfabetizar-se nessa língua, foi mais facilmente
resolvida do que a adaptação às exigências institucionais que, pelo viés cultural, eram
incompreensíveis ao menino: severo controle comportamental, sistema de punição escolar e
pouca tolerância ao erro.
Rui estranhava, por exemplo, a exigência de andar na escola em fila, com as mãos para trás, a
proibição de tirar os sapatos para brincar e não suportava a ideia de usar como uniforme “um
aventalzinho” que, a seus olhos, mais parecia “coisa de mulher”.
Sentiu particular dificuldade na alfabetização feita com caneta tinteiro, o que tornava mais difícil a
correção. Ainda hoje o menino lembra-se com revolta das vezes em que foi obrigado a almoçar
em pé ou a ficar sem almoço como formas de punição pela “agitação” no refeitório. Conta com
detalhes o dia em que apanhou da freira diretora da escola, que, ao castigá-lo, fez questão de
afirmar que fazia isso “pelo seu próprio bem”.
Nessa época, surgiram as primeiras queixas de “rebeldia” apesar do ‘ainda’ bom desempenho
escolar.
Finalmente, ao retornar ao Brasil com 9 anos de idade, foi imediatamente considerado “em
defasagem” pela escola, a mesma onde havia estudado até os 6 anos, tendo sua matrícula sido
condicionada ao encaminhamento psicopedagógico. E, mesmo sendo rapidamente ‘re-
alfabetizado’, agora em Língua Portuguesa, ficou em recuperação logo no primeiro trimestre letivo.
Aos problemas de comportamento já registrados na escola italiana, acrescentaram-se as queixas
quanto à aprendizagem. Com visível dificuldade para conciliar as lições, as tarefas propostas pela
terapeuta e os exercícios de recuperação, Rui sintetizava sua angústia com uma só frase: “Será
que eu nunca mais vou poder brincar?” Foi assim que ele “se arrastou” ao longo da 3a e 4a séries
do Ensino Fundamental.
Hoje, com 11 anos, na 5a série, Rui está na iminência de perder o ano. Na mochila, há um
amontoado de cadernos rabiscados, sem registro de aulas ou trabalhos. Seus professores o
descrevem como um garoto “incapaz de aprender”, “bagunceiro”, “dispersivo”, “desorganizado”,
“sem vontade nem interesse”: “um aluno que não faz nada!”. Seus pais queixam-se da “má
vontade do menino com a escola” e da “má vontade da escola com o menino”.
Tomando como base o “Inventário Psicoeducacional de Capacidades Básicas” (Drouet, 1990), Rui
foi, aos 9 anos de idade, classificado como uma “Síndrome de Deficiência de Aprendizagem”,
tendo em vista o “comprometimento de habilidades perceptomotoras”, a “frágil capacidade de
atenção e concentração” e a “imaturidade no desempenho social”. Mais especificamente,
registraram-se dificuldades nas formas de intercâmbio social, na associação audioverbal, na
memória visual e auditiva, sobretudo e, curiosamente, quando associadas ao contexto clínico e
escolar.
O caso de Rui configura-se como um típico exemplo de uma dificuldade: adaptação escolar em
um diferente contexto cultural, que passou a ser um problema, ciclo vicioso de comportamento e
postura prejudiciais à vida escolar. Considerando seus antecedentes, dificilmente poderia
suspeitar de um déficit intelectual, cognitivo, motor, físico ou perceptivo. Não se trata de um
comprometimento das competências básicas para ouvir, ver, lembrar e responder, mas da
motivação para isso, razão pela qual o problema limita-se ao âmbito escolar. Na intrincada relação
entre o “poder fazer” (dimensão psicomotora), “saber fazer” (dimensão cognitiva) e “querer fazer”
(dimensão afetiva), o terceiro requisito parece ser o responsável por tanto transtorno: a origem
das dificuldades de Rui está claramente na relação negativa do menino com a escola.
Em consequência às situações vividas, Rui se rebela e restringe seu impulso cognitivo,
pretendendo negar o contexto escolar, para ele traumático e indesejável. A escamoteação de
parte da realidade, iniciada pela transgressão de regras (esfera comportamental) e,
posteriormente, estendida para as esferas cognitiva e social, representam cumulativas
modalidades de rejeição à escola, um processo ativo de autodefesa. Na prática, isso aparece na
figura de um aluno que esquece a lição, boicota a aula pela indisciplina, desafia regras, não
aprende e deixa de ter vínculos afetivos com colegas e professores.
A despeito da adversidade do quadro, é possível uma leitura positiva da situação: quando não
enfocada pela “ótica dos elementos faltantes”, o quadro de desajustamento pode ser visto como
uma reação à situação vivida, na denominação de Luzuriaga, “inteligência contra si mesmo”. A
despeito do baixo rendimento escolar (indubitavelmente prejudicial), a atitude do menino é, no
contexto de seus referenciais escolares (cicatrizes de fracasso, incompreensão e dor), uma sábia
alternativa de autopreservação. Na reversão do quadro de descompensação, a inteligência do
garoto, sua capacidade de reagir e o ímpeto de autodefesa seriam importantes trunfos e decisivos
aliados.
No caso de Rui, a conjuntura do fracasso escolar explica-se a partir de, pelo menos, quatro
dimensões indissociáveis, um quadro amplo, cuja estrutura e complexidade é inacessível à maior
parte dos professores. A busca de qualidade no ensino pelo enfrentamento dos problemas da
escola implica uma mudança de concepções e posturas: um desafio que não pode ser
desconsiderado pelos programas de formação docente.
A dimensão cognitiva
A dimensão psicopedagógica
A dimensão institucional: o projeto político-pedagógico
A dimensão sociocultural

Você também pode gostar