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PALAVRAS
QUE HÃO
DE VIR
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Para satisfação dos muitos milhões que a falam projeção de futuros através daqueles que se cons-
nas mais diversas geografias do planeta, a Língua tituem como uns dos seus principais (es)cultores.
Portuguesa passou, desde 2020, a celebrar o seu Uma palavra, desde já, aos escritores que
Dia Mundial no dia 5 de maio, integrando um res- aceitaram o desafio do Camões, I. P., para partici-
trito grupo de outras seis línguas com idêntico re- parem nesta primeira edição da publicação alusiva
conhecimento conferido pelo sistema das Nações ao 5 de maio, aos quais dirigimos um agradecimen-
Unidas, através da UNESCO. to especial.
Este reconhecimento advém da importância Trabalhando-a como um artífice em busca
que assumiram os universos por via dela criados permanente da obra perfeita, os escritores, todos
por todos aqueles que a foram edificando e disse- os escritores de língua portuguesa, reconstroem-na
minando em tantos domínios da atividade humana. permanentemente, alargando-a e povoando-a de
Acima de tudo, porém, daquele que resulta da novos conceitos e matizes de novas realidades e
reconhecida importância e valor que a língua por- imagens. São (es)cultores da língua portuguesa,
tuguesa já detém e daquele que crescentemente numa dimensão própria e complementar a idên-
assumirá em dinâmicas internacionais, em esferas tico trabalho de criação com o qual os seus fa-
diversas que passam pela comunicação, pela circu- lantes, nos mais diversos contextos e nas mais
lação de conhecimento, pela promoção do desen- diversas áreas em que a ela fazem apelo, ajustam
volvimento ou pela produção cultural. a língua portuguesa às exigências do presente, às
Entre as várias iniciativas que o Camões, I. P., necessidades do futuro. Porque a língua portu-
concebeu para assinalar essa data, foi decidida a guesa é, estamos certos disso, uma língua de fu-
criação de uma publicação que reunisse um con- turo em múltiplos continentes e, por isso, uma
junto de textos em que escritores dos países de língua do mundo para o mundo, feita de todas as
língua portuguesa de diferentes gerações partilhas- palavras que hão de vir.
sem um registo de vivências pessoais em torno
desta língua em que escrevem.
Celebra-se, desse modo, essa dimensão da João Ribeiro de Almeida
língua portuguesa como espaço de encontros e de Presidente do Camões, I. P.
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Pepetela
Índice O tempo e a língua
p. 5
ANGOLA
Milton Hatoum
Amor e mistério Luaia Gomes Pereira
na língua materna As palavras que ficam
p. 11
p. 8
BRASIL
Socorro Acioli
O sabe-muito
p. 14
Germano Almeida
A língua portuguesa
p. 17
CABO VERDE
Odete Costa Semedo
Eu e a língua portuguesa num
tempo líquido e instável
p. 23
GUINÉ-BISSAU
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Mia Couto
A herança e a conquista
p. 28
Conceição Lima
Nos rios do mar da língua
p. 40
Orlando Piedade
Um privilégio percecionado
no futuro
Vicente Paulino p. 43
Uma experiência de
conhecer escritores e poetas
portugueses de renome
p. 45
TIMOR
Jonato Xavier
Horizontes de comunicação
p. 50
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Momento Zen . António Ole
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O tempo e a língua . Pepetela
mais antigos que supomos conhecer foram os por- de África. Um grupo se fixava num local propício e
tadores de uma mandíbula encontrada aqui, ou um algumas gerações depois, destacava-se uma corte
osso qualquer acolá, ou noutro ponto mais longe um que continuava a progressão, primeiro para leste,
quarto de crânio vazio. A partir desses fragmentos contornando a parte de cima da floresta equato-
intuímos corpos parecidos com os nossos, atuais, rial congolesa. Isto até atingirem a região dos Gran-
numa extraordinária ginástica intelectual. A esses des Lagos, onde fletiram decididamente para sul.
humanos ou humanóides temos dado nomes pom- Alguns desceram diretamente dos Camarões, en-
posos e diferentes. Até tentámos colocá-los numa frentando a densa e pavorosa floresta, a qual é,
linha cronológica, desde australopitecos até sapiens ao mesmo tempo, um generoso refúgio. Quantos
sapiens, e isto só para simplificar. Foram encontra- séculos demorou este movimento que na realida-
dos resquícios por toda uma vasta área, assim como de ainda comanda as migrações atuais? Dezenas
utensílios de pedra em grandes quantidades, com ou mesmo centenas de séculos? Não tenho infe-
idade habitualmente impossível de datar. lizmente a resposta, está enterrada por camadas
Foi o tempo antes de encontrarmos os huma- indecifráveis de dramas e sonhos coletivos, alguns
nos os quais alguns eruditos europeus chamaram cristalizados em mitos. Deu porém tempo para as
os «homens do mato» (bushmen, bochimanes, bos- línguas se irem diferenciando a ponto de ficarem
químanos ou nomes parecidos, conforme os idio- incompreensíveis de grupo para grupo, na maior
mas dos eruditos), recoletores-caçadores, já domi- parte dos casos. Embora a música das palavras seja
nando a arte do fogo, eternos nómadas seguindo as muito semelhante no ritmo e em certos radicais.
manadas de animais de que se alimentam, além do Por eles se reconhece a origem comum.
mel, dos frutos e de certas raízes, conhecedores Há portanto muitas línguas no meu país que
profundos da Natureza, de cuja ciência se serviam o tempo foi moldando.
para viver e alargar as famílias e as linhagens. Des- A dado momento desta progressão, apare-
tes humanos temos ainda hoje alguns grupos no ceram umas caravelas no mar do Kongo, as quais
sul, infelizmente cada vez menos numerosos, cei- vieram mudar o decurso dos acontecimentos de
fados por guerras que nem compreendem, servin- forma dramática. Nas caravelas vinham pessoas de
do de pisteiros aos exércitos e por isso morrendo tez pálida e falando um linguajar ininteligível. Não
primeiro, dizimados por pragas ou estiagens regu- só esse som de palavras era estranho, como estra-
lares, também sofrendo pelo descaso e a exclusão nhas eram as roupas, e sobretudo os costumes. No
dos sucessivos poderes dominantes. Um aspeto entanto, acabou por acontecer o relacionamento
característico e que se estende por vários países e comércio de ideias e interesses.
é o seu idioma, melhor, o seu conjunto de idiomas, Em breve seria o tempo colonial.
em que a maior parte das consoantes são estalidos E a penosa aprendizagem, entre muitas coi-
feitos pela língua no céu da boca. Daí lhes cha- sas e trabalhos, da língua portuguesa. Muito relativa
marem «língua de cliques», como se fosse só uma. aprendizagem no princípio, reservada a elites, mas
A si próprios atribuem outros nomes, diferentes depois se expandindo pelas diferentes populações
dos inventados pelos eruditos de fora, mas o mais que nos séculos seguintes foram associadas ou
referido se pode grafar «!Kung». submetidas aos interesses do poder tornado pouco
A estes humanos profundamente pacíficos e a pouco dominante. Não vou falar dos conflitos ine-
respeitando a Natureza e seus deuses se juntaram rentes à coabitação nem sempre bem gerida.
milhares de anos depois os povos falando línguas A língua portuguesa foi convivendo neste am-
do grupo denominado banto, todas aparentemente biente e se enriquecendo com palavras e expres-
ligadas a locais dos Camarões, de onde se supõe sões dos diferenciados idiomas locais, pois é dúctil
terem imigrado para oriente e sul, povoando no de- e permeável a variações, apesar de ter uma estru-
correr das gerações toda a zona central e meridional tura sólida. Acabou por ser utilizada pelos ango-
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O tempo e a língua . Pepetela
lanos, não só nas relações de trabalho ou de co- Por isso somos países de língua oficial por-
mércio, mas também na informação, na literatura e tuguesa, com muito orgulho, uma língua que aju-
nas canções, nestas se tendo refugiado melhor as damos também a enriquecer com nossas inflexões
línguas de raiz banta. Até hoje. e palavras próprias, que acariciamos com nossos
O processo aqui evocado foi semelhante, nos ritmos e sotaques, fazendo-a também nossa. Mas
seus traços gerais, em todos os territórios que a não esquecemos, somos países de muitas línguas,
monarquia portuguesa dominou durante séculos. todas devendo receber respeito e trabalho árduo
E a língua foi apanhando pedacinhos saborosos de para as preservar e promover, sem exclusões nem
uma ou outra alheia, integrando-os e levando para preconceitos.
distantes lugares, de maneira que o falar do Brasil, Será assim a justiça do Tempo.
por exemplo, incorpora o de Portugal, mas também
termos e sons dos outros falares, de outros con- Luanda, março de 2021
tinentes. Cada um à sua maneira, todos usamos
palavras vindas dos quatro cantos do Mundo, num
todo harmonioso, regido pela estrutura comum.
Chegou um novo tempo, o da luta pela inde-
pendência dos territórios. Era mais ainda a hora da
unidade. E foi preciso usar uma língua neutra de
sentimentos regionais em países com muitas lín-
guas e culturas diferentes, um idioma que pudesse
ser entendido de um canto ao outro, mesmo se por
vezes fosse preciso continuar o trabalho de o espa-
lhar e ensinar a ser lido e escrito.
Num tempo depois foi preciso pensar em sis-
temas de ensino próprios que ajudassem a fundir
os povos, criadores de futuros países, despertas-
sem a autoestima e os preparassem para os desa-
fios do futuro. Se foi natural escolher o português
como fator e expressão da unidade, também o foi
por exemplo na feitura de novos manuais escolares,
que ajudassem crianças e adultos a se munirem de
instrumentos essenciais para os tempos novos.
Se nas escolas coloniais se aprendia, por
exemplo, que o ponto mais alto de Portugal (visto
no seu conjunto de Metrópole e todos os territórios
que dominava) era a Serra da Estrela, os nossos
ensinavam que o ponto mais alto de Angola era o
Morro do Moco, no Huambo. Ensinavam usando a
língua portuguesa. Se os livros de História na escola
colonial diziam que Portugal civilizou os povos das
províncias ultramarinas, os nossos contavam da re-
sistência tenaz à colonização e cantavam os he-
róis da resistência ao domínio. Com a mesma língua
portuguesa. A qual, depois das independências, se
tornou na língua oficial em países de muitas falas.
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As palavras
que ficam
Luaia Gomes Pereira
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As palavras que ficam . Luaia Gomes Pereira
não precisam ser sempre vistas? — A mãe fingia diam viajar verdes com o vizinho Bragança para a
entendimento e despedia-lhe com as costas. Avó fazer angú e comer na varanda do apartamento
Graça começava a trançar e até perceber a da Estrela com a prima, para lhe dar o gosto da ter-
perfeição do ato, a Avó mantinha-se calada e sem ra mesmo sem poder tocar na areia. Era assim em
querer escapava um sorriso sem dentes. Às vezes, todas as cartas, o beijo numa prosa que podia durar
a Avó dizia coisas que precisavam de dias para elas para sempre.
próprias se entenderem e, em segredo, parecia que Graça começava a segunda trança enquanto
fazia de propósito. Nesses momentos, o rádio an- a Avó abria o terceiro rebuçado e era sempre ao
dava sempre desligado. Trançar o pouco cabelo da terceiro que a Avó percebia se havia mágoa à volta
Avó era uma solenidade que só a Gracinha podia da neta.
assistir porque às vezes o cabelo trançava-se a si Naquele dia, a avó contou-lhe de uma terra
próprio e assim ela sentia que as palavras da Avó longe, que muitas vezes fazia lagrimar as pessoas
saíam-lhe ainda mais bonitas. Era daquele jeito que que não tinham cabeças.
a Avó gostava de despedir bem o dia. — E como é que fazia lagrimar se as pessoas
— Gracinha, de onde venho, os dias pareciam não tinham cabeças?
não ter curva e o ar abafava tanto que às vezes até — As pessoas não tinham cabeças mas tinham
mordia. Por isso era preciso despedir o dia com al- vida. E enquanto há vida, há esperança.
guma alegria. Foi num repente que Graça viu-lhe a desa-
— E quando o dia não terminava, vovó? parecer entre as suas mãos e nem um pedaço de
— Fechávamos os olhos e despedíamos à cabelo ficou para se segurar. Nos dias seguintes
mesma. — Respondia a Avó, meio entristecida. restou-lhe a memória da palavra contada.
Falar daquele lugar parecia que lhe abriam fe- A Avó exalava presença antiga com sorriso re-
ridas no couro cabeludo, então deixava-as quietas cente e transparecia a idade com movimentos es-
com elas mesmas. Graça também não insistia por- pontâneos. Ela tinha a noção de que tinha chegado
que depois não queria ter o trabalho de as limpar. a uma fase estacionária mas emprestava vaidade
Guardava só as frases para ela e voltava então para aos arredores que se encostavam e transformava
escutar tudo o resto que podia. À noite tirava-as do as rugas num bonito cartão-postal. Respeitava as
bolso e tentava juntá-las uma ao lado da outra para rotinas e desobedecia-as às escondidas. Reconhe-
ver se faziam algum sentido. cia o cansaço de forma solene, quase em tom de
Enquanto Graça trançava-lhe o cabelo, a Avó cerimónia e todos os dias esperava ansiosa pela
esfregava os olhos, tirava doces embrulhados em vinda do recomeço. Quando o recomeço se atra-
papel de celofane da gaveta e com olhar de viagem sasse, a Avó esperava-o entre a janela e a porta,
pensava sempre em abrir outro antes mesmo de muitas vezes a tentar forçar um sorriso e sem sa-
engolir o primeiro. Quando lhe tremiam as mãos, ber bem o porquê.
pedia ajuda para abrir um dos seus mil cofres e co- A ausência da avó consumia-lhe as vontades
meçava-lhe então a contar as aventuras por ordem mas para ajudar a passar o tempo e as dores, Graça
de descoberta. Muitas vezes lia as cartas que a mãe pegava em todas as frases que a avó lhe oferecia
lhe escrevia uma vez por mês, com arrependimen- enquanto lhe trançava o cabelo e tentava juntá-las
to que a filha tivesse então crescido. «As mães», para lhe fazer algum sentido. Na pequena maleta
dizia ela, «nunca querem que o tempo passe». Pe- onde Graça guardava as palavras, tinha também al-
las cartas, Gracinha tentava desenhar o olhar da gumas melodias que a avó lhe sussurrava ao ouvi-
bisa mas a Avó não lhe encorajava o ato. No entan- do, ao entardecer do dia, segurando-lhe no colo e
to, reconhecia-lhe mais evasiva que a Avó. Esta lia balançando para trás e para frente.
as cartas como se declamasse um poema mesmo Quando Graça não conseguia formar uma pa-
quando anunciava as bananas do quintal, que po- lavra ou outra, levantava-se da cadeira e dava uma
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As palavras que ficam . Luaia Gomes Pereira
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Elisa von Randow
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Amor e mistério na língua materna . Milton Hatoum
em Manaus me deu um vocabulário e um sotaque A obra ficcional de João Guimarães Rosa apro-
específicos. Mas, aos 15 anos de idade, quando fui fundou essa ruptura. Diante dela, o leitor logo per-
morar e estudar em Brasília, convivi com brasileiros cebe um estranhamento, que resulta de um estilo
de todas as regiões do país. Eram jovens que fala- incomparável, marcadamente inovador. O ponto de
vam com acentos e entoações de suas respectivas partida é a fala do sertanejo do centro-norte de
cidades de origem. Não estava acostumado com Minas Gerais: uma fala transformada, altamente es-
esse carnaval de sotaques, nem com o emprego do tilizada pelo escritor, cuja imaginação, sem amar-
pronome você. Na Amazônia, e em algumas cidades ras racionalistas, é enriquecida pela vasta erudição
das regiões Sul e Nordeste, o uso do pronome na do autor mineiro, que glosa cronistas e poetas me-
segunda pessoa do singular (com a correta concor- dievais portugueses, os Sermões do Padre Antônio
dância verbal) ainda é comum. Vieira, romances brasileiros dos séculos xix e xx, e
A riqueza de uma língua reside justamente vários clássicos do Ocidente e do Oriente.
em sua diversidade oral e escrita, tão viva na Um dos textos rosianos mais complexos é o
literatura lusófona. É na obra de cada autor ou conto Meu tio o Iauaretê. No limite, é intraduzível.
autora que a grandiosidade e a complexidade da Os leitores lusófonos, incluindo os brasileiros, de-
língua são reveladas. Afora a experiência particu- vem procurar o significado de vários nomes e ex-
lar, de vida e leitura, a linguagem é enriquecida pressões da língua indígena tupi. Nesse conto, a
pelo contexto — social, histórico, político e geo- força e o esforço de estilo não são um mero arti-
gráfico —, que nem sempre se limita a um país fício linguístico, mas sim «uma profunda reflexão
ou lugar de origem, mas com o qual os escrito- sobre natureza e cultura».1
res mantêm uma relação íntima, afetiva. São as Meu tio o Iauaretê é narrado por um caçador
vozes e as palavras dos outros — da África, de de onças, filho de uma mulher indígena com um
Portugal, do Brasil, do Timor-Leste — que, em homem branco. Mas ele se identifica com a etnia de
sua particularidade, nos emocionam e nos con- sua mãe, cujo totem é a onça. O «Meu tio» do título
vidam a imaginar e vivenciar situações, conflitos alude às relações de parentesco materno (o tio que
e dramas humanos, ampliando e aprofundando é pai); Iauaretê significa «onça verdadeira» em tupi.2
nosso conhecimento, nosso mapa mental, nossa Esse mestiço narra passagens de sua vida a
sensibilidade. um homem branco, que lhe oferece uma «cacha-
Para dar uns poucos exemplos da literatura cinha gostosa». Aos poucos, o onceiro embriaga-se
brasileira, convém lembrar que Machado de Assis e revela ao interlocutor, sempre calado, os crimes
já não escrevia como Eça de Queirós. Ainda que o que cometeu, arrepende-se de ter matado mui-
estilo machadiano seja de corte clássico, o Bruxo tas onças e conta uma inusitada história de amor.
do Cosme Velho recorre a expressões usadas por Inusitada porque o narrador apaixona-se pela onça
pessoas humildes, ex-escravizados que moravam Maria-Maria, nome cristão duplicado.
nos morros e cortiços cariocas, ou escravizados Vale a pena mencionar um trecho do preâm-
que penavam na «casa grande». bulo dessa relação amorosa:
Entre tantas outras coisas, o movimento
Modernista brasileiro rompeu com normas grama- Hum, hum. Nhor sim. Elas sabem que eu sou
ticais rígidas, e trouxe à literatura a fala popular. do povo delas. Primeira que eu vi e não matei, foi
Mário de Andrade, em sua rapsódia Macunaíma, sa- Maria-Maria. Dormi no mato, aqui mesmo perto, na
tirizou a linguagem rebuscada e bacharelesca e en-
riqueceu a prosa com a oralidade e com um vasto
vocabulário de origem africana e tupi, que já fora 1 . Nogueira Galvão, Walnice. «O impossível retorno». In:
usado em obras do romantismo, como o poema Mitológica rosiana. São Paulo: Ática, 1978.
I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. 2 . Idem, ibidem.
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Amor e mistério na língua materna . Milton Hatoum
beira de um foguinho que eu fiz. De madrugada, eu Maria-Maria, de onde emana aquela luz que sur-
tava dormindo. Ela veio. Ela me acordou, tava me preende, encanta e seduz o leitor.
cheirando. Vi aqueles olhos bonitos, olho amare- A leitura desse conto de Rosa foi, para mim,
lo, com as pintinhas pretas bubuiando bom, don- uma das experiências mais ricas e emocionantes
de aquela luz… Aí eu fingi que tava morto, podia com a língua portuguesa, matriz de uma incrível
fazer nada não. Ela me cheirou, cheira-cheirando, viagem luso-ameríndia ao mito, ao amor e à morte.
pata suspendida, pensei que tava percurando meu
pescoço. Urucuera piou, sapo tava, tava, bichos
do mato, aí eu escutando, toda a vida… Mexi não.
[…] Fogo tinha apagado, mas ainda quentava calor
de borralho. Ela chega esfregou em mim, tava me
olhando. […] Muito tempo ela não fazia nada tam-
bém. Depois botou mãozona em riba de meu peito,
com muita fineza. Pensei — agora eu tava morto:
porque ela viu que meu coração tava ali. Mas ela só
calcava de leve, com uma mão, afofado com a ou-
tra, de soçoca, queria me acordar. Eh, eh, eu fiquei
sabendo… Onça que era onça — que ela gostava de
mim, fiquei sabendo… Abri os olhos, encarei. Falei
baixinho: — «Ei, Maria-Maria… Carece de caçar juí-
zo, Maria-Maria…» Eh, ela rosneou e gostou, tornou
a se esfregar em mim, mião, miã. Eh, ela falava co-
migo, jaguanhenhém, jaguanhém…3
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Elisa von Randow
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O sabe-muito . Socorro Acioli
dizia: vamos cedo enquanto o sol ainda está frio. Pensei imediatamente nas meninas de sete
Ou: vamos voltar, porque o sol agora está quente. saias. Elas são de outro lugar. Então eu nunca po-
E eu pensava no sol como uma engrenagem às ve- deria brincar com elas, não iríamos nos entender.
zes perversa, que esquentava e esfriava sob o con- Minha tia teve boa vontade de me descrever es-
trole de algo, uma lamparina de Deus que torrava sas amigas da praia de longe, mas não lembrou do
os pés, a cabeça, queimava a pele, mas brilhava detalhe da comunicação. Não poderia dizer coisas
lindamente sobre o mar ali perto da minha casa. simples, perguntar o nome delas, perguntar o que
Ainda brilha. Ainda moro diante do mar. comem por lá, falar da vida em Fortaleza, contar
Aqui no Ceará é tão quente que certa vez histórias, jogar os jogos de trava línguas que eu
vaiamos o sol por aparecer na hora errada, inter- adorava, perderíamos a melhor parte de uma ami-
rompendo o alívio trazido pelas chuvas. Vivemos zade, que é a conversa.
sob a fúria implacável do calor o ano inteiro, sem Ela abaixou o jornal que estava lendo e res-
tréguas. Aquela menina de plástico estava com um pondeu com muita segurança: mas elas também
gorro preto de veludo grosso cobrindo a cabeça e falam português, igual a você. E foi neste momento
a testa, descendo pelas costas, enfeitado por uma que ganhei uma língua. Nunca percebi que eu tinha
bola negra no topo; uma camisa branca bordada um idioma dentro da boca. Agora ele era meu e
e sete saias no corpo, contando com um avental eu sempre fiz bom uso. As palavras, em português,
por cima, também bordado. Sua estrutura era de sempre foram as pedras que pavimentaram a es-
um plástico simples, como qualquer boneca, mas trada do meu destino.
suas roupas foram feitas, costuradas e bordadas O português cresceu em mim pela voz das ou-
pelas mãos extremosas de alguém que eu con- tras pessoas. Minha formação como leitora foi feita
seguia ver, em névoa, quando a nazarena estava basicamente por autores brasileiros e portugueses,
comigo. Não sei como ela aguenta, eu dizia. Essa desde sempre. Quem me ensinou a sofrer por amor
roupa é quente demais. foi Florbela Espanca. Aprendi como se lamenta de
Foi quando minha tia explicou que Nazaré é verdade, caindo aos pés do sofrimento e suplicando
uma praia fria porque fica em outro país. Estamos por clemência. Ela era assim, a linda Florbela. De-
no Brasil, bem longe de lá, ela disse. Portugal é ou- pois chegaram os autores africanos das ex-colônias
tro lugar muito diferente do nosso. As meninas an- portuguesas, Mia Couto, José Eduardo Agualusa,
dam assim, com essas roupas e são muito lindas. O Pepetela, Luandino Vieira, Valter Hugo Mãe, Dulce
frio queima as bochechas e parecem sempre ma- Maria Cardoso, Isabela Figueiredo, Djaimilia Pereira
quiadas na face. Se eu fosse para lá também an- de Almeida, Gonçalo M. Tavares, as narrativas dos
daria assim e as meninas iriam brincar comigo? Ela Retornados. Chegou meu entendimento, na vida
disse que sim e deu-me um sonho. Quero ir para adulta, de que evocamos muitos anos de história
Portugal. Aquela palavra abaixo dos pés da nazare- e cultura quando escrevemos neste idioma trazido
na é um país inteiro. nas caravelas. E eu escrevo.
Acontece que me surgiu um problema, logo Distraída entre os livros, não percebi que jo-
depois. Meu padrinho morou nos Estados Unidos e garam fora a minha nazarena. Disseram que estava
tudo que trouxe de lá tinha nomes diferentes, que velha, a cola ressecou, destacou os pés da base.
eu não compreendia. Foi a primeira vez em que eu A roupa estava sujinha, mas eu poderia ter lavado,
vi um videocassete e assistimos uma fita ameri- poderia ter desfeito a costura para fazer de novo,
cana. Eram pessoas iguais a nós, os americanos, mas não tive tempo de salvar minha amiga, que me
braços, pernas, cara, mas não sabiam falar direito, ensinou tanto.
enrolavam as coisas de uma maneira impossível. Minha avó teve pena. Comprou outra boneca
Eles estão falando inglês, me explicaram. Nos ou- para mim, uma igual às de sua infância. De pano,
tros lugares se fala diferente daqui. com enchimento. Ela chamava de bruxinha, me dis-
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O sabe-muito . Socorro Acioli
se e eu também gostei dela. Falou que era assim reparar como eram perfeitas as pétalas das flores.
no sertão, os brinquedos eram simples, a vida era Foi minha avó que me ensinou isso: a perfeição está
difícil no Rio Grande do Norte, no Sítio Sabe Muito. no avesso das coisas. Ela deve ter aprendido com
E sempre que ela falava disso, eu via novas palavras sua mãe, que aprendeu com sua avó, que apren-
surgindo: carnaúba, mandacaru, alfenim, bagaço, deu com uma das mulheres que vieram da beira do
leite mugido, cumeeira, a língua do sertão era outro Douro para o sertão do Rio Grande de Norte.
português. Ando percorrendo os solos onde as pessoas
Só quando ela morreu descobri que o tal também têm o português dentro da boca. Cabo
Sítio Sabe Muito, onde ela e sua mãe nasceram, Verde, Moçambique, Portugal e ainda falta tan-
era a fazenda de uma família portuguesa, os irmãos to a percorrer. Mas como até hoje nunca fui à Na-
Fernandes Pimenta, do Douro. Um deles era o avô zaré, tive de escrever uma personagem que fosse
dela. As mulheres que vieram com essa família en- por mim. Seu nome é Rosa, uma indígena do povo
sinaram as brasileiras a bordar. Tremembé de Almofala. Um dia, em perigo, ela re-
Quando decidi escrever um livro para minha zou a oração para desaparecer, que aprendeu com
avó, sobre bordados, descobri os lenços dos namo- os troncos velhos da tribo. Foi levada para Portugal,
rados do norte de Portugal e me espantei. Os ver- porque há uma regra nessa magia dos povos ori-
sos dos lenços, em galaico português, eram a língua ginários: os Encantados podem transportar para o
do sertão, o jeito dela. lugar de origem do objeto que a pessoa está segu-
As moças minhotas bordavam versos de amor rando. Ao chegar em Portugal, sem memória, sem
nos lenços para seus namorados, ou pretenden- lembrança do próprio nome, só levou as palavras.
tes. «Meu Manuel bai pró Brazil / Eu tamem bou no A mulher que a salvou, ao ouvir sua voz, disse de
bapor / Gardado no curação / Daquele que é meu pronto: é uma rapariga brasileira.
amor». Exatamente igual. Ela dizia bai, bassoura, No Brasil rapariga é uma outra coisa e a mo-
bou, trocava a letra v pela letra b. Na pesquisa so- cinha ficou ofendida, depois entendeu. Em alguns
bre os lenços eu a reencontrava. momentos nos desentendemos, é a mesma língua,
Andei por aldeias do Minho, conheci mulheres mas são muitos os mundos em português. Este ro-
bordadeiras, inclusive uma que entregou o lenço mance chama-se Oração para Desaparecer. Sai de
como presente a um namorado que veio ao Brasil. Almofala, no Ceará, para uma das Almofalas portu-
Ele pediu que ela esperasse, que não tardaria seis guesas — são sete. Almofala de almohala significa
meses a voltar. Só chegou dezessete anos depois e acampamento temporário, uma palavra em árabe,
ela estava esperando, tal Penélope, com um enxo- rastro dos Mouros.
val todo bordado com as mesmas flores e pássaros Percebo agora que este livro é uma homena-
dos lenços que o entregou quase vinte anos antes. gem a esse dia exato dos meus 5 anos, quando ga-
Sozinha, em uma aldeia minhota, acreditando em nhei a consciência de que tudo que penso, sonho,
duas palavras: eu voltarei. As palavras marcadas falo e escrevo carrega uma herança de outros sécu-
nos quadrados de linho branco registraram a his- los. Falo o português do sertão da minha avó, mis-
tória das mulheres de um tempo, mas também de turado com a beira do Douro dos meus antepassa-
um idioma. Eu lembrava, sempre, dos bordados do dos, das autoras e autores que leio, das coisas que
avental da minha boneca. me ensinam meus amigos que dividem, comigo, a
Em todas as lojas de lembranças que andei beleza desta língua. Foi com ela que bordei esse
nas vezes em que estive em Portugal, procurei pela texto, um reconhecimento do que me pertence, do
boneca nazarena da minha infância, com corpo de que recebo como um milagre e devolvo ao mundo
plástico, vestes de tecido. O que encontrei mais em forma de oração.
parecido foi uma de louça. A roupa era uma pin-
tura, eu não poderia virar o avesso do tecido para
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Alan Alan
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A língua portuguesa . Germano Almeida
que lhe saía fluentemente da boca como se tives- pos era sem dúvida motivo de grande orgulho ver
se nascido e criado em alguma terra de Portugal. os nossos patrícios falar em português com total
Lembro-me de um dos meus tios, por sinal com desembaraço, sobretudo se falavam sem o apoio
muito mais instrução escolar que o meu pai, a falar do papel escrito. Ainda me lembro da breve visita
com ele, e também connosco, longas e edificantes do presidente Craveiro Lopes à Boa Vista em 1955.
conversas, sempre em crioulo. E o meu pai respon- No espaço da hora e meia que durou a estadia, ele
dendo, sempre em português. ouviu três glamorosos discursos, dois na Câmara
Mas ninguém estranhava ou comentava esse Municipal, o terceiro na enfermaria que estava sen-
comportamento desusado, tanto mais que nunca do inaugurada. De seguida devolveu-se ao navio
lhe terá passado pela cabeça exigir de nós, seus fi- que o tinha levado à ilha. E metido o presidente
lhos, expressarmos em português ao falar com ele. no bote, toda a população, como um só homem,
Falava com a nossa mãe em português, ela natural- agarra o administrador e carrega-o em ombros aos
mente respondia em crioulo, e a nossa vida decor- gritos e vivas, e assim o levam em glória de volta ao
ria entre o crioulo de toda a família e o português edifício da Câmara. Tudo para lhe mostrar o quão
do meu pai, de quem realmente nunca ouvi uma orgulhosos e felizes estavam os boavistenses com
única palavra em crioulo. No entanto, sempre que o belo discurso que tinha produzido e que se via
necessário, não tinha qualquer relutância em apor- muito claramente como tinha impressionado quer
tuguesar as palavras ou expressões do crioulo. o presidente, quer a sua comitiva.
Embora normalmente eu não falasse em por- Nesse tempo o ensino primário era ministra-
tuguês, estava habituado a ouvi-lo e também a lê- do exclusiva e rigorosamente em língua portuguesa.
-lo. De modo que quando chegou um padre italiano Dentro da escola ninguém estava autorizado a dar
na Boa Vista e o meu pai lhe emprestou um cavalo sequer um pio em crioulo e fora da escola, se por
para ele ir conhecer o interior da ilha, não foi nada acaso calhasse encontrarmos a professora, toda a
difícil nos entendermos em português. Tomou-me conversa com ela deveria decorrer em português.
como seu ajudante, aprendi o ofício de sacristão, Mas, entretanto, chegou à ilha uma professora ca-
e fomos os dois praticando o uso da língua portu- bo-verdiana que tinha concluído em Portugal o cur-
guesa, muitas vezes com o auxílio de um dicionário. so de magistério primário. E, ao contrário das ou-
Tempos depois o padre italiano foi substituído tras, ela permitia-se algumas vezes falar connosco
por um indiano. Esse falava bem o português. Eu em crioulo não só na rua como mesmo na sala de
estava sempre às voltas com ele, e lembro-me de aula. E então na sua casa, só falavam em crioulo.
uma vez que tivemos uma pequena arrelia a pro- A consequência era que no geral as pessoas não
pósito de já não sei que objeto em que eu estava a levavam muito a sério, diziam que não podia ser
interessado e ele deu a outro menino. Ora eu é que uma boa professora, se fosse, seria a primeira a dar
me levantava cedo para abrir a igreja, tocar o sino o exemplo de falar português.
para chamar as pessoas para a missa, ajudar na Não será de forma alguma temerário dizer que
celebração, e por isso achava-me com mais direi- a vida em Cabo Verde decorre em crioulo. Um poeta
tos. E por isso estava zangado por essa desfeita, e diria que nascemos em crioulo e vivemos em criou-
disse-o ao padre. «Mas ele pediu», justificou-se, «tu lo. Rimos, comemos, dançamos e por fim morremos
não pediste!». E então saí-lhe com esta frase orgu- em crioulo. Porém, essa regra comporta exceções:
lhosa: «Eu não pedo nada a ninguém!». E o padre desde sempre houve situações e lugares onde o
sorriu e corrigiu-me trocista: «Não se diz ‘eu pedo’, povo em geral se recusa a expressar em crioulo,
diz-se ‘eu peço’». com vista a não lhes perturbar a solenidade. Os tri-
Não sei se desde sempre, mas na verdade bunais são um bom exemplo, ou então a presença
acabámos, nós cabo-verdianos, tendo uma rela- de autoridades consideradas importantes: nessas
ção ambivalente com o português. Noutros tem- ocasiões usa-se a língua portuguesa, considerada
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A língua portuguesa . Germano Almeida
como língua de autoridade e respeito. E mesmo de- crioulo com abundância em quase todas as rela-
pois da independência nacional, quando aconteceu ções sociais, o português é já uma língua estudada,
a dessacralização da generalidade das instituições, rica, consolidada. Temos, pois, urgente necessidade
as pessoas mais idosas faziam questão de se ex- de renovar entre nós o antigo orgulho de expressar
pressarem exclusivamente em português, mesmo bem e de forma fluente na língua portuguesa, afinal
quando instadas a falar em crioulo, considerando das contas ela é também nossa.
que o lugar em si obrigava a essa deferência.
A relativa convivência que durante séculos
existiu entre o crioulo e o português, com os ser-
vidores públicos orgulhosos do domínio da língua
portuguesa e professos discípulos das gramáticas
de Tomás de Barros ou José Maria Relvas ou mes-
mo de A Estilística da Língua Portuguesa do profes-
sor Rodrigues Lapa, sofreu um forte abalo a partir
dos anos 60 do século passado. O falar crioulo pas-
sou a ser encarado pelo poder colonial como afir-
mação de vontades independentistas, quando na
verdade em muitos casos se tratava apenas de uma
afirmação de identidade. E começa-se a assistir a
uma maior má vontade, senão mesmo perseguição,
aos falantes do crioulo, e concomitantemente e por
isso mesmo uma cada vez maior resistência ao uso
da língua portuguesa, com acusações de suspeição
de antinacionalismo aos que persistiam.
Até que se dá o 25 de Abril e a seguir a in-
dependência. E foi como se uma panela de pressão
tivesse sido abruptamente destapada. De repente
o crioulo impôs a sua supremacia, ocupando os es-
paços mais incógnitos. Pessoas insuspeitas de de-
lírios nacionalistas já se expressavam totalmente
em crioulo como se tivessem feito isso a vida intei-
ra. Foi um período de libertação e de afirmação de
uma identidade que tinha vivido castrada durante
anos. E o crioulo impôs-se nas escolas, nos liceus,
nas repartições públicas, na rádio, nos comícios, e
até nas famílias onde até lá a regra era comunica-
rem-se exclusivamente em português.
Foi um grave erro não termos sido capazes de
chamar a atenção, de pôr cobro a esse desregra-
mento, mostrar a importância e até mesmo a nossa
dependência da língua portuguesa. De como a nos-
sa língua de aprendizagem é a língua portuguesa, a
nossa língua de conhecimento e de contacto com
o mundo. Pelo que temos que continuar a cultivá-
-la, a acarinhá-la, a preservá-la. Mesmo usando o
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Karine Medina Silva
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Matar o português . Eileen Almeida Barbosa
era tão esperta que já escrevia estórias, ainda que mais séria, ou se me irritar, imediatamente começo
só com desenhos. A estória que mais a marcou foi a escrever em português. Acho imensa piada às pro-
uma que eu também me lembro de desenhar, e núncias diferentes e a como se conseguem identifi-
que se chamava «A casa com quintal», onde dese- car as origens da pessoa só pela forma de falar.
java morar quando fosse crescida, casada com o Tenho a grande sorte de ter um pai que op-
Tujó, e com um carrinho de bebé. Andei uma tar- tou por falar com as filhas em português. Durante
de toda com a folha de papel nas mãos, a lê-la a muitos anos, quando me perguntavam como é que
quem quisesse ouvir. eu tinha uma pronúncia tão portuguesa, eu dizia
Não fui daquelas crianças precoces, extrema- que era da leitura. Só em Portugal, quando fui es-
mente irritantes, que chegam à primária já a saber tudar, é que me dei conta que não, com os livros
ler e escrever. Aprendi a escrever o meu nome no não se aprende a pronúncia. Ela viera toda do meu
jardim de infância, mas o grosso da escrita e da pai, que, embora nascido guineense de pais cabo-
leitura foi com a Dona Júlia, professora de velha -verdianos, fala como um lisboeta. Quando fala com
guarda, como se dizia na altura, para explicar que o meu tio, a conversa é assim:
era muito boa docente. Era bonita, com um rosto «Tu sabes, pá, a miúda vem de férias, pá, cheia
redondo e dedos roliços, as saias sérias, escuras, de manias, pá, não quer lavar a loiça, pá, não faz a
de cintura muito alta. As turmas na altura tinham cama... Mas eu meto-a na linha, pá!»
40 meninos. Ela sabia controlar-nos, às vezes re- Tive a sorte também de a minha mãe se im-
correndo à palmatória. portar bastante com a língua, a ponto de chegar a
Foi ela que, às tantas, avisou aos coleguinhas casa e dizer-me:
que se sentavam à minha volta: vocês tenham cui- — Eileen, hoje foi um colega à minha sala di-
dado com a Eileen porque ela fala, fala, mas vai zer-me que tinha ido emprestar um dicionário. Mas
prestando atenção, e vocês esquecem-se dos vos- ouve, não se diz emprestar o dicionário, é pedir
sos nomes. Foi ela que deixou passar os meus ga- emprestado, está bem?
tafunhos, sem me pôr a fazer cópias, porque eu era Até hoje, as duas irritamo-nos profundamente
uma boa aluna. Na escola, lia os textos dos manuais quando um jornalista erra e imediatamente corrigi-
para frente e para trás. Ainda me lembro de imen- mo-lo, com o mesmo rompante de velhotes a ouvir
sos, de tanto os ter lido. Lembro-me de um texto o relato de um jogo na rádio. Por causa dessa vene-
que descrevia uma cabana na praia, com prateleiras ração à língua portuguesa que ambas partilhamos, o
toscas, e eu não fazia ideia do que significaria tosco Eileenístico, o meu livro, quase que ficava na gaveta.
e andei ainda uns anos sem voltar a encontrar a pa- Depois de eu ter ganho três prémios literários
lavra. Também só aprendi quórum há uns dez anos, e uma menção honrosa em dois concursos, a minha
com um namorado meu, aquando de uma reunião mãe disse-me:
de moradores da Murdeira. Gosto destas palavras — Eileen, parece que os teus contos prestam.
que aprendo tarde. Nos últimos dois anos, fiz pila- Escolhe uns quantos e vamos publicar um livro!
tes e desde então, ganhei umas escápulas. Tenho a Eu estava na Irlanda na altura, a trabalhar por
certeza absoluta que quando lá entrei pela primei- um período de seis meses. Escolhi o que achei que
ra vez, não tinha ossos desses. Também gosto dos seriam os melhores textos, de entre os quais al-
termos que passei muitos anos a pronunciar mal, guns escritos no liceu, outros no curso e outros
como era o caso de Cleópatra, que eu pronunciava já como profissional. Ela ficou de encontrar uma
Cleopátra e clítoris. Desde adolescente, o que eu gráfica para a publicação e fazer a revisão do livro.
tinha era um clitóris. Quando ela me mandou os textos revistos, vi que
Toda a vida, falei e sonhei em crioulo, e troco tinha alterado algumas palavras, sublinhado outras,
mensagens no telemóvel também na língua de Cabo entre as quais solando, comentando: «A palavra não
Verde. Mas no momento em que a conversa fica existe.» Eu sabia que não existia, pelo menos nos
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Matar o português . Eileen Almeida Barbosa
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Eu e a língua
portuguesa num
tempo líquido e
instável
Odete Costa Semedo
Amido Camara
Quando nascemos, entramos numa relação
de intimidade e de posse com o nosso lugar de
nascimento, com a casa dos nossos pais; logo que
nos sentimos gente, reconhecemos que somos da-
quele lugar e que aquele local nos pertence, assim
como a língua por meio da qual nos comunicamos.
Apropriamo-nos do nome do lugar possessivamen-
te: este é o meu país, esta é a minha terra, o meu
chão, a minha cidade, a minha tabanca, a nossa lín-
gua; es i nha terra1. Descobrimos irmãos de sangue
e de vizinhança e manifestamos tudo com palavras,
gestos e falas, em uma ou mais línguas. Neste par-
ticular, em língua portuguesa. Uma língua cuja rela-
ção se mostra de alguma rebeldia — porque língua
do colonizador — para, mais tarde, dela nos apro-
priarmos e passar a ser a minha, a nossa língua, a
que eu quis que fizesse parte de mim, da minha
história, da história da minha gente.
Reconstruído, recriado, ou apenas deixado
crescer, naturalmente, o vínculo com a língua por-
tuguesa faz da sua apropriação, pelos falantes, um
elo de ligação construído entre a língua, as culturas
e identidades, com todas as fragilidades e subje-
tividades inerentes a laços, quer os que se julgam
genuínos e indissolúveis, quer os que são criados
por conveniência ou alguma obrigatoriedade.
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Eu e a língua portuguesa num tempo líquido e instável . Odete Costa Semedo
A língua portuguesa, essa nossa língua, tem verter! É a língua dentro da qual assento os meus
comigo uma ligação de relacionamento humano na porquês do desassossego de um tempo de dias tão
produção da minha palavra viva, pensada, construí- longos e de auroras cobertas de sereno intenso.
da e desambiguada. E é esta desambiguação que E, perante o desafio de colocar preto no bran-
me permite o imbricamento entre a minha língua co, parei na intermitência que separa o meu anti-
de mâma, o crioulo guineense e as línguas da lín- gamente prazeroso e as bandas dos panos deste
gua portuguesa, sem exclusão. O crioulo, enquanto mundo de velocidades insuperáveis, porque talha-
a fala do chão e do coração, a língua portuguesa, do de novas tecnologias de informação, da comuni-
língua do candeeiro a petróleo, da lanterna vacuum, cação, de comemorações, de degustações sem ca-
que vira língua da fala e do chão, também, quando deiras nem comezainas dos tempos que já lá vão.
preto no branco é soletrada. É esse imbricamento Dizia eu que me sinto cercada pelo meu mundo do
que nos faz filantar 2 as ideias e etapas de cons- antigamente e por este recente universo das novas
trução de uma sociabilidade que permite a língua tecnologias — também já velho pela rapidez da sua
portuguesa navegar e deixar-se levar para locali- dinâmica. E… que fazer? Nem tanto ao mar, nem
dades em gestos de deslocamentos insubordina- tanto à terra, mas como não sou de ficar em cima
dos. É a partir desses alinhamentos que a língua do muro, tomei a decisão de me estatelar nas asas
portuguesa vai renascendo e florescendo africana e abertas da palavra mágica, falapapeando, e para a
brasileiramente, e levada a entrar no jogo, por ve- minha surpresa, ou não, debaixo dessas asas esta-
zes antitético, outras vezes na liquidez da palavra vam, também, palavras imprudentes. Não questio-
mágica que vai parir falas e fluir. É assim porque nei porque fazem parte de falas de uma fala.
nunca se questionou como gostaríamos que fos- E eis-me aqui, nesta minha relação com a lín-
se a nossa língua. Como gostaríamos de expressar, gua portuguesa, a querer ser Nharambá, Bibiana
de falar, quiçá nem falaríamos, quem sabe, cada Vaz, nhara Aurélia Correia ou a simples lavadeira
um palavreava, porque, afinal, «O que me apronta ou o povo que lava(s) no rio. Ainda pensei em Felix
é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa Ventura3, para lhe apresentar um pedido, para que
sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a lin- talhasse um passado de sonho e de antepassados
guagem, colocando nela as quantas dimensões da que viveram entre as ilhas de Rubane e de Uno para
Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?» a cantadeira Nharambá. O seu pai seria um gran-
Sábias palavras de Mia Couto às quais acrescento de senhor inglês que teria abandonado a ilha de
que queria uma língua de pernas fortes, que me Bolama, depois da sentença arbitral de Ulysses
acompanhasse nos encontros de muita sobriedade Grant4, e ido assentar em Cacheu. Lá, teria conhe-
e nos dias de sedição na tabanca, toda ela rodeada cido a mãe de Nharambá, uma fidalga cacheuen-
de panos com avessos. Uma língua que tenha asas se e famosa comerciante. Isso pintaria um quadro
também, algo assim… que andasse e voasse, cor- fabuloso em refavor da cantadeira de Marques de
tasse fronteiras, sem tradução, apenas com tradi- Barros. Porém, desisti! Deixei que cada uma des-
ções e contradições.
Esta é a minha relação com a minha língua por-
tuguesa, a que eu sinto e através da qual me rebelo 3. Um dos personagens de O Vendedor de Passados, do es-
e manifesto o meu inconformismo com o que está critor angolano José Eduardo Agualusa.
à volta de mim (não à minha volta) e me incomoda. 4. Os ingleses haviam declarado a ilha de Bolama como par-
Uma relação de ser e de querer, de inventar e in- te da Serra Leoa, que já tinham ocupado, em 1860, facto que
Portugal não aceitou. Assim, a 21 de abril de 1870, criou-se
uma Comissão de Arbitragem Internacional presidida pelo
2. Filantar — do crioulo filantá, que significa alinhar, colo- General Ulysses Grant, à época presidente dos Estados
car em fila, combinar. Unidos da América, que concedeu posse de Bolama a Portugal.
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Eu e a língua portuguesa num tempo líquido e instável . Odete Costa Semedo
sas mulheres tomasse o seu rumo e apossasse das difíceis porque feitas de esperança, mas também
próprias falas. São essas vozes donas do verbo, de de dúvidas e de receios próprios de um tempo ins-
falas, da palavra simples que navegaram ao longo tável, de um tempo inseguro.
dos séculos, levando algum humanismo — diante
dos horrores da história — aos lugares por onde Bissau, 18 de março de 2021
passaram, ou, simplesmente, aos locais onde a
melodia das suas vozes entrou sem pedir licença,
qual canto da badjuda serpenti5.
Eu e a língua portuguesa somos, assim,
Litteratura dos negros, somos cânticos, e Cantigas
de pretos. Somos palavras amotinadas, insubmissas
e em ebulição, também palavras que acalentam e
educam. Na nossa relação, eu e a língua portuguesa
somos falas que ensinam a ensinar, que mostram
como se aprende a construir gente, para se torna-
rem pessoas, poderem defender-se, contar a pró-
pria história e a dos seus. Nessas tantas línguas que
navegam dentro da língua portuguesa e que rom-
pem canais, somos a crioulizar a língua portuguesa,
ora a filantar sentidos, ora a criar outros.
Para muitos, esta minha relação com as lín-
guas da língua portuguesa é uma relação de desfor-
ra, de tira-teimas com aquele que quando chegou
tudo revirou. Manuel Rui testemunhou que quan-
do o outro chegou «... os velhos contavam estórias.
Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na
nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não
apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas
sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto
porque havia gesto. Texto porque havia dança. Tex-
to porque havia ritual. Texto falado ouvido visto».
Hoje, a minha relação com a língua portuguesa é de
afinidades, de pertencimento e de posse. Resgatei
a fala, a palavra, a língua e as linguagens da língua Referências
portuguesa nas suas múltiplas roupagens. Vesti a
língua portuguesa de coisas da terra; do chão, es- AGUALUSA, José Eduardo — O Vendedor de Passados. Lisboa:
cavei memórias, apropriei-me das falas e lembrei- Dom Quixote. 2004.
-me para não me esquecer, para que os horrores da BARROS, [Cônego] Marcelino Marques de. Litteratura dos
nossa e da minha história não se repitam. Dei vida negros: contos, cantigas e parábolas. (Separata da tribuna).
à minha fala e ela à língua, desconstrui e reconstrui Lisboa: Typographia do Commercio, 1900.
palavras, as imprudentes e as mágicas, em diálogos BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Sobre a Fragilidade dos
Laços Humanos. Relógio D’Água Editores. 2006.
MONTEIRO, Manuel Rui. «Da escrita à fala». In: Congresso
5 . Badjuda serpenti — Menina serpente; correspondente Internacional de Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas,
à sereia. 1, 2005, Coimbra. Coimbra: Almedina, 2005.
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Na ponta da língua
Rita Ié
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Na ponta da língua . Rita Ié
dade não vos engane, quantas vezes «mordi a lín- Por diversas vezes me vi em trabalhos para
gua» tentando acentuar, pontuar ou mesmo falar? transmitir a mensagem pretendida, tendo de sim-
Não raras vezes, em conversa de amigos lar- plificar na fala uma língua que de simples não tem
guei um «prontos», não tardou para que um deles nem forma nem conteúdo.
me corrigisse a fal(h)a: «não é prontos, é pronto!» Mas não há como negar-lhe a valentia, por se
Nunca mais pluralizei. Pois é, todos estamos sujei- manter viva ainda que de forma tímida em meio a
tos a errá-la de vez em quando, o que não conse- tantas outras línguas que se fazem diárias no quo-
guimos é ser indiferentes aos seus encantos. tidiano deste povo curiosamente lusófono.
O tempo da faculdade e o alistamento no as- Não! O português é um só, qualquer língua que
sociativismo estudantil veio intensificar o respei- se queira dominar é necessário praticar. A falta de
to que devotava à língua portuguesa. O incentivo uso fez com que lhe ganhassem o medo. O segre-
constante de colegas e amigos de pena já não me do está em criar costume: falar dela, falar com ela
permitia ignorar o que era presente: ela estava-me e através dela. Ah, e a leitura também é de grande
no sangue! ajuda! Isso também passa por conhecer os grandes
Participei em saraus literários, lançamentos que a imortalizaram: Camões, com um olho só, de
de livros e declamações de poesia, a escrita nos longe lhe viu a grandeza e por isso lhe dedicou uma
unia! E foi com a escrita como aliada que pude me epopeia inteira. Florbela deu-lhe alma ao cantar os
entender para melhor poder me mostrar ao mundo, amores e suas dores. Já Pessoa teve que se fazer
pois através da escrita o meu eu fluía. plural e em um momento de epifania soube ser in-
Como um mágico que tira coelhos da cartola, teiro ao dizer: «A minha pátria é a língua portuguesa!»
assim os meus escritos foram surgindo e se multi- Pois é, a língua portuguesa ganhou o mundo,
plicavam igual à fama do bicho. A língua portuguesa ela é um mundo tão imenso que se tornou cliché
se espreguiça para lá do útero luso, morando em incorporar palavras de outras geografias, fazendo-
várias pátrias todas elas distintas em suas gentes -as sua! Que o diga Eça de Queirós, que em sua
e culturas. escrita prolífera e cosmopolita se valeu de estran-
Aqui na Guiné-Bissau ela é herança de ou- geirismos para enriquecer a língua.
tros tempos, seria natural ela ser tão expressiva no A maleabilidade do português é tanta que uma
grosso da população, afinal é a língua oficial! Porém vez ou outra lá vamos inventando palavras às quais
tal não se verifica. damos a sua nacionalidade. Nascem neologismos
A utilização do português é muito residual, das mãos do abensonhado Mia Couto, que afirmou:
delimitando-se a espaços como a academia e mes- «Invento palavras para que digam coisas que ne-
mo nela não é utilizada como se deveria. Um dos nhuma outra diz». E assim, como qualquer língua
muitos motivos de tal marginalização da língua é o que se quer atual, o português também se reinventa
facto de ter de partilhar este chão com tantas ou- em minhas folhas brancas, explodindo sentimentos
tras aqui nascidas, sendo o crioulo a língua veicular, e pensamentos, tentando explicar as coisas que vi-
que congrega a maior parte da população. vem do lado de dentro!
Na minha experiência a dar aulas em uma das
universidades da capital pude verificar que os meus
alunos têm dificuldade em criar intimidade com a
língua, ainda que ela pareça tão familiar.
Descobri até que existe «o português da pro-
fessora Rita», dizem eles que não conseguem acom-
panhar o que digo, pois o faço com uma rapidez
à qual não estão acostumados, comprometendo a
sua compreensão.
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A herança e a
conquista
Mia Couto
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A herança e a conquista . Mia Couto
da FRELIMO, o número de jovens negros frequen- aquilo que nos habituámos a chamar de espaço
tando os liceus de Moçambique não chegava a duas lusófono. Em Moçambique há mais de 25 línguas
centenas. E apenas dois deles tinham terminado o de origem bantu que estão vivas e que merecem
curso liceal. A taxa de analfabetismo, à data da in- ser acarinhadas e celebradas. E não há dualidades,
dependência, era de 97 por cento. nem há espaço de exclusão. Quanto mais o por-
A adoção da língua portuguesa como língua tuguês ajudar essas línguas a serem valorizadas,
oficial em Moçambique foi o resultado de um largo mais o português será nosso e se confirmará como
debate sobre os destinos da futura nação moçam- uma língua que transitou do estatuto idioma oficial
bicana. Foi uma decisão política. É evidente que para a condição de língua de cultura. A maior par-
essa decisão teve raízes histórias. Mas foi feita não te dos nossos escritores em Moçambique escreve
por causa da herança colonial. Foi feita, sobretudo, diretamente em português. O mesmo se passa nos
contra essa herança. restantes quatro países africanos com quem par-
Na realidade, foi preciso o fim da administra- tilhamos a mesma condição linguística. Esta cir-
ção colonial para que a língua portuguesa ganhasse cunstância traduz o quanto o idioma do «outro» se
raízes em Moçambique. Nos primeiros oito anos de tornou nosso, tão nosso que não apenas o falamos
independência a taxa de analfabetismo desceu de como somos falados por esse idioma. O nosso de-
97 para 72 por cento. Este foi apenas o início de um safio é criar, procurar equilíbrios justos para que
longo caminho para popularizar a língua que outro- estas sociedades possam exercer realmente a sua
ra tinha servido para negar a identidade moçam- condição multilingue.
bicana. Noutras palavras, o governo moçambicano Numa sessão de lançamento do seu primeiro
fez em poucos anos aquilo que séculos de colo- livro de poesia, o jovem Otildo Guido respondeu a
nialismo não foram capazes de realizar a favor da uma pergunta sobre qual era a sua relação com a
língua portuguesa. Algo que possa ter corrido mal língua portuguesa. E ele disse, sem sequer pensar:
foi no sentido inverso: o modo como os governos «eu e a língua portuguesa somos bons e velhos ami-
moçambicanos adiaram e secundarizaram a valori- gos». Nunca se reproduziu em Moçambique o dra-
zação das línguas moçambicanas de raiz bantu. ma linguístico da criação literária que tanto amar-
A língua portuguesa foi e continua a ser um gurou os criadores de outros países africanos. Esse
dos principais pilares da construção da unidade do drama era o tema «quente» das conferências lite-
povo moçambicano. É preciso celebrar esse facto? rárias dentro e fora do continente. O debate tinha
Com certeza que sim. A língua portuguesa confe- sentido. E tinha sentido, sobretudo, porque, para
re-nos uma janela para o mundo e consolida um grande parte dos novos países africanos, as línguas
parentesco histórico com outros países lusófonos. europeias continuaram a ser sentidas como línguas
Disso ninguém pode ter dúvida. É preciso saudar coloniais. Mas os processos de emancipação das
essa ponte que supera oceanos e continentes? Com antigas colónias portuguesas foi tardio e teve um
certeza que sim. Moçambicanos, angolanos, portu- percurso que foi particular. Não por causa de algu-
gueses, cabo-verdianos, são-tomenses, guineenses ma diferença essencial na língua dos colonizadores.
e brasileiros são hoje uma família com laços his- Mas porque essas nações não foram «descoloni-
tóricos. Bem mais que os séculos de colonização, zadas». Elas descolonizaram-se a si mesmas. Não
o que nos uniu, portugueses e africanos, foi a luta foram objeto. Tomaram nas suas mãos as rédeas
pela construção de um futuro melhor para as gera- dos processos de rutura política, por via de longas
ções de cada um dos nossos países guerras de libertação nacional, e fizeram das suas
No caso moçambicano, a luta pela unidade independências aquilo que Amílcar Cabral chamou
nacional, pela democracia e pela construção do fu- de «atos de cultura». Ficou conhecida a posição do
turo foi feita sobretudo em português. Mas foi feita queniano Ngugi wa Thiong’o, que, depois de ter al-
e continua a ser feita noutras línguas que habitam cançado a celebridade pelos seus livros redigidos
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A herança e a conquista . Mia Couto
em inglês, passou a escrever exclusivamente na sua tos não apenas desmente como revela que a poe-
língua materna, o gikuyu. Na realidade, para que os sia, toda ela escrita no nosso português, se afirma
seus livros fossem conhecidos em todo o Quénia como um espaço de debate e criação da própria
eles tinham que ser traduzidos em inglês. Mas isso cidadania moçambicana. Precisamos dessa contri-
não desautorizava bandeira afirmativa do escritor. buição para nos reconciliarmos de um longo e duro
Não creio que se possa julgar a posição do período em que as diferenças culturais eram vistas
queniano. Talvez não seja legítimo proclamar uma como motivo de desconfiança. Já não faz sentido
obrigação a ser coletivamente seguida. Cada escri- o debate sobre a legitimidade da língua do colo-
tor deve ter a liberdade de se exprimir na língua em nizador. Faz sentido o debate sobre as outras lín-
que mais se sente à vontade. O que Ngugi quis foi guas que apressadamente foram designadas como
criar o debate e chamar a atenção para essa au- línguas «nacionais». Essas que foram injustamente
sência de escolha. De forma subtil e silenciosa, os relegadas para um lugar desqualificado.
africanos foram reduzindo o leque de opções para A língua portuguesa, essa que é nossa de ma-
além das línguas de origem europeia. Hoje as fron- neira tão comum e tão diversa, mais uma vez sus-
teiras linguísticas do continente apelam não para as tenta a criação de uma modernidade em que nos
suas línguas indígenas. Existem, sim, três subconti- possamos rever como cidadãos moçambicanos.
nentes: a África francófona, a anglófona e a lusófo- E como irmãos de um destino que, uma vez mais,
na. Não existem trocas entre esses territórios. Não sem ata nem formalidade, vamos escrevendo todos
existem traduções e publicações que atravessem no mesmo idioma.
essas linhas divisórias. Mais grave ainda, não existe
intercâmbios dentro de cada uma dessas áreas lin-
guísticas. Moçambique desconhece o que se faz e
publica em Angola, Cabo Verde, Guiné e São Tomé.
E o inverso também é verdade.
O que me parece urgente é tornar vivo e pro-
dutivo esse espaço linguístico comum. Não é con-
cebível, por exemplo, que nenhum dos governos dos
países africanos de língua oficial portuguesa parti-
cipe financeiramente no Prémio Camões. Já ouvi
reclamações dos africanos sobre a necessidade de
uma maior presença na composição do júri. Essa
reivindicação é correta. Mas deve ser redireciona-
da. É preciso pressionar os Ministros da Cultura de
Angola, Cabo Verde, Guiné e Moçambique para que
sejamos realmente parceiros, a corpo inteiro, desse
que é o maior galardão da Língua Portuguesa.
Moçambique vive hoje uma condição feliz:
talvez seja atualmente o espaço lusófono onde se
produz e publica a poesia de melhor qualidade. Sei
que esta declaração é polémica e merece suspeita.
Mas não posso deixar de confessar o orgulho que
sinto ao ver singrar jovens poetas e escritores mo-
çambicanos cuja originalidade criativa faz esquecer
um tempo em que se discutia se a literatura teria
morrido no nosso país. Esse brotar de novos talen-
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Estou a pedir me desenhar . Pinto
língua(s) I
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O sentido da(s) língua(s) . Mbate Pedro
distante. Sengamue acha então que se deve aproxi- ta então encontrar um modo de se introduzir nela,
mar da língua, não somente para lhe ser mais íntima, para a modificar. Mas desconsegue. Na segunda
mas também para estar mais próxima de si mesma. tentativa, Sengamue faz um movimento acrobático
Mas assim como as coisas estão, ela sente-se cada que lhe sai mal. Está a ter um dia difícil. Perce-
vez mais distante de si mesma. Não sabe se cala be-se. Talvez seja melhor imitar o savoir-faire com
ou fala. Lembra-se das palavras de sua finada mãe: que a poesia entra no poema. Cogita. Identifica-se
«um homem deve dizer tudo o que tem a dizer sem com a maneira de estar da poesia: sair de dentro de
uma palavra a mais». E Dona Vuieia aditava: «um ho- si antes de entrar no interior do verso.
mem não deve calar um silêncio a mais». Sengamue
senta-se, amarra a capulana, posiciona-se, agora, III
por detrás da língua. E é desse lugar que ela começa
a calar, numa espécie de silêncio falante. Não leu Sengamue conhece os dois lados que todas as
Stendhal, mas percebe que um discurso se cons- línguas têm: o lado de fora e o de dentro. Por agora,
titui tanto do que se conta, como do que se cala. apenas lhe interessa este último. A filha de Dona
E quanto mais a jovem senhora emudece dentro da Vuieia sabe que é dentro do idioma que a poesia
língua, mais profundo é o silêncio. Este que se avo- acontece. Ou por outra, o vigor de qualquer língua
luma, como o silêncio que costura um verso. Um si- está na poesia, espaço singular de recriação lin-
lêncio que é quase tangível, como se fosse um outro guística. Eis a magia. Aliás, a poesia faz grande par-
idioma, falado e entendido por todos, quando, com te da sua viagem, dentro da língua, fazendo desta
a boca, tocamos os limites da linguagem, da morte sua casa, explorando as suas infindáveis possibili-
e do amor. Sengamue levanta-se, volta a amarrar a dades. Será verdade? Interroga-se. Seja como for,
capulana, senta-se de novo na mesma posição. Em um verso também acontece de cada vez que Sen-
que língua emudecemos? Questiona-se. Nos cala- gamue se cala. Ou seja, de cada vez que a jovem
mos no mesmo idioma com que falamos? Por mo- senhora não tem nada a dizer, ou de cada vez que
mentos pensa que deve falar. Mas logo a seguir lem- o silêncio impera, o poema irrompe. Eis a questão:
bra-se da velha questão: falar ou falhar? falar ou falhar? Sengamue não sabe. O que, no en-
tanto, constata, é que chegou ao limite do silên-
II cio e, de cada vez que a linguagem falha, um verso
desponta. Aberração da linguagem? Ou talvez seja a
Impassível, Sengamue permanece amua- dimensão poética da língua, a revelar-se? Mas é por
da diante da língua. Claro que se poderá pensar se escrever poesia que uma língua se torna poética,
que o silêncio é a antilíngua. Não o é. O não dizer ou é por a língua ser poética que se escreve poesia?
nada também não é dizer? Interroga-se. O que pesa Eis uma importante questão que Sengamue coloca
mais? A palavra dita ou a palavra ausente? A pala- a si mesma.
vra dita é, amiúde, efémera. A palavra ausente não
o é. Aliás, é esta que muitas vezes dá o sentido de IV
eternidade à poesia. Eis uma linha de reflexão. Na
aldeia onde cresceu, as palavras eram aquilatadas Antes de se aventurar para uma terceira ten-
num estranho aparelho. Apenas as que se revelas- tativa, Sengamue espreita para o centro da língua,
sem mais ténues que o silêncio tinham o direito de como se olhasse para dentro de si mesma. Assus-
existir. Lembra-se desse axioma. Entretanto, Sen- ta-se ao dar de caras com algo frágil, sem nome,
gamue muda de posição, mastiga rapé, conserva-se a definhar e a contrair-se, como se fosse um cor-
calada. As palavras em silêncio. O pensamento em po debilitado. Como se entrasse pela casa aden-
rebentação. É visível que Sengas está insatisfeita tro, lança-se finalmente ao interior do idioma, que
com a língua que se encontra diante de si. Ten- a colhe, em silêncio. Traz consigo a sua marrabenta,
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O sentido da(s) língua(s) . Mbate Pedro
os seus xicuembos, a Mafalala e um pouco de uka- língua dentro de outra língua? Interroga-se. Dito
nhe, como se quisesse refrescar a língua. Sengamue de outro modo: o verso dentro da língua. A língua
invade o idioma, desnuda-o, penetrando nos seus no interior da palavra. A palavra no centro do poe-
lugares mais secretos, em lexicais e sintáticas gin- ma. Sengamue levanta-se da esteira, sorri, cospe
canas. O corpo arde. Soçobra a alma. Uma palavra os restos de rapé que ainda tem entre os dentes,
de ordem ainda ressoa: «matar a tribo para que a volta a sentar-se. Está novamente diante da língua.
nação nasça». Sengamue floresce dentro da língua,
frequenta-a (sem que seja habitada, uma língua
morre), explora as suas inúmeras possibilidades,
enriquecendo-a e enriquecendo-se. Sorri, serena-
mente. Nunca leu Heidegger, mas está decidida a
penetrar no não percorrido, como se tivesse sido
tocada pela asa de Eros.
VI
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Camões . Vhils
Todas as palavras 1.
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Todas as palavras que hão de vir . Lídia Jorge
Para dizer quanto a amo, quanto ela me veste Os animais, porém, nenhum deles o tinha sido. En-
e me constrói, preciso de regressar ao tempo em tão peguei numa bacia de zinco, enchi-a de água e
que eu não sabia o que era uma língua, muito me- disse, diante do meu coelho: «Eu te batizo, coelhi-
nos o que seria isso, de outras línguas. A língua era nho branco, em nome do Pai, do Filho e do Espírito
um conceito ausente, apenas havia coisas e elas Santo». As palavras pareceram-me tão belas, que
tinham nome. Os melhores nomes pertenciam às as repeti muito alto, diante de cada animal. Cada
melhores coisas. Coisas como a água, o vento, a coelho, cada galinha, cada pinto, cada galo, os dois
comida, os animais, as flores, eram coisas boas, e cães, o porco, o burro e a mula. As cigarras estavam
por isso todas elas tinham bons nomes. Se me re- a cantar, eu não as via, mas sabia que se encontra-
cordo bem, a melhor de todas era a palavra chuva. vam escondidas nas folhas das amendoeiras. Es-
A terra era amarela, a vegetação, espinhosa, havia pargi o pé das árvores onde elas cantavam. Afinal,
seca, mas eu não estabelecia a relação entre secu- eu tinha esse poder.
ra e infertilidade, apenas sabia que era boa a chuva.
3.
2.
Sim, as minha palavras eram poderosas, eu es-
Lembro-me de surgiram no céu as nuvens es- tava sozinha no monte, podia gritar à vontade: «Eu
curas e de repente recolherem-se todos os uten- te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito
sílios espalhados pela rua, protegerem-se os ani- Santo». O meu poder era imenso, usava palavras e
mais e os haveres, esperar-se pela primeira bátega, com elas eu julgava que salvava do mal a Criação.
e depois ficar a ver a chuva cair diante da janela. Foi num dia de verão, a meio do século passado.
Lembro-me desse consolo magnífico que era ver os Nesse dia, comecei a escrever o meu primeiro livro.
cordões de água a cair. Lembro-me de dizer muitas Talvez todos os meus livros sejam isso, a convicção
vezes chuva. Enquanto chovia eu repetia-a. Lem- de que usando palavras socorro uma ideia, e vou
bro-me da alegria de poder repetir as palavras de ao encontro de gente que precisa de ser encon-
uma cançoneta que dizia alguma coisa assim: «To- trada. Mas na altura eu não precisava de saber que
mara eu que chova / Três dias sem parar». Lem- aquelas palavras pertenciam à minha língua mater-
bro-me de ouvir a família pedir que me calasse de na, não sabia o que isso era, nem mesmo quando
tantas vezes repetir essas palavras. É muito antiga percebia que os visitantes da praia falavam outras
a minha primeira lembrança de que a língua fazia línguas. Era belo escutá-los, no entanto eu já es-
parte do meu pão, porque repetia as palavras como tava munida do que precisava. Tudo aquilo que eu
se fosse um jogo. A minha mãe deixava-me no es- amava, afinal, já possuía um nome.
curo para me obrigar a dormir, depois vinha vigiar o Quando, mais tarde, aprendi outras línguas,
meu sono, mas regressava ao seu serão, e ouvia-a apercebi-me do encanto que era poder encontrar
dizer: «Ainda não dorme, está a repetir palavras». para cada coisa, ser e sentimento, outro tipo de pa-
No entanto, foi alguma coisa mais densa do lavras, outra música, outra correspondência entre o
que o simples gosto da repetição das palavras, real e a fala. Momentos houve em que desejei fa-
aquilo que me fez gostar de usar certas frases, fór- lar muitas línguas, talvez todas as línguas, ou uma
mulas reunidas. O padre disse: «Quando uma crian- linguagem que em si condensasse todas as por-
ça está para morrer, não a devemos deixar partir tas que cada língua abre para o entendimento do
sem a batizarmos. Tomamos um vaso de água, Universo. Pois não nego que muitas vezes a língua
abençoamo-la e espargimos por cima da criança, portuguesa parece não chegar, ou melhor, nenhuma
dizendo: «Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e língua sozinha é suficientemente poderosa para fa-
do Espírito Santo». Pareceu-me uma boa ideia. Em zer rodar a chave da decifração do mundo. É aí en-
casa, os seres humanos estavam todos batizados. tão que eu regresso à língua portuguesa, aquela em
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Todas as palavras que hão de vir . Lídia Jorge
que eu pronunciava a palavra chuva, para procurar caminho para o Brasil, e o caminho para a América.
entrar, por uma só fissura, para dentro do corpo de O espetáculo azul do Atlântico Norte, que passei a
todas as coisas e do seu espírito. O mundo é mais ver a partir do céu, encheu-me o coração por ser-
vasto do que ela, mas ela é o seu melhor vestido. E mos bichos da terra tão pequenos, e tão ousados,
então concluo que ela me basta. tão dados à morte em troco da aventura. Mas, ao
longo de décadas, também ouvi os herdeiros dos vi-
4. sitados, escutei as suas palavras, e apendi-as uma a
uma, silêncio, medo, ressentimento, ofensa, chibata,
Bastou-me, também, quando vi os tios e os estupro, laço, escravo, barco tumbeiro, tumba. Como
primos partirem, e as palavras carta-de-chamada, se a Humanidade estivesse condenada a não ser ca-
passaporte, embarque, paquete, salário, dólares, paz de fazer o Bem sem provocar o crime e erguer
começarem a traduzir a dispersão dos familiares uma estátua ao Mal. E pensei que a língua portugue-
por vários continentes, e eu percebi o que era emi- sa contém todas as palavras que significam memó-
gração. Mas iria precisar de muitos anos para com- ria. Que a memória deve manter todas as palavras
preender o significado áspero e ao mesmo tem- necessárias para relembrar a vitória e a tragédia, par
po grandioso dessa palavra dura que veio do grego, a par. Não se pode esquecer, com todas as palavras
diáspora. A mesma que se juntou às palavras salto, da língua portuguesa, o que a História viu fazer de
clandestinidade, passador, contrabando, contra- trágico. Também não se pode esquecer o que ela viu
to, libra, franco, marco. E ouvi palavras de retorno, fazer de mágico.
ternas deformações de outras palavras, mesons,
vacanças, retretes. E os outeiros portugueses en- 5.
cheram-se de casas que imitavam os telhados da
Renânia e da Alsácia. Voltavam altivos, emperti- Porque a língua portuguesa tem palavras como
gados, porque tinham comido o pão que o diabo passado e futuro, e tem todos os vocábulos neces-
amassou, mas vinham construir uma casa que fazia sários para se deslindar o que se fez do que se
estremecer o chão. Apetecia dizer-lhes, em pala- faz, distinguir o que antepassados fizeram no seu
vras portuguesas, muitas e muitas vezes, obrigado. tempo daquilo que hoje em dia somos capazes de
Os portugueses sabem-no. Mas os bancos, cuja lin- propor e de criar. Na minha língua, eu encontro to-
guagem é sobretudo mercenária, nunca lhes disse- das as palavras necessárias para dizer o perdão, o
ram o verdadeiro obrigado de quanto lhes deveram. diálogo, a cooperação e a paz. Espero que muitas
E, no entanto, se quisessem, disporiam de uma pa- das palavras portuguesas que vierem a ser criadas
lavra linda, gratidão. se inscrevam nesse campo semântico salvador. Es-
Também dispomos da palavra esforço, e al- pero que as crianças no futuro brinquem tão natu-
cance, e grandeza, quando imaginamos que durante ralmente com elas como eu brincava, na minha ter-
um século, os portugueses foram autores de uma ra amarela, quando percebia que do céu caía água.
revolução geográfica. Com os espanhóis, os por-
tugueses viram a Terra ficar redonda, juntaram os
continentes, mostraram os céus estrelados do ou-
tro lado do mundo. Tivemos palavras para tudo isso,
nau, caravela, barca, sextante, fome, escorbuto, vida
breve. Aprendi-as de uma outra forma, quando pela
primeira vez estive em África, e encontrei todas as
palavras portuguesas para reconstituir a passagem
pelo Cabo da Boa Esperança e as velas despedaça-
das sob as monções da Índia. Também reconstituí o
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Cada escritor inventa
a sua língua — Sete
histórias breves
sobre palavras
Bruno Vieira Amaral
1.
Camões salva os Lusíadas do naufrágio . José de Guimarães
Uma das minhas maiores humilhações públi-
cas (e poderíamos discutir se toda a humilhação é
pública ou se, por hipótese, haverá a categoria de
humilhação solitária ou sem testemunhas) acon-
teceu por causa de uma palavra que nem sequer
existia. Daí, de não existir e de ser proferida com
a arrogância de quem se servisse de uma palavra
milenar, veio a humilhação. Padrado era a palavra.
Foi numa aula na faculdade — recordo a configu-
ração da sala, a disposição das mesas, o lugar que
eu ocupava, a postura do professor — e eu queria
um substantivo coletivo que aviltasse o clero, o re-
duzisse a uma corja, a uma súcia, e, de improviso,
não me saiu melhor que padrado. O professor, que
há muito me tinha em ponto de mira, não perdoou:
«isso não existe. Se queremos ser irreverentes ao
menos que seja em bom português.»
Corrigido à vista de todos, comportei-me
como um animal acossado e defendi a minha pala-
vra. Resisti, o que só aumentou o gozo do professor.
Depois da aula, fui à biblioteca, procurá-la nos di-
cionários. Não estava lá, mas nem assim eu queria
admitir. Os colegas, com dó e vergonha alheia, re-
comendavam-me que depusesse as armas. Perdera
a batalha. Não. Impossível. E continuei à procura.
Ainda hoje, compulso dicionários na esperança de
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Cada escritor inventa a sua língua — Sete histórias breves sobre palavras . Bruno Vieira Amaral
encontrar um que me dê razão. Um que reconheça a mancham e empestam. Não se trata de mau gos-
a palavra que me humilhou. Padrado. to vs. bom gosto ou palavras poéticas vs. palavras
prosaicas (sublime ou manhã vs. alface ou sanita).
2. Todas as palavras têm o seu lugar. Todas menos
cheirete, a mais feia das palavras e que só quando
Recebi o meu primeiro dicionário aos 9 anos, escrita se torna verdadeiramente pestilenta.
meses antes de ir para a quarta classe. Não sei o
que é feito desse objeto que, a certa altura, perdeu 4.
a capa, mas lembro-me bem de uma palavra que lá
encontrei: ónagro. Palavra estranha hoje, ainda o era No meu primeiro romance, como é próprio
mais na altura. Nem bela, nem musical, a curiosida- dos novatos, arrisquei em certas passagens alguns
de infantil e o gosto pela experimentação levaram- neologismos, brincadeiras, piruetas infantis e vãs.
-me a arranjar maneira de a pôr num pequeno tex- Quando enviei o manuscrito a um escritor mais ve-
to. Nele, dizia que queria ser livre como um ónagro. lho e sábio, com muitos anos de ofício, ele riscou-
E esta palavra singular, que os dicionários garantem -as. Para quê um salto mortal se ficamos no mesmo
designar um «mamífero quadrúpede, selvagem, da sítio? Se a acrobacia não faz o livro avançar, nem
família dos equídeos, nativo das planícies desérti- na ação, nem no sentido, é inútil, é o equivalente à
cas asiáticas, cuja carne é comestível e cuja pele é ostentação e ao esbanjamento não de um rico, mas
utilizada na indústria do calçado», entrou no meu de um indigente. Apaguei a minha pobre invenção
léxico pessoal, adquiriu um significado preciso. retirando-lhe o prefixo e a palavra ficou lá, inteira,
Ónagro é mais do que um mamífero selvagem da sólida e sóbria: coveiro.
família dos equídeos, é a noite em que a descobri
num dicionário novo em folha à luz mortiça de um 5.
candeeiro velho. Pertence-me. Nunca vi um ónagro,
não o saberia identificar se o visse em desenhos ou As palavras não me trouxeram apenas vergonha
fotografias, mas já o pensei muitas vezes e sei que e desonra. Por vezes foram motivo de orgulho. Certa
existe porque o visitei em cativeiro, no dicionário vez, creio que no sexto ano, usei o verbo «incumbir»
onde ainda vive. num teste de português. Ao deparar-se com a pala-
vra, a professora, de uma exigência jesuítica, reagiu
3. com um misto de surpresa, incredulidade e mara-
vilhamento que ainda permanece comigo: a palavra
Cheirete. Muitas vezes ouvi esta palavra na in- é capaz de dobrar o espírito mais inflexível. «Onde
fância. «Um cheirete que não se pode» era o que a é que eu teria ido buscar aquele verbo?» era a per-
minha avó dizia. Até há pouco tempo, nunca a tinha gunta que o espanto da professora denunciava. Isso
lido. Cheirete era apenas um som, sem forma física. eu não queria dizer. Tinha lido a palavra numa da-
Já nem me lembrava da sua omnipresença atmos- quelas publicações apocalípticas das Testemunhas
férica. Até que há uns dias encontrei a palavra es- de Jeová. Porém, o que me impedia de o assumir
crita e pareceu-me horrível, muito pior do que qual- não era apenas a timidez de origem religiosa. Reco-
quer odor a que eu a tivesse associado. Soou-me nhecer que a tinha lido em algum lado e que tinha
mal à vista, por assim dizer. Cheirete era um som e feito questão de a usar, mesmo que corretamente e
um cheiro (ou vários). Não era uma palavra escrita. a propósito, tornava-me num traficante verbal, num
E vê-la assim, nas páginas de um livro, revelou-me contrabandista de vocábulos. Eu queria dizer à pro-
a sua fealdade intrínseca. Há palavras recuperadas fessora: «Fui eu que a inventei.» Ela diria: «Mas esta
do quotidiano, da fala comum, que, em página, ga- palavra existe mesmo.» E eu: «Não é maravilhoso?
nham dignidade. Outras há que sujam a página, que Inventarmos o que já existe?»
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7.
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Armindo Lopes
Nos rios do mar Em nossa casa, uma casa antiga cheia de vo-
zes, de livros e cujas paredes nos fitavam, remotos,
e da língua os olhos dos antepassados, eu, as minhas irmãs e
os meus irmãos só falávamos a língua portuguesa.
O português é, pois, a minha primeira língua e, até
Conceição Lima uma fase já avançada da adolescência, a única por
mim falada, estando na génese da minha relação
com as coisas, com o mundo circundante, entra-
nhada na construção da minha perceção e negocia-
ção da realidade, nas primeiras viagens pelos rios
da imaginação.
Entre a exclusividade da língua-padrão impos-
ta em casa e exercida na escola, com professoras e
professores exigentes na gramática e militantes de
redações, interpunham-se, através do convívio com
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Nos rios do mar e da língua . Conceição Lima
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Nos rios do mar e da língua . Conceição Lima
Neto e a Sagrada Esperança, Viriato da Cruz, José festivais da Póvoa de Varzim!…) e em espaços
Luandino Vieira («Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos», outros, gravados ficarão os registos de frutíferos,
em Luuanda), Alda Lara, António Jacinto. Banha- indeléveis convívios em torno da literatura e da
da pelo Índico, era a língua de José Craveirinha, língua comum.
(Karingana wa Karingana), de Noémia de Sousa, Língua oficial de São Tomé e Príncipe, língua do
de Luís Bernardo Honwana. De Jorge Barbosa, de poder, da máquina administrativa, língua do ensino,
Gabriel Mariano, de Ovídio Martins, de Onésimo língua literária, o português é o idioma que, com
Silveira, de Corsino Fortes, de João Vário. E de maior ou menor perícia, a maioria dos são-tomen-
Amílcar Cabral prenunciando um tempo outro, ses fala e/ou compreende, numa relação quotidiana
instando a mamãe velha a «ouvir comigo o bater de permanentes interferências mútuas entre a nor-
da chuva lá no seu portão». ma e a variante oral. Tal predomínio deve, contudo,
Mas não só. A autora de É Nosso o Solo Sa- ser muito bem escrutinado pelos decisores das po-
grado da Terra ofertou-nos também, numa lição de líticas do Ensino e da Cultura. A crónica falta do há-
irmandade criativa, linguística e de ideais, as vozes, bito de leitura, a rarefação de autores nacionais nos
entre outras, de José Gomes Ferreira, Sebastião programas de ensino, a inexistência de um sólido e
da Gama, Miguel Torga, Alves Redol. Soeiro Pereira consistente Plano Nacional de Leitura, a inexistên-
Gomes. Esteiros. António Gedeão. Máquina de Fogo. cia de uma única livraria, de bibliotecas atualizadas,
Jubiabá circulava, freneticamente, de mão reclamam respostas urgentes e eficazes.
em mão, com Jorge Amado abrindo caminho para Entretanto, num plano mais global, sinto que
encontros vindouros com Graciliano Ramos, João se faz sentir a necessidade de vínculos mais estrei-
Cabral de Melo Neto, Lima Barreto, Clarice Lispector. tos entre os vários países, mormente no que res-
Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo. peita à circulação do livro.
Ao longo dessa trajetória de aprendizagens, Na sua diversidade, nas suas múltiplas tonali-
de buscas e descobertas acompanhadas e solitá- dades, nas particularidades que a caracterizam nos
rias, de deslumbramento, de identificação do rigor diferentes espaços onde é falada, radica a riqueza
e da beleza da palavra criativa e poética, celebro, da língua portuguesa, património de todos aqueles
também para sempre, a figura de Sophia de Mello cujo imaginário e imaginação habita. Em várias lati-
Breyner Andresen, que me privilegiou com uma lon- tudes, em vários territórios, em vários continentes.
ga amizade e a leitura crítica dos meus poemas da Como um rio que se desdobra no percurso do seu
juventude. Benfazejas foram as asas de Luandino leito para desaguar num mar de sintonias e dife-
Vieira. O mestre amigo Urbano Tavares Rodrigues renças, obscuridades e transparências. Sínteses.
muito estimulou a minha aspiração de candidata a Dinâmicas construções. Partilhas. Abraços.
poetisa. Outro mestre inspirador, no King´s College,
foi Helder Macedo, que, anos mais tarde, haveria de
prefaciar o meu livro O País de Akendenguê.
Como jornalista ao serviço da BBC e de outros
órgãos de comunicação, tive o privilégio de entrevistar
referências patrimoniais da língua portuguesa
como José Saramago, Sophia de Mello Breyner
Andresen, José Craveirinha, José Luandino Vieira,
Mia Couto, Alda Espírito Santo, Pepetela, João
Vário, Corsino Fortes, Germano Almeida, Paulina
Chiziane, Eduardo White, Ungulani Ba Ka Khosa. Da
participação em certames em Angola, no Brasil, Cabo
Verde, Moçambique, Portugal (que lembranças dos
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Um privilégio
percecionado
no futuro
Orlando Piedade
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Um privilégio percecionado no futuro . Orlando Piedade
hesitei antes de o envolver com o meu braço di- Portanto, escusado será dizer que não eram
reito. Sensação mágica — era a primeira vez que prodígios na arte de lidar com a língua de Camões,
o abraçava daquela forma. Tinha acabado de des- mas isso não os amputou da capacidade de reco-
montar uma figura imponente e mítica. nhecer a sua importância para gente miúda que um
Ele aconchegou-se. dia haveria de almejar algo num futuro desconhecido.
Tinha afetos. O silêncio, entretanto, tornara-se um ele-
Sentia afetos. mento famoso entre nós. Prolongou-se no tempo,
O silêncio continuou e o meu braço continua- ganhou força e criou em mim algum desconforto.
va a esmagar o seu corpo, já frágil, contra o meu. «O que estará ele a pensar? Não terá achado piada
Uma questão intrigou-me durante anos. Que- à pergunta?»
ria ter tido a oportunidade de a colocar à minha avó, Levou o seu tempo, talvez estivesse a desem-
mas infelizmente quando comecei a ser carcomido baraçar-se das suas memórias antes de fazer o
por ela, a saudosa já não se encontrava entre nós. mesmo ao meu braço. Virou-se e fitou-me profun-
Venci mais uma hesitação e deixei escapar damente, um olhar tão profundo que senti o meu
a pergunta: «avô, ainda se lembra por que razão, cérebro a ser folheado.
quando nós éramos miúdos, a avó proibia-nos de Uma eternidade e depois redarguiu: «O crioulo
nos expressarmos em crioulo forro?». Indaguei, forro ainda não é uma língua importante além-fron-
desta feita em crioulo forro e remeti-me outra vez teira, vocês tinham tempo de sobra para a apren-
ao silêncio. der. Apreendiam, fruto da convivência, algumas pa-
Mais um momento inédito: fora a primeira e a lavras e isso bastava. O vosso futuro passava pelo
última vez, já na idade adulta, que me dirigira aos português, pela aprendizagem da língua portugue-
meus avós, neste caso avô, nesta língua. Obviamen- sa, portanto era importante que a interferência se
te que o meu léxico era rico e variado porque, entre limitasse ao mínimo indispensável.»
amigos e colegas, era comum nos expressarmos no Ao que eu resisti para conter as lágrimas, as
nosso crioulo. minhas emoções levaram-me a dar-lhe o abraço
Conjeturara, durante anos, infindas explica- mais sentido que podia dar. Abraçados e sem tro-
ções para a questão à qual procurara resposta por car uma única palavra, sentimos que aquele seria
entreposta pessoa. um abraço eternamente incompleto. «Talvez um dia
«Desprimor pelo crioulo forro?» nos encontremos, todos, para o completar», epilo-
«Hierarquia social?» gou e fechou-se no seu mundo de sempre.
«…?» Um mundo de poucas palavras.
Foram tão poucas as vezes em que vi os meus Um mundo de poucas emoções.
avós a expressarem-se na língua de Camões que Um mundo quase sem afeto.
quase dela não tenho memória. Eram pessoas hu- E eu?... Apercebi-me de que afinal de contas
mildes, do interior de São Tomé e Príncipe. Pou- tive uma infância privilegiada.
co mais sabiam do que escrever os seus próprios Sim, um privilégio! O de ter sido criado pelos
nomes, a leitura era monocórdica, arrastada, atro- meus avós que, repito, mesmo não sendo eles pro-
peladora e limitava-se ao essencial. O campo lexi- dígios na arte de dominar a língua de Camões e de-
cal era balizado e estendia-se da terra à mesa para sesperarem por mais braços para garantir o parco
consolidar a sobrevivência, por isso bradavam por sustento, tiveram a capacidade de perceber quão
braços unidos em torno do sustento, mas isso não importante esta era para o futuro dos filhos e netos.
os impediu, mesmo nos confins do obô, de matri-
cular os seus filhos e netos nas escolas públicas
para que aprendessem a ler e escrever, para que
viessem a saber um pouco mais do que eles.
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Mãe educadora . Bosco
1 . Professor Convidado da Universidade Nacional Timor Loro- 2. Refere-se exatamente a produção de um eu pela «rela-
sa’e. ção biológica».
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Uma experiência de conhecer escritores e poetas portugueses de renome . Vicente Paulino
Estive em Gouveia, terra montanhosa e rochosa É nesta cidade que trabalhei na Terra Preservada
Vila dos Túrdulos, antepassados dos gouveenses de agora como distribuidor dos produtos biológicos.
Tribo celta dos lusitanos conhecidos pela sepultura memorizada Nome da cooperativa que me acolheu no seu ofício
Romanos também cruzaram nessa vila com troços de calçada O meu ser agricultor permaneceu vivo
Em contactos com alguns agricultores de freguesias dispersas.
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Uma experiência de conhecer escritores e poetas portugueses de renome . Vicente Paulino
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Uma experiência de conhecer escritores e poetas portugueses de renome . Vicente Paulino
baseia em evidências várias, desde a filosofia, Lembro-me agora o nome Miguel Torga, que
gramática até a retórica.4 falava de uma «criação do mundo», não sei se fala-
Conheci o grande poeta Luís de Camões numa va de Géneses, mas quando li esse tal livro, come-
das aulas de português, se não em engano, no cei a perceber que a criação do mundo estava nou-
xi ano do ensino técnico no Instituto de Gouveia. tra perspetiva. Pois, compreendi que Miguel Torga
É o grande autor de Os Lusíadas, que pertenceu do falava de uma lenda, claro que de uma lenda quase
período dos clássicos portugueses. A poesia lírica esquecida nos tempos de agora, era o seu modo de
de Luís de Camões está na dimensão poética tradi- reviver a história da criação do mundo, com simples
cional e no estilo renascentista. A produção poética descrição inicial, ementa sobre a lição de vida ini-
de Luís de Camões foi rica e variada, quando se tra- ciada na escola.
ta o trovador romântico e sentimento epopeico de Lembro-me agora que aprendi o Barroco na
seu tempo, passados no bordo a viajar nos mares escola secundária vocacional em Gouveia, que era
adentro em busca das estranhas cores cheias de tão difícil de o compreender, mas pela explicação
olhares brilhantes, que alguma vez vistas, na pas- de uma professora de cor clara suave, de cabelo
sagem do Cabo da Boa Esperança até a passagem loiro ondulante, entendi alguma coisa, por exem-
dos rios asiáticos. plo, o século xvii foi o início da entrada do Bar-
roco em Portugal, pelo que alguns estudiosos o
Que polo mundo todo faça espanto classificaram como século de decadência literária.
De exercícios e feitos singulares, Sendo assim, a sua existência foi assegurada pelos
De África as terras e do Oriente os mares5 escritos do Padre Manuel Bernardes, do Francisco
Rodrigues Lobo e do Padre António Vieira. Este úl-
Como é óbvio, viajar nas memórias de Luís de timo é conhecido pelas suas obras de profecia, fa-
Camões significa procurar perceber a sua experiên- zendo previsões esperançosas sobre o futuro de
cia marítima que martiriza o seu início de viagem Portugal com uma interpretação da Bíblia, assim
e o fim de seu regresso traumatizante, conhecido que se formula o destino de sua pátria nas épocas
por milagre dos santos, que deixou Luís de Camões perturbadas; sendo assim, o mais famoso é seus
a segurar Os Lusíadas com uma mão, e outra mão «sermões», um tipo de discurso religioso que anti-
fez possível salvação ameaçada pelas correntes da gamente foi feito no púlpito6. Padre António Vieira
água do rio Mecom. Camões salvou o seu escrito Os falava, em sua época, sobre aquilo ele conhecia e
Lusíadas, foi uma heroicidade de sua parte como via pelos próprios olhos, transformando-o em ser-
fiel servidor do império português, que fez brilhar mões, seja social ou religioso, dependendo a cada
o nome do rei de Portugal nas terras visitadas com situação que se representava. E isso encontra-
artes lusitanas de outra aurora. -se fundamentalmente nos seus sermões como o
mais famoso e conhecido Sermão de S. António e
Sermão de S. Pedro Nolasco; e mais ligada à ação
4 . Vide a obra completa de Gil Vicente, publicada por feminina foi o Sermão da Rainha Santa Isabel e o
ele mesmo em 1562, sob o título Copilaçam de todalas Sermão da Nossa Senhora da Graça7.
obras de Gil Vicente, que está disponibilizada digitalmente Conheci a vida e a obra de Almeida Garrett pe-
pela Biblioteca Nacional de Lisboa — http://purl.pt/11494 las lições dadas pela professora, na aula de portu-
(acesso a 10/11/2018). Vide também Augusto Martins guês. Este Garrett foi identificado como precursor
Ferreira do Amaral. 1976. Barretos e Outros Contendo
subsídios para a genealogia descendente de Gil Vicente.
Lisboa: Edições do Autor. 6. Vieira, Padre António. 2010. Sermões — II. Lisboa: Centro
5 . Camões, Luís de. 2000. Os Lusíadas. Lisboa: Instituto de Estudos Filosofia — Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Camões. Canto I.15.6-8. 7. Ibidem, Vieira, 2010, pp. 371-372.
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Uma experiência de conhecer escritores e poetas portugueses de renome . Vicente Paulino
do romantismo e grande impulsionador do teatro literatura portuguesa, porque eles também contri-
em Portugal, seguido por Alexandre Herculano e buíram bastante na construção de um estilo literário
Rebelo da Silva. que marca a identidade lusitana no mundo.
Não é justo se não mencionar também aqui Viajar nas terras dos escritores e poetas de
outros conhecidos renomes, como Eça de Queirós, tempos antes de mim significa procurar conhecer a
Ramalho Ortigão e Camilo Castelo Branco, que se mensagem de Fernando Pessoa ao Quinto Império,
mergulharam na produção de romances, fazendo onde se fala da tragédia de D. Sebastião. Fernando
sair ao público a vida e atividades dos portugueses Pessoa, conhecido pelos seus pseudónimos, como
de época do século xix. As suas produções literárias Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e etc., estava clas-
eram voltadas ao realismo de feição naturalista. sificado nas «tendências literárias» do século xx,
Eça de Queirós é conhecido pelas suas obras: e ele foi considerado como grande poeta a par de
Os Maias, O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio Luís de Camões.
e de outras obras que retrataram a vida — relação
Finalmente, confesso que quando conheço
familiar, relação social, amores, ódios — da socie-
as obras dos grandes ilustres portugueses —
dade portuguesa de épocas do século xix. Algumas
conhecidos pela maravilha escrita, pela sua
obras dessas já são introduzidas nos manuais de
bondade, pela sua crença e pelo seu humanismo
Português, como principal matéria para conduzir os
— sinto-me que estou a comunicar com eles
alunos a conhecerem a forma como se escreve em
— especificamente, Os Lusíadas, de Camões,
português, ou, gramatical geral da realidade, como
Mensagem, de Fernando Pessoa, Amor de Perdição,
moral da sociedade de época.
de Camilo Castelo Branco, Aparição, de Vergílio
Camilo Castelo Branco é conhecido como um
Ferreira, Os Maias, de Eça de Queirós, e Viagens na
dos mais prolíferos e marcantes da literatura por-
Minha Terra, de
tuguesa de sua era. Camilo Castelo Branco entrou
Almeida Garrett —, assim que capto algumas
na ordem dos grandes por algumas famosas obras
coisas nessa leitura, sinto-me que valeu a pena
suas, como Livro de Consolação (1872), Lágrimas
aprender a conhecer os escritores e os poetas
Abençoadas (1857), Mistério de Lisboa (1854), Amor
portugueses nas lições de português recebidas
de Salvação (1864) e entre estas, mais considerada
no Instituto de Gouveia em Portugal. Agora, estou
como magnum opus é o Amor de Perdição (1862).
a ficar vontade de ler mais as obras clássicas dos
Camilo Castelo Branco, nessas suas obras, procu-
portugueses renomes que algumas sonharam ser
rou descodificar o estilo de vida dos portugueses
grandes no mundo.
de então, entrando em confronto com a sociedade
que naquela altura ainda preserva moralmente o
seu «conservadorismo». As suas obras diversas são
predominantemente românticas, e o seu percurso
literário foi influenciado pelo épico Os Lusíadas, de
Camões, e pelo lírico de Sá de Miranda, que o le-
vou a escrever sobre eles, como forma de louvar os
dois épicos mais marcantes na história da literatura
portuguesa. Foi influenciado também por Almeida
Garrett, sobretudo, a sua fidelidade ao uso de lin-
guagem e dos costumes populares.
Não posso deixar de considerar também outros
nomes, como Alexandre Herculano, Bocage, Vergílio
Ferreira, José Saramago (Prémio Nobel da Literatu-
ra), Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner, na
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O menino a fazer os TPC . Rui Menezes
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Horizontes de comunicação . Jonato Xavier
letras de sonhos eram tomadas pela força das on- as línguas timorenses utilizam. Não têm cariz eti-
das do mar. mológico e poucas vezes as palavras têm género
Ao contrário do que esperava, o horizonte fu- definido; por isso, quando é preciso esclarecer o gé-
giu-lhe subitamente e os seus sonhos escritos na nero, o mais normal é juntar-se outra palavra: inan
areia foram abalados com a violenta invasão da In- (fêmea)/aman (macho), no tétum, por exemplo.
donésia. Durante mais de duas décadas, ouviam-se Noutro ponto da conversa sobre dificuldades
tiroteios em cada canto. Mas os sonhos do meu pai da língua portuguesa, alguém questionou com mal-
continuavam vivos. Multiplicaram-se em palitos e dade se o discurso dum deputado era correto: «Eu
pedras e sussurros, como códigos contra o invasor. querer saber quando é que Sr. Ministro responder o
O sonho partilhado de vencer o invasor estava tão meu questão...». Tinha passado no telejornal portu-
espalhado que o horizonte voltou a engrandecer-se guês da televisão nacional, que muitos timorenses
e o engrandeceu na vitória quase unânime do refe- veem para aprender português. Havia um sentimen-
rendo. O sonho ultrapassou o horizonte dos senho- to de vergonha, como se o erro fosse cometido por
res dos tiroteios. ele. Mas essa vergonha deveria ser sentida não só
O meu pai nunca deixou de sonhar, na sua lín- por quem comete aqueles erros, mas também por
gua de sonhos, uma das várias dezenas de diale- aqueles que têm obrigação de investir mais no por-
tos locais, línguas maternas da nossa pequena ilha tuguês. Esta consciência de mau domínio de uma
timorense. Adotou com facilidade o tétum oficial. língua — que foi escolhida pelos nossos heróis da
Mas sabe que a outra língua oficial, o português, Resistência como forma distintiva e de união inter-
tem potencial para puxar o horizonte dos sonhos na — é responsável por tantas pessoas evitarem ar-
para novas fronteiras. riscar fazer as suas exposições em português. «Fala
Na ilha, fui levado pelos sonhos do meu pai. bem, fala mal, mas fala», dizia um sábio katuas.
Apoiou-me e, como forma de retribuição, conto-lhe Porque é errando que se aprende. E é apoiando que
agora o horizonte da lusofonia. se obtém melhores resultados...
Inscreveram-se vários sonhadores no progra- É algo tremendo o esforço de aprender por-
ma «oficina de escrita». Vieram de todos os mu- tuguês de pessoas como estas da «oficina de es-
nicípios do país. Um deles despregou-se da sua crita». É preciso pensar numa política muito mais
timidez e, armado de autoconfiança, pediu para fa- robusta para garantir a real implantação da língua
larem sobre o masculino e o feminino de nomes de portuguesa em Timor-Leste, para ela conseguir
animais. Os lábios secos tremiam-lhe do esforço. ocupar um campo mais abrangente. Para que não
Saiu da sua língua materna, ingressou no tétum ofi- se verifiquem mais hesitações como as do rapaz
cial e emergiu dali a fazer a ponte para o portu- que interveio na aula. Para que outros senhores
guês: essa é a ginástica mental que fazem milhares deputados tomem a palavra em português e com
de aprendizes de português em Timor-Leste para cada vez menos erros. Não basta o português ter
expressar-se. o seu espaço restringido às reuniões solenes, aos
A primeira palavra que a professora deu foi por- documentos oficiais, a um número contado num
co. Desafiou os presentes a dizerem o feminino da punhado de «programas» do único canal a que to-
palavra. Responderam todos entusiasmados: por- dos podem recorrer. A força de vontade da pessoa
ca. De seguida, galo. Fácil, todos disseram galinha. que assistiu ao telejornal em português deve ser
Para complicar, veio cão; o espaço perdeu o ânimo apoiada com outros programas. E nas rádios e em
que tivera anteriormente, até que, por fim, uma voz festas e em concursos… no quotidiano.
acertou — cadela! Quando perguntou o feminino de Aos timorenses não falta garra e determina-
crocodilo, várias vozes se sobrepuseram, querendo ção, pois sabem que a única forma de voarem nas
fazer valer a sua solução: crocodila. Poderiam até asas dos seus sonhos de comunicar com outras
ter dito crocodilo fêmea, que também é aquilo que culturas é a língua em que se expressam.
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Horizontes de comunicação . Jonato Xavier
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Biografias Luaia Gomes Pereira
Nasceu a 9 de julho de 1992, na cidade do
Huambo, Angola. Cresceu e residiu em Luanda até
ao final da adolescência.
Em 2015 escreveu e lançou a sua primeira obra
literária, intitulada Todos Nós Fomos Distante, em
Pepetela Portugal e em Angola.
Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos nas- Licenciou-se em Arquitetura e Tecnologia pela
ceu em Benguela, Angola, em 1941, onde estudou o Universidade Metropolitana de Cardiff, no Reino
Ensino Primário e Secundário. Partiu para frequen- Unido, e terminou o mestrado internacional em
tar a Universidade em Lisboa, em 1958. Por razões Arquitetura na Universidade Católica de Lovaina, na
políticas, em 1962 saiu de Portugal para Paris, tendo Bélgica, em 2020.
passado seis meses depois para a Argélia, onde se Foi colaboradora da revista Jovens da Ban-
licenciou em Sociologia e trabalhou na represen- da até 2014. Trabalhou como arquiteta júnior em
tação do MPLA (Movimento Popular de Libertação Angola entre 2016-2017 e exerce atualmente como
de Angola) e no Centro de Estudos Angolanos, que arquiteta na Bélgica.
ajudou a criar.
Em 1969 foi chamado para participar direta-
mente na luta de libertação angolana, em Cabinda, Milton Hatoum
tendo então adotado o nome de guerra de Pepe- Nasceu em Manaus (1952). Formou-se em ar-
tela, que mais tarde viria a utilizar como pseudó- quitetura na USP. Foi professor na Universidade do
nimo literário. Em Cabinda foi simultaneamente Amazonas e professor visitante na Sorbonne (Paris
guerrilheiro e responsável no sector da educação. 3) e na Universidade da Califórnia (Berkeley). Foi
Em 1972 foi transferido para a Frente Leste de An- escritor residente nas universidades Yale, Stanford
gola, onde desempenhou a mesma atividade até ao e Berkeley. Estreou na ficção com Relato de um
acordo de paz de 1974 com o governo português. Certo Oriente (1989/prêmio Jabuti — melhor ro-
Em novembro de 1974 integrou a primeira de- mance). Seu segundo romance, Dois Irmãos (2000),
legação do MPLA, que se fixou em Luanda, desem- foi adaptado para televisão, teatro e quadrinhos. O
penhando os cargos de Diretor do Departamento de romance Cinzas do Norte (2005) ganhou os prê-
Educação e Cultura e do Departamento de Orien- mios Portugal Telecom, Jabuti (melhor romance),
tação Política, até agosto de 1975. Até à data da in- Livro do Ano, Bravo! e o Grande Prêmio da Críti-
dependência, foi membro do Estado Maior da Fren- ca (APCA). Em 2006, publicou o livro de contos
te Centro das FAPLA. No mesmo ano participou na A Cidade Ilhada. Sua primeira novela, Órfãos do
fundação da União de Escritores Angolanos. Eldorado (2008/Prêmio Jabuti, 2.º lugar), foi adap-
De 1976 a 1982 foi vice-ministro da Educação, tada para o cinema. Em 2013, lançou Um Solitário
passando posteriormente a lecionar Sociologia na à Espreita (crônicas). Em 2017, publicou A Noite da
Universidade Agostinho Neto, em Luanda, até 2008. Espera (Prêmio Juca Pato/Intelectual do Ano —
Desde a fundação, desempenhou cargos diretivos União Brasileira de Escritores), primeiro volume da
na União de Escritores Angolanos e foi Presidente trilogia O Lugar Mais Sombrio. O segundo volume,
da Assembleia Geral da Associação Cultural «Chá de Pontos de Fuga, foi lançado em 2019. Sua obra de
Caxinde». Também foi Presidente da AG da Socieda- ficção, publicada em quinze países, recebeu em
de de Sociólogos Angolanos. Em 2016 foi eleito Pre- 2018 o Prêmio Roger Caillois (Maison de l’Améri-
sidente da Mesa da Assembleia Geral da Academia que, Latine/Pen Club-França).
Angolana de Letras, de que é membro-fundador.
Desde muito novo quis ser escritor.
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Biografias
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Biografias
Maria Odete da Costa Soares Semedo1 (2012), projeto que deu origem ao Recados de Paz,
Doutora em Letras (Literaturas de Língua evento que teve lugar no IPJ de Moscavide e no
Portuguesa), pela PUCMINAS — Brasil. Investigadora Centro Cultural Malaposta.
Sénior Permanente do Instituto Nacional de Estu-
dos e Pesquisa (INEP), professora da Universidade
Amílcar Cabral (UAC) de Bissau. É escritora com Mia Couto
obras e artigos publicados no país e no estrangeiro; Nasceu em 1955 na cidade da Beira, província
é membro da Associação Internacional de Estudos de Sofala. Viveu nessa cidade até aos 17 anos, altu-
Africanos (AFROLIC, Brasil) e membro da Associa- ra em que foi para Lourenço Marques para estudar
ção Internacional de Ciências Sociais e Humanas Medicina. Interrompeu o curso para iniciar uma car-
em Língua Portuguesa (AILP-CSH); membro do reira jornalística que se prolongou até 1985.
Conselho Consultivo da Coleção Estudos Africanos Por sua iniciativa regressou à Universidade para
do Centro de Estudos Africanos da UFMG (CEA/ estudar Biologia, tendo terminado o curso em 1989.
UFMG). É membro do Conselho Consultivo e de Até à data trabalha como biólogo em Moçambique.
Avaliação Externa do Doutoramento em Patrimó- Publicou mais de 30 livros que estão tradu-
nios de Influência Portuguesa e também investiga- zidos e editados em 30 diferentes países. Os seus
dora associada do Centro de Estudos Sociais (CES) livros cobrem diversos géneros desde o romance à
da Universidade de Coimbra. É membro fundador poesia, desde os contos ao livro infantil. Recebeu
da Associação de Escritores Guineenses (AEGUI) e dezenas de prémios na sua carreira, incluindo —
membro da PEN CLUB da Guiné-Bissau. Coordena- por duas vezes — o Prémio Nacional de Literatura,
dora da coleção literária «Kebur», II, e da série Palavras o prémio Camões e o prémio Neustad, considerado
de Mulher, estudo biográfico de mulheres guineen- o prémio Nobel norte-americano. No ano de 2016
ses, desempenhou as funções de Ministra da Educa- foi finalista de um dos mais prestigiados galardões
ção Nacional, de Presidente da Comissão Nacional da internacionais, o Man Booker Price. O seu roman-
UNESCO — Guiné-Bissau e de Reitora da Universida- ce Terra Sonâmbula foi considerado por um júri
de Amílcar Cabral (UAC). É deputada na Nação, elei- internacional reunido no Zimbabwe como um dos
ta na lista do PAIGC, para a X Legislatura, 2019/2023. 10 melhores livros africanos do século xx. É mem-
bro da Academia Brasileira de Letras. No ano de
2020, com a trilogia As Areias do Imperador, ganhou
Rita Fernandes Gomes Ié internacionalmente o prestigiado Prémio de Lite-
Nasceu a 3 de junho de 1985 na Guiné-Bis- ratura Jan Michalski. Em janeiro de 2021, também
sau. Aos 3 anos emigrou com os pais para Portugal, com a trilogia As Areias do Imperador, foi galardoa-
onde realizou todo o seu percurso escolar. É licen- do em França com o Prémio Albert Bernard.
ciada em Sociologia e Planeamento pelo ISCTE-IUL. É casado com a médica Patrícia Silva e tem
A nível literário integra o projeto Recados de três filhos, todos eles vivendo e trabalhando em
paz — Antologia poética para a Paz na Guiné-Bis- Maputo.
sau, e também o segundo volume de Traços no
Tempo II, a antologia poética da nova geração de
poetas e poetisas guineenses. Mbate Pedro
Participou em várias atividades culturais e li- Nasceu em Maputo. Já foi galardoado com o
terárias, tais como os saraus organizados no âmbito Prémio BCI da Literatura. Foi finalista do Prémio de
do projeto Um poema para a paz na Guiné-Bissau Literatura Glória de Sant’Anna e do Prémio Ocea-
nos. É autor, entre várias outras obras, de Minarete
de Medos e Outros Poemas, Debaixo do Silêncio que
1 . Assino nas minhas publicações Odete Costa Semedo. Arde e Vácuos.
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Orlando da Glória Silva Piedade (Díli, 2018), Olhares sobre as narrativas de origem
Nasceu em São Tomé, em 1974. Mestre em em Timor-Leste (Brasil, Díli, 2020), incluindo a pu-
Engenharia Informática pelo ISCTE — Instituto blicação de vários artigos em capítulos de livros e
Universitário de Lisboa e licenciado em Informática revistas de arbitragem científica.
de Gestão pela Universidade Lusófona de Huma-
nidades e Tecnologias. Desenvolve a sua atividade
profissional nos Sistemas de Informação na AXA Jonato Lucio Xavier
Partners — Portugal, empresa do grupo AXA. Nasceu em Lospalos, Timor-Leste, no dia 26
Publicou em 2011 o artigo «Implementação do de julho de 1996. Desde cedo, adquiriu gosto e in-
Balanced Scorecard numa Companhia de Seguros teresse pela leitura. José Saramago é o seu escritor
de Assistência» na 6.ª Conferência Ibérica de Siste- de eleição. Em 2010, com 13 anos de idade, foi elei-
mas e Tecnologias de Informação. to membro-delegado, pelo Ministério da Educação
É autor da obra O Amor Proibido, um romance timorense, para participar na Conferência Interna-
baseado na história da colonização em São Tomé cional Infanto-Juvenil, no quadro da CPLP, realizada
e Príncipe, publicado pela editora Colibri, em 2011. em Brasília e subordinada ao tema «Vamos cuidar
É ainda autor da obra Os Meninos Judeus Des- do planeta». Entre 2015 e 2016 estudou Medicina na
terrados — prémio literário Francisco José Tenreiro Universidade Nacional Timor Lorosae. Contudo, de-
2015, um romance publicado em dezembro de 2014 cidiu seguir o seu sonho pela área jurídica e mudou
pela mesma editora, onde aborda a história de cer- de curso, encontrando-se, atualmente, a frequen-
ca de duas mil crianças judias enviadas, em 1493, tar o curso de Direito na Faculdade de Direito da
para povoar as ilhas de São Tomé e Príncipe. Publi- Universidade do Porto, Portugal.
cou o seu último livro em 2018, tal como os ante- Em 2016, ganhou o concurso de Escrita em Lín-
riores, um romance baseado em factos históricos, gua Portuguesa organizado pela Fundação Oriente.
desta feita sobre a vida dos africanos na capital do É autor do conto Mausoko e o seu Valente Galo.
império colonial português, após a abolição da es-
cravatura, pelo Marquês de Pombal, em 1773.
Vicente Paulino
Nascido em Holsa-Maliana no dia 1 de oubu-
tro de 1978. É licenciado e mestre em Ciências da
Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Douto-
rado em Estudos de Literatura e Cultura/especiali-
dade em Cultura e Comunicação pela Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Professor con-
vidado no Programa de Pós-graduação e Pesquisa
da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL) e
diretor do CECA — Centro de Estudos de Cultu-
ra e Artes da Universidade Nacional Timor Lorosa’e.
É autor e coautor de alguns livros — Representa-
ção Identitária em Timor-Leste: Culturas e os Media
(Porto, 2019), Tradições Orais de Timor-Leste (Belo
Horizonte, Díli, 2016), O que é sociologia (Lisboa,
2016), Leituras do Mundo e da Natureza — Poemas
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Ficha técnica
Todas as palavras que hão de vir
Organização
Camões, I. P.
Autores
Bruno Viera Amaral, Conceição Lima,
Eileen Almeida Barbosa, Germano Almeida,
Jonato Xavier, Lídia Jorge, Luaia Gomes Pereira,
Mbate Pedro, Mia Couto, Milton Hatoum,
Odete Costa Semedo, Orlando Piedade, Pepetela,
Rita Ié, Socorro Acioli, Vicente Paulino
Coordenação editorial
Paula Mendes
Susana Toureiro
Edição www.instituto-camoes.pt
Camões, I. P. www.facebook.com/camoes.ip
Imprensa Nacional-Casa da Moeda geral@camoes.mne.pt
Direitos
Camões, I. P.
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Revisão www.facebook.com/ImprensaNacional
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