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CAPÍTULO II.

PRINCIPIOLOGIA DOS DIREITOS REAIS

1. INTRODUÇÃO

Hodiernamente, uma nova visão jurídica se impõe, o ensino jurídico tem


investido, cada vez mais, em uma concepção principiológica, com o
reconhecimento da força normativa dos princípios, ultrapassando a visão
tradicional que os remetia a uma função informativa do legislador ou meramente
interpretadora na ausência de preceitos legais.

Assim, o estudo dos princípios demonstra-se deveras importante para


todos os seguimentos do direito, inclusive para o Direito das Coisas.

2. Função Social

Decorrência da elevação constitucional da função social da propriedade


(art. 5º, XXII e XXIII), um novo paradigma de funcionalização de todos os direitos
reais e da própria posse foi consagrado em nosso sistema.

Mas no que consiste a função social dos direitos reais?

Bem, todo exercício de um direito real (em verdade, de qualquer direito)


não poderá descurar da preocupação com os reflexos potenciais para a
sociedade. Todavia, a função social de um instituto jurídico somente pode ser
compreendida a partir da relação com a sociedade e o meio em que está
inserida.

Quando alguém se torna proprietário ou possuidor de uma joia ou de um


terreno, este fato, por si só, não permite visualizar a função social. Contudo,
quando se discute o respaldo da tributação correspondente ou a possibilidade
de desapropriação de tal bem, a função social salta aos olhos como a
fundamentação mais adequada para a atuação no caso concreto.

Historicamente, atribui-se a Leon Duguit a maior influência e inspiração da


produção doutrinária e legislativa brasileira acerca da teoria da função social da
propriedade. Sua concepção de que os direitos somente se justificam pela
missão social para a qual devem contribuir, devendo o proprietário se comportar
e ser considerado, em relação a seus bens, como alguém que realiza uma
função, é fundamental para a compreensão do tema. Nessa linha, confira-se a
doutrina de ORLANDO GOMES:

“A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do


indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da
riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para
todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la
para o crescimento da riqueza social e para a
interdependência social. Só o proprietário pode executar
uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza
geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de
modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um
direito em contínua mudança que se deve modelar sobre
as necessidades sociais às quais deve responder” 1

Assim, temos que a funcionalização da propriedade traz conformação e


limites ao seu exercício, uma vez que a expressão “função” se sobrepõe à
tradicional ideia de estrutura com que se vislumbravam normalmente os
institutos jurídicos.

Assim, socializando-se a propriedade, tornou-se inevitável que outros


importantes e matriciais institutos jurídicos experimentassem, em maior ou
menor escala, o mesmo fenômeno, ainda que o reconhecimento legal dessa
alteração no seu trato ideológico não houvesse se dado de forma imediata.

Vê-se isso já de forma expressa na posse e no contrato, mas não se pode


desprezar uma função social da empresa, da família, da responsabilidade civil;
e, por certo, de todos os direitos reais!

3. Tipicidade

Uma outra característica marcante dos direitos reais é a sua tipicidade. A


ideia fundamental é a de que somente podem existir direitos reais se decorrentes

1
DUGUIT, Léon apud GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. Atualizada por Luiz Edson
Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 126.
de previsão legal correspondente. Ou seja, há uma reserva legal, que não admite
flexibilização pela autonomia da vontade, para a criação de direitos reais.

Essa característica merece ser levada a princípio, pois é uma ideia


estruturante de todo o sistema brasileiro de direitos reais. Uma exceção a essa
ideia subverteria o sistema, retirando muito da segurança e estabilidade que se
pretende ter nesse campo.

Um equívoco comum é considerar que o art. 1.225 do Código Civil é


numerus clausus, taxativo, ou seja, esgota todos os diretos reais.
Definitivamente, isso é um erro!

Para que haja um direito real, é preciso que ele seja previsto em lei, não
necessariamente no Código Civil. Em síntese, os direitos reais são típicos, pois
derivam da lei, mas não se pode dizer que o rol do art. 1.225 é taxativo,
esgotando todos os direitos reais, pois poderá haver outros previstos em normas
legais diversas do nosso ordenamento.

4. Publicidade

Um dos mais importantes princípios dos direitos reais, na nossa visão, é o


da publicidade. Com efeito, não se admite, por princípio, a constituição de um
direito real secreto ou sigiloso, não havendo espaço para seu estabelecimento
apenas inter partes, devendo existir, sempre, para segurança do próprio sistema,
a publicização das relações jurídicas reais.

Os direitos reais sobre imóveis são adquiridos, primordialmente, por meio


do registro (art. 1.227, CC/2002), enquanto os direitos reais sobre móveis
aperfeiçoam-se, em geral, com a tradição (art. 1.226 e 1.267, CC/2002). Registro
e tradição funcionam, portanto, como vias para a visibilidade da titularidade dos
direitos reais.

De fato, a característica da sequela, entendida como o poder ou a


prerrogativa de alguém perseguir um bem onde quer que ele se encontre,
independentemente de quem o detenha, somente pode ser viabilizada por força
da publicidade que os direitos reais possuem.
Como seria exigir a devolução de um bem se ninguém conhecesse que o
reivindicante era o proprietário?

Da mesma forma, do outro lado da moeda, temos a aderência (ou


inerência), que se refere ao vínculo entre o sujeito e a coisa, não dependendo
da participação de qualquer outro sujeito para existir.

Observe-se que não faria qualquer sentido falar de vinculação entre um


sujeito e uma coisa, de respeito obrigatório, se tal vínculo fosse secreto.

5. Vedação ao abuso de direito

Se é certo que o Código Civil de 2002 positivou, em seu art. 187, o abuso
de direito como ato ilícito, o fato é que, tradicionalmente, era no campo dos
direitos reais que se tratava mais amiúde dessa matéria.

Com efeito, a teoria do abuso do direito deve sempre homenagear os


direitos reais. Em excelente dissertação de mestrado sobre “o abuso de direito”,
DANIELA TAVARES ROSA MARCACINI, ao tratar dos precedentes judiciais
emblemáticos do abuso de direito no mundo ocidental, aponta:

Também são claros exemplos de abuso de direito os


famosos casos julgados pela Corte de Colmar (datado de
1855) e o de Compaña, que ficou conhecido como caso
“Clement-Bayard” (datado de 1913).

No caso de Colmar havia uma falsa chaminé muito alta


construída pelo proprietário sem qualquer utilidade, cujo
objetivo era simplesmente fazer sombra à casa do vizinho;
este recorreu à justiça para cessar o prejuízo invocando o
abuso de direito e o tribunal decidiu que embora o
proprietário tivesse o direito absoluto de usar e abusar da
coisa, o exercício deste direito, entretanto, como de
qualquer outro, deveria ter como limite a satisfação de um
interesse sério e legítimo.

No caso Clement-Bayard havia um proprietário rural,


vizinho de um hangar onde um fabricante de dirigíveis
guardava seus aparelhos, que decidiu construir grandes
armaduras de madeira, elevadas como sua casa, e hastes
de ferro, a fim de dificultar o acesso aos dirigíveis.

É, de fato, no exercício do direito de propriedade que se visualiza com mais


frequência a questão do abuso do direito.

Nesse ponto uma importante reflexão deve ser feita. O § 2.º do art. 1.228
trata, especificamente, do abuso do direito de propriedade, vedando os
denominados atos emulativos: “são defesos os atos que não trazem ao
proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção
de prejudicar outrem”.

Ao cotejarmos esta norma (art. 1.228, § 2.º) com a cláusula geral do abuso
de direito constante no art. 187, concluímos haver uma diferença marcante entre
elas: enquanto a primeira consagra uma ilicitude subjetiva, ao exigir o dolo
específico para a configuração do abuso da propriedade (“intenção de prejudicar
outrem”), a segunda adota uma ilicitude objetiva, ao definir o abuso como um
desvirtuamento finalístico do direito, independentemente da intenção do sujeito,
eis que não menciona os elementos dolo ou culpa.

Figure-se o seguinte exemplo.

Seu vizinho, todas as noites, costuma assistir a filmes de guerra, em


altíssimo volume. As “sessões privadas de cinema” costumam avançar na
madrugada. Após tentar solução amigável, em vão, você ingressa no Juizado
Especial Cível da sua cidade, pretendendo medida judicial que impeça o uso
anormal da propriedade. A sua pretensão está fundada na teoria do abuso de
direito. Ora, é justo e razoável, conforme pretende o art. 1.228, § 2.º, do Código
Civil, que você – já castigado pelas noites de insônia – tenha de comprovar que
o seu vizinho teve “a intenção de o prejudicar”?

Não seria suficiente, pois, a teor da cláusula geral do art. 187, que você
demonstrasse, objetivamente, não o dolo específico do infrator, mas sim o
desvirtuamento da própria finalidade social do direito por conta do mau uso da
propriedade?

Por isso, defendemos que, em caso de abuso da propriedade, a parte final


do art. 1.228, § 2.º, no que tange à exigência do dolo específico de prejudicar,
deve ser desconsiderada, a teor de uma interpretação sistemática amparada na
cláusula geral do art. 187 do Código Civil.

6. Boa-fé objetiva

Trata-se de um princípio que não é exclusivo da seara das relações reais,


nem mesmo do Direito Civil como um todo, mas, sim, emanado da própria Teoria
Geral do Direito.

Neste ponto uma importante reflexão merece ser feita: existe diferença
entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva?

Se a boa-fé subjetiva traduz o desconhecimento de um vício, relacionando-


se, portanto, ao estado subjetivo ou psicológico do sujeito, a boa-fé objetiva tem
natureza de princípio jurídico – delineado em um conceito jurídico indeterminado
–, consistente em uma verdadeira regra de comportamento, de fundo ético e
exigibilidade jurídica.

Especificamente no campo dos direitos reais, a boa-fé se manifesta de


forma ampla, nas suas duas modalidades.

Com efeito, a boa-fé subjetiva sempre foi fundamental, por exemplo, no


campo da disciplina dos efeitos da posse, estando prevista expressamente
desde a codificação civil de 1916, e continuou presente no vigente Código Civil,
como ocorre na hipótese do possuidor de boa-fé que desconhece o vício que
macula a sua posse. Nesse caso, o próprio legislador, em vários dispositivos,
cuida de ampará-lo, não o fazendo, outrossim, quanto ao possuidor de má-fé
(arts. 1.214 e 1.216 a 1.220 do CC/2002).

Já a boa-fé objetiva é, como visto, uma cláusula fundamental do próprio


sistema jurídico-civil, não podendo ser olvidada também na análise das relações
jurídicas reais, sob o fundamento de que, nelas, somente se aplicaria a boa-fé
subjetiva.

Ledo engano.

Temas como vedação ao comportamento contraditório, que decorrem da


boa-fé objetiva, são fulcrais para a devida hermenêutica dos direitos reais na
contemporaneidade.
Atividades

1. No que consiste a força normativa dos princípios? (10 linhas)

2. Conceitue a função social no âmbito dos Direitos Reais e exemplifique sua


aplicação. (15 linhas)

3. Diferencie “direito de propriedade” de “direito à propriedade”. (15 linhas)

4. Diferencie boa-fé objetiva de boa-fé subjetiva no âmbito dos Direitos Reais.


(10 linhas).

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