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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

FICHÁRIO
DISCIPLINA AUTOR
ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE HAROLD OSBORNE
OBRA
OSBORNE, Harold. Estética e Teoria da Arte. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo:
Cultrix, 1970.

INTRODUÇÃO século, muitas vezes visto indiretamente através do meio


transformante dos modelos bizantinos ou cristãos. As
[História das Ideias] obras dos pisanos na Itália do século XIII conservam ecos
Este livro não é uma história da Estética como ramo da das formas que eles admiravam nos sarcófagos do terceiro
Filosofia, nem se limita às doutrinas da arte e da beleza tais e do quarto século, encontrados no Campo Santo. 15
como aparecem nos escritos dos grandes filósofos. É um
estudo da história das ideias num sentido lato e trata de [Renascença e Academicismo]
conceitos estéticos, quais se manifestam no Depois de constituir viva inspiração para a Renascença, a
comportamento e nas suposições de artistas e homens admiração pelo antigo solidificou-se numa doutrina
práticos, assim como nas formulações dos teoristas. Pois as acadêmica, que buscava impor os modelos antigos aos
ideias, não raro, atuam na prática muito antes de se artistas contemporâneos, não só como a suprema perfeição
articularem nos escritos dos teoristas profissionais. A na arte, mas também como padrões para representar as
estética formal, como a conhecemos, é uma recém- belezas ideais da natureza.
chegada na história do pensamento humano. 13
[Discurso naturalista idealismo matemático]
[Não há uma tradição teórica] [...] John Dryden, sob o título de The Art of Painting (1716).
A falta de uma clara tradição, já na teoria, já na prática, Escreveu ele:
aliada ao repúdio doutrinário da autoridade, perfeitamente “A parte principal e mais importante da pintura é
sadio em si mesmo, que caracteriza a época presente, descobrir e compreender cabalmente o que a natureza fez
produziu um fragor quase histérico de confusão a respeito de mais bonito e mais apropriado a esta arte; e que a sua
de propósito e fins que, afinal, só pode favorecer a escolha seja feita de acordo com o gosto à maneira dos
frustração e a dissipação do talento. 14 antigos: sem o que tudo o mais será apenas cega e
temerária barbaridade; que rejeita o que é mais belo e
[Influência do Romantismo - linguagem] parece, com audaz insolência, desprezar uma arte, que
A linguagem atual da arte e da crítica, com as suas ignora totalmente. [...] A nossa tarefa é imitar as belezas da
vigorosas reminiscências do Romantismo, destoa amiúde natureza como os antigos o fizeram antes de nós, e
do ponto de vista estético de hoje. Ao planejar este exame consoante o que de nós requerem o objeto e a natureza da
de ideias estéticas, não só me guiei pelo interesse coisa. E por essa razão precisamos ser cautelosos na busca
acadêmico ou histórico, mas também tive em mira a de antigas medalhas, estátuas, gemas, vasos, pinturas e
importância contemporânea. O conhecimento dos baixos-relevos: e de todas as outras coisas que nos
antecedentes históricos do pensamento, o contexto do desvelem os pensamentos e invenções dos gregos; porque
desenvolvimento histórico, é hoje indispensável para dar elas nos ministram grandes ideias e tornam as nossas
substância e significado aos conceitos que herdamos, e produções inteiramente belas.” 16-17
sem ele a linguagem que usamos em nosso trato com as
artes continuará a ser um aranzel de chavões emocionais [Winckelmann e sua leitura do Clássico]
tão desproveitoso para a compreensão descrias quanto os Se Winckelmann se houvesse limitado a ensinar aos
cheques sacados contra um banco que já deixou de artistas com gravidade teutônica que “tomar os antigos por
funcionar. 14 modelos é a nossa única maneira de sermos grandes”, os
danos teriam cessado quando houvesse passado a moda.
[Influência da Antiguidade Clássica] Mas a sua estiolada concepção da beleza clássica como
A influência da antiguidade clássica avulta, imensa, na uma “nobre simplicidade e uma calma majestade” de tal
tradição ocidental. Pelo menos até a época romântica, a maneira se aboletou no espírito dos muitos que olham com
arte europeia seguiu o seu caminho tortuoso com um olho os ouvidos em vez de olhar com os olhos, que em pleno
enviesado para atrás, para o passado clássico da Grécia e século XX ainda era difícil para a maioria das pessoas ver a
de Roma. Novos movimentos de gosto e de estilo escultura grega em outros termos que não fossem os da
encontraram o seu ímpeto num entusiasmo novo pelos petrificada sentimentalidade germânica. 17
antigos. Mas se bem a admiração recorrente dos períodos
mais vigorosos e originais da arte europeia, o clássico [A influência das culturas não-européias]
significou coisas muito diferentes em diferentes ocasiões, Com o correr do século XX, a excitação provocada pelas
de acordo com os acidentes do conhecimento e da manifestações artísticas, pré-históricas e primitivas –
descoberta, a consciente ou inconsciente seletividade dos negras, mexicanas, sumerianas, egípcias – produziu mas
artistas e, principalmente, através das diferentes um alargamento e um enriquecimento de uma rejeição da
interpretações dadas a ele, dos olhos diferentes com que tradição clássica, que foi continuadamente por muitos
era visto 15 artistas tão diversos entre si quanto Maillol, Despiau,
Picasso, Moore, Giacometti e inúmeros outros. A
[Idade-Média] ampliação dos nossos horizontes artísticos, todavia, nos
O clássico renascimento dos tempos carlovíngios voltava permitiu ver a nossa herança clássica pelo lado de fora, por
os olhos para os produtos romanos do quarto e do quinto comparação e contraste com culturas e tradição

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independentes, o que não teria sido possível nos primeiros [O processo de autonomização estética]
estádios do desenvolvimento artístico europeu. 18 As finalidades das artes têm-se revelado
extraordinariamente variadas: as obras de arte têm sido
[A importância da linguagem da Antiguidade para a implementos religiosos, símbolos para a glorificação de
Estética e a necessidade de novos aparelhos governantes e instituições, monumentos comemorativos e
conceituais] mil e outras coisas. Mas enquanto não se firmou, a partir do
Mas tudo isso pertence à história da arte. No terreno da século XVIII, a noção das belas-artes como classe de
teoria estética, de que nos ocupamos, o peso da ofícios manuais cujo propósito principal era servir à
antiguidade é ainda maior e mais sufocante. A linguagem contemplação estética, não se evocou conscientemente,
que usamos, as categorias pelas quais procuramos nas conversações e reflexões acerca das belas-artes,
expressar-nos para nós mesmos e para os outros, a nenhum grupo especial de atitudes “estéticas”. O interesse
estrutura conceitual que imprime direção prática ao nosso pragmático pelas artes como ofícios manuais, produtos da
comércio com as artes, tudo isso descende da antiguidade. atividade de uma oficina, encontrou sua primeira e ainda
Até o momento em que o período romântico introduziu interessante expressão teórica nos escritos dos filósofos
noções novas como auto-expressão, originalidade criativa, gregos, que discutiam as artes no contexto de uma teoria
o valor da imaginação ficcional, e assim por diante – todas mais ampla da manufatura, e na teoria socioeconômica
as quais estão agora no cadinho – era difícil encontrar-se grega das artes. 20
uma ideia que não tivesse sido tirada da antiguidade grega
e romana. Hoje em dia, com a expansão relativamente [A história da arte é a história das coisas úteis, belas e
súbita da experiência estética, à medida que a arte do poéticas]
mundo é colocada à vista de todos e os nossos horizontes George Kluber começa o seu livro The Shape of Time
estéticos recuaram depressa, necessitamos urgentemente (1962) da maneira seguinte: “Suponhamos que a ideia de
revisitar e alargar o nosso aparelho conceitual. E para fazê- arte possa expandir-se para abranger toda a série de coisas
lo com proveito precisamos compreender os antecedentes feitas pelo homem, incluindo todos os instrumentos e
históricos das ideias implícitas nos conceitos que temos. 18 escritos em adição às coisas inúteis, belas e poéticas do
mundo. Visto por esse prisma, o universo das coisas feitas
[As terminologias Estéticas] pelo homem simplesmente coincide com a história da arte.”
A terminologia estética dos antigos evoluiu, primeiramente, 20
no contexto da sua teoria da arte de falar em público, ou
retórica, e em seguida se aplicou, primeiro à poética e [PRIMEIRA ATITUDE BÁSICA: Arte Utilitária]
depois à arte. Como se há de ver, a concepção de arte dos
antigos era, primordialmente, uma concepção literária. Ut [Teorias instrumentalistas: crítica moralista da arte]
pictura poesis: uma pintura é como uma poesia. Conta uma A poderosa sedução emocional das artes e as íntimas
história, indica uma moral, retrata uma crença. 18 conexões que elas assumem tantíssimas vezes com as
convenções morais e a crença e o ritual religioso lhes
[Termos próprios da crítica pictórica tinham pouca tornaram as funções nesses campos particularmente
importância na antiguidade] notáveis aos teorias. Por conseguinte, as teorias moralistas
Louvava-se a destreza técnica com que se manipulava o da arte – isto é, as teorias que justificam, condenam ou
realismo, mas o que hoje denominamos crítica “estética” – avaliam os produtos da arte em função dos seus usos e
discorrer sobre a própria obra de arte – estava pouco ou efeitos educativos, edificativos e de propaganda,
nada em evidência. As parcas ideias estéticas herdadas da controlados ou não, que se lhes notam no comportamento
antiguidade – harmonia, composição, proporção, apuro e o humano – formam um grupo especial de teorias
resto – tinha escassa relevância na prática para a crítica de instrumentais. Durante a antiguidade clássica o ponto de
arte. 18-19 vista moralista predominou na discussão das artes literárias
e musicais. Durante o período medieval no Ocidente o ponto
[Novo vocabulário crítico estético] de vista moralista foi muito preeminente no tocante às artes
Precisamos clarificar e apurar o vocabulário estético visuais também. Nos tempos modernos, tem sido
enquanto revisamos a linguagem da crítica. Pois sem característico das teorias marxistas e de teorias como as
palavras com que possamos vesti-las, as ideias carecerão de Tolstoi um vigoroso interesse pelos efeitos sociais, das
de coerência e o pensamento e a apreensão se baralharão. artes, julgadas antes pelos seus padrões políticos ou morais
19 do que pelos seus padrões estéticos. Fosse como fosse, a
relação entre a arte e a moral continuou a ser um tema
[Três categorias de interesse e três tipos de críticas do persistente de interesse e é debatida hoje em dia sobretudo
senso comum] na teoria literária e em conexão com questões sociais
Um exame razoavelmente desapaixonado da história práticas, como os acertos e desacertos da censura. 21
cultural ocidental revela três categorias básicas de interesse
pelas belas-artes, manifestadas pelas práticas e [Teorias instrumentais: crítica emocional da arte]
convenções sociais, pelas flutuações do gosto e pelas Outro grupo separado de teorias instrumentais veio a
maneiras por que as pessoas se habituaram a falar sobre notabilizar-se durante a época do romantismo e ainda
arte e sobre artistas. Cada um desses gêneros de interesse prevalece na linguagem da crítica de arte contemporânea.
se associa um grupo característico de teorias da arte e de Essas teorias nasceram do interesse pelas artes como meio
critérios de crítica, se bem historicamente eles não tenham de expressão da emoção (num sentido amplo e indefinido
sido totalmente exclusivos nem rigidamente distintos, dessa palavra), como meios de comunicação da emoção e
podendo ser vistos, com frequência, interagindo e sendo do sentimento e como meios de edificação pela expansão
assumidos simultaneamente ou mesmo, às vezes, vicária da experiência. No contexto de tais teorias, os
inconsequentemente. 19. objetos de arte são caracteristicamente avaliados e
apreciados pela sua eficácia na promoção desse propósito.
Os critérios que elas impõem não são critérios estéticos. As

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obras de arte não são as únicas formas de auto-expressão, proporcionar um reflexo razoavelmente exato da realidade
as únicas maneiras de comunicar a emoção ou a única externa que constitui seu tema. 23
maneira de expandir a experiência além dos confins da
experiência de vida real do homem. Não constitui nenhuma [Naturalismo: importa mais o que é representado do
tolice perguntar se um artefato (um romance, o desenho de que a representação / Realismo e Idealismo]
um psicótico, um volume de fotografias) que realize O naturalismo, sela ele qual for, expressa a atitude de
qualquer uma dessas coisas é também uma obra de arte no interesse mais pelo assunto da obra que pela obra
sentido estético. Até mais insidiosamente do que no caso propriamente dita. Idêntica espécie de interesse pode
de outros tipos de teorias instrumentais, esses modos aplicar-se a arte realista (que representa o que é real) ou à
românticos de interesse conduzem à substituição dos arte idealista (que representa a realidade imaginada, ou
critérios estéticos por critérios pragmáticos nas teorias da ficção). As duas atitudes, a realista e a idealista, exerceram
arte e que eles dão origem. 21-22 vigorosa influência sobre a teoria da arte – e, naturalmente,
sobre nossas maneiras de ajuizar das obras de arte na
[SEGUNDA ATITUDE BÁSICA: NATURALISMO] prática – desde a antiguidade clássica até os dias atuais.
22-23
[Arte Naturalista]
A segunda categoria básica de interesse, de que nos [As utilidades ou funções da arte Naturalista]
ocupamos, é o interesse pela obra de arte como reflexo de A arte realista pode ensinar e informar, como observou
uma realidade além da sua. A semelhança de um espelho, Aristóteles. E, como se reconheceu na segunda metade do
presume-se que a obra de arte represente ou reflita ou, de século XIX, pondo de manifesto a fealdade e a injustiças
certo modo, copie uma seção da realidade, que é o assunto sociais, ela é capaz de tocar os sentimentos dos homens,
ou o tema. Ao grupo característico de teorias que pressupõe despertar-lhes a consciência e provocar a indignação,
um interesse pelo assunto ou tema, mais do que um exercendo assim uma influência no sentido da melhoria
interesse pela obra de arte por si mesma, chamamos de social. A arte idealista pode edificar e inspirar: na verdade,
naturalista. 22 isto foi amiúde aduzido como a sua função primordial.
Dessa maneira o naturalismo está ligado ao interesse moral
[Teorias naturalistas: por que ter cópias?] e prático pala arte e se associa às teorias instrumentais. 24
Não incumbe às teorias naturalistas especular por que
estamos interessados em ter cópias, embora se tenham [TERCEIRA ATITUDE BÁSICA: FORMALISMO E
aventado, às vezes, sugestões nesse sentido. Aristóteles, CONTEMPLAÇÃO ESTÉTICA]
por exemplo, aludiu a um instinto humano natural pela
imitação, que encontra elevada vazão nas artes, e também [Contemplação Estética Século XVIII]
insinuou que o nosso pendor pelas representações deriva A terceira atitude básica em relação às obras de arte antigas
do prazer intelectual que sentimos ao reconhecer o original ou modernas, supõe o interesse por elas como promotoras
de que elas são cópias. Outros presumiram que damos do aprimoramento e gozo deliberados das experiências
valor às cópias porque elas nos recordam, ou nos ajudam a estéticas. Dessa atitude derivam as teorias formalistas da
experimentá-las vicariamente, seções da realidade com as arte, que expressam o ponto de vista mais característico
quais não nos convém entrar em contato direto – a razão dos últimos cinquenta ou cem anos. Pressuposta neste
por que as pessoas trazem cartões postais como ponto de vista se acha a crença num método de apreender
lembranças das férias. O nosso interesse pelo assunto ou o mundo à nossa volta que se bem não seja totalmente
tema de uma representação também pode ser estético? separáveis do nosso comércio diário e comum com o meio,
Podemos acha-lo bonito e, portanto, gostar de difere deste último no destaque que dá à consciência
experimentar-lhe vicariamente a beleza por meio de uma perspectiva ou intuitiva direta, sem considerações pelas
estátua ou de um quadro que o representem. Nesse caso a ilações práticas. Essa forma de comércio com o mundo que
atitude naturalista tem afinidades com o interesse estético, vivemos denomina-se “experiência estética” ou
que é o terceiro tipo básico. 22 “contemplação estética” e, se bem tenha sido
provavelmente praticada pela maioria das pessoas em
[Arte naturalista: uma ilusão] quase todos os períodos da História, surgiu pela primeira
O naturalismo como tal, entretanto, é a atitude do espírito vez como valor deliberado, que merecia ser cultivado, no
que desvia a atenção do objeto de arte, ou através dele, correr do século XVIII. 24
para aquilo que o objeto de arte representa. 22
[Diferença entre a contemplação do século XVIII da
[Surgimento do Naturalismo como meta artística] atual: a arte é desprovida da necessidade instrumental
Como meta artística, surgiu o naturalismo, provavelmente (de representar ou moralizar), mas vale apenas por si
com a pintura e a escultura dos gregos no quinto século mesma]
A.C., em notável contraste com o caráter ainda altamente [...] Mas em contraste com as atitudes que prevaleceram no
convencionalizado do seu drama. No tocante às artes século XVIII, o ponto de vista mais típico do tempo presente
visuais, as presunções naturalistas foram fundamentais pressupõe a presunção de que o exercício dos nossos
para a teoria da arte da antiguidade clássica e continuaram poderes perceptivos nesse método de apreensão dispensa
a preponderar no Ocidente até há cerca de um século. Em mistificações de natureza instrumental; vale a pena, por si
compensação, o naturalismo foi de significação mesmo e pela consciência intensificada do mundo que
relativamente secundária para a teoria da arte chinesa e proporciona. 24-25
oriental. A sua importância na Europa, desde o fim da Idade- O valor atribuído à experiência estética não se
Média até mais ou menos o meado do século XIX, explica a baseia inteiramente e talvez nem precipuamente no
preeminência que é mister conferir-lhe em qualquer manual conhecimento do mundo à nossa roda, que ela transmite;
de estética. Com efeito, nos países ocidentais, as pessoas não é uma espécie de cognição que se possa formular em
artisticamente inexperientes ainda tendem termos de conhecimento teórico. O valor deriva
automaticamente a supor que a função de um quadro é parcialmente, e talvez principalmente, do pleno exercício de

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uma sensibilidade exercida e madura ampliada ao máximo. b. A arte como instrumento de educação ou
25 aprimoramento
c. A arte como instrumento de doutrinação
[Os objetos de arte são mais competentes para religiosa ou moral
despertar e sustentar a contemplação estética em ponto d. A arte como instrumento da expressão ou da
elevado] comunicação da emoção
[...] Reconhece-se também que, conquanto possamos e. A arte como instrumento da vicária expansão
assumir uma atitude estética em relação a qualquer coisa, da experiência 26
nem todas as coisas são igualmente capazes de sustentar 2. Interesse pela arte como reflexo ou cópia: teorias
a contemplação estética num ponto elevado. Ao contrário naturalistas da arte
das preferências do século XVIII pela beleza natural, a. Realismo: a arte como reflexo do real
caracteriza o ponto de vista contemporâneo em estética a b. Idealismo: a arte como reflexo do ideal
suposição de que, de um modo geral, os objetos de arte c. Ficção: a arte como reflexo da realidade
estão mais adaptados à expansão e à sustentação da imaginativa ou do ideal inatingível 27
sensibilidade madura. 25 3. Interesse estético: teorias formalistas da arte
a. A arte como criação autônoma
[O objeto de arte tem como finalidade não a cópia, mas b. A arte como unidade orgânica 27
despertar a contemplação (tem um fim em si mesmo)]
[...] De acordo com isto, as obras de arte são consideradas [Teorias Orientais]
mais como coisas criadas por si mesmas do que como As atitudes orientais para com a arte e as teorias que delas
cópias de outras seções de realidade, mais como objetos decorrem não se enquadram bem neste esquema. [...] Não
que possuem valores autônomos próprios do que como obstante, algum conhecimento delas nos ajudam a ver as
coisas destinadas primordialmente a ser portadoras de atitudes e teorias ocidentais em perspectiva. Por essa razão
valores estranhos à promoção da experiência estética. 25 apresentamos um relato comparativo das atitudes orientais
– sobretudo do ponto de vista encerrado na estética chinesa
[Critério crítico: contemplação] e indiana. 27
[...] O critério crítico pertinente a essa atitude de interesse
é, portanto, a capacidade de uma obra de arte de ser 1 CAPÍTULO
apreciada, o grau em que uma obra de arte se apropria à
sustentação da contemplação estética num observador CONCEITO CLÁSSICO DE ARTE
convenientemente exercitado e preparado. 25
ARTE COMO OFÍCIO
[Objetos de arte: formalmente agradáveis]
Alguns advogados de um tipo formalista da teoria da arte [A obra de arte do passado possuía um valor ulterior,
(entre os quais me incluo) chegaram à conclusão de que as uma função, uma utilidade que não fim em si mesmo do
belas obras de arte são os mais felizes exemplos de uma prazer estético ou contemplativo]
classe especial de objetos perceptivos, cognominados Durante toda a História, as obras de arte eram artefatos
“conjunto orgânico”, que, pela sutileza e complexidade de fabricados para promover algum valor ulterior e não, como
suas propriedades emergentes e pelas intricadas relações agora, feitos precipuamente para serem obras de arte, para
hierárquicas existentes entre eles são notavelmente serem apreciados esteticamente como aqueles que
apropriados a evocar e sustentar a contemplação estética. sobreviveram do passado podem ser apreciados depois de
25-26 retirados do seu contexto e expostos em museus. Se
fossemos adotar o conceito de obra de arte sugerida pelo
[Mesmo concebidas com funções claras, subtendia-se Professor Urmson, “um artefato destinado, em primeiro
que a obra de arte possuía também uma inutilidade lugar, à considerações estéticas”, teríamos de excluir a
(proporcionar prazer pelas formas)] maioria dos produtos de arte que herdamos do passado. À
[...] Embora não surgisse nenhuma teoria explícita da proporção que examinamos a obra de arte do passado, a
experiência estética na Antiguidade clássica, nem na Idade- partir da caverna mais antiga, verificamos que, por variados
Média, nem na Renascença, as obras de arte se faziam com que fossem os seus usos, de um modo geral, todas as obras
vistas à apreciação; e deste os primeiros períodos humanos de arte eram feitas com uma finalidade. 29-30
os artefatos eram feitos com qualidades formais, que ora
nos permitem apreciá-los esteticamente, posto que essas [Antiguidade: Objeto de arte = utensílio]
qualidades formais – muitas vezes difíceis de se Um fetiche mágico, um templo para honrar os deuses e
conseguirem – fossem redundantes em relação à sua glorificar a comunidade, uma estátua para perpetuar a
utilidade prática ou às funções religiosas, mágicas ou memória de um homem (Grécia) ou para assegurar-lhe a
outras, que lhes competia exercer. 26 imortalidade (Egito), um poema épico para preservar as
tradições da raça ou um mastro totêmico para realçar a
[A tomada de consciência progressiva do “Impulso dignidade de um clã – eram artefatos, manufaturados para
estético natural” (a arte pela arte, o prazer em si um fim diferente do que hoje denominaríamos estético. O
mesmo)] seu motivo, não raro, era servirem de veículo a valores que
Essa inconsciente operação de um impulso estético natural, ao depois se perderem no esquecimento. Eram
que só recentemente tomou consciência de si mesmo, essencialmente “utensílios”, no mesmo sentido em que o
constitui um dos temas que se repetem deste livro. 26 são uma armadura, os arreios de um cavalo ou objetos de
serviço doméstico, ainda que o propósito a que servissem
[ESQUEMA DO LIVRO] não fosse, necessariamente, material. 30
1. Interesse pragmático: teorias instrumentais da arte.
a. A arte como manufatura

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[Impulso estético 1, Vontade de Arte, necessidade elevação das artes a um pedestal cultural lhes enfraqueceu
primordial em produzir um bem estético] a influência direta na vida da maioria, dilatando o abismo
Isso não quer dizer que o impulso estético fosse inoperante entre o gosto inculto e o que denominamos gosto
na maior parte da história do homem. Em seu livro The “requintado”. 31
Biology of Arts (1962), em que estuda o comportamento
imagineiro dos grandes símios e suas relações com a arte [Função social da arte]
humana, o Dr. Desmond Morris sustenta que, desde os A arte deles tinha também uma função eminentemente
primeiros estádios evolutivos, moviam o homem motivos social. Não se escrevia poesia para ser lida em casa pelos
estéticos ao lado dos próprios mágico-religiosos ou poucos que porventura a apreciassem. Os poemas épicos
utilitários. 30 nacionais eram bíblia e manual no sistema educativo.
Cantavam-se poesia em todas as reuniões sociais e em
[Impulso Estético 2] todas as cerimônias religiosas, e a poesia era um
Isto é corroborado pelo Professor Paul S. Wingert, uma das complemento essencial dos grandes certames atléticos.
maiores autoridades em arte primitiva, que mostra como, no Representavam-se o drama sob os auspícios do Estado nas
desenvolvimento dos ofícios utilitários como os têxteis, a festividades religiosas nacionais, a que assistiam todos os
cerâmica, a cestaria, a metalurgia, o entalho na pedra ou o cidadãos. 31
entalho na madeira, funciona o impulso estético, induzindo
os homens primitivos, por vaidade ou para granjear estima, [As Artes e a sua utilidade na Cidade]
ou mesmo, de fato, por simples prazer, a trabalharem os As cidades, mais do que os indivíduos, encomendavam e
seus artefatos com maior habilidade, a embelezarem-nos compravam as grandes estátuas e quadros. A poesia e as
decorativamente e a darem-lhe uma redundante beleza de artes foram, muito simplesmente, a mais importante
formas em relação às suas necessidades puramente influência na antiga Grécia para modelar a vida do indivíduo
práticas e que as transcendia. 30 e a estrutura da sociedade. Por conseguinte, os gregos
avaliavam as obras de arte pela natureza da influência que
[O impulso estético não se apresentava de forma se lhes atribuía. 32
autônoma]
Mas a função estética raro ou nunca se apresentava só e [Além da função para a cidade, os Critérios de lavor]
autônoma. A distinção hoje familiar entre as “belas-artes” e [...] O único outro critério comumente aplicado era o do
as artes úteis ou industriais só se tornou preeminente no lavor. Numa época sem máquinas, as pessoas tinham
decurso do século XVIII na Europa, e foi de certo ponto de profunda consciência dos padrões de execução. As obras
vista, um dos primeiros sintomas da expulsão gradativa de de arte, como os outros produtos da indústria humana, eram
“arte” da estrutura integrada da sociedade. 30 apreciadas pelo nível de trabalho que revelavam. 32

[Platão e Hippias: artes úteis] [Filósofos: função social e educativa da arte]


Em épocas passadas não existia o conceito das “belas- Os filósofos se interessavam principalmente por discutir as
artes”; todas as artes eram artes de uso. E quando, no artes em relação à sua função educativa e ao seu impacto
passado, os nomes julgavam as suas obras de arte social. Julgavam pelos resultados. Mostravam-se uma obra
apreciavam-nas pela excelência do seu lavor e pela sua de arte eficaz para a sua finalidade e era boa essa
eficácia na consecução dos propósitos para os quais tinham finalidade? Onde os critérios técnicos e morais entravam em
sido criadas. Essa atitude e exposta com admirável conflito, os últimos tinham precedência – como aconteceu,
concisão no diálogo de Platão Hippias Maior, em que ocorre por exemplo, quando Platão propôs que se expurgasse
a definição proposta da beleza como “eficácia para algum Homero, não porque certos trechos não fossem poéticos,
bom propósito”. 31 senão porque, no seu entender, os trechos mais poéticos
eram os mais vigorosos e, portanto, mais perigosa era a sua
[Gregos e romanos: uma arte prática (técnica)] influência (República, L. III, 387b). A distinção entre as
O antigo conceito grego – e romano – de arte é elucidativo qualidades estéticas e o efeito total de uma obra de arte não
porque torna inteligível essa atitude que predominou acudia de pronto à mente grega, se é que chegava a acudir.
durante grande parte da história humana. Em contraste com 32
a nossa, a atitude dos gregos e romanos em relação à arte
era eminentemente prática e houve pouco esteticismo [SUMÁRIO]
consciente na Antiguidade, pelo menos até o surgimento
dos conhecedores, no século de Augusto (44 A.D. – 17 SUMÁRIO. As obras de arte são consideradas artefatos
D.C.). 31 fabricados com um propósito. Reputam-se bem sucedidas
de acordo com a sua eficácia para o propósito que levam e
[Arte pela Arte] com a estimação desse propósito. Essa atitude tende a
Como disse E. E. Sikes, que escreveu sobre literatura obscurecer os critérios estéticos e substituí-los pela
grega: “Para os gregos do quinto século, a fórmula de ‘L’art eficiência técnica de um lado e, de outro, pela apreciação
pour l’art’ (arte pela arte) teria sido monstruosa ou moral ou social dos efeitos. Opõe-se à crença moderna nos
simplesmente inteligível.” 31 padrões estéticos independentes ou “autônomos”, pelos
quais se devem avaliar as obras de arte. 32
[Artes finalistas]
As artes eram apreciadas exatamente como quaisquer UMA TEORIA SÓCIO-ECONÔMICA DA ARTE
outros produtos da indústria humana – pela sua eficácia na
promoção dos objetivos para os quais tinham sido feitas. [Artista e Artífice]
Além disso, as belas-artes, como hoje lhes chamamos, Sustentou-se por esses motivos, que os gregos não tinham
estavam mais intimamente integradas na vida da antiga uma palavra para significar “arte” ou “artista” em nosso
cidade soberana do que o estão na comunidade moderna, sentido, e que lhes faltava o conceito dela. Antes da era da
em que uma abordagem estética ainda é restrita e a produção pela máquina, manufatura era sinônimo de

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indústria de oficina. Considerava-se o artista um manufator principalmente por esse motivo que Platão não conseguiu
entre os demais, num tempo em que se conferia alto conformar-se com a utilização dos poetas na instrução e
proêmio à habilidade do trabalhador. Este era comumente educação dos jovens e lhes considerava as obras inferiores
designado pelo nome de oficial (technites) ou artífice aos manuais técnicos e científicos. 34
(demiourgos). Assim, Platão se refere ao escultor Fídias
como a um “artífice” no pináculo da sua profissão e, [Gregos: obra de arte com valor estético em si mesmo]
portanto, autoridade no que é correto e apropriado na feitura Numa ocasião em que as suas artes mecânicas haviam
de uma escultura dos deuses (Hippias Maior, 290b). Não se atingido um nível elevadíssimo de beleza formal e de gosto,
reconhecia diferença alguma de categoria, como a que hoje é evidente que os gregos mal tinham chegado ao mais
em dia se supõe, entre o artista criador e o artífice habilidoso remoto indício da apreciação estética como valor ou “bem”
nas técnicas do seu ofício. 33 distinto que merece ser cultivado por si mesmo”. 34

[Criatividade e Expressão na Grécia] [Aristóteles: o prazer das artes em si mesma]


[...] A ideia de criatividade (no sentido moderno, romântico) No caso das belas-artes, como diz o Professor W. D. Ross
em conexão com as artes inexistia na filosofia grega. em seu livro Aristotle (1923, p. 217): “Pode-se presumir que
Igualmente estranha à mentalidade grega era a ideia da arte o seu uso seja a contemplação estética, mas não existe
como “expressão” da personalidade do artista”. 33 nenhuma prova manifesta de que Aristóteles julgasse ser
esse um fim em si mesmo.(1)” Essa curteza de vistas é
[A arte era julgada em razão da sua função e da técnica] estranhamente ilustrada em várias discussões da “beleza”
Por essa razão, a teoria geral da arte na filosofia grega dos artefatos. 34
subordinava-se à sua teoria da manufatura, que foi (1) Uma possível exceção e talvez o único reconhecimento
denominada “uma das maiores e mais sólidas consecuções explícito do prazer estético na literatura grega (ponto de
do espírito grego”. Baseava-se a teoria nas ideias gêmeas parte a apreciação estética da beleza física do corpo
da função e da técnica. [...] humano) como fim em si mesmo é a declaração de
Aristóteles, na Política, de que a música constitui uma
[Bem=finalidade] ocupação apropriada do cidadão livre nas horas de
[...] O artífice competente precisava, necessariamente, lazer. A exposição de Aristóteles na Poética sobre a
conhecer o “bem” que é a finalidade ou objetivo do seu ofício apreciação da tragédia não parece implicar o
(ou seja, sapatos no caso do sapateiro, saúde no caso do reconhecimento de que se trate de um gozo estético no
médico, estátuas no caso do escultor). [...] sentido moderno. 34

[Platão: as coisas são julgadas de acordo com a [Platão: Hippias Major / Finalidade]
excelência para executar a Finalidade para a qual foi [...] No Hippias Major, o pomposo polímato Hípias é levado,
concebida] com dificuldade, a admitir que se a “adequação ao
Na República (L.X, 601d) Platão apresenta como truísmo a propósito” é o critério da excelência, uma concha de sopa,
proposição genérica de que “a virtude, a beleza e a correção feita de madeira, é mais bela do que outra, feita de ouro,
de cada artigo manufaturado, cada criatura viva e cada ação porque se adequa melhor à sua tarefa. [...] 34-35
só se avaliam em relação ao propósito para o qual foram
feitos ou naturalmente produzidos”. Em todos os seus [Platão: Memorabilia, Xenofonte: Finalidade]
escritos sociais, Platão destacou a ideia da especialização. [...] Nos Memorabilia, Xenofonte representa Sócrates
Cada artífice é um especialista no “bem” do seu ofício sustentando que um cesto durável de estrume pode ser
particular. Incumbia ao estadista-filósofo – o “artista” uma coisa bonita e um escudo mal feito de ouro, uma coisa
supremo – avaliar os diversos “bens” dos ofícios feia; que as casas mais “belas” são as que se mostram
particulares de acordo com a sua utilidade numa sociedade quentes no inverno, frias no verão e à prova de ladrões. (Na
planificada. A noção de arte “régia” do estadista foi antiga Atenas os donos das casas eram ameaçados por
desenvolvida em sua República e em seu Politicus: o ladrões que operavam abrindo um buraco na parede da
adestramento de um corpo de bons cidadãos, cada qual casa.). Xenofonte acrescenta um reparo, curioso e não
desempenhando cabal e peritamente uma função útil numa explicado: As pinturas e decorações coloridas das paredes
sociedade planificada. [...] 33-34 nos privam, cuidava ele, de um prazer maior do que o que
nos proporcionam.” 35
[Platão: O papel do “Pintor” (Inútil) na sociedade]
[...] Platão encontrou dificuldade para encaixar nesse plano [Eficiência, Beleza, Kalon, Finalidade]
os artífices que hoje chamaríamos “artistas”, não só porque Mas no próprio argumento a eficiência é o único critério:
eles não se coadunavam facilmente com a sua ideia da uma coisa pode chamar-se bela (kalon) como referência a
especialização, mas também porque o valor social das um propósito e o contrário com referência a outro. 35
“finalidades” dos seus ofícios particulares não estava muito
claro para ele. Um sapateiro é perito no fabrico de sapatos [Exemplo da Colher de Madeira]
de verdade, o carpinteiro na produção de mesas e cadeiras. [...] Ninguém cogita de saber se a colher de pau ou a colher
O pintor, contudo, produz imitações ou cópias irreais de de ouro é mais bem feita (o propósito de uma colher é servir
sapatos, cadeiras, mesas e de todas essas coisas visíveis, para comer e não para ser contemplada com prazer) ou se
sem ser perito em coisa alguma. Se presumirmos que o o cesto de estrume ou a casa de campo de Sócrates foram
valor de qualquer manufatura é a sua utilidade, nesse caso construídos de modo que agradem ao olhar. Essa
a utilidade de um sapato pintado é inferior à de um sapato teorização se tornará inexplicável se traduzirmos a palavra
real. [...] 34 em tela – to kalon – por “belo”. E uma perplexidade
semelhante surgirá se considerarmos o techne grego como
[Platão: O papel do “Poeta” (Inútil) na sociedade] equivalente a “arte”. O que fica dito mostra que os conceitos
[...] Assim também o poeta descreve qualquer coisa, tudo, gregos de “arte” e “beleza” diferem dos nossos. 35
sem ter, todavia, conhecimento técnico de nada. Foi

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[Definição de Techne: Ciência Prática] coisa tirada de outra coisa qualquer. Tanto a poiesis divina
A palavra grega techne (da qual derivamos “técnica”) quanto a humana podem consistir na construção de coisas
denotava uma habilidade ou ofício. Mas os gregos não a reais ou na construção de imagens e aparências. Os deuses
consideravam apenas como habilidade manual cultivada criaram coisas reais (homens, animais, plantas, etc.) do
segundo regras não especificáveis de tradição oficial, senão nada, criaram imagens dessas coisas, como nos sonhos e
como um ramo do conhecimento, uma forma de ciência nas miragens. Nos produtos dos ofícios industriais os seres
prática. 35 humanos criaram coisas reais; mas na poesia, na pintura e
nas outras artes “que proporcionam prazer” criaram
[Definição de Techne: Aristóteles] simulacros ou imagens de coisas reais. Essas imagens têm
No pronunciamento clássico, portanto, Aristóteles define a aparência de coisas sem a realidade e são, portanto, em
techne (traduzido para “arte”) como “a capacidade de essência, uma ilusão e um engano. Nessas condições, a
fabricar ou fazer alguma coisa com uma correta atividade do artista é uma “espécie de jogo a que falta
compreensão dos princípios envolvidos”. 35 seriedade” (República, L. X, 602b). 37

[Tecne inferior a Ciência] [SUMÁRIO]


[...] Na ordem do conhecimento techne vinha depois da SUMÁRIO. Um enfoque sociológico, que subordine a teoria
“ciência”, o conhecimento teórico de princípios e causas, da arte a uma teoria da manufatura ou da indústria tende a
como os que dizem respeito à Matemática e à Filosofia, e apequenar a importância das belas-artes e a trata-las como
da “sabedoria prática”, por intermédio da qual colocamos frivolidade social. Algumas teorias sociológicas da arte
em ordem de valores os diversos “bens” dos vários ofícios visam apenas a generalizações fatuais a respeito dos
e profissões. 35-36 caprichos do gosto, a espécie de coisas que as pessoas em
várias ocasiões e lugares consideram, de fato, como belas
[O conhecimento técnico é uma herança coletiva] e os critérios de julgamento artístico que, de fato, aplicaram.
A memória, pela qual o homem difere dos animais, Na medida em que era sociológico o seu enfoque, a teoria
possibilita o acúmulo e a transferência da experiência de grega partilhava com as teorias marxistas modernas do
geração para geração; e da experiência herdade desejo de avaliar as atividades artísticas em função da
esclarecida pela compreensão, provém da techne. 36 contribuição que se presume que prestem à sociedade e à
realização de um ideal mais amplo de valor social. 38
[A técnica visa um fim]
[...] Techne está sempre dirigida para algum fim ulterior (o APÊNDICE 1
fim da Medicina é a saúde, etc.) e não é buscada por si
mesma. 36 A POSIÇÃO SOCIAL DO ARTISTA
[A ciência visa um fim em si mesmo / Posteriormente na [O valor do artista varia]
Modernidade a Arte passou a visar um fim em si [...] Quando, por exemplo, a arte é considerada um ofício ou
mesmo] ramo da indústria de oficina, a posição do artista na
[...] A “ciência”, por outro lado, representa o puro amor do sociedade e a estima que lhe é concedida, corresponderão
conhecimento por si mesmo. O que não encontramos é a atitude social para com os trabalhadores e artífices. 39
alguma sugestão de que possa existir valor no cultivo da
experiência, incluindo a experiência estética, por ela [A posição do artista na Grécia]
mesma. Esta foi uma das ideias mais destacadas da idade A sociedade grega baseava-se numa aristocracia de
romântica. 36 cidadãos sobreposta a um corpo de artesão e mercadores,
de origem estrangeira, com uma população escrava que
[Aristóteles: Definição de Técnica e Poética (Poiesis)] executava os tipos mais grosseiros de trabalho manual e os
Na Ética (Z.4) Aristóteles distinguiu duas classes de serviços domésticos. A concepção da dignidade do trabalho
techne, os ofícios pelos quais fazemos alguma coisa não fazia parte da filosofia grega. O cidadão nascido livre
(prakton), e os ofícios pelos quais construímos alguma coisa que realizasse algum trabalho manual descia da sua
(poieton). Exemplos do primeiro seriam a Agricultura e a dignidade, mais ou menos como descia da sua o gentleman
Medicina, e dos últimos, a escultura e o fabrico de sapatos. que, nos tempos vitorianos, se dedicasse ao “comércio”.
36 Assim sendo, os artistas, considerados uma classe de
trabalhadores artífices, não ocupavam lugar elevado na
[Platão: Definição de Poética (Poiesis)] escala social. 39
A tendência para pensar nas belas-artes em função de uma
teoria geral da produção esboça-se com suma clareza em [Artista na Idade Média: Artes Liberais e Artes Sórdidas]
Platão quando, no Banquete (205c), palavra que, De um modo geral, todavia, o artista na Antiguidade era
originalmente, significa “construir” ou “fazer” no sentido mais tratado como um trabalhador e foi essa a sua posição
lato. “Toda causa”, diz ele “de uma coisa que passa do não durante toda a Idade-Média. A poesia e a teoria (mas não a
ser para o ser é poiesis, de sorte que as atividades prática) da música se incluíam entre as “Artes Liberais”,
manufatureiras em todos os ramos da indústria são formas atividade apropriadas a um homem culto e a um cavalheiro;
de poiesis e todos os artífices e oficiais são poietai (poetas). a escultura e a pintura pertenciam às “Artes Sórdidas” e
37 aqueles que as praticavam, classificados entre os
trabalhadores manuais ou artífices, eram membros,
[Platão: Definição de Belas-Artes (criação divina e frequentemente, das guildas de artesãos. 39-40
criação humana)]
A classificação formal das belas-artes, feita por Platão, se [Idade Média: Artes Práticas e Artes Teóricas]
encontra no Sofista (265). Ele distingue a construção divina Numa generalização muito ampla, consideravam-se, “artes
(poiesis) como a construção de alguma coisa partindo do práticas” as artes que supõe uma habilidade manual, e
nada (isto é, criação) e a construção humana de alguma “artes teóricas” as que se julgavam pertencentes ao espírito,

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

dependentes do exercício da razão ou da aquisição do contrário. Ora, nem tudo isso se aplica ao oficial ou ao
conhecimento. 40 artífice em geral. 41

[Renascimento: modificação da posição social do [Século XIX: Influência de Morris: Bauhaus]


Artista] [As teorias de Morris influenciou]
Na Renascença modificou-se a posição social do artista, Na Áustria acarretou o estabelecimento das Werkstatte e,
quando se pôs em evidência o seu conceito como erudito na Alemanha, foi o precursor da tendência estética que se
ou cientista. Uma das principais intenções do livro influente cristalizou na Bauhaus. Em lugar da ideia de Morris do
de Leonardo, Paragone, om as complicadas comparações artesanato universal, a nova consciência estética encontrou
entre pintores e poetas, resumia-se em provar que a pintura expressão nas tentativas de melhorar o padrão estético dos
e a escultura eram “artes teóricas”, mais assuntos do artigos fabricados pela máquina, encomendando-se a
intelecto do que ofícios manuais. Isto explica a ênfase dada artistas o desenho de protótipos para a produção em
a coisas como a perspectiva, as teorias matemáticas da massa. 42
proporção e o acompanhamento de saber histórico e
clássico que se cuidavam necessários a um pintor histórico. [Bauhaus: o artista e a fábrica]
A partir desse tempo se conferiu preeminência ao conteúdo Uma das metas centrais da Bauhaus era reunir a arte e o
“filosófico” das artes visuais e à natureza ofício e adestrar artistas-artífices que introduzissem os
predominantemente intelectual da apreciação, princípios do bom desenho estético nos produtos da
comunicando uma tendência racionalista e intelectual à indústria, adaptando o desenho aos novos materiais da
teoria da arte que vigoraria nos séculos seguintes [...] 40 idade moderna e aos novos métodos de manufatura. 42

[Idade Moderna: Belas Artes e o rompimento com as [Arte Funcionalista e Arte Aplicada]
Artes Utilitárias] A ideia de desenhar para os processos industriais, sempre
O surgimento da concepção das belas-artes no século XVIII concebida numa relação assaz íntima, ainda que não
incentivou o divórcio do artista com os artífices e oficiais no claramente definida, com a doutrina artística do
campo utilitário. 40 funcionalismo, coloca-se no polo oposto da teoria da “arte
aplicada”, que prevaleceu aproximadamente no meado do
[Modernidade - William Morris e Ruskin: o advento da século XIX. Esta última procurava escolher o “melhor” em
industrialização] matéria de ornamento ou decoração, em outros tempos e
[...] A filosofia de Morris baseava-se, em parte, numa estilos e, em seguida, superpô-lo aos produtos da máquina
idealização da Idade-Média, de que ele compartiu com sem modificar-lhes fundamentalmente o desenho. A ideia
Ruskin, Pugin, a Fraternidade Pré-Rafaelista e muitos de acrescentar ou aplicar a decoração aos artigos
outros artistas e pensadores do seu tempo, e foi, em grande manufaturados a fim de torna-los mais artísticos e mais
parte, uma tentativa de fugir à sordícia dos primórdios da atraentes se opunha à ideia funcionalista que repudiava
era industrial, reestabelecendo o relógio e descobrindo uma tudo o que pudesse distrair a vista do desenho
alternativa para a produção fabril. Morris não acompanhou funcionalmente eficiente. 42-43
Ruskin até o fim em sua crença de que, resultando a boa
arte necessariamente do propósito moral elevado e APÊNDICE 2
carecendo a máquina de consciência, a indústria da
máquina é capaz de produzir obras de arte. Adotou, porém, TEORIAS FUNCIONAIS DA BELEZA
como essência e suas doutrinas socialistas, a convicção de
que a raiz do mal social no seu tempo se encontraria na [Utilidade dos artefatos: beleza é finalidade]
separação entre o trabalho e a alegria, entre a arte e o O hábito do espírito que encara as obras de arte como
ofício. No seu entender, o sistema social e as condições de artefatos feitos para servirem a um propósito, que culminou
trabalho que resultavam da produção em massa, mais do na teoria grega da arte como parte de uma teoria mais
que a máquina propriamente dita, “faziam com que a vida ampla da indústria ou da manufatura, supõe uma teoria
se tornasse cada dia mais feia”. Repudiava, por funcionalista da arte, que não reconhece qualquer distinção
consequente, a ideia de “belas-artes” como coisa à parte na fundamental entre as belas-artes e as arte úteis. Se isto for
categoria dos artigos de luxo e definia a arte como “a combinado com uma conexão consciente entre a arte e a
expressão da alegria do homem no trabalho”. Insistindo e beleza, conduzirá naturalmente a uma teoria funcionalista
quem a atividade estética deve abranger todo o conjunto da da beleza. 43
vida do homem, fez da reinstituição do ideal do artesanato
universal o seu empenho. O seu medievalismo se [Beleza = Função]
enquadrava nesse plano de reforma social porque ele A teoria funcionalista da Estética é uma teoria segundo a
acreditava que a Idade-Média, mais do que qualquer outro qual, e uma coisa for feita para funcionar bem, se a sua
período da história europeia, ilustrou a fusão da arte com a construção se apropriar exatamente à tarefa que lhe cabe
vida e a universalidade do artesanato, em que ele via executar, essa coisa será bela. 43
salvação da sociedade contemporânea. 41
As suas doutrinas, com efeito, eram muito mais [Funções do Belo (to kalon)]
que um retrocesso. Há enorme diferença entre uma [...] Os principais significados a que a teoria deu origem são
sociedade em que o artista é o artífice que acerta de ser os seguintes: 43
perito na confecção de quadros ou escultura em lugar de
sapatos ou móveis, e uma sociedade, como a que Morris 1. Por definição, a adaptação ao propósito faz parte do
ambicionava, em que todos os artífices terão as atitudes do significado da palavra “belo”. Por conseguinte, quando
artista. Realizar-se na sua arte e ainda que não logre alegria dizemos que uma coisa é bela queremos dizer que ela
e felicidade ao praticá-la, pelo menos não consegue ser feliz foi bem feita para um determinado fim, mas não
sem ela. Em geral, o artista continuará a praticar a sua arte implicamos, necessariamente, que ela é boa de se
mesmo que as condições econômicas lhes preceituem o

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olhar ou que possui beleza de aparência no sentido discernimos. Assim, o anatomista perito enxergará
estético. 43 inúmeros e formosos planos na estrutura do corpo humano,
2. Os exemplos de adaptação intencional dos meios aos que são desconhecidos do ignorante. Posto que os olhos
fins, como a teleologia manifesta na natureza ou a vulgares vejam muita beleza na face dos céus e nos vários
adaptação funcional, são chamados “belos” porque a movimentos e mudanças dos corpos celestes, o hábil
apreensão desse tipo de intencionalidade nos astrônomo, que lhes conhece a ordem e as distâncias, os
proporciona prazer intelectual semelhante ao que nos períodos, as órbitas que descrevem nas vastas regiões do
dá um problema preciso de xadrez ou uma elegante espaço, e as simples e belas leis palas quais se governam
demonstração matemática. Essa beleza do propósito os seus movimentos, e pelas quais e produzem todas as
intelectualmente apreendido não envolve aparências das suas estações, progressões e
necessariamente, na teoria, a beleza perceptível da retrogradações, seus eclipses, ocultações e passagens, vê
aparência. 44 reinarem em todo o sistema planetário uma beleza, uma
3. Por outro lado, pode-se sustentar que o funcionalismo ordem e uma harmonia que deleitam o espírito.” 45-46
no sentido da adequação a um propósito pretendido é
uma garantia de beleza visual. 44 [Renascimento: conceito intelectualista de beleza]
4. Ou pode sustentar-se que a adequação a um propósito A ideia intelectual de beleza que teve preeminência na
só será garantia de beleza se a adequação for visível e Renascença persistiu durante o século XVIII, muito embora
aparente (por exemplo, a forma “aerodinâmica”). 44 já pairassem no ar as primeiras sugestões da conexão
5. A adequação ao propósito é condição de que alguma romântica entre a beleza e o sentimento e a emoção.
coisa seja bela, mas não é, em si mesma, garantia de Manifestou-se na primazia conferida à beleza natural sobre
beleza. 44 a beleza da arte e, especificamente, na importância
atribuída à apreciação intelectual do sistema ordenado das
[Beleza intelectual e Beleza sensível] leis da natureza ou das adaptações teleológicas no mundo
Disso se colhe, portanto, que há, nas várias formas da teoria orgânico. Conquanto o interesse no século XVIII pela ordem
funcionalista, uma antítese implícita entre a beleza visual e intencional como prova da teleologia divina estivesse muito
a beleza intelectualmente apreensível. 44 distante da ideia medieval de uma ordem e “harmonia”
matemáticas, que simbolizavam a natureza divina, ambas
[Teorias funcionais da Beleza na Antiguidade] favoreciam, em suas aplicações estéticas, um conceito
[Platão] O primeiro sentido do funcionalismo retrocede à intelectualista da beleza. O conceito de Kant da
Antiguidade clássica. No Hippias Major, como vimos, Platão “intencionalidade sem intuição” imprimiu novo feito à teoria.
discutiu as definições de beleza como “adequabilidade” e 46
“utilidade” (isto é, adaptação eficiente a um propósito
aprovado). [Aristóteles] Tais definições voltam a ser [Beleza Funcional de Hogarth]
discutidas por Aristóteles nos Topica (102a 6 e 135a 13). [...] No século XVIII, o pintor Hogarth, que escreveu uma
[Xenofonte] Nos Memorabilia de Xenofonte, Sócrates outrora famosa Análise da beleza (1772), concordava em
sustenta que os corpos humanos e todas as coisas que os que, nos objetos úteis, a adequação ao propósito é uma
homens usam “são considerados belos e bons com qualidade estética: “Quando um navio navega bem, os
referência aos objetivos que eles se destinam a servir”. 44 marinheiros chamam-lhe uma beleza; as duas ideias tem
esse tipo de conexão”. 47
[Beleza sensível]
[...] Nessas discussões, não se cogita da beleza visual, da [Beleza Funcional de Berkeley]
atratividade da forma exterior. As discussões elucidam as [...] No terceiro de três Diálogos Filosóficos, o Bispo
ilações da palavra grega kalos (“belo”). Não se afirma que, Berkeley (1685-1753), idealista, verberou a ideia da beleza
por ser bem projetada para servir ao propósito a que se sensual e buscou reduzir do “encanto fugaz”, o je ne sais
destina, uma coisa é bela na aparência. Na verdade, está quoi dos antigos estetas franceses, à apreciação intelectual
expressamente declarado nos Memorabilia que a mesma da ordem ou adaptação teleológica. A ordem, a simetria e a
coisa pode ser kalos no que concerne a um propósito e não proporção, assevera ele, só existem em relação ao
kalos no que se refere a outro. 44 propósito – e significam uma coisa num cavalo e outra numa
cadeira ou num vestido. O encanto da simetria e da
[Belo como exemplo de excelência] [Belo Assassinato] proporção agrada, portanto, finalmente ao espírito que
[...] Esse conceito de beleza foi satirizado por Thomas De aprecia a perfeição de um objeto em função do seu
Quincey no ensaio intitulado “Do assassínio como uma das propósito. “Visto que sem o pensamento não pode haver
belas-artes” (1827), onde ele diz, por exemplo, que um finalidade nem desígnio; e sem a finalidade não pode haver
médio pode falar numa “bela úlcera”, não estará querendo uso; e sem o uso não existe propriedade nem justeza de
dizer que a úlcera seja bela para os olhos, senão que é um proporção, da qual se origina a beleza.”. 47
exemplo excelente de úlcera típica e que no
reconhecimento disso podemos sentir prazer intelectual. 45 [Funcionalismo Moderno: A forma segue a função]
A moderna filosofia do funcionalismo retrocede, pelo
[Thomas Reid e a Beleza Teleológica] menos, até a década de 1840, quando o escultor norte-
O filósofo Thomas Reid (1710-1796) distinguia entre um americano Horatio Greenough aludiu, numa carta a
sentido “instintivo” e um sentido “racional” da beleza e Emerson, à relação entre a forma e a função. A ideia foi
associava este último a nossa apreensão do desígnio ou da retomada mais tarde pelo arquiteto Louis Sullivan, que, em
adaptação ao propósito: 45 Kindergarten Chats (1901), criou a famosa frase: “A forma
“As obras da natureza possuem uma beleza que acompanha a função.”. Isso foi ampliado por Frank Lloyd
impressiona até o ignorante e o desatento. Mas quanto mais Wright nos seguintes termos: “A forma acompanha a
sabemos da sua estrutura, das suas relações mútuas e das função” é apenas o enunciado de um fato. Somente quando
leis pelas quais são governadas, tanto maior beleza e tanto dizemos “a forma e a função são uma só” estamos levando
mais deleitosos sinais de arte, sabedoria e bondade o fato puro e simples à esfera do pensamento” [...]. O

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

funcionalismo foi pregado como novo credo estético, após de vista, o fato de parece-lo é motivo apropriado de
a Primeira Guerra Mundial, por Le Corbusier (por exemplo, apreciação estética”. [...] 50-51
Rumo a uma nova arquitetura, 1927), que definiu a casa
como uma máquina feita para nela se viver, e durante um
decênio gozou de grande popularidade. Sustentava-se, CAPÍTULO 2
com fervor quase moral, que na arquitetura e nas artes
industriais o ornamento estranho deve ser evitado, a forma O NATURALISMO 1
há de refletir o propósito e, para ser belo, o objeto necessita
apenas ser projetado, o mais obvia e economicamente O NATURALISMO GREGO E RENASCENTISTA
possível para adequar-se ao propósito a que se destina. 48
[A origem do Naturalismo]
[1930 – Bauhaus - Móveis] Na arte visual grega do sexto ao quinto século A.C
Durante a década de 1930, o termo “funcional” foi registrou-se, pela primeira vez, um ciclo de técnicas cuja
empregado para descrever os desenhos severamente motivação principal derivava do impulso para produzir fac-
utilitários de móveis e equipamentos domésticos que se símiles convincentes das aparências visíveis das coisas, em
popularizaram sob a influência da Bauhaus. 47 lugar das formas e caracteres que se lhes conheciam. Em
linguagem técnica, surgiu uma arte mais “naturalista” do que
[Crítica: Beleza utilitária e beleza estética são “conceptual”. O domínio gradativo da representação
diferentes] naturalista foi rastreado com algumas minúcias, tanto no
[...] Mas o movimento “moderno” na arquitetura e no terreno da escultura, desde o rígido formalismo dos arcaicos
desenho industrial se estribava numa falsa presunção, a kouroi até as figuras de aparência real produzidas por
presunção de que, ao fazer uma coisa funcional nesse Fídias e Praxíteles, quanto na esfera da arte gráfica de
sentido, de modo que ela se adapte visivelmente ao seu pintura de vasos, através do descobrimento da arte gráfica
propósito, podemos assegurar que ela terá qualidade de pintura de vasos, através do descobrimento do escorço
estética, que a sua aparência exterior será bela para os e da ilusória representação do espaço tridimensional pelas
olhos e para os sentidos. Já em 1934 Herbert Read fazia técnicas de perspectiva. 52
soar uma advertência ao declarar em seu livro Art and
Industry: “Pode-se admitir que a eficiência funcional e a [As artes não-naturalistas do oriente]
beleza frequentemente coincidem. [...] O erro está em supor Os historiadores da arte costumavam interpretar a arte do
que a eficiência funcional seja a causa da beleza: belo Egito e da Mesopotâmia e os demais ciclos artísticos do
porque funcional. Essa não é a verdadeira lógica do caso”. Oriente Médio como tentativas desajeitadas de chegar ao
47-48 naturalismo, que foi, finalmente, realizado e aperfeiçoado
pelos gregos. Sabemos agora que eles visavam a coisas
[Insuficiencia do funcionalismo como teoria estética] diferentes. A arte mortuária egípcia, por exemplo,
A insuficiência do funcionalismo como teoria estética tencionava criar um substituto “mágico” da realidade, um
completa ficou provada pela avalanche de monótonas e corpo que o faraó pudesse habitar depois da morte física e
sórdidas estruturas que desfiguram o ambiente moderno, um veículo para a sua continuada existência no gozo das
demonstrando por uma triste experiência que o desenho coisas boas da vida, que eram também retratadas em
pode ser adaptado a função de ser economicamente murais ou imagens. Uma arte assim aspirava a um ideal
planejado sem lograr beleza nem dignidade. [..] 48 racional de verdade independente do tempo e do espaço,
representando as coisas no que supunha serem suas
[Designer (artífice) da antiguidade, medieval e moderno] formas objetivamente verdadeiras. O que menos
O “desenhista” moderno pouco ou nada tem em comum desejavam era reproduzir as aparências acidentais e
com o artista-artífice antigo e medieval, visto que ele se mudáveis de objetos, que variam para este ou aquele
ocupa, primordialmente de planejar a aparência de objetos observador. 52-53
que serão feitos à máquina por outros, ao passo que o velho
artista-artífice não se ocupava primordialmente da [Defesa de Platão a arte simbólica ou não-naturalista]
qualidade estética, mas da execução e da utilidade dos [...] Platão, por exemplo, admirador dos princípios da arte
objetos feitos por ele ou por seus assistentes. Por outro egípcia, censurava a distorção da perspectiva praticada na
lado, o desenhista comercial moderno pouco tem em escultura monumental grega a fim de que as proporções de
comum com o praticante tradicional das belas-artes, visto uma figura parecessem corretas ao espectador colocado
que lhe falece o elemento do artesanato, quase sempre muito abaixo dela. 53
importante para este último. 50
[Arte naturalista uma aberração]
[SUMÁRIO] Outros historiadores propenderam a considerar o
Sumário. A adaptação intrincada, econômica ou elegante ao naturalismo, que encontrou sua primeira eflorescência na
propósito pode ser intelectualmente apreciada e arte clássica grega e sua continuação na arte europeia,
considerada como um ramo da beleza intelectual. Mas já como uma exceção, se não uma aberração, do curso geral
não se acredita que isso garanta que uma coisa assim da arte mundial. Osvald Srén, por exemplo, grande
projetada terá uma bela aparência. Nas artes úteis (mas não autoridade em arte chinesa, num livro intitulado Essentials
presumivelmente nas belas-artes) a adequabilidade ao in Art (1919), assim descreve o caráter especial da tradição
propósito é uma condição restritiva, que não assegura a ocidental da arte: 53
beleza da aparência. 50 “O teste da arte mais geralmente aplicado no
Afiançam alguns filósofos que, se uma coisa mundo ocidental é, indubitavelmente, o da fidelidade à
parecer bem projetada para um propósito aprovado, será natureza. Nós, os ocidentais, fizemos o possível para
bela em virtude desse fato, tenha ou não sido realmente amarrar a arte ao mundo dos fenômenos naturais, fizemos
assim projetada. Diz, por exemplo, J. O. Urmson: “Se uma da fidelidade da reprodução a mais excelsa virtude na
coisa parece ter uma característica desejável de outro ponto pintura e escultura, e consideramos que a perfeição da arte

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

reside no poder do artista de criar imitações ilusórias da crítica produzira frutos, o sapateiro, exorbitando, principiou
natureza”. 53 a criticar a perna. Saindo esconderijo, Apeles chamou-o à
ordem: “Seu borra-botas, lembre-se de que é apenas
[Revolta contra o Naturalismo e o impulso naturalista] sapateiro; aconselho-o, portanto, a não ir além dos
O que se denominou “recuo da semelhança” ou sapatos”. 55
“desumanização da arte” no século XX pode ser
interpretado, em parte, como fuga à tradição do naturalismo [Renascimento: Vasari e a mosca de Giotto]
para uma concepção mais antiga da arte .Mas a revolta Na Renascença, a semelhança voltou a ser um lugar-
contra o naturalismo deixou-nos no século XX, diante de comum da apreciação e Vasari em suas Vidas dos pintores,
novos enigmas e perplexidades acerca da óbvia conexão escultores e arquitetos mais eminentes (1550) inclui
da arte com a realidade do mundo que nos rodeia, e a anedotas que rivalizavam com as de Plínio e Aeliano: os
compreensão do impulso naturalista, desde os seus morangos num afresco de Bernazzone foram bicados por
primórdios entre os gregos, é uma útil e porventura pavões; um cachorro num quadro de Francesco
necessária preparação para a solução de tais Monsignori foi atacado por um cão verdadeiro, e assim por
perplexidades. 54 diante. A respeito de Giotto conta que, ainda menino e
estudando com Cimabue pintou certa vez uma mosca no
[Arte naturalista: uma Ilusão] nariz de um retrato em que Cimabue estava trabalhando e
Se definirmos o naturalismo estético como a ambição de fê-lo de forma tão real que Cimabue a tomou por uma mosca
colocar diante do observador uma semelhança convincente verdadeira e tentou enxotá-la. 55-56
das aparências reais das coisas, o critério do êxito passará
a ser a verossimilhança ilusionística. Na admiração [Renascimento: Bocaccio e Giotto]
provocada por uma obra de arte dá-se grande importância O contador de histórias Bocaccio, autor de Decameron,
à habilidade do artista em fazê-la parecer não ser o que é, escreveu, a propósito de Giotto: “ele era de um espírito tão
mas a realidade do que representa. 54 excelente que, ainda que a natureza, mãe de todos, sempre
operante pela contínua revolução dos céus, moldasse o que
[Antiguidade: Naturalismo] bem entendesse, ele, com o seu estilo, a sua pena e o seu
Um fundo considerável de histórias populares dos artistas lápis, o retrataria de tal modo que parecesse não a sua
gregos foi-nos preservados, principalmente por Plínio, que semelhança, mas a própria coisa, de maneira que o sentido
provavelmente as encontrou num livro anedótico, Vidas de visual dos homens frequentemente se enganava a seu
Pintores e noutro de Vidas de Escultores, escrito no quarto respeito, tomando pelo verdadeiro que era apenas pintado”.
século X.C. por Dubris, historiador e governante de Samos. 56
54
[A impressão que causa hoje]
[Antiguidade: Anedota de Dubris sobre o naturalismo] Isto se nos afigura extravagante, se não incompreensível.
As anedotas de Duris confirmam plenamente a fascinação Os quadros de Giotto e dos seus seguidores já não nos
exercida pela representação ilusionista, como se a pintura aparecem acentuadamente ilusionísticos. É por outras,
fosse considerada uma espécie de truque de prestidigitação mais duradouras, qualidades estéticas que ainda os
ou mistificação ótica, e a admiração pela habilidade técnica admiramos. Pouco ou nada da pintura grega clássica
por parte do artista. [...] 54 sobreviveu mas, a julgar pelas relíquias das pintura grega
provinciana que ainda se encontram no sul da Itália, temos
[Antiguidade: Anedota de Apeles, Pirrásio] muitíssimas razões para supor que os quadros dos famosos
[...] Apeles pintou um cavalo com tanto realismo que artistas gregos não se nos afigurariam notavelmente
cavalos vivos, iludidos, relincharam. Pirrásio pintou tão ilusionísticos. Pareciam-no aos seus contemporâneos,
realisticamente um soldado sobrecarregado de armas numa como o parecem os quadros de Giotto em contraste com o
corrida, que este parecia transpirar enquanto corria, e outro que se fizera antes dele. 56
enquanto depunha as armas, cujos ofegos temos a
impressão de ouvir. Numa competição com Zêuxis, [Alma da Escultura: Mito de Dédalos, por Aristófanes]
Pirrásio pintou umas uvas tão parecidas com uvas A lenda atribuída a origem da escultura ao mítico Dédalo, o
verdadeiras que os passarinhos acudiam a bica-las. Diante primeiro a fazer estátua com os olhos abertos e
disso, Pirrásio pintou uma cortina em toda a extensão do representando figuras em movimento. A semelhança das
quadro, que enganou o próprio Zêuxis; este lhe pediu que suas obras com os temas representados era um lugar-
descerrasse a cortina para poder ver o quadro. Outra comum na literatura grega latina. [...] Numa peça chamada
história de Zêuxis, contada por Shakespeare é a seguinte: Dédalo, o grande poeta cômico Aristófanes referiu a
Zêuxis pintou um menino carregando uvas com tamanho história segundo a qual, ao passo que os escultores mais
realismo que os passarinhos se aproximavam e bicaram as antigos modelavam imagens sem vista, Dédalo foi o
uvas. Diante disso, Zêuxis confessou o seu malogro, pois primeiro a abrir os olhos das suas estátuas, de modo que
se tivesse pintado o menino com o mesmo realismo com elas parecessem estar vivas, mover-se e falar: “E por isso
que pintara as uvas, os passarinhos teriam tido medo de dizem que uma das estátuas feitas por Dédalos preciso ser
aproximarem-se. 54-55 amarrada pelo pé para não fugir”. 56-57

[Antiguidade: Anedota do sapateiro de Apeles] [Alma: a ilusão de vida]


O valor atribuído à meticulosa exatidão do pormenor é As primeiras referências literárias ao naturalismo na arte
ilustrado por uma anedota de Apeles, que costumava expor destacam as mesmas qualidades: a habilidade técnica do
os seus quadros junto À via pública e esconder-se para artífice na produção do simulacro, uma ilusão no sentido do
ouvir os comentários dos que passavam. De uma feita, trompe d’oeil, sobretudo uma ilusão de vida. 57
ouviu um sapateiro censurar-lhe a representação de uma
sandália porque esta possuía uma correia a menos. Apeles
corrigiu o erro e voltou a expor o quadro. Vendo que a sua

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[Naturalismo narrado por Homero: Ilíada e Odisseia] de caráter como “a nobreza e a generosidade, a vileza e a
Na Ilíada (XVIII, 548) Homero remata longa descrição de mesquinhez, a modéstia e a inteligência, a insolência e a
um escudo cinzelado, feito pelo deus metalúrgico Hefesto estupidez”, que revelam nos olhares e nos gestos dos
para Aquiles, com uma cena de aração: “E atrás do arado a homens, estejam eles imóveis ou em movimento. Na
terra ficava negra, como fica um campo depois de lavrado, conversação com Cleito, Sócrates principia com o truísmo
embora fosse feita de ouro: verdadeira maravilha de lavor.” (como era considerado) segundo o qual a “aparência de
Na Odisseia há uma descrição de uma fivela de ouro com realidade” nas estátuas é o que “mais leva atrás de si os
um desenho esculpido na superfície: “um sabujo segurando olhos dos contemplantes” e, a seguir, demonstra o
um corçozinho malhado e despedaçando-o à medida que argumento, para nós igualmente obvio, de que o escultor
este forcejava por escapar. Toda a gente admirava o lavor, “faz que as suas estátuas pareçam mais reais
o sabujo rasgando e estrangulando o corçozinho, este assemelhando a sua obra às figuras dos vivos”. Afirma a
dando chicotadas com as patas ao procurar fugir, e a cena seguir que “a representação das paixões dos homens
toda feita de ouro”. 57 empenhados num ato qualquer” desperta certo prazer
naquele que a contempla, e chega a conclusão de que “um
[Naturalismo de Eurípedes: Alceste] estatuário, portanto, deve expressar as operações de
Eurípedes, no quinto século, em sua peça Alceste, faz espírito através de suas formas”. 59
Admeto planejar a encomenda de uma estátua-retrato para
consolá-lo da perda da esposa morta: “Encontrarei um hábil [O novo naturalismo no tempo de Sócrates]
escultor que esculpa a tua imagem e esta será colocada em Tudo isso parece elementaríssimo a leitores que herdaram
nossa cama; ajoelhar-me-ei ao lado dela, enlaçá-la-ei com dois mil anos de pressuposições naturalistas, mas era, sem
os braços, direi o teu nome, Alceste! Alceste! E cuidarei dúvida, novo e emocionante no tempo de Sócrates. Um
aconchegar de mim a minha querida esposa.” 57 interesse idêntico pela representação visual direta da
emoção, em lugar da representação através do simbolismo
[Naturalismo de Virgílio: Eneida] convencional, patenteia-se na crítica e nos comentários de
O tema da habilidade dos artistas em produzir uma arte da Renascença, quando se registrou nova
semelhança de vida persistiu durante toda a Antiguidade eflorescência do naturalismo, depois da solução parcial de
clássica. Virgílio alude tipicamente a “bronzes que respiram continuidade que se verificou durante a Idade-Média. 59
suavemente e rostos vivos feitos de mármore” (Eneida, VI,
847). 57 [O novo naturalismo no tempo de Giotto]
Foi essa qualidade da sua pintura que valeu a Giotto ser
[Calístrato: Representação das Emoções] saudado não só como o maior realista de seu tempo, mas
Por volta do século IV a.C, convertera-se em lugar comum também como o maior pintor que já existira, o reformador
de retórica, como nas descrições críticas de Calístrato. que trouxe de volta a arte da pintura ao verdadeiro caminho,
Sobre uma Bacante de Escopas, escultor do quarto século que se perdera. Foi por essa qualidade que Massaccio e
famosos pela sua representação das emoções, escreve ele Botticelli vieram a ser considerados em sua época mais
a seguinte frase: 57 “realistas” do que Giotto, e Rafael e Leonardo mais do que
“Era a estátua de uma bacante feita de mármore Botticelli. 59
de Paros e, não obstante, transformada em verdadeira
bacante. Pois embora conservasse a própria natureza, a [Alberti e a representação das Emoções]
pedra parecia transcender as suas limitações; se bem Alberti era de parecer que a representação das emoções e
estivéssemos realmente contemplando uma imagem, a do estado de espírito constituía a tarefa mais essencial e
perícia do artista transformara a imitação em realidade. mais difícil do pintor e sobre isso estendeu em seu livro
Percebia-se que, a despeito da sua dureza, a pedra, Della Pittura (1546). Leonardo, segundo o qual “a figura
abrandada, assumira visos de feminilidade e, conquanto mais admirável é a que, por suas ações, melhor exprime o
não tivesse o poder do movimento, sabia dançar a dança espírito que a anima”, encheu um sem-número de cadernos
báquicas e responder ao impulso do delírio báquico. de notas com estudos das manifestações físicas da
Quando olhamos para o rosto, quedamos sem fala, tão emoções, tiradas da vida, e chegou a fazer um estudo
visivelmente manifesta era nele a aparência da especial dos gestos e expressões, faciais dos mudos, mais
sensibilidade, posto lhe faltasse sensação... embora vigorosas que as expressões das pessoas capazes de
desprovido de vida, possuía, sem embargo, a vitalidade da comunicar-se oralmente. A representação dos sinais físicos
vida. 58 da emoção foi, mais tarde, sistematizada nas academias.
59
[Representação das Emoções: Imitação da Alma]
A representação da emoção ou do caráter pelas imagens [Lomazzo: sistematização mimética das emoções]
visuais diretas, ao invés de representa-los simbolicamente Em seu tratado Sobre a Arte da Pintura, da Escultura e da
pelas convenções tradicionais, sempre exerceu particular Arquitetura (1584), Lomazzo discutiu “os movimentos que
fascinação num período de naturalismo e pareceu contribuir podem ser produzidos no corpo pelas diferentes emoções
de maneira notável para a impressão de “realismo” a quem da alma” e tentou uma classificação de todas as possíveis
aspira a arte naturalista. Os gregos chamavam a isto emoções humanas, bem como dos gestos e conformações
“imitação da alma”.58 faciais por cujo intermédio elas se expressam. 59-60

[Sócrates e a Imitação da Alma] [Le Brun: método de desenhar as paixões]


Expõem-no de forma interessante duas conversações Le Brun, fundador da Academia Francesa, publicou em
relatadas por Xenofonte (Memorabilia, L. III, Cap. X), uma 1698 um Méthode pour apprendre à dessiner les passions,
entre Sócrates e o pintor Parrásio e outra sentre Sócrates que exerceu enorme influência. 60
e o escultor Cleito. Na primeira, Sócrates obtém de Parrásio
que concorde em que o pintor pode “imitar” uma expressão
jovial ou triste, um olhar amistoso ou hostil, ou qualidades

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[Sir Charles Bell: descrição gráfica das emoções] [Filostrato e Goethe]


Uma longa série de estudos fisionômicos que interessam à [...] Esse estilo de crítica se converteu em genre literário nas
descrição das emoções por meios gráficos culminou na Imagines de Filóstrato (terceiro século a.C.), que eram
obra importante de Sir Charles Bell, The Anatomy and admiradas por Goethe. Descrevendo um quadro do jovem
Philosophy of Expression as connected with the Fine Arts Naciso, que se enamora do próprio reflexo numa lagoa, ele
(1806) [...] 60 escreve o seguinte: [...] 62

[Charles Darwin: expressão das emoções nos [Leonardo e Lessing]


homens...] [...] De Leonardo a Lessing, cuja obra importante,
[...] ao depois suplantada pelo estudo de Charles Darwin, Laokoon, se publicou em 1766, constituía tópico favorito de
The Expression of the Emotions in Man and Animals (1872), debates a comparação e o contraste entre os aspectos da
quando surgiram dúvidas sobre o grau em que a aparência realidade que poderiam ser melhor representados
facial pode comunicar a emoção sem ambiguidades. 60 visualmente pela pintura ou por meio de palavras, pela
literatura. 62
[Naturalismo: uma arte da ilusão]
Inerente ao ponto de vista do naturalismo que o fato de que [André Malraux: a crítica de Stendhal]
a atenção é desviada da obra de arte para o assunto O crítico e esteta moderno André Malraux observou com
representado. A obra de arte torna-se como que agudeza que os escritos de Stendhal em louvor de
transparente e nós olhamos, através dela, para o que ela Correggio poderiam aplicar-se, palavra por palavra, a uma
representa. Não vemos uma bela estátua, mas um belo grande atriz (La Voix du Silence, 1951, p. 93). Ele não falava
corpo habilmente “imitado”, ou vemos apresentados os do quadro, fala da mulher pintada no quadro. E isto se aplica
sinais da experiência emocional. 60 à maior parte da crítica europeia até o momento em que a
fotografia comercial privou da sua razão de ser a crítica
[Sócrates idealista em Parrásio] descritiva. 63
Em sua conversação com Parrásio, Sócrates presume que
“as pessoas olham com mais prazer para as pinturas que [Vocabulário crítico naturalista]
retratam os caracteres belos, bons e agradáveis” do que Um dos resultados da concentração da atenção na coisa
para aquele em que “estão representados o deformado, o representada foi não se ter criado uma terminologia
mau e o detestável”. 60 apropriada para se falar sobre a obra de arte como coisa
distinta das realidades da natureza “imitadas” pela obra.
[Sir Joshua Reynolds herdeiro de Sócrates (Estilo Essa pobreza de vocabulário tornou-se particularmente
Grandioso)] notável no século XX, quando os críticos principiaram a
Embora isto hoje se nos afigure surpreendentemente ocupar-se das qualidades estéticas da obra de arte em lugar
ingênuo, exprime, não obstante, nos termos mais simples e de seu conteúdo representativo. 63
diretos, a atitude de espírito implícita na doutrina do “estilo
grandioso”, tal e qual a formulou, por exemplo Sir Joshua [Além da própria natureza representada, conta na crítica
Reynolds (1723-1792), que recomendava ao pintor a naturalista 1) sua semelhança com esta natureza e 2) a
escolha de um assunto nobre e digno e falava com desdém habilidade técnica do artista]
dos pintores do genre flamengo pela sua escolha de temas Dentro do âmbito do naturalismo, se dermos atenção à ora
vulgares e comuns. 60 de arte propriamente dita, o único critério de que
disporemos para avalia-la como distinta da realidade
CRITÉRIOS CRÍTICOS DO NATURALISMO espelhada por ela, será o padrão de correção, de Platão, e
a proficiência do artista. 63
[Crítica narrativa da cena do quadro]
O hábito mental de considerar uma obra de arte como [Aristóteles: 1) arte pictórica é representação; 2) temos
“transparente” – imitação ou réplica de alguma parte do prazer em contemplar imitações (ou, caso nunca
mundo real, que ela representa – redundou num tipo de tenhamos visto o objeto representado [isto é, não
crítica descritiva, que diligencia apresentar uma explicação tenhamos dele o conceito], o que sentimos é um prazer
em palavras não da obra de arte, mas da cena, do incidente em contemplar a habilidade do artista); 3) o prazer não
ou do objeto que a ora de arte representa. Muitas vezes o está no objeto, mas na inferência que ele faz ao
crítico se envaidecerá de ir além do que está representado conceito]
e descrevera o que lhe parece sugerido pelo quadro. 61 [...] Aristóteles presume que a arte pictórica é imitação,
reconhece que encontramos prazer em imagens de coisas
[Crítica narrativa: de Homero até o Século XIX] que a nossa apreciação dos quadros é um prazer intelectual
Desde Homero até o século XIX tem sido este o tom derivado do reconhecimento da imagem. Num famoso
predominante da crítica da arte ocidental. Descrevendo o trecho da Poética afiança ele que todos apreciamos as
escuto feito por Hefesto para Aquiles na Ilíada, diz, em “imitações”, como o demonstram os fatos. 64
parte, o poeta: [...]. Esse tipo de cordado interpretativo em “[...] É por isso que as pessoas gostam de ver
torno da representação real permaneceu como traço ilustrações, pois, ao estuda-las, granjeiam conhecimento e
marcante de grande parte da crítica anedótica ocidental. 61- fazem inferências no que respeita à classe de coisas a que
52 cada qual pertence. Porque, se o observador adergar de
não ter visto o objeto antes, a ilusão não lhe causará prazer
[Pausânias e Luciano] como “imitação”, mas em virtude da sua execução, ou da
As descrições de quadros antigos, que sobrevivem em sua cor, ou de alguma outra causa semelhante.”. 64
Pausânias e Luciano, contam-nos muita coisa sobre a [Retórica] [...] Pois o prazer não reside no objeto,
cena e a história, muito pouca sobre os quadros. 62 mas na inferência de que a imitação e a coisa ilustrada são
idênticas, de modo que se realiza um ato de aprendizagem.
64

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[Quando representa-se algo feio, o que atrai na obra não APÊNDICE


é a ‘beleza’ do objeto representado, mas a habilidade do
artista ao fazê-lo] O CONCEITO DE “MIMESE”
A razão de apreciarmos reproduções de assuntos feitos
continuou a ser um problema fascinante para a Antiguidade [Naturalismo e Mimese]
e, quatro séculos depois, Plutarco repetia o ponto de vista Tal como foi descrito, o naturalismo constituiu o ímpeto
segundo o qual, embora uma coisa feia não possa ser um principal responsável pelos desenvolvimentos técnicos da
quadro bonito, a representação perita e exata de uma coisa pintura e da escultura gregas clássicas, e o principal critério
feia por um artífice competente pode dar-nos prazer. 65 da crítica prática. A pintura e a escultura eram admiradas
pelo seu naturalismo e os artistas alcançavam fama pela
[Deleite com o feio] habilidade em reproduzir obras de arte naturalistas. No
O problema, ou pseudoproblema, da nossa capacidade de terreno da teoria, o conceito que melhor parece exprimir a
deleitar-nos com a bela representação de um tema feio ou ideia de naturalismo era o de mimese. 68
pungente é peculiar ao ponto de vista naturalista, para o
qual a obra de arte é “transparente” e nós respondemos, [Aristóteles: belas-artes, artes naturalistas e miméticas]
não a ela, mas à realidade que nela se reflete. 65 Como coisa natural e sem discussão, Aristóteles definiu o
que determinaríamos “belas-artes” (com exclusão da
[Edmund Burke, Philosophical Enquiry into the Origino arquitetura) como artes miméticas; no entanto, seria sem
four Ideas of the Sublime and Beautiful (1757)] dúvida estranho empregar a palavra “naturalista” dessa
“[...] Quando o objeto representado na poesia ou na pintura maneira. Não obstante, a mimese e o naturalismo estão
é tal que não poderíamos sentir o desejo de vê-lo na estreitamente ligados entre si e, sob determinado aspecto,
realidade, posso estar certo de que o seu poder na poesia não seria erro considerar a mimese como o primeiro, e
ou na pintura se deve ao poder da imitação e a nenhuma ainda vagamente expresso, precursor do conceito
causa que opere na coisa em si [...]” 66 emergente do naturalismo. A mimese ocupou o centro de
discussão das artes durante toda a Antiguidade e conservou
[Admiração do tema ou admiração da habilidade] a sua importância como conceito estético até os dias de
Burke nos oferece uma opção. Quando o seu tema é hoje. 69
atraente, o quadro nos proporciona prazer como se fosse a
coisa verdadeira, e não fazemos caso da obra de arte. [Mimese = imitação]
Quando o tema é comum e feio, admiramos a sua Basicamente, a palavras grega significa “imitação” (é a raiz
representação como um tour de force. 66 de “mímica”), mas tinha uma série tão diversa de aplicações
na linguagem comum, refletidas no discurso filosófico que
[Variedade de interesses de representação] nenhuma palavra portuguesa equivalente pode abrange-las
Os artistas e seus seguidores tem sido, de um modo geral, todas sem uma grosseira deturpação do uso português. 69
homens vigorosamente inclinados a observar e retratar a
heterogênea multiplicidade das formas naturais em toda a [Platão: As palavras imitam, como a música e a pintura]
sua variedade e diversidade: o feio, o grotesco, o comum e Mas já pisamos terrenos menos familiar quando, no Crátilo,
o vulgar lhes têm atraído o interesse como objetos de Platão afirma que as palavras “imitam” as coisas que elas
representação, e a preferência aristocrática por temas nomeiam, exatamente como os quadros e a música “imitam”
sublimes e elevados mal conseguiu sobreviver fora das objetos e estados de espírito. Em seus diálogos metafísicos,
academias. 67 Platão empregava, às vezes, a mimese para expressar a
relação em que determinadas coisas empíricas se
[Naturalismo no Romantismo] encontram com o conceito geral que as abrange. 70
A nova ênfase que o movimento romântico emprestou ao
“característico”, preferindo-o ao “belo”, desviou a atenção [Aristóteles: a ‘arte’ imita a natureza]
do problema como tal. O problema também perde Em outro sentido, quando Aristóteles diz, como o faz com
importância com as teorias populares da arte como modo frequência, que a arte “imita” a natureza (Física, II, 2;
de comunicação e meio de auto-expressão [...]. 67 Meteorológica, IV, 3; De Part. Animal, IV, 10), ele entende
por “arte” a manufatura em geral e não implica que as
[Naturalismo no Realismo] produções das belas-artes (distintas dos artefatos úteis)
[...] O “realismo social” do século XIX – o ímpeto filosófico sejam cópias ou reproduções de objetos naturais. [...] Como
de Courbet e Daumier entre os artistas e de Zola entre os parte da natureza, o homem deveria apreender tais
escritores do século XX de Orozco e Siqueiros – atribuíram propósitos através da razão e poderia cooperar na
uma função positiva à representação da miséria e da consecução das finalidades para as quais se dirigem os
opressão humana, da fealdade social em geral, a de processos naturais. A produção humana planejada, ou
despertar a consciência dos homens e melhorar as techne, era um exemplo da natureza em ação, exemplo de
condições humanas. 67 um processo natural iluminado pela racionalidade da
natureza e tornado explicito no entendimento humano. 70
[A pintura transparente da crítica naturalista]
Raras vezes foi tão longe quanto a crítica naturalista da [A Mimese e as Artes Miméticas]
pintura, que chegou a considerar a obra de arte Nesse sentido lato, mimese não é um termo estético e não
completamente “transparente”, como menoscabo até das tem nenhuma conexão especial com as belas-arte. No
suas propriedades formais e estruturais. Pode-se ver uma sentido mais estreito, já citado, o conceito é usado para
analogia entre o vigor da apresentação nas artes literárias determinar os limites das artes da pintura, da escultura, da
e a qualidade de “presença imediata” nas artes visuais, poesia, da música e da dança, que as separam das artes
qualidade essa que foi raramente compreendida no úteis ou industriais. Sem embargo disso, até no sentido
Ocidente. 68

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

estético, mais estreito, o conceito é singularmente esquivo. naturalista e mostra o mundo real como que através de uma
71 vidraça de janela, nem melhor nem pior do que é. 74

[Platão: copiar e corrigir a natureza] [Realismo: oposto ao abstracionismo e ao deformado]


Platão (Leis, 667) Propõe a “correção” como critério para Num sentido mais específico, usa-se, às vezes, “realista”
toda a arte mimética ou representativa. Entretanto, não é como o contrário de “abstrato”. Dessa maneira, diz-se que
fácil pensar numa noção de “imitação” em que a as maçãs de Cézanne são mais abstratas e, portanto,
correspondência correta ou verossimilhança se aplique da menos realistas que as de Chardin ou Zurbaran, e
mesma forma tanto aos ritmos da música e da dança, Zurbaran menos realista que Jan van Huysum. Além
quanto à pintura ou escultura naturalista. 71 disso, “realista” pode ser usado como o oposto, não de
“abstrato”, mas de “deformado”. 74
[Aristóteles: três tipos de mimese]
No terceiro capítulo da Poética ele distingue três métodos [Realismo Social]
de mimese: a poesia narrativa sem personificação; a poesia A expressão “realismo social” tem sido usada para designar
dramática, que usa a personificação em todo o seu movimentos artísticos, sobretudo um movimento registrado
transcurso; e a mescla de narrativa e personificação. No na segunda metade do século XIX, preocupados com a
capítulo 24 louva Homero pelo emprego parcimonioso da descrição realista da fealdade, da miséria ou da pobreza em
narrativa e acrescenta: “O poeta deveria falar na primeira defesa de algumas teorias políticas ou em favor dos
pessoa ao menos possível; pois isso o impede de ser um interesses da melhoria social, no intuito de despertar a
“imitador”. 71-72 consciência dos homens, provocar a indignação ou a
piedade, etc. 74-75
CAPÍTULO 3
[Realismo “Verismo”]
O NATURALISMO 2 O termo “verismo” indica uma forma extrema de realismo no
sentido da individuação, como se manifesta, por exemplo,
[Resumo do capítulo anterior] em certa escultura romana. Aplica-se particularmente à
Descrevemos o naturalismo em função do hábito mental espécie de arte que inclui todas as minúcias até a última
que desvia a atenção da obra de arte como tal e contempla, ruga, a última verruga e a última espinha, contribuam elas
através dela, como que através de um espelho ou de uma ou não para a impressão geral do tipo do personagem. 75
janela transparente, a fatia de realidade que ela “imita” ou
reproduz, avaliando a obra de arte pelos padrões naturais [A unidade dos realismos]
aplicados ao seu assunto ou pelos padrões de exatidão, Comum à maioria desses empregos e a implícita atitude
habilidade e vigor com que ela reflete esse assunto. naturalista. A obra de arte “realista” é naturalisticamente
encarada como um espelho refletor, através do qual se
[Introdução deste capítulo: Os Tipos de Naturalismo] apresenta uma fatia escolhida da realidade. Chamando-lhe
Urge, agora, amplificar a descrição. O assunto representado “realista”, subentendemos que se julga a realidade refletida
pela obra de arte não precisa ser uma parte do mundo real: mais real do que imaginária, e que ela, em conjunto, se
pode ser um objeto imaginário, uma parte de um mundo reflete como é e não como sendo deliberadamente
imaginário. A obra de arte pode modificar ou deformar o idealizada ou caricaturada. 75-76
mundo real sem perder o seu poder de convicção. Pode
refletir certas verdades gerais relativas ao mundo de ANTIIDEALISMO
preferência a indivíduos particulares, ou pode aspirar a
pintar um mundo ideal ou um mundo de verdade absoluta, [Deformação do mundo]
acima e além do mundo real que conhecemos. Embora Não existe um termo único, reconhecido, para designar a
conserve o caráter naturalista do espelho através do qual a espécie de arte que, como um espelho deformante, reflete
atenção do contemplante se fixa no objeto representado, a o mundo mais feio do que ele é. 76
obra de arte pode, não obstante, ser um espelho
deformante ou um projetor idealizador. Dessa maneira, [Francis Bacon]
tanto o realismo quanto o idealismo são modificações ou Francis Bacon, que disse da sua obra: “Eu gostaria que os
tipos de naturalismo artístico. 72-73 meus quadros dessem a impressão de que um ser humano
havia passado entre eles, como uma lesma, deixando um
[Pioradores (Realistas) e Melhoradores (Idealistas)] rastro de presença humana e um traço de lembrança de
Era um lugar-comum da crítica grega que alguns pintores sucessos passados como a lesma deixa a sua gosma” (no
(por exemplo, Polignoto) pintavam os homens melhores do catálogo da exposição “A nova década”, Museu de Arte
que o comum deles e outros (por exemplo, Pauson) os Moderna, Nova Iorque, 1955). 76
pintavam piores. Ainda possuímos termos críticos que
distinguem tais gêneros de arte. 73 [ímpeto antiidealista]
O século atual assistiu à passagem de uma onda vigorosa
O REALISMO de arte antiidealística; registrou-se uma tendência em
muitos movimentos para dar destaque às características
[Definição de Realismo] menos atraentes do ambiente, em deliberada oposição à
Quando a realidade representada na obra de arte coincide idealização convencional. Mas é ainda duvidoso que um
com o mundo real da experiência damos a essa arte o nome artista vise predominantemente a mostrar o mundo real pior
de realista. Esta é a relação mais lógica e útil, e talvez do que é, a menos que o faça no intuito de fornecer algum
também a mais genérica, que podemos estabelecer entre outro propósito. 76
os termos de que tanto se tem abusado, “naturalista” e
“realista”. Chamamos de realista a qualquer arte quando é

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[IDEALISMO] que o primeiro relata o que aconteceu e o último, a espécie


de coisas que poderiam perfeitamente ter acontecido [pela
[Os três idealismos] Verossimilhança]. Por esse motivo, a poesia é uma coisa
O termo “idealista” adquiriu, na linguagem da história e da mais filosófica e mais séria do que a história. Pois a poesia
crítica da arte, um significado composto, derivado de três refere verdades universais e a história, ocorrências
fios entrelaçados de ideias, que importa distinguir: o particulares. Por “verdades universais” entendemos as
idealismo perfeccionista, o idealismo normativo e o espécies de coisas que certo tipo de pessoa dirá ou fará, de
idealismo metafísico. 76 acordo com a probabilidade ou a necessidade, e é isso o
que a poesia colima – acrescentando os nomes depois. 78
IDEALISMO PERFECCIONISTA
[Aristóteles: a poesia deve ter uma estrutura unificada
[O melhor da natureza] (cósmica) que lhe garante verossimilhança]
O termo se aplica à arte que reflete, de preferência, a Esta afirmação segue-se à sua declaração, igualmente
natureza nas suas condições mais favoráveis e atraentes, importante, de que a bora de arte precisa ser uma estrutura
mas tenta melhorá-la e aperfeiçoá-la eliminando as unificada com uma inteireza própria em que todas as partes
inevitáveis imperfeições das coisas individuais. constituintes e acontecimentos são escolhidos e dispostos
de tal forma em relação uns aos outros e ao conjunto que
[Sócrates: A extração das melhores partes da natureza] nenhum pode ser afastado ou mudado sem “desarticular e
A mais antiga enunciação desse conceito ocorre numa desconjuntar” o todo. 79
conversação entre Sócrates e o pintor Parrásio, registrada
por Xenofonte nos Memorabilia. “E quando queres [Platão: objeção a tese de Aristóteles]
representar corpos formosos”, diz Sócrates, “visto que é Se bem o repúdio, por parte de Platão, de quase toda a
difícil encontrar uma pessoa cujas partes sejam todas poesia na República fosse ditado, essencialmente, por
perfeitas, escolhes porventura, dentre muitas, as partes motivos morais, ele afirmou também que a poesia não é
mais belas de cada uma e, assim, representa corpos “filosófica”, pois apresenta descrições de coisas particulares
totalmente formosos?”. Parrásio confessa que é esse o seu e não oferece ao espírito um conhecimento científico dos
método. Ingênuo como é, o conceito deu origem às princípios gerais. 79
anedotas igualmente ingênuas, já citadas, de pintores como
Zêuxis, que utilizava certo número de belos modelos a fim [Platão: contra o naturalismo realista; Aristóteles
de produzir uma obra que combinava as belezas de todos defende a arte colocando-a em um naturalismo
sem as imperfeições de nenhum. 77 idealista-normativo]
Platão rejeita a arte realista do naturalismo por princípio,
[A história dessa ideia] porque (sustenta ele) a mera reprodução das coisas como
A ideia foi solenemente adotada por autores romanos, como elas são não tem valor positivo e apenas nos afasta um
Cícero e Quintiliano. Voltou a popularizar-se na pouco mais da verdadeira realidade das essências. A
Renascença. Foi mencionada aprovativamente por Alberti resposta de Aristóteles (que se refere principalmente à
em seu De Pittura (1435) e o filósofo Francis Bacon (1561- poesia e ao drama) é uma defesa do idealismo normativo
1626) repetiu-a com estas palavras: “Não existe beleza dentro do conceito geral do naturalismo. 79-80
excelente que não tenha alguma singularidade em suas
proporções”; o artista, portanto, precisa “tirar as melhores [J. J. Winckelmann e o Neoclassicismo]
partes de diversos rostos para fazer um excelente”. Voltou O primeiro teorista do neoclassicismo, o historiador d arte
a reiterá-la Sir Joshua Reynolds, se bem ela mal se alemão J. J. Winckelmann (1717-1769), provavelmente fez
coadunasse com os seus demais preceitos para o estilo mais do que qualquer outra pessoa por invalidar, para as
grandioso. 77 gerações subsequentes, uma justa apreciação da arte
grega com a sua ênfase sobre “a nobre simplicidade e a
[Descontentamento com a realidade] serena grandeza” dessa arte. Em suas Reflexões Sobre a
Essas histórias precisam ser encaradas como expressão Imitação das Obras Gregas na Pintura e na Escultura
vivamente anedóticas da percepção de que os artistas não (1755), escreveu: “A marca distintiva dominante geral das
se têm contentado, ou nem sempre se contentaram, em obras-primas gregas é, em última instância, uma nobre
copiar objetos individuais ao natural, mas procuraram, e simplicidade e uma tranquila grandeza, tanto na postura
algumas vezes conseguiram, uma beleza mais perfeita do quanto na expressão. Assim como as profundezas
que a que se encontra nas coisas naturais particulares. 77 oceânicas permanecem sempre serenas por mais furiosa
que ruja a superfície, assim também a expressão nas
IDEALISMO NORMATIVO figuras dos gregos, através de todo o sofrimento, revela
uma grande alma imperturbável”. Essa espécie de coisa
[O ideal que dá a norma ou o cânone da representação] teria provocado o mesmo espanto no tempo de Aristóteles
O ideal artístico foi amiúde considerado como tipo geral de que provoca no nosso. 80
classe no sentido de norma, ou de verdade geral, distinta
dos casos individuais variáveis de classe. 78 [Winckelmann e o Idealismo Normativo Grego]
Mas Winckelmann também proclamou que na beleza
[Aristóteles, Poética – a diferença entre o historiador sensual das estátuas gregas estavam refletidos, com maior
(que deve se deter na realidade dos fatos) e o poeta (que perfeição do que em quaisquer seres humanos reais, os
pode ir além da medíocre realidade)] princípios fundamentais da beleza existente na natureza e
“Do que ficou dito se infere também, claramente, que não que esses princípios de beleza física tinham afinidades com
compete ao poeta contar o que realmente acontece, mas a a beleza espiritual da alma humana. Nessa doutrina baseou
espécie de coisas que poderiam acontecer, a espécie de ele o seu conselho ao artista moderno para que se
coisas que são possíveis de acordo com a probabilidade ou regulasse pelos gregos e, assim, recobrasse a visão interior
a necessidade. A diferença entre o historiador e o poeta é grega dos princípios fundamentais e universais da beleza

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

natural, apenas imperfeitamente manifestados no mundo [Plotino: a arte não imita a natureza, imita o ideal]
das coisas reais. 80 A arte não é imitação do mundo fenomênico num sentido
comum, mas a criação de uma beleza que a alma
O IDEALISMO METAFÍSICO reconhece graças “a um antigo conhecimento” e através da
qual aspira a unir-se ao divino. 83
[O artista tem uma “visão” do mundo Ideal e imprime na “Precisamos reconhecer que as artes não
realidade - Plotino] proporcionam uma simples reprodução da coisa vista, mas
Os gregos, portanto, estavam familiarizados com a noção voltam às Ideias de que deriva a própria natureza e, além
de que o artista é capaz de melhorar o mundo da realidade disso, todo esse trabalho é inteiramente delas; detentoras
e o faz em virtude de uma imagem mental ou imagem de beleza, acrescentam o que falta à natureza. Dessa
composta, derivada da experiência dos sentidos, porém maneira, Fídias não afeiçoou o seu Zeus segundo algum
mais imperfeita do que qualquer outra coisa individual modelo entre as coisas dos sentidos, senão apreendendo a
realmente vista. A doutrina metafísica de que o artista pode forma que Zeus assumiria se houvesse por bem manifestar-
obter uma visão intuitiva da realidade suprema, das Ideias se aos sentidos. 83
universais de Platão, e “imitar” essa realidade em sua obra
de arte, surgiu com os neoplatônicos. Perpetuou-se me [Neoplanotismo na Renascença: Artista vidente]
forma teológica durante a Idade-Média e foi revivida com O pronunciamento mais influente da teoria neoplatônica da
tremendo vigor durante a Renascença. 81 arte, na Renascença, foi feito numa conferência
pronunciada por Giovanni Pietro Bellori perante a
[Platão não era Neo-Platônico] Academia de São Lucas, em Roma, em 1664, e publicada
Para o próprio Platão, todavia, uma teoria dessa natureza como prefácio das suas Vidas de Pintores, Escultores e
teria sido um absurdo. Ele fala em beleza em conexão com Arquitetos, em 1672. Bellori apresentou o verdadeiro artista
a suprema realidade das Ideias, mas não se refere à beleza como um vidente que contempla as verdades eternas e as
da arte visual, à beleza capaz de receber forma sensível. revela aos mortais menos favorecidos. No seu entender, é
Consoante uma premissa fundamental da sua filosofia, o esse o dom da intuição que diferencia o verdadeiro artista
Ser supremo – as verdades do mundo Ideal – só é do simples mecânico, que copia servilmente as aparências.
apreensível pela razão; os sentidos só podem mediar 83
aproximações imperfeitas da natureza real da Ideia. Sendo
apreendida pelos sentidos, a obra de arte, segundo a [Poussin, Caravaggio e as consequências na pintura]
filosofia de Platão, não poderia refletir a verdadeira O artista considerado como o mais perfeito exemplo dessa
natureza das coisas, e as obras de arte visual eram doutrina foi Poussin, cuja obra era colocada, pela teoria
consideradas por ele como cópias de uma cópia. “Mas a acadêmica francesa do século XVII, quase no mesmo nível
arte não se ocupa da verdade. Contenta-se em representar da dos antigos. A doutrina proporcionou justificação
os dados sentidos, que são, por sua vez, uma imagem filosófica para o estilo grandioso e utilizou-se para confundir
deformada da realidade. Está a três distâncias da verdade”. os realistas que seguiam Caravaggio e a pintura realista
Em dois trechos da República (484c e 500e) Platão dos Países-Baixos. No século XVIII, foi apoiada por
compara a maneira por que o filósofo contempla com os Reynolds contra os que preferiam fiar-se do recurso ao
olhos do espírito a verdade absoluta e a maneira pela qual sentimento e à emoção, até as controvérsias do século XIX,
o artista fita a sua vista no modelo material. (A não como a que se registrou entre os seguidores de Ingres e
compreensão da semântica desse confronto redundou Delacroix, se travaram em torno da bandeira da “beleza
numa curiosa e errônea concepção da afirmativa de Platão ideal”. 83
de que as formas mais belas são as formas geométricas
regulares. Ele não quer dizer com isso que um círculo [Schopenhauer e a arte como visão da Ideia]
visível, traçado por um compasso, seja mais belo de se Schopenhauer, portanto, considerava a arte como forma
olhar do que um quadro de Parrásio, nem antecipa, de de conhecimento, uma visão direta, intuitiva, das essências
alguma forma, a pintura abstrata moderna. Alude à beleza metafísicas, que são reais de um modo mais fundamental
intelectual e refere-se ao fato de que os sólidos regulares do que os objetos reais do mundo fenomênico e estão, de
têm fórmulas matemáticas apreensíveis pelo espírito. 81-82 certa forma, imperfeita e parcialmente encerradas no
mundo da percepção sensorial. 84
[Plotino]
A teoria de que a grande arte “imita” uma realidade [Exemplo de Schopenhauer]
suprema, que existe além dos objetos empíricos do mundo “Quando contemplo uma árvore esteticamente, isto é, com
da percepção sensória, foi formulada, pela primeira vez, olhos artísticos, e assim reconheço, não a árvore, mas a sua
pelo semi-místico e neoplatônico Plotino (terceiro século Ideia, de pronto se torna sem importância se se trata desta
a.C.). 82 árvore ou da sua predecessora, que floresceu há mil anos,
e se o contemplador é este indivíduo ou qualquer outro que
[Plotino: filosofia] viveu noutro lugar e noutra época; a coisa particular e o
O princípio fundamental da filosofia de Plotino deriva do indivíduo cognitivo são abolidos com o principal da razão
desejo de fugir ao mundo material e unir-se a um Ser divino, suficiente, e ali não fica mais nada senão a Ideia e o puro
que é existência pura, sem forma nem matéria. Ele objeto do conhecimento. 84 [Husserl posteriormente vai
sustentava que o mundo fenomênico, criação da alma, não dizer que a filosofia fenomenológica estuda a “arvore
tem existência real; a realidade pertence ao mundo que não queima”]
espiritual contemplado pela razão. Plotino encontrou o
princípio da beleza no anseio inconsciente da alma humana [A arte oferece uma transmutação do olhar sobre o
pelo Ser Primeiro, o Uno. 82-83 banal]
Nessas condições, Schopenhauer considerava o artista
criador como uma pessoa dotada da faculdade de perceber,
por intuição direta, o verdadeiro caráter das coisas, e do

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

dom de encerrar a sua visão numa forma concreta, de modo teoria ocidental da arte. Em ambas as teorias a obra de arte
que permitissem a outros compartirem dela. Isto explica por é considerada como o espelho que reflete uma realidade
que a grande arte, ao mesmo tempo que “imita” as coisas diferente da sua. O interesse não se concentra na obra de
comuns da experiência, mostra-as a uma luz estranha e arte, mas naquilo que se reflete ou revela através dela. 89
nova, conferindo-lhe uma nova e mais profunda
significação, que não pode ser explicada pela linguagem APÊNDICE
teórica da razão e da ciência. 85
SIMETRIA E PROPORÇÕES
[Abstracionismo e Metafísica]
É interessante notar que muitos chefes de movimentos [As teorias idealistas-metafísicas associam-se a
abstratos de arte do século XX foram atraídos para uma doutrinas de proporção universal]
teoria reveladora da arte e acreditavam que as obras de arte A teoria idealista da beleza tem sido tradicionalmente
abstratas dão forma a uma visão das altas verdades associada às doutrinas da proporção. Se bem que não
supremas ou refletem uma realidade metafísica, que existe estivesse pessoalmente preparado para aceitar sem
além do mundo dos sentidos. 86 reservas o ponto de vista de que a beleza consiste na
proporção, Plotino deixou claro que esse ponto de vista era
[Kandinsky, em suas Reminiscências (1913)] geral no seu tempo. “Praticamente toda gente”, disse ele,
“Não só as estrelas, a lua, as matas e as flores, que os “afirma que a beleza visível é produzida pela simetria das
poetas cantam, mas também uma ponta de cigarro que jaz partes em relação umas às outras em relação ao todo”. 89
num cinzeiro, um paciente botão branco de calças, que
ergue os olhos do meio de uma poça d’agua na rua, um [Gregos]
tiquinho submisso de casca de árvore que uma formiga Os gregos possuíam uma propensão natural para a maneira
arrasta, por entre a relva alta, preso às mandíbulas de pensar matemática e desenvolveram vários cânones
robustas, para destinos incertos mas importantes, a folha de relativos às proporções do corpo humano ideal.
um calendário que a mão consciente alcança para arrancar, Infelizmente, esses cânones não sobreviveram. 89
à força, do quente companheirismo das folhas restantes –
tudo isso me mostra a sua face, o âmago do seu ser, a sua [Renascimento]
alma secreta, o mais das veze, muda e não ouvida. Assim, Virtúvio é o único autor que forneceu dados reais sobre as
todo ponto (=linha) imóvel e todo ponto que se move se noções gregas tocantes às proporções ideais, aplicando-as
tornaram igualmente vivos e me revelam a sua alma. 86-87 não só ao corpo humano mas também à arquitetura. Ele
define a proporção como “a coordenação métrica, em toda
[Malevich, O Mundo Não-Objetivo (1927)] a obra, entre um módulo e o todo”; e a simetria como “a
“Chega de cópias da realidade, de imagens idealistas, nada harmonia apropriada que resulta dos membros da própria
senão um deserto!” 87 obra e a correspondência modular que resulta das partes
separadas em relação à aparência de todo o corpo”. 89-90
[Piet Mondrian, Arte Plástica e Arte Plástica Pura]
Piet Mondrian, que, como Kandinsky, se afizera aos [Teoria Grega das Proporções]
dogmas da teosofia, alegou em Arte Plástica e Arte Plástica A principal passagem sobre a teoria grega das proporções
Pura que os princípios da beleza universal, pela primeira ideais é um pronunciamento feito pelo médico Galeno (mais
vez, tiveram em sua obra o reconhecimento que merecem. ou menos entre 129-99 a.C.) a respeito do famoso “cânone
Sustentou que a nossa resposta a qualquer arte figurativa, de Policleto”. Policleto, o mais famoso escultor da
isto é, qualquer arte que representa as coisas externas, é Antiguidade depois de Fídias, estabeleceu, segundo se
necessariamente viciada pelas nossas reações individuais supõe, um cânone de beleza ideal e aplicou-o à sua estátua
e subjetivamente variáveis a essas coisas Somente quando do Doríforo (armado de lança). As únicas palavras que, com
a arte se liberta de qualquer sugestão de representação razoável propriedade, lhe podem ser atribuídas estão na
logramos uma resposta universal e invariavelmente de seguinte declaração: “O belo surge pouco a pouco, através
acordo com o que ele denominou as “leis objetivas fixas da de muitos números”. Diz Galeno acerca desse cânone:
composição plástica”. O que distingue o artista abstrato do “Crisipo... sustenta que a beleza não consistente nos
figurativo, disse ele, “é o fato de libertar-se, em suas elementos, porém na simetria das partes, na proporção de
criações, dos sentimentos individuais e das impressões um dedo em relação a outro, de todos os dedos em relação
particulares que recebem do exterior, e sacudir o julgo das à mão... em conclusão, de todas as partes em relação às
inclinações individuais presentes dentro dele”. 87-88 demais, como está escrito no cânone de Policleto”. 90
[Max Beckmann, New Burlington Galleries (1938)] [Antiguidade: Crisipo e a relação entre as partes]
“O que eu quero mostrar em minha obra é a ideia que se Mas a linguagem atribuída a Crisipo se harmoniza com o
esconde atrás da chamada realidade. Estou procurando a ponto de vista de que o cânone foi concebido como
ponte que leva do visível ao invisível, como o famoso verdadeira proporção, isto é, uma relação entre razões, que
cabalista que disse, de uma feita: ‘Se quiserdes senhorear impunha uma única e coerente razão das partes entre si das
o invisível, deverias penetrar tão profundamente quanto partes com o todo. 90
possível no visível’. A minha meta é sempre apoderar-me
da magia da realidade e transferi-la para a pintura – tornar [Século XV e XVI: Florença e as Proporções]
o invisível visível através da realidade.” 88 Nos séculos XV e XVI, profundo interesse pela proporção
induziu à busca de novos cânones. Em Florença, chefiados
[Conclusão] por Brunelleschi, os humanistas se julgavam herdeiros da
Concluindo, precisamos voltar a sublinhar que tanto o tradição clássica e buscavam redescobrir os princípios
realismo quanto o idealismo, quais os descrevemos, se implícitos das proporções clássicas. O primeiro cânone
incluem na esfera do ponto de vista naturalista, que, resultou do engenhoso sistema de mensuração de Alberti,
começamos com os gregos, dominou a maior parte da que ele denominou Exempeda. Assim Leonardo como

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

Piero della Francesca estudaram a proporção em relação formações microscópicas ou astronômicas. O interesse deu
à perspectiva e Leonardo elaborou tabelas de formas origem a estudos, como os que se refletiram num simpósio,
equinas e humanas Durer viveu obcecado pela busca da Aspects of Form, publicados com um prefácio de Sir
proporção ideal. Ele nos conta que o veneziano Jacopo Herbert Read em 1951. As teorias de Ziesing atraíram a
de’Barbari lhe mostrou a imagem de um homem e uma atenção do psicólogo Gustav Theodor Fechner (1834-
mulher “que haviam sido desenhados de acordo com um 1887) e, seguindo-lhe a esteira, consagrou-se muito tempo
cânone de proporção” e que, depois disso, tendo lido e muito esforço na estética experimental à tentativa de
Virtrúvio, encetara pessoalmente investigações para provar empiricamente que existe uma preferência estética
descobrir o princípio da proporção ideal. 91 instintiva geral por objetos que encerram um princípio
matemático de proporção, como a Seção de Ouro. 93-94
[Antiguidade: Pitágoras e a proporção cósmica]
O prolongado interesse pela proporção sofreu, em parte, a [Modernidade: artistas]
influência de uma crença quase metafísica, cuja origem é De tempos a tempos, os artistas modernos tem sido
tradicionalmente atribuída ao filósofo e místico Pitágoras atraídos pela proporção como princípio de composição. 94
(sexto século a.C.), segundo a qual a proporção tem um
significado cosmológico e é inerente à estrutura do [Modernidade: Le Corbusier]
universo. 91 As divisões do Modulor de Le Corbusier, destinadas a
facilitar o desenho harmoniosamente proporcionado,
[Antiguidade: Plotino] baseavam-se na Seção de Ouro, que Le Corbusier
[...] Plotino e pensadores subsequentes acreditavam que o acreditava estar exemplificada nas proporções ideais (ou
verdadeiro artista, como Deus o criador, poderia usar por médias) do corpo humano. 94
modelo a Ideia eternamente existente. 92
[Modernidade: conclusão]
[Renascença: Cennino Cennini] Entretanto, as modernas revivescências da teoria da
[...] Cennino Cennini (nascido, aproximadamente, em proporção não pensam na experiência estética como forma
1370), por exemplo, cujo Manual do Artífice se situa na de deleite intelectual na intuição das relações teóricas, mas,
fronteira entre a Idade-Média e a Renascença, disse: 92 considerando a beleza como assunto dos sentimentos,
“Para podermos pintar precisamos ser dotados não procuram encontrar alguma base matemática empírica para
só de imaginação, mas também de habilidade manual, a fim construir formas que, por serem amenas, atraíam os
de descobrir coisas invisíveis escondidas debaixo da sentidos. 94
sombra dos objetos naturais e fixa-las com a mão,
apresentando à vista de todos os que antes não parecia CAPÍTULO 4
existir. E a pintura merece, com justiça, ser entronizada logo
após o conhecimento teórico e ser coroada ao lado da A ESTÉTICA DA ARTE PICTÓRICA CHINESA
poesia. 92
[A diferença do valor do artista na Antiguidade
[Renascença: Girolamo Fracastoro de Vernona] Ocidental e a Antiguidade Oriental]
[...] E o platônico Girolamo Fracastoro de Verona, [...] Durante toda a Antiguidade clássica e toda a Idade-Média,
escreveu em seu Naugerius sive de poética dialogus (1555): o artista era classificado como trabalhador manual e artesão
“O poeta é como o pintor, que não procura imitar este ou numa estrutura social que não reconhecia a dignidade do
aquele traço particular, nem as coisas como elas acertam trabalho manual. O artista amador teria sido uma coisa tão
de ser, com todos os seus defeitos; mas, tendo estranha quando pedreiro amador. Na China, em
contemplado a ideia belíssima e universal afeiçoada pelo compensação, a partir da dinastia Han (mais ou menos 206
Criador, cria-se como elas deveriam ser”. 92-93 a.C. – 220 d.C.), a pintura, a poesia e a música foram
considerados como ofícios dignos do cavalheiro e do erudito
[Renascença: crença em uma proporção ideal captada numa estrutura social que conferia altíssimo prestígio à
pelo artista] erudição e à cultura. 95
Em relação às artes visuais, cria-se na existência de
proporções ideais, intelectualmente apreensíveis, que [Mai-mai Sze, Manual de Pimenta do Jardim da Semente
expressam a natureza da Divindade como ela se manifestou de Mostarda]
na criação do mundo, embora estejam apenas Na introdução que fêz para a sua tradução do Manual de
imperfeitamente incluídas no mundo real das coisas Pintura do Jardim da Semente de Mostarda (1679-1701),
percebidas. 93 Mai-mai Sze assinalou que, segundo o ponto de vista
chinês tradicional, a pintura é “não uma profissão, mas uma
[Idade Moderna: Seção de Ouro ou “Divina Proporção”] extensão da arte de viver, pois a prática do tao da pintura é
Mais ou menos em meados do século XIX, a Seção de Ouro parte do tradicional tao da conduta e do pensamento, da
– que havia sido denominada a “Divina Proporção” e à qual vida em harmonia com as leis de Tao. Em tais
foram atribuídas propriedades místicas por Luca Pacioli, circunstâncias, a pintura chinesa tem sido, por via de regra,
amigo de Leonardo e Piero della Francesca e o mais uma expressão de maturidade: quase todos os grandes
notável matemático do seu tempo – voltou a granjear mestres se distinguiram primeiro como funcionários,
preeminência como chave universal da beleza na natureza eruditos e poetas, e muitos foram calígrafos habilidosos
e na arte, graças a um alemão, A. Ziesing. A obra de antes de se voltarem para a pintura... ao adquirir a
Ziesing foi repetida mais cientificamente e com maior educação prescrita pelo tao da pintura, um pintor se
compreensão por Sir Theodore Cook em The Curves of submetia a rigorosa disciplina intelectual e a um treinamento
Life (1900), e persistiu o interesse pelas tentativas de intensivo da memória. Adquiria uma reserva de
encontrar princípios de forma comuns não só às conhecimentos coroados pela essência do pensamento
construções estéticas, mas também às formas naturais, chinês – os ideais e as ideias da pintura compreensíveis a
como o crescimento orgânico, as estruturas cristalinas e as quantos tiveram o mesmo treinamento bem como a todos

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

aqueles cuja educação se completou pelo costume e pela [A crítica “estética” surgiu mais cedo no oriente]
tradição. A antiga sabedoria lhe modelava o caráter e lhe Como a atitude do naturalismo não teve muita influência na
alimentava os mais secretos recursos. 94-95 arte e na teoria orientais, a espécie de crítica que hoje
denominamos “estética” – nascida do interesse pela própria
[Cheng Yen-yyan, Li Tai Ming Huai Chi (845)] obra de arte como objeto de contemplação – surgiu um
“A pintura promove a cultura e fortalece os princípios da pouco mais cedo na China do que no Ocidente. 97-98
conduta reta. Repassa todos os aspectos do espírito
universal. Compreende integralmente o sutil e o abstruso, [Caligrafia]
servindo assim ao mesmo propósito a que servem os Seis A caligrafia no sentido oriental – a encarnação de Tao na
Clássicos, e repete-se com as quatro estações. Originou-se manipulação do pincel – pouco tem em comum com os
da natureza e não de decretos nem obras de homens. 96 estilos “caligráficos”, como gótico internacional ou o art
nouveau. 99
[Confúcio, Analectos]
A concepção da pintura como cultivo do Tao está expressa [Critica Chinesa: 1) Caligrafia; 2) A emoção é expressa
no seguinte trecho dos Analectos de Confúcio, citado no nos gestos da pintura, e não na “figuração”]
início do Hsuan-ho hua-p’u, o Catálogo da Coleção Imperial Duas coisas se destacam, importantíssimas, para a
de Pinturas (1119-1125): 96 compreensão dos conceitos estéticos implícitos nos
“Dirigi os vossos esforços para o Tao, apoiai-vos escritos críticos chineses acerca das artes visuais. A
sobre a sua força ativa, segui a humanidade altruísta e primeira é o profundo enraizamento da linguagem da
entregai-vos às artes. Quanto a estas artes, o estudioso que apreciação crítica chinesa na estética da caligrafia, no
forceja por alcançar o Tao nunca deve desprezá-las, mas sentido chinês e não no sentido oriental desse termo. A
cumpre-lhes apenas deleitar-se com elas e nada mais. A segunda é o fato de que, ao falarem sobre emoção e
pintura é igualmente uma arte. Quando atinge o nível da expressão na pintura, os autores chineses associam mais
perfeição, não se sabe se a arte é Tao ou se Tao é arte.” 96 essas coisas às técnicas caligráficas do que ao tema da
obra. Isto se opõe frontalmente à tradição naturalista
[A pintura chinesa não era naturalista (idealista, ocidental. 99
realista, etc.); a pintura chinesa era um ritual]
O pintor chinês não se ocupava, senão acidentalmente na [Ocidente: as emoções são expressas em figuras,
busca de outras metas, de “imitar” as aparências das coisas símbolos, anedotas, etc. Oriente: as emoções são
nem de representar as coisas idealmente como gostaria que expressam nos gestos, escolha de cores,
fossem ou como elas “deveria” ser, nem mesmo de revelar abstratamente.]
alguma realidade metafísica oculta por detrás das No Ocidente, a técnica tem sido tipicamente considerada
aparências das coisas. Encerrava-se a cultivação e a apenas como instrumento, um instrumento que proporciona
prática da pintura como atividade ritualística, criadora de ao artista o equipamento mecânico para comunicar a sua
uma encarnação da força cósmica da ordem que impregna mensagem, expressar a sua personalidade, concretizar o
toda a realidade, a sociedade humana e a personalidade apelo emocional através da escolha e da manipulação do
individual. 96-97 tema. Foi pouco antes dos vários movimentos pós-
impressionistas, que tiveram origem em Gauguin, Denis,
[Diferença entre o Ocidental (Naturalismo) e o Oriental nos simbolistas e nos fauves, que a cor e a forma “abstratas”
(Ritualismo)] principiaram a ser deliberadamente usadas para imprimir
Enquanto o artista ocidental visava tipicamente a produzir significação emocional alheia ao assunto e ao tema. 99
uma réplica da realidade, real, imaginada ou ideal, o artista
chinês – embora pudesse, de fato, fazê-lo – colimava, em [Ocidente: Emoções na figura humana; Oriente:
primeiro lugar, colocar a própria personalidade em harmonia Emoções na natureza]
com o princípio cósmico, de modo que o Tao se Na tradição chinesa, o encanto emocional de uma pintura,
expressasse como o princípio cósmico, de modo que o Tao seu conteúdo expressivo, a personalidade dos artistas,
se expressasse através dele e, assim, em sua pintura, ele residem na técnica da pincelada. As pinturas mais
agisse em uníssono com a ordem natural e a sua obra, “emocionais” para o connoisseur chinês são aquelas em
inspirada pelo Tao, o refletisse. 97 que o tema, para o contemplante ocidental, é principalmente
neutro – pinturas de bambus, lótus, pássaros, flores, etc.
[Crítica de arte chinesa] Enquanto no Ocidente o desenho da forma humana sempre
A crítica de arte chinesa também era, em grande parte foi fundamental, as situações dramáticas e emocionais
técnica, mas os termos e categorias da crítica técnica sempre constituíram um tema básico da representação
chinesa diferiam daqueles a que nos avezamos na crítica naturalista, e a paisagem pura um desenvolvimento serôdio
ocidental. No Ocidente, as categorias e conceitos, bem e secundário, na China a paisagem foi inicial e básica. 99-
como os critérios, derivam do interesse naturalista por uma 100
representação vívida e convincente de algum tema diverso
da obra de arte propriamente dita. Posto que esse interesse [Oriente: o bambu é mais expressivo que o corpo]
não esteja ausente da crítica chinesa, mantém-se Conforme um truísmo da crítica chinesa, o pintor que
subordinado à exigência de que a obra de arte encarne, na houvesse senhoreado a arte da paisagem seria capaz de
estrutura e nos ritmos, o espírito do Tao, que vitaliza toda a desenhar o corpo humano, e o bambu oferece
natureza, tanto orgânica quanto inorgânica. Em razão disso, possibilidades mais sutis de expressão do que as cenas
a linguagem e os conceitos da crítica chinesa diferem dos dramáticas ou anedóticas. Os mesmos princípios de
que nós empregamos e talvez seja necessário um esforço expressão emocional através da técnica do pincel, que se
considerável para pô-los em conexão com a arte que desenvolvem em primeiro lugar na pintura do bambu ou da
derivam e para empreender o que eles significam em função natureza morta, são fundamentais em pinturas mais
das categorias com que estamos mais familiarizados. 97 minudenciosas de paisagens. São o ritmo e a qualidade da

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

pincelada, a técnica do pincel, que encarnam o espírito de parte integrante de uma natureza mais estupenda: os
Tao. 100 mesmos processos e ritmos da vida repassavam o homem
e a natureza. O ideal era conseguir a unificação do indivíduo
[Ocidente: a pobreza vocabular da crítica “estética”] com o princípio cósmico, e não dominá-lo, reproduzi-lo ou
Em virtude do prevalecimento da atitude naturalista, a crítica observá-lo cientificamente. 118
especificamente estética principiou tarde no Oeste e, em
consequência disso, as línguas europeias são pobres em [Arte e Religião: arte como Teofania]
termos estéticos. Quando damos com um quadro e Em plano menos filosóficos, as obras de arte na era
desejamos indicar as qualidades que o tornam objeto bizantina assumiram o caráter de teofanias, manifestações
proveitoso de contemplação estética, só podemos usar a de uma Divindade transcendente, ou de ícones, objetos
linguagem indireta e esperar que nos compreendam. Na através dos quais a devoção do homem poderia ser
ausência de uma tradição de terminologia estética precisa, canalizadas para o Deus supremo. 118
um aceno expressivo da mão ou um gesto dos dedos,
acompanhados de resmungos não articulados dizem mais [Arte e Religião: o caráter didático da Arte]
ao connoisseur do que páginas de exposição verbal. Na Europa ocidental, a arte cristã assumiu um caráter mais
diretamente didático ou imprimiu-se-lhe uma função
[Vocabulário extenso da crítica estética Oriental] decorativa pra glorificar a Igreja na terra. Em ambas essas
A crítica chinesa se vale de um vocabulário mais extenso e manifestações impôs à atitude naturalista precedente uma
mais claro de termos estéticos, apoiados por longa e familiar concepção religiosa da arte, que, todavia, não a modificou
tradição de apreciação, que tem sido enriquecida, mas não de todo. 118-119
substancialmente modificada, no curso de mais de dezoito
séculos. 100 [Valor da arte: instrumental]
Do ponto de vista da estética moderna, os valores que se
OS SEIS CÂNONES DA PINTURA lhes atribuíam eram instrumentais e não intrínsecos. 119
[...]
O CARÁTER TEOLÓGICO DA ESTÉTICA MEDIEVAL
PADRÕES CRÍTICOS
[...] [Arte e Beleza (Música e Poesia)]
Para o pensamento medieval o conceito de beleza não
SUMÁRIO implicava nenhuma conexão especial com o que
denominaríamos as belas-artes. Na verdade, dentre as
[A pintura chinesa possuía uma realidade própria] belas-artes, só a música figurava entre as “artes liberais” e
A ideia de uma obra de arte como réplica ou reflexo de a poesia era um complemento da lógica. 119
alguma parte da realidade fora de si mesma era
relativamente sem importância e, por via de regra, se [Público]
mantinha subordinada a outras considerações, mais A presença ou ausência de ouvintes era totalmente
básicas. Concentra-se a atenção na obra de arte como irrelevante para a sua função como parte de uma cerimônia
numa realidade autônoma, que, pelos seus ritmos técnicos litúrgica. 119
e estruturais, representa e torna manifesto o princípio
cósmico unificador do Tao, sobretudo enquanto esse [Mundo visível: símbolo do inteligível]
princípio se entranha nos objetos representados. 117 Para o espírito medieval, o mundo visível era um símbolo
do divino e não tinha significado nem importância senão
[O artista chinês e seu estilo] como símbolo. 120
Mormente nos aspectos técnicos, mais do que nos
representativos, a obra de arte pode ser considerada como [Arte como Teofania]
expressão da personalidade do artista, na medida em que Como todas as coisas criadas, a obra de arte era havida por
esta se colocou em uníssono com Tao. Até esse ponto, as imagem ou símbolo, isto é, por teofania. Alcançava o seu
atitudes chinesas pronunciaram a estética da propósito como revelação da Natureza Divina, não pela
“autoexpressão” que, na Europa, se pôs em evidência representação naturalista do mundo perceptível, mas
durante a época romântica. 117 evidenciando, na própria estrutura, a harmonia ou
consonância matemática e intelectualmente apreensível
CAPÍTULO 5 entre partes dissímeis, em que se supunha residisse a
beleza de todo o universo. 120
ESTÉTICA MEDIEVAL E RENASCENTISTA
[Belo: irradiância da Verdade Divina]
[Ocidental: a postura da separação “sujeito” e “objeto”] Não se concebia a beleza como valor independente de
A atitude naturalista na arte aparece como um aspecto da outros valores senão como radiância da verdade (splendor
atitude científica diante da natureza, surgida no auge da veritatis) que fulgia através do símbolo, que era também o
civilização grega. É um hábito mental tratar a natureza como esplendor da perfeição ontológica, a qualidade das coisas
algo externo ao homem e separado dele, algo para ser que lhes reflete a origem em Deus e nos permite, através
estudado e observado com objetividade científica, delas, lograr a visão direta da perfeição da Natureza divina.
senhoreado e aproveitado pelo homem, algo capaz de 120
inspirar reações emocionais, ou de ser espelhado,
lisonjeado ou melhorado pela arte. 118 [Belo: uma beleza intelectualmente aprensível]
Assim sendo, tratava-se de uma qualidade finalmente
[Oriental: a postura de unicidade “sujeito/objeto”] apreensível mais pela razão do que pelos sentidos. 120
No pensamento chinês, a natureza e o homem não se
achavam em oposição. Presumia-se que o homem fosse

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[Sair do mundo sensível até o ideal inteligível] acima da natureza e intelectualmente apreensível, de sorte
Com efeito, o motivo dominante da vida e da filosofia que a maneira estética de estabelecer contato com as obras
religiosa, durante toda a Idade-Média, foi o desejo de de arte estava sempre subordinada à maneira religiosa. 121
ascender do mundo sensual das sombras e das imagens à
contemplação direta da perfeição divina, a fim de mirar a [Música, matemática e harmonia cósmica]
sagrada realidade da verdade suprema com os olhos do Era um lugar-comum dizer-se que a matemática da teoria
corpo. 120 musical encerrava um princípio cósmico universal de
harmonia. A Música enchiriadis (860 d.C.) encontrou as
[Antiguidade versus Idade-Média] razões mais profundas e divinas, inspiradoras das
Essa atitude se opunha frontalmente ao naturalismo da harmonias musicais, nas leis eternas do cosmo. 122
Antiguidade e ao prazer clássico proporcionado pela beleza
sensual, física, manifesta na arte e na literatura dos antigos, [Beleza matemática]
embora suposta na sua teoria. Aqui e ali, nos escritos dos A verdadeira realidade apreensível estava na consonância,
primeiros Padres da Igreja, topamos com indícios acidentais nas harmonias formais. Supunha-se que o artista poderia
de apreciação das belezas da natureza tão intensa quanto criar genuinamente essa consonância ou beleza
a que mais o fosse na literatura pagã. Mas esse sentimento matemática englobando tais proporções no objeto de arte
veio a considerar-se suspeito e todo o fascínio do prazer sem visar a uma imagem exata ou ilusória das coisas
encontrado no gozo sensual do mundo das coisas naturais visíveis. 122
passou a ser condenado por motivos tanto moralísticos
quanto teológicos. 120 [A Arte e a Beleza são diferentes]
Durante o período medieval, a estética foi um ramo da
[santo Agostinho, Confissões] filosofia orientada para a teologia, sem conexões essenciais
Os trechos das Confissões de Santo Agostinho, em que com as belas-artes nem com as belezas físicas da natureza.
ele repudia o seu juvenil pendor para a beleza natural e para 122-123
o encanto sensual da música, pairou como pano mortuário
sobre o pensamento medieval. 120-121 A FUNÇÃO DIDÁTICA E O CRITÉRIO MORAL

[A Verdadeira Beleza Medieval] [Arte Medieval: Apelo didático das imagens]


A verdadeira beleza, supunha-se, transcende a esfera Num plano algo diferente, a arte eclesiástica na Idade-
sensual, pertence apenas a Deus e é apreendida, ou Média possuía um caráter francamente didático.
através da intuição intelectual, ou, ainda mais Encaradas, a princípio, como suspeição das relíquias e
perfeitamente, através da intuição mística. Manifesta-se na acervo do paganismo, as artes foram gradativamente
harmonia matemática, proporção e “consonância” não aceitas e toleradas à proporção que a Igreja entrou a
produzidas pelo encanto sensual. Desacorçoava-se o gozo compreender-lhes a utilidade na educação de um
da beleza sensual e o deleite buscando nas coisas naturais populacho rude e iletrado nos rudimentos da moral e da
por si mesmas. 121 doutrina cristã. Este foi particularmente o caso no Ocidente,
mas no Oriente também não faltou o motivo didático. 123
[Escoto Erígena: a matéria sensível]
Essa atitude está argutamente resumidamente nas palavras [HAUSER, Arnold. A Teoria Social da Arte (1951)]
de Escoto Erígena: “Não é que a criação seja má, nem “Na opinião da Idade-Média, a arte seria supérflua se toda
mesmo que seja mau o conhecimento dela; mau é o a gente soubesse ler e seguisse uma corrente abstrata de
perverso impulso que leva o espírito sensato a abandonar a raciocínio; a arte foi originalmente considerada como
contemplação do seu autor e voltar-se, com apetite lascivo simples concessão às massas ignorantes, tão facilmente
e ilícito, para o amor da matéria sensível”. 121 influenciáveis pelas impressões dos sentidos. Não se
permitia, por certo, que ela consistisse num “mero prazer
[São Bernardo: desprezar o mundo por amor de Cristo] para os olhos”, como disse São Nilo. O caráter didático é o
Motivos semelhantes induziram São Bernardo a tentar traço mais típico da arte cristã, em confronto com a dos
insensibilizar-se à beleza natural por amor de Cristo. 121 antigos. 123

[Petrarca: o prazer estético] [O Padre que resolveu pintar a igreja para educar os
Em 1335, o poeta Petrarca, que vivia à frente do seu tempo, fiéis]
sentiu prazer estético ante a grandiosidade do Monte A concepção didática da função da pintura pode ser
Ventoux, mas, percebendo o seu erro, tomou de um ilustrada pela narrativa poética, escrita nos primeiros anos
exemplar das Confissões e sufocou os sentimentos de do século V, por Paulino, Bispo de Nola, preocupado com
prazer: “... zangado comigo mesmo por não cessar de as danças e folguedos em que o seu rebanho passava as
admirar coisas da terra, em lugar de lembrar-me de que a horas de vigília durante as festividades do santo padroeiro
alma humana, sem comparação, é o objeto de admiração. da sua igreja e que, desejoso de incutir-lhe melhor
Mais uma vez desci a montanha, olhei para trás, e o píncaro disposição de espírito, teve a ideia de cobrir as paredes da
altaneiro me pareceu ter pouco mais que um côvado de igreja com pinturas sacras, edificantes e atraentes, na
altura, comparado com a sublime dignidade do homem”. esperança de que “as formas e cores se apoderassem dos
121 espíritos pasmados dos camponeses”. Pois, explica ele,
“enquanto a multidão, alternativamente, mostra os quadros
[Chineses (participar da divindade) e Medievais uns para os outros, ou se põe a examiná-los
(contemplar a divindade)] espontaneamente, já demora mais do que antes a pensar
Enquanto que, para os chineses, o objeto de arte era, ao em festas, e se alimenta com os olhos em vez de alimentar-
mesmo tempo, resultado e expressão da alcançada unidade se com os lábios. Dessa maneira, enquanto se maravilha
entre o homem e a natureza, no pensamento medieval era com as pinturas, esquece a fome, um hábito melhor se
uma teofania, revelação ou manifestação de um Deus apodera gradualmente de todos, que ao lerem as histórias

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

sagradas, aprendem com os exemplos piedosos quão definia a bondade como desejabilidade – “tudo é bom na
estimáveis são as santas ações e quão satisfatórias para a medida em que é desejável” – e uma coisa só é desejável
sede é a sobriedade.” (Paulinus Nolanus, Poema de S. Fel. na medida em que é perfeita em seu gênero. 125
Natal, IX 541 e seguintes). 123-124
[Bondade: adequada, útil e agradável (beleza)]
[Renascimento: Vasari e a Educação Moral pela Arte] Acompanhando filósofos anteriores, dividia a bondade em
Mil anos depois, Vasari põe na boca do pintor florentino adequada, útil e agradável. A beleza pertence ao último
Bounamico Cristofano, cognominado Buffamalco, estas aspecto da bondade, pois consiste no que é agradável à
palavras: “Não pensamos em outra coisa senão em pintar cognição, em sua mera contemplação ou percepção. 125
santos, tanto homens quanto mulheres, nas paredes e nos
quadros... e assim tornamos os homens melhores e mais [Primeira Passagem: A beleza se distingue dos outros
devotos aos grandes, e despeito dos demônios”. 124 “bens” porque se relaciona com a cognição]
A beleza, diz São Tomás, distingue-se de outros aspectos
[Renascimento: Bernardino Daniello – A educação da bondade por relacionar-se com a cognição. 125
prazerosa pela arte] “Pois as coisas belas são as que agradam quando
Bernardino Daniello proclamou, de fato, um ponto de vista vistas (pulchra enim dicuntur quae visa placenta). Portanto,
que perdurou por mais de um milênio, ao observar: “A a beleza consiste na devida proporção; pois os sentidos se
poesia pode ensinar com maior amenidade que o filósofo, deliciam com as coisas devidamente proporcionadas, como
disfarçando lições proveitosas em ficções e fábulas, como se deliciam com o que pertence à sua própria espécie,
os médicos disfarçam as pílulas revestindo-as de açúcar”. porque até o sentido é uma espécie de razão, exatamente
124 como o é toda faculdade cognitiva. Ora, como
conhecimento se processa pela assimilação e a
[Renascimetno: Bocacio: sedução da arte para o bem] similaridade se relaciona com a forma, a beleza pertence
Em estilo semelhante, Boccaccio justificou a poesia propriamente à natureza de uma causa formal. (Summa,
dizendo que “ela afasta, pela sedução, as almas nobres das Q.5, Art. 4). 126
que estão perdendo sob a doença moral”. 124
[Tomás de Aquino e Kant: harmonia reconhecida pela
[Antiguidade: emoções e morais] cognição]
Essa concepção didática da arte pode ser comparada e Posto que a terminologia de ambos seja diferente, existe
contrastada com o critério moral que predominou na aqui uma afinidade com a doutrina de Kant, de acordo com
Antiguidade. Platão admitia alguns modos de música por a qual a beleza consiste na adequabilidade de uma coisa à
seus efeitos fortalecedores e estimulantes sobre o caráter e cognição humana, na sua adaptabilidade às faculdades
condenava outros por darem azo a excesso de cognitivas, e nós as reconhecemos pelo prazer especial que
sentimentalismo. 125 nos proporciona a livre e harmoniosa atividade das
faculdades cognitivas, possibilitada por um formoso objeto.
[Antguidade] 126
Os gregos eram um povo emocionalmente instável e em
toda a sua filosofia social se mostravam obcecados pela [Segunda Passagem: Beleza, Desejo e Cognição]
necessidade de refrear uma tendência ao sentimentalismo, “O belo [volta a dizer São Tomás] é o mesmo que o bem, e
subordinando-o ao egoísmo racional num contexto social e eles só diferem em aspecto. Pois visto que o bem é o que
apresentando a temperança e a moderação como o ideal todos procuram, a noção do bem é o que acalma o desejo;
moral. Aristóteles afirmou que as artes proporcionam uma ao passo que a noção do belo é o que acalma o desejo pelo
vazão para emoções representadas, que não tem plena fato de ser visto ou conhecido. Consequentemente, são os
vazão natural nas condições da vida social. 125 sentidos mais cognitivos os que dizem principalmente
respeito ao belo, a saber, a vista e a audição, como
[Arte e Educação] auxiliares da razão; pois nós falamos de belas vistas e belos
Avaliam-se as artes em função dos seus efeitos de sons. Em referência, porém, aos objetos dos outros
aprimoramento ou aviltamento do caráter do indivíduo como sentidos não empregamos o termo “belo”, pois não falamos
unidade social e dos seus supostos efeitos sobre o próprio de belos gostos e belos cheiros. Destarte, é obvio que a
organismo social. 125 beleza acrescenta à bondade uma relação com a faculdade
cognitiva; de sorte que “bom é o que simplesmente agrada
SÃO TOMÁS DE AQUINO ao apetite, ao passo que belo é algo agradável na sua
simples apreensão (id cuiús ipsa apprehensio placet)”.
[Escritos estéticos de São Tomás] Summa, Parte I-II. Q. 27., Art. 1). 126
O caráter metafísico e racionalista da estética medieval está
exemplificado no tratamento que lhe dispensou São Tomás [Terceira passagem: Brilho Divino]
de Aquino (1225-1274). Ele pouco escreveu, A terceira passagem que se tem considerado significativa
especificamente, sobre a teoria da beleza (o que tinha para reza deste teor: 126
dizer está virtualmente compreendido em três passagens da “A beleza inclui três condições: integralidade ou
Summa Theologica), mas o que escreveu é de fundamental perfeição (integitas sive perfectio) visto que as coisas
importância. 125 imperfeitas são, por isso mesmo, feias; devida proporção ou
harmonia (debita proportio sive consomantia); e, por fim,
[Assuntos tratados: a beleza é uma qualidade moral do brilho ou claridade (claritas), e da que se chamem belas às
bem; o “bem” é o desejável] coisas que tem uma cor brilhante”. (Q. 29, Art. 8) 126-127
São Tomás discute a beleza como um aspecto do bem – “a
beleza e a bondade de uma coisa são fundamentalmente [Thomas Reid: beleza como perfeição]
idênticas” – a saber, o aspecto que consiste na A ideia de que a beleza consiste na perfeição tem uma longa
adaptabilidade de uma coisa à cognição sensorial. Ele história e está particularmente associada ao filósofo do

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século XVIII, Thomas Reid. Tem-se sustentado [Francesco Patrizi: furor poético / ficção]
modernamente – como o fizeram Charles Lalo e outros, Francesco Patrizi (1529-1597), filósofo e teorista italiano,
consoante já se menciono (p. 45) – que um sentido ao escreveu um tratado sobre poesia em dez partes; [...],
mesmo da palavra “beleza” é aquele em que se diz que uma Patrizi sustentava que o furor poeticus é a fonte de toda
coisa é bela quando é um perfeito exemplo da sua autêntica consecução nas artes. Contrariando a clássica
espécie.127 doutrina da imitação (mimese), ele afirmava que o artista é
antes e acima de tudo um criador (facitor), que não copia a
[Claridade] natureza, mas dá expressão à sua própria imaginação
“Claridade” é uma palavra com amplíssimas variações de criativa. O seu ponto de vista de que a poesia consiste numa
significados nos escritos medievais. Significa, não raro, a transformação da natureza (finzione) pronunciou a teoria
qualidade de força convincente absoluta que uma coisa, por romântica da ficção. No seu entender, a única qualidade
mais abstrusa que seja, pode ter para a razão, depois de essencial das belas-artes é o maravilhoso (meraviglia): o
haver sido apreendida. Pode significar simplesmente que se poeta é aquele que cria o maravilhoso em seus versos (il
vê uma coisa claramente como ela é em razão da sua forma facitore del mirabile in verso). 129
precisa ou, como alvitra São Tomás, da sua cor brilhante.
127 [Francis Bacon, sobre a Beleza (inspiração poética)]
Francis Bacon, em seu ensaio Sobre a Beleza:
OS PRINCÍPIOS DA ESTÉTICA DA RENASCENÇA “Não há beleza superior que não tenha em sua proporção
alguma esquisitice. Não se pode dizer qual dos dois é o
[A Ciência e as Artes: perspectiva] maior farsista: Apeles ou Albert Dürer; este criando um
Durante a Renascença se fizeram importantes progressos personagem de acordo com proporções geométricas,
na prática e nas técnicas das artes visuais, no sentido de aquele tirando as melhores partes de diversos rostos para
um maior naturalismo, havendo uma conexão fazer um rosto excelente. Tais personagens, creio eu, não
particularmente estreita entre o interesse nascente pela agradariam a ninguém senão o pintor que o fez. Não que eu
ciência empírica e o estudo das artes. O descobrimento da julgue um pintor incapaz de criar um rosto belíssimo, como
perspectiva científica e a elaboração das teorias nunca se viu; mas terá de fazê-lo por uma espécie de feliz
matemáticas da proporção foram conquistas notáveis do inspiração, como o músico que compõe uma ária de música
período. 128 excelente, mas sem obedecer a regras. [Alguma coisa disto
prenuncia o que Kant escreveu acerca das obras do gênio.]
[A mentalidade filosófica Renascentista] 130
Os princípios mais importantes que dominaram o ponto de
vista renascentistas no terreno da estética, durante uns dois [A principal teoria Renascentista: a realidade
séculos mais ou menos, podem sintetizar-se da seguinte idealizada]
maneira: 128 Dentre os muitos diversos e, às vezes, conflitantes
1. As artes da pintura e da escultura são uma coisa do princípios estéticos professados durante a Renascença, o
espírito e da inteligência – cosa mentale – um ramo do novo ponto de vista humanístico, a revivificação do
conhecimento, e não apenas ou principalmente uma classicismo e o reinado subsequente das regras e
questão de artesanato. Essa concepção ligava-se regulações acadêmicas, a única teoria que se revelou
estreitamente ao novo status social reivindicado para o persistente e predominou no século XVII, foi a que encarava
artista como erudito e cavalheiro, e não mais como a obra de arte fosse ela poesia ou arte visual, como reflexo
artífice. 128 ou espelho da realidade mas de uma realidade idealizada e
2. A arte e a poesia “imitam a natureza” e, para esse fim, mais consentânea com os desejos dos homens do que o
as ciências empíricas proporcionam útil orientação. 128 mundo real em que vivemos e nos movemos. Esta é a teoria
3. As artes plásticas, como a literatura, têm também um do idealismo estético, a forma de naturalismo que proclama
propósito moral de melhoria social, aspirando ao ideal. ser função e excelência da arte espelhar a realidade como
128 os homens gostariam que ela fosse e não como sabem que
4. A beleza, meta igualmente das artes, é uma ela é, por experiência. 130-131
propriedade objetiva das coisas, que consiste na
ordem, na harmonia, na proporção e na propriedade [Francis Bacon, Of the Proficiency and Advancement of
(concinnitas e decorum). Essa harmonia poderia, pelo Learning (1605) – doutrina naturalista idealista –
menos em parte, expressar-se matematicamente. 128 oposição entre história e poesia]
5. A poesia e as artes visuais alcançaram a perfeição e “[...] porque a história verdadeira apresenta os sucessos e
uma forma definitiva na Antiguidade clássica; a partir desfechos das ações de maneira menos agradável aos
de então, o segredo se perdeu e as artes entraram em méritos da virtude e do vício, a poesia, em compensação,
decadência. 129 os simula mais justos e mais consentâneos à providência
6. As artes estão sujeitas a regras de perfeição revelada: porque a história representa as ações e os
racionalmente apreensíveis, que podem ser eventos mais comuns e menos alternados, a poesia os
formuladas e ensinadas com precisão. Tais regras veste com maior raridade e variações mais inesperadas e
inerem às obras da Antiguidade clássica e podem ser alternativas; de modo que, segundo me parece, a poesia
aprendidas pelo estudo dessas obras e da natureza. serve e se presta à magnanimidade, à moral e à deleitação.
129 E, portanto, como sempre se julgou, tem alguma
participação de divindade, porque levanta e ergue o espírito,
[Bases do Classicismo e Iluminismo] sujeitando os espetáculos das coisas aos desejos do
Formalizados e reduzidos a um sistema, esses princípios espírito; ao passo que a razão afivela e submete o espírito
proporcionaram as bases do classicismo ensinado nas à natureza das coisas.” 131
academias, do ideal do estilo grandioso e do intelectualismo
iluminista do século XVII. 129

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[Francis Bacon: Divisão (História=Memória) (Ciência e necessitando delas fora de si mesmas, era ainda estranha
Teologia=Razão) (Poesia=Imaginação)] ao pensamento do século XVIII. Nessa época, ao contrário,
É significativo que Bacon classifique a poesia (e as artes) como acontecera em toda a história europeia desde a
como ramo do saber ou do conhecimento. Das três divisões Antiguidade clássica, tinha-se por certo que a apreciação é
do conhecimento, a História pertence à Memória, a Filosofia uma satisfação que precisa ser justificada pelos resultados.
(na qual inclui a Teologia e a Ciência) à Razão, e a Poesia A maioria dos escritores procurava justificar as artes como
à Imaginação. Enquanto a memória está presa entre os fonte de prazer inocente, meio inofensivo de preservar o
limites dos fatos e da realidade, a imaginação, menos espírito da vacuidade, ou ainda relaxação benéfica, que
restrita, “não estando amarrada às leis da matéria, pode, a favorece a cultivação dos impulsos intelectuais e morais
seu bel prazer, juntar o que a natureza separou, e separar elevados. 134
o que a natureza juntou e, dessa maneira, estabelecer
reuniões e divórcios ilegítimos das coisas”. 131 [Addilson, Prazeres da Imaginação]
O seu tributo à arte da horticultura (naquele tempo
[Francis Bacon: função das artes] considerado uma das “belas artes”) tipificava muita coisa
Competia às artes, consoante o ponto de vista de Bacon, que se havia de seguir: 134
apresentar um simulacro da realidade, mas elas se “Encaro o prazer que nos proporciona um jardim
prevalecem do poder da imaginação a fim de apresentar o como um dos mais inocentes aprazimentos da vida
simulacro de uma realidade modificada, que se ajusta aos humana. [...] Tende naturalmente a encher o espírito de
ideais humanos do que é certo e apropriado, menos calma e tranquilidade e fazer descansar todas as suas
contrária aos desejos humanos e, geralmente, espicaçada paixões turbulentas. Ministra-nos uma grande visão dos
e enfeitada para mostrar-se mais interessante e desígnios e da sabedoria da Providência e sugere um sem-
emocionante do que a prosaica realidade da vida real. 131- número de temas para meditação”. (Spectator, n. 477) 134
132
[Lorde Kames, Elements of Criticism]
[Os Idealistas Renascentistas Idólatras dos Artistas] Assim também em seus prestigiosos Elements of Criticism
Os mais bombásticos referiam-se ao artista como alguém (1762) Lorde Kames destacou os efeitos morais da
que comparte das funções da divindade, criando um mundo apreciação no favorecimento das afeições sociais e
melhor do que o mundo que conhecemos. Outros compassivas, ao passo que a crítica fortalece os poderes
comparavam essa função idealizadora ao propósito moral de raciocínio e, dessarte, nos prepara para os mais árduos
da arte e entendiam que, pintando um mundo idealizado, o trabalhos da ciência. 135
artista induziria o geral dos homens a buscar o bem e o
ideal: o que o filósofo ensinava por meio de argumentos e [Addilson, Prazeres da Imaginação]
preceitos, o artista louvava retratando um mundo ideal O seu tributo à arte da horticultura (naquele tempo
imaginário. Outros ainda, como Bacon, consideravam a considerado uma das “belas artes”) tipificava muita coisa
poesia e as artes como um hábito refocilante, mas não que se havia de seguir: 134
totalmente sério. 132 “Encaro o prazer que nos proporciona um jardim
como um dos mais inocentes aprazimentos da vida
CAPÍTULO 6 humana. [...] Tende naturalmente a encher o espírito de
calma e tranquilidade e fazer descansar todas as suas
A ESTÉTICA INGLESA DO SÉCULO XVIII paixões turbulentas. Ministra-nos uma grande visão dos
desígnios e da sabedoria da Providência e sugere um sem-
[A Estética Moderna inicia com os ingleses] número de temas para meditação”. 134
Diz-se amiúde que a estética moderna principiou com o
século XVIII e, mais especificamente, com os filósofos e [Archilbald Alison: prazer das artes]
ensaístas ingleses do século XVIII, que escreveram sobre a No fim do século, Archibald Alison resume essa atitude
teoria e a fruição das artes. Existem motivos para essa quando diz, referindo-se às emoções do gosto: “Desde os
opinião. 134 primórdios da sociedade até a sua derradeira fase de
aperfeiçoamento, elas proporcionam inocente e elegante
[Objetividade da autonomia estética] recreação à vida privada, ao mesmo tempo que
Foi então que o impulso estético da natureza humana, que acrescentam o esplendor do caráter nacional; e, no
orientou, acreditamos nós, durante todo o curso da História, progresso das nações, assim como dos indivíduos,
a criação e o gozo dos objetos de arte, emergiu à tona da enquanto desviam a atenção dos prazeres que propiciam,
consciência e os homens começaram a dar-se conta e a servem de elevar o espírito humano das atividades
cogitar desse modo especial de contato com o meio que corpóreas para as intelectuais”. (Essays on the Nature and
hoje denominamos “estética”. 133 Principles of Taste, 1790). 135

[Autonomia da Estética] [Kant: Belas-Artes e a Natureza (superior)]


A pouco e pouco, no transcorrer do século, foi ganhando Se o homem de bom gosto, que o tenha suficiente para
destaque o conceito de “belas-artes”, sem o qual não pode aquilatar obras de belas-artes com a máxima correção e
haver Estética independentemente da arte e da beleza. Foi requinte, deixa prontamente a sala onde se acham essas
possível, pela primeira vez, aplicar à apreciação das artes belezas e concorrem para a vaidade ou, ao menos, para as
critérios estéticos “autônomos” num sentido já semelhante alegrias sociais, e vai procurar o belo na natureza, de modo
ao sentido moderno. 133 que ali possa encontrar, por assim dizer, uma festa para a
alma num encadeamento de pensamentos que nunca
[Atividade Auto-Recompensadoras] poderá desenvolver completamente, passaremos a
Em primeiro lugar, a suposição moderna de que a cultivação encarar-lhe a escolha com veneração e a louvar-lhe a
das artes e a apreciação da beleza são atividades “auto- formosura da alma, louvores que nenhum connoisseur ou
recompensadoras”, suscetíveis de justificação e não colecionador de arte poderá reivindicar para si estribado no

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interesse que lhe despertam os seus objetos”. (Crítica do [Shaftesbury: desinteresse próprio = atenção
Juízo, p. 48) 136 desinteressada = atitude estética]
Shaftesbury contrapôs a “atenção desinteressada”,
[Kant: Beleza Livre (que agrada sem conceito) e Beleza essencial que ora denominamos a “atitude estética”, a
Dependente (que é acompanhada de conceito)] qualquer desejo de usar, possuir, ou manipular o objeto da
Kant distingue entre a “beleza livre” (pulchritudo vaga) de atenção. O nosso interesse, quando estético, “termina” no
um lado, pertencente a objetos naturais, como flores e objeto e nós, nos sentimos totalmente absortos na
conchas, sobre cujo tipo funcional não temos nenhum apreciação, na contemplação e no aperfeiçoamento da
conceito pré-formado, e à arte não representativa, como a nossa consciência do objeto que nos prendeu a
música não vocal e os arabescos; e, de outro lado, a “beleza atenção.138
dependente” (pulchritudo adhaerens), em que a beleza
supõe o reconhecimento da perfeição de uma coisa em [Shaftesbury: Atenção estética: prazer da matemática]
relação a uma ideia pré-formada do seu tipo ou propósito. Shaftesbury propôs, como paradigma dessa atitude, o
136 prazer que nos dá a Matemática, em que a nossa percepção
não se relaciona com nenhum “interesse privado da
[Kant: Beleza Livre] criatura, nem tem por objetivo nenhum bem próprio ou
Só os julgamentos concernentes à beleza do primeiro vantagem”. Como ele diz: “A admiração, a alegria ou o amor
gênero haviam-nos ele por genuínos ou puros julgamentos voltam-se inteiramente para o que é alheio e estranho a nós
estéticos. 136 mesmos”. 138

ATITUDE DESINTERESSADA [Hutcheson: o prazer estético não pressupõe um


desprazer anterior]
[Moral: Atitude interessada] Hutcheson afirmou que o prazer estético não está ligado
Historicamente, a noção de “desinteresse” adquiriu ao apaziguamento de nenhum “desassossego de apetite”,
preeminência em oposição ao “egoísmo inteligente” de mas inere ao próprio ato de apreensão quando exercido
Thomas Hobbes, segundo o qual todos os preceitos de sobre um objeto apropriado. 138
moral e religião podem ser reduzidos, no fundo, a um
egoísmo esclarecido. Contra esse ponto de vista se [Shaftesbury: prazer desinteressado da Verdade]
ergueram Lorde Shaftesbury (1671-1713), Cudworth e os Sustentou Shaftesbury que o prazer estético não tem
platônicos de Cambridge, proclamando que a virtude e a relação alguma com a “consideração interessada” mas “não
bondade têm necessariamente de ser “desinteressadas”. pode ser outro senão o que resulta do amor da verdade, da
Devem exercer-se por si mesmas e não por motivos proporção, da ordem e da simetria das coisas exteriores”.
egoístas. As ações praticadas por medo das consequências 138
ou na esperança de recompensa – ou seja, as ações
“interessadas” – por mais esclarecido que seja o egoísmo, [Kant: Prazer Desinteressado]
não tem valor moral. 137 Aqui podemos ver, embrionária, a noção do “prazer
desinteressado”, que era um conceito-chave na estética de
[Religião: Desinteressado amor a Deus] Kant. Depois de Kant, a ideia do prazer desinteressado
Na esfera religiosa, o conceito do “desinteressado” amor a como distintivo da experiência estética permaneceu
Deus – isto é, o amor a Deus por Ele mesmo e não fundamental com Schiller e os idealistas alemães, até ser
provocado pela esperança do céu ou pelo medo do inferno reformulada e popularizada neste país por Vernon Lee em
– surgiu de uma controvérsia entre jansenistas e jesuítas. The Beautiful (1913), livro que logrou considerável
Em carta endereçada ao sábio escocês Burnet, escrita em popularidade nos primeiros decênios deste século. 138-139
1697, Leibniz definiu o amor desinteressado como o fato de
“encontrarmos o nosso prazer na felicidade de outrem”. 137 [Interesse psicológico pela experiência estética.]
Entre os seguidores de Shaftesbury vamos encontrar
[Burke: Beleza é interesse amoroso desinteressado também os primeiros indícios do interesse pelo exame
(não-lascivo ou benevolente)] psicológico ou fenomenológico da experiência estética. 139
Quando Burke, em seu Enquiry, definiu a beleza como “a
qualidade... dos corpos por meio da qual eles provocam [Hume, Of the Standart of Taste. Como estar preparado
amor”, usou uma concepção muito semelhante de amor, para contemplar a beleza de algo]
extremando-o do “desejo ou lascívia, energia do espírito “Estas emoções mais sutis são de natureza muito tenra e
que nos move à posse de certos objetos” e descrevendo-a delicada, e requerem o concurso de muitas circunstâncias,
como a satisfação que “nasce, para o espírito, da favoráveis para poderem atuar com facilidade e exatidão,
contemplação de alguma coisa bela”. Foi este o sentido em de acordo com os seus princípios gerais e estabelecidos. O
que o “desinteresse” se tornou conceito orientador da menor obstáculo externo a estas molazinhas, ou o menor
estética do século XVIII.137 distúrbio interno, lhes perturba o movimento e atrapalha as
operações de toda a máquina. Quando quisermos fazer
[Desinteresse é igual a “Desinteresse Próprio”] uma experiência dessa natureza e experimentar a força de
A palavra “desinteressado”, naturalmente, não supunha qualquer beleza ou deformidade, precisamos escolher com
falta de interesse pelo objeto da atenção, senão a ausência cuidado o momento e o lugar adequados para deixar a
de qualquer “interesse próprio”, de qualquer consideração fantasia em situação e disposição favoráveis. Uma perfeita
de vantagem ou utilidade e, com efeito, de qualquer serenidade do espírito, um recolhimento do pensamento,
considerações de vantagem ou utilidade e, com efeito, de uma devida atenção ao assunto; em faltando qualquer uma
qualquer interesse que não fosse a direta contemplação do dessas circunstâncias, o nosso experimento será falaz e
objeto e a satisfação havida da percepção dele. 137 não poderemos ajuizar da beleza católica e universal. 139

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[Os objetos antigos deixaram de ser “utilitários” (ícones simplesmente contemplado”. (The Experimental Psycology
religiosos) e passaram a ser simplesmente “belas” of Beauty, 1962, p. 5). 142
(esteticamente agradáveis)]
Quando os objetos de arte do passado deixaram de ser [Paul Weiss: “atitude estética”]
objetos de culto ou símbolos sociais e se tornaram, para nós Com outras palavras, o filósofo metafísico Paul Weiss
produtos de “belas” artes, já não sabíamos quais eram as expressou algo muito semelhante ao dizer em The World of
funções a que eles se destinavam, se utilitárias, sociais ou Arte (1961): “Uma experiência estética é toda superfície, e
mágico-religiosas, nem isso nos interessava muito. Se disso imediatamente presente. O seu conteúdo é qualidade pura,
dependêssemos, eles seriam hoje para nós pouco mais que o aspecto imediato, intuído e sentido das coisas. [...] Nós
objetos de interesse histórico, pois os valores extra- concentramos num objeto estético quando, por mera
estéticos de que foram outrora os veículos desapareceram mudança de atitude, consideramos alguma coisa à parte da
com o correr do tempo. 140 natureza e fora da teia das necessidades convencionais”.
142-143
[Intolerância em relação à cultura do outro (bens
estéticos) – apreciação somente de sua tecnologia [Stanislaw Ossowski: a “atitude estética” e a
(utilidade objetiva)] temporalidade presente]
Antigamente, o poder de apreciar a arte em outras tradições O sociólogo polonês, que se ocupa da Estética, Stanislaw
que não a nossa se restringia à disseminação real das Ossowski, sublinhou a qualidade de “presença imediata”
ideias e da tecnologia: fora disso, tudo o que fosse da experiência estética em seu livro U Podstaw Estetyki
estrangeiro parecia bárbaro e grotesco. 140 (terceira edição, 1958, p. 271 e seguintes). A maior parte da
nossa vida ativa, diz ele, é vivida de tal maneira que a
[Apesar de perder a utilidade ou qualquer outro lastro experiência presente se subordina ao futuro e ao passado.
social, um objeto continua com o seu valor estético E isto acontece não só quando visualizamos metas de longo
autônomo] alcance, mas também quanto estamos fazendo planos para
Mas quando já não se conhecerem as funções e o o futuro ou prevendo alguma coisa. Atentamos para as
significado e artefatos recuperados de eras passadas, ou nossas percepções mais comuns e cotidianas, em primeiro
quando os valores de que eles foram outrora portadores já lugar, por sua significação prática e, no próprio ato da
não puderem ser aceitos por nós nem mesmo percepção, interpretamo-las de acordo com as implicações
imaginativamente, tais objetos não serão necessariamente do que está por vir. Ao lidarmos com os sucessos de todos
entulho, mas ainda poderão exercer atração estética sobre os dias, sempre que estamos expectantes, sempre que
nós. E o valor estético que atribuímos a muitos desses estamos ansiosos ou apreensivos, esperançosos,
objetos “desnudados” de arte pode ser bem maior do que confiantes ou exultantes, sempre que algo nos aparece
aquele que encontramos em outros artefatos, cuja suspeito, perigoso, ou inócuo, em todas essas situações a
significação e funções originais conhecemos. 141 experiência presente à luz das implicações futuras.
Semelhantemente, quando estamos surpreendidos,
[“Desinteresse” e as “Belas-Artes”] decepcionados, cheios de remorso ou de ufania, aplacamos
O conceito do desinteresse na teoria da arte tinha o seu pelo sentimento confortável da familiaridade e do
correspondente na noção de “belas-artes”, que pela conhecimento ou perturbados pelo sentido do não-familiar,
primeira vez se destacou na mesma ocasião. No passado, experimentamos o presente no contexto e no colorido de um
como já dissemos, as obras de arte eram feitas com uma passado escolhido. Todas essas atitudes e emoções são
finalidade; e, como os demais artefatos, se avaliavam pela estranhas à contemplação estética (embora possam, sem
excelência do seu artesanato e pela eficiência no servir ao dúvida, entrar no conteúdo de uma obra de arte diante da
propósito a que se destinavam – como veículos promotores qual assumimos a atitude estética da atenção). 142-143
de valores sociais, por sua influência moral, por seus
empregos didáticos, etc. O conceito das “belas-artes” se [Bullough: “atitude estética” e distanciamento de si
baseava na ideia de uma classe de artefatos fabricados para entrar em um estado de distanciamento objetivo]
única ou principalmente para serem contemplados [Edward Bullough, The British Journal of Psychology:
esteticamente. Diferia muitíssimo do conceito medieval das distância física da experiência estética] Bullough ilustra a
“artes liberais”, estribado num contraste entre as ocupações sua ideia de “distância” com a nossa experiência de um
intelectuais e manuais. Estava, com efeito, mais próximo da nevoeiro no mar. Trata-se, para a maioria das pessoas, de
noção grega das artes “ministradoras de prazer”, muito uma causa de profundo dissabor, mas pode tornar-se fonte
embora a noção de um gênero especial de prazer de intenso deleite se alguém conseguir,
“desinteressado”, nascido da contemplação estética, momentaneamente, descartar-se das implicações de perigo
imprimisse ao conceito um colorido muito diverso. Enquanto ou de inconveniência prática e fixar a atenção nos aspectos
não se chegou à ideia de uma atitude estética especial de apresentados imediatamente: [...] 143-144
atenção desinteressada, não foi possível a feitura nem a
apreciação deliberada das obras de arte em relação à sua [Atitude de “atenção desinteressada” do século XVIII]
adequabilidade ao gozo estético, nem o reconhecimento de Ao assumirmos uma atitude estética em relação a alguma
uma classe de “belas” artes, cujos valores não se escoram coisa, nós, por assim dizer, “desligamo-la do nosso eu
em nenhuma utilidade estranha a elas, senão em padrões prático, real, deixando-a ficar fora do contexto das nossas
artísticos “autônomos”. 141-142 necessidades e finalidades pessoais”. Esta é a atitude de
atenção desinteressada do século XVIII. 144
[Professor Valentine sobre a “atitude estética”]
“Podemos dizer grosso modo que se adota uma atitude [A “atitude estética”, as emoções e o saborear]
estética, no sentido mais amplo do termo, toda vez que um Em algumas pessoas, de fato, o comércio estético com as
objeto é apreendido ou julgado sem referência à sua artes é altamente carregado de sentimentos. Ao
utilidade, valor ou retidão moral; ou quando está sendo estabelecermos, porém, contato estético com as coisas,
ficamos atentos às suas qualidades emocionais, não pela

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resposta direta, mas como algo a ser observado, saboreado [O “sentido interno” tornou-se lugar comum (Hume)]
e delicadamente provado. 144 Até escritores que não adotavam especificamente nenhuma
doutrina do “sentido interno” por meio do qual percebemos
[Arte: pode ter valores extra-estéticos ou só estéticos] a beleza, como um modo de sentir – prazer ou satisfação
Podemos apreciar as obras de arte como veículos de experimentados na mera apreensão do objeto ou das suas
valores não estéticos – morais, sociais, religiosos, propriedades formais. Hume é típico. Fala do “sentimento
intelectuais e outros; e a experiência estética será ainda de beleza ou deformidade”, de “impressão”, “sentimento”,
mais rica por isso. Mas se respondermos diretamente a “gosto”, das “emoções mais delicadas” como “órgãos
esses outros valores (é o que proclama a doutrina do internos” por meio dos quais “percebemos” a beleza. 146
desinteresse ou da distância psíquica), não estaremos
apreciando o objeto esteticamente como obra de arte. 144- [Archibald Alison: definição de “gosto”]
145 Na introdução aos seus Essays, Archibald Alison definiu o
gosto: “a faculdade do espírito humano por cujo intermédio
O SENTIMENTO COMO FONTE DA EXPERIÊNCIA de natureza ou de arte”. Em seguida, prossegue: “A
ESTÉTICA percepção dessas qualidades é acompanhada de uma
emoção de prazer, perfeitamente distinguível de qualquer
[A beleza é para “homens de gosto delicado”] outro prazer da nossa natureza e, portanto, distinguida pelo
A gradativa substituição da razão pelo sentimento como nome de emoção do gosto”. 147
critério fundamental em nosso comércio com as belas-artes
principiou a ocorrer nos últimos anos do século XVII, [Clive Bell, definiu uma categoria única de prazer
quando os críticos passaram, aos poucos, a acreditar que a estética]
literatura e a arte não deve ser julgadas segundo cânones “O ponto de partida de todos os sistemas de Estética deve
clássicos de correção mas, antes, pela atração direta que ser a experiência pessoal de uma emoção peculiar. Aos
exercem sobre homens de sensibilidade e cultivada e objetos que provocam essa emoção chamamos obras de
requintada – sobre “homens de gosto delicado”, para arte. Todas as pessoas sensíveis concordam em que há
empregarmos a expressão de Hume. 145 uma emoção peculiar provocada pelas obras de arte. [...]
Essa emoção denomina-se emoção estética; e se
[Longino: Sobre o Sublime – Sentimento na apreciação pudermos descobrir alguma qualidade comum e peculiar a
do Belo] todos os objetos que a provocam, teremos solucionado o
A popularidade do tratado de Longino Sobre o Sublime se que, ao meu parecer, é o problema central da Estética.” 147
harmonizava com a tendência cada vez mais acentuada de
destacar a importância da emoção e do sentimento na [Alison: 1) quais são as características do belo; 2) quais
apreciação. Termos como “sentimento”, “emoção”, os sentidos que nos permite percebe-la]
“impressão”, “imaginação”, “sensibilidade”, passaram a ser Esse programa de Estética foi antecipado por Alison, o qual
as novas deixas numa tendência para afirmar o princípio declarou que “os dois grandes objetivos da atenção e da
fundamental da resposta individual contra a autoridade da indagação, que parecem incluir tudo o que é necessário, ou
razão e da regra. Coincidentemente o conceito de “gosto” talvez possível, que descubramos sobre o assunto do
adquiriu nova preeminência. 145-146 gosto” são: 1) “investigar a natureza das qualidades que
produzem as emoções do gosto”; e 2) “investigar a natureza
[O surgimento do “Gosto” no séclo XVII] da faculdade por cujo intermédio são recebidas tais
Na Inglaterra, durante a última década do século XVII, a emoções”. 147
palavra “gosto” – nova nesse contexto – foi posta em
circulação por John Dryden e Sir William Temple e O PADRÃO DO GOSTO
popularizada, mais tarde, por Shaftesbury e Addison pela
sua analogia com gusto e com o francês goût. A fusão das [Shaftesbury e Tomás de Aquino (Prazer estético)]
duas tendências conduziu a uma doutrina de apreensão A ideia de Shaftesbury de que a nossa apreensão da
estética que, embora ao depois sobrepujada pelo beleza é uma forma de consciência direta, atingida através
emocionalismo romântico, tem, porventura, maior do prazer que experimentamos na contemplação
relevância para a teoria moderna da arte do que as desinteressada de um objeto apropriado, tem afinidades
doutrinas da “expressão”, oriundas do romantismo. 145 também com a doutrina medieval de que é belo aquilo cuja
mera apreensão agrada (id cuiús ipsa apprehensio placet).
[O “sentido interno” por meio do qual percebemos a 148 [Vide Tomás de Aquino]
beleza]
[...] Assim, Schaftesbury afirmava que a beleza “é [Diferenças entre Shaftesbury e Tomás de Aquino]
imediatamente percebida por uma evidente sensação Mas o plano de fundo conceptual das duas teorias era muito
interna”. Addison preferia falar em “imaginação”, mas diferente. Pois os filósofos medievais consideravam toda
considerava a percepção da beleza uma espécie de visão cognição uma espécie de identificação com o objeto ou o
interior. Hutcheson, cujo nome está principalmente reconhecimento de uma identidade entre o espírito
associado à doutrina do “sentido interno”, usava de bom cognoscitivo e o objeto cognoscido. Presumia-se que toda
grado o termo de Addison “imaginação” ou o termo “gosto”. cognição fosse intelectual e o mundo se reputava
Os mesmos autores, todavia, encaravam essa intuição, cognoscível por ser racional, e enquanto o fosse. 148
esse “sentido interno” por meio do qual percebemos a
beleza, como um modo de sentir – prazer ou satisfação [Somos iguais em Razão, mas diferentes em
experimentados na mera apreensão do objeto ou das umas Sentimento]
propriedades formais. 146 Pressupõe-se que a razão seja universal e idêntica em
todos os homens. A luz da razão brilha com maior
intensidade em alguns homens do que em outros, mas,
enquanto racionais, os homens não diferem entre si. O

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

sentimento, porém, era uma questão diferente e as dos homens; pelo menos uma decisão dada, que confirme
variações dos sentimentos e as variações dos sentimentos um sentimento e condene outro”. 151
e inclinações entre um homem e outro exigiam, como se
verificou, um ponto de vista mais subjetivo. 149 [Burke: aprimoramento do Gosto]
Burke também afirmou a sua crença na perfectibilidade do
[A psicologia acreditava que o juízo de beleza variava] gosto. “Sabe-se”, diz ele, “que o gosto (seja qual for a sua
A tradição psicológica e empirista, vigorosamente natureza) é aprimorado exatamente como nós aprimoramos
inaugurada por Hobbes, obrigava de fato ao o julgamento, pela extensão do conhecimento, pela firme
reconhecimento das diversidades reais do gosto e, logo no atenção ao objeto e pelo exercício constante”. 151
princípio do século, se aceitava como truísmo a afirmação
de que o sentido de beleza dos homens sofre a influência [Lorde Kames: padrão de gosto]
de fatores como a História, a nacionalidade e os acidentes Na dedicatória dos seus Elements of Criticism a Jorge III,
da cultura e do temperamento. 149 Lorde Kames Confessa que tem em mira “formar um
padrão de gosto, desenvolvendo os princípios que devem
[Addison, The Spectator, n. 413 – a beleza é variável] governar o gosto de todo indivíduo” e estabelecer regras
“Talvez não haja mais beleza ou deformidade reais num práticas para as artes, revelando-lhes “os princípios
pedaço de matéria do que em outro, porque podemos ter fundamentais tirados da natureza humana, a verdadeira
sido feitos de tal maneira que os que hoje nos parece fonte da crítica”. 151
repulsivo pode ter-se mostrado agradável; mas podemos
verificar pela experiência que há diversas modificações da [Problemas Modernos 1) uma resposta emocional
matéria que o espírito, sem nenhuma consideração prévia, correta frente ao objeto da minha percepção? 2) se sim,
proclama, à primeira vista, belo ou deformado.” 149-150 como podemos encontrar um padrão?]
A crença, de um lado, na subjetividade da beleza,
[Hume: a beleza ou a feiura não depende do objeto, decorrência do seu relacionamento com o sentimento e a
depende do espírito] resposta emocional e, de outro, na possibilidade de regras
Num ensaio intitulado The Sceptic (1741), Hume sustentou e padrões do certo e do errado no julgamento estético, no
que as qualidades em virtude das quais chamamos às bom gosto e no mau gosto, suscita dois problemas. O
coisas belas ou deformadas (no vocabulário da época primeiro é lógico: em que sentido pode ser correta ou
“deformado” era o contrário de “belo”) não estão “realmente incorreta a proposta emocional? O segundo é empírico: se
nos objetos” mas “dependem da tessitura ou estrutura existem o certo e o errado na resposta estética, como
particular do espírito, ou dos órgãos interiores [era essa a podemos diferenciá-los e encontrar um padrão? 151
expressão de Hume para designar o “sentido interno”], o
sentimento já não o acompanha, conquanto a forma [Hume: a “estrutura do espírito” é o que nos permite
permaneça a mesma”. 150 reconhecer igualmente a beleza das coisas]
É manifesto, todavia, que Hume e provavelmente outros
[Problema Moderno: a beleza depende do sentimento, e autores do seu tempo tenham tratado dele – presumindo
o Sentimento é diferente da Razão pois varia de homem que existe uma resposta emocional “natural” ou
para homem] “apropriada” a qualquer objeto e que, na ausência de
Foi assim que, por estar o julgamento estético mais ligado circunstâncias perturbadoras, essa resposta natural
ao sentimento e à emoção do que à razão, e por se ocorrerá no crítico ou no contemplante ideal. Hume fala em
reconhecerem as diferenças empíricas da disposição “belezas naturalmente apropriadas a excitar sentimentos
emocional entre os homens, surgiu uma nova série de agradáveis”, formas ou qualidades que, partindo “da
problemas, que, até esse tempo, não haviam assumido estrutura original da tessitura interna são calculadas para
grande importância teórica. 150 agradar, e outas para desagradar”, objetos que “pela
estrutura do espírito” são “naturalmente calculados para dar
[Problema Moderno: existe um “gosto” que não é prazer”. Conquanto pareça sustentar que a beleza e a feiúra
particular, mas objetivo e universal?] não são propriedades dos objetos fora da sua relação com
Cumpria indagar se a beleza, em última análise, é uma os seres humanos, ele afirmou que “há certas qualidades
questão de gosto e aversões individuais, de resposta nos objetos ajustadas pela natureza para produzir esses
emocional individual ou se existe um padrão objetivo e sentimentos particulares”. Pressupôs, assim, que, além da
válido de bom e mau gosto em confronto com o qual se variedade empírica das respostas emocionais, há uma
podem avaliar os gostos individuais. 150 resposta “natural” ou “apropositada” a qualquer objeto
advinda da constituição do espírito humano, e toma por
[Apesar dos critérios subjetivos, existe um “gosto” norma essa resposta “natural”. 152
correto, aprendido através das artes]
A existir um julgamento correto e incorreto no tocante à [Hume: poucos tem a “estrutura do espírito” qualificada
beleza das coisas, qual é o critério de julgamento certo ou para perceber a grande Beleza]
errado? A despeito das vigorosas tendências subjetivas, a “Destarte”, diz ele, “se bem os princípios do gosto sejam
maioria dos escritores do século XVIII (incluindo Hume) universais, e quase, se não totalmente, idênticos em todos
esposava um artigo de fé segundo o qual existe “uma os homens; poucos estão qualificados para emitir
retidão de julgamento nas artes”, existem o bom e o mau julgamento sobre qualquer obra de arte, ou estabelecer sua
gosto, que o bom gosto pode e deve ser cultivado. 150 própria opinião como padrão de beleza”. Hume apresentou
uma lista assaz ampla das causas do afastamento da
[Hume: Padrão de Gosto] resposta, ou norma “natural”. Nesse ensaio, menciona:
Como quase todos os autores do seu tempo, Hume julgava dotes falhos; falta de experiência; anormalidade dos “órgãos
natural e razoável procurar um padrão de gosto, “uma regra de sensação interna”; estado de espírito inadequado;
por meio da qual se podem conciliar os vários sentimentos circunstâncias perturbadoras; e, finalmente, preconceito,
querendo significar com isso a incapacidade de transcender

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

o provincianismo da sociedade e do preparo da pessoa. versos medíocres de Frederico, o Grande, e dos Poemas
Também parece presumir que a falta geral de bom senso Morais (1755) de Withof. Estilisticamene, o próprio Kant
será um poderoso fator que impede a correta apreciação não era tão bem dotado quanto o foram, por exemplo,
das obras de arte. 152 Platão, Hobbes e Hume. 155-156

[A tentativa de universalização do gosto; a essência e o [Kant: sem acesso a belezas]


acidente] O que mais assombra é a apreensão da fenomenologia
[...] Esperavam que, pelo estudo das coisas que sempre essencial da experiência estética demostrada por uma
haviam agradado às pessoas em todos os lugares, ao invés pessoa cuja própria experiência estética era limitada. No
das modas passageiras favorecidas por uns poucos, volume intitulado Immanuel Kant, 1724-1804, disse Kuno
chegariam a descobrir os princípios do sentimento inerente Franck: “Que ele tenha chegado Às suas ideias sem
à natureza humana, princípios que poderiam ser qualquer experiência estética pessoal, num ambiente falto
convenientemente considerados como normas do correto de influências artísticas, desajudado de qualquer espécie de
julgamento estético. 153 experimentação psicológicas, exclusivamente pelo
Julgou-se também que, por um método empírico raciocínio abstrato, é, com efeito, prova notável do seu
semelhante talvez fosse possível chegar aos princípios gênio especulativo.” 156
gerais da beleza nas artes. 153
[Beleza como Símbolo do Absoluto (Hegel, Schellin e
[Kant e a sistematização da Filosofia Estética] Schlegel)]
Foi o conflito entre a crença num padrão universal de gosto Na história da arte o espírito cósmico é progressivamente
e o reconhecimento de que o sentimento e a emoção são encarnado. Na arte, o infinito penetra o finito, o
essenciais à apreciação estética que preparou o palco para transcendental e o inexprimível se oferecem à apreensão
os sistemas lógicos de Kant, a primeira filosofia sistemática dos sentidos. (Tanto os filósofos quanto os artistas, disse
da Estética e a primeira exposição sistemática dos Schellin, penetram a essência do universo e rompem as
problemas lógicos nela envolvidos. 154 barreiras que separam o real do ideal: mas só o artista
apresenta o absoluto concretamente, visivelmente, à
CAPÍTULO 7 percepção. A arte é análoga ao poder criador da natureza,
é “o espírito da natureza que só nos fala através de
A CRÍTICA DO JUÍZO DE KANT símbolos”. Mas o símbolo, aduziu Solger, “É a ideia em sua
realidade imediata”. “A arte”, disse Frederick Schlegel, “é
[Apresentação do livro] a aparência visível do reino de Deus sobre a terra”. 157
A Crítica do Juízo (1790) de Kant, que veio à luz no mesmo
ano dos Essays de Alison, é um dos livros mais notáveis da [Hegel: ascensão ao absoluto]
história da Filosofia. Segundo Hegel, “Kant proferiu nele a Essa astronáutica semipoética, semimetafísica, culminou
primeira palavra racional sobre Estética”. Por outro lado, E. nas grandiosas fantasias de Hegel, que descreveu o
F. Carritt não foi o único a pensar que “há poucas ideias processo gradativo pelo qual o espírito cósmico, o absoluto,
originais da estética de Kant”. Ambos os juízos talvez se encarna num ser sensual através da história da
estejam corretos. 155 consecução artística do homem, até o dia em que a arte,
transcendendo a si mesma, satisfeita a necessidade
[O “Juízo” é uma sistematização de várias ideias já espiritual que a originou – como o próprio Kant deu a
existentes no contexto filosófico em que Kant vivia] entender – dará lugar à religião, a qual, por sua vez,
Ao elaborar o seu sistema de estética filosófica, Kant se preenchida a sua finalidade, dará lugar à filosofia do
valeu muitíssimo das ideias e doutrinas críticas de outros, idealismo. 157
inclusive as que prevaleciam entre os estetas ingleses do
século XVIII. Deu expressão filosófica a algumas das [Kant dá origem a autonomia da Estética]
principais noções do movimento romântico – os conceitos Ele tornou explícito e preciso o que estivera implícito ou fora
da originalidade e do gênio, por exemplo, e a fenomenologia parcialmente vislumbrado nos escritos dos seus
da experiência estética. Foi graças à reformulação das predecessores. Até esse momento da história do
ideias menos sistematicamente discutidas pelos estetas pensamento ocidental, as obras de arte e a beleza natural
ingleses que a sua obra se situa na origem de muita coisa sempre haviam sido apreciadas pelo prazer que
que interessa precipuamente à Estética hoje. A contribuição proporcionam, pela sua influência moral ou por seus efeitos
pessoal de Kant consiste sobretudo em expressar educativos ou melhorativos, por sua utilidade prática ou,
logicamente as atitudes que prevaleciam e modelá-las num intelectualmente, porque incorporavam princípios
sistema coerente. Ao fazê-lo, revelou singular acuidade no aprovados ou se conformavam a certas regras. Rejeitando
sublinhar as questões cuja importância persistiu até o todas essas bases de julgamentos e mostrando que os
século XX. 155 juízos estéticos tem base diferente e formam uma classe
independente, Kant abriu novas clareiras e firmou as bases
[Kant: pessoalmente insensível à beleza] da estética como ramo distinto da Filosofia. 158
O feito de Kant foi tanto mais surpreendente quanto ele
possuía escassa experiência direta de apreciação das artes [Kant: juízo de gosto]
e demonstrou pouco talento para isso. A sua vida Kant principiou definindo os “juízos sobre o gosto” como
transcorreu numa cidadezinha atrasada da Prússia Oriental, juízos que se referem aos sentimentos do observador pelos
perto da cidade de Konigsberg. Ao que tudo indica, ele era objetos percebidos e não por quaisquer características
impermeável a quase todas as formas de beleza, percebidas no objeto. 158
emocionalmente árido e sensualmente obtuso. Não tinha “Apreendemos um edifício regular e apropriado
gosto pela música e, tirante algumas obras literárias, as com as nossas faculdades cognitivas, seja claro ou confuso
supremas consecuções artísticas do mundo foram para ele o modo de representação, é muito diferente de ter
um livro fechado. Em poesia, tirou os seus exemplos dos consciência dessa representação com uma sensação

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acompanhante de prazer. Aqui a representação se refere Por motivos semelhantes, Kant repeliu o ponto de vista
inteiramente ao tema e, o que é mais, ao sentimento de vida sustentado por alguns filósofos (notadamente por Thomas
do tema – sob o nome do sentimento de prazer ou Reid) de que uma coisa se reputa bela por perfeita em seu
desprazer – e isto constitui a base de uma faculdade gênero. A noção de perfeição, assevera Kant, supõe um
completamente separada de discriminação e estimação, conceito anterior do gênero de coisas que assim deveria
que nada contribui para o conhecimento”. 158-159 ser. Se julgarmos que determinada coisa é perfeita
estaremos julgando, intelectualmente, que ela se conforma,
[Kant: um romântico crítico do racionalismo] em elevado grau, com esse conceito anterior. 160
Dessa premissa deriva ele o seu repúdio do intelectualismo,
que prevalecera na crítica e no ensino da arte na [Beleza Livre; Beleza Dependente]
Renascença e perdurara no neoclassicismo e no Feita a demonstração, Kant passou imediatamente à
academicismo do século XVII. 159 qualificação, distinguindo duas espécies de beleza: a beleza
livre (pulchritudo vaga), que independe de qualquer
[Kant: é um erro procurar “padrões” universais nos conceito de perfeição ou uso, e a beleza dependente
objetos para declara-los “belo”] (pulchritudo adhaerens), atribuída a coisas que se
“É absolutamente impossível”, sustenta, encontrar classificam num conceito desses. Só os juízos relacionados
“princípios do gosto” do gênero deste: “qualquer objeto que com a primeira espécie de beleza se consideram estéticos
possua tais e tais propriedades é belo”. É impossível “puros”. A beleza pura ou independente pertence apenas,
encontrar regras teóricas para a construção de belos acredita ele, a coisas que julgamos em qualquer conceito
objetos. E é impossível porque, quando julgo que um objeto de perfeição ou utilidade, como certas formas naturais e
se inclui em certo princípio geral ou se conforma com esta artes não representativas [...] e certo número de crustáceos
ou aquela regra, estou fazendo um juízo intelectual e não podem ser julgados belezas “independentes” ou “puras”
um juízo sobre o meu sentimento por ele: e de um juízo porque nos agradam sem qualquer ideia de um tipo de
intelectual dessa ordem não posso “inferir que ele é belo”. perfeição a que se conformem (chama a essa ideia
“Pois é preciso que eu sinta prazer imediatamente na “intencionalidade interna”), ao passo que a beleza de um
representação do objeto (isto é, na minha concepção dele), homem, de um cavalo ou de um edifício, é meramente
e não posso ser levado a esse prazer persuadido por “dependente”, porque pressupõe um conceito do gênero de
provas”. Os críticos, diz ele, “são incapazes de olhar para a coisas que deve ser ou do uso a que deve servir. 161
força das demonstrações”, para o motivo determinante do
seu julgamento, “mas apenas para o reflexo do tema sobre [Juízo Estético e Juízo Teórico]
o próprio estado dele, de prazer ou desprazer, do modo a Kant expressa suscintamente a distinção entre o juízo
excluir preceitos ou regras”. 159 estético e o juízo teórico por meio da seguinte definição:
“Belo é o que agrada independentemente de um conceito”.
[Rosas: mesmo que todos as julguem belas, não se 161
pode derivar que ela seja bela em si mesma,
independente do juízo] [Beleza Intelectual e Beleza Sensível]
Podemos dizer “todas as rosas são belas” sintetizando o Sentimos prazer intelectual no reconhecimento de alguma
fato empírico de que nós e todas as outras pessoas sempre coisa (seja qual for a sua aparência) é perfeita e
encontramos prazer no espetáculo das rosas Mas essas economicamente adequada à sua função, ou no
generalizações empíricas são apenas empíricas. Não reconhecimento de que é um consumado exemplo do seu
podemos derivar delas normas nem padrões de gosto. Do gênero (por exemplo, o caso citado de De Quincey de uma
fato de todos os homens acharem belo o espetáculo das “bela úlcera”) ou na apreensão (independente da aparência)
rosas não podemos inferir que todos os homens devem da intrincada e bem sucedida interadaptação das partes de
julgar belas as rosas, ou que um homem erra quando não um organismo. O prazer que nos proporcionam essas
as julga tais. 160 coisas, sem dúvida, é muito semelhante ao nosso deleite
com uma demonstração matemática elegante, correta e
[Apenas a percepção imediata determina a beleza] econômica, ou com um problema de xadrez. Hoje se
Reiterou, enfático, que a única base do juízo estético é o entende que a expressão “beleza intelectual” é
prazer imediato proporcionado pela percepção do objeto. apropositada a esses casos. 161-162
“Portanto”, ajuntou, “não existe nenhuma base de prova que
possa coagir o juízo sobre o gosto de quem quer que seja”. [Juízo Moral; Juízo Intelectual; Juízo de Beleza]
160 A fim de diferenciar os juízos sobre a beleza dos juízos
morais, dos juízos sobre a utilidade e dos juízos baseados
[Beleza não está no conceito, mas na experiência] no prazer dos sentidos, Kant se vale do conceito, formulado
Rechaçou, por princípio, todos os princípios objetivos, ou por Shaftesbury, do prazer desinteressado. Ao parecer
padrões de gosto, sustentando que a base única e definitiva de Kant, os juízos estéticos devem ser estremes de
do juízo estético é a experiência estética direta da pessoa interesse. “Todos precisamos concordar em que um juízo
em contato com o objeto. “Não pode haver nenhuma regra sobre a beleza a que se misture o menor laivo de interesse
objetiva de gosto”, diz ele, “pela qual o que é belo se possa é muito parcial e não é um juízo puro acerca do gosto”. 162
definir através de conceitos. Pois todo juízo oriundo dessa
fonte é estético, isto é, tem por base determinante o [Definição do Belo: Gosto e Desinteresse]
sentimento do sujeito e não um conceito qualquer do No fim do primeiro momento da sua analítica do Belo, ele
objeto”. Além disso: “É perder tempo procurar um princípio define o belo da seguinte maneira: “O gosto é a faculdade
do gosto que ministre um critério universal do belo através de julgar um objeto ou um modo de representação por uma
de conceitos definidos”. 160 satisfação ou insatisfação inteiramente independentes do
interesse. Ao objeto dessa satisfação chama-se belo”. À
[Beleza não é a adequação do objeto ao conceito ou a semelhança de Hutcheson, Burke e o resto, Kant presume
um ideal da espécie]

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que o “interesse” implica ou envolve o desejo. Define-o mim se me afigura que as bases dadas são, com
como o interesse pela existência de uma coisa. 162 frequência, o aspecto do objeto examinado (forma e cor), os
sonos que produz, os cheiros, os gostos ou as impressões
[Desinteresse: agradar-se com o bom em si mesmo] táteis que proporciona”. Isto parece ir demasiado longe.
Os juízos sobre a utilidade são tratados como uma Precisamos distinguir o ponto de vista em que a postura
subdivisão dos juízos acerca do “bem”. Ao dizermos que “desinteressada” de atenção é aparte necessária da atitude
uma coisa é útil, estamos dizendo que é boa para alguma estética da presunção de que ela é tudo o que precisamos
coisa, agrada como meio para outra coisa. O bom-em-si- para a consciência estética. 165
mesmo, por seu simples conceito, é algo louvado pela razão
como coisa cuja existência deve ser querida. “Mas querer [Dugald Stewart, Philosophical Essays (1810),
alguma coisa e ter satisfação em sua existência, isto é, ter Categorias de prazer: sensível (som, aroma, etc.) e
interesse por ela, é o mesmo”. 162 estético (quadro, música, poesia, etc.)]s
“A palavra beleza... sempre denota, com efeito, alguma
[Belo: desinteresse de obter vantagem; desinteresse de coisa que dá não só prazer à mente, senão uma certa
uso; desinteresse de posse; desinteresse de espécie de requintada de prazer, distante dos hábitos mais
existência] grosseiros que temos em comum com os animais; mas não
Os estetas ingleses haviam tentado caracterizar a atitude é universalmente aplicável em todos os casos em que se
desinteressada da atenção contrastando-a com o experimentam esses prazeres requintados, limitando-se
“interesse” por uma coisa no sentido de um desejo ativo ou com exclusividade aos que formam os objetos apropriados
latente de possuir, usar ou manipular essa coisa. Posição ao gosto intelectual. Referindo-nos às belas cores, às belas
semelhante assumiu o predecessor alemão de Kant, peças de música; falamos também da beleza da virtude; da
Mendelssohn, ao dizer: “Parece ser marca particular do beleza da composição poética; da beleza do estilo em
belo o fato de ser contemplado com serena satisfação, de prosa; da beleza de um teorema matemático; da beleza de
agradar, embora não esteja em nosso poder e embora um descobrimento filosófico. Por outro lado, não aludimos a
estejamos muito longe do desejo de utilizá-lo”. Kant belos gostos nem a belos cheiros; nem aplicamos o epíteto
adiantou-se aos seus predecessores e imprimiu um feitio à suavidade, à maciez ou ao calor agradáveis de objetos
metafísico à doutrina quando excluiu da atitude estética não tangíveis, consideramos tão-somente em relação ao nosso
só as considerações de vantagem e desvantagem, desejo sentido do tato. Ainda menos consentâneo com o uso
de posse e uso, mas também qualquer interesse pela comum da linguagem seria mencionar a beleza da origem
existência de uma coisa. 163 nobre, a beleza de uma grande fortuna, ou a beleza de um
vasto renome. 166
[Desinteresse pela posse; Interesse pela existência do
Belo] [William James: o prazer estético o é por si mesmo]
Por outro lado, temos interesse pela existência de coisas William James (Principles of Psycology, vol. II, p. 468)
belas independentemente de as possuirmos ou não. O achava que a “emoção estética”, pura e simples, o prazer
ponto foi bem exposto por Leibniz na Lettre à Nicoise que nos proporciona certas linhas e massas, e certas
(1698): 163 combinações de cores e sons, é uma experiência
“Aquele que sente prazer na contemplação de um absolutamente sensacional, uma sensação ótica ou auditiva
belo quadro e que sofreria se o visse estragado, ainda que primária, que “não deve à repercussão retrospectiva de
o quadro pertença a outrem, ama-o, por assim dizer, com outras sensações despertadas consecutivamente alhures”.
amor desinteressado; mas este não é absolutamente o caso Sustentava que os sentimentos estéticos, juntamente com
daquele que pensa tão-só em ganhar dinheiro vendendo-o os sentimentos morais e intelectuais, são “formas
ou granjear aplausos por exibi-lo, pouco lhe importando que genuinamente cerebrais de prazer e desprazer” e que “não
o quadro se estrague ou não depois que deixou de tomam nada emprestado de qualquer reverberação que se
pertencer-lhe”. 163-164 avolumam, vindas das partes situadas abaixo do cérebro.
166-167
[Shaftesbury: o prazer estético desperta o desejo de
prolongamento temporal] [Kant: o bem é diferente do belo]
Mas Shaftesbury já observara que, embora o prazer A tentativa de Kant de excluir totalmente da esfera estática
estético que sinto em alguma coisa seja, em si mesmo, a nossa apreensão do bem, sob a alegação de que ela está
desinteressado, a minha experiência de prazer estético associada ao interesse, ao propósito e ao desejo, foi
numa coisa pode despertar em mim o desejo de também contestada. O seu argumento é que tanto ao
experiências estéticas semelhantes em contato com aquela reconhecermos alguma coisa como boa instrumentalidade
coisa ou com outras capaz de interessar-me de maneira (isto é, útil) quando ao reconhecermos como boa
semelhante. 165 intrinsicamente (isto é, boa por si mesma) a razão nos
impele a procurarmos trazê-la à existência ou mantê-la em
[Prazer sensual (dos sentidos) e prazer estético] existência. 169
Foi por essa razão que alguns filósofos modernos puseram
de lado a distinção feita por Kant entre os prazeres [Kant: a subjetividade dos juízos estéticos: ok / mas há
sensuais e os prazeres estéticos. Por exemplo, num ensaio uma objetividade subjetiva no juízo estético]
intitulado “Que é o que torna estética uma situação?” J. O. [1] Como já ficou dito, Kant inicia a sua discussão
Urmson toma o prazer sensual em geral como paradigma afirmando a subjetividade dos juízos estéticos: estes não se
da experiência estética e diz, especificamente: “Se avalio referem a quaisquer propriedades do objeto por meio das
esteticamente uma rosa, as bases mais obviamente quais se pode averiguar se são verdadeiros ou falsos,
relevantes serão o modo por que ela recende; as mesmas senão ao sentimento-resposta do sujeito ao apreender o
bases podem ser causa de uma aversão estética”. E faz o objeto. [2] No Segundo momento, se bem aceite a
seguinte pronunciamento de ordem geral: “Se examinamos, subjetividade dos juízos estéticos, Kant se opõe à doutrina
pois, alguns casos muito simples de avaliação estética, a relativista, que, de ordinário, se supõe decorrente da

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posição subjetiva, a saber, a doutrina de que a beleza das como também lhe chama, “senso público” (sensos
coisas depende das preferências e aversões individuais, communis) Kant subentende um “sentido interno” que não
varia de uma pessoa para outra, de sorte que, ao dizermos se transmite apenas através dos órgãos externos dos
que uma coisa é bela, a nossa declaração não será sentidos, mas através do sentimento. Cria ele que esse
completa se não dissermos para quem é bela. [3] Kant, ao senso comum é uma presunção necessária da
contrário, sustenta que todo juízo sobre beleza de uma comunicabilidade do conhecimento ordinário pela
coisa contém uma implícita pretensão à validade universal percepção do mundo comum; consequentemente não deve
e exige o assentimento de todos os homens. Essa surpreender-nos que, na esfera estética, “a
pretensão à validade universal não tem qualquer relação comunicabilidade universal de um sentimento pressuponha
com a uniformidade empírica do gosto: “não é que toda a um senso comum”. 171
gente concordará com o nosso juízo, senão toda a gente
deve concordar com ele”. Divergimos em nossas simpatias [Deixar o senso particular e chegar ao senso comum
e antipatias individuais (conquanto existem algumas (moral: imperativo categórico) (estética: atitude
uniformidades empíricas de gosto), em nossos desejos e desinteressada)]
aversões, nas coisas que nos ministram prazer sensual, e Ao chegar a uma decisão do senso comum, o homem
aceitamos tais diferenças com equanimidade. 169-170 precisa “destacar-se das condições pessoais subjetivas do
seu juízo” e julgar do ponto de vista universal. 171-172
[O Homem ridículo]
Seria ridículo [diz Kant] se alguém, que se envaidecesse do [Só o senso comum permite a universalidade de gosto]
seu bom gosto, pensasse em justificar-se dizendo: “Este Só na pressuposição, repito, da existência do senso
objeto... é belo para mim”. Pois se apenas agrada a ele, não comum, somos capazes de formular um juízo de gosto. Em
deve chamar-lhe belo. [...] O homem não julga apenas por outro lugar diz ele: “Podemos até definir o gosto como a
si mesmo, mas por todos os homens e, em seguida, fala da faculdade de calcular o que faz o nosso sentimento numa
beleza como se se tratasse de uma propriedade das coisas. representação determinada, universalmente comunicável,
[...] Não é como se ele contasse com o assentimento dos sem a mediação de um conceito”. 172
outros em relação ao seu juízo do gosto, pela simples razão
de havê-lo encontrado concordes em outras ocasiões, mas [Belo: objeto de satisfação necessária (sem conceito)]
exige deles esse assentimento. Censura-os por julgarem de Para o argumento de Kant, o elemento importante é que o
maneira diversa e nega que tenham gosto. 170 senso comum, ou sentimento desinteressado, pelo qual
julgamos a beleza, não varia de homem para homem, como
[O juízo estético é singular, e não universal] o prazer sensual ou o desejo, mas, em princípio, é uniforme
Os juízos estéticos são singulares. Afirmam a beleza deste e invariável. No fim do Quarto Momento, portanto, ele define
ou daquele objeto particular como objeto único e não como o belo como “aquilo que, sem nenhum conceito, é
membro de uma classe. Não assumem a forma de conhecido como objeto de satisfação necessária”. 172
generalizações segundo as quais todo e qualquer objeto de
arte ou todo e qualquer objeto natural, que possua esta e [A satisfação é imediata a percepção]
aquela qualidade, ou esta e aquela combinação de Kant partilhava com Shaftesbury e a escola do “sentido
qualidades, será belo. Não podem ser provados nem interno” da noção de que a nossa apreciação da beleza é
sustentados pela inferência lógica, nem verificados pelo uma espécie de intuição imediata, análoga, nesse sentido,
peso da prova empírica. São expressões de uma intuição à percepção sensual, e que, não obstante, depende de um
direta e imediata. Sem embargo disso, não ratificam sentimento de satisfação. 172
reações privadas e individuais, mas carregam a pretensão
implícita de serem corretos ou incorretos igualmente para [Beleza: adaptação do objeto a nossa estrutura interna]
todos os homens. Quase todos, embora nem todos, os Quando percebemos que uma coisa se adapta
filósofos modernos reputaram essa análise fenomenológica particularmente bem aos nossos poderes de consciência
penetrante e substancialmente correta. 171 perceptiva, independentemente de qualquer raciocínio a
respeito dela ou qualquer análise intelectual, fruímos uma
[Baseamos nosso sentimento em um “sentir comum”, experiência estética e chamamos bela a essa coisa. 173
uma espécie de “sentimento objetivo”, comum a todos] Em parte alguma Kant expõe com muita lucidez
“Em todos os juízos por meio dos quais classificamos de esse ponto de vista, mas volta reiteradas vezes a ele,
bela alguma coisa não toleramos que alguém sustente afirmando sempre que o que denominamos beleza num
opinião diversa e, ao assumirmos essa posição, não objeto é a qualidade de adaptabilidade à mentalidade
baseamos o nosso juízo em conceitos, mas apenas em humana, que o torna capaz de expandir e favorecer os
nossos sentimentos. Baseamo-lo, portanto, no sentimento, nossos poderes de cognição direta não conceptual. 173
não como sentimento privado, mas como comum. No intuito
de encontrar uma saída da aparente anomalia de um juízo [Segundo o Prof. Findlay: a adaptabilidade das coisas à
subjetivo que, não obstante, pretende ser universalmente nossa estrutura perceptiva tem fundamento teológico]
correto ou incorreto, Kant voltou a recorrer ao princípio do Na primeira seção da Crítica do Juízo Teológico diz ele que
desinteresse. muitos produtos da natureza “como se tivesse sido
especialmente planejados para o nosso julgamento”, tem
[Esse sentimento subjetivo que se pretende objetivo uma forma conformável a ele, “através da sua multiplicidade
(comum) é assegurado pela postura “desinteressada” e unidade servem, ao mesmo tempo, para fortalecer e
(que eleva o homem a responder pelo “senso comum”)] sustentar os poderes mentais que entram em ação”. A eles,
Afirma que todos sentimentos aliados ao interesse e ao portanto, damos o nome de formas belas. Na Introdução,
desejo são privados e individuais, variando de homem para afirma que um objeto pode ser representado como dotado
homem. Mas o prazer desinteressado, onde não existe de intencionalidade subjetiva porque a sua forma, na
elemento de desejo ou de inclinação privada, pode ser apreensão, está em harmonia com as faculdades
atribuído a um “senso comum”. Por “senso comum” ou, cognitivas. Isto, ou seja, a adaptabilidade das coisas à

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apreensão humana, denominamos beleza natural, em [O sentimento de beleza é inenarrável pela razão]
contraste com a intencionalidade objetiva ou organização Kant talvez expresse aqui um ponto de vista popular no seu
teleológica. “As primeiras, nós as julgamos pelo gosto tempo e cabalmente exposto por Archibald Alison, a
(esteticamente, por meio do sentimento de prazer), as saber, que uma coisa bela (particularmente quando se trata
últimas, pelo entendimento e pela razão (logicamente de da beleza natural) é aquela que põe em movimento uma
acordo com conceitos). 173-174 cadeia de pensamentos e fantasias sob o impulso de um
sentido emocional, de misteriosa importância e significação
[A harmonia é a adaptabilidade do objeto à nossa quase reveladora, que nunca se poderá encapsular
estrutura perceptiva] integralmente em conceitos práticos. Há sempre o
A “harmonia” de um objeto com as nossas faculdades sentimento de algo que escapa, o sentido de alguma coisa
cognitivas, a sua adabtabilidade à apreensão direta e não que ainda precisa ser apreendida, uma revelação e uma luz
pela razão analítica ou classificadora, é uma questão para fora do nosso alcance. Essa maneira de encarar a atividade
ser decidida pelo juízo estético, guiado pelo prazer que estética se encontra talvez no âmago da concepção
experimentamos na apreensão desses objetos bem romântica do nosso comércio com a beleza. 176
adaptados. “Pois o juízo do gosto consiste precisamente em
chamar-se bela a uma coisa unicamente no que respeita à SUMÁRIO
qualidade por que ela se adapta ao nosso modo de aceitá-
la. (Analítica do Sublime, 32). 174 [Apreciação não-conceitual]
A apreciação, sustenta Kant, é a apreensão direta, mas não
[Adaptação do objeto ao seu conceito (razão de ser conceptual. Concentramos nossa atenção num objeto,
interno); Adaptação do objeto a uma utilidade (razão de tornamo-nos cada vez mais conscientes dele, mas sem o
ser externo) / Adaptação do objeto à nossa estrutura analisar ou classificar teoricamente, sem pensar a respeito
perceptiva] dele. 176
Kant exclui da esfera estética não só a “intencionalidade
interna” (a qualidade de ser um perfeito exemplo do seu [Atenção não-interessada]
tipo), mas também a “intencionalidade externa” (adequação Contemplamo-lo na atitude de atenção desinteressada.
a um propósito, utilidade). Apresenta a ideia da Quando assim contemplamos uma coisa bela, os poderes
“intencionalidade sem intenção” em sua afirmativa de que a de percepção são ativados e sua atividade é mais do que
beleza é a adaptabilidade de uma coisa às nossas usualmente intensa e harmoniosa; o objeto é tal que lhes
faculdades cognitivas. O juízo estético não é um juízo faculta a máxima amplitude e o satisfaz e sustenta. O sinal
acerca dessa adaptabilidade, mas expressa o prazer de que isto está torcendo é o prazer que sentimos nesse
“desinteressado” especial que experimentamos ao total e desimpedido exercício das nossas faculdades. 176
concentrarmos a nossa atenção na apreensão de um objeto
que assim se adapte. 174 [A “estrutura perceptiva” não varia muito, então
julgamos de forma parecida]
[O prazer que sentimos é imanente e único] E Kant prossegue dizendo que, como as nossas faculdades
Ao que tudo indica, Kant pretende dizer mais ou menos isto: de apreensão ou percepção dos objetos, em princípio, não
quando temos contato com qualquer objeto na experiência variam de pessoa para pessoa (se bem, é claro,
estética (isto é, quando assumimos, diante dele, a empiricamente sejamos todos diferentemente dotados), os
desinteressada postura estética da atenção) e o julgamos nossos juízos acerca dos estímulos que satisfazem a essas
belo, não estamos fazendo um juízo acerca do prazer que faculdades e lhes propiciam plena atividade (isto é, acerca
sentimos em sua contemplação, embora esse prazer seja o das coisas belas) são juízos tocantes à adaptabilidade de
nosso critério para julgá-lo belo. Se o juízo fosse feito objetos à cognição humana e, portanto, independentes das
acerca do prazer sentido, a pretensão à comunicabilidade variações e diferenças individuais, mas que pretendem ser
universal da experiência (ou da validade universal do juízo) geralmente válidos para todos os homens. 176-177
seria “autocontraditória”; pois o prazer “só tem validade
privada” e “nada é capaz de ser universalmente comunicado
senão a cognição e a representação, na medida em que ela CAPÍTULO 8
pertence à cognição”. O prazer que experimentamos é o
prazer “na harmonia das faculdades cognitivas”. 174-175 ESTÉTICA DO ROMANTISMO
[1) O objeto é belo quando se adequa às [Palavra “Romântico”]
especificidades dos sentidos cognitivos; 2) a adaptação A palavra “romântico” firmou-se na linguagem da crítica
varia de indivíduo para indivíduo; 3) mas ele se baseia literária e de arte durante o século XVIII. Tirada dos
em um “humano” universal] “romances” da Idade-Média – os ciclos de histórias e lendas
O objeto belo, fonte do prazer, é o objeto que se adaptados que existiam na maioria das línguas “românticas”, ou
nossos poderes cognitivos, que lhes faculta uma atividade “romances”, populares medievais – a palavra, a princípio,
livre e sem restrições e os estimula ao máximo. A tinha um quê de fantástico e estranho, ou mesmo outré,
adaptabilidade a tais poderes não varia de indivíduo para consoante o padrão da cavalaria medieval, em contraste
indivíduo e, assim, logicamente, o juízo estético reivindica mais ou menos deliberado com a tradição clássica, até
corretamente a validade universal, conquanto seja subjetivo então preponderante, derivada dos antigos modelos gregos
no sentido de basear-se na adaptabilidade de um objeto da e romanos. 178
atenção a faculdades humanas e conquanto o critério pelo
qual formulamos o juízo seja prazer individual privado, [“Romântico” como tudo o que não é “Acadêmico”]
experimentado na plena estimulação e na plena Já nos últimos decênios do século XVIII, a palavra
sustentação das nossas faculdades cognitivas. 175 “romântico” se tornara conhecida como termo híbrido, que
abrangia um complexo de novas tendências, que, desde o

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

fim da Renascença, era a doutrina estabelecida das destaque especial dado aos seus aspectos efetivos e
Academias. 178 emocionais; e a nova importância conferida à ficção e à
invenção. 180
[Movimento Romântico]
O chamado movimento romântico estendeu-se, [Inspiração, artista e gênio]
aproximadamente, por cem anos. Nas artes visuais, depois A velha teoria da inspiração, de acordo com a qual o poeta
de 1850, o romantismo já não fazia parte da corrente ou artista era considerado “vidente”, homem “possuído” de
principal e, no fim do século XIX, começara a adquirir um um poder estranho a ele, que atua através da sua arte como
sentido pejorativo. 178 se esta fosse o canal de uma mensagem divina, que não é
sua, metamorfoseou-se nessa ocasião. Para a idade
[Sentido atual do termo romântico] romântica, o artista já não era um homem inspirado pelos
No uso atual, o termo “romântico” não está deuses, mas se elevava ao status de herói ou de quase
necessariamente ligado a esse movimento histórico, mas é deus. A noção de gênio como dom intelectual e espiritual
aplicável a objetos ou movimentos de arte de qualquer excepcional (e não apenas como talento e habilidade
época ou período que ostentem certas características. O excepcionais numa direção particular), posto que não
conteúdo descritivo do termo foi-se elucidando muito restrita às artes, veio a associar-se mais particularmente
gradativamente e mesmo hoje é mais fácil detectá-lo do que com o artista. A partir da época do movimento romântico, o
defini-lo, sendo ele, talvez, mais indicativo de uma atitude gênio passou a ligar-se especialmente à atividade artística;
de que de um conjunto de características demonstráveis. e conquanto só possa ser logrado por uns poucos
178 afortunadíssimos praticantes das artes, é considerado a
condição natural a que aspiram todos os artistas. Às vezes
[Semelhança entre o Clássico e Romântico (são ambos se julgava que o artista-gênio possuía uma compreensão
idealistas)] excepcional da suprema realidade ou era, num sentido
Se bem formem um dos principais contrastes nas especial, uma encarnação ou manifestação do Espírito
classificações críticas, tanto o clássico quanto o romântico Absoluto reverenciado pelos filósofos idealistas alemães;
são modos de arte “ideal”. Ambos encerram conceitos de mas mesmo assim se supunha que o artista gozasse dessa
nobreza, grandeza e superioridade e envolvem uma relação especial com a realidade em virtude dos seus
reorganização artística do ambiente cotidiano com a repulsa superiores dotes naturais. 180
do usual e do vulgar. 179
[Gênio e Originalidade]
[Diferença entre o Clássico e o Romântico (o romântico De mais a mais, a noção de gênio vincula-se muito
começa a romper com o naturalismo em nome de uma estreitamente à da originalidade. Na teoria romântica, o
expressão do indivíduo único] gênio não se manifesta por seguir as regras ou conformar-
Talvez se possa expressar melhor a essência da diferença se à tradição com habilidade e eficiência mais do que
dizendo que, enquanto o ideal do classicismo se apresenta comuns, senão por fazer as próprias regras e abrir uma
como uma possível unidade de acordo com a qual o homem brecha que era aceita pelas gerações subsequentes de
e a sociedade podem ser modelados por fases ordenadas artistas como fonte de novas possibilidades ou regras
até chegarem a uma condição aprimorada, o artista modificadas. O gênio era essencialmente original. Quem
romântico se atira à luta contra um meio basicamente hostil não tivesse originalidade não poderia ser gênio, não poderia
e visualiza o inatingível, um ideal além das possibilidades sequer ser bom artista. Pois as belas-artes se consideravam
da adaptabilidade humana. Ao passo que o classicismo essencialmente produto do gênio. 180-181
pertence à arte naturalista qual a descrevemos
anteriormente neste livro, já é menos evidente que o [Kant e o Gênio]
romantismo se encaixe integralmente no âmbito do Tudo isso foi expresso por Kant nas seções da Crítica do
naturalismo. 179 Juízo (1790) consagrado ao gênio, em que definiu o gênio
como o dom natural ou aptidão mental inata que “dá regras
[As máximas dos Românticos] à arte”. As belas-artes, sustentou, “só são possíveis como
As ideias fundamentais eram as indicadas pelas palavras: produto do gênio” e, a gente, diz ele, está de acordo “no que
gênio, imaginação criadora, originalidade, expressão, concerne à completa oposição entre o gênio e o espírito da
comunicação, simbolismo, emoção e sentimento. Nenhuma imitação”. 181
dessas ideias era nova. Mas ao passo que, antes, haviam
sido periféricas, a importância central agora assumia em [Originalidade]
conjunção umas com as outras representava uma nova Pela primeira vez na História, tirante algumas primitivas
atitude diante da arte, com novos conceitos de suas funções antecipações da teoria da arte chinesa, a originalidade veio
e novos padrões de avaliação. 179 a ser aceita como qualidade necessária da grande arte e do
artista. 181
[Herança Romântica]
Sempre que, na crítica contemporânea, um artista ou uma [A beleza deixou de ser coletivo e passa a ser individual]
obra de arte são elogiados pela expressividade, pela Uma consequência dessas mudanças foi que a beleza, a
originalidade ou pela imaginação, entram a operar os efeitos pouco e pouco, deixou de ser uma ideia de todos para ser
das ideias que desabrocharam na era romântica. 179 uma ideia afeiçoada, em grande parte, por um punhado de
indivíduos excepcionalmente dotados. 181
[A inovação dos Românticos]
Entre as mais prestigiosas atitudes a cuja luz encontram o [Artista-gênio Romântico e Sociedade]
seu lugar e atingem alguma coerência novas tendências da Do membro integrado da sociedade, que trabalhava dentro
teoria da arte associadas ao chamado movimento de uma estrutura de padrões tradicionais de excelência,
romântico, figuram: a elevação do artista; a exaltação da converteu-se o artista em gênio potencial e, portanto, num
originalidade; o novo valor imputado à experiência, com rebelde, ou num potencial imitador. 181

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[Personalidade do Artista-gênio] [Diferentes emoções para diferentes experiências]


No Ocidente, a exaltação romântica do artista em conjunção A maioria dos expoentes das teorias da comunicação
com a ênfase emprestada à originalidade, foi causa, reconhece que as emoções induzidas, experimentadas em
naturalmente, de teorias desse tipo. Supunha-se que, contato com obras de arte, são diferentes das emoções
“expressando” a sua natureza superior, encarando em sua vigorosas da vida real e diferentes também da emoção
arte os seus dotes superiores, o artista-gênio permitiria aos compreensiva que podemos experimentar ao identificar-nos
homens menos afortunados, por intermédio da obra de arte, com este ou aquele personagem de um filme, de um drama
estabelecer contato com ele e tirar proveito da comunhão ou de um romance. Antes saboreamos do que vivemos, no
coma sua personalidade. 182 sentido mais pleno, as emoções particulares ou
associações emocionais comunicadas pelas obras de arte.
[Artista-gênio e a Expressão = o tema da obra é o A questão da resposta emocional às boras de arte
artista] esteticamente fruídas tem sido relativamente pouco
Isso é muito diferente da ideia de expressão, discutida por estudada na estética ocidental, mas foi muito melhor
Sócrates e Leonardo. Estes entendiam por “expressão” os desenvolvidas por diversas escolas de estética hindu.183
sinais faciais ou gestos e atitudes corporais, por cujo
intermédio as figuras pintadas (ou esculpidas) devem [Na contemplação da obra de arte não entramos em
manifestar ao espectador as emoções que estão sentido. contato com uma parte da natureza, e sim com a
Na concepção romântica, porém, o artista expressa os personalidade do artista-gênio]
próprios sentimentos, ou natureza emocional, ou seja lá o Assim as teorias da expressão como as teorias da
que for, através da tonalidade da obra de arte e não pela comunicação da arte são instrumentais. Não se vê na obra
identificação com esta ou aquela figura nela retratada. É o de arte, como nas teorias naturalistas, o espelho através do
próprio artista-gênio que está sendo expresso. O verdadeiro qual podemos contemplar uma seção apresentada da
tema de toda obra de arte é o artista. E através da obra o realidade, senão um instrumento por meio do qual entramos
espectador estabelece um contato emocional afinado com em contato com a personalidade do artista ou por meio do
o artista. 181 qual o artista se comunica conosco [...]. 183-184

[Naturalismo versus Expressionismo (Romântico)] [Valor da obra: comunicação das emoções do artista]
A diferença das teorias naturalistas, não se encara a obra As teorias dessa espécie dão origem aos seus próprios
de arte como espelho através do qual podemos ver (real ou padrões e requerem que as obras de arte sejam julgadas
ideal) alguma realidade além dele. Encara-se pelo êxito com que é lograda a expressão ou a
essencialmente como instrumento pelo qual entramos em comunicação. Tais padrões amiúde se combinam com
contato com o espírito criador do artista. A ser espelho, será critérios morais e a obra de arte é também apreciada em
um espelho que reflete quem o fez. 182 relação à qualidade da personalidade do artista, que se
expressa, ou em relação à qualidade das emoções, que se
[Arte: linguagem das emoções] comunicam. 184
As teorias dessa classe consideram a arte como “a
linguagem das emoções” e, de ordinário, estabelecem uma [Eugène Veron: a importância do artista-gênio
analogia entre a comunicação artística e a comunicação romântico]
linguística. De hábito, porém, não se concebe a “O homem é essencialmente compreensivo e a sua alegria
comunicação emocional através das artes como simples ou o seu sofrimento são amiúde causados tanto pela boa ou
transmissão de informações fatuais acerca da ocorrência de má fortuna dos outros quanto pela sua; como, além disso,
situações emocionais reais ou imaginárias objetivamente, possui em altíssimo grau a faculdade de combinar séries de
da maneira pela qual uma noticiário de jornal ministra fatos fictícios e representa-los em cores ainda mais vívidas
informações sobre acontecimentos; concebe-se a que a realidade; disse se segue que o domínio da arte, para
comunicação artística como o induzimento a uma espécie ele, é de infinita extensão”. O mesmo escritor definiu a arte
de partilha harmoniosa da emoção transmitida, de modo como “a manifestação direta e espontânea da
que o observador não só recebe informações sobre a personalidade humana” e introduziu francamente o critério
ocorrência de emoções que já lhe são familiares, mas moral ao louvá-lo com este reparo: “é do valor do artista que
também, por meio do comércio com as artes, até certo decorre o valor da obra”. (Estética, 1878; traduzido para o
ponto, logra experiências emocionais até então inglês em 1879). 184
desconhecidas para ele e que de outro modo não poderia
conhecer. 183 A INSPIRAÇÃO

[Expressar-se com sentimento; criar uma nova [Inspiração na antiga Grécia]


linguagem com originalidade; não apenas A doutrina da inspiração remonta a eras remotíssimas.
“representar”, mas “interpretar” as experiências] Tanto a Ilíada quanto a Odisséia começam com uma
Em teorias desse gênero se considera, às vezes (embora invocação à Musa, “deusa filha de Zeus”, e, na Odisséia,
nem sempre) como elemento essencial da boa arte que ela XXII, diz o bardo Fêmio: “O deu pôs em meu coração toda
comunique matizes e cores de sentimentos, aliás a sorte de poemas e parece-me que estou cantando para ti
inacessíveis, ou permita ao observador experimentar como um deus”. Na introdução à Teogonia, o poeta
emoções comuns com nova compreensão ou clareza, Hesíodo conta que a musa lhe insuflara a arte da divina
acrescentando assim a soma total da experiência humana. música enquanto ele pastoreava os seus rebanhos do
Isso está ligado à exigência da originalidade. E é isso o que Monte Hélicon. 185
significa “criatividade” no contexto da teoria da
comunicação. 183 [Inspiração como possessão divina]
A inspiração consistia numa espécie de possessão por
alguma força divina fora do artista – empregava-se a
palavra grega enthousiasmos, “entusiasmo” ou literalmente,

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

o estado de ser possuído por um deus – e dela se falava (uma inspiração ou uma forma de divina loucura) e o fato de
comumente como de uma espécie de loucura (mania) por não poder ser ela totalmente reduzida a um ofício, foram as
extrapassava os limites da razão comum. Incluía-se na principais razões que o levaram a repudiá-la. 187
mesma classe de fenômenos que abrangia o delírio
religioso, a história e os vaticínios dos oráculos. 185 [Inspiração Cristã]
Na literatura cristã, a ideia de inspiração como força divina
[Platão] vinda de fora foi reforçada por alguns trechos do Antigo
Repetidamente, Platão se refere à poesia como uma Testamento, como Ezequiel 11:1-10 e Joel 11:28-30, em
espécie de alimentação. “Mas qualquer que, sem delírio das que se diz que o espírito de Jeová entrou em homens e
musas, vá bater às portas da poesia, persuadido de que falou através deles. 187
sem dúvida conseguirá, pelo artesanato, tornar-se um poeta
bem sucedido, nada alcançará e a poesia da sobriedade [William Blake]
será sobrepujada pela do louco” (Fedro, 245 A). 185 Blake acreditava que os seus poemas lhe eram ditados,
num estado de quase êxtase, por espíritos celestiais. 188
[Técnica e Inspiração poética]
“Pois os autores desses grandes poemas que admiramos [Shelley]
não alcançaram a excelência através de regras da arte, mas Shelley percebia nela uma “influência invisível”, não como
descantam as suas formosas melodias em versos num o raciocínio, “poder que pode ser exercido de acordo com a
estado de inspiração e, por assim dize, possuídos de um determinação da vontade”, mas como força involuntária,
espírito que não é o seu. Destarte, os compositores de que vem de dentro. “As partes conscientes da nossa
poesia lírica criam os seus cânticos admiráveis num estado natureza”, diz ele, “não pode profetizar-lhe nem a
de divina insanidade, como os coribantes, que perdem todo aproximação nem a partida”. Reconhecida também que a
o domínio da razão no entusiasmo da dança sagrada; e, inspiração nas artes plásticas é a mesma espécie de
durante essa possessão sobrenatural são excitados pelo processo inconsciente: “O próprio espírito que dirige as
ritmo e pela harmonia que comunicam aos homens. [...] Pois mãos do afeiçoamento é incapaz de explicar a si mesmo a
o poeta é, com efeito, uma coisa etereamente leve, alada e origem, as gradações ou os meios do processo”. 188
sagrada, e não pode compor nada que mereça o nome de
poesia enquanto não se sente inspirado e, por assim dizer, [Antiguidade: inspiração = deus; modernidade =
louco, ou enquanto a razão permanece nele. Pois enquanto absoluto; hoje = inconsciente]
o homem conserva alguma parte que se chama razão, é Desde a Antiguidade clássica, a inspiração artística era
totalmente incompetente para produzir poesia ou vaticinar. considerada como a invasão do artista por um poder
[...] O Deus parece haver propositadamente despojado exterior, uma forma de “possessão”. Durante o período
todos os poetas, profetas e adivinhos de toda e qualquer romântico, essa ideia foi-se modificando aos poucos. Já não
partícula de razão e entendimento para melhor adaptá-lo às se considerava o artista como o canal por cujo intermédio
funções de seus ministros e intérpretes; e para que nós, se manifestava a força externa. A fonte da inspiração estava
seus ouvintes, possamos reconhecer que os que escrevem dentro dele, na parte inconsciente do seu próprio ser. Em
tão formosamente estão possuídos, e se dirigem a nós lugar de ser o instrumento passivo, ou voz, de um poder
inspirados pelo Deus. 185-186 estranho, o artista, através da parte inconsciente e
involuntária de si mesmo, se identificava com o absoluto.
[Encanto: conjurar ou roubar a alma de quem ouve] Nos tempos modernos, a inspiração é frequentemente
Os resultados da inspiração eram, de um lado, o encanto – atribuída à afloração de material inconsciente sem presumir,
a qualidade da grande poesia, que deleitava e sujeitava o necessariamente, qualquer contato com forças cósmicas ou
espírito do ouvinte como que por encantamento (a supra-pessoais. 188
expressão grega era “conjurar a alma”) – e, de outro lado, a
sabedoria do profeta ou do sábio, a espécie de sabedoria [Croce: a ideia de uma força externa permanece; mas é
que não vem da lógica nem da intuição. 186 mais forte a personalidade do artista]
A ideia da inspiração como força misteriosa que atua sobre
[A inspiração poética não pode ser reduzia a uma o artista, vinda de fora, não desapareceu O esteta moderno
técnica] Croce, por exemplo, disse: “A pessoa do poeta é uma harpa
O outro corolário da inspiração era que a poesia e a arte eólica que o vento do universo faz vibrar”. Mas a exaltação
não podem ser inteiramente reduzidas a um ofício baseado do artista, a ênfase que se dava à imaginação criadora e o
num sistema de regras, derivadas da experiência e novo conceito de gênio, tenderam a dar predominância à
encaradas na tradição do artífice. Nesse sentido, a poesia fonte de inspiração situadas no próprio espírito inconsciente
não é o que os gregos chamavam pela palavra techne (arte) do artista. 189
– um sistema de regras práticas decorrentes de princípios
gerais. Fazia-se mister mais alguma coisa, alguma coisa [Psicologia]
que não é totalmente suscetível de explicação racional ou Desde 1840, mais ou menos, os processos de criação
de análise. A doutrina da “inspiração” ou da “possessão por artística foram estudados pela psicologia descritiva sem
um deus”, em certo sentido, era o reconhecimento deste alusão a nenhuma fonte externa. Deixando de considerar o
fato: o temperamento racionalista grego contentava-se de artista como simples canal da inspiração divina, vinda de
atribuir “ao divino” o que quer que não fosse suscetível de fora, a tendência principal da teoria foi encontrar a fonte do
explicação racional ou fosse quais fossem as regiões da poder criador no seu próprio espírito inconsciente. O sentido
experiência que não lhe interessava submeter à análise de domínio externo, tão vigorosamente percebido por
racional. 186-187 muitos artistas, quando empenhados no processo de
criação, particularmente por artistas literários, foi
[Repúdio de Platão à Poesia] equiparado ao sentimento da compulsão que ocorre em
Na verdade, quando Platão escrevia como filósofo político outras formas de dissociação mental, e veio a ser encarado
ou teorista educacional, o fato de ser a poesia alheia à razão como um fenômeno que acompanha a emergência de

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material inconsciente na consciência. A culminação dessa [Gênio é faculdade de invenção]


tendência pode ser vista nas teorias dos surrealistas, que Em Na Essay on Genius (1774), Alexander Gerard disse
estudaram inúmeros métodos para liberar o material que o gênio “é confundido, não só pelo vulgo, mas também,
subconsciente e eliminar ou desviar o controle da razão às vezes, até por escritores judiciosos, com a simples
consciente na composição artística. Os estudos capacidade. Nada, contudo, é mais evidente do que a
contemporâneos da produção artística em função da diferença que existe entre eles. [...] O gênio é,
“criatividade” inconsciente, a libertação de material do rigorosamente, a faculdade de invenção, por meio da qual
espírito inconsciente ou a imposição de uma forma o homem se qualifica para realizar novos descobrimentos
inconsciente controlada a um material conscientemente na ciência ou produzir obras de arte originais". 191
reunido e desenvolvido, foram numerosíssimos. 189
[Psicologia do Gênio: obsessão]
O GÊNIO Ao mesmo tempo, tomou corpo uma noção muito bem
definida de gênio artístico como tipo psicológico, assaz
[Gênio, principal conceito romântico/ Origem da palavra apreciada entre os românticos, uma pessoa dotada de um
“engenho” latino] sentido normalmente robusto de vocação, que trabalha
O conceito de gênio talvez seja o mais característico espicaçada por um sentimento obsessivo de compulsão,
quantos surgiram na época romântica. A própria palavra expresso na necessidade angustiada de dar vazão a
apareceu nas línguas europeias no princípio do século XVI, capacidades latentes – de “ser ele mesmo” – ou descobrir
como equivalente do ingenium latino, no sentido de "talento alguma verdade transcendental e inexprimível, que só se
nativo”. 189-190 pode concretizar numa determinada forma de arte. 191

[Gênio na Antiguidade] [Psicologia do gênio: compulsão]


A par da doutrina da inspiração, a necessidade do talento Os fenômenos de compulsão, um sentido orientador do que
nativo, ou dom, já fora reconhecida na Antiguidade. é certo, e uma sensação de extremo alívio ao concluir o
Píndaro, havido hoje por um dos mais líricos de todos os trabalho encetado, não são apanágios dos artistas
poetas, além de grande artífice, insistiu muitas vezes em reconhecidamente geniais. [...] Com efeito, o alívio
que o artesanato não bastava; o poeta precisava ter proporcionado pelo fato de trazer à luz o que tem sido
também talento natural (a palavra que ele usa é phua), que reprimido, ou está sepultado, no espírito subconsciente é
não pode ser ensinado Num trecho frequentemente citado comum a outras esferas além da criação artísticas. 192
da Poetica, Aristóteles parece ter preferido o poeta bem
aquinhoado (ele emprega a palavra euphues, adotado por [A psicologia do gênio é tratado como obvio]
John Lyly no título do seu prosaico romance, 1579) ao que Por outro lado, tem havido artistas importantes que não
compõe no delírio da inspiração. “Pois”, diz ele “a primeira deram mostras de nenhuma dessas dores psicológicas de
espécie é adaptável, a última, desequilibrada”. A essência parto, mas parecem ter produzido as suas obras com a
dessa observação, contudo, é o argumento de que o placidez do artesão, característica de um bom operário. O
dramaturgo deve ser capaz de experimentar em si mesmo efeito do movimento romântico foi dar preeminência a um
ampla variedade de emoções, porque isso o ajuda a tipo psicológico particular entre os artistas que praticam a
visualizar melhor as cenas como se elas se desenrolassem sua arte, e embora a noção romântica do “gênio” inspirado
“diante dos seus olhos” e, assim, a escrever de maneira já se tenha tornado um tanto pasée, a noção da auto-
mais convincente. 190 expressão, que esteve associada a ela, ainda domina a
crítica e é pressuposta pela maioria dos escritos
[Gênio na Modernidade (Gênio como personalidade)] contemporâneos sobre a teoria da arte. 192
Muito se escreveu sobre o gênio na segunda metade do
século XVIII. Os autores que seguiam a tradição empírica APÊNDICE
de Hobbes consideravam o gênio como dote natural
excepcional ou talento inusitado, em lugar de alguma coisa A IMAGINAÇÃO
sui generis e de espécie diversa. Para John Dennis (1657-
1734), cujo ponto de vista tinha afinidades com o de [A imaginação no senso comum: ficção]
Longino, o gênio era a capacidade de emoção. Em The Hoje em dia, o que mais comumente, posto que vagamente,
Advancement and Reformation of Modern Poetry (1701) se entende por “imaginação” fora da psicologia formal não
menciona as coisas que contribuem para a excelência na é por força, o poder de formatar imagens mentais, senão o
poesia, definindo o gênio da seguinte maneira: “A primeira de modelar a experiência em alguma coisa nova, criar
é a natureza, fundamento de tudo. Pois é o mesmo que situações fictícias e, por um sentimento compreensivo,
gênio, e gênio e paixão são a mesma coisa. Pois a paixão colocar-se no lugar de outrem. 193
num poema é gênio, e o poder de excitar a paixão é gênio
num poeta”. 190 [Antiguidade: no sentido comum, não havia
“imagina...”]
[Talento, Capacidade e Gênio] Neste sentido, a Antiguidade clássica não conhecia teoria
Enquanto que o talento e a capacidade podem ser naturais alguma da imaginação. Nem viam os antigos nenhuma
ou adquiridos, o gênio se supunha inato. Além disso, estava conexão particularmente estreita entre os poderes
essencialmente ligado à originalidade. 191 imaginativos e a produção artística, exceto na medida em
que as imagens mentais podem ajudar quando se quer
[Kant: gênio igual originalidade] obter ou transmitir a outros a vívida impressão de uma
Kant, que restringe o gênio ao domínio das belas artes, situação. 193
chama-lhe a “originalidade exemplar” (meisterhafte
Originalitat) dos dotes naturais do indivíduo”. 191 [Platão e o valor negativo da Imaginação]
Platão menciona a imaginação principalmente ligada à sua
teoria do conhecimento e classifica-a como a mais baixa

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

das faculdades. No seu entender, a mais alta forma de [Antiguidade: fantasias e visões]
cognição era a revelada por Nous, ou razão: a apreensão Na teoria literária, pelo menos depois de Aristóteles,
intelectual de conceitos. Logo abaixo dela vinha o concebia-se a imaginação como o poder de visualização por
conhecimento revelado pelo entendimento, por cujo meio do qual as coisas ausentes surgem diante “do olho
intermédio apreendemos as verdades matemáticas. A interior” como se tivessem presentes. Os gregos chamavam
terceira, que ele denominava crença e não conhecimento, e a essas visualizações phantasiai, e os romanos, visiones.
julgava ser inerentemente ilusória, era a apreensão de 194
coisas particulares, reveladas pelos sentidos. Vinha por
último a “conjectura”, combinação de percepções e juízos, [Imaginação: tornar visível]
que ocorre quando vejo uma figura indistinta, ou uma A Fanopéia é o que os antigos entendiam por imaginação
imagem da memória e, certa ou erradamente, cuido tratar- no contexto da literatura e das outras artes E “tornar
se de alguma coisa que conheço (Teeteto, 195d, 264b). [...] manifesta”, colocar uma realidade ausente “diante dos
Quando nos fiamos mais das imagens mentais do que da olhos” pelo poder das imagens mentais. 197
percepção direta introduz-se um novo elemento de
incerteza e insegurança. Conquanto em alguns dos seus [Plotino: a imaginação é uma “visão” mística do Uno]
Diálogos mais poéticos (sobretudo Fedro e Simpósio) Plotino também entendia que o artista não copia o mundo
pareça modificar um pouco esse menoscabo, Platão visível, mas consegue ter a visão de uma realidade ideal,
inaugurou uma longa tradição de desconfiança contra a que se esconde atrás e acima das aparências. 197
imaginação, que só se dissipou de todo depois do robusto “As artes não se limitam a copiar o mundo visível,
empirismo de Hobbes. 193-194 mas ascendem aos princípios sobre os quais foi construída
a natureza, e, além disso, muitas das suas criações são
[Aristóteles e a definição de imaginação] originais. Pois elas, por certo, substituem os defeitos das
Mais interessado do que Platão pela análise psicológica coisas, visto que tem, em si mesmas, a fonte da beleza.
dos processos mentais, Aristóteles tentou primeiro definir Dessarte, Fídias não usou nenhum modelo visível para o
a imaginação como a faculdade “criadora de imagens”. seu Zeus, mas apreendeu-o como ele se mostraria se se
Empregou a palavra fantasia num sentido novo, que dignasse de aparecer aos nossos olhos. 197-198
diferenciou cuidadosamente do de Platão, negando que a
imaginação, no seu sentido do termo, fosse uma [Idade-Média e Renascença]
combinação de juízo e percepção ou o juízo por meio da Durante a Idade Média e na Renascença, persistiu o
percepção, como dissera Platão. Descreveu a imaginação preceito platônico contra a imaginação, fortalecido acaso
como a faculdade intermediária entre a percepção e o pelas frases bíblicas sobre a “vã imaginação” e pela
pensamento, que revive as imagens dos sentidos em forma autoridade de Santo Agostinho. No plano psicológico dos
de pós-pensamento, que revive as imagens dos sentidos escolásticos, a imaginação era uma faculdade que operava
em forma de pós-imagens, imagens de sonhos e entre a sensação e o entendimento, à qual incumbia
lembranças das impressões residuais deixadas pela reproduzir, com os dados fornecidos pela experiência dos
sensação primária. É a base de toda a memória, que não sentidos, as imagens dos objetos e suas relações e, assim,
pode ocorrer sem as imagens da imaginação. A imaginação coloca-los à disposição da memória e do pensamento.
só ocorre em seres sencientes e apenas em relação ao que Reconhecia-se também que a imaginação é capaz não só
é percebido. Sem percepção não há imaginação e sem de reproduzir o material sensorial por assim dizer,
imaginação não há pensamento nem crença. Esse ponto de fotograficamente, mas também de dissociar e recombinar
vista aristotélico da imaginação como modo de atividade imagens à vontade (veja a citação de Lorde Bacon, mais
mental entre a percepção e o pensamento sustentou a sua adiante). Foi essa liberdade de mudar e reconstituir
posição até Kant (inclusive) e, portanto, talvez valha a pena imagens, às vezes extremada do poder reprodutor da
descrevê-lo um pouco mais minuciosamente. 194 imaginação pela palavra “fantasia”, que permaneceu como
fonte da suspeita e fez da imaginação uma espécie de bode
[Aristóteles: processo da imaginação] expiatório epistemológico. Mas como a imaginação era
A imaginação, afiançava Aristóteles, difere do pensamento capaz de fornecer imagens mudadas e, portanto, falsas, por
de duas maneiras: 1) Temos o poder de formar imagens adição, subtração e recombinação de atributos, o seu
mentais à vontade, mas não temos o poder de formar material precisava ser submetido ao julgamento e à
opiniões à vontade. 2) Quando perfilhamos crenças, não interpretação da razão, e a imaginação ocupava um lugar
somos emocionalmente diferentes a elas (por exemplo, se inferior ao da razão. A imaginação só podia levar a melhor
acreditamos que uma forma que se aproxima é a de um leão à razão durante os sonhos, nos acessos de loucura, quando
enraivecido, sentimos terror), mas as imagens da uma pessoa padecia de alucinações ou estava sujeita à
imaginação nos deixam tão impassíveis (exceto no caso da influência de uma paixão excessiva; mas o seu verdadeiro
crença) quanto aqueles que contemplam quadros que lugar era numa hierarquia afirmada nos sentidos, porém,
sabem ser irreais. A imaginação diverge da percepção sujeita à sabedoria e à discriminação da razão. 198
porque se mostra ativa quando não há sensação, como nos
sonhos ou quando os nossos olhos estão cerrados. [Pico della Mirandola: contra a Imaginação]
Aristóteles também afirma que todas as sensações de Exemplo extremo dessa suspeição pode ver-se no tratado
coisas individuais particulares são verdadeiras, mas que a Sobre a Imaginação de Gianfrancesco Pico della
maioria das coisas imaginadas é falsa. Ele não associava a Mirandola, em que ele escreve: 199
imaginação especificamente à criação artística e não lhe “Nem é difícil provar que os erros fundamentais
reconhecia o poder sintético para recombinar as imagens ocorridos tanto na vida civil quanto na vida filosófica e cristã,
em novas formações. Essa função atribuía-a à razão, e só tem as suas origens no defeito da imaginação. A paz do
depois de Campanella (1568-1639) e Hobbes (1736-1805) Estado é perturbada pela ambição, pela crueldade, pela ira,
e, mais tarde, Hume (1711-1776) e Tetens (1736-1805) se pela avareza e pela concupiscência. Mas a imaginação
estudaram os poderes sintéticos da imaginação. 193-194 depravada é mãe e ama da ambição [...] A crueldade, a ira
e a paixão são filhas bem alimentadas da imaginação de um

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

bem ostensivo, porém enganoso. [...] E que outra coisa,


sendo a falaz imaginação, põe em relevo os outros vícios, [Romantismo]
que, por falta de tempo, deixou de mencionar? 199 As fieiras e grupos de ideias que mais notavelmente
contribuíram para o conceito romântico das imaginações
[Shakespeare: imaginação, paixão e loucura] criadoras foram, sem dúvida, os seguintes: 205
Shakespeare, que fala muito sobre imaginação e fantasia, 1. A imaginação é o poder que tem a mente de apresentar
aceita a psicologia ortodoxa da Renascença: sob o império energicamente uma cena ou uma situação e sua aura
de uma paixão dominante, a imaginação conduz a uma emocional, om um forte impacto de realidade. Tal
espécie de loucura, uma desorientação ou alienação da aspecto remonta à Antiguidade clássica e às teorias
realidade lógica. 200 retóricas de Aristóteles e Longino. O poder de
(Hipólito) É estranho, meu Teseu, o que contam comunicar essas vívidas impressões a outros por meio
esses amantes. – (Teseu) [...] ”Amantes e loucos têm de palavras vigorosas decorria automaticamente,
cérebros tão escaldantes. / Tais fantasias criativas, que segundo se presumiu inúmeras vezes, do poder de
apreendem / Mais do que a fria razão jamais compreende. / apresentar com viveza a si mesma, realidades
O lunático, o amante e o poeta / Tem todos a imaginação ausentes. 205
robusta. / Um vê mais diabos do que os que comporta o 2. Pelo seu poder de mudar e recombinar as impressões
inferno, / Isto é, o sandeu: o amante, igualmente doido, / armazenadas pela experiência, a imaginação é a fonte
Enxerga a beleza de Helena numa testa egípcia: / Os olhos do espírito inventivo e da originalidade. Permite aos
do poeta, girando num delírio, / Passam do céu à Terra e da poetas e artistas não só idealizarem o mundo real, mas
terra ao céu; / E à medida que a imaginação lhe apresenta também apresenta-lo, convincentemente, mais
/ Os contornos das coisas ignotas, a pena do poeta / estranho e mais interessante do que é. Encontra-se na
Converte-as em forma e dá ao aéreo nada / Uma residência origem da ficção. 205
e um nome”. 202 3. A imaginação pode ser a fonte de visões mais
profundas do que a compreensão lógica, e não
[Lorde Bacon: a imaginação permite criar um mundo totalmente compreensíveis para a razão abstrata. 205
moralmente ideal] 4. A imaginação é a base da compreensão afim, por meio
Como vimos, Lorde Bacon fez da imaginação a faculdade da qual podemos penetrar os sentimentos de outros
especial que sustenta a poesia e as partes: a faculdade pela homens e comunicar-lhes os nossos. No fervor do
qual os artistas inventam um mundo irreal, mas de acordo entusiasmo romântico, essas noções se fundiram
com os desejos do homem e os conceitos morais. 203 numa luminescência incandescente e ligaram-se à
nova ideia do gênio artístico. Era uma combinação mais
[Hobbes: imaginação e poesia] intuitiva do que lógica de ideias. 205
Hobbes, cuja influência era poderosa na inauguração de um
enfoque empírico, parece haver atribuído um papel mais [William Blake: imaginação como dom profético]
restrito à imaginação, se bem não primasse pela coerência Embora fosse uma personalidade única, Blake exemplifica
nos pronunciamentos. A sua concepção da poesia está os extremos da atitude romântica da imaginação. No seu
sumariada nesta declaração: “O tempo e a educação geram entender, a realidade, afinal de contas, é espiritual e a arte,
a experiência; a experiência gera a memória; a memória uma visão “profética” da realidade espiritual. A imaginação
gera o juízo e a fantasia; o juízo gera a força e a estrutura, é o único órgão mercê do qual obtemos a visão da realidade
e a fantasia gera os ornamentos de um poema”. 203 e logramos conhecimento dela. É o “primeiro princípio” do
conhecimento, “sensação espiritual”. 206
[Addison: Imaginação “transporte ao divino”]
Os ensaios de Addion sobre “Os prazeres da imaginação” [Coleridge: Imaginação e Fantasia]
exerceram poderosíssima influência sobre o pensamento Baseando-se nas ideias de Kant, havidas por intermédio de
do século XVIII, conferindo à imaginação um papel Schelling, Coleridge diferençava a imaginação da
fundamental na experiência estética e ligando-a à fantasia, encarando esta última tão-somente como um
experiência do “transporte” ou êxtase, associada à noção modo da memória, livre das restrições da ordem no tempo
do Sublime de Longino (Addison empregou a palavra e no espaço e às quais se cinge a verdadeira memória. 207
“grandeza”. 203
[Schelley: Imaginação e Razão]
[David Hume: pensar em imagens, Imaginação] Shelley opôs a imaginação à razão e atribuiu-lhe toda a
A imaginação ocupava posição de destaque na filosofia de atividade criadora, tanto na vida quanto na arte. Julgava que
Hume, que afirmava que pensar é ter ideias e equiparava a imaginação tem a visão direta das ideias platônicas ou
as ideias às imagens. Hume distinguia entre a imaginação essências das coisas e, como Hume, disse fazia a fonte da
livre, ou “fantasias”, que produz os devaneios e a simpatia, que possibilita as relações sociais.
suposições ociosas, e a imaginação como fator necessário
a toda crença. Crença, em sua teoria, é a posse de uma [Ruskin: Imaginação e Essência]
ideia animada, vivaz, potente, acompanhada de um Ruskin distinguia uma atividade penetrativa da imaginação,
sentimento especial; e a imaginação é o fator necessário à pela qual o artista penetra até a essência do seu tema, uma
produção dessa vivacidade e animação da ideia. Hume atividade associada, por meio da qual, em contraste com a
também entendia que as nossas crenças comuns num composição deliberada, organiza inconscientemente o
mundo material estável não podem ser completamente pormenor para acentuar o efeito geral, e uma atividade
explicadas pela experiência presente (impressões), pela contemplativa, por cujo intermédio apresenta,
experiência passada (memória) e pelo raciocínio, mas que analogicamente, um assunto sem imagem concreta. 208
a imaginação ocupava um lugar central na plena descrição
da maneira pela qual se formam tais crenças. A imaginação,
além disso, estava intimamente aliada à simpatia, conceito
fundamental da sua teoria ética. 204

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

CAPÍTULO 9 [As emoções imprimem marcas no corpo]


Tanto as emoções passageiras particulares quanto as
AS TEORIAS DA EXPRESSÃO E DA COMUNICAÇÃO disposições emocionais mais permanentes deixam a sua
marca característica na conformação e nos movimentos do
[A expressão das emoções como a principal função da corpo, sobretudo na configuração dos traços, no jeito e na
arte] postura do corpo e na gesticulação. 210
As teorias da expressão da arte vinculam-se estreitamente
às teorias que consideram a arte como instrumento de [Fisionomia]
comunicação emocional, linguagem das emoções, e os dois As manifestações externas de propensões emocionais mais
tipos de teoria serão discutidos ao mesmo tempo. Ambas as relativamente estáveis, frequentemente encaradas como
classes de teoria têm sustentado, de ordinário, que a qualidades do caráter e do temperamento, pertencem, de
expressão – ou comunicação – da emoção é a principal um lado, à ciência da fisionomia, prenunciada por Lorde
função da arte e que as obras de arte são bem sucedidas Bacon, e, de outro lado, ao estudo do gesto. Charlotte
na medida em que exprimem – ou comunicam – emoção. É Wolff, por exemplo, em Psychology of Gesture, investigou
possível, todavia, sustentar uma teoria assim ainda que se o gesto e, em particular, a gesticulação manual, como
afirme que a expressão, ou comunicação, da emoção e uma “expressão subconsciente da personalidade”. 210-211
das múltiplas funções das obras de arte. 209
[Principais obras que estudam a expressão das
[As três ideias estruturais do Romantismo] emoções]
Convém discutir essas teorias sob três rubricas gerais, se As emoções particulares também tem seus característicos
bem em muitas formulações possam combinar-se as ideias de manifestação, muito estudados pelos artistas da
de cada um dos três grupos. Essas rubricas são: Renascença e minuciosamente classificados por Lomazzo
1. A arte como auto-expressão da parte do artista em seu Tratado Sobre a Arte da Pintura (1584). As
2. A arte como transmissão de emoção do artista para o Conférences sur l’Expression des différents Caractéres des
público; Passions, de Le Brun, publicadas em 1667,
3. A arte como concretização da emoção num objeto de permaneceram, durante dois éculos, como obra clássica
arte. 209 sobre o assunto. Em The Anatomy and Philosophy of
Expression as connected with the Fine Arts (publicado pela
[Palavra “Expressão” na arte] primeira vez em 1806 e, mais tarde, numa terceira edição
A palavra “expressão” é comumente usada nos três casos aumentada e póstuma, em 1844), Sir Charles Bell encetou
[acima explicitados]. As obras de arte podem ser ditas o estudo da expressão emocional numa base mais firme, de
“expressivas” sob qualquer uma dessas rubricas e são anatomia científica. Não satisfeito com a suposição de Bell
apreçadas pela sua “expressividade” em qualquer um de que os homens nascem com certos músculos
desses sentidos. Os sentidos, naturalmente, não costumam especialmente destinados à expressão de sentimentos,
conservar-se distintos. 209 Charles Darwin reuniu material durante muitos anos para
um estudo comparativo da expressão emocional e
ARTE COMO AUTO-EXPRESSÃO pretendeu mostrar que a origem das nossas maneiras de
expressar sentimento e emoção é evolutiva, tendo outrora
[Sinais corporais dos sentimentos interiores] servido a um propósito biológico e tendo-se tornado, ao
Falamos popularmente em ranger os dentes, saltar de depois, inatas, quando a sua função original foi substituída
alegria, carranquear, corar, chorar, etc. como “expressões” na estrutura mais complicada da vida social. O livro
de emoção. Mas isto às vezes significa que tais modos de Expression of the Emotions in Man and the Animals,
comportamento são sinais de emoção na medida em que publicado em 1872, iniciou longa série de modernas
outras pessoas podem inferir deles os sentimentos que nos investigações fisionômicas, em que se cortou a íntima
fazem agir, a natureza subjetiva interior da nossa relação entre o estudo da expressão emocional e as belas
experiência. 210 artes. 211

[Catarse: vasão dos sentimentos interiores] [A cultura se preocupou com o tema]


São também expressões no sentido de proporcionarem Existe enorme acervo de crenças populares nesse assunto
algum alívio à tensão emocional – o valor curativo de uma de expressão emocional, preservado e embalsamado em
“boa choradeira” é amplamente reconhecido – e na medida provérbios e anedotas, na literatura, em manuais de
em que soem ser espontâneos: a pessoa normalmente desenhos da maioria das grandes tradições culturais do
“dará vazão” às suas emoções através desse gênero humano. 211
comportamento característico, a menos que suprima
deliberadamente a reação apropriada ou se tenha [Expressões emocionais confusas: choro de dor ou de
exercitado para suprimir certas manifestações de emoção. alegria?]
210 A literatura e a pintura ocidental estão repletas de
expressões emocionais comuns: o choro, o suspiro, a
[Expressões corporais que são culturais] carranca, o riso escarninho, o sorriso, a gargalhada, etc.
Elas são inatas ou convencionais, idiossincráticas ou gerais Mas os conhecimentos populares e literários também
em relação a um determinado padrão de cultura. Por reconhecem a grande dose de ambiguidade existente na
exemplo, esbugalhar os olhos é sinal de surpresa no expressão emocional espontânea. Considerada como meio
Ocidente, mas o europeu comum que lesse um romance de comunicação, é aleatória e tosca. Raras vezes se
chinês precisaria de uma nota explicativa que lhe contasse encontra uma só manifestação física inequívoca de
que, entre os chineses, por a língua para fora é sinal de determinada emoção subjetiva. Diz-se que o riso é vizinho
surpresa e esbugalhar os olhos, sinal de cólera. 210 das lágrimas e, às vezes, hesitamos com fundadas razões,
em dizer se uma pessoa sofre ou diverte-se ao chorar. 212

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[Ovídio] “Pois o temor delas era um, porém a [Linguagem Informativa (informação) e Linguagem
manifestação do temor era múltipla, / Parte arrancava os Evocativa (emoção)]
cabelos, parte se deixava ficar, despojada das faculdades A distinção entre linguagem “de referência”, ou científico-
mentais. / Outra era silenciosa em sua dor, outra, chamava informativa e o emprego “suasório e emotivo” da linguagem
debalde por sua mãe, / Qual se lamentava, qual jazia foi minudentemente desenvolvida por I. A. Richards em
estupefata, qual fugia, qual ficava. 212 The Meaning of Meaning (com C. K. Ogden) e em Principles
of Literatury Criticism. 214
[Com adivinhar os sentimentos interiores: contexto]
Mais difícil ainda é inferir o sentimento subjetivo ou o [Expressão natural das emoções / Expressão emocional
impulso para o comportamento das expressões exteriores. nas obras de arte]
Não precisamos endossar tudo o que dizem os psicólogos Na realidade, porém, a analogia entre a expressão natural
modernos, como Carney Landis ou Samuel Fernberger, das emoções e a expressão emocional em obras de arte
os quais contrapondo-se a Darwin, sustentaram que nunca não é instintivo, estereotipado, nem está pronto para ser
é possível diagnosticar a emoção só pela expressão facial transmitido. Precisa ser procurado em cada caso e a
e pelos gestos corporais, a não ser que recebamos também procura, não raro, se revela complicada e árdua. Até certo
uma indicação da situação e do contexto. 212 ponto é original em cada novo caso.

[Darwin: a variedade das emoções dificulta a [Experimentar a emoção no momento que pinta]
interpretação pela leitura fisionômica] As obras de arte não se fazem, tipicamente, ao rubro-
A antipatia, diz ele, facilmente se transmuta em ódio mas, branco das emoções, e a ideia de que o artista, de certo
experimentados em grau moderado, tais sentimentos “não modo, nelas infunde a emoção que está experimentando ao
se expressam claramente por nenhum movimento do corpo tempo em que as faz, hoje em dia já não se leva a sério. É
ou dos traços, a não ser talvez por certa gravidade de porte, plausível apenas em casos excepcionais, como talvez a
ou um mau humor”. A cólera e a indignação “só diferem da execução improvisada de música “blue”. 214
ira em grau, e não existe uma distinção marcada em seus
sinais característicos” O desprezo “dificilmente se distingue [Emoção “relembrada” na tranquilidade da pintura]
do desdém, a não ser, acaso, que o primeiro suponha um Na maior parte das vezes a obra de arte germina, quiçá por
estado de espírito mais colérico E os dois não podem muito tempo, no espírito do artista e necessita de uma
distinguir-se claramente dos sentidos... de escárnio e cabeça fria e tranquila para ser realizada. Foi com a
desconfiança”. O extremo desprezo “confunde-se com a intenção de guardar-se de uma teoria demasiado crua da
repugnância”. 213 expressão emocional que Wordsworth usou a expressão
“emoção relembrada na tranquilidade”. 214
[Expressões ou sinais que não podem ser descritos]
Por outro lado, a manifestação exterior é amiúde mais [Emoção que nem mesmo foram sentidas, mas
precisa do que a descrição verbal. Nos assuntos comuns da pintadas]
vida, viajando de trem ou observando a multidão, Nem é possível supor que o artista só concretize na obra de
frequentemente surpreendemos uma contração dos lábios, arte as emoções ou situações emocionais que
um movimento das sobrancelhas, um gesto da mão, que experimentou emocionalmente. Pintores houve do sexo
parecem exata e precisamente indicativos de um estado de masculino que expressaram, na pintura, as emoções do
espírito que não temos palavras para descrever. 213 amor materno e, como [Charles] Lalo observou, Malraux,
d’Annunzio e Saint-Exupéry não são os únicos, nem
[A expressão de uma emoção diz mais que mil palavras] serão necessariamente os melhores poetas da aviação. Um
A expressão retratada por um grande artista pode artista pode exprimir as emoções de um escravo sem jamais
impressionar-nos, ao mesmo tempo, pela precisão e pela se ter encontrado na situação de escravo. Essa capacidade
profundidade, quer se trate do caráter, quer se trate de uma de transcender as limitações da experiência pessoal é
emoção passageira; e, no entanto, páginas e páginas de um precisamente o poder exigido para a imaginação poética ou
relatório prosaico, científico, talvez não consigam descrevê- artística. 214-215
la. 213
[Artista: expressar o que a linguagem comum não pode]
[Linguagem Evocativa e Linguagem Científica] Hoje em dia, portanto, a teoria da expressão assume com
Uma forma simplíssima da teoria da expressão popularizou- frequência a forma modificada de uma exigência de que o
se outrora na teoria da linguagem, que distinguia a artista seja capaz, de maneira vívida e concreta, de
linguagem evocativa da poesia das comunicações factuais representar, pelo meio que escolheu, o sentimento interior,
da prosa científica. Clássico enunciado da teoria foi a qualidade subjetiva experimentada, de situações
apresentado por Rudolf Carnap em Philosophy and emocionais reais, recordadas ou imaginadas, que não
Logical Syntax: 213 podem ser transmitidas pela linguagem comum. Isto é o que
“Muitas expressões linguísticas são análogas ao se costuma significar quando se chama à arte uma
riso porque tem apenas uma função expressiva e nenhuma “linguagem das emoções”. 215
função representativa. Exemplos disso são gritos como “Oh,
Oh,” ou, em nível mais elevado, versos líricos. A finalidade [Arte Naturalista: como Platão dizia que a música
de um poema lírico em que ocorrem as palavras “luz do sol” representava o estado de espírito, todas as linguagens
e “nuvens” não consiste em dar-nos notícias de certos fatos artísticas representam emoções]
meteorológicos, senão em expressar sentimentos do poeta Essa forma da teoria da expressão não raro se combina
e excitar em nós sentimentos semelhantes.” 214 com uma concepção naturalista da arte na afirmação de que
as obras de arte realmente “imitam” situações naturais,
reais, imaginadas ou ideais, mas não as “imitam”
objetivamente; “imitam-nas” coloridas pela atitude
emocional particular que o artista tem para com elas – um

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

coin de la nature vu à travers um tempérament (Zola). Assim [Arte: expressão total do artista]
se concebe a obra de arte, ao mesmo tempo, como espelho Em sentido mais geral, afirma-se que a arte “expressa” a
através do qual olhamos para um segmento da realidade personalidade total do artista, e as obras de arte, como a
refletida e como espelho da atitude emocional do artista em escrita à mão, são havidas, em certos sentidos, por imagens
relação a ela. ou réplicas dos artistas que as criam. A ideia da arte como
auto-expressão generalizada domina a crítica e a prática
[Esse rastro emocional do artista na sua obra não é um educacional moderna, em que se estimula a criança mais a
defeito, mas um valor graças ao romantismo] “expressar-se” do que a aprender e obedecer a regras de
O fato de não ser isto considerado agora como uma infeliz correção. O conhecimento de que uma obra de arte reflete
incapacidade dos artistas de atingirem a objetividade, e sim inevitavelmente a personalidade do artista não é coisa nova.
como valor específico da arte é m dos legados do 218
movimento romântico com a sua glorificação do artista e da
experiência. 215 [Charles Lalo: por vezes expressa a vida não-artistica]
Não obstante, como o demonstrou minunciosamente o
[A emoção torna a obra única] esteta francês Charles Lalo em seus dois livros
Um corolário da moderna afirmativa de que as boas obras L’Expression de l avie dans l’art (1933) e L’Art loin de la vie
de arte logram maior precisão na expressão das emoções (1939), longe de serem simples e diretas as maneiras pelas
é o ponto de vista de que o “conteúdo” da obra de arte – a quais os objetos de arte podem ser usados como indício dos
sua mensagem ou o que ela diz – está tão intimamente traços da personalidade dos seus criadores, elas são
ligado à forma que não poderia ser expressa de outro modo. infinitamente variadas e complicadas. Às vezes, a obra de
215 arte parece expressar diretamente o caráter do artista,
outras – como, por exemplo, no caso de Schubert – a arte
[A linguagem informativa não comporta a poética] de um homem parece dar vazão a traços ocultos da
O ponto de vista moderno supõe a consequência de que a personalidade que não encontram expressão na vida não-
verdade poética é inefável, no sentido de não poder ser artística. 218-219
plenamente formulada em linguagem discursiva; só se
apreende intuitivamente, pela contemplação do conjunto de [Conhecer o artista através de sua obra]
palavras que constituem o poema. 216 Em certo sentido, tudo o que o homem faz deliberadamente
e com atento cuidado é “sinal” da sua personalidade e tudo
[Croce: a emoção é experimentada no momento da o que faz espontaneamente lhe revela a constituição
criação] inconsciente: se soubéssemos tudo o que um homem faz
Uma tendência especial foi dada a essa teoria pela estética estaríamos em condições de saber tudo o que se pode
neo-idealista de Croce, seguida por R. G. Collingwood e, saber a seu respeito. Claro está, porém, que, às vezes)
mais recentemente, pelo Professor J. M. Cameron em sua embora nem sempre), quando se diz que as obras de arte
conferência inaugural Poetry and Dialectic. De acordo com são uma expressão da personalidade do artista, subtende-
esse ponto de vista, o sentimento-emoção (real, relembrado se algo mais do que o que um observador habilidoso é
ou imaginado) não emerge primeiro na experiência do capaz de deduzir, dessas coisas, sobre a constituição
artista para depois encontrar expressão na obra de arte. O mental do artista. O contato com a personalidade do artista,
sentimento só atinge expressão concreta e é apreendido que se julga poder obter através da obra de arte é concebido
pelo artista no processo de expressá-lo, e durante esse como mais imediato e direto do que o conhecimento pela
processo. E pela expressão do seu sentimento nas formas inferência e pela dedução. 219
de arte, sustenta a teoria, que o artista se harmoniza com
ela, lhe imprime contornos e forma, atualiza-a para a [Antiguidade: atitude emocional do orador]
apreensão. E ao serem esclarecidas através do impulso Na Antiguidade não havia teoria alguma da auto-expressão.
formativo da arte que a qualidade e o estado de espírito Desenvolveu-se a ideia em conexão com a teoria da
informes e equívocos, que acompanham todas as nossas oratória e consistia, em poucas palavras, na crença de que,
percepções e o nosso outro comércio com o mundo exterior, a fim de persuadir o público a tomar, diante da situação, a
adquirem, no caso do artista, estrutura e precisão. atitude emocional que ele desejava que o público tomasse,
Proclama-se que o caráter obsessor do impulso do artista o próprio orador deveria assumir essa atitude emocional.
para expressar o seu sentimento em forma artística deriva 219
menos do desejo de comunicar o seu sentimento a outros
homens do que da necessidade de apreendê-lo ele próprio. [Antiguidade: Quintiliano: a comoção do público]
Formulando-o na arte, o artista como que o digere, exprime “Consequentemente, o primeiro ponto essencial é que
o que não está expresso e obtém alívio da pressão não devem prevalecer em nós os sentimentos que desejamos
assimilável do desconhecido e do informe. 216-217 que prevaleçam no juiz, e que devemos comover-nos antes
de tentarmos comover os outros. Mas como geraremos
[Descrição de um sentimento pela linguagem poética] essas emoções em nós mesmos, se a emoção não está em
Diz o Professor Cameron: nosso poder? Farei o possível para explicar. Existem certas
“A descrição de um estado de sentimento através experiências que os gregos denominam phantasias, e os
da complexidade e da riqueza interior da representação romanos visiones, por meio das quais as coisas ausentes
poética revela que o estado de sentimento assim descrito é, se apresentam à nossa imaginação com tamanho vigor que
por si mesmo, complexo e rico e, por isso, valioso; ou, pois elas parecem estar, de fato, diante dos nossos olhos. O
não podemos traçar limites às possíveis consecuções da homem realmente sensível a tais impressões é o que terá
representação poética, um estado de sentimento complexo maior poder sobre as emoções. 220
e resistente à caracterização e, por isso mesmo, opressivo
e frustrante, pode ser clara e vigorosamente descrito [Antiguidade/Quintliano: Imaginação e Emoção]
quando se nos revela uma unidade na complexidade, uma Quintiliano, aqui, desenvolve a teoria clássica e aceita dos
unidade que, de outro modo, nos teria escapado. 217 efeitos emocionais. Julga-se a obra de arte pela eficácia

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

com que produz o resultado almejado. O resultado almejado resultado da introspecção, que está experimentando, ou
é uma determinada resposta emocional do público. O meio acaba de experimentar, esta e aquela emoção, não dizemos
pelo qual deve ser conseguido é a descrição e a que ele está “expressando” a emoção, senão que a está
representação vigorosa de uma cena, como se ela se descrevendo. Também difere da comunicação que pode
desenrolasse diante dos olhos. Para consegui-lo, entende acompanhar a expressão natural da emoção. 223
Quintiliano que ao artista cumpre inspirar a si mesmo as
emoções que deseja produzir no público e, assim, [Mostrar sinais (gera antipatia) ou expressar de modo a
expressando seus próprios sentimentos, inculcar suscitar emoções (gera empatia)]
sentimentos semelhantes no público. Grande parte da teoria Quando um homem mostra sinais de indignação ou cólera,
ocidental (em contraposição à oriental) do drama tem-se os observadores, por via de regra, não se sentem
estribado nessa suposição. 220-221 encolerizados, se bem possam sentir-se divertidos ou
amedrontados. Mas se um homem descreve ou representa,
[Qual o valor da auto-expressão do artista] de certo modo, uma situação calculada para suscitar
As teorias da expressão, que granjearam aceitação com as indignação (como, por exemplo, um caso de flagrante
maneiras românticas de pensar, eram instrumentais num injustiça) e o faz de maneira a patentear o seu próprio
sentido diferente. Presumia-se que a auto-expressão do sentimento de indignação, poderá despertar indignação nos
artista fosse uma boa coisa, ou porque qualquer extensão ouvintes. Este é o despertar da emoção por “infecção”, para
da experiência é uma boa coisa ou porque o artista é uma usarmos a expressão de Tolstói. Quase todas as teorias
espécie superior de homem e, portanto, beneficia os outros emocionais da arte giram em torno desse ponto. 224
expressando-se e comunicando sua natureza superior por
meio da sua arte. 221 [Infecção emocional (Tolstói) ou contágio emocional]
A ingênua concepção da arte como instrumento para
[Oriente e Auto-Expressão - Expressão do Absoluto] despertar emocional tem sido fundamental na maioria das
O esteta indiano K. C. Pandey, capaz de adotar a discussões da arte segundo pontos de vista educacionais
linguagem do idealismo alemão, afirma que as artes, de ou sociológicos e foi a concepção que mais prevaleceu na
acordo com a teoria indiana, “apresenta o Absoluto em Antiguidade [...]. Essas teorias podem ser classificadas de
trajos sensuais” e que os produtos de arte servem como teorias de “contágio”: o artista expressa suas próprias
meios pelos quais o observador competente “logra a emoções ou atitude emocional e o faz de maneira que
experiência do Absoluto”. 221-222. [...] Embora possa evoca no público uma atitude emocional idêntica em relação
parecer difícil essa linguagem, pelo menos é evidente que, à situação que ele apresenta. 224
para o pensamento hindu, a auto-expressão do indivíduo
não era função da arte, e só se cuidava justificada quando, [Teoria instrumental da arte: arte como veículo das
por meio dela, o artista expressava e comunicava uma visão emoções]
obtida de alguma ordem ou realidade superindividual. 222 As teorias da comunicação da arte devem ser classificadas,
em geral, de teorias instrumentais, porque presumem que a
A ARTE COMO COMUNICAÇÃO EMOCIONAL função central da arte é favorecer uma espécie de
comunicação entre os homens e porque, como padrão para
[Catarse] avaliar obras de arte, aplicam o estalão da eficácia no
A sabedoria popular acredita, e nisso concorda a maioria comunicar a emoção ou a experiência. 224
dos psicólogos, que, nas situações emocionais, o ato de
expressão relaxa a tensão nervosa e traz alívio à pressão [“Comunicação”]
emocional refreada. Nós nos sentimos menos tensos Usa-se “comunicação” com o significado diferente em
quando os nossos sentimentos se manifestam diferentes tipos de teorias da comunicação. Presume-se, às
abertamente. 223 vezes, que se trata de induzir o público ou o observador a
experimentar realmente a emoção, o sentimento ou o
[Expressão (artística ou n) para dar vazão aos impulsos] estado de espírito com que se relaciona a bora de arte. E
Por conseguinte, tanto em conexão com a criação artística essas teorias de induzimento emocional podem visualizar
com outras atividades da vida, costumamos dizer que o uma experiência efêmera e divertida de emoção, um
homem “se expressa” ou “expressa seus sentimentos” ao intervalo não muito sério entre as mais importantes
entregar-se a alguma forma de atividade oriunda de um preocupações da vida, ou podem visualizar uma influência
impulso profundamente arraigado, que o deixa apaziguado das pessoas que entram em contato com a obra de arte.
e satisfeito. 223 224

[Expressão e Comunicação (alívio e frustração)] [Arte vale pela (boa) emoção capaz de despertar: Platão
Como os homens são seres sociais, a maioria das pessoas e Tolstói]
obtém maior satisfação quando a expressão transmite a Nos dois tipos de teoria, mas sobretudo no último, o padrão
outras pessoas uma consciência da sua emoção e induz os de eficácia costuma ser completado por uma avaliação
outros a comparti-la harmoniosamente. O elemento de moral do efeito. Essas teorias compostas, que
comunicação pode aumentar a eficácia da expressão predominaram na Antiguidade e tiveram destaque em todos
trazendo alívio; a incapacidade de comunicar-se pode os períodos do Ocidente, podem ser apelidadas de teorias
acarretar um sentido de frustração. 223 de “aperfeiçoamento”, porque não tendem a avaliar obras
de arte por padrões estéticos, ou não apenas por esses
[Expressão implica em comunicação] padrões mas pelo seu efeito sobre as pessoas posta em
Não obstante, quando os homens falam de expressão na contato com elas. Os dois principais nomes associados a
arte costumam implicar também a comunicação. A espécie teorias desse gênero são Platão e Tolstói. 224-225
de comunicação implicada difere da que se obtém através
da linguagem descritiva e não-artística. Quando um homem
diz, em linguagem fria e despida de emoção, como

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[Tolsói, Que é a Arte? (1898)]


A forma mais extrema da teoria do aperfeiçoamento foi [T. S. Eliot: o Artista torna objetiva e externa uma
exposta por Leão Tolstói em Que é Arte? (1898). Tolstói emoção (cria um percepto [Deleuze])]
ficou impressionado com a soma de energia social e Em vista dessa mudança de atitude, as teorias modernas,
individual consagrada ao cultivo das artes e quis descobrir, de uma forma ou de outra, adotam a concepção de que o
primeiro, se os sacrifícios feitos no serviço da arte se artista, como quer que seja, concretiza ou simboliza uma
justificam e, segundo, como distinguir a arte genuína da arte emoção na obra de arte (uma emoção que experimentou ou
espúria e, assim, evitar desperdícios. [...] Cria haver conheceu pela simpatia imaginativa) e o observador
descoberto a função social da arte e, portanto, a sua saboreia e frui a emoção sem experimentá-la no sentido
justificação, na transmissão das emoções por “infecção”. comum, se bem apreenda o sabor distintivo de sua
Definiu, pois, a arte em termos dessa função. “A arte”, disse qualidade. T. S. Eliot descreveu de um modo muito geral
ele, “é uma atividade humana, que consiste em um homem essas teorias dizendo que o poeta ou o artista criam na obra
transmitir a outros, conscientemente, por meio de sinais de arte um “correlativo objetivo” da emoção. 230
exteriores, sentimentos que experimentou, fazendo que
esses outros, inficionados por tais sentimentos, também os [Huw Morris Jones: objetivação dos sentimentos]
experimentem”. Tendo chegado a essa concepção da Esse ponto de vista modificado impôs a reformulação da
natureza da arte, Tolstói introduziu inevitavelmente um teoria da comunicação. Num artigo interessante, intitulado
critério moral para a sua apreciação, “os melhores e mais “A linguagem dos sentimentos” (The British Journal of
altos sentimentos a que os homens se elevaram”. 225 Aesthetics, janeiro de 1962), Huw Morris Jones sustentou
que as diversas artes são outras tantas linguagens por cujo
[Aristóteles: certas emoções podem ser curadas pela intermédio “o artista estuda e explora as particularidades
arte] mudáveis do sentimento e lhes dá uma habitação e um
Aristóteles parece considerar a piedade e o medo como nome”. Através da sua concretização na obra de arte o
formas de distúrbio mental, que podem ser “purgadas” e sentimento se despersonaliza, como se despersonalizam
tornadas inócuas por meio das espécies apropriadas da as profissões de fé quando recebem uma formulação lógica.
arte. Conclui, portanto, que a música e o drama têm uma 230
função útil. Ressuscita, assim, a teoria homeopática, que “Se, portanto, se pergunta de quem são os
havia sido metida a ridículo pelo filósofo Heráclito: “O que sentimentos que uma obra de arte expressa ou concretiza,
derramou sangue em vão procura purificar-se pelo sangue, pode-se responder que são os sentimentos conhecidos
como se um homem tentasse limpar a lama com a lama”. A pelos que falam e sentem numa linguagem comum, que
palavra catarse ocorre duas vezes na Poética de aprendeu as regras, técnicas e convenções características
Aristóteles (apenas uma com termo estético) e Aristóteles das “linguagens” artísticas especializadas dessa sociedade.
em parte alguma desenvolveu a teoria. Quanta importância Tais sentimentos não devem ser concebidos como
lhe deu e qual era o exato significado que lhe atribuía, não episódios privados nas biografias de certos indivíduos, do
se sabe. 227 artista ou da pessoa que lhe contempla a obra. [...]
Reconhecer um sentimento equivale a compreender o
[Teoria do Aperfeiçoamento pela arte] significado de um pronunciamento, e as condições da
Uma terceira forma da teoria do aperfeiçoamento, e a que compreensão são idênticas às que governam a apreensão
está mais de acordo com o novo ponto de vista que se pôs de um sentimento. 230
em evidência no período romântico, é a crença de que as
obras de arte permitem aos que as fruem expandir e [Langer e Cassirer: as obras de arte são símbolos de
enriquecer a sua experiência emocional além das limitações emoções]
impostas pela vida individual de cada um. Através da arte, Uma forma particular dessa teoria foi apresentada por
por uma auto-identificação congenial e imaginativa, Susanne K. Langer, escorada nas ideias do filósofo
gozamos, saboreamos ou sentimos emoções e atitudes alemão Cassirer. A usa teoria não é fácil de sumariar-se,
que, aliás, não teríamos conhecido. Implícita neste ponto de mas a melhor maneira de dar uma ideia dela talvez seja
vista está a presunção de que a elaboração da experiência dizer que, no seu entender, as obras de arte são símbolos
emocional, o seu enriquecimento, a sua expansão ou o ou “sinais icônicos” de emoções. Não exprimem
aumento da sua maleabilidade valem a pena por si mesmo. diretamente as emoções experimentadas pelo artista, mas
227-228 a sua apreensão da natureza das emoções. “A arte não é
uma linguagem no sentido de um sistema de comunicação,
A ARTE COMO CONCRETIZAÇÃO EMOCIONAL que se constrói com elementos, cada um dos quais possui
a própria significação emocional independente, como as
[Contemporâneo: o artista não expressa unicamente palavras tem um significado. Mas cada obra de arte é um
emoções] símbolo único. “Uma obra de arte é um símbolo – símbolo
No curso do presente século, seguindo uma tendência único, indivisível; o que não quer dizer que não seja
característica, o pensamento estético tem-se afastado não analisável, senão indivisível no mesmo sentido em que o é
só das teorias instrumentais, mas também das teorias um indivíduo. [...] Cada obra de arte é uma forma simbólica
naturalistas. Assim com a noção romântica do artista-gênio inteira e nova, e expressa diretamente o seu significado a
retrogradou, a ideia de que os artistas se ocupam quem quer que a compreenda. 231
principalmente de expressar as próprias emoções
superiores e provocar emoções correspondentes no público [Langer: música]
tendeu um pouco do seu império sobre a teoria estética. Ao “A música”, disse a Srta. Langer, “é um paralelo tonal da
mesmo tempo uma compreensão melhor do que ocorre na vida emotiva”. Dessa maneira, a obra de arte é um símbolo
apreciação das obras de arte redundou num assentimento que não simboliza outra coisa senão a si mesma, mas que
assaz generalizado à ideia de que o traço essencial do reproduz, na própria forma estrutural, a estrutura ou padrão
nosso comércio com os objetos de arte não é representado do sentimento e da emoção. Os que não se deixaram
pela resposta emocional comum. 229 seduzir pela teoria têm encontrado dificuldade em figurar

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

como se pode julgar que a vida emocional interior do fundamentalmente mal concebidas. Afirmam alguns que,
sentimento experimentado tem uma estrutura ou ritmo compreendida dessa maneira, a pergunta “Que é a arte”? é
capaz de reproduzir-se nas entidades minuciosamente irreal, e não tem resposta. 236
estruturadas, que são as obras de arte. 231-232
[Wittgenstein: não há uma essência de “arte”, mas uma
[Hindu: símbolos emocionais permanentes] família de signos, um contexto ou sistema que permite
Em poucas palavras, a teoria hindu presume certos “modos que tal objeto seja significado como “artístico”.]
emocionais permanentes” que, reunidos, formam toda a Os escritos de Wittgenstein influíram nessa tendência da
gama das emoções humanas e de tudo o que existe, em filosofia contemporânea, e filósofos como Paul Ziff e Morris
todos os tempos, em todo ser humano, como traços Weitz encontraram considerável apoio para a sua afirmativa
latentes. Esses modos permanentes da emoção são de que termos gerais, como “arte” “beleza”, devem ser
ativados por várias causas na vida comumente elucidados pela revelação de “semelhança de família” entre
concomitâncias ou efeitos característicos (que incluem as os seus usos estabelecidos e de que a obra de Estética não
formas naturais de expressão, como as estudadas por deve consistir na busca vã de uma “essência” mítica de
Darwin), manifestando-se, de tempos a tempos, em excelência artística, senão na assinalação dos critérios que
estados mentais transitórios. 232 se sobrepõem e interagem e realmente se aplicam na crítica
e na avaliação das várias artes. Morris Witz disse: “Se
[Professor S. K. De, Sanskrit Poetics as a Study of realmente olharmos e virmos que é o que denominamos
Aesthetic (1963) – Hindu: símbolo permanente das “arte”, também não encontraremos propriedades comuns –
emoções] apenas fieiras de semelhanças”. 236-237
“[...] A emoção (bhava) generaliza-se num sentimento (rasa)
também no sentido de não se referir a nenhum leitor [Stewart: para entender a “artisticidade” de algo, é
particular senão aos leitores em geral. Enquanto goza como preciso estudar os sistemas de linguagem]
leitor, o indivíduo particular não pensa que é a sua própria Stewart propôs, portanto, radical mudança no método da
emoção pessoal e esta, no entanto, é gozada como tal; nem indagação estética: 239
pensa que ela só pode ser gozada por ele, senão por todas “Em lugar de procurar a ideia ou a essência
as pessoas de sensibilidade semelhante. [...] Em outras comum, que indica a palavra Beleza quando aplicada a
palavras, a emoção comum (bhava) pode ser agradável ou cores, formas, sons, a composição em versos e prosa, a
penosa; mas o sentimento poético (rasa), que transcende teoremas matemáticos e a qualidades morais, a nossa
as limitações da atitude pessoal, eleva-se, acima dessa dor atenção se dirige à história natural do espírito humano e ao
e desse prazer, à condição de alegria pura, cuja essência é seu progresso natural no emprego da fala. 239
gozar-se a si mesma. 233
[W. G. Gallie e Joseph Margolis: uma estética
[Diferença entre emoção natural e artística] linguística]
Uma teoria da ficção cabalmente desenvolvida precisaria Uma exemplificação dessa maneira de encarar é o ponto de
tomar em consideração essa maneira característica de vista de que a estética filosófica deve ser mantida como
experimentar as emoções “concretizadas” em obras de arte. disciplina “de segunda ordem”, cuja matéria-prima não é
Assim nas formulações indianas como em algumas fornecida pela nossa fruição da arte e da beleza, nem
formulações ocidentais contemporâneas da teoria também diretamente pela nossa experiência da apreciação, mas
se presume, às vezes, que as emoções “concretizadas” em pelas categorias descritivas e pelos critérios de julgamento
obras de arte diferem, de modo especial, das emoções e implícito na linguagem dos críticos e conhecedores das
estados de espírito passageiros que conhecemos na vida artes. [...] Por ele, a Estética seria tratada como uma
de todos os dias: são, de certo, mais “universais”, mais espécie de “metacrítica”, uma linguagem sobre a
significativas do que os sentimentos correntes linguagem, e restringiria as funções úteis a analisar e tornar
evanescentes que fazem parte do viver diário. 234-235 coerente as coisas ditas a propósito das artes por uma
classe de pessoas sensíveis, que estão em contato direto
CAPÍTULO 10 com elas. 240

A ESTÉTICA NO SÉCULO XX [Hungerland: o estudo da estética é o estudo da


nomeação da percepção humana]
A FILOSOFIA ANALÍTICA O escopo da Estética passa a ter virtualmente, a mesma
extensão do estudo da percepção, visto que as
[Não é possível definir a essência da beleza nem da arte] características chamadas de “estética” são característica de
Talvez o traço mais notável do trabalho realizado em observação cotidiana. Segundo as palavras de Isabel
Estética durante os últimos trinta anos, aproximadamente Hungerland, “as coisas comuns da nossa percepção
por filósofos profissionais pertencem às escolas linguísticas comum apresentam-se-nos tristes ou alegres, desajeitadas
ou analíticas de pensamento, tenha sido o repúdio da ou graciosas, delicadas ou vigorosas, e assim por diante”.
estética sistemática e um ceticismo mais ou menos As propriedades designadas pelos termos delicados ou
dogmático acerca da possibilidade ou do mérito de definir atarracado, desajeitado ou gracioso, entram em nossas
termos essenciais como “arte” ou “beleza”. 236 descrições e reconhecimentos comuns e diários das coisas
tanto quanto as qualidades indicadas quando se diz que
[Clive Bell: tentar encontrar uma arte universal] uma coisa é alta ou baixa, redonda ou quadrada. Não tem
Os filósofos que pensam dessa maneira reputam as qualquer ligação espacial com as obras de arte ou com as
tentativas como a de Clive Bell de descobrir “a qualidade coisas da beleza. 241-242
essencial das obras de arte, a qualidade que distingue as
obras de arte de todas as outras classes de objetos”, ou de
encontrar “alguma qualidade comum e peculiar” a todas as
coisas belas, não só por malogradas mas também por

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

ARTE E EMOÇÃO por fazer um quadro do que por representar algum aspecto
da realidade fora do quadro ou por usar o quadro com o
[Contemporâneo: separação da emoção romântica] propósito de promover valores não estéticos. Outra maneira
A despeito do continuado curso da palavra “expressão” na de expressar essa atitude tem sido a reiterada afirmação
linguagem da crítica de arte, verificou-se nos últimos trinta dos artistas da sua ambição de criar alguma coisa nova –
anos, um movimento significativo de afastamento da ênfase alguma coisa nova que é a obra de arte – em lugar de
romântica dada à expressão e à evocação emocionais reproduzir ou interpretar o que já existe. 250
como propósito e perfeição das obras de arte. Não se nega
que as obras de arte podem expressar e estimular, e muitas [Gauguin]
vezes o fazem, as emoções. Isto, porém, já não se Gauiguin, por exemplo, observou: “Diz-se que Deus tomou
considera a única coisa, nem a mais importante, que elas de um pedaço de barro em Sua Mão e criou tudo o que
fazem. De fato, costuma-se afirmar que a “distância conheceis. O artista, por seu turno, se quiser criar uma obra
psicológica” é um elemento essencial da resposta estética realimente divina, não deve imitar a natureza, senão utilizar
à obra de arte. 244 os elementos da natureza para criar um novo elemento”.
250
[Distância psicológica]
Se respondermos diretamente à obra de arte como estímulo [Renascença: artista não copia a natureza, corrige-a]
emocional, da maneira pela qual respondemos a estímulos Os escritores da Renascença tinham em mente que o artista
emocionais na vida comum (a um sermão evangelizador ou pode imaginar e, portanto, criar mentalmente, um mundo
um discurso político, por exemplo), não estamos, nesse mais perfeito do que o mundo real, ou coisas mais belas do
sentido, respondendo a ela como a uma obra de arte. 244 que as belezas imperfeitas da natureza. 250

[Distância psicológica na contemplação de uma obra] [René Huyghe (A Arte e o Espírito do Homem-1962) arte
Na percepção estética saboreamos a situação emocional como linguagem do espírito e não-representativa]
apresentada e a forma em que é apresentada, com ”O seu papel essencial, invariável, desde o princípio, tem
perspicuidade e compreensão; não compreendemos com o sido servir como um dos modos de expressão do gênero
entendimento, senão diretamente pelo sentimento, o que humano. [...] Existe uma linguagem da inteligência, que
significa assumir tal e tal atitude emocional numa situação, chegou até nós como a linguagem da palavra. A arte,
adotar tais e tais crenças, e aprendemo-lo pelo sentimento, entretanto, é uma linguagem do espírito, dos nossos
quer estejamos ou não acostumados a assumir essa sentimentos e da nossa natureza pensante, da nossa
determinada atitude emocional ou adotar essas natureza como um todo em toda a sua complexidade. 251
determinadas crenças. 244-245
[A obra de arte é maior que o artista (independente
A AUTONOMIA DA OBRA DE ARTE dele)]
Poucas pessoas haverão atualmente que se disponham a
[A arte pode apresentar valores extra-estéticos como negar que a comunicação de estados espirituais é um dos
também pode ser um fim em si mesmo] usos que a arte pode servir. E poucas haverá, porventura,
Ninguém nega que as obras de arte podem, legitimamente, que se abalancem a negar que essa função da arte ministra
refletir, de maneira mais ou menos ilusionística, uma um dos mais proveitosos enfoques para a interpretação e a
realidade alheia a elas mesmas, ou que podem concretizar apreciação. Está, contudo, mais de acordo com o ponto de
e promulgar eficazmente valores sociais, religiosos ou vista pós-romântico a ideia de que uma obra de arte, depois
outros. Mas façam elas ou não tais coisas, e por melhor que de criada, é frequentemente considerada como tendo certa
as façam, estas são havidas por irrelevantes para a sua vida e independência próprias, não totalmente limitada pela
qualidade como obras de arte. A representação e a personalidade ou pelas intenções dos artistas que a criou.
promoção de valores não-artísticos passaram a ser Reconhece-se que a inspiração e a concepção de uma obra
considerados possibilidades acidentais e não mais de arte promanam frequentemente dos níveis inconscientes
essenciais ao conceito das belas-artes. 247 da personalidade do artista e não estão, muitas vezes,
inteiramente franqueadas à apreensão deliberada,
[Apesar das funções do objeto, há o impulso estético] consciente. Daí que a obra criada possa encerrar maior
Um fetiche não pode mais tornar-se um fetiche para nós e riqueza de significado do que a imaginada pelo próprio
um entalho do Gabão já não é um passaporte para os artista. Afirma-se, com efeito, vez por outra, que o próprio
poderes sobrenaturais. Entretanto, podemos – segundo se artista não é o melhor intérprete nem o melhor expositor da
acredita – apreciar as qualidades formais dessas coisas sua obra. 251-252
como objetos de arte e, na medida em que o impulso
estético tem sido universal entre os homens, mesmo ao [Empatia, afinidade emocional]
funcionar cegamente e incógnito, podemos, até certo ponto, No contexto da concepção romântica da arte como
recobrar as qualidades que possuem como produtos instrumento da comunicação de sentimentos, a teoria da
humanos, e partilhá-las. 249 empatia foi outrora popular. Empatia é o sentimento de
afinidade emocional – chamada “simpatia” por Hume – que
[Modernidade: Maurice Denis: Autonomia da pintura] permite a um homem colocar-se no lugar de outro e
A atitude preponderante, desde o impressionismo, foi conhecer as emoções que ele está sentindo e expressando.
sintetizada num pronunciamento hoje famoso de Maurice Em particular é a projeção “simpática” das emoções e
Denis (1870-1943): “Devemos lembrar-nos de que um atitudes humanas em objetos inanimados, generalizada
quadro – antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher entre povos primitivos, pré-científicos, e que sobrevive na
nua ou uma anedota – é essencialmente uma superfície linguagem popular e nas imagens poéticas. 254
plana coberta de cores reunidas com certa ordem.”
Podemos descrever essa atitude dizendo que, a partir do
impressionismo, os artistas passaram a interessar-se mais

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[Vischer e Lipps - Empatia na apreciação da arte] entender que a congruidade é a fonte de toda a beleza e de
Sob o nome Einfuhlung, os estetas alemães Robert toda a graça. 258
Vischer e Theodor Lipps elaboraram uma aplicação [...] Diz ele, portanto: “Definirei a beleza como a
particular da ideia geral de empatia à apreciação da arte, a harmonia de todas as partes, seja qual for o tema em que
fim de explicar o poder que tem os objetos de arte de servir revela ajustadas entre si com tanta proporção e conexão
de meio à comunicação de sentimentos. Supunha-se que o que nada pode ser acrescentado, diminuído ou alterado,
observador, na contemplação de uma obra de arte, se sem prejuízo”. 258
identifica com ela e experimenta em si mesmo (embora
inconscientemente) as emoções pertinentes ao caso. [Hume: delicadeza como percepção da unidade]
Assim, dizia-se, ao contemplar uma igreja gótica Foi esse ideal científico de percepção atômica que
experimentamos as emoções ascensionais e sublimes proporcionou o paradigma da “delicadeza de gosto” de
apropriadas a agulha da torre, que se alteia; ao ouvir música Hume. Ele o descreve em função da acuidade e da
triste experimentamos a tristeza apropriada aos ritmos precisão: “Quando os órgãos são tão sutis que não permite
lentos e pesados; e assim por diante. Em seguida, afirma- que nada lhes escape e, ao mesmo tempo, tão exatos que
se, o observador projeta a emoção (inconsciente) que percebem todos os ingredientes da composição, a isso
experimentou e parece vê-la com qualidade da obra de arte chamamos delicadeza de gosto, quer empreguemos a
por cujo intermédio ela foi inconscientemente evocada nele. expressão no sentido literal, quer a empreguemos no
A teoria moderna repulsa esse tosco mecanismo de sentido metafórico”. 259
operações mentais ocultas e não verificáveis e aceita,
simplesmente, que percebamos “qualidades emocionais” [Baumgarten: apenas a percepção imediata do todo (e
diretamente no objeto. 255 não fragmentada das partes) permite uma plena
contemplação]
A UNIDADE ORGÂNICA A conceptualização, sustentou Baumgarten, sacrifica a
vida da experiência reduzindo-a a um agregado de traços
[Aristóteles: todo e agregado] em que só se conservam os aspectos comuns e
Na Metafísica (102ª), Aristóteles distingue entre o “todo” e representativos, deixando escapar o original e único. 261
o “agregado”. As coleções “em que a posição das partes em
relação umas às outras não faz diferença são “agregados”, [A obra de arte (como a música) forma um todo
aquelas em que essa posição faz diferença são “todos”. insolúvel]
Acrescenta ainda o filósofo que uma parte genuína do “todo” Se tocarmos as dez notas de uma melodia para dez
não pode conservar seu próprio caráter senão no todo de ouvintes diferentes, ou se mudarmos a ordem das notas, a
que faz parte. Diz ele que a extração de uma parte tenderá melodia se perde. Se a tocarmos em pedaços para um
a multiplicar o todo e qualquer transposição das partes lhe ouvinte que a conhece, este ouvirá os pedaços como
estragará ou destruirá a unidade. 256-257 fragmentos de uma melodia e não como várias
melodiazinhas. A melodia como um todo tem caráter
[Aristóteles: Inteira e Completa: A arte deve ser um próprio, distinto do caráter das notas ou fragmentos que a
todo] compõem. Não obstante, as notas e fragmentos, ouvidos
Na Poética, Aristóteles aplica o seu conceito de unidade como partes da melodia, adquirem um caráter
ao drama (capítulo 7 e 8). O entrecho, diz ele, deve perceptivamente diferente do caráter que possuem quando
representar uma ação “inteira e completa e de certa ouvidos isoladamente ou como partes de uma melodia
magnitude”. Inteiro é o “que tem começo, meio e fim”. diferente. 263
Discutindo a magnitude, ele pressupõe o princípio
importantíssimo de que uma coisa bela deve ser uma coisa [A apreciação estética é completa – e não carece da
que pode ser apreendida num único ato de percepção razão para unir fragmentos]
“sinóptica”, vista como coisa única ou unidade, e não vista Na apreciação estética, porém, tomamos consciência do
como um agregado de partes ligadas pela razão teórica, objeto em sua complexidade interna por um ato direto de
discursivamente. 257 percepção sinóptica; não o “construímos” em pensamento
com o auxílio da razão discursiva, se bem, naturalmente, a
[Aristóteles: o belo é ordenado, simétrico e limitado] consciência apreciativa final seja amiúde preparada por
Compara-se o pronunciamento da Metafísica 1078 a 36: aturado estudo preliminar. 263
“Os principais critérios da beleza são a ordem, a simetria e
limites determinados”. 257 [Objetos estéticos (obra de arte) favorecem a
contemplação desinteressada; com formação de um
[Idade-Média: unidade e variedade] todo orgânico]
Durante a Idade-Média, seguindo as ideais sugeridas por Mas alguns objetos – e a estes chamamos objetos estéticos
Santo Agostinho, a beleza era havida por uma – favorecem a contemplação desinteressada, ao passo que
combinação de unidade e variedade, como sucede quando outros a repelem e são demasiado desinteressantes para
diversas e variadas partes se combinam num todo sustenta-la. Nem todos os todos orgânicos no processo de
unificado, de sorte que a congruência das partes no todo é percepção se adequam à contemplação estética. Os
imediatamente percebida. objetos estéticos são todos orgânicos que, em pessoas
convenientemente condicionadas, têm o poder de atrair e
[Renascença/Alberti: Concinidade] sustentar a atenção intensa, prolongada ou repetida,
Os conceitos fundamentais eram a proporção e a proveitosa e perceptiva, segundo o modo estético não-
congruidade entre as partes num todo heterogêneo ou prático. 264-265
composto. Ao resultado se dava o nome de concinidade”.
Essa linha de pensamento foi sumariada por Alberti no [A unidade orgânica da obra de arte]
início da Renascença. Perguntando qual era a propriedade Não tem sido fácil explicar as qualidades de “unidade
que, por sua natureza, faz bela uma coisa, ele deu a orgânica” que as obras de arte bem sucedidas e outras

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

coisas de beleza possuem e que os todos configurativos outros valores além dos valores estéticos, que qualquer
não estéticos não possuem. A unidade estética terá de ser função estranha ou qualquer utilidade é um defeito numa
compreendida de tal maneira que pudesse servir como obra de arte. No dizer de Théophile Gautier: “Il n’y a de
critério de excelência no julgamento das obras de arte sem vraiment beau que se qui ne peut servir à rien; tout ce que
favorecer certos estilos de arte em detrimento de outros. est utile est laid” (Nada é realmente belo senão o que não
Não deveria, por exemplo, levar-nos a atribuir às obras que pode servir para nada; tudo o que é útil é feio). 267-268
manifestem uma proporção clássica formal uma excelência
superior às que possuem maior liberdade romântica e [Teorias Formalistas]
assimetria, nem a exigir de nós uma predileção pelo As teorias formalistas da arte ainda são, uma que outra vez,
neoplasticismo de Mondrian em prejuízo da aparente tachadas de triviais e enfadonhas, de se concentrarem nos
ocasionalidade da Pintura Ação. Pois fazê-lo seria entrar em prazeres superficiais, embora intensos, que algumas
conflito com veredictos críticos aceitos. Na prática se tem pessoas encontram no jogo de atentar para padrões
revelado tão difícil concretizar a noção de unidade estética sensuais, descurando dos importantes valores “humanos”
e, ao mesmo tempo, isentá-la de preferências estilísticas, concretizados nas grandes obras de arte. Sem
que alguns filósofos desesperaram de usá-la como proveito. menosprezar a importância desses outros valores, as
265 teorias formalistas convidam o Filósofo da Estética a dar
especial atenção à classe de valores formais, ainda que no
O VALOR ESTÉTICO ato da apreciação não se eliminem as barreiras artificiais
entre os valores formais e os valores “humanos” que a
[Nova concepção de arte; novo valor estético] formula contém. 268-269
[Primeira mudança: autonomia da estética]
Dois sucessos revolucionários se verificariam na primeira [Emerson, Rhodora]
metade do século XX e, graças a eles, inclinamo-nos a dizer “That if eyes were made for seeing
que uma nova concepção da arte e uma nova concepção Then beauty is its own excuse for being”.
do valor estético surgiram em nosso tempo. O primeiro, a “Que se os olhos foram feitos para ver
cujo respeito já falamos, relaciona-se com a presunção de Então a beleza é a sua própria justificação para existir”.
que as obras de arte constituem criações novas, com 268
critérios autônomos de valor, que lhes são específicos. Com
isto se casa a possibilidade de emancipação das APÊNDICE I
pressuposições do naturalismo e de todas as formas do
instrumentalismo, que dominaram até agora a teoria da arte A APRECIAÇÃO COMO ATIVIDADE AUTO-
no Ocidente. Essa mudança de ponto de vista se aplica não REMUNERATIVA
só ao nosso comércio com as novas escolas de arte em
nossa própria época, mas também colore a nossa fruição [Origem]
da herança artística do passado. Por esse motivo, estamos A noção, se não o nome, de uma atividade auto-
aprendendo a apreciar os produtos de arte de outras eras recompensadora remonta à Grécia Antiga. Era inerente à
como portadores do próprio valor estético, não totalmente cultura aristocrática que forneceu o fundo de quadro para a
dependente dos diversos valores estranhos que, de início, filosofia social e moral de Aristóteles e que possuía certas
se destinavam a servir. Por esse motivo, podemos admirar características em comum com a moderna ideia da
um fetiche como uma bela obra de arte plástica, enquanto sociedade “abstrata”. 270
permanecemos indiferentes a outro, muito embora tivessem
ambos poderes mágicos iguais para o povo que os fez e [Aristóteles e o homem livre]
usou. Já não estamos presos ao interesse anedótico dos Para Aristóteles, atividade auto-recompensadora era
quadros nem à sua capacidade de elevar, edificar ou aquela que não servia a nenhum propósito ulterior ou
divertir. 265-266 utilitário, mas podia ser adequadamente exercida por um
homem livre na ocupação do seu lazer. “Não é desairoso
[Segunda mudança: educação estética] para a dignidade do homem livre”, diz ele, “fazer alguma
A segunda mudança revolucionária de ponto de vista foi coisa por si mesmo, pelos amigos ou pela virtude que há em
mencionada de passagem, à guisa de contraste no capítulo fazê-lo, mas o comportamento do homem que faz a mesma
sobre a estética inglesa do século XVIII. É a crença, tácita coisa para outros pode ser considerado subalterno ou
ou afirmada, de que o gozo da experiência estética, a servil”. 270
cultivação da sensibilidade estética e o treinamento da
capacidade de apreciar belas obras de arte são alguns dos [Filosofia como atividade auto-remuneradora]
valores fundamentais da vida humana, valiosos por si Considerava-se a filosofia ou a busca da sabedoria como o
mesmos e que dispensam a justificação de quaisquer supremo exemplo da atividade auto-remuneradora pois tais
benefícios extrínsecos que possam conferir. Essa crença ocupações não tinham uma finalidade subserviente a
tem sido formulada, às vezes, em função da noção sócio- nenhum outro propósito que não fosse o da satisfação do
biológica de uma atividade “auto-remuneradora” e, às desejo instintivo de conhecimento, que existe em todos os
vezes, no contexto de uma teoria do “jogo” numa concepção homens. 270
especial dessa palavra, exposta, quiçá pela primeira vez,
claramente, por Kant. 266 [C. A. Mace: A arte e o jogo como atividade auto-
remuneradora]
[Arte pela arte: tudo o que é útil é feio] “Em estado natural, o gato precisa matar para viver. Em
Seria um erro, todavia, confundir essa posição com a estado de abastança, vive para matar. Isso acontece com
doutrina da “arte pela arte”, que nasceu do movimento os homens. Quando Já não tem necessidade de trabalhar
estético dos últimos decênios do século passado. Na mais para viver só há, de um modo geral, duas coisas que pode
característica de suas formas, essa doutrina sustentava que fazer. “Jogar” ou cultivar as artes”. 270-271
as obras de arte não devem servir de veículo a quaisquer

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ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

[Quando não é mais necessário fazer uso de algumas


capacidades para a sobrevivência, usa-se através das [Antiguidade: Arte e Jogo: oposto de seriedade]
atividades auto-remuneradas] A concepção antiga de arte como ocupação sem
A ideia básica é essa. Quando atinge um estádio de importância, ameno e inócuo divertimento, persistiu sem se
organização social e industrial que permite ao indivíduo formalizar numa teoria estabelecida. 274
prover à própria existência sem o pleno exercício das suas
capacidades de produção dos meios de vida, o homem não [A arte só se justifica pelo prazer (entretenimento)]
permite que essas capacidades se atrofiem pelo desuso, A ideia de que as artes são uma forma frívola de ocupação
mas continua a exercitá-las por elas mesmas – como forma separada dos assuntos sérios da vida é só justificada pelo
de jogo aprazível. Alcançado o citado estádio, a sociedade prazer que proporciona não desapareceu nem mesmo em
estabelece um valor fundamental para o exercício dessas nossa época. 275
capacidades por si mesmas. 271
[Modernidade - Kant]
[Idade-Média] Pode-se dizer, porém, com justeza, que a teoria filosófica
A atitude medieval diante da beleza é habilmente sumariada séria da arte como jogo principiou com Kant. 275
pelas palavras de Escoto Erígena: “Não é a criação que é Distinguindo as belas artes do ofício manual, Kant
má, nem mesmo o conhecimento dela; senão o perverso escreveu:
impulso que leva o espírito sensato a abandonar a “Consideramos as primeiras como se elas só
contemplação do seu autor e voltar-se com lascivo e ilícito pudessem revelar-se intencionais como um jogo, isto é,
apetite para o amor da matéria sensível”. [...] A verdadeira uma ocupação agradável por si mesma. Mas o segundo se
beleza pertencia a Deus e só poderia ser apreendida por considera como se só pudesse ser compulsoriamente
intermédio do intelecto racional como proporção e imposto a alguém como trabalho, isto é, ocupação
concinidade ou, mais perfeitamente, através de exercícios desagradável (esforço) por si mesma, e só atraente em
místicos. Considerava-se geralmente o mundo natural razão do seu efeito (ou seja, o salário). 275
como um véu que esconde Deus do homem e E prossegue, discriminando as belas artes do
desacorçoava-se a fruição das belezas naturais por si entretenimento, que chama “arte agradável (amena ou
mesmas. Para os filósofos medievais, a ideia de beleza encantadora)”. Na última classe coloca as artes que “tem
perdera a incipiente conexão com as artes, adquirida por único objetivo o entretenimento” e toda a sorte de jogos
durante o período de atividade dos connoisseurs sob o “praticados em outro interesse que o de fazer o tempo
Império Romano. 273 passar inadvertido”. 275

[Idade Média: as artes mecânicas (ou servis)] [Schiller: conceito de jogo]


A pintura, a escultura, o drama e o resto das que hoje Schiller apropriou-se da analogia em ambos os sentidos da
denominamos “belas-artes” se classificaram entre os ofícios palavra “jogo”, deu-lhe sabor metafísico e fez dela o ponto
“mecânicos”, porque operaram num meio material e central da sua teoria estética. A ideia de Kant do homem
dependem, para o seu efeito, do apelo que fazem aos como um ser com o pé em dois mundos era particularmente
sentidos – e “mecânico”, às vezes, era fantasiosamente congenial aos impulsos conflitantes da natureza de Schiller
derivado do latim moechor (praticar adultério) sob a suposta e ele desenvolveu à sua maneira. [...] Mas é intolerável que
alegação de que o intelecto humano, criado para as a natureza humana seja fundamentalmente cindida entre os
atividades espirituais, descambava para o adultério por seus dois aspectos e, portanto, o sensual e o racional se
esse envolvimento com o material. 273 interpenetram e unificam no instinto do jogo (Spieltrieb), que
Schiller identificou com o impulso estético para fazer fluir
[Renascença: a dignidade do artista; artes filosóficas] obras de arte. Proclama com eloquência a sua convicção de
Quando, na Renascença, as belas-artes emergiram dos que somente no comércio com a beleza o homem é
ofícios vulgares e materialistas para ocuparem o seu lugar completamente ele mesmo, porque só isso põe termo ao
entre as profissões liberais, de modo que o pintor, o escultor conflito fundamental entre os dois aspectos da sua natureza
e o poeta puderam assentar-se ao lado do erudito e do e serve de cimento à sociedade. “Todas as outras formas
cavalheiro, foi vigorosamente destacado o seu caráter de percepção dividem o homem, porque se baseiam
“científico e, por essa razão, constituía um favorito de exclusivamente na parte sensual ou na parte espiritual do
debates descobrir qual das duas era mais “filosófica”, a seu ser. Somente a percepção da beleza faz dele uma
poesia ou a pintura. Só quando surgiu a ideia das “belas inteireza, porque exige a cooperação das duas naturezas”.
artes” o cultivo das artes e o gozo estético em geral vieram 275-276
a ser incluídos entre os valores auto-remunerativos e auto-
justificativos. 273-274I8 [A arte e o jogo não são necessários para a nossa
sobrevivência]
APÊNDICE 2 Em The Principles of Psycology (1870-1872) Herbert
Spencer afiançou que a arte e o jogo são as duas grandes
A ARTE COMO JOGO exceções a essa regra. Nenhum deles tem valor de
sobrevivência. São ambos luxos do ponto de vista evolutivo.
[Platão: o jogo é algo frívolo] Spencer dá, realmente, a entender que tanto a arte quanto
Em várias ocasiões, Platão mencionou as artes como o jogo podem resultar da necessidade que sente o homem
frívola e não muito importante duplicação dos negócios de livrar-se da superabundância de energia vital, hábito
sérios da vida, ou como desafogo desses negócios. inofensivo que pode até trazer-lhe o benefício de aliviar a
Sustentou também, nas Leis, que o jogo não disciplinado, tensão da vitalidade não expendida. 277
ou piruetas de crianças, à semelhanças das piruetas dos
animais novos, só adquirem forma de arte quando sujeitos [Hebert Spencer: da utilidade à inutilidade]
à disciplina e à ordem da atividade cerimonial, da dança ou Num curso ensaio sobre Use and Beauty (1852) afirmou
dos exercícios militares. 274 que as coisas que já foram úteis podem sobreviver e

Isaac Arrais Gonçalves 16/09/2020 Pág. 50


ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE (OSBORNE, 1970)

adquirir um valor decorativo depois de perderem a utilidade.


“Da mesma forma nas instituições, credos, costumes e
superstições, podemos acompanhar essa evolução da
beleza a partir do que foi em outro tempo, puramente
utilitário”. Mas a posição principal que ele advoga é que
tanto a arte quanto o jogo, e só eles, são um dispêndio
biológico e socialmente inútil de energia, simples luxos
quando vistos pelo prisma evolutivo e sociológico a arte,
portanto, pode ser encarada como uma espécie de jogo.
277

[Jogo (frívolo) e Arte (com valor auto suficiente)]


Nos tempos modernos a ideia de jogo tem sido associada à
de “atividade auto-remuneradora”. Elas têm um comum o
fato de serem ambas atividades exercidas por si mesmas e
não por qualquer benefício ou recompensa não
confessados que possam propiciar. Mas a associação
tenderá a induzir em erro se as implicações de frivolidade e
falta de seriedade, que acompanham a ideia de jogo, forem
transferidas para a noção de arte como valor fundamental e
auto-suficiente. 278

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