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Sebenta Direito Comparado UAL

Direito Comparado (Universidade Autónoma de Lisboa)

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Direito
Comparado
Sebenta 2021-22

A N A M O U R A | N U N O G O N ÇA L V E S | S A N D R A P E R E I R A

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Conteúdo

Introdução ao Direito Comparado .................................................................................................. 2


Formação histórica e doutrinal. Métodos e formas .................................................................. 2
Objeto e proposição ................................................................................................................... 12
Família Jurídica Romano-germânica ............................................................................................ 14
Formação ..................................................................................................................................... 14
Fontes de direito ......................................................................................................................... 40
Família do common law ................................................................................................................. 58
Direito Inglês ............................................................................................................................... 58
Formação ................................................................................................................................. 59
Fontes de direito ..................................................................................................................... 73
Direito Estadunidense ................................................................................................................ 79
Formação ................................................................................................................................. 79
Fontes de direito ..................................................................................................................... 93

Nota: estes apontamentos constituem uma compilação de apontamentos das aulas e dos slides fornecidos pelo Professor Alex Pires

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Introdução ao Direito Comparado

Formação histórica e doutrinal. Métodos e formas

O que é o Direito Comparado?

1.1. Ponto de situação: reconstrução iluminista do método científico

a) 1832 – estudo das “legislações comparadas” (College de France).


b) 1900 – Congresso de Paris e vigência do BGB (Código Civil Alemão).
c) 1924 – criação da Academia Internacional de Direito Comparado consequente ao
término da I Guerra Mundial e dedicada “a aproximação sistemática e a conciliação
das leis” cujo texto foi atualizado para determinar como objetivo o “estudo
comparado dos sistemas jurídicos” (Artigo 2º de seu Estatuto).
d) 1949 – fundação do Comité Internacional de Direito Comparado vinculado a
UNESCO.

Quando falamos em direito e ciência na mesmo frase, voltamos sempre ao mesmo ponto,
que é aquele momento histórico do iluminismo: aquele momento em que as áreas do saber
foram chamadas à razão para se autodefinirem como ciência. Para se ser reconhecido com
ciência, a partir do Iluminismo, era obrigatório que se autodefinisse uma área do saber por
seu método e a sua técnica – o mesmo que aconteceu com a Sociologia.

A Sociologia contruiu-se desde Augusto Comti, seguindo-se várias gerações de formação


do pensamento sociológico: a partir daquela emblemática construção de ciência positiva
dos fatos sociais, passando pelo problema da sociologia do direito, e por aí em diante.

O Direito Comparado teve um caminho muito parecido. O que diferencia uma ciência e
outra, já neste momento, é justamente a proposta, o que cada uma das ciências queria
discutir. A sociologia do direito queria ser a única ciência dos fatos sociais, a única
responsável por definir a ordem interna das instituições. O direito comparado olhou para
história e disse: há algo de comum entre os gregos e romanos, há algo de comum entre os
povos mesopotâmicos, há algo de comum entre os dominantes e dominados, há algo de
comum entre as sociedades do século XIX.

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Se, no estado da atualidade, Eugen Ehrlich definiu que o grande problema era o direito
vivo, o Direito Comparado percebeu que não era um problema da Alemanha, era um
problema do mundo inteiro. O Direito Comparado nasce com esta finalidade de querer
analisar pela observação os sistemas jurídicos, para definir as suas semelhanças e
diferenças, e isso desde sempre.

A grande viragem, na verdade, dá-se a partir de toda a ideologia iluminista do Séc XIX.
Agora, não era apenas um agir, querer saber, uma curiosidade. Agora, o Direito
Comparado teria de definir que método e técnica iria utilizar para observar as semelhanças
e diferenças. Não basta, por exemplo, dizer que o mundo inteiro é democrático, que a
democracia é o regime político de todos os países do mundo, porque existem diferenças e
semelhanças entre regimes. Não podemos, então, dizer que o sistema grego é igual ao
sistema romano no séc. IV a.C. simplesmente porque ambos tinham leis. Havia diferenças:
a forma de produção de leis era diferente. E tudo isso é discutido a partir do iluminismo.
Como é que se vai criar um método que se possa dizer que pertence ao Direito Comparado
(e que, portanto, o Direito Comparado é uma ciência)?

O primeiro movimento científico, teórico e académico, foi dado pelo colégio de França 1932
pela escola francesa, que criou uma unidade curricular chamada “legislação comparada”.
Em 1804, Napoleão, acolhendo um projeto da comissão de quatro grandes juristas
franceses, resolveu dar vigência ao código civil francês. Este código civil – o código
Napoleónico – representava um momento histórico da França imperial Napoleónica: um
movimento autoritário baseado em valores humanos, nada religioso.

Napoleão foi para o Sul, mas também foi para o leste, e nessa campanha, entre 1804 e
1814, impôs a vigência do Código aos povos germânicos. Até que, em 1814, tivemos a
expulsão dos franceses do território germânico, e instaura-se o Congresso Viena. Ali,
define-se exactamente o aspecto que vai gerar toda esta ideia de Direito Comparado.

Napoleão une os franceses que estavam “sem cabeça” desde a queda definitiva da
monarquia absoluta. Os franceses, em 1789, acabam com o Ancien Regime, mas
esquecem-se de colocar um novo regime. E isso foi conseguido não com democracia, mas
com estabilidade, por Napoleão, que lidera uma nova ordem jurídica com um Código Civil.

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Os alemães não deixam de prestar atenção a essa experiência. Para se unificarem, serem
um Estado Nacional, deixam de ser o Reich e entramos numa fase de república. Precisam
de um código civil? E se precisarem, precisam de um código civil francês? Para isso,
precisavam de conhecer o direito francês, para comparar os valores franceses com os
alemães.

Era preciso “comparar”: precisam de um código, mas não de um código civil francês. Os
alemães sentiram necessidade de um código de direito privado que tivesse matéria mais
ampla do que meramente a de natureza civil. Copiariam a estrutura do Código Napoleónico
e colocariam a nossa matéria. Urgia aproveitar o sentimento nacionalista alemão, o mesmo
sentimento que expulsou os franceses.

Por outro lado, gostando em parte dessa afirmação, Savigny disse: “a nossa história é
diferente da história dos franceses, somos germânicos e não francos, e isso significa dizer
que temos algo que os franceses não têm – o völksgeist (“espírito do povo”). Para a
Sociologia, corresponde a tradição; para a Escola Histórica (a escola criada por Savigny),
tudo se desenvolve conforme a realidade social, inclusive o direito positivo. Para perceber a
lei de hoje, deve-se olhar para o passado.

Então, diz Savigny, o passado dos germânicos está nos romanos. Os romanos
conseguiram, ao longo de mais de vinte séculos, construir e manter o seu direito, que se
constrói e desconstrói com as bases do império romano. Nós aprendemos, adaptamo-nos e
criamos, a partir do nosso costume, a nossa forma e ler o direito romano. Então, pelo
volksgeist, conseguimos ter uma identidade do nosso direito, que não é francesa, é
romana. Tenho que olhar para o passado, e não para o lado: não para o meu tempo
histórico e o sistema vigente hoje em França, mas para os romanos. E Savigny propõe uma
espécie de novo Corpus Iuris Civilis: o código alemão deveria ser uma adaptação do que
seria o Corpus Iuris Civilis para a realidade alemã. Em 1900, é finalmente criado o BGB.

Nessa passagem, temos alguns pontos muito importantes: 1832 e 1900, o diálogo entre
franceses e alemães.

Quando Savigny cria a sua teoria, ensina aos franceses que existia vida para além de
Napoleão. Quando Napoleão perde definitivamente a batalha de Waterloo, entra em crise o
sistema francês, uma vez que não se consegue ter a certeza sobre a identidade do código

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de Napoleão (o código era apelidado de “Napoleónico” e não havia mais Napoleão). Então,
por volta de 1850, os franceses vão aprender com os alemães. Os francos, os normandos e
os bretões também já foram romanos. Essa tradição, embora não seja Volksgeist, é algo
que os vincula enquanto franceses a uma origem de tradição na formação do nosso povo.

Por toda a Europa, essa influência vai espalhando os seus contornos. Portugal também
experimentou o iluminismo, também se sujeitou à invasão Napoleónica e sofreu a influência
de um código imperial, no qual o primeiro código civil português (1867) se baseou. É tão
clara a tradição no Código Civil português que muitas das disposições são católicas, tem a
sua raiz no direito canónico.

Em 1900, ocorre o Congresso de Paris, para se discutir essa iniciativa do College de


France quanto ao teor das legislações comparadas. “Conhecer o sistema do outro é
importante para conhecer o seu sistema”. Quando o os franceses criaram a unidade
curricular de Legislação Comparada, foi para conhecer o sistema alemão, para dar
respostas a perguntas como “onde eles legitimaram o direito deles e onde devemos
legitimar o nosso”. E discute-se, então, a necessidade de se instituir o direito comparado.

Então, era preciso adotar um método - histórico, direito vivo, sociológico… - mas todos
concordaram que era fundamental criar o direito comparado. Para conhecer um país,
conheça o seu direito, porque este nasce das tradições. Assim, no contexto da I Guerra
Mundial, foi criada nas universidades a disciplina de Direito Comparado.

Em 1924, é criada a academia internacional do Direito Comparado, e se cria com a


premissa maior de se dedicar à aproximação sistemática e à conciliação das leis. No seu
estatuto, surgem as duas primeiras definições de Direito Comparado:

• A primeira, teoricamente estruturada, dizia que o Direito Comparado fosse dedicado à


aproximação sistemática e à conciliação das leis.
• A segunda, e mais frequente, actualizou o objecto do Direito Comparado para o
estudo comparado dos sistemas jurídicos.

A Sociologia preocupou-se com três diplomas internacionais, considerados Soft Law:

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• 1945 - Carta das Nações Unidas;


• 1948 - Declaração Universal dos Direitos do Homem;
• 1951 - Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados.

Três leis. São soft law, não são hard law.


Soft Law: Direito suave, não positivo, disposição - Uma boa conduta
Hard law: Direito mais duro, positivo, imposição - tem de fazer
OBS. O fato de 3 dos 5 países que compõem a ONU terem pena de morte, tem a sua justificação pelo fato de a
Carta das Nações Unidas ser soft law.

Agora, cabia aos Estados regulamentar estes princípios. Cada Estado tem de formar a sua
consciência política e torná-la jurídica, mudar as constituições formais para constituições
materiais. Os direitos humanos são soft law, para se tornarem obrigatórios é preciso haver
uma ordem jurídica sobre ela. Portanto, as constituições deviam contemplar garantias e
acesso a direitos fundamentais.

1.2. Difícil concepção: existe um ramo jus-científico conhecido por Direito


Comparado?

H. C. Gutteridge alertou para a difícil percepção do Direito Comparado por não agrupar as
regras do direito vigente no âmbito de uma matéria jurídica em si, isto é, não existiria
“direito comparado” como existe “direito fiscal” ou “direito civil”. O “direito comparado” se
prestaria apenas a apresentar as regras jurídicas em cada ordenamento jurídico, e não a
propor a criação de regras novas.

Em 1949, analisando a discussão da criação da DUDH, observa alguns pontos curiosos.


Quando se diz que todos os países do mundo devem ter leis que garantam a vida, já se
parte de uma boa base histórica e teórica. Historicamente, a sociologia já havia dito que
não existe sociedade se não existir ser humano. A DHDU é cientificamente aprovada por
outras teorias, não pelas suas.

O Direito Comparado se prestaria apenas a apresentar as regras jurídicas de um


ordenamento jurídico, e não propor as regras de criação novas. Não concorda com a
classificação de Direito Comparado como ciência, para ele era apenas uma forma de
apresentar o sistema jurídico.

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Aqui, a academia se insurge contra a posição de Gutteridge. O direito não é dependente da


sociologia, da filosofia e de qualquer outra área. O direito basta por si. Relembrando a
discussão entre Kelsen e Ehrlich, é o Estado que cria a constituição, ou a constituição que
cria o Estado? Agora, há um discurso das Nações Unidas dizendo que os direitos humanos
devem ser protegidos, e para isso as normas de disposição devem ser transformadas de
dispositivas em impositivas. O direito é tudo o que há de bom, basta por si mesmo e deve
ser cumprido; o que legitima o direito é a ordem constitucional.

É esta ordem constitucional, que deve prever a proteção de direitos fundamentais, que
passa a ser o núcleo material das constituições. É uma crítica preocupada com que todos
os países mudem o seu perfil constitucional.

O que legitima a campanha de Hitler na II Guerra Mundial é a constituição de 1940: o início


da guerra foi legitimado pelo art.º 48.º da Constituição de Weimar. Não havia como garantir
o direito à guerra e à paz, só poderia haver um ou outro. E, as Nações Unidas se
fundamentam em dois princípios: a paz e a segurança internacional. Portanto, a guerra era
uma exceção à paz, não era mais a regra geral. Antes da carta das Nações Unidas era o
contrário. Há uma inversão do paradigma, sendo necessário mudar as constituições.

Todo esse debate é discutido pelo Direito Comparado. René David, em 1964, coloca de
parte a questão de discutir se o Direito Comparado é ciência ou não, focando-se antes na
verificação da finalidade que ele pretende atingir, que era contribuir para o
desenvolvimento do direito. Nesse sentido, cria três proposições:

• O Direito Comparado contribui para as investigações históricas e filosóficas do


direito visto como norma (direito positivo), auxiliando outras duas ciências, a história
e a filosofia;
• Interessa para o desenvolvimento do conhecimento do direito interno dos Estados:
não é raro aprendemos com outros sistemas e nacionalizarmos normas ou institutos
para resolver o nosso problema;
• A mais importante: permite compreender o ordenamento jurídico dos diversos
países, favorecendo as relações internacionais.

1964 foi um período histórico de reforma mundial. Antes, importa referir a crise da
igualdade de direitos do EUA e o acesso à educação em França. Aqui, havia o crescimento

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da corrida ao petróleo. Com todo o desenvolvimento ocorrido com o término na II Guerra,


um dos moderadores económicos passou a ser o petróleo, o que dá origem à Organização
dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), reconhecida pela sua importância económica
e por quase todos os membros serem perfilados ao direito muçulmano. Se, de um lado das
negociações, tínhamos os países capitalistas, do outro lado havia os muçulmanos; difícil
avançar, pelo choque de culturas. Mais uma vez, para conhecer um povo temos de
conhecer o seu direito. Não é mais uma questão de religião nem do direito de um ou de
outro, mas de transações económicas. Não é preciso usar um ou outro Código Civil, é
preciso seguir a dinâmica de mercado.

Esta mesma lógica aplica-se ao direito soviético.

Entre 1905 e 1917, percebe-se que o império russo cai em desuso político, consequência
do iluminismo na Rússia. Ele começa no séc. XVII com a czarina Catarina II, déspota
esclarecida, que resolve propor a submissão dos imperadores russos ao direito natural; a
ideia era seguir valores jusnaturalistas para governar o Império Russo. Morreu ela e a ideia
juntos, porque para quem detém o poder uma disposição dessas sem nenhuma garantia
não avança. Os seus sucessores tentam adaptar essa vontade de Catarina II sem sucesso,
mas deixaram uma semente para liberdade ideológica.

Entre 1913 e 1914, houve duas revoluções russas, derruba-se o império, institui-se a
república socialista de trabalhadores e camponeses - república socialista. Uma ideia de
economia e de sociedade com coparticipação. Adota-se a ideologia de Marx e Engels,
totalmente diferente do mundo ocidental, nesta primeira fase de socialismo russo. A
primeira constituição russa é de 1918, que pretendia romper com a dominação política
anterior e instaurar a ditadura do proletariado e camponeses, e começa a fase de transição:
implantar o fim da propriedade privada, a forma produtiva do Estado, reforma agrária, etc).

Em 1924, vem a segunda constituição, baseada numa sucessão para que não fosse mais
uma constituição programática que criasse regras, uma constituição jurídica, mas uma
constituição ideológica que tratasse de valores sociais e económicos. A constituição cria a
União Soviética com quatro repúblicas (uma delas a Ucrânia). A parte jurídica do Estado
era definido pelo partido comunista.

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Em 1936, Estaline muda a ordem constitucional e cria a 3ª constituição russa (2ª soviética),
e inicia-se a legitimação de Estaline, que tinha feito o seu nome na II Guerra Mundial (a
campanha de reconquista de Estaline mata mais do que Hitler). Avança a tentativa de
expandir o domínio social numa terceira fase do comunismo.

Após a guerra, era necessária a criação de uma nova constituição para Rússia: material,
jurídica, socio-económica? Precisavam de avançar na indústria, mesmo que fosse indústria
de guerra. Com a morte de Estaline, chega-se a um momento de abertura a sucessões.
Nasce, em 1977, uma nova constituição, que tem uma proposta comum ao direito
ocidental: um resgate das liberdades, uma aproximação do acesso ao direito. Esse
sentimento vai avançando…

Em 1984, é feito um segundo acordo liberal – o New Deal – realizado entre Ronald Reagan
e Margaret Thatcher, que causa um alívio das tensões entre leste e oeste, dando a
entender que o mundo precisa de uma URSS mais próxima dos parceiros da II Guerra. Só
que, para isso, a URSS não poderia mais existir, os Estados teriam de ser livres. Então, o
acordo pressupõe a queda da URSS, da cortina de ferro, da bipolaridade tensa entre o
leste e o oeste, do socialismo e capitalismo, da falta de liberdade política; e a criação de
uma constituição mais moderna. Entre 1984 e 1989, os ajustes políticos e sociais são esses.

Entre 1989 e 1993 o direito constituído na URSS, a separação entre jurídico, social e
económico, deixa de existir. Boris Yeltsin obriga o presidente Mikhail Gorbatchov a aceitar
a dissolução da URSS. Boris Yeltsin, em 1993 acaba a URSS (acaba a antiga Rússia, o
direito soviético) e entra a nova fase de república russa: a fase do capitalismo e da
democracia

Feita essa introdução, fica mais fácil perceber o início do Direito Comparado. Konrad e Hein
(1969) propõem uma definição para o Direito Comparado, que já não é aquela
subjetividade proposta pela academia, nem a leitura vinda de H.C. Gutteridge e passando
por René David; é algo mais objetivo e cientificamente fiável: a racionalização de um
objecto (direito) por um processo próprio (comparação), tanto pela compreensão do
ordenamento jurídico interno como – e principalmente – pela análise de elementos
externos, internacionais, representado pela observação e estudo dos diferentes sistemas
jurídicos do mundo. Tendo o objeto (direito) e o método (comparação), tem-se a tese, a
antítese e a síntese; portanto, tem-se uma ciência.

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Mais adiante, Marc Ancel (1971) propõe a reconstrução do método comparativo:


• Primeiro, reconhecendo a importância da comparação dos sistemas e das
instituições jurídicas no mundo em reconstrução social;
• Segundo, não se trata de um único método comparativo, mas dos métodos que
sejam necessários para dar resposta às perguntas colocadas para o
desenvolvimento do direito.

Marc Ancel liberta o Direito Comparado do dogmatismo do direito: não é poder ver se o
método comparado eleva o Direito Comparado junto com o direito à condição de ciência, é
a possibilidade de o Direito Comparado se auto-construir, de adotar várias técnicas e
adaptar métodos, para ele por si próprio dar respostas sobre a análise do sistema. O Direito
Comparado é independente do direito.

Constantinesco propõe a reflexão de Marc Ancel para o leste europeu em 1971, que foi o
período da reforma constitucional do pós-guerras, da ideia de reformulação das
constituições soviéticas, a tentativa de abertura. A II Guerra, quando estimula a criação da
DUDH, abre o debate a inúmeras liberdades que não eram reconhecidas, como a liberdade
de informação, que caminha lado a lado com a liberdade de expressão: a nossa origem não
é o direito romano, temos proximidade com a igreja ortodoxa russa, temos um histórico de
ditaduras (proletariado, política), temos a nossa tradição; e entre os povos soviéticos
também há diferenças, não há só partido comunista, é o partido comunista em nome do
povo. Precisamos estudar o sistema ocidental e perceber se tem algo que possamos utilizar
– principalmente o civil law e o common law – e depois fazer o contraponto com o direito
soviético, para decidir se queremos o socialismo ou capitalismo.

Qual a diferença entre demagogia e democracia?


Demagogia – condução do povo (por um caminho não verdadeiro para a satisfação, normalmente, de uma
aristocracia, falsa aparência de democracia)
Democracia – governo do povo (legitimação do regime político).
Não confundir liberdade com libertinagem.

Na mesma época, Constantinesco destaca a importância do Direito Comparado para retirar


o jurista da área de conforto, imposta pela submissão ao seu direito interno, estimulando o
conhecimento dos mais variados sistemas jurídicos mundiais, preferencialmente para pôr
em causa institutos e fenómenos jurídicos nacionais pelo confronto com o direito interno

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aplicável. A intenção, a mais das vezes, recaía em estimular o debate entre as forças
criadoras do direito no chamado civil law, common law e direito soviético.

1.3. Objecto do Direito Comparado

O Direito Comparado é uma ciência e é autónoma, tem um objeto próprio (estudo do


direito), e um método comparado que se adapta conforme as necessidades da observação.
Comparar não é descrever: o Direito Comparado pretende identificar metodicamente as
semelhanças e diferenças entre ordens, sistemas, normas e institutos jurídicos. Temos
duas formas de ver essa comparação:

• Macro-comparação: comparação de ordens ou sistemas jurídicos no seu todo, em


que se preocupa com questões mais amplas, gerais e abstractas, tais como: qual é
o papel desempenhado pelos conciliadores judiciais? Como resolver as demandas
de pequeno valor económico?

• Micro-comparação: mais pequena, resumida, pontual e direcional. Comparação de


normas ou institutos jurídicos de ordens jurídicas diferentes com a intenção de se
resolver problemas reais ou concretos, tais como: quando é que um produtor é
responsável pelos danos causados aos consumidores por bens defeituosos? (trata-
se de uma questão específica, produção, direito do consumidor) Como se apura o
dever de reparar os prejuízos em acidentes de trânsito?

1.4. Proposições do Direito Comparado

O que se pode comparar na macro-comparação e na micro-comparação? Existem quatro


hipóteses, que deverão ser lidas considerando o tempo e o espaço. O tempo acompanha o
espaço: não se deve dissociar o tempo (momento histórico) do espaço (local geográfico).
Para comparar, deve ter-se em mente o mesmo momento histórico e lugares bem definidos
(não posso dizer como era a democracia na década de 70 no mundo soviético, Rússia e em
Portugal, mas posso dizer como era a democracia na Ucrânia e Portugal, na Rússia e em
Portugal, etc). Portanto, tem-se:

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a) uma comparação sucessiva num único país (ex.: revolução de Portugal até o
momento atual, comparar todas as constituições);
b) uma comparação simultânea no passado entre diferentes países (ex.: constituição
cartista portuguesa e constituição brasileira de 1815 ideológica);
c) uma comparação sucessiva em diferentes países (sucessão histórica das
constituições portuguesas e brasileiras);
d) uma história comparada de instituições de diferentes países.

Objeto e proposição

1.2. Fenómenos históricos e Direito Comparado: a raiz histórica sobre a formação das
famílias jurídicas Romano-germânica e Common law

Quando falamos das duas primeiras, e mais representativas, famílias jurídicas - a família
romano-germânica e a common law - podemos ver a mesma origem, um mesmo momento
histórico de formação, e esse momento histórico é a relação do sistema romano com o
sistema grego.

a) Gênese grega: do mito ao logos – racionalismo helênico

Então, temos ali o nascimento desse sistema que se dá com o racionalismo helénico.
Racionalismo pressupõe a justificação da razão, e a razão é concebida como a reflexão
pessoal sobre um fenómeno. O racionalismo helénico ajuda-nos a perceber o quanto o
motivo da lei estava no individuo e não mais nos Deuses. Quando se fala em Direito
Comparado no racionalismo helénico, é perceber que a criação da fonte da lei estava
justamente no indivíduo, e não numa fonte externa (em um Deus grego), é o momento em
que tudo aquilo que era dito passa a ser escrito.

Essa é a ideia de um direito escrito que representava os valores sociais. Como


consequência, tínhamos uma mesma formação jurídica, grega ou helénica, baseada num
direito escrito que respeitava os valores da vida daquela cidade-estado que foi criada.

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É por isso que temos legislações mais liberais como a ateniense (mais voltada para arte e
cultura); legislação mais contratual com maior rigor (com direitos e obrigações) de
Corintos; legislação mais estrita e severa (alguns chamava de torturante), mais
descentralização do poder, como a espartana, a legislação militar. O direito passa a ser
uma consequência natural da vida da cidade-estado. O direito não é mais oral, não é o
direito costumeiro, é escrito. E esse é o ponto que os romanos observam. Os romanos
dominam a Grécia, aplicam a sua pax romanorum – manter a paz com a força, e a força é o
direito reconhecido na lei romana, na lex romanorum. Quem criava a lei, controlava o
Estado.

b) Estrutura romana

No caso do império romano, quem criava a lei era o senado, o SPQR - a fonte de
autoridade de todo direito romano. O que o Senado dizia transformava-se em direito e
devia ser cumprido. Um brocado jurídico muito comum na época era “dura lex, sed lex”
(dura é a lei, mas é a lei). Uma coisa é controlar poucos, outra coisa é controlar muitos.
Uma coisa é manter a força da lei pelo medo da punição para poucos, a outra é para
muitos. Isso quer que, quanto mais o império romano se expandiu, mais difícil era manter a
força da lei.

Enfraquecer a lei significa fragilizar a pax romanorum. A pax romanorum tinha a


característica de os povos locais cumprirem o seu direito local desde que não fosse
contrário à lei. Mas, chega a um ponto em que tem que se pôr um limite. Quanto maior o
império, mais costumes, mais leis, mais direitos diferentes dos direitos romanos – mais
difícil reprimir.

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Família Jurídica Romano-germânica

Formação

O Direito Romano deve ser compreendido como o conjunto de normas jurídicas e


princípios de Direito que produziram seus efeitos durante a existência de Roma, desde seu
nascimento em 753 a.C. (século VIII) até a queda definitiva em 1453 d.C. (século XV),
especialmente com o fenómeno da laicização da jurisprudência ocorrido a partir da Lei das
XII Tábuas (século IV a.C.).

Quando ocorreu a queda do Império Romano? Duas são as marcas: a primeira, do


Ocidente (século V d.C.); e, a segunda, do Oriente (século XV).

O império romano começa a entrar em decadência. Foi um período perigoso, além de


perder território, perdeu autoridade (território reconquista-se, autoridade não). Vem um
período de tentativa de recuperação do império romano, a recompilação normativa que a
história chama de corpus iuris civilis, iniciativa de Justiniano. Cria-se um sistema de
recuperação da autoridade do direito romano, uma limpeza profunda, uma ordem de
expurga: arrancar do direito romano tudo o que não é mais útil para ele. Há partes que já
não devem ser cumpridas, mas o que deve ser cumprido? Estes eram os pontos mais
preocupantes nessa reconstrução. Surge uma nova estrutura do sistema romano:

• Constitutas: atos de poder do imperador (não é constituição como temos hoje), algo
dado por quem governa; não é expressão do povo, é uma demonstração de poder;
• Institutas: quase uma doutrina. Definição de família, contrato, processo, jurisdição.
• Digesto: quase um código, um conjunto de leis.
• Novelas: vem de novo, renovação. É o que foi necessário ser atualizado enquanto o
CJC foi criado.

O corpus juris civilis foi criado e destruído. No início da queda do império romano, a
invasão árabe no Norte da África chega à biblioteca de Alexandria, onde estava o corpus
juris civilis, e ele é destruído. Os anos impõem uma derrota muito sentida e sofrida aos
romanos, e aqui temos um ponto fundamental para o direito comparado. Os árabes,
quando iniciam a sua campanha contra o ocidente, não têm a intenção de dominar

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politicamente os povos conquistados, mas sim de expandir as terras islâmicas. Os líderes


militares respondiam em nome de Maomé, tinham a missão de combater os infiéis do
ocidente. A ideia não era destruir o sistema jurídico romano, mas sim as religiões, para que
só existisse uma.

No séc. VI d.C., a primeira fase do islamismo. Não existia essa estrutura ainda, a própria
Xaria estava em fase de formação em relação aos dogmas. A forma de se replicar a palavra
do profeta ainda estava em formação.

Se, por um lado, havia uma invasão do oriente para o ocidente com o islamismo, do outro
lado, havia uma forma religiosa em criação, iniciada pelo imperador Constantino, que
decorre a partir no concílio de Nicéia: a criação da Santa Igreja Católica Apostólica romana.
A partir do concilio de Niceia, Roma transforma-se num Estado religioso.

Roma não podia continuar a conviver com as crises religiosas que se iniciaram com a
morte de Cristo. A primeira ideia de Constantino foi acabar com a guerra civil romana e
com a perseguição aos cristãos. Ele percebe que era mais fácil controlar um do que
milhões, e estimula a criação do catolicismo para que houvesse um líder, e ele controlaria o
líder dessa religião. Ele promulga um édito, apelando a que os líderes das seitas cristãs se
reunissem e chegassem pelo diálogo a um ponto dogmático cristão que desse origem a
uma religião, e que escolhessem a estrutura política dessa religião, o corpo espiritual e
material, os dogmas religiosos e políticos da nova religião. É aqui que surge a ideia do
papa.

Uma das tentativas do império romano se manter vivo era institucionalizar as seitas cristãs,
criando-se a Santa Igreja Católica apostólica romana. Num primeiro momento, transforma-
se num problema para o império romano, porque quando os árabes invadem Roma e
destroem o corpus juris civilis, todo o corpo dogmático católico já estava bem encaminhado
para ser desenvolvido. Quando se recompila um novo testamento, quando se reconhece
algumas fontes do antigo testamento, quando se tem uma bíblia, cria-se um corpo
normativo. Então, além de normas religiosas, também é possível justificar normas jurídicas.
O Papa passa a ser o equivalente ao imperador romano para o Catolicismo. A fonte do
poder jurídico do Papa é Deus. A fonte do poder jurídico do imperador é o Senado. Quem é
mais forte?

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Primeiro argumento: os senadores morrem. Segundo argumento: é mais fácil convencer


uma comunidade de religiosos ou uma sociedade heterónoma de pessoas? É mais fácil
fazer cumprir uma lei religiosa ou uma lei laica? É mais fácil cumprir porque vai ser punido
por Deus ou pelo imperador? Conclusão, era muito mais fácil divulgar o Catolicismo do que
o corpus juris civilis. Cada padre, cada responsável por levar a nova religião, era uma fonte
de publicidade dessa nova norma, tanto a religiosa quanto a jurídica. É o período em que se
cria o direito canónico (lex canonici), normas humanas baseadas no direito religioso.
Forma-se um corpo religioso e jurídico, da mesma forma que os muçulmanos pretendiam
formar a Xaria. Era o pensamento da época, a legitimação do poder divino: quem manda é
Deus, Alá e Jeová. Três religiões e três fundamentos.

O direito romano entrou cada vez mais em decadência e acaba por ser substituído
progressivamente pelo direito canónico. A campanha árabe avança pelo império romano,
norte da África, médio oriente e península Ibérica, e cada vez mais o império romano se vai
retraindo. Como se não bastasse, o império sofre outro ataque do Norte, os vikings.
Quando os romanos entraram pela primeira vez em contato com os vikings, eles pensaram
que eram ursos selvagens, devido à sua compleição física, e questionavam como eles
podiam sozinhos destruir uma legião inteira. Eles podiam porque tinham um objetivo mais
claro do que os romanos, precisavam de terra para plantar, precisavam sobreviver. E eles
olhavam para a cidade, e viam que as pessoas iam para igreja rezar. Então, esperavam pelo
domingo na hora da missa, invadiam, fechavam a porta e ateavam fogo na igreja.

No início do séc. VIII, o primeiro movimento viking invade a Grã-Bretanha. Essa invasão
empurrou o exército romano para o continente, e estes tiveram de ser realocados para o
Sul por causa da invasão muçulmana. Então, não conseguiram expandir para o Norte.
Entram no Norte para Europa, Normandia, até as portas de Portugal.

O que isso interessa para o Direito Comparado? É esse encorpamento do império romano.
E agora, que direito esses bárbaros seguiam? Os germânicos, os suevos, os francos,
visigodos... A partir de agora, no séc. XI, já não há um império, pelo menos em grande
parte da europa continental, é cada vez mais empurrado para península itálica. E o direito
romano?

Nesse desespero de retrocesso da campanha românica e encurtamento até a península


itálica, foi descoberto, no norte da Itália, num mosteiro, por um monge chamado Irnério, um

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fragmento de papiro que continha no verso o corpus juris civilis. Ele percebe que era um
documento tão importante que não poderia entregar nem para o abade da sua igreja,
porque tudo o que não fosse religioso deveria ser destruído. Naquela época, faziam cópias,
e ele era um dos copistas. Ele faz uma cópia e encaminha o original e a cópia para as
universidades de Paris e da Prússia. Os estudiosos percebem que se trata do livro 1 do
digesto.

Essa informação foi fundamental, só ela criou todo o fundamento para as reformas
religiosas e a base para a redescoberta do direito romano. Do séc. XI ao séc. XIII, há uma
ruptura com o dogma católico, a ideia de que a igreja avançou além do limite tolerável, em
sentido político, a nível de chegar a um ponto em que os próprios fiéis discutiam os dogmas
diante das novas exigências (os sacramentos). Institui-se nesse momento a confissão, que
gerava uma penitência, que era várias vezes paga em dinheiro. Dinheiro uns têm outros
não, quem é rico pode pecar, quem é pobre não. O sentimento que se cria é exatamente
um sentimento contra a moral religiosa. As bulas papais se intensificam, passam a ser mais
autoritárias.

Então, surge uma nova campanha, de Lutero, que dizia: “se somos criados à imagem e
semelhança de Deus, temos de ter o perdão à imagem e semelhança de Deus (igualdade).
Eu não posso no sacramento fazer distinção pela matéria (fundamento da igreja Luterana).
Por outro lado, a ideia de liturgia muito rígida afastava a busca de um deus único e
supremo, a ideia de João Calvino, formação do Calvinismo.

Para a Alemanha, vem uma escola protestante, racional, que questionava a igualdade para
ter a liberdade religiosa. Para os franceses (francos), a ideia de uma administrabilidade da
fé, uma condução para prática religiosa que fosse mais próxima da premissa de que fomos
criados a imagem e semelhança de Deus (logo, temos de ter o mesmo tratamento), a ideia
de liberdade e de administração.

As três vertentes protestantes que dialogavam com o catolicismo, neste momento, eram o
Luterismo, o Calvinismo e o Anglicanismo

O anglicanismo, criado por Henrique VIII em Inglaterra, tem uma formação híbrida, entre
conceitos luteranos e calvinistas e esta crise católica. Rei inglês, Estado inglês, religião
inglesa. O anglicanismo tem a parte histórica de mudança por liberdade.

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Agora, havia necessidade de reconstruir o direito canónico, posto em causa por causa do
cisma da Igreja Católica, e a possibilidade de se conhecer o direito romano. Não se
estudava mais o direito romano pela simples tradição romana, agora poder-se-ia ler o texto
como Piano (jurisconsulto nomeado por Justiniano) lia os escritos. Nascem formas de
interpretar. Todos os doutores da Igreja Católica (Tomás de Aquino, Jerónimo, etc.)
estavam imbuídos da missão de recuperar o dogma católico, rever toda a construção de
sacramentos. Quando se reuniram para discutir o novo direito canónico, precisaram de
dialogar com o novo direito romano. As universidades nascem com esta dualidade, a
reconstrução religiosa do direito canónico e a redescoberta do direito romano. Temos duas
forças a serem reinterpretadas.

Quando o Império Romano rui, nasce o segundo Estado de Eugen Ehrich, o Estado feudal,
com uma nova estrutura feudal - os feudos - que só foi formada devido à necessidade de
reconstrução. Os feudos precisavam reconstruir-se, a si e ao seu direito. E agora, que
direito será criado? Não era preciso depender da memoria, havia elementos concretos e
reais para analisar o direito a partir de fontes segura. Esse direito recém-descoberto, com
fonte no digesto, estimula o estudo.

Qual a relação dos feudos com o direito romano? Basicamente, ele contribuiu para a
formação do ius comuni (direito comum). Cada feudo tinha as suas próprias leis. Os feudos
tinham que dialogar entre eles, e para isso precisavam de um direito comum. A ideia era
estudar a formação do direito comum, a ideia de um jus proxi (aquele que era responsável),
que poderia ir a um determinado feudo e perceber os estatutos e costumes locais, a forma
como se uniam uns com os outros, como eles se desenvolviam. Era preciso comparar os
jus municipalis, o que os feudos pediam uns aos outros.

Quando as universidades começaram a identificar os seus próprios métodos, nasce, em


Itália, a Escola dos Comentadores; na França, a Escola Jurista; na Alemanha, a Escolas das
Pandectas. Cada uma baseada num aspecto próprio.

Em Itália, a ideia de se fazer uma interpretação literal da lei romana. Vamos ler o direito
romano e atualizá-lo, como é o digesto hoje e comentar como seria.

Para os franceses, a ideia é o choque entre o calvinismo e catolicismo, dentro de uma


expressão criada por Santo Agostinho: todo o poder vem de Deus, que criou todos, e criou

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também o poder, e deu o poder ao Papa. O Papa representa Deus na Terra. Hoje, temos
uma estrutura que não é mais romana, é uma estrutura de liberdade. Se há liberdade de
interpretação, há maior possibilidade de revermos os valores católicos. Deus criou o
homem à Sua imagem e semelhança, o Papa é um homem. O Papa é o líder religioso e
político, mas todos são iguais perante a lei. Quando Tomás de Aquino afirma isso, traz para
a igreja o humanismo, que vai ser fundamento para o chamado renascimento.

Como se não bastasse, a igreja sofre outro golpe: não só a insolvência dos seus principais
pensadores - Lutero, Calvino, Tomas de Aquino – mas também a campanha de reunificação
da França, pelo rei Felipe IV. Este declara guerra, sabendo que não tinha dinheiro para isso,
mas tinha confiança de que seria apoiado nomeadamente pelo Papa João, que havia sido
protegido por ele depois de ter sido expulso de Roma. O rei pediu que o papa custeasse a
guerra, mas este negou-se a ajudá-lo. Então, manda prender o papa sem comida e sem
água, tendo morrido alguns meses depois. Na vacância do poder, é eleito o bispo de Paris
que tinha sido escolhido pelo rei Henrique e que ajuda o rei, suspendendo a excomunhão,
dando o dinheiro ao rei e extinguindo o principal exército católico.

O que o Direito Comparado lê deste momento? A fragilidade da legitimação do direito: um


rei havia conseguido sujeitar um papa aos seus desejos. Filipe IV passa a ser o responsável
pela legitimação pela força. A dominação por uma ordem militar. A legitimação pelo
sangue, sucessão ao trono.

Voltando para Inglaterra, a primeira cruzada do séc. XI foi conduzida por Ricardo I coração
de leão. Os templários mudam a figura de como o direito deveria ser concebido. E
conseguimos entender porque a escola francesa é humanista, porque é justamente dessa
tensão a forma com que a universidade de Paris reconstrói o direito de Tomás de Aquino, e
a forma, no mesmo período, com que Filipe VI introduz o sistema de legitimação pela força.

Falar da França pelos costumes francos era fácil, falar da Europa Continental (Espanha e
Portugal) também era fácil porque era muito clara a influência católica. E da Alemanha? A
Alemanha não tinha tanto respeito à religião como estrutura de formação do Estado. A ideia
de termos independência do indivíduo. Uma influência de uma estrutura social típica
daquela região que os germânicos levaram para a Europa Central, baseada na estrutura de
condado (Earl). Para os escandinavos, a ideia de uma estrutura de aproximação pela

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convivência, logo a importância dos costumes familiares e dos núcleos sociais para a
sociedade.

A necessidade de sobrevivência levava a aproximação. E aqui nasce, para os germânicos,


um sentido que é próprio deles: o volksgeist (“espírito do povo”), consciência popular que
cria o poder. Eles preocupam-se com o todo, são ao mesmo tempo fiscais e construtores
da sociedade. Respeitar os iguais pelas suas diferenças. É por causa do espírito do povo
que o sistema romano não conseguia penetrar na Alemanha. O direito romano não
consegue penetrar no direito germânico puramente, mas forma-se a ideia da autoridade do
direito romano com os costumes germânicos (advindos do volksgeist).

Jusracionalismo e codificação

O marco histórico é definir a formação dos institutos do direito fundamentados na razão.

Algo que hoje é tão comum, a ideia de separação dos poderes. Para termos o controlo dos
Estados, é importante que o poder político seja distribuído entre as instituições. Temos essa
ideia a partir da Revolução Francesa: o poder, para ser controlado, tem que ser distribuído
pelas instituições.

É muito claro que essa solução se refere a um problema em particular, que é a


centralização do poder. As revoluções acontecem sempre contra algo que se pretende que
seja modificado. A ideia aqui é acabar com o absolutismo, a solução é a distribuição do
poder entre instituições.

O princípio da separação dos poderes, ensinado por Montesquieu, foi aplicado ao sistema
jurídico francês. Uma experiência voltada para a igualdade do voto e o respeito às
instituições administrativas. Os franceses preocuparam-se mais do que outros povos com
esses fenómenos, sociopolítico e jurídico. O direito ao voto e exercer voto, o respeito pelas
instituições administrativas.

Importância da Revolução Francesa como facto histórico decisivo para os elementos


internos convergentes das ordens jurídicas integrados nesta família de direitos.

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Quando, em 1789, o povo francês toma a Bastilha, nasce ali o início da queda do
absolutismo francês. A Bastilha foi o principal símbolo da força absolutista na França. Com
a prisão do rei absolutista e a explosão desse domínio militar, assinala-se o término do
antigo regime. Quando acaba um regime político, é preciso outro no seu lugar. Nenhum
Estado sobrevive se não tiver um sistema político. A Sociologia explicaria que tem de ter a
ordem interna, que se chama sistema político: um sistema de normas sociais, entre elas
normas políticas. Os franceses esqueceram-se de criar um novo regime, estavam
preocupados apenas com o término do Ancien Regime. A França entra, a partir de 1789,
numa série de onze ordens constitucionais distintas, entre 1791 e 1868.

A constituição de 1793 assinala uma crise entre o estabelecimento do Ancien Regime e a


instauração da monarquia constitucional: voltamos à monarquia absoluta para que acabe a
guerra civil, ou continuamos a guerra civil, e temos agora o objetivo de instaurar a
monarquia profissional.

A constituição de 1848 é o espírito das constituições, inclusive da constituição atual


francesa, que conhecemos como liberdade, igualdade e fraternidade. É desta Constituição
que as três palavras se reúnem (até 1848, só tinham duas palavras, liberdade e igualdade).
O povo queria ser livre da opressão absolutista e ter igual direito ao voto. Percebeu que
liberdade e igualdade - ou seja, todos no mesmo nível - impede a formação de um estado,
porque não há ordem. Precisavam criar a fraternidade, que é perceber no outro qual o
limite do poder; eu posso fazer tudo aquilo que não causa um constrangimento ao outro. O
fundamento da fraternidade é quando os franceses percebem que a liberdade tem um
limite social, que é o respeito ao próximo. A partir do momento em que cada indivíduo
consegue ter clara consciência sobre liberdade, igualdade e fraternidade, o Estado
constrói-se por si só. É quando os franceses vão chamar de Estado Social.

Ali começa, na verdade, o primeiro marco do que chamamos de família romano-germânica.


É essa a construção, trazida modernamente por um sentimento interno: todos nós fomos,
em algum momento da história, romanos. Segundo ponto, o fato de estar lá e ter que
respeitar a lei local não significa dizer que seja parte daquela cultura, construiu-se sobre
outros valores. Simples assim. Eu consigo ter uma leitura clara do que foi a legislação
romana, a influência desse corpo normativo no meu direito, mas não consigo adaptá-lo à
minha posição.

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Na época do Rei Mármore, que prendeu o papa, ele cria para o sistema francês o início da
assembleia geral, chamada de cúria régia (conselho do rei), que vai ser adaptada pelos reis
sucessores para formar os estados gerais, que foram dissolvidos na Revolução Francesa.
Acabou o antigo regime, o que se vai colocar naquele lugar? É preciso ter um tribunal que
represente esses três valores. Não importa quem é o governante, o que importa é que o
poder seja distribuído entre as instituições, principalmente as que prestam serviço ao povo.

Além dessa distribuição do poder político, a ideia de unidade política e centralização reflete
o entendimento de soberania popular, que ofereceu condições para a criação de sistemas
integrados e hierarquizados nos domínios da estrutura política, administrativa e judiciária.

Então, a primeira característica de qualquer Estado é a distribuição do poder entre as


instituições, a separação dos poderes. A segunda ideia é conter a centralização, mas
percebendo que por vezes ela tem de ser mantida, ainda que haja distribuição desse
poder. É preciso, por exemplo, concentrar algumas atividades em mãos de alguns órgãos.
Por exemplo, o poder de criar leis se chama legiferação.

O poder político pode concentrar-se nas mãos do Estado ou nas mãos do povo. Se o poder
político se concentra em mãos do estado, chama-se soberania nacional. Ao contrário, se o
poder político se concentra em mãos do povo chama-se soberania popular.

Com a revolução francesa, os franceses perceberam que o poder na mão do povo leva ao
estado de natureza: um matando o outro, guerra civil, guerra de todos contra todos, como
diria Hobbes. Então, precisamos de controlar esse poder, separar o poder, criar um sistema
de satisfação dos interesses do povo, tribunais administrativos. Agora, precisamos ter a
certeza de que esse poder vai ser exercido na soberania e na separação de poderes,
poderes.

A separação de poderes é o poder do povo. Portanto, sempre que se fala em distribuição


dos poderes e atuação dos tribunais administrativos, significa dizer que não é só produção
em favor do interesse do povo, mas sim a legitimidade desse poder. A origem do poder
também está no povo. Não é só o destino da atuação pública, o poder origina-se no povo e
volta para ele.

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E a origem desse poder? Soberania popular, o povo é titular e destinatário, volta para ele.
Como é que isso é trabalhado? Toda essa dinâmica deve ser somatizada para formação de
sistemas integrais que tenham uma inter-relação entre eles hierarquizada, ou seja, criada
com uma distribuição de competências, nos domínios político, administrativo e da
organização judiciária, ou seja, tudo o que se aplicava para a separação de poderes em
nível de ideologia, agora tem de descer para todas as estruturas estatais.

Não é só o Tribunal Administrativo que interessa, eu preciso ter também uma consciência
de liberdade, igualdade e fraternidade na satisfação dos interesses do povo. Preciso ter um
tribunal que não sirva apenas para satisfazer as vontades do rei, mas sim para resolver os
conflitos sociais. Para isso, é preciso ter normas, e sabemos que os tribunais se preocupam
com uma norma social particular, que é a norma jurídica. Então, além dessa organização
judiciária hierarquizada e integrada, é preciso ter clara a ideia de integração também com o
parlamento, com o direito, com quem cria lei.

Acabou o Ancien Regime, não havia mais Estados gerais. Foi preciso criar o que se chama
hoje de assembleia nacional.

A separação dos poderes, respeitando a soberania popular, entende que as três funções
públicas fundamentais do Estado devem agir em harmonia e interdependência entre si,
para satisfazer os interesses do povo. Quais são as três funções públicas fundamentais?
Uma é a legiferação, o poder de criar leis. A segunda é o dever de cumprir essas leis,
chamado de administração, o poder de executar as leis, poder executivo: a ação de
administrar a coisa pública diante da lei, mediante a execução dessa. O terceiro, a
jurisdição, como poder de pacificar os conflitos.

Agora, temos não apenas uma teoria de separação do poder, mas também uma finalidade
para ele, a satisfação da soberania popular, baseada na hierarquia e na sistematização,
harmonia e interdependência, para que as três funções públicas fundamentais possam
satisfazer os interesses do povo. Legiferação, administração e jurisdição.

A partir dessa construção, nasce a ideia de liberdade, revelando ser determinante da


convicção de que só a lei votada por assembleias representativas do povo exprime a
vontade do povo. É a partir dessa concepção que temos o sentido mais geral de lei. A lei
representa a vontade do povo. Todo o poder vem do povo. Todo o poder é exercido pelos

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órgãos e instituições públicas em favor do povo. Todo poder vem do povo e volta para o
povo. E, para que seja assim, é necessário que tenhamos a separação de funções públicas,
com os órgãos que criam a lei, outros órgãos executam a lei em função do povo e outros
que pacificam os conflitos diante da lei. O que controla o Estado, hoje, é a Lei. E é por essa
afirmação que o sociólogo do direito odeia o jurista.

Tudo é lei. Mas não é a lei natural, não é a lei moral. É a lei votada por assembleia autêntica
baseada na separação dos poderes, legitimada com a soberania popular. Como é que eu
sei que a lei é essa? É por causa da vinculação entre lei e liberdade: só existe liberdade na
lei. Nasce uma verdade irrefutável jurídica: é a lei que define o que nós podemos e
devemos fazer.

A lei cria um panorama de aplicação normativa. Agora, ela, por vezes, define objetivamente
qual é a vontade do colaborador, em outra, define o juízo de oportunidade e conveniência.
Quando diz exatamente o que é, diz que é vinculado, tem que cumprir aquele critério
objectivo. Se, por exemplo, se diz que um determinado contribuinte tem que recolher o IRS
porque atingiu um determinado escalão em lei, isso é objetivo, não posso decidir para mais
e para menos, é aquilo e é aquilo. Mas, quando a lei diz: existe uma possibilidade, e essa
possibilidade tem que ser comprovada por A+B+C, quem vai definir o valor das variáveis é
o agente público. Então, para alguns um assim tem mais valor do que outros. Juízos de
oportunidade (a lei abre várias hipóteses) e de conveniência (há uma possibilidade de
interpretação das várias hipóteses). Tanto no poder vinculado quanto no discricionário,
quem define o cumprimento do ato é a lei. A liberdade é restrita à lei.

Existem duas equidades. Existe uma equidade da família romano-germânica, que é 100%
romana: é uma ideia de abrandamento do rigor na leitura da lei. Significa dizer que o
agente vai analisar o caso diante da pessoa, que tem a sua personalidade, o seu histórico
de vida e a sua forma de pedir a prestação do serviço público, e o agente tem que
interpretar segundo o caso concreto. Aí sim, tem liberdade.

Essa nova construção sustenta a propriedade, o contrato e a igualdade como pilares do


direito patrimonial, privado. Somos livres para ter coisas. Coisa no sentido jurídico, tudo
aquilo que pode ser apropriado - bens móveis, imóveis, tangíveis, não tangíveis, materiais,
imateriais - tudo que possa ser fruto do que os romanos chamavam animus domini. O
sentido de propriedade é eu querer ter domínio sobre coisas, não tenho de modificar, tenho

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que ter a possibilidade de ter poder, comprar, vender, doar, receber em testamento,
receber em inventário e partilha, receber em expropriação, em recuperação, qualquer
modalidade de investimento, qualquer modalidade que seja legal.

Então, liberdade de propriedade nasce nesse sentido mais limpo, a lei é que vai definir o
animus domini, ou seja, todas as hipóteses de ter a possibilidade de ter o domínio sobre
coisas. Uma delas, a mais comum, é o contrato, baseado nas pretensões, nas intenções
reais.

Por fim, a igualdade. Todos são iguais perante a lei. É uma frase interessantíssima e a maior
fraude possível. O indivíduo não é tão igual perante a lei quanto é uma Coca-Cola, por
exemplo. O indivíduo não é tão igual perante a lei quanto é o Estado. Então, a lei tem de ter
em consideração que todos são iguais perante a lei, vírgula, respeitando as suas
diferenças. Alguns exemplos: abolição de privilégios feudais, relações corporativas, o
direito de filhos primogénitos.

Essas características, então trazidas pela revolução francesa, produzem um efeito em toda
Europa Continental. Nesse período, começa-se a discutir uma alteração, a passagem de um
império a uma república.

Codificação

A partir de agora, precisamos de criar um modelo para reconhecer essa nova estrutura
romana. E qual é o modelo? A codificação. Para o Direito Comparado, a codificação é a
forma encontrada para assegurar a concentração e divulgação da lei como instrumento de
prevalência para lhe conferir primazia entre as fontes dos direitos. Quantificação,
concentração dos institutos e fortalecimento da lei.

Quando começam nesse período as discussões sobre como deveria ser a codificação para
a Europa ocidental, inclusive, ao império austro-húngaro num primeiro momento, mais à
frente império germânico, o primeiro a fazer um modelo concreto foi Thibaut. E ele disse o
seguinte: os franceses tiveram uma ideia interessante sobre o sistema romano, legitimaram
o poder no imperador e ali sistematizaram toda a vida do povo. Uma leitura simples do
poder de Napoleão. Foi o primeiro código civil nesse modelo, o código de Napoleão. Há
algo que podemos aprender com os franceses: como atualizar o sistema romano. Por

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outras palavras, pegar no que o povo alemão pensa hoje dos seus direitos e aplicar na
Alemanha.

A partir dali, criaram um código com todo o direito vigente na Alemanha, que seria na
verdade um direito privado (não chamaram direito civil) Curiosamente, o direito privado
alemão já era processual, mas na época o direito processual também era tratado como o
direito criminal, não é tratado como direito privado. Thibaut, então, diz: vamos fazer uma
espécie de atualização do direito romano para nossa época, e vamos rapidamente, porque
os franceses já demonstraram que essa ideia é correcta. Agora, precisamos de colocar
matéria no código, não matéria francesa, mas cultura alemã.

O opositor de Thibaut, e também contraponto intelectual de Ehrlich, chama-se Savigny.


Savigny olha para Thibaut, e diz: nós precisamos realmente de recompilar o direito alemão,
não sabemos qual é a origem do nosso direito e quais são os direitos na Alemanha, hoje.
Há vários reinos que devemos manter unificados, depois do que Napoleão fez. Napoleão
pode ter causado muitos males sociais à Alemanha, mas ele causou um bem pelo menos:
unificou os povos no sentido de expulsar os franceses de lá. Vamos manter a unidade
política, porém criar uma nova base de direito. Que base seria essa? Logo, Savigny diz:
precisamos aprender com os franceses apenas uma ideia, manter a unidade. A partir daí,
nada da forma com que eles adaptaram o direito romano deve ser praticado, muito menos
as matérias que foram sistematizadas. Liberdade, contrato e igualdade era a coluna
vertebral do código de Napoleão. Os alemães não, preocupavam-se mais com a
consciência.

O espírito do povo, völkgeist. Savigny diz que era preciso voltar à história dos alemães.
Quando propõe essa ideia, ele diz: a codificação romana, o corpus jus civilis, é muito forte
para nós. Os romanos demonstraram que é uma estabilidade, uma coerência no exercício
do poder. Por outro lado, nós precisamos ter uma ideia clara de que o que legitima o
código não pode ser o Senado, tem de ser o völkgeist, a consciência do povo. Então,
Savigny propõe um código que seja universal, tivesse toda a parte prática e toda a lei
vigente na Alemanha, mas que se justificasse na consciência do povo, não no Senado.

O BGB vai levar quase cem anos para se aperfeiçoar. Os franceses, quando criaram o seu
código, não tiveram a menor oportunidade de decidir o que queriam com o código.
Napoleão convoca quatro juristas, coordenados por Goutier, e dá mesma ordem que

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Ulpiano deu a Tribuniano quando mandou fazer o Corpus Iuris Civilis: eu quero um código
civil dos franceses rápido, um código que represente os valores do povo francês. O código
civil francês era um código racional, um código de liberdade, mas um código económico.
Por isso é que tem aqueles três valores: liberdade, contratos e igualdade. Quanto mais
igual, melhor a hipótese de ter uma mesma função. Somos iguais, porém diferentes. Somos
iguais, mas cada um de nós tem a sua característica, a sua personalidade. Quando
Napoleão tem o projeto pronto, dizem os quatro juristas: Senhor Imperador, esse código
não pode vir de juristas, não é um código do povo, há que servir a assembleia nacional. Ou
seja, a crítica de Savigny é exatamente em cima desse ponto. Não representa um valor
francês, representa o valor Napoleónico.

Então, a codificação tem essa característica das ideologias. O Código Napoleónico,


representativo dos ideais iluministas da Revolução Francesa, ou seja, o código de
burgueses. É marcado pelo individualismo liberal, a vontade, o laicismo (ou seja, o que é
religião é religião, o que é direito civil, é direito civil).

Quando se fala em individualismo liberal, nós temos de ter clara noção de que Napoleão
toma o poder em França num vácuo de lideranças. Em 1789, vem a revolução francesa e
instalam-se a liberdade e a igualdade. Não tinha fraternidade (fraternidade é só em 1848).
Então, quando ele assume, a França está exatamente nessa acefalia social, ou seja, não há
uma cabeça política que pudesse conduzir o povo. O que se tinha ali era apenas a cabeça,
era um governo do terror, o governo da guilhotina. É aí que entra Napoleão: vocês querem
continuarem a matar-se assim, ou vamos dominar o mundo? Com a condução das massas
por um discurso retórico, ele consegue levar os franceses a essas campanhas, que
sabemos bem até onde chegam.

Para Napoleão, colocava-se a questão: como é que se colocaria em rotação um código civil
em alta tecnologia jurídica? É o melhor código que se tinha na época (não existia outro, de
qualquer maneira não tem comparação), a melhor forma de ler o direito romano hoje em
reconstrução. Valores racionais, como fizeram os nossos iluministas, baseados no aumento
da economia, melhores condições a todos, a livre iniciativa. É assim que as primeiras
constituições são chamadas de constituições burguesas. Napoleão, na verdade, quando ele
herda o poder pela acefalia social e política, não precisa legitimar nada: nós já temos o
melhor, porque é do povo francês, é o modelo francês, é o nacionalismo. Então, ele
consegue definir exatamente os pontos que quer: separação entre Estado e Igreja, laicismo,

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a ideia de justificar a lei não em valores religiosos, mas em valores burgueses; encontrar
mais autonomia da vontade, ninguém poder ser obrigado a celebrar contrato.

Cem anos à frente, o BGB, também é partidário do empreendedorismo liberal, marca


valores burgueses, mas tem uma parte diferente: é um código extremamente preciso, é um
código de valores alemães, tem o Volksgeist, é um código de direito privado mais que de
direito civil, tem matérias que são processuais e materiais, confunde-se a acção
jurisdicional com questões de direito privado, ações públicas com ações privadas,
confunde-se algumas matérias de ordem criminal com ordem privada. Porém, tem uma
característica que nenhum outro código tinha na época e não tem até hoje: uma linguagem
técnica mais precisa. É um código que tem uma clareza que não precisa de interpretação.
A lei é tão clara que basta uma leitura para perceber exatamente o que ela quer. As
definições estão presentes na própria lei. O sistema europeu tende a seguir um pouco essa
tecnologia (as diretivas, as transposições de algumas normas, principalmente resoluções).
Então, nesses cem anos de aprimoramento do seu código civil, conseguiram ter uma
técnica legislativa mais precisa. Por isso é que o BGB é considerado uma codificação
tardia, porque aprende exatamente com todos os outros códigos como ser mais claro e
preciso.

Não podíamos deixar de mencionar que o primeiro código civil português de 1867 (código
Seabra) é muito influenciado pelo código Napoleónico. O código Napoleónico em Portugal
é percebido pela ideia de individualismo, os valores burgueses, a ideia de autonomia, a
ideia de ser uma lei do indivíduo para o povo, e ainda uma resistência ao laicismo. Mas, ele
tem alguns pontos que são pontos muito religiosos, ainda baseados em valores
transcendentais. Por exemplo, a ideia católica do casamento - não separe o Homem o que
Deus une - seria impeditiva de separações e divórcios. Não existiam casamentos civis, o
que existia na verdade era o casamento religioso com efeito civil. Ele não legitimava o
direito canónico, transpunha normas. Então, aprendia com o código canónico e reproduzia-
o para dentro do código civil, e é por isso que não há uma raiz laica em alguns institutos.

Aculturação jurídica

Outro ponto é a questão da aculturação jurídica. No Direito Comparado, significa


assimilação dos valores jurídicos do modo de organização da vida em sociedade, próprios
de uma cultura diferente da sua, ou simplesmente a introdução em determinada sociedade,

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no todo ou em parte, do sistema jurídico de uma sociedade diferente. Aculturar significa


substituir uma cultura por outra. Quando falamos de aculturação jurídica, substituímos a
cultura jurídica, retiramos um direito e introduzimos outro.

Os países que formam a família romano-germânica têm um longo histórico de imperialismo


ou colonialismo. São países que lançaram as navegações, as dominações, e entraram no
mercantilismo, em busca de riquezas fora dos seus territórios nacionais: as colónias.
Quando uma metrópole colonizava uma região, ela levava consigo o seu direito, como os
romanos faziam. A partir do momento que levavam o seu direito e o introduziam na
sociedade dominada, cessava ali a frequência romana. Só existia um direito, que era o
direito da metrópole. Qualquer fundamento de direito, por mais fundamentado que se fosse
na sociedade, deixava de existir. Havia a substituição integral do direito da colónia pelo da
colónia. Então, o direito europeu deixava de ser local e passava a ser global até aonde se
chegava as grandes dominações.

A partir da formação das universidades, dá-se o fenómeno das navegações, e a partir do


séc. XV, vê-se a necessidade da razão justificar um movimento de acúmulo de riqueza, de
exploração e aumento do território, capacitação na extração natural; ou seja, as grandes
navegações estimularam toda uma teoria chamada de mercantilismo.

O que é que o mercantilismo tem de tão importante para o direito comparado? Ora, é a
partir da necessidade de se estimular o comércio, e obviamente fortalecer as metrópoles,
que ganha força a colonização. Basicamente, as potências que acabaram por produzir um
direito comum - ius commune - como fundamento da família romano-germânica, repetindo
o diálogo entre os feudos, agora também é transporto para fora da própria Europa
Continental. Agora as metrópoles transportavam esse direito comum onde quer que
colonizassem.

A metrópole, para facilitar essa nova visão de colonização para o desenvolvimento do


comércio, tinha que manter, sobre os domínios colonizados, a sua força. As metrópoles
tinham uma experiência muito próxima, muito viva ainda na sua memória social, todo
sistema humano. Quando se fala em grandes navegações, em colonização, ainda era muito
viva a ideia de manutenção do domínio pela força, e quando uma metrópole se lançava a
essa colonização para desenvolver o mercantilismo, ela levava o seu direito para as
colónias, o que gerou um fenômeno chamado de aculturação jurídica. Pax romanorum,

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manutenção da paz pela força. Como agiam os romanos? Exigiam o cumprimento do seu
direito, mas permitiam que os povos locais seguissem os seus costumes e os seus direitos,
desde que não tivesse conflito com o direito romano. Então, essa ideia é muito viva.

A aculturação jurídica foi até a segunda página. Aproveitou-se a ideia de manter a força
pelo direito, no entanto de não respeitar os direitos locais. Então, quando se fala em
aculturação jurídica, a ideia é de impor aos povos colonizados o direito da metrópole. Havia
uma substituição de direitos: desde os direitos mais rudimentares (ainda de tribos), como
algumas civilizações rudimentares, até aos mais elaborados socialmente com divisões de
trabalho, basicamente como comunitarismo. As chamadas civilizações pré-colombianas
(Aztecas, Maias).

Quando as grandes navegações iniciam, e o objetivo é o mercantilismo, e logo se vê a


colonização como um fim em si mesmo, a necessidade da configuração jurídica, os direitos
das colónias passam a ser os mesmos da metrópole. É uma realidade para todos os
movimentos de colonização. Não tenho mais um direito local, tenho apenas um direito da
metrópole, mas tenho um ponto que é comum a todos esses direitos: a necessidade de
justificar racionalmente o mercantilismo. Eu não posso justificar por outro elemento que não
seja a busca do lucro, o enriquecimento. Agora, quem controla o comércio, controla a
riqueza.

Acontece que as metrópoles passam a ter um problema em si, que é controlar quem faz o
comércio. Quem leva a riqueza ao rei passa a ter mais poder o próprio rei. Leis que criam
muitas regras são leis prejudiciais ao comércio. Livre iniciativa: quanto mais livre, mais
lucro. A aculturação jurídica foi interessantíssima, porque ela cria essa ideia de liberdade:
quanto mais livre melhor. Só que era um problema em si. Eu não preciso de dominação, se
eu sou dominado, eu não sou livre. Portanto, a ideia de liberdade no comércio acaba por se
transformar na liberdade política.

É por isso que durante um momento próprio da história, a partir de mil setecentos e setenta
e seis até mil oitocentos e cinquenta e oito, as principais colónias que deram origem a
países pertencentes a família romano-germânica - as chamadas colónias americanas,
colónias de Novo Mundo - declararam a sua independência. A primeira delas, os Estados
Unidos da América do Norte, em 1776.

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A ideia é que nasce um movimento inspirado na liberdade e o primeiro país a declarar esse
fundamento é os Estados Unidos da América do Norte e entra-se numa onda de libertação
política das colónias americanas, e essa onda vai tomando um continente por um todo: a
América do Norte e a América do Sul. O último país a se libertar é a Argentina em mil
oitocentos e cinquenta e oito.

E nasceu uma frase: América para os americanos. A frase politicamente dita nesse
momento o que simboliza? A ideia é de mudar a origem da dominação. América para os
americanos significa não para quem nasce no continente americano, mas para que nós
tivéssemos uma nova dominação ideológica e política dos Estados Unidos da América do
Norte. A ideia então era de se ter liberdade das antigas metrópoles para se constituir numa
dependência de uma nova metrópole. É um discurso que permitiu o direito comparado
dizer: nós temos um elemento aqui analisado para sabermos quais são os direitos a serem
constituídos a partir de agora, com esses novos países que nasceram a partir da ideologia.
Qual é o direito que vai ser introduzido?

Se a ideia originária do Abraham Lincoln fosse realmente adotar, todos os países seriam
filiados ao Common law, mas não. A aculturação jurídica plantou uma semente: o próprio
direito. Então, o que nasceu ali não foi a ideologia política, foi o direito que foi semeado
durante o mercantilismo. O que a aculturação jurídica faz, a partir do movimento de
independência do século XVIII ao século XIX, é confirmar que os estados americanos
seguiram o direito das metrópoles.

A colónia recém-liberta não seguiu a ideologia política, seguiu a raiz jurídica. Todas essas
ideias revolucionárias racionais são justificadas no Iluminismo. O que é que o iluminismo fez
em França? Acabou com o regime, com a monarquia absolutista. Em Portugal, a mesma
coisa, introduziu a monarquia constitucional. O objetivo é o mesmo, introduzir uma
limitação - a constituição. E ambas influenciadas pela constituição americana. Mas a
Constituição americana tem uma raiz, não é só nos Estados Unidos da América do Norte. O
modelo constitucional americano foi o modelo que serviu para a criação das constituições
europeias. A ideia era aculturação jurídica e uma ideia de liberdade, que leva para a Europa
Continental uma consequência do Iluminismo - a queda do Absolutismo - e para as
colónias, principalmente as americanas, a independência política.

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A palavra mais importante neste tema é liberdade, contra o rei absolutista ou contra a
metrópole exploradora. Precisamos proteger a liberdade. Desde os romanos, só
conseguimos manter a sociedade em ordem pela lei. Ordem aqui significa dizer manter a
sociedade, manter o povo em convívio. Consequência natural, para termos liberdade temos
de ter leis.

O último passo a partir dessa ideia de liberdade é a instauração da codificação. A


aculturação jurídica acaba com a polaridade da tensão entre colónia e metrópole, entre
direitos (só existe um direito). As colónias, quando se libertam, seguem a mesma raiz
jurídica, ou seja, mantêm a identidade do direito da metrópole, agora construíram o seu
modo, mas seguem a mesma ideia e logo em seguida querem garantir a liberdade. Garantir
a liberdade significa criar leis, e aí entramos nessa fase da codificação.

O que é uma codificação? A codificação é o movimento de recompilação das normas


jurídicas, dando publicidade e definindo os direitos e obrigações. Não parece que a
Justiniano teve a mesma sensação quando tentou salvar o direito romano? Vamos
recompilar as normas jurídicas para saber o que os romanos têm de cumprir, quais são os
direitos e obrigações, qual é o direito romano vivo. É o mesmo sentimento, só que agora é
óbvio que não quer ser apenas o direito romano, quer se saber qual é o direito de cada
uma das novas estruturas estatais.

Em 1776, foi a data da independência das treze colónias que deram origem aos Estados
Unidos da América do Norte. Mas, em 1358, já havia iniciado o iluminismo em Portugal. Já
devem ter ouvido falar na Lei da Boa Razão, era a tentativa de o rei dizer que em Portugal
só deve ser aplicado o direito romano naquilo que for aceite pelos costumes locais - o
contrário da pax romanorum.

Liberal é um movimento comum de busca da liberdade garantida na lei, é um sentimento


que foi amadurecendo em cada povo. Cada um teve o seu tempo, cada um teve o seu
apoio. Os franceses tiveram em 1789 a sua revolução francesa e em 1791 a sua primeira
constituição, depois tiveram onze constituições em oitenta anos. Portugal tem seis na sua
história, franceses em oitenta anos tiveram onze. Amadurecer é o seu modo de
democracia. E o que é democracia senão a liberdade na lei?

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Como é que está amadurecemos então? Codificação. Aprendemos com os romanos.


Vamos limpar o ordenamento jurídico e dizer para o povo aquilo que é vigente, qual é a lei
aplicável. E esse é um ponto comum, mas é uma lei de liberdade, porque agora o primeiro
fundamento é limitar o absolutismo, é limitar o governante, e não importa quem seja esse
governante (se é um presidente ou um rei). Só que a liberdade que falamos agora, ela tem
nome e apelido: o nome é liberdade; o apelido é o que a burguesia queria em cada um dos
países. A lei de liberdade então servia para proteger uma classe socio-político-jurídica que
não tinha direitos. Agora a burguesia precisa de ter garantias na lei.

O primeiro código a conseguir ser criado foi o código napoleónico, em 1804. Em 1789,
Revolução Francesa; 1791, primeira constituição francesa, pretendia limitar o poder do rei,
mas não conseguiram. O rei foi escolhido pelos franceses, mas não serviu os interesses
dos franceses. Uma guerra tem custos, alguém tinha que financiar campanha francesa que
prometia um nacionalismo que criaria um novo império romano. Napoleão tinha bons
amigos liberais, mas eles não queriam a liberdade que financiaria os interesses
imperialistas dele.

O sentimento é comum a todos os povos. Só se tinha liberdade por garantia na lei. A lei
deveria ser essa lei de publicidade que definisse o direito vigente, distribuindo direitos e
obrigações. Uma lei para dar garantias a uma classe que não tinha direitos até então, e
agora tinham um imperador que não se preocupava com isso, só queria dominar o mundo
inteiro.

Napoleão dá ordem a quatro juristas franceses para elaborar um código. E os quatro


juristas franceses dizem, senhor Napoleão, aqui está o projeto mais rápido que nos foi
possível concluir. Um código que tem aqui toda a tecnologia de liberdade. Um código que
define exatamente o quão livre é a propriedade, o quão livre é o contrato, e o quão iguais
somos todos nós. Só que esse código tem que ser revisto pelas classes sociopolíticas
francesas e levado à Assembleia Nacional, tem que ser discutido e votado. Nós
identificámos os pontos principais do seu discurso, mas não sabemos se correspondem
aos interesses do povo francês. Napoleão, ao invés, promulga imediatamente o código. Um
código baseado na liberdade, especificamente em duas matérias jurídicas: propriedade e
contratos.

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Quando a campanha francesa chega ao povo germânico, o povo germânico se une pela
primeira vez na história, forma um sentimento nacional e expulsam os exércitos de
Napoleão, e ficam com problema na mão, no momento do Congresso de Viena (entre 1814
e 1815). Vamos continuar unidos pelos sentimentos nacionalistas? Qual o direito aplicável a
essa nova nação? Vamos seguir o código francês?

Savigny começa a reflectir, só que alguém lhe tomou a frente, Thibaut: precisamos manter-
nos unidos porque nunca na nossa história conseguimos ter uma mesma finalidade, ou
seja, nos unirmos para expulsar um inimigo comum. Primeiro ponto. Segundo ponto: o
direito a ser aplicado é como foi dito pelos franceses. A técnica tem que ser a mesma,
vamos criar rápido o nosso código, para não perdemos o sentimento de unidade. No
entanto, as matérias do código têm que ser outras, porque a tradição francesa é diferente
da tradição germânica. Então, nós temos um código que foi pensado por uma única
pessoa, só que o nosso direito privado é um pouco mais extenso: contratos, propriedades,
direito processual, direito administrativo... Então, Thibaut diz: vamos adotar a técnica
francesa, mas a matéria germânica.

Isso faz com que Savigny lance toda uma reflexão e tente impedir que o código que foi
apresentado por Thibaut fosse aprovado: nós realmente precisamos manter os povos
germânicos unidos, criar a federação; mas o nosso código não pode ter a técnica francesa,
porque aquele código só representa os interesses de um déspota. Conclui dizendo o
seguinte: quem vai criar o nosso código é o povo alemão, e não uma comissão de juristas.

O espírito do povo: o povo alemão vai criar o seu código, que vai buscar na sua história
memorial. Nós não precisamos de um modelo francês, o modelo construído sobre o
pensamento de um único déspota, o imperador. Nós vamos criar conforme a experiência
do povo germânico, baseado na consciência popular. Então, o código que podia sair já em
1815 só consegue ser aprovado em 1900. Na técnica legislativa, o código mais claro e
preciso é o código alemão, vai adotar a mesma técnica romana. A lei tem que ser tão clara
que o intérprete não precise interpretá-la, basta ler. Características deste código: clareza,
determinação e garantia da liberdade.

Todos os outros países que pertencem a família romano-germânica criaram os seus


primeiros códigos nesse período (ou pelo menos tentaram). Em Portugal, o primeiro código

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seria em 1867, chamado código de Seabra. Foi idealizado exatamente pela mesma técnica
francesa (de ser recompilado por um único jurista).

A religião não era um problema para os franceses, nem estruturante. Para Portugal também
não era meu problema, mas era estruturante. A codificação portuguesa precisava não
apenas respeitar direitos e interesses burgueses, mas também respeitar direitos e
interesses católicos. Todo o diálogo que o Código de Seabra tinha com a liberdade tinha de
respeitar valores religiosos: família, casamento, patriarcalismo.

Âmbito atual

A partir de agora, conseguimos responder a perguntas simples em direito comparado. A


primeira delas: como é que eu reconheço se um Estado pertence ou não à família romano
germânica? Existem três critérios principais.

a) Europa: sistemas de fácil percepção (relação entre a recepção do Direito Romano e


a presença de codificação)

a.1. Países latinos: Portugal, Espanha, França e Itália


a.2. Países germânicos: Alemanha, Áustria e Suíça
a.3. Países do Benelux: Bélgica, Países Baixos (antiga Holanda) e Luxemburgo
a.4. Países eslavos: Eslováquia, Polônia, República Checa e Rússia
a.5. Países do sudeste: Grécia e Turquia

O primeiro deles, e o mais evidente: sistema europeu e fácil percepção. A forma com que
se recebeu direito ou não, ou seja, a dominação direta, e logo em seguida a presença de
um código. Cingiam-se ao sistema de codificação.

b) Europa: sistemas de difícil percepção (leitura distinta da recepção do Direito


Romano e da codificação embora tenha na lei a principal fonte do Direito, importância
de institutos de segurança social e onbudsman [em proporção, Provedor de Justiça])

b.1. Países nórdicos: Suécia, Noruega, Finlândia, Dinamarca e Islândia

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Segundo grupo, ainda países da Europa, mas com um sistema de difícil percepção. Embora
tenham uma aproximação muito grande com o sistema germânico, em verdade não se
aproximaram tanto assim da Europa Continental. Exemplo: os países nórdicos, Alemanha,
Áustria, Suíça. Têm um senso comunitário maior. Estes quatro países passaram
diretamente para a leitura da lei. Qual é o ato típico deles? Decidirem comunitariamente e
praticar uma determinada conduta internacional e assim agir; por observação, e não por
decisão. A lei é a principal fonte do direito: há constituição, código, eleição democrática,
parlamento. Entretanto, temos duas figuras que são típicas desse sistema. Uma delas é a
alta importância que se dá a segurança social: paga-se muito, mas recebe-se muito do
estado. A outra figura, que é mais importante, a questão do onbudsman - um mediador
social que pretende manter actual e protegido o sistema sociopolítico. É aquele que quer
ouvir tudo que o cidadão tem a dizer, contra ou a favor do Estado, não é do Governo, é do
Estado, não é ideológico, não está vinculado a uma legislatura ou ao Governo.

c) Novos países originados da aculturação jurídica e da colonização:

c.1. Antigas colónias africanas de Portugal, Espanha, França e Bélgica, que preservaram o
sistema de Direito imposto pela metrópole.
c.2. Antigas colónias europeias que sofreram influência de metrópoles que seguem o
sistema romano-germânico (Portugal, Espanha, França e Holanda).

Terceiro grupo: colonização. Novos países originados da aculturação jurídica e da


colonização. Tudo aquilo que foi possível com o movimento de libertação das Américas,
mais à frente foi estendido pra outros regiões, e agora temos a técnica certa para
identificar. Os países que se libertaram, em regra, seguem a mesma estrutura jurídica de
quem o colonizou. Exemplos: África do Sul (pertencia à common law, mas sentia que era
importante ter garantias constitucionais); Etiópia; Marrocos (tem uma cultura rica e típica,
mas durante muito tempo foi colonizado pelos franceses, não se percebe se é direito
islâmico, common law ou baseado no sistema romano-germânico); Líbano (autodenomina-
se como estado muçulmano, mas atua na comunidade internacional como se fosse
pertencente a família romano germânica).

Conceitos fundamentais

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Por maior que seja o apelo de outras áreas ou ramos do direito, o direito comparado tem
uma definição própria para estes quatro institutos:

a. Direito Constituído e Equidade

Equidade: “justiça do caso concreto”, adaptação da regra existente ao caso em concreto,


tendo em conta os critérios de justiça.

O mais difícil de ser percebido é essa relação entre o direito constituído e equidade.
Percebam que eu não coloquei direito estatal, não coloquei direito legal, não coloquei lei,
coloquei direito constituído. O direito constituído é criado por cada Estado diante da sua
própria estrutura, do seu próprio sistema. A forma com que se forma a legislatura, se
escolhe os representantes e as matérias postas a deliberação política são diferentes, todo o
processo legislativo é diferente, os temas que são discutidos são diferentes. O direito
constituído é o direito que foi criado dentro da realidade de cada país.
Equidade, a justiça do caso concreto: adaptar a regra existente a um caso posto em
julgamento, tendo em conta os critérios de justiça. Vou dar um exemplo que nos ajuda a
perceber, roubo é crime? Sim. Todo ladrão terá a mesma pena? Não. Porquê? Não tem
que tratar igual as pessoas? Quem roubou tem que ter a mesma pena? Depende do objeto
roubado e também a intenção do roubo. O juiz, pegando em factos e provas, vai levar em
consideração o que aconteceu, na opinião dele. O direito constituído está lá, todos nós
concordamos que quando se rouba comete-se um crime, concordamos também que a
pena tem que ser proporcional a conduta. Essa ideia é diferente no common law, no direito
islâmico...

A palavra "equidade" é um pouco perigosa. Ela significa (como vem em alguns manuais)
"abrandar o rigor", a força draconiana da lei - "dura lex, sed lex" (dura é a lei, mas é a lei). É
tratar os casos conforme eles são, tratar os factos pelos factos. Essa leitura da equidade só
é verdadeira para a família romano-germânica. Para a common law, a leitura é outra,
"equity", é a interpretação do tribunal sobre a conduta. Uma única palavra em língua
portuguesa inicia duas e densas estruturas jurídicas: a "equitas" para família romano-
germânica; a "equity", para a common law.

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A equidade é muito mais do que simplesmente dizer como diz o código civil português:
«equidade é utilizada nos casos previstos e permitidos em lei». As leituras são diferentes
em Introdução ao Direito, Direito Internacional, Direito Administrativo...

b) Direito Público e Direito Privado

Direito Público: “compreende as normas e os princípios que disciplinam as relações


jurídicas em que uma ou ambas as partes exercem poderes de soberania,” prevalece o
princípio da legalidade.
Direito Privado: “compreende as normas e princípios que têm em vista relações entre
particulares ou entre particulares e entes públicos, mas em que estes intervêm desprovidos
de tais poderes” prevalece o princípio da liberdade.

Em Direito comparado, direito público compreende as normas e os princípios que


disciplinam as relações jurídicas em que uma ou ambas as partes exercem poder de
soberania. Regula-se pelo princípio da legalidade. O direito privado compreende as normas
e princípios que têm em vista relações entre particulares ou entre particulares e entes
públicos, mas em que estes intervêm desprovidos de tais poderes. Rege-se pelo princípio
da liberdade. As partes de um direito público agem em subordinação, enquanto as partes
no direito privado agem em coordenação.

Soberania é sinónimo de poder. Quando uma parte tem mais poder que a outra, ela está
acima e a outra está abaixo. Portanto, quem está acima manda, quem está abaixo obedece;
ou seja, se subordina aquela relação. então, no direito público há uma prevalência do
Estado que defende o poder sobre o particular. Então, o Estado manda e o particular
obedece. Só que o Estado tem que legitimar a sua ordem, ele não pode simplesmente
mandar o que quer, manda o que é permitido. E o que é que define o que é permitido? A
lei? Isso é verdade para família romano-germânica, mas para outros sistemas há outras
fontes. Então, quem define o que é permitido é a principal fonte do direito daquela família
jurídica. A palavra é subordinação. Princípio da legalidade, o dever de respeitar a principal
fonte do direito para aquela família.

E o direito privado, nessa relação de coordenação? Numa relação de coordenação, não


temos uma relação de soberania, os poderes estão ao mesmo nível. As partes envolvidas
se relacionam no mesmo grau de atuação, do mesmo exercício de poder, em igualdade.

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Pode ser o particular, mas também o Estado, quando ele age não como Estado mas como
particular. Se estamos em igualdade, e há uma igualdade no exercício do poder por causa
da coordenação, significa dizer que temos uma plena liberdade.

Há muito tempo criou-se na língua portuguesa uma expressão que dizia: "Devemos tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais". Uma expressão muito comum para
definir inclusive a equidade. Essa expressão é creditada a um constitucionalista brasileiro
chamado Rui Barbosa. Ele cria esta expressão para a Constituição Brasileira de 1891. E daí
constrói o "discurso para os moços", para ensinar aos jovens os valores da igualdade.
Durante quase setenta anos se achou que Rui Barbosa era o criador dessa teoria da
igualdade, só que na verdade ele traduziu mal uma expressão de Aristóteles, contida na
obra "Política", que dizia o seguinte: igualdade é tratar igualmente os iguais e
diferentemente os diferentes. Isso muda totalmente a teoria. Primeiro, a filosofia chama a
expressão do Aristóteles como um paradoxo. Eu não posso tratar o contrário da igualdade
como um fenómeno possível se o primeiro não for. Por exemplo, nós devemos tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais; desigual não é o contrário de igual?
Então não faz sentido, não é lógica, ou seja, o paradoxo que não é lógico, portanto não é
um paradoxo. Agora, eu posso entender que igualdade é um valor e diferença é outro
valor; então, não é contrário. Eu posso entender que nós devamos manter a igualdade, mas
respeitar as diferenças. Isso muda radicalmente toda a teoria filosófica.

Há uma aproximação muito grande entre equidade e igualdade. Tem uma uma escola do
liberalismo político de John Rawls, "Teoria da Justiça". E o fundamento da teoria é uma
frase simples: «justice as fairness». Se forem traduzir "fairness", vão ter outro paradoxo,
porque também quer dizer "justiça". Mas, na academia, sabemos que "fairness" quer dizer
"equidade". Essa liberdade de Rawls, ele só consegue ver em igualdade. E aí ele concorda
com o Rui Barbosa se tivesse interpretado certo Aristóteles: somos todos livres e iguais
para sermos livres. somos iguais na liberdade - a ideia da coordenação.

Ninguém gosta de chegar a uma instituição bancária, fazer um pedido de um crédito e


olharem para si e dizerem: não, não gostei de você, não tem direito ao crédito. Qualquer
um de nós daqui ou da rua, conhecendo ou não o direito, tem direito ao crédito, não pode
me tratar diferente. Pode-me trazer um critério objectivo (por ex.: dentro da teoria do risco,
eu sou perigoso para o empréstimo), aí sim.

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O direito comparado trabalha exatamente essa divisão, quem divide é a soberania, o limite
do poder. Aqui eu tenho alguém com mais poder de outro - Estado - e ali tenho uma
igualdade do poder. Aqui tenho uma legalidade, ou seja, eu só posso fazer aquilo que é a
principal fonte do direito que permite, e ali tenho total liberdade para atuar. Então, esses
são os critérios que nós precisamos ter. Direito constituído e equidade para um lado, por
outro lado direito público e direito privado.

Fontes de direito

O direito constituído tem como principal fundamento as fontes do direito daquele


ordenamento jurídico, caracterizando aquele sistema jurídico e obrigando a uma conduta.
Vamos falar do exemplo da Rússia, que pertence à família jurídica romano-germânica. Tem
uma constituição, que é o principal fundamento da ordem interna, principal fonte do direito
é a lei. Vamos ler o artigo 1º da constituição desse aqui, "A federação russa": «a Rússia é
um estado de direito federal democrático». Tenho certeza de que todos estão convencidos
disso. Um presidente com poder limitado, subordinado ao parlamento, que ouve o tribunal
constitucional. Não é bem isso. Agora, podem dizer o que quiser, o ato dele é legítimo na
constituição. Porque há vinte anos que ele vem preparando esse dia, teve a reforma
profissional, ele legitimou no Tribunal Constitucional a leitura da revisão constitucional e
teve um déficit democrático em mente da última revisão de 2020. O povo foi chamado a
referendo e só compareceram 43%. Nós não chamamos isso de democracia? Referendo,
revisão constitucional, o povo acolhendo, o ato é legítimo. Agora se ele exerce bem o poder
político é outra questão. Uma coisa é o valor do povo, outra coisa é a manipulação do valor
do povo. Eu tenho a certeza de que o povo russo não apoia a campanha de Putin, mas, por
outro lado, os 57% que tinham o poder para exercer não o fizeram.

• A Lei tem maior importância entre as fontes do direito no sistema romano-


germânico, seja pela importância, seja pela prevalência hierárquica.

Se pudéssemos definir uma frase mais importante, a frase seria: a principal fonte do direito
para a família romano-germânica é a lei. Todo o estudo das fontes por direito para a família
romano-germânica parte da lei para nós percebermos o que é a lei.

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Direito Comparado tem os seus conceitos próprios, um deles é o direito constituído. Na


aula anterior, eu não falei em lei, falei em direito constituído; não falei em fontes de direito,
falei em direito constituído, e dali nós tivemos algumas reflexões filosóficas, uma delas se o
costume poderia ser uma fonte de criação da lei. Talvez seja uma fonte de criação da lei,
mas nós cumprimos o costume ou cumprimos a lei? Cumprimos a lei.

São essas reflexões que nós falamos em Direito Comparado, porque nós temos formas
distintas de ver o costume. O importante é nós percebermos a importância da lei: nós não
temos que cumprir o costume, nós temos que cumprir a lei.

Se uma determinada câmara municipal propuser uma lei em que quem, no dia de S.
Martinho, não comer castanhas tem de sair do município. Vai valer o quê, essa lei municipal
ou as normas superiores? O que é que tem força para criar o quê: é o costume que cria
lei? A lei legitima o costume?

• Em Portugal e França, a lei é fonte quase que exclusiva para a criação de direitos;
já a Alemanha confere eficácia equivalente ao costume enquanto fundamento da
norma jurídica.

• Para além da lei, nesta família jurídica são também fontes do Direito: os Tratados e
as demais fontes de Direito Internacional Público, os atos de Direito Comunitário, o
Costume, a Jurisprudência e a Doutrina.

Que lei falamos aqui na família romano-germânica? É muito mais do que simplesmente
criada pelo parlamento. É muito mais do que é aprovado na Assembleia de República, é
muito mais amplo. Começa numa escala, em três níveis: direito internacional, direito
supranacional, direito interno. Então, a lei tem que ser interpretada nestes três níveis.

Tratados e outras fontes de Direito Internacional

Chegamos aqui à DUDH, aprovada em 1948 na Assembleia-Geral das Nações Unidas.


Temos aqui várias disposições: todos os seres humanos nascem livres e iguais; todos têm
direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal... Vamos partir desta expressão: todo o
indivíduo tem direito a vida. Se todo o indivíduo tem direito à vida, então todo o indivíduo
tem direito a não ser condenado à morte. É um direito que pertence a todos nós, oponível a

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qualquer Estado que seja signatário. Só que tem uma coisa chamada Conselho de
Segurança, que tem cinco Estados fundadores que assinaram essa declaração, dos quais
três têm pena de morte. Como é que eles assinam uma declaração universal que tem força
de direito internacional e adotam um procedimento contrário? A resposta é: soft law. Essa
norma trata-se de um direito suave, de um direito que não tem coercibilidade, porque
precisa que o Estado nacionalize a norma, torne essa norma eficaz. Uma das formas é essa,
é trazer a compatibilidade constitucional.

No dia seguinte em que a Rússia invadiu a Ucrânia, o Conselho de Segurança foi


convocado extraordinariamente para uma sessão, e foram votadas algumas proposições. A
primeira delas era se haveria sanção militar à Rússia pela invasão. Por um acaso, nós
tivemos um voto contrário, e não é um voto qualquer, é um voto de qualidade, é um voto de
um veto. É o voto da Federação Russa. E o que acontece no Conselho de Segurança?
Nada. Só que na tarde naquele dia, a Assembleia-Geral se reúne e começam a ser votadas
as primeiras sanções, e nisso a Rússia não tinha controlo. Sanções económicas, sanções
bancárias, sanções de limitação... Todas elas baseadas em tratados internacionais. Porque
é que a Rússia não teve veto ou não teve a possibilidade de fazer contra? Teve de se
sujeitar, porque esses tratados, que são diferentes da DUDH, têm força de hard law, têm
disposições que impõem uma sanção, que a soft law não tem. A soft law é uma norma de
proposição, ela propõe uma conduta. A hard law uma norma de disposição, já tem em si a
sua conduta. Porque é que a Rússia não vai ser julgada pelo TPI? Embora tenha assinado a
DUDH e faça parte da ONU, não ratificou o tratado. Significa que não foi nacionalizado.

Há que se perceber que o mundo está num processo de formação de consciência. A


consciência não é simplesmente pertencer à NATO, pertencer ou não a União Europeia,
pertencem ou não à consciência ambiental, uma consciência climática, não é essa a ideia.
É a consciência de que há que se ter um respeito, um diálogo e uma tolerância. Então, o
mundo está cada vez mais nesse sentido, isso está acima da ONU, mas foi criado pela ONU
também como soft law. Vejam esta resolução da ONU sobre a declaração e o programa de
ação sobre a cultura de paz, dividida em duas partes: a parte A fala sobre a declaração
sobre a cultura de paz, a parte B fala do programa. O art.º 1.º tem quase um alfabeto inteiro
para definir exatamente o que que é a cultura de paz, sobre uma perspectiva que é a
formação da consciência. A Assembleia-Geral fala para os povos, não fala para os Estados,
então essa formação de consciência é em nível de base da sociedade, está a falar para o
indivíduo e não para quem tem a boa vontade política. Princípios da liberdade, justiça,

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democracia, tolerância, solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo


e compreensão para todos os níveis da sociedade e entre as nações. Então, é soft law, mas
é uma soft law com uma certa ideia de interpretação dos ordenamentos jurídicos. O que é
um princípio? É o início. Então, para qualquer sistema jurídico, a sugestão a nível
internacional é seguir esses princípios. O mundo hoje está cada vez mais voltando a uma
busca de princípios, isso é formação de consciência. Então, não se preocupem com o
Conselho de Segurança. Pode mudar o sistema, mas se não mudar a consciência, não
adianta.

• O Direito Internacional se distingue do Direito Interno

Direito Internacional, a importância para o Direito Comparado. É justamente esse equilíbrio


entre hard law e soft law diante do ordenamento jurídico interno. A soft law é uma
proposição, é dizer: olha país, você que é da família romano-germânica, tem que criar uma
lei para cumprir essa disposição. Já assinou essa lei? Você é obrigado. Como é que fica o
ordenamento jurídico? Em muitos casos, dependendo do país em si, é necessário ter uma
adaptação, é o que se chama nacionalizar esse direito internacional. Ainda que seja hard
law, é apenas para emitir o procedimento, o cumprimento já é no ato da assinatura. É por
isso que quando falamos do direito português e do direito à vida, e fazermos referência a
declaração universal de direitos humanos, para nós é inconcebível não respeitar o direito a
vida, porque a constituição portuguesa é clara: é proibida a pena de morte. Então, para nós
é claro. Agora, para os EUA não é, porque não tem essa garantia. Sabem como é que eles
chamam direitos individuais? Civil rights. Não tem nada a ver com os nossos direitos civis.
O mais indicado seria chamar social rights. Sabem porque é que eles não chamam de
direitos sociais? Porque é muito socialista, é muito russo. Então eles preferem chamar civil
rights porquê? A ideia de civil é uma garantia da lei, direitos individuais. Para nós virou
código civil, para eles virou um direito fundamental e individual, totalmente diferente.

A Constituição dos Estados Unidos da América do Norte tem sete artigos e vinte e sete
emendas, a mesma constituição desde 1787. Os direitos deles são mais individuais, mais
pontuais, são direitos que não causam constrangimentos entre os Estados-membros
federados. A liberdade é o principal princípio dos Estados Unidos. A liberdade deles
significa exatamente fazer tudo que quero.

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• A vigência das normas de Direito Internacional é assegurada por texto


constituicional, exemplos: arts. 29 e 59 da Lei Fundamental Alemã, art. 55 da
Constituição Francesa e art. 8.º da Constituição Portuguesa.

• Sistema de recepção, por força do qual as normas e os princípios de Direito


Internacional vigoram na ordem interna enquanto tais sem se transformarem em
Direito Interno.

A Constituição é uma norma fundamental dessa legitimação do direito internacional, é o


filtro de entrada. Vamos imaginar que o Presidente Marcelo assinava um tratado
internacional que permitiria a pena de morte em Portugal. Como é que esse tratado seria
cumprido em Portugal? Não seria. Por isso é hierarquia. Quem filtrou a possibilidade de
cumprir um tratado internacional? A constituição. E onde está a constituição? No direito
interno. Comparando com a common law, fica mais difícil ainda. Então eu preciso saber se
esse tratado de direito internacional é soft law ou hard law. Logo em seguida, perceber
como é que ele vai ser respeitado no direito interno do Estado.

Atos de Direito Comunitário (Direito Supranacional)


• Normas emanadas de organizações supranacionais (p.ex., União Europeia).
• Não é tratada como uma norma de Direito Internacional Público, segundo Dário
Vicente, pois:
o Ideal de solidariedade ou coesão entre os Estados membros das
organizações que emanam.
o Adotadas ou modificadas por órgãos para os quais são transferidas, ou nos
que são delegadas, competências originariamente pertencentes aos
Estados.
o Dotadas de primazia sobre os direitos nacionais, e não raro, aplicabilidade
direta.

Segundo ponto, direito supranacional. Por vezes aparece a expressão direito comunitário,
quase como sinónimo de direito supranacional. Cada vez mais a expressão "comunitário"
está a cair em desuso, cada vez mais se usa a expressão "supranacional". O direito
supranacional é aquele que está acima do Estado, mas não é internacional.

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O único exemplo que nós temos é a União Europeia, porque tem instituições que são
supranacionais, como o Parlamento Europeu. Vamos fazer aqui uma reflexão rápida. Já se
votou em Portugal para escolha de determinados europeus? Em Portugal já se votou para
escolher um representante na Assembleia Geral da ONU? Não. Os senhores são
representados no Parlamento Europeu, mas não são representados na Assembleia Geral.
Então, a primeira característica é essa: o direito supranacional tem uma representação
direta do Estado. Por outro lado, no direito internacional essa representação é indireta, vem
pela vontade do governo. O segundo ponto é que, quando uma decisão é tomada no
âmbito do direito supranacional, ela já tem uma probabilidade de ser respeitada e
cumprida, porque tem uma estrutura supranacional correlata com a estrutura do Estado. O
Parlamento Europeu se assemelha no caso português a Assembleia da República. Então,
sabemos que a lei que é votada e aprovada na Assembleia da República, sancionada pelo
Presidente da República, passa pelo conselho de ministro e tem que ser concluído. Então,
as leis que são votadas na Assembleia da República, e preenchem a formalidade legal, tem
cumprimento obrigatório. O que é votado no Parlamento Europeu tem a mesma forma.
Portugal tem um filtro, por causa do semipresidencialismo. Basicamente, o que temos é
essencialmente chamado transposição.

No direito internacional, por vezes são aprovadas leis ilógicas. Como pode um Estado
assinar proteção à vida quanto tem a pena de morte? Como pode um Estado, constituído
como garantidor da paz e da segurança, declarar guerra? Porque a própria lei garante essa
estabilidade. E no parlamento europeu? Não gostamos daquela gestão, o que podemos
fazer? Vota diferente.

Outros modelos que às vezes aparecem não são modelos de direitos internacional, como
os modelos econômicos ou monetários.

Por exemplo, a MERCOSUL foi criada como cópia imperfeita da comunidade europeia.
Imperfeita porque quatro países que tinham as economias mais sólidas na América do Sul,
percebendo a necessidade da segurança e maior participação no mercado internacional,
resolveram se reunir para criar mecanismos de maior iniciativa económica, maior produção
de riqueza, melhor visibilidade, representatividade perante a comunidade internacional.
Aquelas fases que conhecemos bem: uma união econômica, uma união aduaneira e depois
uma união política. A MERCOSUL não conseguiu nem entrar na primeira.

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Os quatro países fundadores - Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai - reuniram-se e


esqueceram-se que tinha que ter um elemento básico. Primeiro, diversidade cultural: são
países que têm praticamente a mesma cultura e se confunde muito. O único país tem a sua
variação, isso é natural e tem que ser assim, mas não significava um respeito cultural,
porque nunca foi tenso na região, como é necessário na Europa.

Segundo ponto, é necessário desenvolvimento uniforme do continente. Que significa dizer?


Que a divisão das economias, elas têm que ser equacionadas pra que haja uma
compensação. Quem produz da agricultura, que continue a produzir, mas que receba do
industrial, e vice-versa. O que é típico da sua economia. Depois temos os equilíbrios
monetários: valor de salário mínimo, contabilidade da inflação, produção de moeda,
equação do produto interno bruto... Mas é necessário que tenhamos essa desproporção
entre a agricultura e a indústria, para que possamos equilibrar. No Mercosul, eram quatro
economias exatamente iguais.

Não temos lá, então vamos criar algo que tenha lá, vamos trazer os EUA para a conversa.
Aí virou a escravidão, havia uma desproporção muito grande. A maior economia do mundo,
a diversidade cultural, a diferença jurídica. Todos pertencem à família romano-germânica,
Estados Unidos da América do Norte pertence à common law. Qual é a fonte do direito
aplicado nas relações: a lei ou a jurisprudência. E agora?

Não há mal, vamos tentar. Área de livre comércio das Américas. Aqui temos o Free Tax,
cada estado é livre para definir a sua língua. O Brasil levanta a mão e diz: olha, eu tenho 31
tributos, vocês têm um só, como vamos negociar? Eu não consigo entender como é que
vocês têm o mesmo tributo para o mesmo fim e o povo não reclama.

Cinco países reúnem-se e dizem que precisam de criar uma alternativa ao capitalismo dos
Estados Unidos da América do Norte. Nós temos cinco economias diferentes que podem
por interesse e por diálogo se aproximar, tornam-se os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China,
África do Sul), procurando definir elementos de uma economia que pudesse fazer frente à
economia dos EUA. Se já era difícil aproximar o civil law do common law, e agora? Como
vai avançar um sistema com essas características?

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O único país que foi fiel ao que prometeu foi a China, porque desde 1971 apresentou ao
mundo o que faria da economia e tem feito: produção a baixo custo e exportação
internacional.

O direito supranacional hoje é quase que exclusivo desse grupo de direitos que formam a
União Europeia. Os outros modelos que seguiram o mesmo caminho não conseguiram
avançar, estão na primeira fase (se é que conseguiram chegar a essa primeira fase). Então,
direito supranacional tem essa característica de ficar quase restrito à União Europeia.
Segundo, tem uma característica de representação para além do Estado: os Estados vêem-
se representados nessa estrutura, mas não podemos dizer que a União Europeia é um
Estado. Se não podemos dizer que a União Europeia é um Estado, porque falamos que a
União Europeia é uma federação? Então não é uma federação, não é só federação? Sabem
por que que não dá para definirmos? Porque para nós definirmos há que se ter uma
constituição. União Europeia não tem uma constituição; tem um tratado, que segundo eles
tem natureza jurídica de constituição. Ou seja, não nos permite dizer se é um Estado, se
tem uma constituição; não nos permite sequer distribuir o sistema do estado, se é uma
federação ou uma constituição; mas existe, de fato.

Lei

• É a principal fonte do direito para a família jurídica romano-germânica; por agora,


complementa-se, é representada pela prevalência de uma constituição escrita no
topo da ordem jurídica interna, como se vê, por exemplo:
o Constituição da República Federal da Alemanha de 1949 (alterada pelo
Tratado de Unificação de 1990);
o Constituição francesa de 1958; e,
o Constituição portuguesa de 1976, com suas revisões constitucionais.
• Observa-se que todas estas constituições incluem: as regras fundamentais sobre a
organização do poder político, baseado numa concepção de democracia
representativa; e um elenco de direitos fundamentais.
• Na relação constitucional, há que respeitar a “supremacia da norma constitucional”
garantida pelo controle de constitucionalidade exercida por órgãos dotados de
competência e poderes específicos (Conselho Constitucional e Tribunal
Constitucional).

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• Como definição, para José Joaquim Gomes Canotilho: “Constituição moderna


entende-se a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de
um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os
limites do poder político. Podemos desdobrar este conceito de forma a captarmos
as dimensões que ele incorpora: (1) ordenação jurídico-política plasmada num
documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos
fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político
segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado.”

Qual a principal lei do ordenamento jurídico português? Constituição. A principal lei do


Estado que pertença a família romano-germânica é a constituição. Então, significa dizer que
no direito interno temos que subdividir também a nossa análise da lei. No direito interno,
existe a constituição e as leis infraconstitucionais.

Constituição é a principal lei do Estado. É ela que vai definir a forma como o direito
internacional entra no ordenamento jurídico interno. Só que nós conseguimos observar que
as normas de direito internacional na Alemanha têm que seguir as regras do art.º 29.º e
59.º. De igual modo, o art.º 55.º da Constituição Francesa define essas regras, e em
Portugal é o art.º 8.º.

Uma última informação sobre o direito interno. Esse direito interno tem duas regras em
relação às leis infraconstitucionais. A primeira: a lei tem que ser compatível com a
constituição, não pode ser desconforme, porque se o for é declarada inconstitucional.
Segundo ponto, as leis infraconstitucionais devem ser criadas conforme o procedimento
legislativo legalmente estabelecido e por parlamentos constitucionalmente autorizados.

Aí é que está a complexidade da lei para a família romano-germânica. São muitas as regras
que regulamentam a criação das leis e o dever de cumprimento no ordenamento interno.
Desde a complexidade de normas de predisposição (soft law), até às normas dispositivas
(hard law), passando pela sua relação com a supranacionalidade... até chegar àquele ponto
que é comum a todos os estados - europeus ou não - que é a ideia de uma divisão do
ordenamento jurídico interno em dois níveis: a ordem constitucional e a ordem
infraconstitucional.

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2.5.d. Costume (prática gerada espontaneamente pelas forças sociais e ainda,


segundo alguns autores, de forma inconsciente)
• Normalmente atribui-se escassa importância ao Costume enquanto fonte do Direito,
mas como afirmado, nos sistemas jurídicos em comparação assume diferente
importância (França e Portugal, por um lado; e, Alemanhã no outro).
• Na França a Lei de aprovação do Code Civil revogou expressamente o direito
consuetudinário anterior.
• Em Portugal a tradição do positivismo legalista emerge do Código Civil e Comercial.
• Na Alemanha, segundo Carlos Ferreira e Jorge Morais, a Escola Histórica deixou
raízes favoráveis ao costume (art. 2.º da Lei de Introdução ao BGB) que dá valor de
lei a “qualquer norma jurídica”, e parece reconhecer o costume como fonte do
Direito, ainda que por equiparação à lei, implicitamente tomada como paradigma da
expressão do direito.

No estudo das fontes do direito em Direito Comparado, há uma leitura um pouco diferente
das propostas pelas outras unidades curriculares. Começamos a ver essa diferença numa
leitura crítica sobre o chamado direito constituído. E toda aquela reflexão sobre a ideia do
direito se formar a partir da realidade de cada povo, e que uma leitura de direito
companheiro pressupõe uma mesma raiz. O que que isso quer dizer?

Para o direito comparado, a principal fonte do direito é a lei. O costume não tem força para
criar o direito constituído? Nós precisamos sempre ter uma leitura da lei como a mais forte
do direito. Sabemos que existe o costume, mas, para o Direito Comparado, a lei é a
principal fonte de direito. Mas o costume é fonte de direito para o Direito Comparado ou
não é? Depende!

O direito interno de um Estado não se forma de uma hora para outra, vai amadurecendo
conforme o próprio Estado se forma, ele vai se adaptando à estrutura social. Tem essas
características: mutabilidade e adaptabilidade.

Então, para o Direito Comparado, o costume geralmente, tem escassa importância, ou seja,
geralmente, não é reconhecido enquanto fonte do direito, mas em alguns sistemas, em
comparação, tem mais importância do que noutros. E, rapidamente, nós conseguimos
perceber o que se fala.

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Porque é que o nome da família é romano-germânica? Tem algo no germânico que ajuda a
compor o nome dessa família. Dos romanos, trouxemos a importância da lei, a codificação,
o corpus juris civilis; dos germânicos, trouxemos a vontade, o espírito do povo, consagrado
no costume. Só que o costume germânico não é mais romano, é aquela ideia de todos se
sentirem parte do todo. Não é individualidade que nós temos na raiz da doutrina, interpretar
a lei para tirar os interesses individuais; é a ideia de uma formação coletiva, de um senso
comunitário. Então, aqui é que faz sentido essa afirmação. Porque, se realmente fosse só a
lei, e os costumes de nada servissem para a formação da lei, para que teríamos a distinção
entre família romano-germânica? Algo tem de ter de diferente. O grande ponto é
exatamente esse: é a forma como a própria lei reconhece a força dos costumes.

E como é que ela reconhece? Temos três exemplos que para nós são referências:

• O primeiro deles, na França. Como é que a lei francesa reconhece a força do costume
Na França, a lei da aprovação do código civil revogou expressamente o direito
consuetudinário. Então, o costume já não é mais parte integrante das fontes do direito.

• Segundo, em Portugal, a tradição positivista-legalista emerge do código civil e do código


comercial. Costume é ou não é fonte do direito em Portugal? Para o direito comparado,
não é. Pronto. O positivismo é a ligação direta à norma escrita, criada por uma
autoridade competente. E se não é qualquer positivismo, é o legalista, significa dizer que
é o que está na lei. Se a justificação do costume ser reconhecido em Portugal enquanto
fonte, é porque isso é autorizado na lei... O direito comparado vê essa leitura com
ressalvas, ou seja, o costume na verdade não é garantido em lei. Entretanto, entre
algumas questões, o costume ainda é ao menos uma fonte, digamos assim, em
reconhecimento: em matéria de direito civil ou de direito comercial, e nada mais.

O direito comparado é uma ciência diferente, trabalha com outros elementos, como o
elemento da comparação. Então, eu não posso apenas pegar o que é a doutrina interna
portuguesa e interpor a doutrina externa. Se eu quiser estudar direito comparado, eu tenho
que fazer referência a atos comparativos. Então, nunca um comparatista vai tentar dizer se
o sistema português está certo ou errado. É outra forma de ver no mesmo. Não se trata
aqui de antepor o direito comparado a direito civil, é apenas ter cuidado quando se afirma
que o costume é fonte do direito para o direito comparado. Existe algo que nunca fez parte
da história do direito português, que é o costume comunitário.

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Se nós abrirmos hoje os jornais nós vamos ver assim: “Turquia veta a entrada da Finlândia
e Suécia na OTAN”. O que senhor Erdoğan tem contra os finlandeses e os suecos? Nada,
ele tem contra os curdos. Não tem nada de comunitário nisso. Só que tratamos de uma
norma internacional, a norma que regulamenta a OTAN. Isso quer dizer que isso não é
perceptível num tipo de reflexão germânica. A ideia é: "é bom para todos? Não interessa o
que eu acho, deixa de achar, põe assim e pronto".

Kant quando cria a sua reflexão, ele acerta em três categorias. A terceira categoria chama-
se aptidão da alma, aquele senso do certo e errado que cada um tem dentro de si e nós
não sabemos de onde vem. Antes de sermos religiosos ou sermos membros de uma
família, nós já sabemos que é certo e errado. Podemos não querer cumprir, mas sabemos o
que é, e isso é individual. É por isso que a teoria filosófica de Kant é totalmente baseada na
liberdade individual do ser. E isso é contrário a toda lógica germânica. Você pode legitimar
conduta, mas não a norma, percebe? E aonde vamos chegar? É aquela ideia que Kant diz
assim: “Aja de tal forma que a sua conduta possa e deva ser repetida em sociedade” -
imperativo categórico. O que é isso? Eu não sei. Como comparatista, não sei. Se eu
analisar só o sistema romano-germânico, em Portugal a conduta é de um jeito, na
Alemanha é de outro, na Itália é de outro. Cada um tem um elemento que não é ponderado
pela individualidade Kantiana, essa universalidade - a relação do indivíduo com o todo. Os
sistemas são o que são, mas é difícil para um latino ver a lógica germânica do eu preciso
ser parte do todo.

A ideia de uma filosofia mais universalista ou mais individual, vamos sempre concordar que
impôs uma conduta, criou uma norma de comportamento, é norma. Se é norma e vem
sendo repetida, é costume. Agora, o que eu estou tentando trabalhar é a proposição do
direito comparado, não é esse elemento de filosofia, não é nem pela filosofia Kantiana e
muito menos pela filosofia hermenêutica constitucional diante de um direito internacional. A
pergunta é simples: para o Direito Comparado o costume é fonte do direito? Quem vai
definir exatamente um sistema jurídico diante das proposições de comparação entre esses
elementos. Quais são as comparações? É partir de uma lógica romana de garantia de
direitos na lei (e não importa a minha interpretação da lei, a lei é a lei, “dura lex, sed lex”) e,
por outro lado, a origem da lei, a justificação da conduta individual diante do elemento
comunitário, que é o costume comunitário germânico.

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Eu saio dos dois extremos. Eu saio do latino, eu só cumpro a lei porque é a lei, e temos
toda aquela repercussão das críticas que vimos do Eugen Ehrlich. Diferente do germânico,
que cumpre a lei porque eles são fontes de produção da lei (não foi o avô dele que criou a
lei, é ele que cria a lei).

Vamos chegar a meio do caminho. Eu sigo da lei, é uma assembleia república dizendo o
que eu tenho que fazer. Posso não concordar com a lei, mas tenho que cumprir. Está
insatisfeito, muda a legislatura, vota direito. É a forma que nós temos democraticamente de
mudar isso. Não gostou da lei, mas a lei é legal (leia-se aqui constitucionalmente aceita,
conforme a Constituição), tem que cumprir. Então, eu venho daqui de uma ordem de cima
para baixo, ordem de soberania: eu estou abaixo, eu sou povo. O germânico vai de baixo
para cima: não interessa o que o Reichstag quer, interessa o que o povo diz.

Falámos em micro-comparação e macro-comparação. Se eu pego no direito criminal, eu


não posso dizer que tem costume no sistema português. Mas se eu pego no direito civil ou
comercial, eu posso dizer que tem. Macro-comparação é o sistema como um todo. Então,
eu não posso dizer que no sistema português o costume é uma fonte do direito, porque só
tem aderência nessas duas áreas. Se for micro-comparação, com o sistema francês, posso.

Na Alemanha, o costume é fonte de direito. Não importa se é histórico ou não, porque está
na lei. O art.º 2.º do BGB garante o costume como fonte. Não tem como não ser fonte, tem
um princípio que o reconhece como tal, o volksgeist. Se é de hoje ou de ontem, se é da
escola histórica ou da escola das Pandectas, isso não interessa. O Direito Comparado quer
apenas ter elementos para afirmar se é fonte ou não. Ele só pode afirmar em comparação
diante do sistema com maior ou menor grau de importância ou força diante da lei.

O common law tem um ponto de ruptura histórico e, a partir do século XI, ele se forma
totalmente diferente da família romano-germânica. Nós conseguimos inclusive ter tantas
teorias de common law como o número de intérpretes do direito comparado naqueles
países. Alguns entendem que não tem sequer uma influência romana, outros entendem
que, se não fosse o sistema romano, não teria autoridade o parlamento. Alguns entendem
que não houve influência do cristianismo, outros entendem que, se não fosse o catolicismo,
não teria igreja anglicana. Uns dizem que existe a influência do cristianismo, mas não do
catolicismo, porque nunca chegou com força, porque os povos que lá habitavam eram os
bárbaros, portanto ateus; mas os romanos, que ficaram e levaram a força do direito romano

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para lá, eram católicos. Então, é muito mais complexa a história de formação do common
law do que é do sistema romano germânico.

É por isso que no sistema "roman case law" (ou roman common law), eles fogem do
romano, porque eles têm aversão ao statutory law (codificação, direito escrito, fundamento
do direito romano).

Eu posso comparar dois países da família romano-germânica entre si, mas eu não posso
comparar, com tamanha amplitude, um país da família romano-germânica com um país da
common law, não tenho elementos para isso. A principal fonte do direito não me permite
comparar. Para a família romano-germânica, é a lei. Para o common law (direito comum), é
a jurisprudência. Então, o que vou comparar? O parlamento com os tribunais.

É assim na Inglaterra, e é assim nos Estados Unidos, e a estrutura deles é diferente da


estrutura inglesa. Como que é diferente? Lá eu posso comparar. Agora, eu não posso por
exemplo comparar o parlamento quando vai julgar um caso de interesse local do direito
inglês, e ali parte de um "sensitivity case" (caso social) que exige a criação de um estatuto
por detrás, com a forma com que a Assembleia da República acolhe uma petição pública.
Lá foi recebido por um juiz - pela jurisdiction - e aqui foi um deputado - legiferação. Eu não
tenho como comparar a força de julgar com a força de criar lei, é diferente.

2.5.e. Jurisprudência
• Crise conceitual (Ferreira de Almeida e Morais Carvalho): O valor da jurisprudência
enquanto fonte do direito é matéria de discussão e opiniões divididas, sendo as
principais:

Jurisprudência em Portugal: qualquer decisão do caso concreto no tribunal é


jurisprudência? Não, tem que ser feita com base em normas, tem que ser uma decisão
jurídica. O Tribunal da Relação de Lisboa pode ter uma jurisprudência diferente do Tribunal
da Relação do Porto? Sim. E agora, vamos cumprir o quê? Mesmo problema jurídico, caso
concreto, mesma situação jurídica dentro do mesmo fundamento legal, mesmo artigo de lei,
mesmo código, mesmo problema jurídico. Por cada juiz decide conforme a sua
interpretação, ele não é obrigado a seguir uma jurisprudência, pode ser aconselhado
naquela linha de pensamento dos seus colegas, mas não é obrigado por lei a seguir a
mesma linha de raciocínio. pode ter um raciocínio diferente baseado noutras normas que

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os seus colegas podem não ter analisado. Se a decisão dos tribunais não é vinculativa, é o
contrário, persuasiva: ela pretende criar com fundamento, mas não obriga ao cumprimento.
E como é que fica a justiça? Querem o tratamento igual? Se não concordar, vamos subir
para o tribunal superior. Aí já é a decisão final, já não há hipótese de recursos. Terceiro
grau de decisão, integração: vamos saber qual a melhor interpretação da norma. O tribunal
tem que tomar a decisão e uniformizar os dois casos (a jurisprudência). O que que
acontece com os processos abaixo? O Tribunal Superior tem o dever de uniformizar a
melhor interpretação da lei para aquele caso concreto, e a partir daquele momento passa a
ser (mais uma vez) uma presunção de interpretação, continua a ser persuasiva. Só o
Tribunal Constitucional tem a força obrigatória.

É justamente a crise que acontece em todos os países da família romano-germânica. Na


pergunta sobre se o costume seria uma fonte de direito, só tínhamos uma resposta, que era
“depende”. Aqui nós temos três possibilidades:

• 1ª Posição (Dominante) é que a jurisprudência não é fonte do direito, pois as


decisões dos tribunais só encontram aplicação no caso em concreto, valem
como meio mediato ou derivado de conhecimento do direito. Ou seja, a
jurisprudência não cria o direito, a jurisprudência interpreta a lei e diz qual é o
direito anteriormente criado na lei.

• 2ª Posição. Quando a jurisprudência uniforme constitui precedente,


meramente persuasivo, mas em certas matérias, é reconhecida como fonte do
direito uma vez que interpreta, desenvolve ou completa normas legais. Quer
dizer que às vezes a legislação precisa da atuação do juiz para a adequação da
norma. Não há interpretação, é adequação. Quando não temos a norma, o tribunal
pode interpretar de uma forma em favor da sociedade, estender os efeitos da norma
existente.

• 3ª Posição. Reconhece que a jurisprudência predominante assume o valor de


costume jurisprudencial. Não existe no direito tradicional, é uma figura que é
criada exatamente da observação em comparação de sistemas, diante da mutação
do princípio da liberdade de julgar do juiz.

o A ideia do ativismo judicial é o juiz, reconhecendo a sua importância,


pacificar os conflitos sociais, criar a norma para o caso concreto. Criam uma

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norma jurídica, que para eles tem a força de ser repetida em casos
semelhantes, para que se tenha o mesmo resultado ou resultado
semelhante. A ideia de não existir a norma ou existir a norma numa outra
interpretação legislativa, essa norma é reinterpretada ou criada a proposição
para resolver o caso concreto. Na família romano-germânica, é fundamental
que se cumpra a lei, porque a principal fonte do direito, e o primeiro que tem
que cumprir a lei é o juiz. E o juiz para julgar tem que encontrar de entre as
normas jurídicas aquela que se aplica ao caso concreto. E se não existir a
lei? Eu posso julgar a causa através de jurisprudência. E se há
jurisprudência, de onde vem, se ela tem que ser justificada pela lei? Se não
existir lei, o correto seria reconhecer a causa como juridicamente impossível.
O juiz não pode criar lei, ele tem que identificar a lei existente, e se não
existir lei, a causa juridicamente é impossível. O juiz, quando cria essa lei no
caso concreto, está indo além do seu poder de julgar. E nós sabemos que a
lei tem uma força vinculante, obriga o comprimento. Então, significa dizer
que se o juiz cria essa lei e que ele vai se obrigar a cumprir, e essa lei nada
mais é do que a sua própria decisão, nós temos ali algo que vai se repetir,
para resolver casos semelhantes. Forma o costume. Então, o ativismo
judicial tem essa característica, o juiz indo além daquilo que é a ratio legis,
estendendo os seus efeitos.

o Uma segunda forma é chamada a judicialização da política. Um dos


problemas da democracia moderna é a fragilidade do processo democrático.
Os representantes do povo, para chegarem às assembleias, precisam de ser
eleitos. Para serem eleitos precisam dos votos. Para receberem os votos,
eles têm que ser responsáveis com o seu mandato político representativo,
tem que entregar ao seu eleitor aquilo que ele prometeu. Por exemplo, um
deputado eleito com discurso religioso obviamente não vai votar numa lei
que seja contrária às convicções religiosas dele, porque senão ele perde
votos dos seus eleitores. Todas as religiões têm em alta conta a vida,
portanto é muito difícil para uma bancada política religiosa aceitar um
deputado que seja a favor da eutanásia ou do aborto. Por mais que o
deputado queira votar a favor, ele não vai votar, porque fica com medo de
não ser reeleito. Esse é um problema da democracia. Só que a lei tem que
ser criada dizendo: eu preciso de uma autorização para a eutanásia, porque

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a pessoa está nessas condições de sofrimento da mãe, já está desenganada,


e preenche todos os requisitos da Eutanásia. Um juiz consciente diria, onde
está a lei da eutanásia? Não há lei, então eu não posso deferir à eutanásia.
Como é que ele vai julgar, então? Com base na constituição portuguesa.
Agora, imagina o outro que diz: eu não vou deixar a pessoa nesse
sofrimento, eu declaro a morte; não vou ser eleito, não vou ser preso por
isso, eu reconheço a eutanásia. Tem liberdade de julgar, profere essa
decisão. É a chamada judicialização da política. Os parlamentos são frágeis
para determinados temas, só que o problema jurídico é concreto e tem que
ser resolvido. Quem que vai resolver? Se não posso fazer por mim, preciso
do órgão judicial. O correcto é analisar a lei, e se não tem lei eu não vou
definir a norma. Mas um outro juiz diz que não tem que ter a lei, vai forçar o
parlamento, deferindo as ordens. E não é responsabilizado. Ele cria uma
decisão e não há recurso, porque ninguém recorre. O tribunal vai agir por si,
ele tem que ser provocado, ou seja, alguém tem que recorrer da decisão.

Portugal não tem um ativismo judicial a não ser de um bom ativismo de contribuir para o
fortalecimento das leis. Só que tem um outro sistema que dá uma autoridade para os juízes
no nível mais alto da organização judiciária, para criar além do caso concreto, a partir da
interpretação da constituição.

No Brasil, «O Supremo Tribunal Federal poderá de ofício por provocação mediante decisão
de dois terços dos seus membros após deliberar as decisões sobre matéria constitucional,
aprovar súmula, que a partir de sua publicação na imprensa terá efeito vinculante em
relação aos demais órgãos do poder judiciário e administração pública direta e indireta nas
esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder a sua revisão ou cancelamento
da forma estabelecida em lei» (Art.º 103.º da CRFB 1988). Ou seja, esse artigo instituiu a
chamada "súmula vinculante", que é um poder normativo dado aos conselheiros do tribunal
constitucional brasileiro (ministros do Supremo Tribunal Federal) de criarem a lei do caso
concreto mediante a interpretação da norma constitucional, existindo ou não lei. É quase
como o art.º 2.º do Código Civil Português, aqueles assentos com força obrigatória
vinculante, que foi declarado inconstitucional e foi revogado. Uma parte da inspiração foi
bastante portuguesa, a outra parte foi a chamada "jurisprudência vinculante" da Suprema
Corte dos Estados Unidos da América, que pertence ao common law. Então, basicamente,
essa súmula vinculante é um dos poucos exemplos em prática que nós temos desde o

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costume jurisprudencial, que mais caracteriza o ativismo judicial, e mais ainda motiva a
judicialização da política.

Súmula vinculante, nº1: «Ofende a garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão
que, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a eficácia
de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei Complementar nº 110/2001». O
juiz em cada um dos 27 Estados (incluindo o Distrito Federal) e os tribunais regionais
federais são obrigados nas suas decisões e a aplicar estas duas leis.

Característica da jurisprudência:
• Encerra o direito do caso concreto com o tratamento semelhante a casos similares.
• Nas ordens jurídicas mais evidentes não existem precedentes judicias obrigatórios.
• Evidente importância para o desenvolvimento do direito legislado com o
fortalecimento da interpretação e aplicação das normas jurídicas no mesmo sentido
quando diante de casos semelhantes.

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Família do common law

Para os países da common law, parte-se de uma mesma origem histórica, mas conforme
ele se desenvolve em cada país vai ganhando características próprias, criando vários
sistemas menores. Vamos estudar apenas dois desses sistemas: o sistema inglês e o
sistema dos Estados Unidos da América. São os sistemas mais antagónicos possíveis.

Direito Inglês

Para entendermos como se forma o direito inglês, é preciso ter a clara ideia de que ele se
forma de uma realidade distinta da família romano-germânica. A família romano-germânica
forma-se pela autoridade da lei, definida por uma instituição político-jurídica. O Common
Law foca-se na experiência dos tribunais ingleses a partir do século XI. Em alguma medida,
para todos os Estados que seguem a Common Law, a lei é uma fonte anormal, atípica, de
criação de direito. Não significa dizer que a lei não seja uma fonte, mas não é tão
importante como para a família romano-germânica.

O que é que só o direito em inglês tem? Quais são as suas características singulares?

• Diferentemente da família Romano-Germânica, no common law o direito nasce da


vida social desvelada pelos tribunais, ou seja, da observação dos tribunais sobre a
realidade social. É um direito de baixo para cima. Não é como na família romano-
germânica, de um parlamento, de um senado, de uma assembleia de cima para
baixo.
• O direito inglês formou-se passo a passo em pequenos ajustes feitos na criação da
base normativa, o que permite afirmar que é fruto de sua história e cresceu em vez
de ser criado. O direito da common law, especificamente o direito inglês (que foi o
primeiro a ser registado em pertencer a essa família), está em constante
desenvolvimento (não quer dizer que esteja em constante progresso), está sempre
em movimento.

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Todos nós acompanhamos o Brexit. Um dos motivos da Inglaterra da Escócia e da Irlanda


saírem da União Europeia foi a imposição de se criar um Tribunal Constitucional para
Inglaterra. Para os ingleses, isso é um retrocesso; para os escoceses foi um progresso.

Formação

4.1.a) Importância para a Família Jurídica do Common Law


• Até o século XVIII a História do Common Law se confunde com a do Direito Inglês,
principalmente a construção do sentido estrito do Common Law como o “Direito comum
criado pelos tribunais ingleses a partir do século XI”.
• A campanha normanda na Inglaterra, desde 1066 d.C., embora encerre, gradual e
oficialmente, as tensões entre os povos e culturas que habitavam a Britannia desde a
libertação do domínio de quatros séculos do Império Romano, não seguiu o mesmo
caminho dos povos e culturas da Europa Continental, ou seja, não aplicaram na base de
formação de seu Direito interno as premissas do Direito Romano, tampouco a ideia de
um sistema de normas jurídicas consagradas sobre a forma de lei proveniente do
legislador fundamentadas em um sistema de princípios gerais.

4.1.b) Características singulares do Direito Inglês


• Identidade própria de seu Direito interno baseada na experimentação dos tribunais ao
dar soluções aos casos jurídicos, contrariamente ao Direito formado por um sistema de
normas jurídicas consagradas sobre a forma de lei proveniente do legislador
fundamentadas em um sistema de princípios gerais.
• O Direito Inglês se formou, passo a passo, de pequenos ajustes feitos na criação da
base normativa, o que permite afirmar que:
i) é fruto de sua História; e,
ii) “cresceu em vez de ser criado”.
• A falta de um “sistema de leis legisladas”, na origem, indica que o Direito Inglês tem uma
racionalidade diferente dos sistemas pertencentes a outras famílias jurídicas.

Se a história é tão importante, porque ela permite perceber a formação do common law,
qual a melhor forma de estudarmos a história de formação do common law? O que eu vou

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apresentar são quatro fases, as fases mais fáceis de nós percebermos esse
desenvolvimento do direito.

4.2. Fases de formação do Direito Inglês

1. Fase de pré-constituição, o período anglossaxónico


2. Fase de formação do common law
3. Fase de fortalecimento do parlamento
4. Fase atual, o período em que vivemos, a era de reconstrução do comum.

As três primeiras fases são exatamente as mesmas para todos os países que formam o
common law. É a partir da quarta fase dos países começam a ter identidades distintas,
formam-se diferentemente. Por um motivo simples, a queda do imperialismo, o início da
ruptura entre colónias e metrópoles, como vimos também na família romano-germânica. Só
que aqui o reflexo é outro.

4.2.a. Período anglo-saxónico (409 d.C. Até 1066 d.C.)


- Desde o término da ocupação romana até a invasão normanda.
- Marcada pelo grande número de invasões de povos advindos da Europa
continental cada qual constituindo um reino em separado.
- O direito era baseado nos costumes locais.
- A solução dos conflitos se dava por assembleias públicas que variavam, quanto a
estrutura, de reino para reino.

Período anglossaxónico, desde a queda do império romano da Britânia (que hoje


conhecemos como Grã-Bretanha) no século V d.C. até 1066, data histórica da batalha de
Hastings (um marco da vitória normanda sobre os povos bárbaros da Britânia). Temos uma
ilha largada às influências dos povos locais e dos invasores europeus. Vamos ver o
movimento viking de 753-756, marco da primeira invasão ao norte da Grã-Bretanha, a
invasão por exemplo dos bretões, vindos o que hoje é a França para o sul da Inglaterra.
Então, temos ali na verdade uma região de conflito.

Os romanos só conseguiram conquistar um terço ao sul da Grã-Bretanha, e eles não


avançaram porque eles não tinham capacidade militar de subjugar o que eles chamavam
os "grandes ursos" (que vai dar origem a uma palavra celta na época, "Arturos" - urso

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selvagem). Os romanos, sabendo que não iam conseguir conquistar a ilha, resolveram
marcar o território e proteger os seus domínios, criando a Muralha de Adriano.

Essa muralha de Adriano vai ser repetida na II Guerra Mundial por Adolf Hitler, quando
tenta criar a muralha do Atlântico. É a mesma ideia romana importada de Adriano, sabendo
que não ia conseguir também naquele momento invadir a Inglaterra.

Os romanos também não conseguem avançar porque eles foram fruto da rebelião dos
povos internos do próprio império romano (um território imenso com povos que tinham
pouca identidade com o exército romano); alguns anos à frente, também da invasão
muçulmana. Aquela perspectiva de avançarem não se conseguiu concretizar, e a nova
região que era o exército de domínio romano foi obrigado a vir para o sul, para conter
justamente o avanço mais a frente dos mulçumanos a partir do séc. VI-VII. Resultado,
poucos foram os romanos que ficaram nesse terço sul da Britânia.

Embora o common law na teoria não tenha elementos do direito romano, na prática tem,
porque o primeiro direito que pretendia ser comum, entre os séc. IX e XI, chamava-se
communi lei (direito comum). Então, a braços dos povos bárbaros, reescrevendo os
costumes e o direito romano. Não tinha teoria, ia-se fazendo como se achava que era, o
que significa dizer que o direito comparado trata isso numa fase dos costumes.

Então, o período anglossaxónico é marcado pelos costumes, que tinham como influência
três linhas.

• O direito romano, ou seja, aqueles que foram abandonados por Roma, quando a
nona legião foi retirada da muralha de Adriano;
• O movimento de evangelização católica (direito canónico) e o momento de criação
da Igreja;
• Os costumes bárbaros nórdicos, levados pelos vikings.

Porque é que a família romano-germânica tem esse nome? Porque traz do germânico
justamente esse elemento comunitário dos vikings: estarem juntos, dividir o todo e
manterem-se em coletividade. Então, essa leitura dos costumes comunitários (só que por
uma outra vertente, não tanto a germânica, mas a escandinava) também é presente na
grande ilha.

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Então, nós temos aqui três linhas. Isto aqui é prospecção, não há estrutura, o direito escrito
aqui sem chances, era o sentido dos costumes. Temos costumes romanos, costumes
católicos e costumes vikings. Os normandos invadem a ilha e deparam-se com essa
estrutura. Costumes locais e a solução dada ao povo grego. Mais uma experiência
escandinava, ou seja, por assembleias, mas valendo a vontade de todo, o que não é muito
bom para quem quer manter o domínio.

4.2.b. Período de formação do Common Law (1066 d.C. até 1485 d.C.)
- Inicia com a invasão normanda.
- Os normandos, reconhecendo a importância dos costumes locais, preferiram
instaurar tribunais reais que interpretassem o direito normando à luz dos costumes
locais no âmbito dos factos jurídicos, sem a imposição pela força de seu próprio
Direito.
- Os tribunais: i) reconheciam matéria de facto; ii) eram restritos a vontade dos
interessados que pretendiam ter a resolução do conflito por um writ (espécie de
“ordem real”); iii) a decisão era tomada por jurados.
- Da prática desta nova ordem judicial, chegou-se ao common law que, mesmo
substituindo os costumes, não encerrou definitivamente sua importância.
- Permite-se observar duas questões fundamentais:
- a) A importância da jurisprudência como fonte do Direito em Inglaterra é
justificada, tanto na ausência de recepção do Direito Romano como a
centralização histórica do poder real nesta nova forma de administração
judiciária.
- b) O Direito comum desvelado em anteposição aos costumes não foi acto de
autoridade, mas da escolha pelos interessados.

Quando os normandos invadem, primeiro querem mudar a estrutura da lei. Não podemos
mais respeitar os costumes desses vários povos (primeiro, porque eu não consigo
controlar). Foi por tentar dialogar com os bárbaros que os romanos foram expulsos. Tem
que manter pela força, mas eu tenho que ser inteligente, tenho que criar uma alternativa a
esse direito, qual é a alternativa? Algo que já era realidade entre os normandos mas que
não era conhecido por esses bárbaros. A criação de um direito.

Como é que esses tribunais então se formaram na primeira fase, nesse primeiro momento?
Eles só reconheciam matéria de fato: o agir social. Não existia um direito escrito, não existia

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um código anterior. O que é analisado pelo tribunal eram os conflitos reais. Logo em
seguida, quem levava ao conhecimento do tribunal o problema jurídico eram as partes,
eram os interessados. Não era o tribunal que ia buscar a solução, como acontecia em
Roma pelos pretores ou pelos soldados. Logo em seguida, a decisão era tomada como
jurados, representantes daquela comunidade. Então, o que tínhamos ali era o povo
julgando o povo, o povo decide pelo povo. Mas quem julga é o juiz, e o juiz ele é indicado
pelo dominador. Então, os tribunais eram ingleses, mas atuavam em todos os povos
dominados por essa nova estrutura. Os costumes foram postos de lado e substituído pela
decisão dos tribunais. Começa a surgir a força do case law, jurisprudência.

Quem dá a sentença é o juiz. Quem cria o direito ao juiz, a partir do problema julgado. Mas,
quem julga são jurados. Então, tenho algo que é difícil de ser percebido pela leitura
romana, que tem um juiz e as partes. Tem algo diferente, um jurado que representa o povo.

Eu tenho várias estruturas sociais que são distintas: a vontade de dominar, do norte; um
sentimento familiar. do centro; o patriarcalismo, do sul. Mesmas causas julgadas por
pessoas que formam núcleos sociais diferentes, só que é o mesmo direito. Como é que eu
vou ter o mesmo direito para Inglaterra, que tem jurados que vêem a sociedade
diferentemente? Como resolver, por exemplo, a ordem do rei inglês que manda um xerife à
Escócia e levar com ele o direito inglês?

O primeiro precedente, ou seja, a primeira regra dos tribunais ingleses, chama-se


"birthright" (direito de nascença). O inglês é inglês onde quer que ele esteja, ele leva
consigo o direito de Inglaterra. Então, o inglês que vai à Escócia leva consigo o direito da
Inglaterra. E se ele for julgado na Escócia? Ele leva o precedente em inglês, ou tem que se
subordinar à decisão dos jurados da Escócia? Por isso é que esses povos recém-
dominados, como os escoceses contra os ingleses, lutaram pela "freedom", sob a liderança
de William Wallace.

Um ponto era comum, um ponto realmente faz parte desse momento, a palavra foi
"freedom" (liberdade). Os escoceses, os ingleses, os cristãos, os andos, eles não queriam
libertar-se da Inglaterra, eles estavam satisfeitos com aquele período de pretensa paz na
norma, mas eles estavam inconformados com a falta de conhecimento da norma. Eu
cumpro a norma, mas qual é a norma que eu tenho que cumprir? Era necessário formar um

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direito comum. Daí é que nasce a common law, direito comum para toda a Grã-Bretanha.
Um direito comum não é direito costumeiro, é um direito comum pra toda a Inglaterra.

Então, era importante que os tribunais tivessem o mesmo ponto de julgamento, que
respeitassem os valores locais, que ingleses percebessem o que eram escoceses; que
escoceses percebessem o que era irlandeses; que irlandeses percebessem o que eram
bretões. Aí nasce uma palavra bem interessante, chamada "equity". Em português, é
"equidade". O problema é que a "equidade" que nós conhecemos em língua portuguesa,
em inglês é "fairness". É aquela velha dificuldade que temos em traduzir o legal english, não
dá para ser literal.

Quando nós queremos falar de tratar igualmente os iguais, na medida das suas diferenças
ou desigualdade, ou os casos semelhantes têm que ter tratamento assemelhado, falamos
de "fairness". "Fairness" também é traduzida como "justiça", só que no inglês "justiça" é
"justice".

Se nós falarmos da "equitas" romana, a palavra é "fairness". Agora, se nós fizermos um


sistema jurídico de igualdade do direito, falamos de "equity", um sistema jurídico de
igualdade de direitos. Então, os tribunais deveriam a partir de agora ter cuidado ao decidir
diante da identidade de um direito comum para toda a Inglaterra.

Essa ideia de criação da common law é um período longo, vai de 1066 a 1405. Nesse
período, o que temos? Por exemplo, a Magna Carta, que levou quase cem anos até se
tornar Magna Carta: tem uma primeira versão em 1215, é assinada nesse ano; é reassinada
em 1225; foi alterada e jurada novamente em 1232; até quando atinge a redação que
conhecemos hoje, com efeitos retroativos a 1215, em 1297, a partir de Edward I. Ela
demora este tempo todo por este pormenor: ser o rei de Inglaterra a fazê-la. Ele, como os
demais reis da Europa, são fiéis à Igreja Católica, portanto devem lutar as cruzadas. Richard
I Lionheart luta a primeira cruzada em nome do Papa e deixa a coroa inglesa aberta, para o
João Sem Terra, que é quem assina a primeira versão da magnata. Porque é que o nome
dele é João Sem Terra? Porque era um sexto irmão, não tinha legitimidade para assinar a
Magna Carta, não tinha hipóteses de ser rei da Inglaterra, mas era o único que lá estava.

Onde é que entra a Cúria Régia? É o primeiro momento de formação do parlamento, é a


origem do parlamento inglês. O rei não pode governar sem nobres (os senhores feudais da

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Inglaterra). Eles prestam apoio económico e militar. Portanto, têm assento para prestar
consultoria ao rei. Tudo que o rei precisa decidir conversa com os seus nobres. Portanto,
forma-se a Cúria Régia (nome latino para "conselho do reino"), que passa a definir entre os
julgados quais são as regras da Inglaterra. Então, esse conselho do rei tem nas suas
funções, além de militares, económicas e sociais, a competência para definir o direito. O
birthright surge neste contexto, uma regra de precedente.

- A importância da Magna Carta.


- Tribunais institucionalizados:
- Nos primeiros tempos, o King’s Council (Curia Regis) que concentrava os
poderes executivo, legislativo e jurisdicional.
- Sucedeu a automação com a criação:
- Court of Exchequer (Tribunal do Tesouro) com competência fiscal
- Court of Common Pleas (Tribunal dos Pleitos comuns) competência
para resolver litígios sobre terras.
- Court of King’s Bench (Tribunal do Banco do Rei) com competência
criminal.

Porque é que a Magna Carta é imposta ao pretenso rei da Inglaterra? Porque já havia uma
desproporção das relações entre o rei e os nobres, o rei já não queria aceitar o
fortalecimento desse primeiro modelo de parlamento. Ele não queria ser. Essa luta
perpetua-se desde 1066, ganha elevação no séc. XIII e acalma com a Magna Carta. Porquê
a Magna Carta? É um contrato que distribui direitos e deveres entre rei e nobres. Não é
uma constituição como conhecemos hoje, é um contrato feudal.

4.2.c. Período fortalecimento do Parlamento (1485 d.C. até 1873 d.C.)


- Período marcado pela ascensão da Inglaterra a grande potência mundial e pela
consolidação do Protestantismo. No âmbito do Direito, é marcado pelo favorecimento da
Equity e do gradual crescimento do direito de fonte legal a partir do fortalecimento do
Parlamento.

Acontece que, quando chegamos a 1485, o parlamento já está fortalecido, quer ser
reconhecido e na verdade assumir a função que sempre lhe fora prometida: a função de
criar o direito inglês. Ele já está fortalecido na teoria, mas na prática não consegue. Só

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controla o Estado quem cria a norma jurídica. Para o sistema romano-germânico foi fácil. E
para o direito inglês? É quem tem a última autoridade para formar, da equity, o direito.

O que acontece a partir do séc. XV? Lançamo-nos no Renascimento, nas novas técnicas
que vão garantir as grandes navegações - o início do Imperialismo. Temos as reformas
(Calvinismo, Luteranismo...), e a Inglaterra precisa de ter a sua alternativa ao Catolicismo,
logo precisa de aprender com os protestantes. Henrique VIII questiona-se qual dessas
religiões lhe permitiria o divórcio sem ter que matar as esposas, acabando por criar o
Anglicanismo, que na verdade tem uma estrutura bem diferente das outras escolas
protestantes. O Anglicanismo tem dois líderes: um líder material (o Rei da Inglaterra) e um
líder espiritual (o Arcebispo da Cantuária).

Porque é que isto é importante? Porque é algo católico apostólico romano - Papa e
Imperador - é uma reconstrução de um modelo histórico, com uma diferença: o rei
administra os interesses civis da Igreja Anglicana. Tudo o que for material da Igreja
Anglicana é do rei, tudo que for espiritual é do arcebispo.

Agora eu tenho um problema. Na verdade, cada vez mais o direito se fortalece, e ele se
fortalece por um outro problema cultural. Na Grã-Bretanha, como na Europa Continental, o
analfabetismo era regra. Então, a tradição oral do direito e da cultura era a realidade. Como
é que o direito da equity se formava na época? Quem queria a proteção do direito inglês
pedia o reach (uma ordem do tribunal, que precisava de ser provocado). Quando o juiz
concedia o reach, era cumprido pelo xerife. Logo, o xerife tinha necessariamente que saber
ler e escrever (porque ele tinha que ler o reach), mas será que ele falava a verdade? Será
que o xerife cumpria fielmente a sua missão, ou tiravam proveito da situação? Queriam
aproveitar-se das ordens judiciais. Eles criavam o seu mecanismo próprio, liam no púlpito
central a ordem em papel e afixavam-na num tronco. Ao final do dia, já não se conseguia
ler a ordem, e ficava o que o xerife dizia.

Naquela época, como hoje, havia algum mau uso das funções públicas. E tentou-se nesse
momento uma alternativa. Primeiro, a substituição pelo reclamante por alguém que
acusasse, um promotor de justiça, que fosse alguém que fosse ver se o xerife cumpria a
ordem. Era impossível. Então, tentou-se mudar o procedimento, para que fosse algo
inquisitorial: o acusado e o acusador participassem do processo, para saberem exatamente
da boca do juiz o que se passava. Só que inquisitorial, para alguém que não estava

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habituado a isso, era um problema: inquisitorial leva a inquisição, que é católica e agora
havia-se tornado em anglicana. Como é que eu vou seguir um procedimento canónico e
romano, partindo de uma experiência minha de tribunais de jurados? Não, é o parlamento
que tem que definir o direito, vamos fugir dessa ordem.

Aí, chegamos a esse momento de tensão maior entre o parlamento e o rei. Não temos um
common law, quem o vai determinar é o parlamento, logo todos são submissos ao tomam
logo, inclusive o rei. Que rei quer ser submetido ao parlamento?

O que acontece no parlamento inglês? Esta tensão entre católicos e protestantes: rei
católico, protegido pelos católicos do parlamento; rei anglicano, protegido pelos
protestantes do parlamento. Então, conforme a religião do rei, conforme o poder do
parlamento, era recíproco. Até ao reinado de Carlos I, rei católico, que persegue os
protestantes e os expulsa de Inglaterra, e eles são albergados na Holanda.

Na Holanda, eles identificam quem seria o sucessor protestante ao rei inglês, Mary of Scots
(Mary I), e convencem o seu marido, Guilherme II de Orange, a invadir Inglaterra.

E obviamente o rei holandês não queria invadir a Inglaterra, os holandeses achavam que
não servia para nada. A Holanda financiou muitos corsários e piratas, eles ou exploravam
através deles ou saqueavam de outras maneiras. O que é que os ingleses anglicanos dizem
para convencer o rei em inglês: o exército inglês é controlado por nós (por motivos
religiosos). Quando o rei nos expulsou, expulsou o exército, por isso pode invadir a
Inglaterra porque não há resistência.

- Revolução Gloriosa (1688) e The English Bill of Rights. Traço marcante para:
i. Determinar que o rei era - e é - submisso ao Common Law.
ii. Contribuir para a razão do porquê não há distinção entre direitos públicos e
direto privado.
iii. Denotar a proteção das liberdades individuais diante dos poderes
constituídos.

A Holanda, então, invade a Inglaterra, durante a Revolução das Rosas, e não tem uma única
morte, porque o exército inglês era protestante. Rei deposto, o parlamento se fortalece. A
partir desse momento, a leitura do direito comparado é contrária. Esta é a fase da lei mais

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importante dentro da Constituição Inglesa, a chamada Bill of Rights. É a primeira


declaração universal de direitos do mundo, reconstrói a Magna Carta. Só que tem uma
peculiaridade: ela não é assim tão universal (à semelhança de outras), mas tem um traço
um pouco mais amplo do que as cartas da época. Tem três elementos importantes:

• O rei reconhece o poder do parlamento. O parlamento tem força para dizer qual é o
common law, e a partir de agora todos são submissos ao common law (inclusive o
rei).
• Contribui para a razão, porque não há distinção entre direitos públicos e privados
(aqui é que está a universalidade). Todos são ao mesmo tempo responsáveis pelo
ambiente público e privado.
• A proteção das liberdades individuais diante dos poderes constituídos. É daqui que
a freedom começa a ser tratada como liberty.

Agora, vamos falar de outra dicotomia: freedom vs liberty. Se traduzirmos, a tradução é a


mesma: "liberdade". Só que, a partir da Bill of Rights, o legal english define exatamente o
que é cada uma dessas palavras:

• Liberty é o princípio universal da liberdade. Todos nós somos livres perante a lei.
• Freedom são os direitos de liberdade individual (ex.: eu tenho a possibilidade de
escolher a minha religião, tenho liberdade religiosa).

Quando entra na minha área de predilecção, é freedom. Quando é um princípio comum a


todos, é liberty. Estamos diante de uma primeira declaração universal, têm tudo estruturado
para isso, só que não têm lei. Quando se fala em Bill of Rights, é a estrutura de um contrato.

Inglaterra não tem uma constituição formal escrita, mas tem um corpo de leis
constitucionais, são catorze documentos. Dois deles são a Magna carta e a Bill of Rights. Há
um terceiro, que é consequência da Bill of Rights, chamado de Act of Settlement. É uma lei
de 1701, criada pelo parlamento, para definir a sucessão ao trono.

O que é que essa lei quer dizer? Os holandeses não queriam invadir a Inglaterra, mas
invadiram. Aconteceu a revolução Gloriosa. Os católicos tiveram que aceitar os
protestantes. Foi votada e aprovada a Bill of Rights, com valores protestantes. Só que
Guilherme D’Orange voltou para a Holanda. Mary I abandonou Inglaterra e voltou para junto

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do seu marido. Abriu uma linha de sucessão. Ela assinou o Act of Settlement, definindo
exatamente o mesmo procedimento que se vê ainda hoje. Quando um rei é coroado, ele
precisa ir ao parlamento e assinar a Magna Carta: assina na House of Lords (câmara dos
nobres); confirma na House of Commons (Casa dos Comuns); vai ao arcebispo da
Cantuária, ajoelha-se e recebe a coroa das mãos do Arcebispo da Cantuária. Quer dizer
que o rei da Inglaterra é submisso à Magna Carta, ao Parlamento e ao Anglicanismo.

A partir daquele momento, o direito constitui-se em força em Inglaterra, tanta força que leva
à independência dos Estados Unidos da América do Norte. O parlamento fica muito forte,
quem tem força usa mal a sua força. O parlamento passa a ser tão cruel quanto é o rei
absolutista inglês. «Quer conhecer o homem, dê-lhe poder». Grandes poderes, grandes
responsabilidades ou grandes abusos. Aqui é que começa a separação do common law.

- Criação da Court of Chancery (Tribunais da Chancelaria):


a. Insuficiência do sistema baseado no procedimento originário: formalismo,
soluções restritas e privilégios.
b. Chancellor (eclesiástico): do Common law à equity, cuja ascensão levou a
criação de um novo tribunal (Court of Chancery).
c. Procedimento: writ comum que avança, por força do direito canónico, a ser
escrito, inquisitório e secreto, sem intervenção do juri.
d. A equity é substituída pelo rule of precedents.
e. Instaura-se o sistema dualista: common law e equity.

4.2.d. Período Moderno (1873 d.C. até a actualidade)


- Sucessão de actos dedicados a reforma do sistema judiciário inglês.
- Movimento precedido pelas reformas de 1832 e, definitivamente, com as
Judicature Acts entre 1873 e 1875.

Quarta fase, o fortalecimento parlamentar. Período moderno. O que acontece a partir


dessa percepção do fortalecimento absurdo do parlamento? Uma necessidade do
parlamento de criar leis. Começa, a partir de agora, uma estrutura baseada em
procedimentos de criação de leis, aos moldes ingleses. Toda uma reconfiguração entre
1873 e 1875, que vai ser denominado Judicature Act: uma ideia de como se formava o
statutory law (o direito escrito, a lei), a forma com que temos as percepções universais do
direito. Isso é percebido hoje pela organização judiciária.

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Os tribunais da Inglaterra fazem parte do parlamento. Na Inglaterra e nos Estados Unidos,


os tribunais não são poderes, são autoridades. Têm uma função distinta do que se passa na
família romano-germânica. O sistema jurídico inglês não se fundamenta numa constituição
escrita, que ao introduzir uma nova ordem constitucional, rompeu uma estrutura política
jurídica anterior, ao contrário. As instituições inglesas foram-se desenvolvendo no curso da
história, em respeito às tradições. Desde os costumes do período anglossaxónico, a
formação com a ruptura de um costumeirismo, para a criação de uma equity que vai
denotar o case law; a partir de então, a cúria régia, a origem de uma tensão entre
monarquia e parlamento; dali, primeiro contrato com força constitucional, a Magna Carta.

4.3.a. Características gerais


- O sistema jurídico inglês não se fundamenta numa Constituição escrita que, ao
introduzir uma nova ordem constitucional, rompeu com a estrutura político-jurídica
anterior. Ao contrário, as instituições inglesas foram se desenvolvendo no curso da
História em respeito às tradições.
- Os tribunais não são centros de legitimação de direitos.

Toda a tensão que vimos até agora, até ao momento em que o parlamento pretende
governar pela lei, não pelo case law. Mas isso é difícil, porque não faz parte da história
inglesa. Os tribunais não são centros de legitimação de direitos; não são poderes, são
autoridade. Na leitura do common law, não são a mesma coisa, por causa da forma como
se conservam:

i. Reformas - acts of parliament baseados em duas vertentes:


- reforma dos tribunais para que comportassem tribunais superiores e
tribunais inferiores
- fortalecimento da legislação (statutory law) e da jurisprudência (case law).
ii. Supreme Court of United Kingdom: no âmbito da Constitutional Reform Act
of 2005, substituiu a Appelatte Commitee of House of Lords, enquanto
tribunal de última instância.

Já há uma divisão clara entre tribunais superiores (superior courts) e tribunais inferiores,
(inferior courts). Nas cortes superiores, temos a competência para criar a alta justiça, as
demandas mais complexas do Estado, aquela que tem maior interesse no reino. Nas cortes
inferiores, direitos locais, menor expressão, menor repercussão.

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4.3.b. Classificação
i. Superior courts (tribunais superiores) / higher courts (“tribunais mais altos” no
sentido de prestar a “Alta Justiça”):
- Supreme Court of United Kingdom (Tribunal Superior do Reino Unido)
- Senior Courts of England and Wales :
. Court of Appeal (tribunal de apelação)
. High Court of Justice (tribunal superior de justiça)
. Crown Court (tribunal da coroa)
ii. Inferior courts (tribunais inferiores) / lower courts (“tribunais mais baixos” no
sentido de prestar a “Baixa Justiça”) :
- County courts (tribunais de condado)
- Magistrates courts

Nota: O direito comercial pela via marítima é a única possibilidade que temos de costume como fonte de direito
com alguma importância, na Inglaterra.

Porque é que não posso fazer essa aproximação do Tribunal da Relação com qualquer uma
destas figuras? Todos eles têm competências originárias e residuais, e nós não temos isso
nos nossos tribunais. Todas as matérias são de conhecimento originário, os juízes
conhecem como primeira instância (ainda que sejam tribunais superiores). Agora, o que vai
definir: a natureza da demanda, as pessoas envolvidas, o valor dos processos, outros
contratos... Mas ainda, elas assumem competências reforçais de tribunais inferiores em
certas matérias.

i. Superior courts (tribunais superiores) / higher courts (“tribunais mais altos” no


sentido de prestar a “Alta Justiça”) – não são meros tribunais de recurso senão que,
em certos casos, recebem a competência para julgamento em primeira instância. De
concreto, suas decisões têm força para gerar precedente vinculativo.
• Supreme Court of United Kingdom (Tribunal Superior do Reino Unido) -
formado por 12 Justices of Supreme Court com competência para julgamento de
recursos, em última instância, sobre matérias cíveis e criminais.
• Senior Courts of England and Wales :
• Court of Appeal (tribunal de apelação) – divide-se em civil division e criminal
division.

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• Crown Court (tribunal da coroa) - centraliza, desde 1971, a competência criminal


para julgamento de crimes mais graves, com admissão do tribunal do júri para os
acusados que se declaram inocentes; e, do julgamento de recursos criminais
advindos de tribunais inferiores.
• High Court of Justice [...] – tribunal civil a que compete o julgamento em primeira
instância das questões que não sejam reservadas aos tribunais inferiores; e, em
matéria de recurso, das decisões tomadas pelos tribunais inferiores. Conserva
atualmente três divisões:

ii. Inferior courts (tribunais inferiores) / lower courts (“tribunais mais baixos” no sentido
de prestar a “Baixa Justiça”) – têm competência para julgamento de causas civis e
criminais de menor complexidade e importância :
- County courts (tribunais de condado)

- Magistrates courts

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Fontes de direito

As fontes do Direito no sistema jurídico inglês se dividem em principais e subsidiárias,


nestes termos:

i. Fontes de direito principais:


• Principal, o case law (ainda se chama common law, em Inglaterra): o
fundamento é a jurisprudência, que não é do direito como toda estrutura, mas sim
do direito aplicável
• A lei, conhecida como statutory law ou legislation
ii. Fontes de direito subsidiárias:
• O costume (custom)
• A doutrina (doctrin), sob a expressão de books of authority (por causa da função
dos tribunais ser de autoridade e não de poder)

Qual é a principal fonte do sistema jurídico inglês? “O case law tem sido e continua a ser
considerado como a principal fonte de direito, no sentido de ser o modo ‘normal’ de
produção e de revelação do direito. Mas, na linha hierárquica, a lei foi sempre a
primeira das fontes de direito, visto que tem eficácia revogatória em relação ao
precedente jurisprudencial, enquanto este pode apenas interpretar mas não revogar
a lei” (Carlos Ferreira de Almeida e Jorge Morais Carvalho).

Cuidado com a história do direito inglês. Lembrem-se que o Parlamento sempre quis ser o
principal poder em Inglaterra. Por isso, precisava sempre fortalecer a lei. No entanto, o
povo em inglês sempre teve como verdade que o direito na Inglaterra se forma na sua
realidade social, e quem descobre essa realidade social é o tribunal. Então, significa dizer

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que, para o povo, a principal fonte é o case law, mas para o parlamento a principal fonte é a
lei.

Como resolver isso? Aqui é uma das possíveis formas de resolver, que é a doutrina do
parlamento inglês. O case law é a principal fonte na percepção do sentimento popular
inglês. Só que o case law pode ser revogado se o parlamento criar uma lei contrária àquele
precedente, enquanto o precedente não pode revogar a lei.

Como é que se cria uma decisão na família romano-germânica? Respeitando três fases: o
relatório, a fundamentação, a decisão. Quando o juiz julga, precisa primeiro de identificar as
partes, o direito e as provas, no relatório. Depois, o juiz tem que refletir sobre a causa,
analisar as provas e os fatos, na fundamentação. Depois, o juiz diz quem está certo e quem
está errado, quem o direito vai proteger e quem não vai. Ou seja, se é procedente é
procedente. É na decisão que está o direito do tribunal, na jurisprudência.

4.4.a. Jurisprudência (case law / common law)

Como se forma o case law no sistema inglês? Primeiro, é necessário atentar à definição de
stare decisis: princípios pelo qual o caso presente deve ser julgado como foram
anteriormente julgados casos similares. Reformulação do common law, a partir do séc. XIX
assentou-se sobre a doctrine of binding precedent (precedente vinculativo, o juiz tem que
julgar conforme esse precedente). A stare decisis é a própria regra do tribunal, o próprio
precedente. Se a traduzirmos, significaria "decisão paradigmática", "decisão estável".

A stare decisis forma-se em quatro partes:

1º. O juiz tem que identificar os factos, individualizar o processo


2º. Define a obiter dicta, ou seja, quais as possíveis soluções para o caso
3º. A ratio decidendi (razão de decidir), ou seja, o juiz pensa, dentro das hipóteses da
obiter dicta, qual a que se aplica àquele processo
4º. Decisão, onde temos também esse conteúdo vinculativo.

É na ratio decidendi que o juiz faz a cross (cross-examination ou cross-over), o cruzamento


para saber se aquele caso que está a julgar se refere a um ou outro precedente anterior. O

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juiz tem que identificar nos casos anteriores qual é o caso que ele vai aplicar no que ele
está a julgar.

a. factos: o que deve ser esclarecido para solução do litígio.


b. obiter dicta: são as “statements by the way” (afirmações a propósito), “regras ou
outras considerações que não foram decisivas na conclusão ou que não se reportam
a factos relevantes”. Tem influência meramente persuasiva, nunca vinculante.
c. ratio decidendi: é a “razão de decidir”, ou seja, é, ao mesmo tempo, o argumento
jurídico contido no raciocínio do juiz que justifica a decisão (marca a premissa maior
do cross – espécie de silogismo judiciário), e a “regra de direito”.
d. decisão: o comando judicial que cria o vínculo e o dever de cumprimento da
sentença nos limites do caso julgado.

A principal fonte do direito é o case law, é ali que temos a regra de que o caso atual tem
que ser julgado conforme o caso anterior. E o caso anterior é descoberto de entre os
precedentes, e esses precedentes são formados por várias stare decisis. No sistema
jurídico inglês, historicamente, a lei é um meio anormal de produção de direito, porque o
inglês não se conforma que o seu direito tenha que ser dado pelo parlamento. Ele quer o
direito nasça na sociedade e seja descoberta nos tribunais mediante os jurados.

- Notas sobre o precedente vinculativo:


o Indica a “regra de direito que constitui a ratio decidendi de um caso anterior
semelhante”.
o A semelhança entre os casos, anterior e sub judice, se dá pela comparação entre os
factos.
o “Nos direitos romano-germânicos, a controvérsia sobre as questões de direito tende
a centrar-se na discussão sobre a norma legal aplicável e o sentido desta. Nos
direitos de common law, a controvérsia correspondente incide sobre a seleção do
caso anterior donde se há de extrair a ratio decidendi e sobre o modo como esta
deve ser enunciada”.
o Quanto ao caráter vinculativo do precedente no âmbito da natureza do tribunal, a
regra geral indica que os tribunais hierarquicamente subordinados devem aplicar os
precedentes vinculativos dos tribunais superiores.

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Antigamente, antes do parlamento fortalecer, até 1485, o parlamento apenas definia o


precedente (como o birthright), então criava aquela regra comum. Modernamente, em
consequência das últimas revisões constitucionais, com o fortalecimento do parlamento, ele
tem produzido cada vez mais textos legislativos, ao mesmo tempo em que cresce a prática
legiferante pelo governo, diante do uso da delegated legislation (delegação do poder de
criar leis) - poder dado pelo parlamento para que outros poderes ou autoridades possam
criar leis (no caso do português, por exemplo, o decreto). Cada vez mais o que o
parlamento tem feito é dar poder a sindicatos, as autarquias... para criar leis específicas.
Isso cria uma crise na identidade legislativa. Porque é que o parlamento inglês quer fazer
isso? Porque quer aproximar-se da família romano-germânica.

- Precedente e evolução do direito jurisprudencial:


i. Revogação das normas jurisprudenciais por normas legais.
ii. Faculdade institucional pela qual um tribunal pode decidir não mais se manter
vinculado aos seus próprios precedentes (Practice Statements).
iii. Alteração da norma jurisprudencial por um tribunal superior àquele que determinou
o precedente em caso anterior (overruling), como, por exemplo, “uma regra contida
em sentença do High Court of Justice pode vir a ser livremente alterada pelo Court
of Appeal para o qual aquele precedente tem valor meramente persuasivo”.
iv. Mutação por forma oblíqua: a) pela amplitude dos esclarecimentos que formam a
ratio decidendi; e, b) casos sem precedentes e casos inovadores (leading cases).

4.4.b. Lei (statute, statutory law, legislation)


- No sistema jurídico inglês, historicamente, é um meio “anormal” de produção do
direito.
- Quando adoptada em tempos antigos, era função exclusiva do Parlamento para,
regra geral, completar ou corrigir o case law.
- Modernamente, em consequência das últimas revisões institucionais, o Parlamento
tem produzido cada vez mais textos legislativos, ao mesmo tempo em que cresce a
prática legiferante pelo Governo diante do uso da delegated legislation.
- Não há controlo de constitucionalidade em razão da inexistência de uma
constituição formal escrita.
- Não se adopta, nesta família jurídica, o sistema de codificação tradicional romano-
germânico.

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Vamos pensar pela ideologia. Eu tenho o poder, eu concedo-te o poder, eu posso retomar
o poder quando quiser. Então, se você quiser poder, vai agir conforme eu disser. Essa
chantagem política é o problema que se regista aqui hoje. O parlamento, para atingir o seu
fortalecimento, negocia a delegação do poder de criar leis. Não há controlo de
constitucionalidade, porque não há constituição. Então, não tem fiscalização.

O que é abrangida como matéria de lei:


• Regra geral as que são excluídas do case law, tais como direito da Administração
Pública, direito fiscal, direito social, e direito económico; além da transposição de
diretivas da União Europeia antes do BREXIT.
• Há, no entanto, uma progressiva invasão de temas que historicamente pertencem ao
case law (p.ex. Disposições sobre alguns contratos, propriedades e até sobre trust).
Regra de interpretação mais adequada:
• Literal rule: o intérprete deve atender ao “sentido ordinário, gramatical ou literal das
palavras”, de modo que o texto escrito tem redação detalhada e pormenorizada.

4.4.c. Costume (custom)

Percebe-se o costume como fonte do direito apenas em períodos anteriores à


formação do common law, portanto não integrando o fundamento de formação
concreta do common law. Visto nestes termos, como ficção jurídica, pode-se
porventura perceber alguma influência dos costumes no direito constitucional e no
direito comercial. No direito comercial, temos o maritime law; no direito constitucional,
apenas no período em que têm a Magna Carta: quando eles têm que invocar precedentes
que sejam precedentes, justificados diretamente na Magna Carta, como por exemplo o
Calvin's case.

O Calvin's case é o primeiro julgado, que definiu a regra do birthright. Ele pediu para que
quando fosse para uma colónia levasse consigo o direito de Inglaterra. A primeira geração
do birthright referia-se apenas à Britânia. Quando se saísse da ilha, o inglês levava consigo
também o direito inglês? Fica definido, com o Calvin's case, que sim, o birthright sai da ilha.

Por fim, a doutrina, books of authority:

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Estes manuais não são mais do que recompilações históricas. É como se precisássemos
de, naquele período de tempo, entender como foi a interpretação dos tribunais para os
casos, ou seja, percebemos a formação da stare decisis.

Os ingleses não conseguem ver direito público e direito privado. Para nós é muito claro,
por exemplo o direito administrativo, o direito financeiro... para eles não, faz tudo parte da
mesma estrutura.

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Direito Estadunidense

Formação

Estados Unidos da América do Norte, diante da colonização inglesam só se iniciam a partir


de 1607. É o ano em que chegam os primeiros colonos a esse recente descoberto
território. Para a Inglaterra, essa nova colónia tinha uma tríplice pretensão: para enviar ou
receber criminosos; para receber criminosos; eram colónias de evangelização, para dar
religião aos nativos (índios da região); estimular o comércio. Actividade criminal, actividade
religiosa ou actividade comercial.

Na tensão entre católicos e protestantes, muitos dos católicos também foram para as
colónias, e passaram a disputar novos fiéis. Então, embora a religião oficial fosse
tendencialmente protestante, ela só definitivamente se transforma em protestante em 1701.
Há uma linha muito tênue entre o anglicanismo e o catolicismo, porque são religiões cristãs.
O que pode mudar, na verdade, é a liturgia, mas os fundamentos são os mesmos, a fé é a
mesma.

1.1. Período colonial (1607-1776)


- Calvin's case (1608): extensão do birthright aos cidadãos ingleses nascidos nas
colónias.
- Instabilidade na aplicação do Common Law Inglês

Diferentemente de outros Estados colonizados, cada uma das colónias passa a ter uma
identidade própria. Era para ser uma única colónia, a colónia da Inglaterra na América do
Norte. Só que se eu tenho criminosos, comerciantes e religiosos, eu tenho uma sociedade
muito antagónica, muito diferente. Então, os colonos procuram agrupar-se conforme suas
características. Resultado prático: a partir de 1607, começam a ter colónias com
identidades dos colonos que ali se assentaram.

A ideia da Inglaterra é colonizar, queria tudo para si, e manda o primeiro grupo de colonos
todos misturados. Só que a sociedade era muita heterogénea, porque não há um direito.
Qual direito a ser cumprido? Colónia não é metrópole. Seriam os costumes? Em 1608, o

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parlamento já estava fortalecido... Será que o parlamento ia querer dar para a colónia força
de fonte do direito aos costumes, que eles limitaram em 1606? Então, agora é preciso
entender que direito era aquele vigente. Se o costume é perigoso, mas a tradição inglesa
tem que ser respeitada, eu já tenho um precedente. Birthright: o inglês leva consigo para
onde quer que vá o direito da metrópole, da Inglaterra. Portanto, se todos esses colonos
eram ingleses, eles levavam consigo o direito da Inglaterra.

Só que agora tinha um julgado, um precedente, o Calvin’s case. Então, em 1608, já


começamos a dar resposta a essa questão: o direito a ser respeitado na colónia é o mesmo
da metrópole. Portanto, se o direito é o mesmo, significa dizer que eu tenho os mesmos
deveres, obrigações, mas também direitos.

Então, se tenho esses direitos, se eu tenho direito à liberdade, começo a ter um direito ao
assentamento, e as colónias começam a se agrupar pelas identidades. E as bases
territoriais passavam aquela identidade. Aqueles que tinham mais criminosos eram colónias
mais ligadas à liberdade individual, no poder fazer, aquela liberdade natural que estudamos
em sociologia do direito. Nas colónias religiosas era o contrário, um respeito maior ao ser
humano, um respeito maior aos valores morais. Nas colónias comerciais, a exploração do
lucro, o comércio. Colónias criminais tinham uma propensão a detenção. Colónias de
expansão, a corrida para o leste.

Uma coisa é respeitar o commom law na Inglaterra, diante do poder do parlamento, dos
xerifes. Outra coisa é respeitar o commom law na colónia. Logo, esse precedente do
Calvin’s case foi falseado e posto em causa. Por dois motivos pelo menos:

• O primeiro, não tem nenhum tipo de coerção, não tem quem me obriga a cumprir o
direito da Inglaterra, eu faço o que eu quiser. Ou seja, o exército inglês está muito
longe de mim, o xerife está muito longe.
• O segundo, eu não tenho internet, não tenho telefone. Como é que eu vou conhecer
a lei inglesa? Quando eu cheguei sabia, porque estava na minha mente. E agora? O
que foi sendo criado a partir das décadas? Qual o direito, então, a ser aplicado?
Como eu vou saber o que o Parlamento Inglês está criando de forma manual ou
reconhecimento?

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Não tenho um juiz dizendo como agir, não tenho parlamento obrigando a agir, tenho que
me adaptar, diante da minha tradição e do que eu já conhecia do Direito inglês. Então, a
solução é essa. Então, a instabilidade na aplicação do common law em inglês é logo
resolvida pela identidade das colónias.

A quarta fase do Estados Unidos começa um pouquinho antes, começa aqui em 1607. Em
1608, já há um precedente, a partir dali a construção do seu direito. A formação desse
direito interno vai-se desenvolvendo até 1776. Em 1688, surge a English Bill of Rights, a
guerra civil, a Revolução Gloriosa, a criação da Carta de Direitos Ingleses. O parlamento
diz: a partir de agora todos são submissos a lei, inclusive o rei. Quem são todos? Ingleses e
ingleses nas colónias. O precedente está lá: jus sanguinis. Sou inglês, transfiro a condição
de inglês aos meus descendentes.

Só que uma coisa é, quem é o “boa gente”: aquele que leva direto pro rei. Outra coisa é o
perigoso. Eu quero quem me dá dinheiro, mas não quero quem me dá problemas. E o
parlamento começa políticas de segregação, faz diferença nas leis, a ponto de sobretaxar
de tal forma os produtos da colónia que os colonos não conseguiam mais produzir.

Existem muitos motivos para a independência dos Estados Unidos. Eu vou pegar o motivo
principal, porque é muito próximo da revolução francesa. O que fez o parlamento? Cria
uma desigualdade no tratamento entre ingleses, na Inglaterra, e os ingleses da América do
Norte, sobretaxando o principal produto.

Nos Estados Unidos da América do Norte, quase em formação, já tinha uma formação
intelectual, já sabiam como formar o seu direito, tinham uma base social e já tinham uma
ideia de common law. Somos ingleses, temos que ter no mínimo o mesmo tratamento da
metrópole. Quando vem o aumento do tributo sobre o chá, os ingleses insurgem-se e
lançam toda a produção de chá no oceano Atlântico,

Esses povos, formados nas colónias por três identidades, reuniram-se para dizer: aceitamos
tudo, menos a desigualdade no common law. A partir de agora, não somos mais colónia da
Inglaterra. Então, em 4 de Julho de 1776 é declarada a independência dos Estados Unidos
da América do Norte.

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1.2. Independência política e formação do direito interno (1776 até os tempos atuais)

As colónias da época já tinham a sua identidade, já tinham uma forma de ler o common law
inglês dentro das suas perspectivas, tinham o mesmo sentimento de querer o tratamento
igual ao cidadão da metrópole e, agora, tinham um fim comum que era de lutar contra o
domínio inglês.

Já eram treze colónias, cada uma delas com as suas características próprias. O objetivo era
um só: romper com o domínio político da Inglaterra. Mas, os interesses eram diferentes.
Uma colónia que nasceu de criminosos quer o máximo possível de liberdade individual.
Colônias que nasceram de influências religiosas querem o máximo possível de liberdade
religiosa. E as comerciais queriam livre iniciativa, liberdade para comercializar.

A palavra comum a todas é liberdade. Querem ser livres, mas dentro das suas
características. E agora, vamos criar um novo Estado? E como é que esse novo Estado
pode conviver com essas três liberdades antagónicas?

- República

O difícil da independência dos Estados Unidos não foi romper a dominação política da
Inglaterra, foi definir as bases da liberdade. É por isso que a constituição começa com a
ideia de igualdade de indivíduos. Pela primeira vez, cria-se a reflexão sobre um conjunto de
direitos da lei do Estado. Nos Estados Unidos, então, não é mais o povo inglês, é o povo
dos Estados Unidos. Uma ordem para formar a mais perfeita união, estabelecida na justiça,
garantindo a tranquilidade doméstica, providenciada pela defesa comum, promove o bem-
estar geral e garante as blessings of liberty (bençãos da liberdade). Princípio estruturante
aquele que aprenderam dos ingleses, a ideia de ter a liberdade como um bem supremo.

Há uma palavra que é difícil de ser traduzida: “Union” (união). Em 1776, discutem-se os
limites da independência e da liberdade, ao que teria direito cada uma das colónias. Para
além disso, há guerra com a Inglaterra, com os povos nativos que não queriam
independência, e logo em seguida consegue-se chegar a um acordo de que se formaria um
outro Estado: os Estados Unidos.

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Passou-se a discutir, então, se esse Estados Unidos seria uma confederação ou uma
federação. Na confederação, há a cessão total da soberania para a União, os Estados não
conservam para si nenhum tipo de poder político, cedem tudo para a união do Estado. A
federação, ao contrário, sugere a cessação da soberania apenas naquilo que for comum a
todos os Estados, conservando com o Estado cedente a soberania naquilo que diga
respeito aos seus interesses próprios.

A palavra Union é lida primeiramente como confederação e, logo em seguida, como


federação (por causa das liberdades). Tinha que se respeitar a freedom, a minha área de
escolha, a minha liberdade fundamental em si. Se eu vivo numa colónia religiosa, quero que
as minhas leis sejam baseadas na liberdade religiosa. Se eu vivo numa colónia criminal, na
liberdade individual. Na comercial, na liberdade comercial, a livre iniciativa.

- Federação

Daí é que a identidade da constituição nos Estados Unidos se resume a uma liberty, que é
comum a todos os Estados recém-libertos, mas existe a freedom, a partir da federação.
Cada um desses Estados que passa a fazer parte da federação tem o direito constitucional
de regulamentar, de criar o direito para mim diante dessas liberdades.

Constituição escrita e Amendments


a) The U.S. Constitution: redação/aprovação (1787) e ratificação (1788).
b) The first amendments wave: doze foram apresentadas em 1789, com aprovação
de dez, e, posteriormente, ratificação em 1791 do que se concebeu como “The U.S.
Bill of Rights”.
c) Atualmente, a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte conta
com vinte e sete amendements.

Em 1787, a constituição dos Estados Unidos entra em vigência, começou a produzir efeitos
em 1789. Ela tem 7 artigos:

• O primeiro artigo fala do poder legislativo.


• O segundo artigo fala do Poder Executivo.
• O terceiro artigo fala do poder judicial, em nível de autoridade.

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• Os outros quatros artigos falam da federação dos Estados Unidos da América do


Norte: definir a relação entre os Estados Federais, as relações internacionais e o
direito fiscal tributário (quem tem direito a cobrar o quê de quem).

Então, em 1787, a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte resolve a crise da
liberty, definindo as freedoms, e chega-se a um modelo de constituição que respeitaria as
liberdades conforme construídas pelos colonos que deram a origem aquele Estado agora
criado.

A constituição de 1787 é a primeira constituição formal escrita da era das constituições


modernas. É uma constituição totalmente preocupada com a democracia (we the people,
nós o povo), e inaugura a era dos estados federais. A primeira constituição portuguesa é de
1822, tem uma característica muito próxima disso: a ideia de liberdade. Entrámos na era
das constituições liberais de Portugal, que foi possível por causa da revolução liberal do
Porto.

A constituição dos EUA precisou responder uma dúvida: quais eram os direitos
fundamentais do cidadão dos Estados Unidos da América do Norte? É uma constituição
formal, mas os 7 artigos referem-se apenas a formalidades, à relação de poder. E os
indivíduos, onde está aquela parte material? Onde estão os fundamental rights?

E agora, o que é que o povo quer? Ele quer atuação, quer direitos. Os franceses queriam
votar. Os americanos, uns querem matar os outros, outros querem vender o que não têm,
outros querem provar que o seu Deus é melhor do que os outros. É a tensão que ele se
instaurava na hora de se identificar diante da Liberty quais eram os direitos fundamentais.

Em 1789, no mesmo período da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do


Cidadão, os Estados Unidos da América do Norte propõem a primeira onda de emendas, e
as dez primeiras emendas incluíram dez artigos a esse texto, que foram chamados de The
USA Bill of Rights (ou American Bill of Rights), declaração de direitos dos Estados Unidos
da América do Norte. A esses artigos, deram o nome de civil rights (apelando à ideia de
liberdade).

Os direitos sociais nos EUA são, em regra, conhecidos como civil rights. "Direitos
Fundamentais" para eles não era lógico, porque tudo que está na constituição é

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fundamental. Social rights era muito comunista. Eles queriam liberdade, civil rights. Depois,
esta teoria de liberdade é estendida para outra onda de reformas em 1791. Hoje, os
Estados Unidos da América do Norte têm uma constituição com sete artigos e vinte e sete
emendas.

Os EUA começam com treze colónias, treze estados. Hoje, têm cinquenta estados e cinco
possessões. Cresceram por movimentos militares, por compra... (Alasca, por exemplo, foi
comprado à Rússia).

O facto de estes direitos terem sido aprovados não significa dizer que entraram logo em
vigência, era necessário que cada estado votasse e depois ratificasse para que
produzissem efeitos. Então, cada direito foi pensado diante dessa identidade constitucional
dos EUA.

Duas ondas de emendas, mas ainda existem outros direitos a serem ratificados, e eles são
muito gerais, porque são propositivos. Eles abrem o sistema hermenêutico. Eles dizem: há
a garantia da liberdade religiosa nos Estados Unidos da América do Norte. E cada estado
vai regulamentar a liberdade religiosa como melhor os aprouver, nas suas constituições
internas. Quando se vota uma emenda, é na expectativa de que ela seja efetivada. Nós
sabemos, por exemplo, que a atual Constituição de Portugal tem normas constitucionais
que precisam de regulamentação, têm eficácia contida, então precisam de ser
regulamentada. No sistema do common law, como nos Estados Unidos, a ideia é de dizer
assim: eu tenho um princípio, esse princípio vai criar a lei. Ele não limita, ele abre (conceito
válvula).

Agora, cada estado tem dois deveres. O primeiro é decidir se quer ratificar. Se não for
ratificado, nenhuma constituição pode regulamentar, porque a norma constitucional ainda
não é norma constitucional. Agora, se for ratificado, os estados, aí sim, têm liberdade de
regulamentar como quiserem. E, assim, convive-se harmonicamente, desde que as
constituições reconheçam.

Cada um dos Estados tem a sua constituição. Cada um dos Estados, então, tem como
principal fonte do seu direito a sua constituição. Não é a constituição federal, é a do estado;
que, necessariamente, tem que ter como fonte a Constituição Federal, por causa dos

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princípios que são criados pelos civil rights. Temos duas ordens constitucionais para cada
um dos cinquenta Estados: uma ordem local e a ordem geral, local rights e general law.

Os Estados Unidos na América do Norte, ainda na época de colónia, tinha um problema de


definir qual seria o seu direito. O que é o common law? Não sou inglês, mas quem sou eu
aqui na colónia? Calvin’s case, birthright. No início é fácil, mas conforme os anos passam, o
direito perde-se, tem que ser reconstruído totalmente. Reconstrói-se até chegar à
independência, uma nova ordem constitucional. Agora, é um direito novo: um direito que
vai se construir, legitimar, não mais no parlamento inglês, mas na constituição dos Estados
Unidos da América do Norte. Agora, as colónias têm que criar as suas constituições, e
essas novas constituições têm que ser legitimadas na Constituição Federal.

E se houver um conflito entre os poderes do Estado? Eu estou diante de uma democracia


no final do século XVIII que tem viva a teoria de John Locke. Então, a liberdade que se fala
é uma liberdade de equilíbrio, uma liberdade em que o poder do Estado é um: é o poder do
povo (a soberania), mas que é exercido, não é por um rei nem pelo parlamento, é exercido
pelo povo. Só que o povo não pode exercer diretamente esse poder.

Um dos discípulos de Locke era Alex de Tocqueville. Ele vai para o EUA nesse período
para entender como o EUA resolveu a crise da judiciaridade. 30% dos EUA era prisão,
recebia criminosos. O que que aconteceu com a França a partir de 1750? Aumento dos
crimes. E em 1789, a revolução francesa, era da guilhotina: como é que vamos prender
essas pessoas todas para arrancar as cabeças? Tocqueville foi até os Estados Unidos para
ver um sistema prisional criado por um inglês. Mas, quando Tocqueville chegou, ele diz:
“eu não vou ver nada de presídio, vou ver como é que esse povo aqui resolveu o problema
de pensar a política. O problema da França não é prender, é resolver o problema político
que está lá. Tocqueville, então, vai estudar a constituição americana e ver a realidade dos
povos aí reunidos. E ele define muito bem o que que era a democracia nos Estados Unidos:
algo que o francês não consegue perceber, porque não é lei em inglês nem alemão, não é
francês nem espanhol; é algo que só existe para aquele povo tão diferente e tão igual. Era
uma característica desses colonos quererem a liberdade individual; ele quer ter a liberdade
de escolha, escolher de entre as liberdades.

Só que ele fica muito preocupado quando essa liberdade é cerceada e bem limitada. Então,
ela é individual, mas, ao mesmo tempo, é colectiva. E ele dá um exemplo muito bom: quer

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saber como age um cidadão dos Estados Unidos da América do Norte, não veja na sua
fazenda, porque não vai encontrar; mas diga-lhe que passará uma linha de comboio pela
sua propriedade, e vai ver se ele não vai ser o primeiro a aparecer na sua junta de
freguesia. Eu só me interesso no ambiente privado, há individualismo. No entanto, eu estou
atento ao que acontece na sociedade. E, a partir do momento que algo prejudicar a minha
liberdade, eu vou querer lutar por ela.

O problema que os estadunidenses tiveram que resolver nessa constituição: eles eram
colonos dominados politicamente por uma monarquia. Qual era a experiência dos gêneros
europeus colonizadores daquela época? Eram todos monarquia. Tudo que os
estadunidenses não queriam naquele momento eram eleger ou escolher um rei. A liberty
passava logo por acabar com esse sistema. Também não querem um czar nem um
ministro.

• Primeiro: não pode ser vitalício, não pode ter dinastia, tem que ser temporal. Teoria
de John Locke: quem exerce o poder executivo tem que preencher a sua função
pública durante o mandato e depois voltar para o seu lugar na sociedade, para que
não se beneficie dos privilégios. Então, mandatos limitados no tempo. Tenho que criar
uma função para escolher alguém que vai ficar dentro dos votos do povo. Quem
vamos escolher? O Presidente da República, chefe do poder executivo federal, com
mandato temporário.
• Só que o presidente da república tem que ter o seu poder limitado, não só pelo
tempo, mas também pela sua função. Ele é chefe do Estado e do Governo. Eu não
quero um parlamento, vou criar o congresso, mas preciso também de o limitar no
tempo e nas funções.
• É preciso alguém que julgue, que exerça as funções do tribunal, mas o poder judicial
tem de ser livre (tudo que os tribunais de ingleses não são, são subordinados ao
parlamento).

2. Estrutura política do Estado


Texto constitucional vigente:
- Preâmbulo: “the Blessings of Liberty”
- Há órgãos e poderes federais a conviver, harmonicamente, com órgãos e poderes
estaduais em cada um dos 50 estados.

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Separação de poderes em nível federal:


a) Executivo: Presidente dos Estados Unidos da América
b) Legislativo (sistema bicameral): Senado (Senate) e Câmara dos Representantes
(House of Representatives)
c) Judicial: estrutura complexa e completa.

Três poderes bem definidos: executivo (presidente da república); legislativo (Congresso);


judicial (tribunais).

O que é que há nos Estados Unidos de América do Norte, a nível de lei, que em Inglaterra
não há? Uma constituição. Inglaterra não tem uma constituição formal escrita, os Estados
Unidos da América do Norte têm a partir de agora. Para isso, tem de haver um tribunal
especial, então eles criam o Supreme Court, o tribunal mais importante dos Estados Unidos
da América do Norte, que tem competência para interpretar e guardar a constituição
americana.

Se o presidente ou o congressista não cumprem a sua função, quem os julga? Se houver


disputa entre o presidente e o congresso, quem vai intermediar? Nos primeiros mandatos,
os presidentes tentaram eleger o maior número de representantes no congresso e nomear
juízes federais para a suprema corte que satisfizessem os seus interesses do governo.
Então, temos uma ditadura democrática.

Até chegar ao caso Marbury vs Madison, em que o juiz concluiu o caso dizendo que todo o
juiz tem o dever de, antes de aplicar a lei, interpretar primeiro a constituição.

• Qualquer juiz que pertence ao poder judicial (desde o conselheiro do tribunal


constitucional até o juiz das county courts) tem o dever de interpretar constituição.
Cria-se o chamado critério difuso de constitucionalidade.
• Sempre que um poder público não cumprir a sua função pública constitucional
deverá ser obrigado a fazer por outro poder – check&balance system, sistema de
freios e contrapesos.

A partir de então, temos uma authority (autoridade) que não se via em nenhum tribunal do
mundo. Ou seja, todo o juiz é guardião da constituição, independentemente do seu lugar na
organização judicial.

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A partir de agora, conseguimos entender alguns fenómenos. Por exemplo, porque é que a
Constituição dos Estados Unidos da América do Norte é de 1787, tem duas ondas de
emendas, e tem o mesmo texto até hoje? Porque é que Portugal, por exemplo, teve seis
constituições? Por um motivo simples: quem constrói a norma constitucional são os
tribunais. É a força da hermenêutica constitucional.

O grande ponto da leitura constitucional é: a Constituição tem sete artigos ele tem vinte e
sete complementos. Se levarmos em consideração três ondas, são três fases de
construção da constituição. Inicia-se em 1787 e termina em 1791.

Agora, em relação às fases críticas. Por exemplo, em 1803, a suprema corte é chamada
para resolver a crise de nomeação de juízes federais. O presidente diz: “eu preciso de
juízes federais porque eu preciso controlar a sociedade, para que eles votem ou criem a
jurisprudência conforme eu criei". Só que naquela época era difícil nomear os juízes,
demorava muito tempo. Ele foi, digamos, substituído por alguém que era de outro partido,
tinha outros interesses. Então, o presidente sucessor, em vez de remover os juízes,
nomeava novos. A crise do Marbury vs Madison é exatamente isso. Será que o juiz
sucessor tem o dever de completar, aperfeiçoar, legitimar os atos do presidente anterior?
A Suprema Corte diz que há uma função e há um interesse, a função do presidente e o
interesse público. O que não se pode fazer é tornar o Estado ingovernável. Não é
presidencial tentar manipular o sistema político.

Um outro caso, em 1929, crise de Wall Street, quebra da bolsa de valores nos Estados
Unidos. Obviamente, temos que pensar no wellfare state, que é o sistema de bem-estar
social (não é o estado social, é um sistema próprio deles, não existe outro igual). A
Suprema Corte decide que o Estado precisa de satisfazer os interesses coletivos, portanto
se foi criado um sistema de estado em 1787 que durou até 1929, agora o novo Governo
poderia fazer um new deal (um novo pacto) para mudar o sistema de Estado. Instaura-se
nos Estados Unidos, então, o chamado Estado Liberal (que, na verdade, era um Estado
utilitarista). Instala-se um regime chamado "Estado mínimo": o Estado só dá ao cidadão o
mínimo dos mínimos de assistência, mas também cobra o mínimo. Marshall fica feliz da vida
quando acontece a II Guerra, porque os Estados Unidos viram credor do mundo e
conseguem recuperar a economia.

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Aí, chega outra crise a que a Suprema Corte tem que responder. O mundo a partir da II
Guerra não mudou só a economia, não teve só um desenvolvimento tecnológico, teve
também um desenvolvimento jurídico por via dos direitos humanos. Como iriam interpretar
os civil rights: à luz da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos
Humanos ou do preâmbulo da sua constituição? A suprema corte dos Estados Unidos diz:
“vivemos agora uma era de check and balances, vivemos ainda a possibilidade do Estado
se reconstruir aprovando o new deal (ou seja, o presidente propõe e o congresso aprova
um novo acordo social); e, em relação à liberty, devem agir conforme as constituições dos
estados". A isto se chama judicial activism (activismo judicial), a Suprema Corte quer criar o
direito dos Estados Unidos da América do Norte.

Os Estados Unidos a partir de 1954 entram na Guerra Fria. Houve um movimento político
internacional para romper os laços humanitários entre as duas Coreias. Os EUA ficam
como líder da Coreia do Sul e a URSS fica como líder da Coreia do Norte. E assim seguem
as campanhas militares para o Afeganistão, Laos, Vietnam. Quando se chega a este ponto,
o próprio americano diz: separação dos poderes, Estado mínimo, quem está a pagar a
conta sou eu, o americano aqui está a morrer de fome porque eu tenho que pagar o
movimento militar, e não o movimento comunitário; os Estados não podem fazer nada,
porque as constituições garantem mas não aderem, porque não há dinheiro... então, um
novo acordo? A Suprema Corte entra numa crise existencial, tem que julgar casos
totalmente loucos, como Shelley vs Kraemer.

Em 1971, uma família de cidadãos americanos do Estado de Columbia compra uma


propriedade num bairro, e lá estando começa a receber represálias dos vizinhos, quando
percebem que era um bairro de maioria branca e eles eram pretos. E a liberdade de
propriedade? “Sim, mas não pode comprar aqui." Eles são expulsos do bairro e tentam
anular o negócio jurídico, pedindo o dinheiro de volta. A primeira instância disse: “ninguém
pode alegar o esclarecimento da lei". Cada estado tem que regulamentar, e o Estado da
Columbia regulamentou essa quota da liberdade racial da propriedade. E foi a mantida
decisão. Chegou ao tribunal constitucional do Estado da Columbia (cada Estado tem a sua
constituição, logo também tem o seu tribunal constitucional). Eles perdem na Primeira
Instância, no Recurso e no Constitucional, e vão à Suprema Corte. Alegam que há algo de
estranho demais nessa relação, porque estamos num movimento de igualdade. Qual é o
argumento que trouxeram? Até então só se discutia a liberdade. E a igualdade? E aquela
cláusula que vimos da equity que é onde começa todo esse direito? Lembram-se que a

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common law tem essa relação da equity para resguardar direitos? Só que eles vão buscar
onde? No direito da Columbia. E a suprema corte tem que reconstruir o common law. Sob
que ponto? Qual é o common law dos Estados Unidos? O nosso direito realmente é um
direito que é consequente da história do direito inglês, ou é só um sistema romano-
germânico? A suprema corte diz: “não, há realmente uma causa de equity, há um direito à
liberdade que a constituição tem que regulamentar, mantemos a nossa jurisprudência
anterior". É um stare decisis, um precedente. No entanto, o negócio jurídico não estava
coberto por essa liberdade. O negócio jurídico tem princípios que são imanentes a ele,
como a boa-fé. As cláusulas têm que ser claras o suficiente para que todas as partes
percebam a extensão dos riscos. A partir do momento que se engana, no negócio jurídico,
no uso e boa fruição da coisa, há uma simulação contratual. A equity tem dois caminhos: o
primeiro caminho é usar o princípio da reciprocidade diante dos costumes internacionais;
ou simplesmente irmos na história do nosso direito, é a forma com que o indivíduo exerce a
sua liberdade. Ele não se opõe à sua condição racial, ele se opõe à forma como o negócio
dele foi celebrado. Eu anulo e restituo. Então, cria-se a partir desse caso uma reconstrução
dessa quarta emenda.

A maioria dos Estados tem uma estrutura judicial em três níveis:

i. State Courts (o tribunal que julga): o seu número varia, são tantos quanto forem
necessários, de acordo com o número de habitantes, a natureza da demanda,
dinheiro.
ii. Courts of Appeal (Tribunal de Recurso): cada Estado necessariamente tem pelo
menos um.
iii. State Supreme Court (Tribunal Constitucional).

Depois, há a estrutura federal, também em três níveis:

i. US District Courts: tribunais distritais federais, os que julgam.


ii. US Court of Appeal: Tribunal de Recurso.
iii. Supreme Court: órgão mais importante, julga os casos constitucionais, a
interpretação da constituição.

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Como é que se chega ao julgado federal? Com duas hipóteses: ou pela matéria, ou pelas
pessoas.

• Subject matter ou federal question jurisdiction (em relação à matéria): matérias mais
densas, casos envolvendo insolvência de empresas, propriedade intelectual,
extradição, posse ilegítima de menores...
• Diversity jurisdiction (em relação às pessoas): cidadãos em diferentes Estados da
Federação (são julgados aí por um deles ser estrangeiro), a questão do filho em
comum.

O Tribunal Constitucional só julga casos concretos, não existe poder concentrado nos
Estados Unidos, só o critério difuso. Então, só há duas formas de lá chegar:

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• Provocação directa: aconteceu muito no governo Obama em relação aos planos de


saúde, e no início da gestão do Trump tudo em relação aos imigrantes. Pessoas que
tinham um interesse (não necessariamente pessoas públicas) iam à Suprema Corte
para pedir uma ordem de garantia individual.
• Por via hierárquica dos tribunais: Primeira Instância, Relação, Constitucional... a
minha questão agora é federal, quero que a Suprema Corte diga se tenho direito ou
não.

Fontes de direito

Tal como em Inglaterra, as fontes do direito dividem-se dois grupos: fontes primárias e
fontes secundárias. No entanto, a leitura que se faz é distinta, quanto à distribuição das
fontes pelos dois grupos.

4.1. Fontes primárias


4.1.a. Lei (statutory law)
4.1.b. Jurisprudência (case law)

4.2. Fontes secundárias:


4.2.a. Doutrina (Doctrine)
4.2.b. Restatements of the Law

Nas fontes secundárias, não temos os costumes nem as demais fontes que a família
romano-germânica tem (analogia, princípios de direito...). Só há uma figura que foi criada e
só existe hoje nos EUA, chamada Restatements of the law (que nem tem tradução para a
língua portuguesa).

Nas fontes primárias, temos a lei e a jurisprudência, exactamente no mesmo nível. Nos
EUA, temos leis mais próximas das que temos em Portugal, leis votadas e aprovadas por
um congresso. Claro que a estrutura é outra, a forma é outra, mas a criação foi por um
parlamento legítimo. Leis essas que têm que ser conforme a constituição (respect for
constitution).

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Características:

a) Questão federativa: a importância histórica do constitucionalismo estadunidense, em


que há o fortalecimento do sentimento de respeito à lei como medida de garantia das
liberdades. Portanto, lei e jurisprudência são, ambas, fundamentais para revelação do
direito legal.
b) Questão hierárquica:
b.1. A lei prevalece sobre a jurisprudência
b.2. O direito federal prevalece sobre os direitos estaduais

Os níveis da legislação são distribuídos conforme as competências: constitucional federal;


federal; constitucional estadual; estadual; jurisprudência livre.

1. Há uma característica própria, por ser uma federação: não há só uma constituição, há
uma constituição federal, e 50 constituições estaduais. No primeiro nível, há uma
constituição federal e um órgão que é responsável por interpretar essa constituição e
lhe dar vida, protegê-la: o Supremo Tribunal. Então, tenho a constituição e a
interpretação da constituição, que se dá por jurisprudência.
2. Num nível abaixo, há as leis federais que não sejam a constituição: as
infraconstitucionais, as leis votadas e aprovadas pelo congresso e a jurisprudência
dos tribunais de recurso federal (US courts of appeal).
3. A principal lei do Estado é a Constituição. Então, no terceiro nível, temos as
constituições estaduais. Além destas, a jurisprudência dos Supremos Tribunais
Estaduais (os tribunais constitucionais dos Estados).
4. No quarto nível, se tenho a Constituição do estado, também tenho as leis estaduais,
interpretadas pelos tribunais estaduais recursos.
5. Abaixo, a jurisprudência estadual autónoma em relação à legislação - é common law.
Então, se não houver lei federal nem estadual, os tribunais podem criar
jurisprudência, na omissão da norma.

Ordenação das fontes primárias:


1º nível: Constituição Federal e jurisprudência da U.S. Supreme Court
2º nível: Leis federais infraconstitucionais e a jurisprudência vinculativa sobre
estas normas jurídicas.

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3º nível: Constituições estaduais e jurisprudência dos supremos tribunais


estaduais de competência constitucional.
4º nível: Leis estaduais infraconstitucionais e a jurisprudência vinculativa sobre
estas normas jurídicas.
5º nível: jurisprudência estadual autónoma em relação à legislação.

4.1.a. Lei (statutory law)


- A importância da Constituição:
i. A questão da interpretação da Constituição: "due process of law" e "equal
protection”;
ii. Checks and balance system no âmbito da separação de poderes.
iii. Controlo de constitucionalidade: Marbury vs. Madison (1803).

- Competência legislativa:
i. à luz da 10ª emenda, compete ao poder legislativo federal legislar sobre as matérias
reservadas na Constituição (p.ex. tributos e afins, cunhagem de moedas, controle
das forças armadas, relações internacionais, nacionalidade e cidadania, relações –
comerciais - entre os estados da federação, etc.);
ii. o que não for de "reserva federal" deve ser legislado pelos estados.
iii. Congresso e Câmaras Parlamentares
iv. Delegated legislation, em nível federal (legislativo e executivo; e judicial, como, por
exemplo, o Federal Rule of Civil Procedure)

Interpretação judicial da lei


Tendencialmente voltada à literalidade, com as seguintes ressalvas:
i. Admite-se maior flexibilidade na interpretação da Constituição Federal, a incluir a
autorização para uso de elementos teleológicos e sistemáticos;
ii. Em comparação entre as leis federais e as estaduais, sente-se maior flexibilidade
naqueles que nestas;
iii. Há respeito a dois princípios: na concepção da stare decisis faz-se referência aos
elementos de relevância tanto da lei como dos precedentes jurisprudenciais; e, os
tribunais somente se pronunciam sobre a inconstitucionalidade de leis que foram
anteriormente interpretadas e aplicadas por um tribunal.

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4.1.b. Jurisprudência (case law)


Valor do precedente:
i. É fonte de direito para formação do stare decisis;
ii. Os tribunais inferiores vinculam-se às decisões dos tribunais superiores, baseando-
se no princípio de que “os casos semelhantes devem ter julgamentos iguais”;
iii. Estas regras se aplicam aos tribunais federais e estaduais;
iv. Admite-se o overruling;
v. Rule x policy: “enquanto em Inglaterra os precedentes se aplicam por força de regra
vinculativa (rule), nos EUA não há mais do que uma política do precedente (policy),
uma vez que se admite a hipótese do tribunal deixar de aplicar um precedente na
convicção que o tribunal superior também não o faria.
vi. A descoberta e a evolução do precedente são muito semelhantes às do direito
inglês, alterando-se, apenas, a expressão ratio decidendi para holding of the case.

O precedente nos Estados Unidos é muito próximo do precedente em Inglaterra. No


sistema inglês, tem quatro fases: factos, obiter dicta, ratio decidendi, decision. No sistema
do Estados Unidos da América do Norte, a ratio decidendi (a razão de julgar do juiz) recebe
outro nome: holding of the case.

1) Factos: individualizar/delimitar o processo - quem são as partes, qual é a causa posta


em jogo, qual é a norma omissa ou a norma existente;
2) Obiter dicta: delimitação da demanda - o que é que vai se resolver naquele caso, o
que se quer ao buscar a solução;
3) Holding of the case: todos os elementos anteriores que facilitam e justificam a decisão
do juiz; definir o elemento em que os casos posteriores deverão aplicar essa
jurisprudência anterior;
4) Decisão: onde se decide e resolve o problema (mas o que vincula os casos futuros e
que forma a stare decisis é o holding of the case).

Se o juiz chega à conclusão que existe lei, vai aplicá-la - direito legislado. Se não existe
uma lei, ou existe mas é difícil de ser interpretada: existe uma jurisprudência para o caso?
Existe, aplicamos o precedente (a decisão jurisprudencial anterior) - direito jurisprudencial.

Quando não há lei nem jurisprudência, ou há jurisprudência mas é muito antiga e está
desactualizada, aplica-se a regra de overruling:

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o O tribunal não aplica jurisprudência do seu tribunal hierarquicamente superior, vai


buscar jurisprudência ao tribunal mais acima; ou
o O próprio juiz, percebendo que a jurisprudência superior é muito antiga ou que o
tribunal superior não a aplicaria mais, simplesmente cria nova jurisprudência.

Qual é a razão da importância da relação entre a lei e a jurisprudência nos EUA? As


principais fontes do direito para o common law nos EUA são a lei e a jurisprudência. Mas,
uma não é mais importante que a outra? O que criou o Estado não foi a Constituição? A
Constituição não é uma lei? A fundamentação final de qualquer decisão não é a
Constituição? Então, embora as principais fontes sejam a lei e a jurisprudência, a lei ainda é
um pouquinho mais importante do que a jurisprudência. Há ainda outro detalhe: a lei tem
força para revogar a jurisprudência, mas a jurisprudência não tem força para revogar a lei.

Fontes subsidiárias:

o Doutrina, que no direito dos EUA tem um interesse muito maior do que no direito
inglês. Tem autoridade e é respeitada. Servem como elemento de percepção do
direito.

o Restatements of the law, uma forma que se tem de dar preocupação ao direito
jurisprudencial vivo, à busca da equity. A ideia é saber, em determinados momentos
históricos e em alguns ramos do direito, qual é a jurisprudência das cortes. 50
estados, 50 constituições, 50 leituras de liberdade, uma constituição federal, uma
suprema corte de tempos em tempos revendo a interpretação e a criação da norma
constitucional... Como é que se sabe qual é o direito vigente no Estado, para

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resolver um determinado caso concreto? Os Restatements of the law dão essas


respostas. São típicos dos EUA, nascem a partir de 1930 por uma iniciativa da
American Law Institute (um dos braços direitos da Bar Association), que passa a
convidar especialistas para investigar e publicar common law em áreas onde o case
law é mais denso (ou seja, matérias que têm essa complexidade de dúvida). Apesar
da aparência de código, baseiam-se fundamentalmente na jurisprudência (case law
estadual), mas são fontes secundárias de natureza doutrinária. De tempos em
tempos, alguns Estados, anualmente, convidam especialistas a recompilar, dentro
da jurisprudência do Estado, qual é a interpretação dos tribunais formando os
precedentes sobre aquela matéria, e publicam como se fosse um livro. Ali, tem-se
exatamente a definição do direito jurisprudencial, típico dos Estados Unidos da
América do Norte.

O sistema americano, tal como o inglês, baseia-se numa fase processual chamada
"discovery". Antes de chegar ao juiz, os advogados debatem o caso, um procedimento
principalmente na busca da verdade. No common law, há uma busca conjunta de
interesses para se saber qual é a verdade, ao passo que na família romano-germância
temos a contradição, os debates, quem está certo e quem está errado.

As partes tentam resolver, ou seja, identificar o direito para a solução do problema jurídico.
Não resolve, vão até os seus advogados. Os advogados conversam entre si qual seria a
melhor solução jurídica. Se tiverem dúvida, vão até o tribunal.

Chegando ao tribunal, decide-se se é criminal ou civil (não há outra hipótese, ou tem uma
essência baseada no código de conduta criminal ou no código de direito civil). Se for para a
conduta criminal, é iniciada por um tribunal do júri, como no sistema inglês, pessoas
daquela comunidade são escolhidas para responderem uma única pergunta: “guilty or not
guilty”, culpado ou não culpado (não podem dizer se uma pessoa é inocente ou não, só um
juiz pode considerar.

Se os jurados dizem “culpado”, o juiz vai ter que identificar qual precedente, aí ele vai
saber se o precedente é antigo ou não, na percepção dele. Se o jurado diz “não culpado",
não há direito aplicável, porque não há o facto jurídico tipicamente punível.

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Se for civil, o juiz vai querer ler a list of precedents, uma proposta de precedentes, feita por
cada um dos advogados, que eles entendem que resolveriam o caso. O juiz escolhe de
uma lista ou de outra, e aí ele tem que saber se são ou não válidos, ou simplesmente abrir a
fase do discovery - vai analisar as provas porque não está convencido do facto - e aí ele vai
catalogar as evidências e decidir quais se tornam provas para integrar o processo.

No final, ele deve ter formado o conjunto probatório, para descobrir o direito (discovery):
vai analisar aquelas provas e vai chegar à sua conclusão sobre o fato. Diante do facto, ele
pode voltar às duas listas ou ir para outro precedente.

No caso criminal, o tribunal do júri pode em 50% nos casos dizer, “não faça nada juiz", e
nos outros 50% dizer "trabalhe juiz, e diga-me aqui qual é a solução". No caso civil, os
próprios advogados fazem o trabalho. Na maior parte das vezes, o juiz faz pim-pam-pum.

Basicamente, o que que acontece é uma estrutura bem próxima da nossa. Se se escolhe a
lei na família romano-germânica, lá escolhe-se o precedente. Passível de reexame nos
tribunais de recurso, e se a matéria for constitucional consegue-se desprender e chegar ao
tribunal superior.

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Direito Muçulmano

Dos sistemas que já estudámos, de uma forma ou de outra, todas as fontes do direito
eram fontes laicas, criadas e justificadas na razão humana. Criadas pelo parlamento, por
tribunal... mas criada por seres humanos, diante das suas experiências, histórico-sociais.
Na família romana germânica, a reconstrução do direito romano a partir da queda do
Império pelos valores normativos recém-libertos, pela experiência dos costumes
germânicos; no common law, na experiência normanda de um sistema criado pelos
tribunais, um direito comum para toda Inglaterra, depois para a Britânia e depois para o
Império Inglês, e aí vem todo o sistema que brota da variação do common law.

Agora, vamos inverter essa proposição: o direito que vamos ver é justificado em valores
transcendentais (e não em valores humanos), valores religiosos para além da razão
humana, que são ditados por dogmas, crenças, moral, a um profeta. Então, este direito
tem como fonte de revelação um deus: Alá.

Âmbito pessoal do Direito Muçulmano

 De início, destaca-se o facto que o Direito muçulmano, diferente dos


sistemas jurídicos pertencentes às famílias do common law e Romano-
germânico, é pessoal, não de aderência territorial a um Estado.

 Em sendo de escopo pessoal, trata "do conjunto de preceitos que regulam


as condutas dos muçulmanos e as relações destes entre si, a que também
se chama Xaria. Esta tem como bases fundamentais o livro sagrado do
Islamismo – o Corão (ou Alcorão) – e as tradições relativas aos ditos e actos
do Profeta Maomé (a Suna). O Direito muçulmano é pois, essencialmente,
o Direito de uma comunidade de crentes: a dos que professam o Islamismo
(a umma)”.

Por um lado, quem legitima o direito muçulmano não é o congresso nem os tribunais,
são os dogmas religiosos. Por outro lado, a nossa leitura é de direito, não é uma leitura
religiosa. Então, tudo que há a dizer assenta em 600 versículos do Alcorão que se

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referem ao direito. Diante desta ideia de revelação do direito, há uma consequência: o


direito muçulmano não é aderente a um Estado de um país, não fica restrito
territorialmente. Não é o direito do Irão, do Iraque, do Afeganistão, do Egipto... é o direito
muçulmano (Direito islâmico e direito muçulmano, para nós, são expressões sinónimas).
Então, esse direito não pertence a um país, é um sistema que representa várias regiões.

Este direito é baseado num código de condutas - Xaria - que se assenta com ideologia
de vários países, mas que não representam um único país. O direito muçulmano é
pessoal, ele é transportado pelos crentes, aqueles que professam a própria fé. Não há
distinção entre Estado, direito e religião. É por isso que não se adere ou se qualifica a
um determinado período.

2. Países onde vigora

 Generalidade dos países árabes do Médio Oriente: Arábia Saudita,


Bahrein, Emiratos Árabes Unidos, Iémen, Jordânia, Kuwait, Oman, Qatar,
Síria, dentre outros.
 Países africanos: Argélia, Egipto, Guiné, Líbia, Marrocos, Quénia, Tunísia,
Nigéria, Senegal, Somália, e Sudão.
 Países asiáticos: Afeganistão, Indonésia, Irão, Paquistão, etc.

O muçulmano leva consigo o direito muçulmano onde quer que esteja. O inglês leva
consigo o direito de Inglaterra onde quer que esteja (princípio do birthright), é uma
característica do inglês onde quer que ele esteja, porque é reconhecido pelo Estado, na
figura dos tribunais. O direito muçulmano é carregado pelo próprio indivíduo enquanto
regra moral (e não jurídica), onde quer que esteja tem que seguir o seu direito. É
diferente da regra do birthright, que é uma medida de garantia, não é um dever moral:
o inglês, onde quer que esteja, pode invocar o direito da Inglaterra (essa é uma das
causas da revolução dos Estados Unidos da América do Norte, ou melhor, das três
colónias que deram origem aos Estados Unidos da América do Norte). Se não cumpro
o direito da Inglaterra, vou responder perante o Estado. Se não cumpro o direito
muçulmano, vou responder perante Deus. Deus é omnipresente, não tem território, está
em todos os lugares.

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Esta ordem de coerção é totalmente diferente daquelas trazidas pela lei, seja ela o
sistema romano-germânico ou o common law. Quando eu aceito converter-me e ser
muçulmano, eu obrigo-me a cumprir o direito muçulmano.

Poderíamos dizer que o direito muçulmano é um código de conduta? Na verdade, existe


uma distinção entre moral e ética, e ambos dizem respeito ao dever. Quando falamos
em religião, falamos apenas de moral, a ética é uma ciência sobre a qual se repousa
essa moral. Ou seja, eu estou apenas na minha obrigação perante eu mesmo, é diferente
da minha obrigação perante o Estado ou outro sendo Estado. A fonte de autoridade do
direito muçulmano é o direito revelado, que é cumprido espontaneamente pelo indivíduo,
porque quem o obriga a cumprir é ele mesmo. É a ideia de construção desse dever em
respeito à moral, porque é a relação do indivíduo para com ele mesmo. O direito é
construído pelo próprio indivíduo.

A Xaria é o próprio direito muçulmano recompilado, é o conjunto do direito posto em


estrutura, com origem num direito revelado. É como se fosse a reprodução de todas as
fontes do direito, é a reunião de quatro fontes do direito. Se é um direito revelado, a
principal fonte é o livro sagrado do Islamismo - Alcorão (que significa "livro", tal como
"Bíblia"). Esse conjunto de fontes tem uma razão única de se construir, de se ler e
interpretar, que são os valores do Alcorão.

Individualidades: dois sistemas jurídicos (puro e híbrido)

Temos duas formas de ler o direito muçulmano: os sistemas puros e os sistemas


híbridos.

O sistema puro (Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irão, entre outros) são os
sistemas jurídicos pertencentes à família muçulmana em que a Xaria está viva, presente
e conducente dos actos da vida pessoal, familiar, económica e cívica dos muçulmanos.
São sistemas mais rígidos. Ainda assim, em termos da estrutura do direito muçulmano,
existem Estados que são mais fiéis à pureza da Xaria do que outros. Por exemplo, o Irão
é muito mais rígido do que o Líbano. Não se pode falar em ser menos democrata ou
liberal, porque esses valores são racionais e aqui falamos de valores religiosos.

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O sistema híbrido são os sistemas jurídicos pertencentes à família muçulmana em que a


Xaria é conjugada com importantes elementos de influência romano-germânica (Argélia,
Egipto, Líbano, Marrocos, Tunísia) ou do common law (Nigéria, Paquistão, Bangladesh,
Malásia).

É muito mais difícil ter um conflito entre o direito religioso e o direito laico nos sistemas
híbridos. No sistema puro, é muito mais rígido o cumprimento da Xaria. No sistema
híbrido, é mais brando - influência do direito da metrópole sobre as colónias. Então,
sistemas que tiveram mais tempo sobre influência de uma metrópole romano-germânica
têm uma propensão a adotar elementos mais de direito laico, baseados na lei; se for no
common law, baseados na jurisprudência, diante daquela tensão entre case law e
statutory law.

Se falar apenas de dever moral, vou ficar na teologia: vou para céu ou não? Então, vamos
abandonar essa ideia do dever moral e passar para a transposição da conduta em
sociedade, ou seja, como é que o direito muçulmano se constrói a nível de sistema
jurídico.

Formação

3. Génese e evolução

3.1. Origem
Revelação divina a Maomé (570 a 632 d.C.), com difusão por recitação.

-Cinco pilares:
. Crença num Deus único (Alá) de que Maomé foi o mensageiro;
. Oração cinco vezes ao dia;
. Jejum no período de Ramadão;
. Esmola aos pobres;
. Peregrinação a Meca, pelo menos uma vez na vida.

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O catolicismo tem uma origem de ser, inclusive é o fundamento religioso de um Estado


- o Vaticano - cujo líder político é o Papa, tem um Congresso (cardiais), uma estrutura
económica, uma estrutura de justiça, uma estrutura de fazenda, um governo, e também
é extraterritorial (porque administra as dioceses, as arquidioceses, independentemente
dos lugares em que estejam).

Pode haver um conflito diplomático ou jurídico? Conflito jurídico não há, porque vai-se
aplicar o direito do próprio. E diplomático? Já não existe mais, porque a nível de líderes
religiosos eles entendem-se muito bem, não existe nenhum tipo de conflito entre eles,
há um respeito ideológico diante das concepções. Mas, não foi sempre assim. O conflito
diplomático nasce da necessidade de cada uma das duas religiões se afirmarem.

3.3. As quatro fases da evolução do Direito Mulçumano


a) Formação
b) Estabilização e disseminação
c) Declínio
d) Renascimento

A Igreja Católica foi reconhecida por Roma no séc. V d.C.. O Império Romano começa a
ruir e, mais à frente, acelera-se esse declínio a partir da invasão muçulmana. É neste
momento que se começa a formar o direito muçulmano: a invasão do Norte de África e
da Península Ibérica, séc. VII a IX. Um pouco antes, no séc. VI, Maomé, como
representante de uma sociedade nómada (sem território definido, mudava regulamente
de lugar), recebe a revelação e repassa em versos como deveria ser a nova religião,
trabalha aqueles ensinamentos.

Mais à frente, essa palavra, tradição oral, tem que ser escrita. Nesse período de
formação, é o período em que o Alcorão é escrito, mas é principalmente quando se
forma a interpretação (uma coisa é a palavra, outra coisa é a interpretação da palavra).

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O que Alá diz, pelo Anjo, a Maomé, é recompilado, mas o que é que aquilo quer dizer?
É o período em que se criam os primeiros elementos da Xaria: a Ijma e a Suna.

É necessário levar a Palavra, mas como? Uma das formas escolhidas pelo pensamento
islâmico foi a conquista do Oeste. O exército muçulmano começa a vir para Oeste e
encontra-se com o Império Romano, que tem uma religião oficial católica. Dá-se o
primeiro choque entre islâmicos e católicos, e essa disputa deixa de ser meramente
ideológica, é uma disputa também por poder, riqueza, conquista. Então, tenho algo que
vai desestabilizar a região, ao mesmo tempo que põe em causa Império Romano
politicamente e o direito canônico como dogma revelado por um Deus. Uns vão querer
provar que o seu Deus é melhor que o outro (não importa quem, é sempre o vencedor).
No séc. IX, o Império Romano já decaiu muito na Europa Continental, já não existe na
Betânia; a Betânia, em 1066, está em vias de iniciar a sua fase de common law; o
surgimento das universidades na família romano-germânica; a tensão entre mouros e
romanos.

Na fase de estabilização e disseminação, a partir do séc. X, há um exército totalmente


convertido em como deve agir na sua Jihad ("Guerra Santa", contra os infiéis). Há uma
guerra ideológica e uma guerra militar. Chegamos aonde? Ao movimento que une os
três sistemas: as Cruzadas.

A primeira cruzada foi na época da Magna Carta, na Europa foi conduzida pelo Rei
Ricardo I de Inglaterra, ajudado pelo rei da França. A guerra santa transforma-se em
duas vertentes: uma guerra ideológica e uma guerra militar. Período das cruzadas,
unindo os três sistemas. A família romano-germânica conhecia o direito muçulmano. Os
cultores do direito muçulmano conheciam o Catolicismo, reconheciam o direito
canónico. Havia essa intersecção entre os modelos e um intercâmbio de conhecimento.

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Do séc. X ao séc. XVIII aconteceu muita coisa. Por exemplo, a formação do reino de
Portugal, a libertação da Península Ibérica, a formação da Britânia, a formação do
sistema romano-germânico, o reino de França, a fragmentação do reino de Itália e dos
povos germânicos... Mas, outros impérios surgiram, para defender o Islamismo, como o
Império Turco Otomano.

Então, a ideologia deixa de ser uma forma de guerra ideológica e continua a ser uma
guerra militar. Não à toa, nós temos hoje as duas maiores religiões do mundo: a católica
e a muçulmana. Católicos aqui já com a reforma, surgindo os protestantes. Já havia a
fragmentação do Império Chinês, o nascimento do direito hindu (principalmente a partir
da experiência inglesa). Estabiliza-se o sistema, mas agora vem uma ideologia mais
humana, baseada ainda num dogma.

Chegamos ao declínio, séc. XIX e XX, o resultado final do produto das revoluções liberais
e industriais. Aqui, a mudança das técnicas de guerra e o domínio económico fazem a
diferença. Não é mais lutar por uma religião, existem uma técnica e um plano muito bem
delimitados. A liberdade é um meio para garantir riquezas, fundamento da Revolução
Inglesa, da Revolução Francesa, da Revolução Americana... por que não atingiria aqui
também? Então, toda essa estrutura regride para as origens, o Médio Oriente, e essas

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influências internas já sectorizadas pelo movimento imperialista, os países de


colonização.

Em 1973, o período de recuperação do movimento islâmico, a que se dá o nome de


Renascimento. Nesta data, surge a crise no petróleo. A partir da II Guerra Mundial,
aparecem novas tecnologias, a ética foi posta de lado e foi substituída pelo progresso
científico. O mundo mudou, e não foi só a nível de direitos humanos. Há uma
reconstrução do progresso das ciências, é um é um novo mundo, um mundo árido por
petróleo. Quem controla a produção de petróleo e gás, controla o mundo.

Era o que se precisava para recuperar a guerra santa e recuperar a força do direito
muçulmano. Quem controla o petróleo e o gás, controla a economia mundial, e os
grandes produtores estão na OPEP. Essa ideia de Renascimento, a partir de 1973, está
ligada à necessidade de o mundo aceitar o direito muçulmano: eu te dou petróleo, aceito
entrar nas bolsas abertas e no comércio internacional, mas vocês têm de respeitar o

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direito muçulmano; vocês vêem direitos humanos de um jeito, nós vemos direitos
humanos de outros.

Aí, vêm as Nações Unidas e dizem: existem dois princípios estruturais das relações
internacionais - soberania e autodeterminação dos povos - cada Estado cria as leis que
quiser e nós respeitamos, nem todos precisam de ser Estados Democráticos de Direito.
Agora, os Estados têm uma autorização das Nações Unidas para reconhecer o seu
direito religioso como direito.

Esta necessidade de o mundo aceitar as estruturas religiosas dos Estados e reconhecer


a possibilidade do direito muçulmano ser internalizado por cada Estado, para além de
ser uma necessidade de economia política, é uma garantia de direito internacional.

4. Características gerais:

4.1. Base religiosa:


 A fonte primordial do Direito é a índole religiosa desvelada dos textos sagrados
(“Direito religioso”);
 Não há separação entre Estado, Direito e Religião. Em verdade, o Direito é um
“aspecto da religião” e o Estado, ainda que no âmbito constitucional, é posto a
serviço desta missão ideológica;
 Não há ideia de Estado de direito ou de soberania popular como fundamento da
ordem jurídica;
 Dado o critério personalista só se aplica aos mulçumanos.

4.2. Pluralidade de fontes


 O Direito muçulmano convive com outras fontes de “direito laico”, mas, em regra,
o “direito laico” se submete a Xaria.

4.3. A tendencial uniformidade do Direito


 Em regra, o Direito Muçulmano “não varia de Estado para Estado, pois as suas
fontes são as mesmas em todos os países cujos sistemas jurídicos integram a
família islâmica”. No entanto, há que se relembrar que as seitas (sunismo e xiismo)
criam suas próprias variações.

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Como é que nós criamos um Estado? A Constituição chama-se Constituição porque,


numa das suas características, constitui o Estado, política e juridicamente? Como é que
eu vou criar um Estado muçulmano? Para eu ter um Estado e poder reconhecê-lo como
Estado, para conseguir negociar com o mundo ocidental, preciso de ter uma
Constituição, o mesmo fundamento jurídico - têm de ser um Estado de Direito (não
necessariamente democrático).

Qual é a principal diferença entre a Constituição daqueles Estados e as constituições da


família romano-germânica e do common law (excepto Inglaterra)? Tem dois artigos que
iniciam os direitos fundamentais para eles:

1. O Estado é religioso islâmico;


2. A principal fonte do seu direito é a Xaria (e, em constituições mais rígidas, o
Alcorão). Se não se coloca a Xaria, coloca-se o Alcorão.

O que legitima então a Constituição do Estado que tenha essa vertente? É a Assembleia
Nacional Constituinte, é o povo? Não, é o Alcorão. Agora não se fala apenas de um
direito, fala-se da formação de um Estado que segue oficialmente o direito muçulmano.
Não é mais só um indivíduo que carrega consigo o direito muçulmano onde quer que a
gente esteja. Existem Estados que estão preparados constitucionalmente diante das
regras de direito internacional público para instituírem o direito consumado.

O direito muçulmano é religioso, só se impõe a quem é fiel. E quem estiver nesse país e
não for muçulmano? É obrigado a segui-lo, respeitá-lo apenas? Nesta fase, em que eles
têm todas as regras do jogo (controlam a indexação da economia), têm reconhecimento
internacional. O Estado, enquanto estrutura de um sistema jurídico construído
historicamente, tem que ser respeitado, mas não pode ser arbitrário.

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Fontes do direito

5.1. Xaria

A Xaria é o próprio direito positivo, de origem divina (quem legitima a Xaria não é o
Homem, é Deus) e com carácter revelado, as regras são impostas aos homens porque
emana da vontade de Deus. Quem tem o dever moral é o próprio indivíduo, é ele que
vai dimensionar as consequências do seu actos. A Xaria tem quatro manifestações
(recebem o nome de manifestações para não ter a confusão com as fontes humanas de
direito):

 A Palavra de Alá vertida no Alcorão;


 A conduta exemplar do profeta Maomé: como ele recebeu a palavra de Alá
revelada pelo anjo, como seguiu aqueles dogmas e ensinamento;
 O consenso da comunidade islâmica, aquilo que é feito em nome do Alcorão e
da Suna: entre as premissas de interpretação, o povo muçulmano age diante da
fé e da verdade, portanto quem age na fé e na verdade não erra;
 A analogia (qiyas) (não é o mesmo conceito que na família romano-germânica).

O processo de determinação do conteúdo da Xaria, o próprio ijtihad ou “esforço


racional”, dá-se com fundamento, primeiramente, no Corão e na Suna, recorrendo-se, no
que for necessário, ao Ijma; e, excepcionalmente, à analogia.

a) Corão

 Dos seis mil versículos, aproximadamente seiscentos são dedicados a regras


jurídicas;
 Não constitui um código jurídico, embora tenha, em si, os principais preceitos do
Direito muçulmano (daí ser reconhecido como “fonte-mãe”), porque os deveres
de conduta apenas obrigam os muçulmanos em consciência e, não, nas relações
com outros semelhantes, bem como firma como propósito último assegurar a
Salvação.

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Os deveres de conduta apenas obrigam os muçulmanos em consciência e nas relações


com outros semelhantes (eu faço porque tenho que fazer, não há aquela pressão
externa, o que há na verdade é correcção interna). Até essa percepção de Alá dentro
do ser, essa fonte de vida de cada um, se restringe a essa interpretação: como é que o
fiel lê a Xaria - o dever moral perante Deus - e como é que se porta diante dos seus
semelhantes por essa pessoalidade, por esse dever inconsciente.

* O cisma entre Sunitas e Xiitas (nos slides vem antes da explicação dos períodos de formação do direito muçulmano)

São formas diferentes de construir a Xaria e a visão que se tem sobre o Alcorão. Não é
ideia de radicalismo ou de concepção política, mas de construção jurídica.

 Seita sunita: formada pelos partidários da dinastia Umayyad que governou a


comunidade islâmica (661-750) após a deposição do califa Ali (599-601), primo e
genro do Profeta. Atualmente, corresponde a maioria dos crentes. Temos aqui uma
sequência natural ou um "patriarcalismo".

 Seita Xiita: opositores do novo regime por acreditarem que a autoridade doutrinal e
política cabia por direito divino apenas aos descendentes de Maomé, ou seja, através
de sua filha Fátima (605-632) (então, não posso falar de patriarcalismo) e Ali, nunca
por eleição de terceiros; eis, inclusive, a origem da palavra xiita (shi’at Ali, indicando
“partidário de Ali”). Atualmente, embora maioria no Irão, constituem a minoria para
os demais países.
São mais rígidos na interpretação, são mais sectários nas suas premissas, constituem
uma minoria ideológica, só represento a maioria no virão, (por isso é que lá é mais
puro o sistema.

As seitas divergem sobre o entendimento das fontes do Islão, inclusive as fontes jurídicas.
Como é que essa representação por ideologia se aplica na formação de direito?

 Os sunitas entendem que o Islamismo se funda no Corão e na tradição oriunda


às falas e aos actos do Profeta, constituindo-se, assim, nas fontes que os
muçulmanos devem sua obediência.

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 Pelo contrário, os xiitas entendem que a fixação do teor do Direito muçulmano


coube igualmente aos doze Imãs (chefes supremos) que sucederam a Maomé;
esta leitura é tão forte que apenas consideram como autênticas as tradições sobre
a conduta do Profeta que foram transmitidas pelos Imãs, de modo que também
é vinculativo para os crentes o exemplo dos Imãs.

Isso aqui vai necessariamente reproduzir uma leitura mais aberta ou mais fechada dos
dogmas muçulmanos, portanto influenciar a interpretação da Xaria e principalmente no
Alcorão e da Suna.

b) Suna

 Suna significa “o caminho percorrido” enquanto determinação do conjunto de


regras abstraídas da conduta do Profeta.
 A Suna é atestada pelos hadites (relatos feitos pelos doutores do Islão até o século
IX) sobre os ditos e ações de Maomé.
 Tem como função confirmar, esclarecer e complementar o Corão.
 A Suna é subordinada ao Corão.

Então, o Corão é revelado, transcrito, escrito, é necessário saber como é que se vai
interpretar, ou seja, em actos como cumprir aquilo que está escrito. Quem nos vai dizer
é exatamente a conduta do profeta, testemunhada hadites.

Embora não se fale que a Xaria tenha essa essa estrutura de fonte principal ou
subsidiária, na verdade nós temos uma fonte que é mais importante que as outras. A
principal manifestação é o Corão. A principal fonte do direito muçulmano é o Corão.
Agora, para eu esclarecer o Corão, eu tenho como a principal fonte de esclarecimento
a Suna: como é que o profeta agiu diante da palavra.

c) Ijma

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Como era com os pretores em Roma? E agora, como é que vou aplicar a lei Romana?
Vamos chamar um jurisconsulto, que me vai dar um parecer (por outras palavras, uma
opinião prudente). Em outras palavras, uma opinião prudente. Aqui, se houver dúvida
razoável de como agir, o máximo a que conseguimos chegar é o Ijma.

Independentemente de a seita ser xiita ou sumita, o máximo a que se consegue chegar


é até o séc. X. A partir de então, todo o direito muçulmano estava constituído.

d) Analogia (qiyas)

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Os meios de transporte naquela época eram os camelos. Então, toda a regra que se
aplica a camelos pressupõe uma interpretação hoje que pode ser adaptada à realidade
da nova sociedade muçulmana. Significa que eu posso aplicar o qiyas (analogia) a ideia
de meios de transporte: onde se lê "camelo", posso substituir por carro, mota, bicicleta...
mas a extensão nunca é em direitos, é em percepção social.

Falando de direitos humanos e da ideia de direitos fundamentais no Direito


Constitucional, relativamente à mulher... Sabemos que todos são iguais perante a lei,
não há que se fazer distinção entre homens e mulheres, é a regra que seguimos no
mundo ocidental. Como é que essas regras são aplicadas? Porque é que as mulheres
têm que andar com um determinado tipo de vestimento (que varia entre sistemas)?
Porque é que não podem falar com outras pessoas, principalmente homens se não
estiverem acompanhadas de um homem da família? Porque é que não podem conduzir?
Ou será que essa regra já não existe mais? Ou será que essa regra é religiosa e não
mais jurídica?

Começamos a perceber que a constituição não é uma regra meramente ilustrativa, ela
tem força jurídica, é responsável para definir a transposição ao menos em dois aspectos:

 Delimitar exatamente a forma com que lêem os direitos humanos no estado, ou


seja, como se constrói os direitos fundamentais. Definir, por exemplo, a atuação
e a forma com que tem o relacionamento entre géneros.
 O relacionamento entre nacionais e estrangeiros. O direito muçulmano não é
imposto apenas ao fiel. E quem não for fiel? Se for o estrangeiro de outra religião?
O direito muçulmano não é oposto ao de quem não é fiel, mas tem de seguir os
direitos do estado.

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Aqui, temos a versão externa do direito muçulmano. Existe uma influência desde a
constituição para dentro dessa estrutura, ou seja, as fontes laicas em todos os Estados
têm a sua constituição, mas a regra de reconhecimento de família como religião oficial
tem origem na Xaria.

Qual é a probabilidade de um Estado com influência muçulmana ter um código? Aqueles


que tiveram a colonização de metrópoles da família romano-germânica. Então, ainda que
tenha voltado, a partir do término do imperialismo da colonização, à sua autonomia, há
a possibilidade de instituir códigos.

5.2. Outras fontes [principais]

Além da Xaria, que constitui o direito positivo de matriz religiosa, há ainda um conjunto
de leis humanas, abaixo da Constituição, de matriz laica indutivamente religiosa. É uma
forma de ter direitos, em consonância com o Alcorão, que trazem garantias aos que não
são fiéis. Estes direitos são instituídos em leis e dividem-se em dois grupos:

a) Constituição dos Estados e leis infraconstitucionais


 Há previsão de instituição de Constituição nos Estados muçulmanos, mas é regra,
tanto o reconhecimento do Islamismo como religião oficial quanto a Xaria como
a principal fonte do Direito.

b) Codificação e leis avulsas


 Nos países que adotaram este expediente, quando a matéria se refere ao estatuto
pessoal dos indivíduos em que a Xaria se afirmou de modo mais nítido, ou a lei
ordinária/código não existe, ou apenas se presta a esclarecer os preceitos de
Xaria, a qual é mandada aplicar aos casos omissos.

A probabilidade de se ter um código num Estado muçulmano atende à sua experiência


histórica de colonização por um país que pertence a família jurídica romano-germânica.

Essa relação pressupõe que tenha de haver dois tipos de tribunais: um religioso e um
de direito, os tribunais de Xaria e os tribunais estaduais.

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 Os tribunais de Xaria julgam tudo o que tem matriz nesse direito positivo: a
interpretação da norma aplicada ao caso concreto a partir das regras religiosas.
 Os tribunais estaduais servem para julgar quem não é fiel.

Por um lado, a constituição não é apenas algo para apresentar à comunidade


internacional, hoje significa a legitimação de um sistema. Por outro lado, há o
reconhecimento jurídico de valores religiosos para quem não é religioso e de uma
estrutura de legitimação de direitos fundamentais, aos moldes de uma estrutura
religiosa.

A questão dos direitos humanos. Como é que uma comunidade pode aplicar pena de
morte, simplesmente porque houve uma acusação de um homem contra uma mulher?
É uma norma social que passa a ser norma jurídica, a partir de um princípio de direito
internacional: direito a autodeterminação dos povos. O povo resolveu se constituir diante
desses valores, cuja regra jurídica é essa. Paralelamente ao apedrejamento, há a cadeira
eléctrica. Por outras palavras, estamos a falar de uma mesma realidade jurídica: a pena
de morte.

No Direito Comparado, é importante levar em consideração justamente a análise do


sistema pelo próprio sistema. O sistema jurídico formado pelo direito muçulmano é o
inverso dos sistemas que já estudámos. Não é um sistema lógico ou racional, é um
sistema dogmático religioso. Se está errado ou certo, são opiniões pessoais. O Direito
Comparado apenas nos permite afirmar que é um sistema jurídico legitimado numa
autoridade divina, que tem uma estrutura normativa com fontes do direito, em que fontes
religiosas convivem e induzem à criação de fontes laicas. Depois, há uma estrutura de
direito que é muito próxima, não em fundamento mas em organização lógica, do
ocidente: uma constituição com leis infraconstitucionais. O que muda é a forma com que
os direitos são lidos e legitimados e a autoridade dos seus tribunais.

c) Costumes
 Tem dúplice importância: a um, serviu de fonte de inspiração para a Xaria; e, a
dois, de fonte subsidiária para desvelar o direito vigente em consonância com a
própria Xaria em questões de adaptação a novas comunidades.

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d) Doutrina

 A partir do século X, findo o "esforço jurídico criador" (Ijtihad), a doutrina, ao


menos no pensamento sunita tradicional, regeu-se pelo princípio do taqlid,
"conforme o qual haveria que aceitar, sem as questionar, as orientações fixadas
pelos fundadores das escolas jurídicas do Islão".
o Mesmo sob o princípio do taqlid, "a doutrina conservou, dada a
exiguidade dos preceitos jurídicos do Corão e as controvérsias existentes
a respeito do teor da Suna, um papel fundamental tanto na determinação
do Direito aplicável aos casos singulares como na fixação do conteúdo
das leis que visam explicitar a Xaria”.

6. Meios de resolução de litígios

6.1. Tribunais da Xaria:


 Tribunais singulares compostos por cádis (juízes) nomeados e destituídos pelos
Imãs, Califas e Governadores, com competência para administrar a justiça nas
questões de direito privado muçulmano.
 A jurisdição dos cádis se cinge às questões entre muçulmanos.

6.2. Tribunais estaduais


 Existem tantos tribunais quantos são os previstos em cada organização judiciária
interna do Estado, pelo que se reconhece seu caráter pluralista.

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