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4 Fisiologia cardiovascular

Gláucia Helena Fortes

Introdução
O sistema cardiovascular é um dos primeiros sistemas a se formar no corpo durante o
desenvolvimento embrionário e exerce um papel crucial na distribuição de matéria e energia para
todas as células do organismo. Ele é formado pelo coração, a bomba central do sistema, os vasos
sanguíneos (artérias, capilares e veias), que se distribuem para praticamente todas as regiões do
corpo e o sangue, o líquido contendo gases, nutrientes, excretas, moléculas sinalizadores e de
defesa, células e calor que circula impulsionado pela ação bombeadora do coração. O sistema
circulatório dos seres humanos, assim como de todos os vertebrados é um circuito fechado, de
modo que o sangue está sempre contido nos vasos ou no coração. Ao longo de seu trajeto pelo
corpo, o sangue flui por duas circulações dispostas em série uma à frente da outra: a circulação
pulmonar ou pequena circulação, que tem sua origem na cavidade ventricular direita do coração,
saindo pelo tronco pulmonar e pelas duas artérias pulmonares, distribuindo o sangue aos pulmões,
onde na sua microcirculação capilar a hematose ou troca gasosa ocorre e depois o sangue
oxigenado retorna ao coração chegando pelas veias pulmonares ao átrio esquerdo (AE) (figura1).
Do AE, o sangue vai ao ventrículo esquerdo (VE), origem da circulação sistêmica ou grande
circulação, onde bombeado pela forte contração muscular ele é impulsionado à aorta, a maior artéria
do corpo, a qual através de seus inúmeros ramos distribui o sangue oxigenado para todos os demais
órgãos e sistemas corporais. Ao atingir a intimidade dos tecidos, em nível capilar, as trocas de
matéria e energia são efetuadas e o sangue então é coletado pelos vasos venosos sistêmicos que
fazem o sangue agora pouco oxigenado retornar ao coração, até o átrio direito (AD). Do átrio direito
o sangue passa então ao ventrículo direito (VD) e todo o circuito se repete (figura 1). A força
propulsora do sangue ao longo das duas circulações é a pressão gerada no sangue pela contração
ventricular, que comprime o sangue desenvolvendo pressão no mesmo. Este sangue pressionado
ao chegar na raiz do tronco pulmonar ou na raiz da aorta será então impelido para frente na
circulação pela diferença de pressão ao longo do circuito, obedecendo à lei de Poiseuille, onde o
fluxo de líquido num compartimento tubular depende da diferença de pressão ao longo do tubo, de
modo que o líquido flui sempre para o lado de menor pressão.

Objetivos

Esperamos que ao final do estudo deste capítulo, você seja capaz de:
• descrever os componentes do sistema cardiovascular, sua importância funcional geral e o
funcionamento detalhado do coração, tanto do ponto de vista elétrico como mecânico, bem como
a circulação do sangue através dos vasos;
• entender os conceitos hemodinâmicos de débito cardíaco, volume sistólico, frequência cardíaca,
pressão arterial e resistência periférica total;
• conhecer os mecanismos de regulação da circulação.

Esquema

4.1 O coração
4.1.1 O potencial de ação cardíaco
4.1.2 Importância do platô e período refratário
4.1.3 O automatismo cardíaco
4.1.4 A condução elétrica ao longo do coração
4.1.5 O eletrocardiograma e as ondas eletrocardiográficas
4.1.6 Mecanismos da contratilidade cardíaca.
4.1.7 O Débito cardíaco
4.1.8 O Ciclo cardíaco
4.2 Hemodinâmica
4.2.1 A circulação nas grandes artérias
4.2.2 A microcirculação - arteríolas
4.2.3 Microcirculação – vasos capilares – Intercâmbio capilar-interstício, pressões ou forças
de Starling e drenagem linfática.
4.2.4 O retorno venoso
4.3 Regulação da circulação
4.4 Conclusão

4.1 O coração
Como visto na figura 1, o coração é o órgão central propulsor de sangue na circulação. Ele
é um órgão cavitário (04 cavidades internas, os átrios direito e esquerdo e os ventrículos direito e
esquerdos, separados entre si pelos septos interatrial e interventricular) e revestido em sua parede
com uma camada de musculo estriado cardíaco mais espessa nos ventrículos que nos átrios e mais
espessa no VE em comparação ao VD. Separando os átrios dos ventrículos, em ambos os lados
do coração, encontramos as válvulas átrio ventriculares (tricúspide à direita e mitral ou bicúspide à
esquerda), as quais se fecham durante a contração ventricular (sístole), impedindo o refluxo de
sangue para os átrios durante a sístole, e as válvulas semilunares, em formato de meia lua,
encontradas na raiz do tronco pulmonar (válvula pulmonar) e na raiz da aorta (válvula aórtica), as
quais se fecham durante o relaxamento ventricular (diástole), impedindo o refluxo de sangue das
artérias para os ventrículos. Estas estruturas valvulares presentes no interior do coração garantem
assim um fluxo unidirecional de sangue, sempre dos átrios para os ventrículos, dos ventrículos
paras artérias e destas para o restante da circulação até os capilares e retornando aos átrios pelas
veias.
Figura 1: Visão geral da circulação sanguínea em seres humanos. O circuito em vermelho representa o
sangue arterial (oxigenado) enquanto o circuito em azul representa o sangue venoso (pouco oxigenado)
Fonte: Silverthorn, 7 ed., 2016.

Para que a contração cardíaca aconteça de modo a pressionar o sangue e fazê-lo fluir, as
paredes cardíacas são dotadas de músculo estriado, o músculo estriado cardíaco, o qual é
composto pelas células musculares cardíacas, ou cardiomiócitos, os quais possuem sarcômeros
em seu citossol, semelhante ao músculo estriado esquelético (ver capítulo 2). Os cardiomiócitos
estão situados na camada média (miocárdio) da parede das câmaras cardíacas, entre as camadas
interna (endocárdio) e a externa (epicárdio). Nesta camada média, os cardiomiócitos encontram-se
bem próximos uns dos outros, formando entre si junções celulares com células vizinhas. Tais
junções são denominadas de discos intercalares e nelas podem ser encontradas especializações
de membrana, tais como interdigitações, desmossomos e junções comunicantes (nexus ou junções
gap - “gap junctions”) (Figura 2). As interdigitações e desmossomos são importantes para manter
um acoplamento mecânicos entre as células cardíacas, enquanto as junções gap são fundamentais
para garantir um acoplamento metabólico (troca de pequenas moléculas nutrientes e sinalizadoras
entre células adjacentes) e um acoplamento elétrico entre células vizinhas, pois pelas junções gap,
eletrólitos de uma célula atravessam livremente para as vizinhas por grandes canais chamados
conexons (Figura 2). Esta passagem livre de eletrólitos, em particular o Na+ e/ou o Ca++, acaba por
garantir a condução do potencial de ação entre células vizinhas, de modo que ao ativar o potencial
de ação em uma célula, ele será conduzido pelas junções gap até a próxima célula na sequência,
até que todas as células sejam ativadas. Como todos os cardiomiócitos estão conectados por
junções gap com seus vizinhos, o potencial de ação ao surgir numa célula, a primeira a ser ativada
no coração na região do nó sinoatrial (SA), será conduzido por todas as células cardíacas levando
à ativação elétrica e à contração do coração como um todo.
Figura 2. (A) Músculo cardíaco ao microscópio de luz. Note a grande proximidade entre as células, as
estriações transversais e os discos intercalares (B) Estruturas presentes nos discos intercalares. (C) visão
ampliada da junção comunicante (junção gap ou “gap junction”).
Fonte: Silverthorn, 7ª edição, 2016).

4.1.1 O potencial de ação cardíaco


A estimulação elétrica ou química do coração leva ao surgimento do potencial de ação
cardíaco (Figura 3). Com um potencial de membrana de repouso parecido com o dos neurônios e
células esqueléticas (entre -80 e -90mV), a aplicação de um estímulo limiar ou supralimiar abre
canais de Na+ voltagem-dependentes, os quais são os responsáveis pela despolarização do
potencial de ação cardíaco (fase 0). Após o “overshoot” (quando a voltagem elétrica da membrana
ultrapassa o 0 mV), em +20 - +30mV, ocorre o fechamento dos canais de Na+ e abertura dos canais
de K+ voltagem-dependentes, iniciando-se a repolarização precoce (fase1), a qual é de curta
duração e é interrompida pelo platô do potencial de ação (fase 2), em que o potencial se estabiliza
em torno de +5 - +10 mV e lá permanece por cerca de 250 milisegundos. A fase do platô (fase 2)
representa a despolarização prolongada (250 milisegundos) da membrana cardíaca, sendo
ocasionada pela difusão (entrada) lenta e prolongada de Ca++ para o interior da célula cardíaca
através dos canais voltagem-dependentes de Ca++ de longa duração (canais de Ca++ tipo L).
Enquanto o canal de Ca++ permanece aberto, anulando a saída de K+, a célula permanece no platô.
O portão interno destes canais, à semelhança dos canais de Na+, fecha, ainda que em um tempo
muito prolongado de 250 milissegundos. Após esse tempo, quando o canal de Ca++
automaticamente se fecha, volta a prevalecer a maior permeabilidade ao K+ e então a célula
completa a repolarização (fase 3 – repolarização tardia), através da difusão (saída) de K+ pelos
canais de K+ ainda abertos, voltando ao estado de repouso. Ao término da repolarização, o potencial
elétrico da membrana retorna ao estado de repouso entre -80 e -90 mV.

4.1.2. Importância do platô e período refratário


O período refratário cardíaco consiste no período do tempo em que um segundo estímulo
não é capaz de gerar um novo potencial de ação, sendo o mesmo classificado em absoluto e
relativo. No absoluto, todos os canais de Na+ estão inativados (fechados) e corresponde a quase
que toda a duração do potencial de ação, enquanto no relativo, alguns canais de Na+ já estão
novamente ativos (abertos), permitindo que estímulos supralimiares possam desencadear novo
potencial de ação precoce, sendo esse período coincidente com 1/3 final da repolarização até o
potencial elétrico de repouso. O prolongamento do potencial de ação pelo platô do potencial de
ação cardíaco (fase 2), aumenta o período refratário cardíaco, impedindo o coração de ser
estimulado em frequências cardíacas excessivamente altas, o que acaba por proteger o coração.
Além disso, por conta da coincidência entre a vigência do potencial de ação bastante durável e a
contração muscular, quando um segundo potencial de ação gerado por um segundo estímulo é
ativado, o músculo cardíaco já está relaxando, de modo que o músculo cardíaco não consegue
jamais somar contrações e muito menos tetanizar. Além disso, a entrada de Ca++ durante o platô é
importante para iniciar o processo contrátil e liberar o Ca++ armazenado nas cisternas do retículo
sarcoplasmático através da dos canais Ca++-dependentes de Ca++-rianodina, desencadeando assim
a contração cardíaca.

Figura 3. Potencial de ação cardíaco rápido. Os números representam as diferentes fases do potencial de
ação. No painel inferior destaca-se os canais iônicos envolvidos em cada fase.
Fonte: Berne e Levi, 6ª edição, 2009).

O potencial de ação cardíaco acima descrito é encontrado em praticamente todas os


cardiomiócitos, tanto nos átrios quanto nos ventrículos e em fibras de Purkinje. Porém, nos nós
sinoatrial (SA) e atrioventricular (AV), onde os cardiomiócitos são células bem pequenas e finas, o
potencial de ação cardíaco é diferente, sendo formado apenas por duas fases: a despolarização e
repolarização, ainda que a duração do potencial de ação nestes nós seja parecida, em torno de 250
ms. Nestas duas regiões, estímulos limiares ou supra ativam canais de Ca++ voltagem-dependentes
tipo L, que pela entrada de Ca++, levam à despolarização do potencial de ação. No pico do potencial
de ação, canais de K+ voltagem-dependentes são abertos e a célula nodal então se repolariza.
Como a despolarização nos nós se faz pela entrada de Ca++, o qual se move mais lentamente para
dentro, a despolarização nestas células é um processo mais lento (potencial de ação lento).

4.1.3. O automatismo cardíaco


Diferente do músculo esquelético, cuja excitação depende de neurônios motores liberarem
acetilcolina na placa motora (ver capítulo 2), no músculo cardíaco a excitação é automática e feita
inicialmente na região do nó sinoatrial (AS), o qual possui a capacidade de se auto-excitar. Essa
auto-excitação ocorre por conta da existência na membrana plasmática de canais catiônicos de
Na+/K+ voltagem-dependentes (canais f ou canais HCN) que se abrem quando a células está em
repouso (hiperpolarizada). A abertura destes canais durante o repouso leva a uma progressiva e
lenta entrada de Na+ para dentro da célula, provocando uma lenta e progressiva perda de polaridade
(despolarização) em direção ao limiar de excitação do potencial de ação da fibra. Essa lenta
despolarização da fibra durante o repouso (repouso instável) é conhecida como potencial de
marcapasso ou despolarização diastólica lenta (DDL) e é a base o automatismo cardíaco (Figura
4). Atingido o limiar, a célula entra em potencial de ação, com a despolarização do potencial de
ação sendo seguida de repolarização. Ao final do potencial de ação, a célula volta ao repouso
hiperpolarizado. Porém, neste instante o canal f é de novo aberto, e o Na+ volta a entrar lentamente
por ele gerando uma nova DDL, que ao atingir o limiar gera automaticamente um novo potencial de
ação. E o ciclo se repete. A duração normal deste ciclo é de cerca de 0,8 segundos, ou seja, a cada
0,8 segundos em média o coração recebe um estímulo nascido no nó SA (Figura 4). Como todas a
células cardíacas estão conectadas por junções gap, a cada 0,8 segundos o coração todo é excitado
e logo em seguida contrai numa frequência média de 75 batimentos por minuto.

Figura 4. (A) Potencial de marcapasso ou despolarização diastólica lenta (DDL) durante o repouso no nó
sino-atrial. (B) Via de sinalização do sistema nervoso autônomo simpático e parassimpático afetando o estado
de abertura do canal f através da síntese de AMP cíclico (AMPc).
Fonte: Berne e Levi, 6ª edição, 2009.

Ainda que o batimento cardíaco não seja acionado por nervos motores, como no músculo
esquelético, o coração recebe inervação motora autonômica simpática e parassimpática, a qual não
gera o potencial de ação automático, mas modula o tempo e o grau de abertura do canal f, via
adenosina monofosfato cíclico (AMPc) gerado pela ligação da noradrenalina do simpático no
receptor beta1-adrenérgico ou pela inibição da formação do AMPc pela ligação da acetilcolina do
parassimpático aos seus receptores muscarínicos tipo 2 na membrana (Figura 4). O AMPc atua
diretamente no canal f, tornando-o mais aberto durante o repouso. Assim, uma estimulação
simpática aumenta a entrada de Na+ do repouso, fazendo o potencial de repouso instável atingir
num tempo menor o limiar de excitação da fibra e desencadeando potenciais de ação mais
frequentes (taquicardia). Já numa estimulação parassimpática vagal, a acetilcolina reduz o AMPc
intracelular, o que torna o canal f menos aberto. E a menor entrada de Na+ no repouso faz a DDL
levar mais tempo para atingir o limiar de excitação, fazendo os potenciais de ação automáticos
surgirem em menor frequência (bradicardia) (Figura 4).

4.1.4. A condução elétrica ao longo do coração


Por conta das junções gap, o potencial surgido inicialmente no nó SA se espalha pelos átrios,
primeiro no AD e alguns milissegundos depois no AE, fazendo-os contrair. No AD, vias preferenciais
de condução mais rápidas, os feixes internodais fazem o potencial de ação chegar rápido ao nó
átrio-ventricular (AV) (Figura 5). No nó AV, porém, pelo fato da despolarização ser lenta (entrada
de Ca++), as fibras serem muito delgadas e entre elas as junções gap serem muito escassas, a
velocidade de condução é muito lenta (a mais lenta do coração). Dentro do nó AV o potencial de
ação leva cerca de 0,12 a 0,14 segundos para ser conduzido até o feixe de His, que vem
imediatamente na sequência da condução (Figura 5). Este tempo lento de condução promove um
atraso na chegada do potencial de ação ao Feixe de His e aos ventrículos, de modo que os átrios
batem primeiro, quando os ventrículos ainda estão relaxados. O batimento atrial precedendo o
ventricular promove um enchimento adicional de sangue no ventrículo de cerca de 10-15%.
O feixe de His, por sua vez, é formado pelos cardiomiócitos maiores (chamados de fibra de
Purkinje), o potencial de ação é rápido (entrada de Na+) e a quantidade de junções gap entre fibras
adjacente é a maior do coração. Isso dá ao feixe de His, seus ramos e sub-ramos e ao plexo de
Purkinje subendocárdico que vem na sequência as mais altas velocidades de condução do potencial
de ação do coração, fazendo com que o potencial de ação se espalhe muito rapidamente pelos dois
ventrículos, ativando de início o septo interventricular, seguido pela ativação da ponta e das paredes
livres até chegar às bases ventriculares a cada lado do coração. Do início do feixe de His até a
ativação das bases cardíacas são decorridos cerca de apenas 0,06 segundos (Figura 5). Esta
rapidez de condução garante uma contração das fibras ventriculares quase que simultaneamente
ao longo de todo o ventrículo, gerando uma contração uniforme e homogênea, capaz de comprimir
com grande eficiência o sangue em seu interior, gerando aumento da pressão sanguínea.

Figura 5. Sistema de condução cardíaco. Os valores numéricos referem-se aos tempos em segundos de
chegada do potencial de ação numa dada região (S-A = nó sinoatrial, A-V = nó atrioventricular.
Fonte: Guyton e Hall, 14ª edição, 2021.

4.1.5 O eletrocardiograma e as ondas eletrocardiográficas


A excitação (batmotropismo), o automatismo (cronotropismo) e a condução elétrica
(dromotropismo) cardíacas são propriedades elétricas da membrana plasmática dos cardiomiócitos.
Para o estudo destas propriedades elétricas do coração, no final do século XIX e começo do século
XX, vários fisiologistas, com destaque para o fisiologista holandês Willem Einthoven, mostraram
que as variações elétricas da membrana plasmática (despolarização e repolarização durante o
potencial de ação cardíaco) somadas por conta do rápido espalhamento atrial e ventricular do
potencial de ação podem ser conduzidas pelo líquido extracelular condutor elétrico até a superfície
cutânea. A aplicação na superfície cutânea (em pontos padronizados) de eletrodos conectados a
um galvanômetro (voltímetro) permite a captura dos potenciais de ação do coração. Estes potenciais
são conhecidos como o eletrocardiograma. E o método de registro destes potenciais inventado por
Einthoven é conhecido como eletrocardiografia. O registro padrão capturado em indivíduos normais
é mostrado na fitara 6 abaixo, onde a onda P é a medida da despolarização atrial, o complexo de
ondas QRS é a medida da despolarização ventricular e a onda T é a medida da repolarização
ventricular. O eletrocardiograma, desde a sua invenção é um método de avaliação clínica cardíaca
não invasiva altamente útil para se estudar as propriedades elétricas do coração e suas alterações
associadas a uma série de doenças do coração. Alterações de condução como bloqueios AV, ou
dos ramos do feixe de His, arritmias cardíacas ou alterações elétricas decorrentes do infarto do
miocárdio são precisamente detectadas pelo eletrocardiograma, tornando-o uma ferramenta
fundamental no arsenal de métodos diagnósticos em cardiologia.

Figura 6. O eletrocardiograma normal. Observe que a cada 0,8 segundos, o coração normal é todo excitado,
ocorrendo um ciclo cardíaco.
Fonte: Guyton e Hall, 14ª edição, 2021.

4.1.6. Mecanismos da contratilidade cardíaca.


Os detalhes da contração muscular cardíaca foram discutidos no capítulo 2. A contratilidade
cardíaca é modulada por diversos mecanismos extrínsecos e intrínsecos. Os extrínsecos consistem
em alterações da concentração de Ca++ no sangue, alterações da atividade nervosa autônoma
(simpática e parassimpática) para o coração e pelos ação dos hormônios simpáticos. Por outro lado,
existe um mecanismo intrínseco, em que a própria musculatura cardíaca pode alterar a interação
entre a actina e miosina e, consequentemente, a contratilidade cardíaca, após mudanças no grau
de estiramento dos sarcômeros, sendo esse mecanismo denominado de “mecanismo de Frank-
Starling” ou lei do coração.
Diferentemente da musculatura esquelética que utiliza exclusivamente o Ca++ do retículo
sarcoplasmático para contrair, a cardíaca tem como fonte principal o retículo sarcoplasmático (70%),
entretanto utiliza também o Ca++ do sangue (30%). A entrada de Ca++ vindo do sangue (interstício)
pela membrana ao nível dos túbulos transversos durante o platô do potencial de ação, decorrente
a ativação (abertura) voltagem-depende dos canais de Ca++ tipo L da membrana plasmática, dá
início ao processo contrátil no coração e promove a ativação (abertura) dos canais Ca++-
dependentes de Ca++-rianodina das cisternas do reticulo sarcoplasmático, resultando em grande
liberação de Ca++ do retículo sarcoplasmático (70%), que somado ao Ca++ que veio da corrente
sanguínea (30%), completa o processo contrátil cardíaco. Em cerca de 250 ms, com o fechamento
dos canais de Ca++ tipo L da membrana, o músculo atinge pico de sua contração. Em seguida, a
remoção do Ca++ do sarcômero leva ao relaxamento do músculo. Esta remoção é feita pela bomba
de Ca++ do retículo e pelo trocador Na+-Ca++ da membrana plasmática. Portanto, o Ca++ presente
no retículo e no sangue modulam a força de contração cardíaca, sendo que em situação de
hipercalcemia haverá difusão aumentada de Ca++ para o interior da célula cardíaca e aumento da
força da contração cardíaca. Já em indivíduos com hipocalcemia vai ocorrer difusão reduzida de
Ca++ para o interior da célula cardíaca e redução da força da contração cardíaca.
Como o músculo cardíaco não tetaniza (somação temporal, ver acima) e nem pode recrutar mais
fibras (somação espacial), pois todas as fibras conectadas por junções gap são sempre acionadas,
a regulação da contração cardíaca se faz principalmente pela regulação da quantidade de Ca++
liberado vindo do meio externo e do retículo sarcoplasmático. Neste contexto, o sistema nervo
simpático desempenha um papel fundamental na regulação da contração cardíaca. A estimulação
simpática, via noradrenalina liberada na fenda sináptica, ativa o receptor beta1-adrenérgico da
membrana do cardiomiocito. Isto promove a síntese intracelular de AMPc, o qual liga-se e ativa a
proteína quinase A no citossol. Essa por sua vez inicia uma série de fosforilações de proteínas-alvo,
ativando-as. Tais proteínas-alvo fosforiladas são principalmente: o canal de Ca++ tipo L, que fica
mais aberto e deixa entrar mais Ca++ vindo do interstício; o canal de Ca++-rianodina, que também
mais aberto deixa sair mais Ca++ do retículo sarcoplasmático, a troponina I, que uma vez fosforilada
deixa de inibir a interação entre actina e miosina. Todos estes efeitos provocam um grande aumento
na força contrátil cardíaca, fazendo o coração expulsar mais sangue e gerando também mais
pressão no sangue. Além do nervo simpático, a adrenalina circulante oriunda da medula da glândula
suprarrenal (adrenal) também exerce um efeito similar. A acetilcolina, neurotransmissor do
parassimpático, por sua vez, faz exatamente o contrário, reduzindo o AMPc e a atividade da
proteína quinase A, o que resulta na redução da abertura dos canais de o canal de Ca++ tipo L e
redução da contratilidade cardíaca.
Além destas ações mediadas pelo sistema nervoso autônomo e hormônios sobre o conteúdo
de Ca++ disponível para a contração, uma outra forma importante de regulação da contração
cardíaca é o mecanismo de Frank-Starling. Esse mecanismo de controle da contratilidade cardíaca
refere-se à capacidade intrínseca da musculatura cardíaca de ajustar a força contrátil frente as
alterações do retorno de sangue venoso ao coração, sendo que quando o retorno venoso aumenta,
ocorre maior estiramento mecânico dos sarcômeros resultando em maior formação de pontes
cruzadas, o que acaba por aumentar a força de contração e do bombeamento de sangue pelo
coração. Por outro lado, quando o retorno venoso diminui, o estiramento é reduzido, resultando em
redução da formação das pontes cruzadas, o que ocasiona redução da contratilidade e do
bombeamento de sangue pelo coração. Este mecanismo é dependente do comprimento inicial da
célula antes da contração. E esse comprimento inicial da célula depende do grau de estiramento
prévio da fibra decorrente do grau de enchimento sanguíneo na câmara cardíaca (pré-carga). Como
mostrado na figura 7, quando o cardiomócito está espremido, encolhido, actinas sarcoméricas
contralaterais atrapalham a interação das actinas com as miosinas de mesmo lado, resultando em
baixa força contrátil. Porém, ao encher mais a câmara com sangue, isto estira a célula, esticando o
sarcômero e melhorando o grau de sobreposição das actinas com as pontes cruzadas da miosina.
Num comprimento de sarcômero em torno de 2,0 a 2,2m, o grau de sobreposição das pontes
cruzadas atinge o seu máximo e força gerada será máxima. Estiramentos adicionais para além dos
2,2m de comprimento do sarcômero resultam em redução da sobreposição das pontes cruzadas
com as actinas e consequente redução de força. Num coração humano adulto normal, em condições
de repouso, o comprimento relaxado do sarcômero é da ordem de 1,4 a1,6m. Neste comprimento
inicial, a força gerada durante a contração é cerca de metade da máxima (Figura 7). Enchimentos
sanguíneos no ventrículo determinando comprimentos acima destes valores até comprimentos
entre 2,0 a 2,2 m resultarão em aumento considerável da força contrátil. Em outras palavras,
quanto maior o enchimento de sangue no coração durante a diástole, maior a força contrátil durante
a sístole, um mecanismo descrito por Frank e Starling nos anos de 1930 e que recebeu o nome de
mecanismo de Frank-Starling ou lei do coração. Este mecanismo, aliado à modulação da
quantidade Ca++ para a contração descrito acima, constitui-se num dos mais importantes
mecanismos de controle da força contrátil cardíaca.
Por exemplo, durante um exercício físico, a ativação simpática e o aumento da adrenalina
circulante acionam o aumento de Ca++ no sarcômero aumentando a contratilidade miocárdica. Ao
mesmo tempo, o efeito bombeador periférico de músculos esqueléticos apertando o sangue no
interior das veias e o efeito da respiração na veia cava inferior aumenta consideravelmente o retorno
venoso de sangue ao coração, enchendo mais as câmaras cardíaca. E um maior enchimento
ventricular na diástole, via mecanismo de Frank-Starling, faz o coração bater com mais força, com
expulsão de maior volume de sangue e com maior pressão. Além de sua importância durante o
exercício físico, o mecanismo de Frank-Starling também é importante para garantir o equilíbrio
ventricular (ejeção de volumes de sangue iguais pelo VD e VE durante a sístole) e compensar
perdas de força contrátil durante lesão ou perda de cardiomiócitos associadas a processo
patológicos como no infarto do miocárdio. Neste contexto, após o infarto uma parte da musculatura
morre. Isso reduz a contratilidade miocárdica e provoca uma menor ejeção de sangue durante a
sístole, sobrando um resíduo maior no ventrículo. Na diástole subsequente, o enchimento deste
ventrículo ficará maior pois o sangue do retorno venoso se somará ao resíduo adicional decorrente
da perda de contratilidade. E assim, a câmara se distende mais durante a diástole, esticando mais
os miócitos vivos distantes do local da necrose. Estes miócitos vivos mais esticados apresentam
uma maior sobreposição das pontes cruzadas e geram assim mais força, compensando assim a
força perdida dos miócitos mortos.

Figura 7. Lei de Frank-Starling representada pela relação entre o comprimento inicial do sarcômero no final
da diástole e a força contrátil desenvolvida durante a sístole. Na fase ascendente da curva, aumentos do
comprimento inicial do sarcômero pelo maior enchimento ventricular resultam em maior força contrátil, com a
força máxima (100%) ocorrendo em 2,0- 2,2 m.
Fonte: Berne e Levi, 6ª edição, 2009.

4.1.7 O Débito cardíaco


Quando então o coração bate, ele bombeia um certo volume de sangue para a artérias,
conhecido como volume sistólico ou volume de ejeção. Este volume num homem adulto padrão de
a70kg é de cerca de 70mL (~1mL/Kg). Como o coração bate a cerca de 70 batimentos por minuto,
no período de um minuto ele ejetará cerca de 4900mL/min (70 bat/min x 70mL/bat.), o que
arredondando dá cerca de 5 litros/minuto. Este volume de sangue bombeado pelo coração para as
artérias por cada ventrículo num dado minuto é conhecido como volume minuto cardíaco ou mais
popularmente como débito cardíaco (DC). O DC é o parâmetro que mede o funcionamento global
do coração, uma vez que a frequência cardíaca é o resultado final da ativação elétrica no coração
e o volume sistólico é e expressão última da atividade mecânica contrátil a cada batimento. Portanto,
os principais fatores determinantes do DC são a frequência cardíaca (FC) e o volume ou débito
sistólico (VS), sendo o DC é determinado pelo produto da FC e VS (DC = FC × VS). A título de
exemplo, o DC pode chegar a 30L/min durante um exercício físico aeróbico máximo (210bat/min x
140ml/bat) por causa a ativação simpática e do mecanismo de Frank-Starling (ver acima). Ou pode
ter valores muito baixos, como durante o sono profundo, onde o parassimpático encontra-se bem
ativo fazendo o DC atingir apenas cerca 3L/min (30bat/min x 100mL/bat). O DC pode assim variar
muito, tanto em condições fisiológicas quanto em condições fisiopatológicas.
Outros fatores determinantes do DC são a pré e pós-carga cardíacas. A pré-carga cardíaca
é definida como pressão que o sangue faz no ventrículo cheio antes da contração, ou seja, refere-
se ao máximo de estresse da parede do ventrículo, quando o mesmo está cheio de sangue. Como
a pré carga depende do retorno venoso ao coração, quanto maior for o retorno venoso, maior será
a pré-carga e o DC, enquanto em situações de reduzido retorno venoso haverá redução da pré-
carga e consequentemente do DC. Já a pós-carga-cardíaca é definida como a grau de resistência
que o coração encontra para bombear o sangue, estando a pós-carga aumentada em situações em
que a aorta e outras artérias encontram-se constrictadas e reduzida quando esses vasos
encontram-se dilatados. Uma vez que indivíduos com obesidade apresentam elevada pós carga
cardíaca, visto que o coração vai encontrar maior grau de resistência para bombear o sangue, isso
poderá reduzir o DC, enquanto situações que promovem dilatação da aorta e outras artérias poderá
resultar em redução da pós-carga e consequentemente aumento do DC. O estado da própria
musculatura(contratilidade) também constitui de importante fator determinante do DC, sendo que
quando saudável e vigorosa, poderá propiciar um DC eficiente. Portanto, os valores do DC são
dependentes de vários fatores, tais como, da frequência cardíaca (quanto maior a FC maior DC),
da pré-carga (quanto maior a pré-carga até certo limite, maior o DC), da contratilidade miocárdica
(dependente do conteúdo de Ca++, por exemplo, onde quanto maior a contratilidade maior o débito)
e da pós-carga, uma força contraria à ejeção de sangue durante a sístole, que depende
principalmente do valor da pressão na raiz da aorta durante a sístole (quanto maior a pressão arterial
durante a sístole, mais difícil fica a ejeção de sangue ventricular e portanto menor o DC).

4.1.8. O Ciclo cardíaco


A atividade mecânica cardíaca se faz de forma cíclica e repetitiva, onde a cada batimento
cardíaco dois eventos se sucedem: a sístole e a diástole. A sístole é a contração dos ventrículos,
com a consequente ejeção do sangue para as artérias, com a finalidade de gerar pressão ao
sangue, de modo que o sangue possa circular ao longo da grande circulação à favor do gradiente
de pressão (do compartimento vascular de maior para menor pressão). A pressão sistólica (PS)
consiste na pressão do sangue nas artérias no instante da sístole cardíaca, sendo essa pressão de
~120 mmHg nos indivíduos normotensos e em repouso. A PS na artéria pulmonar é de ~25 mmHg,
visto que a musculatura do ventrículo direito é mais delgada e não gera tão elevada pressão ao
sangue durante a sua sístole. Já a diástole é o relaxamento dos ventrículos, cuja finalidade e
acomodar e promover o enchimento sanguíneo ventricular com o sangue que retorna pelas veias.
A pressão diastólica (PD) consiste na pressão do sangue nas artérias no instante da diástole
cardíaca, sendo essa pressão de ~80mmHg nos indivíduos normotensos e em repouso. A PD na
artéria pulmonar é de ~8 mmHg, visto que a musculatura do ventrículo direito é mais delgada e não
gera tão elevada pressão ao sangue durante a sua diástole. A introdução do cateterismo cardíaco
em seres humanos por Forssmann em 1929 (um auto-cateterismo) possibilitou um entendimento
aprofundado dos diferentes eventos que ocorrem durante a sístole e a diástole. Como pode ser
verificado pela figura 8, onde pressões são registradas por cateteres na Aorta, no VE e no AE, a
sístole se inicia quando os ventrículos começam a contrair. Esta contração inicial eleva a pressão
do VE para um valor acima da pressão do AE, o que força o fechamento da válvula mitral, marco
referencial do início da sístole. Como neste instante, a válvula aórtica encontra-se fechada
(fechamento este ocorrido no início da diástole anterior), o ventrículo entra num estado de contração
com as duas válvulas esquerdas mitral e aórtica fechadas, de modo que a contração ocorre sem
que o volume de sangue no ventrículo se altere. Este evento constitui-se na primeira fase da sístole,
a contração isométrica ou isovolumétrica. Nesta fase, a força contrátil atuando sobre o volume
sangue constante promove uma súbita e íngreme elevação da pressão intraventricular esquerda
em direção a valores altos.
Quando a pressão do VE atinge valores acima de 80mmHg, um pouco acima da pressão da
aorta, a válvula aórtica é então aberta, iniciando-se a próxima fase da sístole: a ejeção rápida.
Durante esta fase, o ventrículo continua ainda contraindo e a pressão ventricular esquerda continua
a se elevar atingindo o pico de pressão sistólica em torno de 120mmHg. Essa elevada pressão
intraventricular ejeta o sangue pressurizado do VE para a Aorta, a qual também tem sua pressão
sanguínea elevada, por receber o sangue pressurizado vindo do VE. E a pressão na aorta também
atinge alguns milissegundos depois um valor de pressão próximo a 120mmHg. Após o pico de
pressão de 120mmHg, inicia-se o relaxamento ventricular e a pressão intraventricular começa a
cair. Porém, apesar desta queda, por conta da inércia do sangue acelerado durante a ejeção rápida,
o sangue continua a ser ejetado, ainda que a pressão intraventricular esteja caindo. Esta ejeção se
faz com uma contínua desaceleração inercial do sangue e é, portanto, lenta, constituindo-se na
terceira e última fase da sístole: a ejeção lenta. Ao perder por completo sua aceleração inercial, o
sangue do ventrículo com pressão em queda, menor que a pressão na aorta, tende a refluir, o que
promove o fechamento da válvula aórtica, marcando o fim da sístole (Figura 8).
O fechamento súbito da válvula aórtica promove uma pequena e transitória elevação da
pressão aórtica (pequeno entralhe na curva de pressão aórtica), chamado de incisura dicrótica.
Neste instante, com o fechamento da válvula aórtica, o relaxamento continuado do ventrículo se faz
com a válvula mitral também fechada (fechamento ocorrido no começo da sístole). E assim, teremos
a primeira fase da diástole: o relaxamento isométrico ou isovolumétrico, em que o VE está
relaxando, porém com as duas válvulas (aórtica e mitral) fechadas. Nesta fase a pressão ventricular
cai muito rapidamente. E ao ficar abaixo da pressão do AE, esta diferença de pressão abre a válvula
mitral, iniciando-se a segunda fase da diástole: a fase de enchimento rápido, onde o sangue
acumulado no AE durante a sístole dirige-se em alta velocidade para dentro do VE, enchendo-o
rapidamente. Esta fase é sucedida pela fase de enchimento lento (ou diástase), em que o sangue
continuamente vindo das veias pulmonares, ao passar pelo AE continua a encher o VE. Ao final
desta fase, o AE sofre a contração e parte de seu volume é impulsionado para dentro do VE,
ajudando no enchimento final do VE em cerca de 10-15% do volume diastólico final. Esta é a última
fase da diástole e é denominada de contração atrial. Com o ventrículo completamente cheio com
cerca de ~120mL, tem-se início de uma nova contração ventricular e o ciclo se repete novamente.
No final da diástole, a pressão na aorta e outras artérias retorna para aproximadamente 80 mmHg,
denominada pressão diastólica (PD). Todas as fases descritas acima para o lado esquerdo do
coração estão também presentes no lado direito, ainda que uma diferença importante entre os dois
lados esteja presente, que é o nível de pressão desenvolvida pelo VD, e consequentemente
transferida para o tronco pulmonar, cerca de 5 a 6 vezes menor que no VE e Aorta (Figura 8).
Um aspecto clinicamente importante a ser considerado no estudo do ciclo cardíaco é que o
fechamento das válvulas cardíacas promove uma vibração de suas cúspide e anéis fibrosos em
frequências oscilatórias que podem ser audíveis com o uso de um estetoscópio e registradas
graficamente por meio de um fonocardiógrafo. Assim, no início da sístole, o fechamento das válvulas
atrioventriculares (mitral e tricúspide) gera um ruido fisiológico timpânico e de baixa frequência que
pode ser representado pelo som TUM, enquanto no início da diástole, coincidente com a incisura
dicrótica, o fechamento das válvulas semilunares (aórtica e pulmonar) gera um ruido mais seco e
de alta frequência, o TA. Estes sons cardíaco normais (TUM-TA) são chamados de 1ª e 2ª bulhas
cardíacas, respectivamente (Figura 8). Alterações nas válvulas como estenoses ou refluxos de
sangue podem gerar sons ruidosos anormais (turbilhonamento do sangue) denominados sopros
cardíacos, os quais podem ser detectados com o estetoscópio.
Figura 8. Eventos e etapas do ciclo cardíaco do ventrículo esquerdo, mostrando as variações nas pressões
atrial esquerda, ventricular esquerda e aórtica, bem como variações no volume de sangue dentro da câmara,
o eletrocardiograma e o fonocardiograma.
Fonte: Guyton e Hall, 14ª edição, 2021.

4.2 Hemodinâmica
Durante a sístole, um certo volume de sangue pressurizado (volume sistólico ejetado) é
levado até a raiz da artéria (Aorta saindo do VE e Tronco Pulmonar saindo do VD), constituindo-se
num fluído em alta pressão na extremidade inicial de um tubo. A pressão de líquido elevada em
uma das extremidades de um tubo gera movimento (fluxo) do líquido pelo tubo em direção à outra
extremidade de menor pressão (Lei de Poiseuille). Quanto mais alta a pressão na extremidade
inicial do tubo maior o fluxo de líquido por este tubo (Figura 9). Em adição, ao se movimentar no
interior do tubo, o líquido sofre atrito de suas moléculas entre si e com a parede do tubo, perdendo
energia (pressão) ao longo do trajeto. Esta perda de energia devido ao atrito é chamada de
resistência hidráulica. Assim a parede do tubo e as próprias moléculas do fluido ao se
movimentarem oferecem resistência ao fluxo (Figura 9). Esta resistência hidráulica depende de três
fatores físicos: 1) o comprimento do tubo, onde quanto mais comprido o tubo, maior o atrito, ou seja
maior a resistência hidráulica; 2) a viscosidade do líquido, a qual mede a dificuldade de
escorregamento das moléculas do liquido sobre elas mesma, de modo que quanto maior a
viscosidade maior a resistência hidráulica e; 3) o raio do tubo, o qual quanto maior, muito menor
será a resistência (numa razão inversa com a quarta potência do raio do tubo) e muito maior será o
fluxo. Em outras palavras, quanto mais largo um tubo menor a resistência e maior o fluxo neste
tubo. Como cada vaso sanguíneo do corpo tem seu comprimento e seu raio próprios, cada vaso
sanguíneo do corpo tem sua própria resistência hidráulica. A interação destes três fatores pode ser
verificada pela equação da resistência hidráulica (Figura 9). Esta equação foi descrita por Poiseuille
em 1846, sendo válida para tubos rígidos.
Figura 9. Lei de Poiseuille da hidráulica, onde F=fluxo, P1=pressão inicial, P2=pressão final, R=resistência
hidráulica, =viscosidade do líquido, L=comprimento do tubo e r=raio do tubo.
Fonte: Guyton e Hall, 14ª edição, 2021.

O fluxo de sangue no interior dos vasos se faz de forma organizada em lâminas concêntricas
de sangue, o que é chamado de fluxo laminar. Em situações de elevada velocidade do sangue ou
em obstruções (estenoses) vasculares ou refluxos de sangue, o fluxo laminar pode se desorganizar
e formar turbilhões de sangue (fluxo turbilhonado), que ao se chocar contra a parede vascular gera
um ruído chamado de sopro. Se considerarmos que em um indivíduo adulto normal a viscosidade
sanguínea (dependente principalmente da quantidade de hemácias no sangue) e o comprimento
dos vasos pouco se alteram, a resistência hidráulica sofre uma influência muito grande do raio
vascular. E o raio dos vasos pode variar consideravelmente em condições fisiológicas ou
fisiopatológicas devido à presença de músculo liso disposto de forma circunferencial em sua
camada média (exceto nos capilares os apresentam apenas a camada íntima). O raio do vaso reduz
durante a contração do músculo liso (vasoconstricção), elevando a resistência vascular e
dificultando o fluxo. Ao contrário, o raio do vaso aumenta durante o relaxamento do músculo liso
(vasodilatação), reduzindo a resistência vascular e facilitando o fluxo.
Se tomarmos o início da circulação sistêmica, a raiz da aorta, como sendo a pressão inicial
elevada da circulação (pressão arterial média – PAM) e a pressão venosa nas veias cavas (pressão
venosa central – PVC) como sendo a pressão final baixa da circulação sistêmica, teremos uma
diferença de pressão que determinará um fluxo de sangue que é exatamente o fluxo de sangue total
saindo pela aorta e que é exatamente o débito cardíaco (DC). O DC ao se distribuir e fluir por todos
os vasos da circulação sistêmica sofrerá a resistência individual de cada ramo de vaso. A soma de
todas as resistências vasculares individuais dispostas em série e em paralelo ao longo da circulação
resulta na resistência vascular total do circuito incluindo a aorta até as cavas e é denominada de
resistência vascular periférica (RPT).
Aplicando a equação de Poiseuille aos parâmetros acima teremos que DC = (PAM-PVC) /
RPT. Assumindo que os valores de PVC são sempre muito baixos e próximos de zero, teremos
então uma simplificação da equação para DC = PAM / RPT. Rearranjando esta equação para isolar
o parâmetro mais regulado e mais estável da circulação, que é a PAM, teremos então a equação
PAM = DC x RPT, conhecida como equação geral da circulação. Esta equação é muito importante
do ponto de vista clínico, pois nela estão expressos os dois parâmetros circulatórios fundamentais
determinantes da PAM na raiz da aorta: o DC, resultante do trabalho do coração, e a RPT, resultante
do estado contrátil de todos os vasos sanguíneos do corpo, particularmente das arteríolas, que
exercem grande influência na RPT. Assim, um aumento de DC resulta em aumento da PAM. Da
mesma forma, uma vasoconstricção generalizada aumenta a RPT com resultante aumento na PAM,
e vice-versa. Esta equação é fundamental para entendermos a regulação da circulação a ser
discutida abaixo, bem como permite o adequado entendimento da fisiopatologia de inúmeras
síndromes circulatórias, tais como a hipertensão arterial sistêmica, o choque circulatório, a
insuficiência cardíaca, etc.

4.2.1 A circulação nas grandes artérias


Como as grandes artérias possuem raios muito grandes, a resistência hidráulica oferecida
por elas ao fluxo de sangue é muito pequena, de modo que o sangue flui com muita facilidade pelas
grandes artérias, as quais são também conhecidas como vasos de condutância ou de distribuição.
A pressão arterial (PA) nas grandes artérias, em particular a PAM, é um parâmetro hemodinâmico
fundamental para a circulação, pois representa a pressão inicial do circuito que impele o sangue
aos tecidos. Conhecer o seu valor é de grande relevância clínica. A PA pode ser medida de forma
direta via cateterismo arterial ou de forma indireta via esfigmomanometria, onde um manguito
pressurizado aplicado externamente em torno da artéria braquial para oclui-la, permite identificar a
pressão externa capaz de desocluir a artéria, o que é muito próximo do valor da pressão dentro da
artéria, dando assim uma estimativa indireta da pressão arterial. A PAM é calculada após a
mensuração da pressão sistólica (PS) e pressão diastólica (PD), utilizando a seguinte equação
(PAM = 2 × PD + 1 × PS/3). Considerando-se que indivíduos normotensos e em repouso
apresentam PD de ~120 mmHg e PD de ~80 mmHg, a PAM normal fica por volta de ~93mmHg.

4.2.2 A microcirculação - arteríolas


Porém, com a ramificação das artérias até artérias de pequeno calibre em direção aos
tecidos, a resistência hidráulica vai aumentando e se torna máxima quando o sangue passa pelas
arteríolas (artérias com diâmetros menores que 100m, invisíveis a olho nu). Não por acaso, as
arteríolas são os vasos com maior camada média de musculo liso proporcionalmente a seu
tamanho, apresentando uma grande capacidade de vasodilatação e de vasoconstricção. Uma
vasodilatação das arteríolas proporciona uma queda na resistência e melhor fluxo para o tecido
(hiperemia ativa), enquanto uma vasoconstricção eleva a resistência e diminui o fluxo para o tecido.
O raio arteriolar assim é um importante local de regulação do fluxo sanguíneo tecidual. E a
magnitude do raio arteriolar é controlada por uma série de fatores neurais, hormonais e locais (ver
tabela 1) que são muito importantes em uma série de situações fisiológica e fisiopatológicas.
Portanto, como já descrito anteriormente, as arteríolas constituem juntamente as artérias, os vasos
que controlam a RPT (o grau de resistência ou dificuldade que o sangue encontra para fluir através
dos vasos arteriais, principalmente as arteríolas) e, portanto, a PA. Indivíduos que apresentam
vasoconstrição desses vasos (ação de agentes vasoconstritores como adrenalina, noradrenalina,
Ca++, angiotensina II, endotelina) apresentam elevada RPT, já que o sangue vai fluir através desses
vasos com maior grau de resistência, o que pode resultar em aumento da PA. Por outro lado,
indivíduos que apresentam vasos arteriais dilatados (açãos dos mediadores químicos produzidos
durante infecção-inflamação e alergia, tais como, prostaglandinas, bradicinina, histamina e óxido
nítrico) apresentam RPT reduzida, já que o sangue vai fluir através desses vasos com menor grau
de resistência, o que pode resultar em redução da PA. Vale ressaltar no veneno de animais
peçonhentos existe elevada concentração desses agentes algésicos e vasodilatadores,
principalmente a bradicinina, que podem promover vasodilatação sistêmica e redução da RPT e a
PA.
Por exemplo, durante um exercício físico, a estimulação simpática e a ação da adrenalina
circulantes nas arteríolas musculares promovem vasodilatação com aumento do fluxo sanguíneo
muscular, fundamental para suprir o músculo em atividade com nutrientes e oxigênio. Ainda como
um outro exemplo, a vasodilatação promovida pelo parassimpático sacral nas arteríolas penianas é
fundamental para aumentar o fluxo de sangue nos corpos esponjosos e cavernosos, fundamental
para a ereção peniana. Outro exemplo é o aumento do fluxo de sangue para uma dada área ativa
no córtex cerebral que ocorre devido à liberação de fatores metabólicos locais (adenosina, por
exemplo) produzidos por neurônios e células gliais ativas que promovem vasodilatação das
arteríolas piais e maior fluxo de sangue para a área cortical ativa.

4.2.3 Microcirculação – vasos capilares – Intercâmbio capilar-interstício, pressões ou forças


de Starling e drenagem linfática.
Uma vez fluindo pelas arteríolas, o sangue alcança os vasos capilares. Estes são os vasos
mais finos da circulação, além de terem também a parede muito fina, com apenas uma camada de
células, as células endoteliais. E por terem uma parede tão fina e por estarem em contato íntimo
com as células nos tecidos, as trocas de substâncias entre o sangue e o interstício e as células
ocorrem através da parede capilar. Duas forças, conhecidas como forças de Starling atuam na
superfície parede capilar para dirigir o transporte de substâncias: 1) a pressão hidrostática (ph) e 2)
a pressão coloidosmótica (p𝜋) (Figura 10). A pressão hidrostática no capilar (phc), resquício da
pressão hidrostática elevada no início da circulação e gerada pela ação bombeadora do coração,
tem um valor de cerca de 30-32 mmHq na entrada do capilar, enquanto a pressão hidrostática do
líquido intersticial (phi) atuando sobre a parede externa do capilar é em torno de zero na maioria
dos tecidos, podendo ser negativa. Assim, pela diferença entre estas duas pressões, no começo do
capilar, o sangue é filtrado em direção ao interstício. Porém, dada a impermeabilidade da parede
capilar às células sanguíneas, plaqueta e proteínas plasmáticas, apenas a água e os solutos de
baixo peso molecular (O2, nutrientes, vitaminas, hormônios, etc.) presentes plasma atravessam a
parede capilar à medida que o sangue flui dentro do capilar. Devido à alta resistência hidráulica
individual dos capilares e à perda de líquido para o interstício, a phc vai caindo, atingindo valores
de cerca de 15mmHg no final do capilar na saída para as vênulas (Figura 10). Portanto, a pressão
média do sangue no interior dos capilares teciduais (phc) é de ~17mmHg (média de 30mmHg na
extremidade arteriolar e de 15mmHg na extremidade venosa).
Visto que as proteínas plasmáticas não atravessam a parede capilar e se concentram no
plasma, elas exercem uma pressão do soluto sobre a água, que atrai água em direção ao soluto
mais concentrado. Esta pressão osmótica exercida pelas proteínas plasmáticas é chamada de
pressão coloidosmótica ou oncótica capilar (p𝜋𝑐), sendo da ordem de 25mmHg no plasma e
próximo de zero no interstício (p𝜋𝑖), já que poucas proteínas plasmáticas chegam ao interstício. Na
primeira metade do capilar, a phc (32mmHg) é maior que a p𝜋𝑐 (25mmHg), de modo que o líquido
plasmático vai para o interstício, processo denominado de filtração. Porém, mais ou menos a partir
da metade final do capilar, a p𝜋𝑐 (25mmHg) supera a hidrostática a phc (15mmHg) e o líquido do
interstício é atraído para dentro do capilar, processo denominado de reabsorção. Desta forma, na
primeira metade do capilar, o líquido plasmático vai ao tecido levando gases, nutrientes, hormônios
e na segunda metade, o líquido do interstício retorna ao vaso capilar, levando CO2, excretas etc.
A phc é considerada de pressão de filtração, ou seja, uma pressão que favorece a saída do
plasma do capilar para o interstício, podendo ser alterada por mudanças na pressão arterial (PA),
na resistência periférica total (RPT) e na pressão venosa. Por exemplo, quando a PAM está elevada
ou a RPT encontra-se reduzida devido a ação de agentes vasodilatadores sobre os vasos arteriais,
essas alterações podem ocasionar aumento do fluxo de sangue nos capilares, resultando em
elevação da phc e da filtração de plasma do capilar para o interstício, o que acaba por formar edema
por acúmulo de líquido no interstício. Quando a pressão venosa aumenta, a ponto de refluir sangue
das veias para os capilares, a phc pode aumentar ocorrendo também a formação de edema. A phc
(zero mmHg ou mesmo negativa) depende da efetiva reabsorção de líquido do interstício para os
capilares teciduais e da drenagem desse líquido para os vasos linfáticos, sendo também
considerada como uma pressão de filtração, visto que sendo bem menor que a phc (média de ~17
mm/Hg), vai favorecer a saída de plasma do capilar. Portanto, indivíduos com baixa drenagem
linfática (vasos resistivos, obstruídos ou em número insuficiente), o líquido intersticial tende
acumular-se no interstício, aumentando a phi e formando edema.
A p𝜋𝑐 exercida pelas proteínas plasmática de ~32mmHg, é uma pressão de reabsorção, ela
favorece o retorno de líquido do interstício para o capilar tecidual. Indivíduos com doença hepática
e redução da síntese proteica, com lesão renal e proteinúria ou indivíduos com baixa ingestão
proteica, apresentam redução dessa pressão, o que favorece o acúmulo de líquido no interstício e
a formação de edema. Ademais, a p𝜋𝑐 é fundamental para que o plasma fique contido dentro do
compartimento vascular, sendo então, fundamental para a formação do sangue, sendo que uma
redução dessa pressão pode reduzir significativamente o volume de sangue circulante, podendo o
indivíduo entrar em óbito decorrente de choque circulatório. Apesar da impermeabilidade da parede
capilar às proteínas plasmáticas, poucas e pequenas proteínas acabam por alcançar o interstício,
exercendo nesse compartimento uma pressão coloidosmótica ou oncótica intersticial (p𝜋𝑖) de
~8mmHg, constituindo de uma força que também promove a filtração de plasma para o interstício.
Indivíduos sob infecção produzem mediadores químicos inflamatórios, tais como, prostaglandinas
e bradicinina, que promovem vasodilatação das arteríolas, aumentado a phc e aumento da
permeabilidade dos capilares, inclusive as proteínas, e isso acaba por aumentar a p𝜋𝑖, favorecendo
a saída de plasma do capilar para o interstício e a formação de edema.
Existe um quase equilíbrios entre o líquido que sai na 1ª metade e o líquido que retorna na
2ª metade. Este quase equilíbrio é chamado de equilíbrio capilar de Starling. Porém, na realidade,
um pouco a mais de líquido sai na primeira metade, do que retorna na segunda metade, o que
resulta num pequeno acúmulo de líquido no interstício (Figura 10).
Figura 10. Equilíbrio capilar de Starling.
Fonte: Modificado de Berne e Levi, 6ª edição, 2009.

Este líquido acumulado é lentamente drenado pela existência nos tecidos de vasos linfáticos
que surgem exatamente para recolher este pequeno excesso de líquido que se acumula durante a
troca capilar. Ao entrar dentro do vaso linfático este líquido recebe o nome de linfa. E ele é drenado
pelos vasos linfáticos que vão ficando cada vez mais calibrosos e boa parte deles drenam para o
mais calibroso vaso linfático do corpo, o ducto torácico, que acaba por levar a linfa até a junção da
veia subclávia com a veia jugular externa esquerda, retornando este líquido então ao plasma.
Alterações nas pressões de Starling ou na drenagem linfática tecidual pode levar ao acúmulo de
líquido no interstício, conhecido como edema. A tabela 2 abaixo lista as principais situações
causadoras de edema em nosso organismo.

4.2.4 O retorno venoso


Uma vez passado pelo capilar, o sangue é coletado pelas vênulas na microcirculação, as
quais se juntam formando veias de pequeno, médio e grande calibre, até terminarem nos dois
maiores vasos do corpo, as veias cavas superior e inferior, que drenam o sangue da circulação
sistêmica para o átrio direito. Como o calibre das veias em direção ao coração vai progressivamente
aumentando, a resistência hidráulica das veias é muito baixa, de modo que o sangue flui com
facilidade em seu trajeto de retorno ao coração. Porém, nas veias dos membros inferiores e também
dos membros superiores, e quando o indivíduo fica de pé (ortostatismo), a força da gravidade impõe
uma grande dificuldade de retorno venoso, pois o sangue teria que subir pela veia contra a
gravidade. Para tornar o retorno venoso menos trabalhoso nesta situação, a intervalos regulares (a
cada 20 a 30cm) ao longo do trajeto das veias existem válvulas venosas que impedem que o sangue
desça para os pés ou para as mãos quando o indivíduo fica de pé. A presença destas válvulas,
aliada ao fato de que as veias mais calibrosas dos membros situam-se no interior dos músculos
esqueléticos, garante um fluxo de retorno venoso em direção ao coração mesmo com o indivíduo
de pé. A contração dos músculos esqueléticos aperta externamente as veias e por conta das
válvulas venosas o sangue sobe de forma unidirecional ao coração (bomba muscular periférica).

4.3. Regulação da circulação


Os parâmetros fisiológicos cardiovasculares, como a pressão arterial média, o débito
cardíaco e a resistência periférica total tendem a permanecerem os mais estáveis e constantes
possíveis num indivíduo normal em condições fisiológicas. Porém, por conta das constantes
alterações e estímulos do meio ambiente externo e mesmo interno, tais variáveis circulatório podem
sofrer modificações, as quais podem impactar na qualidade de vida e sobrevivência do organismo.
Assim, as eventuais modificações nestes parâmetros funcionais circulatórios precisam ser
corrigidas e mantidas constante o máximo possível. Uma série de mecanismos homeostáticos
baseados em alças de “feedback” negativo existem para regular estes parâmetros funcionais
circulatórios. Como descrito no item 4.3 acima, estes três parâmetros se relacionam de acordo com
a equação PAM=DC x RPT. E entre eles, o que mais tende a permanecer constante é a PAM,
fundamental por ser a pressão inicial da circulação, responsável por impelir o sangue para todos os
tecidos do corpo. O valor da PAM (cerca de 93mmHg para um indivíduo com pressão pulsátil normal
de 120 x 80mmHg) tende assim a ser o mais estável possível. Eventuais modificações deste valor,
desencadeiam alterações no DC e ou na RPT, para restaurarem o valor da PAM para o normal de
~93mmHg. A tabela 3 abaixo lista os vários mecanismos de controle da pressão arterial,
classificados de acordo com o tempo necessário para que a PAM alterada seja corrigida. Se a
correção da pressão for rápida (segundo a poucos minutos) o mecanismo é rápido ou de curto
prazo. Se a correção é um pouco mais lenta (minutos a 1-2 horas) o mecanismo de médio prazo e
se a correção levar horas até 24-48horas, o mecanismo é lento ou de longo prazo.
Entre os mecanismos rápidos de curto prazo, o mais importante é aquele exercido pelos
barorreceptores arteriais, os quais são terminações nervosas livres presentes na camada externa
do arco da aorta (barorreceptores aórticos) ou do seio carotídeo (barorreceptores carotídeos). Estas
terminações nervosas são sensíveis ao estiramento da parede arterial provocado pela elevação da
pressão arterial interna intraluminal. Uma elevação da PA estira a parede e as terminações nervosas
(os barorreceptores são mecanorreceptores, ativados por estiramento), disparando potenciais de
ação que são conduzidos pelo nervo vago (barorreceptores aórticos) ou pelo nervo glossofaríngeo
(barorreceptores carotídeos) até o SNC na região do bulbo raquidiano, a parte mais inferior do
tronco encefálico, localizado dentro do crânio próximo à nuca. Ali chegando, os nervos
barorreceptores aórticos e carotídeos fazem sinapse com um núcleo bulbar chamado núcleo do
trato solitário (NTS), o qual então organizada dentro do bulbo uma resposta de ativação de núcleos
bulbares parassimpáticos (núcleos ambíguo e motor dorsal do vago), que através do nervo vago
descem até o coração e fazem sinapse com neurônios pós-ganglionares parassimpáticos intra-
cardíacos localizados nos átrios, liberando acetilcolina, que nó SA provoca uma bradicardia, com
consequente redução do DC e assim da PAM. Ao mesmo tempo, o NTS projeta-se para núcleos
bulbares ventrais e laterais, culminando com a inibição da região rostral ventral lateral do bulbo,
também denominada de centro vasomotor. Esta região contém neurônios motores que excitam os
neurônios simpáticos pré-ganglionares na medula espinhal, sendo responsável por gerar o “tônus
simpático para os vasos sanguíneos”, um estado de constrição parcial e contínua (tônica) dos vasos
sistêmicos, gerado pela descarga simpática contínua de noradrenalina sobre esses vasos. Esse
centro pode modular a RPT e consequentemente ajustar a PA. Assim, um aumento da PA, ao excitar
os barorreceptores, culmina com a excitação da descarga parassimpática de acetilcolina no
coração, que em associação à inibição do simpático, que no coração, promove bradicardia, reduzem
a força contrátil e o volume sistólico e consequentemente o DC e nos vasos sanguíneos periféricos
a inibição simpática provoca vasodilatação, queda da RPT e consequente normalização da PA
(Figura 11). Toda a sequência de eventos em sentido inverso ocorre também durante quedas na
PA, por exemplo, quando assume-se a posição ortostática (de pé). A queda da PA percebida pelos
barorreceptores ativa o simpático e inibe o parassimpático, com o consequente aumento da FC e
da RPT, normalizando rapidamente (em poucos segundos) a PA. Em idosos e por exemplo em
diabéticos, onde a transmissão do impulso nervoso e as sinapses estão menos efetivas, o reflexo
barorreceptor é menos efetivo e o indivíduo ao assumir a posição ortostática não tem uma correção
da PA tão eficiente e pode desenvolver uma síncope (desmaio) postural. Outros mecanismos
neurais participam também da regulação rápida da pressão arterial (ver tabela 3). Além deles,
mecanismos hormonais também são importantes, com destaque para a adrenalina da suprarrenal,
a vasopressina da neuro-hipófise, o óxido nítrico endotelial e o sistema renina angiotensina. Este
último em particular merece destaque por ser o mecanismo hormonal mais importante de regulação
da pressão arterial.
Figura 11. Reflexo barorreceptor arterial acionado por uma elevação da pressão arterial. Note ao final a
redução da pressão arterial em direção ao normal.
Fonte: Silverthorn, 7ª edição, 2016.

O sistema renina-angiotensina aldosterona (SRA-A) é acionado toda vez que uma queda da
PA acontece. Uma queda da PA reduz a pressão de perfusão sanguínea nas artérias renais, o que
reduz a filtração do sangue pelos capilares glomerulares do rim e reduz a concentração de Na + e
Cl- no filtrado que trafega na mácula densa (túbulo distal situado entre as arteríolas aferente e
eferente do néfron), sendo essa concentração reduzida de Na+ e Cl- um estímulo para que as células
justa-glomerulares (JG) da camada média das arteríolas renais próximas do glomérulo (aparelho
justa-glomerular), secretem renina. Outro importante estímulo para fazer com que as células JG do
rim secretar renina, consiste na descarga do nervo simpático sobre essas células que apresentam
receptores 1-adrenérgicos sobre suas membranas. A renina é uma enzima proteolítica, que sai
dos rins pelas veias renais e ganha a circulação sistêmica e age clivando uma única proteína-alvo,
a globulina plasmática chamada angiotensinogênio, sintetizada principalmente no fígado.
A ação da renina sobre o angiotensinogênio, ao clivar a 10ª ligação peptídica da extremidade
amino-terminal do angiotensinogênio, libera um decapeptídeo no plasma chamado de angiotensina
I, sem efeitos fisiológicos diretos. Este por sua vez sofre ação da enzima conversora da angiotensina
(ECA), ancorada na membrana luminal do endotélio vascular, principalmente nos capilares
pulmonares, que cliva a sétima ligação peptídica da extremidade carboxi-terminal da angiotensina
I, gerando um octapeptídeo, chamado de angiotensina II, a qual exerce os efeitos finais da ativação
do sistema (Figura 12). A angiotensina II atua nos vasos sanguíneos do corpo todo promovendo
uma intensa vasoconstricção generalizada (sistêmica ou periférica), com resultante aumento da
RPT e consequente aumento da PA, além de atuar nos nervos simpáticos ou nos centros
autonômicos do SNC, aumentando a atividade simpática, no hipotálamo, aumentando a liberação
de vasopressina, nos rins, reduzindo a filtração glomerular e nos túbulos renais proximais
aumentando a reabsorção de Na+ e água. Em adição, a angiotensina II atua no córtex da suprarrenal
estimulando a liberação de aldosterona, que por sua vez atua nos túbulos distais finais e ductos
coletores renais, aumentando a reabsorção de Na+ e água, para aumentar a volemia. Todos estes
efeitos combinados culminam com uma elevação da PA, corrigindo assim a queda inicial da pressão
que levou à ativação do sistema (Figura 12). Excetuando a aldosterona, cuja ação é lenta (algumas
horas), a ativação do SRA-A e a consequente correção da PA ocorre em cerca de 10 a 15 minutos.
Figura 12. Ação do sistema renina-angiotensina no controle da pressão arterial. A queda na pressão arterial
desencadeia uma sequência de eventos numerada de 1 a 5, que culmina com a elevação da pressão arterial
em direção aos valores normais.
Fonte: https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/multimedia/figure/regula%C3%A7%C3%A3o-da-
press%C3%A3o-arterial-o-sistema-renina-angiotensina-aldosterona.

Por fim, os rins também exercem um papel fundamental no controle da pressão arterial, ao
controlar o volume de líquido extracelular perdido na urina. Uma elevação da pressão arterial
aumenta a formação de urina via aumento da filtração glomerular e redução da reabsorção tubular,
um fenômeno conhecido como diurese pressórica. Como o conteúdo líquido da urina é retirado do
plasma, um aumento da PA com maior formação de urina significa uma maior perda de líquido
extracelular para a urina, com consequente redução da volemia. Esta redução da volemia resulta
em menor retorno venoso de sangue ao coração e, via mecanismo de Frank-Starling, menor volume
de ejeção sistólica, com consequente menor DC e assim queda na PA, regulando-a e normalizando-
a. Como a formação de urina é um processo muito lento, o tempo que se leva para que o aumento
da PA promova uma perda considerável de urina é muito prolongado, várias horas até 24-48horas,
fazendo deste mecanismo um controlador lento da PA. Porém, ainda que lento, ele é um mecanismo
altamente eficiente, regulando a pressão com eficiência máxima, ou seja, corrigindo completamente
a alteração na pressão arterial depois de 24 a 48hs. Inúmeras evidências experimentais e clínicas
mostram que uma redução na eficiência da diurese pressórica parece ser a base para o
desenvolvimento da hipertensão arterial sistêmica em seres humanos.

4.4 Conclusão
Como pôde ser estudado ao longo de todo o capítulo, vimos que o sistema cardiovascular
tem um papel fundamental na circulação de matéria e energia pelo corpo, transportando sangue
bombeado pelo coração através dos vasos sanguíneos. Para que o coração exerça sua função de
bomba, excitação elétrica na membrana plasmática dos cardiomiócitos, seguida por contração da
musculatura estriada cardíaca faz-se necessária. E esta excitação inicia-se no nó sino-atrial e
espalha-se pelo sistema excito-condutor cardíaco ativando todo o coração. O sangue bombeado
sob pressão circula então impulsionado pela diferença de pressão ao longo dos vasos, sempre em
direção aos menos valores de pressão. Neste trajeto, partindo das artérias, ao passar pelos
capilares, as trocas com os tecidos são efetuadas. E após estas trocas, o circuito se completa com
o retorno do sangue ao coração pelas veias. Para que a circulação se adeque sempre às
necessidades do corpo, uma série de mecanismos de controle da circulação foram discutido. Tais
mecanismos são essenciais para que o organismo se adapte às mais variadas condições internas
e externas e o meio interno seja mantido o mais constante possível.

Referências
1. AIRES, M. M. et al. Fisiologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2018.

2. BERNE & LEVI. Fisiologia. 6 ed. Rio de Janeiro. Elsevier Editora Ltda., 2009.

3. GUYTON & HALL. Tratado de fisiologia médica. 14 ed. Rio de Janeiro: Guanabara-
Koogan, 2021.

4. SILVERTHORN, DU. Fisiologia humana: Uma abordagem integrada. 7 ed. Porto Alegre.
Artmed Editora Ltda., 2017.

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