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Rev Sras Anest

1986; 36: 6: 509-512


Artigo Educacional

Toxicidade do Oxigênio
lmplicaçóes Clínicas

J. P. Araujo Neto, TSA 1

Araujo Neto J P ~ Oxygen toxicity. Clinicai implications.


,-~
:,-, The use of high concentrations of oxygen has grown up. ln this article are discussed biochemical and
'::t- structural changes in the Jung as well as symptoms and clinics of patients exposed to high leveis of
'\._ oxygen. Prophylactic treatr;,ent and limit of safety are presented.

~ KEY -Words: COMPLICATIONS; OXYGEN: toxicity

uso de altas concentrações de oxigênio no ções anatomopatológicas em pacientes normais


O atendimento de pacientes graves tem se
expandido. Durante a exposição hiperbárica a
expostos a oxigênio a 100% por 6 a 12h. Sackner
encontrou redução de movimento ciliar e traqueí-
oxigênio puro, surgem alterações rapidamente, te em exposições a 95% de 0 2 por 6h. Comroe
com toxicidade do sistema nervoso central, bem relatou redução da capacidade vital em pacientes
como alterações pulmonares que podem levar os com exposição a atmosfera com oxigênio a 100%,
pacientes a insuficiência respiratória com progres- bem como redução da complacência dinâmica e
sivo e grave edema pulmonar e hipoxemia parado- menor capacidade de difusão 1 ' 2 .
xa11, 2, 3 _ Uma possível conclusão dos vários estudos é
Altas concentrações de oxigênio têm sido usa- que, embora o aparecimento de traqueíte e
das em tratamento de infecções anaeróbias, into- redução de movimento ciliar possam surgir, pode-
xicação pelo monóxido de carbono, mergulho de se tolerar, em pacientes normais, exposições a
profundidade, em aviação e exploração espacial. oxigênio a 100%, sem sérios danos pulmonares,
Prolongado tratamento hiperóxico é comumente por períodos de até 24 a 48h.
usado no paciente com insuficiência respiratória
aguda, podendo causar danos aos tecidos, mais Mecanismos bioqu(micos da lesão por oxigênio
relacionado à pressão parcial de oxigênio no
sangue do que à concentração, embora essa, De acordo com a teoria de radicais I ivres de
associada ao tempo de exposição, seja o principal toxicidade de oxigênio. a molécula do oxigênio
fator relacionado com a toxicidade. Outras causas, apresenta dois elétrons em sua órbita. que reagrn-
de menor importância, são idade, estado metabó- do, produziria compostos intermediários ou radi-
lico, r1utrição e exposição anterior a agentes cais I ivres ou superóx idoS que são tóx icos 5 ' n' 7
.
3 4
oxidantes' 1
' . A adição de um elétron ao ânion superóx1do
A concentração exata de oxigênio que causa produz o peróxido de oxigênio que, rior ação de
efeitos tóxicos é difícil de ser estabelecida. um ânion superóxido, pode formar radical hidro-
Van De Water não conseguiu identificar altera- xil livre que é tóxico (Quadro 1). O radical
superóxido é também produzido por autoxidação
de componentes celulares como hemoglobina,
1 Anestesiologista e intensivista do Hospital Andara!, INAMPS,
Rio
tióis, adrenalina e por células fagocíticas como
agente bacteriano.
Correspondência para Jaime Pinto de Araujo Neto Os vários danos causados por radicais de
Rua Kobe 330
22600 - Rio de Janeiro, RJ
oxigênio livres incluem a peroxidação lipídica,
oxidação de proteínas sulfidrila (que interferem
Recebido em 22 de junho de 1986
Aceito para publicação em 7 de agosto de 1986 no transporte de oxigênio) e oxidação de ácidos
~ 1986, Sociedade Brasileira de Anestesio/agia nucléicos impedindo a síntese de ADN e ARN'.

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Vai. 36: N':' 6, Novembro - Dezembro, 1986
ARAUJO NETO J P

células (como leucócitos) é ainda incerto. A


0 2 e células do pulmão
proliferação fibroblástica na fase de recuperação
pode levar a f;brose intersticial.
Os macrófigos alveolares são suscet(veis à hipe-
superóxido peróxido de hidrogênio roxia com alterações no seu metabolismo e na sua
..,..----i moti Iidade com redução, após 3h de exposição,
..Radical Hidroxil de 60% dos movimentos. A evolução desfavorável,
soo o ponto de vista anatomopatológico, pode ser
+
Radical Hidroxil livre
sumarizado no Quadro 11.
Estudos de microscopia eletrônica em pulmões
de coelho mostraram as diferentes e não uniformes
oxidação de protei'na Dano ao alterações em membrana basal após exposição
oxidação lipi'dica do grupo sulfidrila ADN e ARN
prolongada a ox igênio 1 1 •

Quadro 1 Efeitos fisiológicos

Pode também causar dano à membrana do endo- Voluntários normais, expostos a 100% de oxi-
télio do capilar do pulmão causando sua rotura 9 . gênio por um per(odo inicial de 6 h, apresentaram
Os mecanismos de detesa natural contra o dano somente traqueobronquite. Persistindo a expos'
do oxigênio incluem o superóxido dismutase, que ção, houve redução progressiva da capacidade
elimina o radical superóxido; catalases e peroxida- vital relacionada a dor torácica retroesternal.
ses, que eliminam o peróxido de hidrogênio e Houve aumento progressivo do edema pulmonar e
peróxidos de lip(dios e um grupo de agentes atelectasia com progressiva redução do surfactante.
antioxidantes, como o glutation reduzido, alfato- Na exposição cont(nua após 30h, houve redução
coferol (vitamina E) e ascorbato (vitamina C)'' 2 . da capacidade da difusão, ocorrendo náuseas,
A relação entre hiperoxia, radicais livres de vômitos e até crises convulsivas 3 •
oxigênio e presença de enzimas protetoras não
está bem estabelecida, variando na presença do Alterações químicas e ação de drogas
modelo bacteriano e de seres humanos.
Existem substâncias que agravam a toxicidade
Mecanismos de tolerância à hiperoxia do oxigênio seja aumentando a quantidade de
radicais livres tipo peróxidos (como os herbicidas
A tolerância ao oxigênio pode se desenvolver
seja às custas de menor produção de radicais
superóxidos por supressão parcial da respiração
Hiperóxia pulmonar
celular durante hiperoxia, seja através de enzinas
protetoras ao est(mulo inicial oxidante. O aumen-
to da presença de pneumócitos tipo 11 (mais Presença de radicais livres

resistentes a hiperoxia) tem ação protetora' 0 .


A resposta ao dano pelo oxigênio é também Dano ao macrófago
idade-dependente, ocorrendo menos em animais
imaturos. Ratos adultos expostos a 100% de
oxigênio morrem em 72h de exposição. A indu-
Dano endotelial
e epitelial i
Recrutamento de
polimorfo nuctea res

ção de atividade enzimática antioxidante está
intimamente ligada ao desenvolvimento de tole-
rância ao oxigênio. Destruição epitelial e endotelial

Alterações anato mo patológicas +


Edema e atelectasia

A lesão ao pulmão por hiperoxia é caracterizada


na fase aguda por edema, atelectasia e hemorragia
+
Membrana hialina

alveolar e uma fase proliferativa de pneumócitos


tipo 11 e deposição de membrana hialina'' 3 ' 1 1 .
+
Morte

As células endotel ia is são as mais precocemente



afetadas. O papel de infiltração secundária de Quadro 11

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TOXICIDADE DO OXIGÊNIO. IMPLICAÇÕES CLINICAS

paraquat e diaquat), ou .diminuindo a atividade Fisiologistas espaciais submetidos a exposição a


enzimática (como o dietilditiocarbonato) 1 • 3 • 55% de oxigênio por uma semana apresentaram,
Outros agentes também têm apresentado rela- como queixa cl (nica, somente discreta dor subes-
ção com piora dos efeitos do oxigênio. A bleomicina, ternal e a atmosferas com 35% de oxigênio, por
antibiótico usado no tratamento do câncer, au- mais de 30 dias nenhuma seqüela, o que poderia
menta a quantidade de radicais livres. ser considerado limite de segurança.
Existem compostos que protegem o pulmão Temos observado em assistência ventilatória
das ações tóxicas do oxigênio, como a vitamina E prolongada, que concentrações de 40% a 60% de
em altas doses. Foi tentado o uso de vitamina E oxigênio no fluxo inspirado não causam trans-
em recém-r1ascidos com s(ndrome de angústia respi-
tornos graves. Pacientes com doença pulmonar
ratória visando proteção à displasia pulmonar que
preexistentes apresentam maior suscetibilidade ao
pode surgir pela exposição ao oxigênio.
oxigênio em concentração alta. Pacientes com
Existem outros fatores que atuam na tox ici-
doença pulmonar obstrutiva crônica. (DPOC)
dade do oxigênio:
grave, apesar de hipoxêmicos, quando expostos a
concentração altas, têm depressão respiratória por
a) Fatores endócrino-metabólicos inibição da resposta ventilatória dos quimiorrecep-
O hipertireoidismo aumenta as reações tóxicas tores periféricos' 3 • 1 5 . Em prematuros, concen-
ao oxigênio. Hipotermia e hipofunção hipofisária trações elevadas de oxigênio em incubadoras
aumentam a resistência orgânica a hiperoxia 1 2 . podem levar à' retinopatia da prematuridade e até
' .
a cegueira.
b) Uso de drogas
Além das drogas que foram citadas acima,
várias outras têm acão ••
tóxica aumentando a TRATAMENTO
presença de radicais livres ou alterando processos
de fosforilação oxidativa. O uso de dissulfiram, Diminuir a concentração de oxigênio na fração
dietilditiocarbamato, aumenta as reacões adversas inspirada talvez seja o melhor meio de prevenir
• • •

ao ox1gen10. toxicidade. O uso de glutation e vitamina E ainda


O uso de ascorbato foi descrito como protetor não têm comprovação cl (nita de sucesso nas lesões
para pulmão'• 2 . da hiperoxemia 3 .
Em pacientes com síndrome de angústia respi·
c) Fator dietético ratória do adulto, que muitas vezes necessitam,
Dietas pobres em prote(nas causam lesão já como parte do tratamento, de frações inspiradas
comprovada em ratos, provavelmente :devidas à de oxigênio altas, o emprego de pressão positiva
perda do precursor da ciste(na necessário à expiratória (PEEP ou CPAP) seria benéfico numa
s(ntese do glutatiom. tentativa de redução destas concentrações' 3 • 1 5 .
Deficiência de alfatocoferol, certos metais co- O pré-tratamento com oxigênio ou a elevação
mo cobre e selênio produzem suscetibilidade a gradual das concentrações seriam formas de pre-
oxigênio. Dietas com altas concentrações de áci- venção dos efeitos tóxicos da substância' 4 .
dos graxos também interferem 4 . Trabalhos recentes, em ratos, mostraram au-
mento da tolerância à hiperoxia quando expostos
Correlação clínica e sintomatologia a ozônio por um peri'odo de sete dias' 4 .
A administração de drogas que estimulem a
Estudos em voluntários lúcidos mostraram que formação de enzinas protetoras parece ser o
após exposição a 100% de oxigênio por 6 a 24 h, melhor caminho para tratamento da toxicidade
surgiam discreta dor subesternal, moderada disp- do oxigênio. Endotox ina de Escherichia coli e
néia e sinais sistêmicos como mal-estar, náuseas e dietilditiocarbamato são drogas que vêm sendo
parestesias. empregadas em animais com este objetivo.

Araujo · Neto J P - Toxicidade do oxigênio. Im- Araujo Neto J P - Toxicidad dei oxígeno.
plicações clínicas.
EI uso de altas concentraciones de oxígeno ha
O uso de altas concentrações de oxigênio tem sido desarrollado em la medicina moderna. En
aumentado

na medicina moderna. Neste artigo este trabajo son discutidas las trocas bioqu í-

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ARAUJO NETO J P

são discutidas as alterações bioquímicas, anato- micas e patológicas e también los efectos de
mopatológicas bem como os efeitos fisiológicos, altos niveles de oxígeno. Tratamiento profilácticc
os principais sinais clínicos e sintomas da ex- e limite de securidad son presentados.
posição a altas frações inspiradas de oxigênio.
O tratamento profilático e o limite de seguran-
ça do uso de oxigêr1io são apresentados.

Unitermos: COMPLICAÇÕES; OXIGÉNIO: toxicidade

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