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MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL.

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ALBANO MACIE, 2021
5. A origem do Direito Administrativo: o contributo Francês e sua
irradiação pelo mundo continental, em particular, Portugal
No sistema francês, o marco do nascimento do Direito Administrativo,
como ciência, é a Revolução Francesa, ocorrida desde o ano de 1789. O
resultado desta Revolução foi, segundo RIVERO:
“1.º (…) uma obra de destruição: a quase totalidade da Administração
do Ancién Regime desaparece. É, pelo menos na aparência, a tábua rasa, a
ruptura total com o passado. Subsistem apenas os corpos administrativos
especializados, devido ao seu carácter técnico.
2.º (…), vai tentar a Revolução edificar uma Administração racional,
uniforme e coerente. Das diversas tentativas que nesse sentido se sucedem
apenas se manterá um elemento positivo: o recorte territorial da França em
departamentos e comunas (…).
3.º (…), a Revolução formula os princípios de filosofia política que
permanecerão como base de toda a ulterior elaboração: o primado da lei,
a separação das autoridades administrativas e judiciais, o liberalismo político,
a igualdade dos cidadãos perante a Administração, o liberalismo económico
(…)”1.
Na França Revolucionária, o nascimento do Direito Administrativo não
deixou de constituir um prodígio. Com efeito, o Direito Administrativo nasce
como um verdadeiro milagre. A expressão “milagre” pertence ao autor
Prosper WEIL. Este afirma que “A própria existência de um direito administrativo
é, em alguma medida, fruto de um milagre. O direito que rege a actividade
dos particulares é imposto a estes de fora e o respeito pelos direitos e
obrigações que ele comporta encontra-se colocado sob a autoridade e a
sanção de um poder exterior e superior: o do Estado. Mas causa admiração
que o próprio Estado se considere ligado (vinculado) pelo direito. (...) Não
esqueçamos, aliás, as lições da história: a conquista do Estado pelo direito é
relativamente recente e não está ainda terminada por toda a parte. (...) Fruto
de um milagre, o direito administrativo só subsiste, de resto, por um prodígio

1 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 28.


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cada dia renovado. (...) Para que o milagre se realize e se prolongue devem
ser preenchidas diversas condições que dependem da forma do Estado, do
prestígio do direito e dos juízes, do espírito do tempo”2.
Formalmente, o impulso legislativo sobre as regras administrativas dá-se
com a Lei de 28 de Pluviose3 do Ano VIII, que dotou a Administração de uma
organização juridicamente garantida e estável, exteriormente responsável e
obrigatória a todos os administrados, bem como separada do poder judicial.
Portanto, é preciso analisar dois aspectos de fundo do nascimento do
Direito Administrativo francês, nomeadamente, o significado do princípio de
separação de poderes para o Poder Executivo ou a Administração Pública e
suas implicações.

5.1. O significado do princípio de separação de poderes


O princípio de separação de poderes, melhor explicado por
Montesquieu, na sua célebre obra «O espírito das Leis», publicada em 1748,
foi interpretado pelos revolucionários franceses “à luz de uma tradição”4 que
se pretendia combater ou evitar. Com efeito, o Ancien Regime submetia o
julgamento de questões administrativas aos tribunais do monarca (como
tribunais de água, de florestas, câmaras de contas e cortes auxiliares).
Contudo, esta solução nunca agradou, em primeiro lugar, aos parlamentares,
que não cessavam de se imiscuir na actividade dos funcionários do Monarca,
o que provocou um conflito constante entre o Parlamento e o Monarca; em
segundo lugar, aos tribunais judiciais que sempre tentaram intrometer-se na
acção administrativa do Rei5.

2 WEIL, Prosper, O Direito Administrativo, Coimbra, 1977, pp. 7-10. Sublinhado nosso.
3 Pluviose corresponde ao actual mês de Janeiro, só que na França Revolucionária tinha trinta
dias, aliás, todos os meses tinham trinta dias. Recorde-se que a 31 de Dezembro de 1805,
Napoleão Bonaparte aboliu o calendário revolucionário e introduziu a 1 de Janeiro de 1806,
o calendário Gregoriano. Os meses antes da abolição do calendário revolucionário eram
designados em França da seguinte maneira: Vindimaire (Setembro); Brumáire (Outubro);
Frimáire (Novembro); Nivôse (Dezembro); Pluviose (Janeiro); Ventôse (Fevereiro); Germinal
(Março); Floreal (Abril); Prairial (Maio); Messidor (Junho); Thermidor (Julho) e Fructidor (Agosto).
4 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 157.
5 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 157-158.
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Portanto, os revolucionários franceses pretenderam evitar que a nova
entidade administrativa nascida do processo revolucionário continuasse a
sofrer ingerências dos parlamentares e dos tribunais judicais. Com efeito, o
princípio de separação de poderes significou, essencialmente, a
independência absoluta entre o Poder Judicial e o Poder Executivo. Façamos
falar o Professor Jean Rivero sobre o assunto: «Os revolucionários temem que
os corpos judiciários retomem no que toca à nova Administração, a tradição
de ingerência e de oposição dos parlamentos. É por isso que fazem derivar
do princípio de separação de poderes a proibição de o judicial estatuir sobre
os litígios em que a Administração está em causa (…)»6.
A separação absoluta entre o Judiciário e o Executivo reside na ideia
de que se os processos administrativos fossem julgados pelos tribunais judiciais,
dar-se-ia poder para que os juízes ordinários alvoraçassem a actividade
administrativa e, desde logo, atrapalhassem a independência da
Administração no exercício das suas funções. Esta concepção dos
revolucionários de interpretação do princípio de separação de poderes é
consagrada em lei. Com efeito, a Lei de 16-24 de Agosto de 1790 estabeleceu
que: «As funções judiciárias são distintas e residem sempre separadas das
funções administrativas. Os juízes não atrapalharão, sob pena de
prevaricação, não perturbarão, de qualquer maneira que seja, as operações
dos corpos administrativos, nem citarão os administradores por razão das suas
funções».
Esta lei quebra todas as veleidades, e mesmo todas as possibilidades,
pelos tribunais judiciais de desafiar a autoridade do Poder Executivo do
Estado7.
Procedia-se8, então, ao princípio da separação absoluta das
autoridades judiciária e administrativa, impedindo-se os tribunais de

6 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 158.


7 WEIL, Prosper, O Direito Administrativo, ob. cit., p. 10.
8 MEDAUAR, Odette, O Direito Administrativo em Evolução, São Paulo, Editora Revista dos

Tribunais, 1992, pp. 10 – 11.


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incomodar a administração e, consequentemente, a sua proibição de
conhecer os litígios que interessavam à Administração.

5.2. As implicações da separação de poderes: a dupla jurisdição e a


divisão de funções no seio do Poder Executivo
Uma das consequências imediatas da construção do princípio de
separação de poderes na esteira do sistema administrativo executivo é a
existência de duas ordens jurisdicionais: a ordem comum ou judicial ordinária
e a ordem administrativa ou especializada. Portanto, tratou-se de afastar o
princípio una lex una jurisdictio vigente no sistema inglês e adoptado no Brasil,
onde domina a jurisdição única, por influências directas do sistema norte-
americano.
À ordem jurisdicional comum ficou reservado o julgamento de todos os
litígios que resultassem da aplicação das regras jurídicas do Direito Privado,
independentemente da qualidade de sujeitos envolvidos na relação jurídica.
Neste contexto, o juiz ordinário estava proibido de invadir as atribuições do
Poder Executivo.
Perante esta situação, colocava-se o problema de saber qual seria a
instância que julgaria os litígios surgidos no âmbito da prossecução da
actividade administrativa pela Administração Pública. É como diz RIVERO “…
é preciso um juiz para esses litígios, sob pena de uma denegação da justiça”9
administrativa.
Para dar resposta a esta questão, o próprio poder executante
organizou um sistema especial de julgamento dos seus litígios com os
particulares, situado dentro da própria Administração. Com efeito, é criado
dentro da própria Administração um sistema de julgamento desses litígios
chamado de «Administrador-juiz».
O sistema de «Administrador-juiz» consistiu na entrega para julgamento,
primeiramente, ao Rei, depois da queda da Monarquia, aos Ministros e ao
directório de departamento, de todos os litígios entre a Administração e os

9 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 158.


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particulares. O «Administrador-juiz» era uma instância de natureza consultiva
que emitia pareceres sobre os litígios para a Administração activa, que podia
teoricamente não os acolher, o que enfraquecia o sistema de protecção e
garantia jurídica dos particulares em relação à Administração.
Pela fraqueza do sistema montado dentro do próprio Poder Executivo,
no mesmo ano VIII, foi aprovada a Lei de 28 Pluviose (ano de 1800), que criou
para o nível central da Administração o Conselho de Estado e ao nível local
os “conseils de préfecture” - conselhos de prefeitura junto do Prefeito. Estas
duas entidades recentemente criadas gozavam de uma autonomia em
relação à Administração activa.
Como afirma RIVERO, com estas novas estruturas criadas para julgarem
a Administração “se esboça no seio da Administração uma nova separação
entre a função activa e a função jurisdicional, que é preciso distinguir da
separação de poderes; esta diz respeito às relações entre o Executivo e o
Judicial, ao passo que a separação de funções diz respeito à divisão de
trabalho no seio do Executivo, especializando-se alguns dos seus agentes no
julgamento do contencioso. Foi desta separação de funções que nasceu a
jurisdição administrativa”10.
A evolução deste novo sistema para julgar os litígios administrativos faz
com que a Administração activa se afaste definitivamente das funções
jurisdicionais, deixando o sistema de ser promiscuo, onde a Administração era
juiz em causa própria. Deste modo, a partir da Lei de 24 de Prairial (Maio) de
1872, concede-se ao Conselho de Estado a justiça delegada: “(...) doravante
a administração é submissa ao controle de uma verdadeira jurisdição, que
estatui directamente «em nome do povo francês»”.
A jurisdição administrativa, nascida do interior da Administração, é hoje
uma verdadeira jurisdição análoga aos tribunais comuns, onde os seus juízes
gozam de todas as garantias de independência, imparcialidade e
inamovibilidade; as suas decisões já não são pareceres, são verdadeiras

10 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 159. (Destaque nosso).


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decisões judiciais, cujo incumprimento implica o cometimento de crime de
desobediência.
Por isso, hoje o sistema é o da dupla ou dualidade de jurisdições, cada
uma com sua história, génese e fundamento próprios.
Todavia, vale deixar algumas vantagens da institucionalização da
dualidade de jurisdições11.
Devido à especialidade do direito que aplicam os tribunais
administrativos, permite pensar que os tribunais judiciais estariam mal
preparados para o aplicarem e prosseguirem com o seu desenvolvimento.
Ora, os juizes administrativos, bem “… informados acerca das realidades
administrativas, …, sabem até onde podem ir no controlo que lhe impõem; e
vão tanto mais longe quanto estão seguros de não irem longe demais (…),
mas os juízes ordinários, menos informados, correriam o risco de muitas vezes
serem despropositadamente reservados ou demasiados severos”12.
A jurisdição administrativa foi responsável pela elaboração de um
Direito especial aplicável à Administração, com carácter autónomo e
original. É a existência de um Direito Administrativo original, autónomo e sólido
que justifica a existência da jurisdição administrativa.
Por isso, agora vamos olhar para o nascimento e desenvolvimento
deste Direito Administrativo.

5.3. O Direito Administrativo como labor da jurisprudência do Conselho


de Estado Francês
O Direito Administrativo, como ramo de conhecimento, é fruto da
Legislação e da Jurisprudência do Conselho de Estado Francês.
A partir da Lei de 24 de Prairial (Maio) de 1872, concede-se ao Conselho
de Estado a justiça delegada: Esta Legislação consagrou os princípios do

11 As desvantagens da dupla jurisdição residem no plano da escolha pelos recorrentes da


jurisdição competente perante um conflito concreto. É difícil, muitas das vezes, saber a
instância jurisdicional responsável para o julgamento de um litígio, particularmente, na
situação de opacidade da cultura jurídica e da ainda concentração dos tribunais
administrativos somente nas capitais provinciais, o que torna a justiça administrativa mais cara
e distante para o cidadão.
12 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 159.
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moderno Direito Administrativo, nomeadamente a supremacia e
indisponibilidade do interesse público; o carácter exorbitante e derrogatório
do direito comum de que são dotadas as normas do Direito Administrativo e
a continuidade do serviço público.
Contudo, apesar deste impulso legislativo, foram os acórdãos do
Conselho do Estado13 que estabeleceram um conjunto de princípios relativos
ao Direito Administrativo. Mas há que referir o fenomenal ARESTO BLANCO do
Tribunal de Conflito14 de Paris (T.C., 8 de Fevereiro de 1873, Gr. Ar., pág. 1), no
qual foi estabelecido o princípio da responsabilidade do Estado, segundo o
qual somente a jurisdição administrativa era competente para conhecer
litígios envolvendo o Estado e os particulares, dos danos provocados pelos
actos e omissões dos agentes públicos. Na verdade, este aresto traz “…dois
elementos interessantes: o abandono definitivo do critério tirado da regra do
Estado devedor; a afirmação muito nítida da ligação entre a competência
administrativa e a aplicação das regras derrogatórias do direito comum
(…)”15.
Foi, na verdade, o labor dos Conselheiros DAVID, ROMIEU, PICHAT ou
LEO BLU, entre outros, que consolidou o Direito Administrativo como ramo de
direito distinto das regras jurídicas do direito privado. No julgamento de um
conflito de competências, o Conselheiro David, na qualidade de Presidente
do Tribunal de Conflito de Paris e com voto de qualidade, proferiu sua
posição, desempatando a contenda. Nesta ocasião, o seu voto colocou de
lado o Código Civil de Napoleão, firmando, pela primeira vez, o
equacionamento e a solução da questão da responsabilidade civil do Estado
em termos do direito público.

13 Portanto, resulta líquido que a principal fonte do Direito administrativo era a jurisprudência
do Conselho do Estado.
14 O Tribunal de Conflitos é instituído pela Lei de 24 de Maio de 1872, com composição

paritária, em que as duas ordens (Jurisdição Administrativa e Jurisdição Ordinária ou Comum)


estão representadas com igualdade, no caso o Conselho de Estado e o Tribunal de
Cassação, designando cada três juízes, os seis conselheiros cooptam mais quatro juízes, sendo
dois suplentes. A função deste tribunal é julgar os conflitos de atribuições, quer seja negativo
ou positivo.
15 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 189.
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Foi esta decisão – Aresto BLANCO - do Tribunal Francês de Conflitos de
Paris [destinado a solucionar conflito negativo16 de competência entre o
Conselho de Estado (cá entre nós, Jurisdição Administrativa) e o Tribunal de
Cassação], que firmou definitivamente a autonomia do Direito Administrativo.
No âmbito do ensino e doutrina, o marco dá-se com a obra de Barão
de Gérando, intitulada “Institutes du Droit Administratif Français”, publicada
em 1829, tendo sido este autor o fundador da cátedra do Direito
Administrativo na Universidade de Paris. Na verdade, a obra compilava
sistematicamente textos legais de natureza administrativa. Com a sua morte
e a partir de 1852, o ensino de Direito Administrativo ficou a cargo do
Conselheiro de Estado MACAREL.
Este autor publicara nesse mesmo ano a sua obra, 1.ª edição, intitulada
“Cours de Administration et de Droit Administratif”, voltada à exposição do
direito positivo.
Portanto, foi este carácter positivista das obras destes dois professores
que deu origem ao “critério legalista”17 do Direito Administrativo.
Prosper WEIL, quando introduz o seu livro de “o Direito Administrativo”,
dedica-se ao nascimento e surgimento do Direito Administrativo nos termos
seguintes: “Pré-história do Direito administrativo” como sendo o período entre
a Revolução de 1789 e o fim do Segundo Império. Para ele, o Direito
administrativo emergiu lentamente do nada e que se esboçou nos impulsos
mais tarde conhecidos como do regime administrativo, ou seja, (…) a

16 Haverá conflito negativo de competências, quando o particular propõe uma acção no


tribunal administrativo e este se declara incompetente; então dirige-se ao tribunal judicial,
que também se recusa a conhecer o litígio; então o autor não encontra juiz, sendo, por isso,
vítima de denegação da justiça. A resolução do conflito tem como função, não decidir o
litígio em causa, mas prevenir, reenviando o caso ao tribunal competente para o julgamento.
17 São ainda parte desta escola legalista os autores E.V. Foucart (Élements de Droit Public et

Administratif, 1832, embora pouco sistematizada, para se considerar impulsionadora do


Direito Administrativo); De Cormenin (Droit Administratif, 1840) e Adolphe Chaveau (Principes
de competence et de juridiction administratives, 1841). Contudo, as obras mais elaboradas
do Direito Administrativo Francês na época do seu desenvolvimento foram as de Laferrière,
com títulos “Cours Théorique et pratique de Droit Administratif e Cours de Droit Public et
Administratif”, de 1847 e 1850, respectivamente.
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existência de uma jurisdição administrativa especializada e a submissão da
administração a umas regras diferentes daquelas do direito privado”18.
Em conclusão, podemos dizer que antes da revolução Francesa
tínhamos o Estado de Polícia ou Absoluto, que se caracterizava, no geral, pela
falta de limites na sua actuação; depois da Revolução, são cimentados dois
princípios básicos e demolidores da situação anterior: o de Estado de direito
e o da separação e interdependência de poderes.
Depois da Revolução Francesa, surgem a Lei de 28 de Pluviose do Ano
VIII (1800) e o labor dos comissários do Tribunal de Conflito, tendo sido o Aresto
BLANCO19 o marco mais importante, na medida em que o Tribunal de
Conflitos de França, em 1873, estabeleceu que as actividades prestadas pelo
Estado estão submetidas a um regime jurídico distinto das funções
desempenhadas por sujeitos privados. A partir de então, o serviço público
torna-se num dos primeiros critérios para a determinação da competência da
jurisdição administrativa.

6. A origem do Direito Administrativo em Portugal


O Direito Administrativo Português é obra de importação. Mouzinho de
Silveira foi o homem responsável pela redacção de um conjunto de diplomas
que ajudariam os funcionários públicos a interpretar a Constituição de 1822,
que já dispunha, à par dos princípios revolucionários franceses20, sobre a
separação de poderes, garantindo os artigos 10.º, 118.º e 145.º S11.º,
respectivamente, sobre a divisão e harmonia dos poderes públicos, a
garantia da independência do poder judicial e a regra de que nenhuma

18 WEIL, Prosper, O Direito Administrativo, ob. cit., pp. 4 e ss.


19 O Aresto Blanco pode ser lido na íntegra em LONG, Marceal; WEIL, Prosper; BRAIBANT, Guy,
et all, Les Grands Arrêts de la Jurisprudence Administrative. Paris, Dalloz, 16.ª Edição, 2007.
20 Na fundamentação dos Decretos pelo Mouzinho de Silveira, pode notar-se essa fascinação

pelo modelo francês: “A mais bela e útil descoberta moral do século passado foi, sem dúvida,
a diferença de administrar, e julgar; e a França, que a fez, lhe deveu desde logo a ordem no
meio da guerra, e aquela rapidez de recursos de homens e dinheiro (…), aquela prosperidade
rápida (…) e aquela ordem que a tem (…) feito aparecer melhorando sempre, e ganhando
em liberdade, sem perder em força e segurança” (AMARAL, Digo Freitas do, Curso de Direito
Administrativo, 3.ª edição (2.ª reimpressão), Vol. I, Almedina, 2008, p. 74. No mesmo sentido
ver a reimpressão da 4.ª edição de 2015, em 2018 deste Manual).
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autoridade poderá avocar as causas pendentes, sustá-las, ou fazer reviver os
processos findos21.
Com efeito, em 1832, foram aprovados os Decretos n.º 22, 23 e 24, de
16 de Maio, que procederam à reforma da Justiça, da Administração e da
Fazenda, respectivamente.
Assim, soavam os ventos da Revolução francesa no mundo português.
Isto corresponde a um aspecto político do regime administrativo. Agora,
olhemos para a parte doutrinária e do ensino do Direito Administrativo em
Portugal.
O Direito Administrativo, digo a Ciência da administração pública e
direito administrativo não figuravam nos títulos das cadeiras de que se
compunham os dois cursos jurídicos, - o da Faculdade de Cánones e o da
Faculdade de Leis -, organizados pelos notáveis estatutos pombalinos de 1772,
nem tam pouco nas denominações das cadeiras do quadro ordenado por
alvará de 16 de Janeiro de 180522.
Este ser das coisas é sintomático de não ter ainda ocorrido o milagre
francês, a Revolução, que só ocorrera a partir de 1789, época de início de
elaboração científica do Direito Administrativo.
Só em 1836, regista-se, em Portugal, o início do estudo do Direito
Administrativo. Diz o Professor Marcello CAETANO que “O autor que parece
ter dado tom à formação administrativa dos introdutores do sistema francês
em Portugal e dos que primeiramente o ensinaram e praticaram, foi BONNIN,
através de dois dos seus livros: os principes d´administration publique (…) e o
Abrégé des principes d´administration, publicano em 1829. A edição de 1812
dos Principes foi profusamente distribuida pelos deputados às Constituintes de
1820 (…). Mas o mais importante foi que, instituída na reforma de estudos
jurídicos de 1836 a cadeira de Direito Público Português pela Constituição,
Direito Administrativo Pátrio, Princípios de Política e Direito dos Tratados de

21Ver AMARAL, Diogo Freitas do, Curso …, ob. cit., Vol. I, p. 73.
22PEDROSA, A. L. Guimarães, Ciência da Administração e Direito Administrativo (Prelecções
feitas na Universidade de Coimbra), I, segunda edição, Imprensa da Universidade, Coimbra,
1908, p. 5.
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Portugal com os outros povos, a obra de BONNIN aparece como texto
seguido pelo primeiro Lente da Cadeira, o Dr. BASÍLIO ALBERTO DE SOUSA
PINTO”23.
O estudo do Direito Administrativo iniciado em 1836 foi restrito, devido à
sua junção com outras disciplinas. A partir de 1844, o ensino do Direito
Administrativo foi associado à cadeira de Direito Criminal. Em 1853, criou-se a
disciplina de Direito Administrativo Português e Princípios de Administração,
separando-se assim do Direito Criminal. Em 1857, o dr. JUSTINO ANTÓNIO DE
FREITAS publicou as lições sobre Instituições de Direito Administrativo
Português, adoptadas como compêndio de aulas. Em 1859, a cadeira passou
a designar-se unicamente Direito Administrativo, sendo leccionada no 3.º ano
da Faculdade de Direito de Coimbra. Mas, em 1865, houve de novo uma
alteração, a 7.ª cadeira do curso passou a designar-se Princípios Gerais e
Legislação Portuguesa sobre administração pública, sua organização e
contencioso administrativo24.
Em 1901, realizou uma reforma do curso de Direito na Universidade de
Coimbra, passando o curso a ter 19 cadeiras, sendo a 9.ª cadeira com a
designaçã «Ciência da Administração e Direito Administrativo», leccionada
no 3.º Ano.
Até o surgimento da obra do Professor Marcello Caetano, da qual
falaremos, podemos afirmar que a literatura portuguesa na área do Direito
Administrativo foi dominada pela casuística. “Não se pode sequer falar de
orientação exegética, porque os códigos administrativos não eram
comentados, glosados, desenvolvidos, mas simplesmente anotados com a
indicação das leis extravagantes, da jurisprudência dos tribunais, das
resoluções e circulares do Ministério do Reino”25.

23 CAETANO, Marcello, O Problema do Método no Direito Administrativo Português, Tipografia


da Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1948, p. 4.
24 PEDROSA, A. L. Guimarães, Ciência da Administração, ob. cit., pp. 8-10.
25 25 CAETANO, Marcello, O Problema do Método…, ob. cit., p. 10.
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Em termos de obras fundamentais, no Direito Administrativo Português,
podemos registar as seguintes, das ainda nã referidas até à época do
Professor Marcello CAETANO:
- José Frederico LARANJO, com a obra Princípios e instituições de direito
administrativo, que serviram de compêndio de aulas, em 1888;
- A. L. Guimarães PEDROSA, com a obra Ciência da Administração e
Direito Administrativo (Prelecções feitas na Universidade de Coimbra), desde
1904- 1909;
- Ludgero NEVES, Direito Administrativo – 2.º ano jurídico, 1916;
- António Pinto de Meirelles BARRIGA, Nova técnica e construção
jurídica do Estado: acto administrativo, 1921;
- Domingos Fezas VITAL, O acto jurídico, 1914; A situação dos
funcionários, 1915; Direito Administrativo;
- João Telo de Magalhães COLLAÇO, Direito Administrativo Português,
1924;
A partir de 1932, começa uma nova época de Direito Administrativo
Português, liderada pelo Professor Marcello CAETANO, que publicou nesse
ano «Do poder disciplinar no direito administrativo português»; «Manual de
Direito Administrativo, em dois volumes» e «Princípios Fundamentais do Direito
Administrativo». O ensino deste professor revolucionou o Direito Administrativo
Português. Para além deste insigne Mestre, pode destacar-se:
- Afonso Rodrigues QUEIRÓ, com Lições de Direito Administrativo;
- Rogério Ehrhardt SOARES, Interesse público, legalidade e mérito, 1956
e Direito Administrativo, 1978.
O resto é dominado pelos actuais publicistas portugueses, sendo de
destacar o Professor Diogo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa,
Sérvulo Correia, João Caupers, Paulo Otero, entre outros.

7. A origem do Direito Administrativo em Moçambique


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O Direito Administrativo moçambicano é, em primeiro lugar, obra de
imposição estrangeira e, em segundo lugar, fruto das opções fundamentais
após a independência nacional, em 1975.
Como obra de imposição estrangeira, os contactos entre Portugal e
Moçambique começaram no final do século XV, quando Vasco da Gama, o
célebre navegador português, chegou à Ilha de Moçambique, em princípios
de Março de 149826. A ocupação efectiva do território moçambicano pelo
Estado Português ocorreu até à década de 1930.
A situação nas colónias portuguesas era tão discriminatória que havia
uma diferença nítida entre a população portuguesa e a africana, tendo esta
última a designação de «população indígena»27. Conforme esclarece SILVA28:
“O indígena29 dos territórios colonizados pelos europeus, enquanto sujeito de
uma política especificamente pensada para ele, a política do indigenato
ocupou um lugar central nos textos sobre política e administração colonial
que se escreveram em Portugal (…). Ao lado do colono e do Estado
metropolitano, ele constituía … o «terceiro vértice» a ter em consideração na
arquitectura de uma boa política colonial”.
Moçambique, como outros países africanos de colonização
portuguesa, foi considerado província ultramarina de Portugal. Neste
contexto e “(…) numa perspectiva histórica, permite … [-nos afirmar pela]
existência de um regime administrativo em Moçambique. Com efeito, a
política de assimilação das colónias portuguesas, em geral, e da de

26 MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique, 1.ª ed. Moçambicana, Colecção Nosso
Chão. Maputo, Centro dos Estudos Africanos, 1995, p. 31.
27 Ver MACIE, Albano, Forças Armadas na Segurança Interna. O caso de Moçambique (Tese

de Doutoramento), Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2019, p. 96.


28 SILVA, Cristina Nogueira da. Constitucionalismo e Império. A cidadania no Ultramar

português. Almedina, Coimbra, 2009, p. 21.


29 Segundo a Professora Cristina Nogueira da SILVA, a palavra «indígena» podia designar o

nativo de qualquer parte de qualquer território colonizado por europeu e, da mesma


maneira, podia designar tanto o soba africano ou o príncipe indiano, com os respectivos
súbditos. Havia, no entanto, um elemento antropológico comum, que unificava este conjunto
humano internamente indiferenciado: a sua posição distante face às formas “civilizadas” de
vida a que a História tinha conduzido as sociedades europeias. Indígenas eram, então, os
naturais daqueles outros continentes cuja cultura e formas de vida se caracterizavam, em
todas as suas manifestações – morais, religiosas, económicas-, por um certo grau de
primitivismo” (SILVA, Cristina Nogueira da. Constitucionalismo e Império, ob. cit., p. 22).
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Moçambique, em particular, ao regime da organização administrativa da
metrópole fez com que as colónias tenham sido consideradas como simples
províncias do reino - províncias ultramarinas - a que se aplicavam com ligeiras
alterações às leis feitas para o continente, os critérios de administração e os
planos de governo estabelecidos e traçados para a metrópole. Nesta
perspectiva, a Portaria Provincial n.º 395, de 18 de Fevereiro de 1856, vai
considerar em vigor na província ultramarina de Moçambique o Código
Administrativo de 1842. Assim, o sistema de administração executiva foi
importado em Moçambique através da aplicação deste Código”30.
Portanto, o Direito Administrativo era pensado na população europeia
do que nas necessidades administrativas próprias das populações indígenas.
Com efeito, como uma das consequências da colonização, para os territórios
ultramarinos foi transposto o direito europeu, como direito aplicável, pondo-
se em causa os direitos costumeiros ou locais31.
Com efeito, citando Magalhães, Silva relata o seguinte sobre esta
situação jurídica dos indígenas: “Damos direitos políticos aos selvagens e
negamos-lhes escolas e oficinas; damos-lhes os nossos códigos e ignorámos
ainda os seus usos e costumes e as constituições das suas famílias; impomos-
lhes as nossas leis penais e não arrancamos ainda (…) esses povos selvagens
das práticas cruéis que o seu estado civil aceita (…) na ilusão de que bastam
penas e leis para eles se imbuírem das ideias da civilização moderna”32-33.

30 CISTAC, Gilles, “O Direito Administrativo em Moçambique”, in Workshop on Administrative


Law, Hotel Cardoso, Mozambique, 1 a 4 de Abril de 2009, p. 4.
31 MACIE, Albano, Forças Armadas na Segurança Interna, ob. cit., p. 97.
32 SILVA, Cristina Nogueira da, A construção jurídica dos territórios ultramarinos portugueses no

século XIX. Modelos, doutrinas e leis, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 2017, p. 37.
33 Veja-se como era descrita a situação colonial em Moçambique: resume no seguinte o

quadro colonial a propósito da cidadania nas colónias portuguesas: “A questão da


cidadania foi resolvida em 1961, quando, a 6 de setembro, o Estatuto dos Indígenas foi
abolido, e todos os habitantes de Moçambique ... foram declarados cidadãos portugueses
de pleno direito. Contudo, como tem sido característica do regime de Salazar, a política
governamental no papel pouco tem a ver com a sua aplicação na prática: este caso não
foi excepção. A reforma perdeu qualquer significado pela emissão de dois tipos diferentes
de cartão de identidade: um para “cidadãos” que haviam sido anteriormente indígenas e
outro para aqueles que já eram considerados cidadãos antes de 1961. o antigo indígena
possui um Cartão de Identidade no qual está escrito claramente “Província de Moçambique”
e que especifica no seu interior o lugar de nascimento e residência …; o antigo cidadão
possui um Bilhete de Identidade, que não faz qualquer referência à província ou lugar de
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
Mas todo e qualquer tipo de resistência contra o colonialismo tinha sido
totalmente esmagado até 1918, com a derrota de Makombe, rei do Barué34
e até 1930, a administração colonial fascista já se tinha estabelecido
efectivamente em todo o território nacional.
Só a partir da década de 40 do século passado (XX), renascem os
movimentos nacionalistas de contestação, através de artes e cultura35. As
primeiras tentativas para criar um movimento nacionalista - como nos recorda
MONDLANE – foram feitas pelos moçambicanos que trabalhavam nos países
vizinhos, onde estavam fora do alcance imediato da PIDE. No início, o velho
problema de falta de comunicação levou à criação de três movimentos
separados:

- UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), formada


em 1960 em Salisbúria;

residência e que é em todos os aspectos idêntico ao dos cidadãos portugueses vivendo na


metrópole. Assim, na prática, torna-se fácil para as autoridades diferenciar as duas classes de
“cidadãos” e as informações contidas no Cartão de Identidade ajudam a polícia a aplicar
as leis anteriores que restringiam as actividades e a mobilidade do indígena” (MONDLANE,
Eduardo, Lutar por Moçambique, ob. cit., pp. 43-44).
34 Cfr. MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, ob. cit., p. 88.
35 O nacionalismo moçambicano começa a nascer, deslocado do campo de confrontação

militar, para o intelectual, através de publicações. Pode-se apontar os casos do Jornal Brado
Africano mais activo a partir de 1932, embora já tivesse surgido em 1920 uma organização
chamada Grémio Africano, mas que não resistiu e sucumbiu perante o regime fascista, sem
embargo aqui de se referir a uma ala desta organização que conseguiu fundar o Instituto
Negrófilo, mais tarde conhecido por Centro Associativo dos Negros de Moçambique. Na
década de 1940, entrou em cena de contestação, através de artes e poesia, uma faixa de
intelectuais constituída por pintores, poetas e escritores, destacando-se Malangatana
Valente Nguenha, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana e Noémia de Sousa. Em 1949,
com punho do Doutor Eduardo Mondlane, é constituído o Núcleo dos Estudantes Secundários
Africanos (NESAM) ligado ao Centro Associativo dos Negros de Moçambique, que através de
actividades culturais e sociais, conduzia a campanha política entre a juventude. Um pouco
antes da NESAM, em 1947, regista-se em Maputo (Lourenço Marques) uma série de
contestações laborais no cais e em plantações em redor da Cidade Capital, que culminaram
com uma greve, embora não bem-sucedida em 1948, tendo sido a maior parte dos grevistas
deportada para São Tomé e Príncipe. O início da década de 60 representou o apogeu da
contestação. A agitação cresceu também na zona norte do País. Foi precisamente a 16 de
junho de 1960, que o crescimento da contestação culminou com o massacre de Mueda
(MACIE, Albano, Forças Armadas na Segurança Interna, Ob. cit., pp. 99-101). Escreve
MONDLANE que “Depois do massacre, a situação no Norte nunca mais voltou ao normal.
Espalhou-se por toda a região um ódio amargo contra os portugueses e ficou de uma vez
por todas demonstrado que a resistência pacífica era inútil” (MONDLANE, Eduardo, Lutar por
Moçambique, ob. cit., p. 99).
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- MANU (Mozambique African National Union), formada em 1961, a
partir de vários pequenos grupos já existentes entre moçambicanos
trabalhando no Tanganhica e Quénia, sendo um dos maiores o Mozambique
Makonde Union;
- UNAMI (União Africana de Moçambique Independente), fundada por
exilados da região de Tete que viviam em Malawi”36.
A FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique, foi fundada a 25 de
Junho de 1962, em Dar-Es-Salam, República Unida da Tanzânia, fruto da
unificação dos três movimentos.
A 7 de Setembro de 1974, a FRELIMO e o Governo Português celebraram
o Acordo de Lusaka, que teve como escopo a transferência dos poderes do
Governo colonial para a FRELIMO, como legítimo representante do Povo
Moçambicano37, o que conduziu à proclamação da Independência
Nacional, a 25 de Junho de 1975.
Como resultado, a FRELIMO aprovou, na VII Sessão do seu Comité
Central, realizada no Tofo, Província de Inhambane, em 20 de Junho de 1975,
a Constituição da República Popular de Moçambique, o acto jurídico
fundador do Estado Moçambicano independente e soberano.
O novo Estado, o Estado de Democracia Popular, tinha como
objectivos fundamentais:

36 MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, ob. cit., p. 99.


37 Cláusula 18 do Acordo de Lusaka. ““O Estado Moçambicano independente exercerá
integralmente a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as
instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais
adequado aos interesses do seu Povo”. Esta cláusula, como quer João André Ubisse
NGUENHA, “(...) reflectia o reconhecimento, de forma mais concreta, do direito do Povo de
Moçambqiue à autodeterminação e revestiu-se de grande importância no processo de
descolonização, traduzindo a rejeição de quaisquer formas de limitação de soberania do
Estado Moçambicano, nomeadamente o neocolonialismo ou qualquer outra forma de
ingerência nos assuntos internos por parte da antiga potência colonizadora. Na perspectiva
jurídico-formal, podemos ainda considerar que a cláusula da plenitude da soberania serviu
de fonte de legitimação da assunção do poder constituinte material originário pela FRELIMO,
organização patriótica do Povo de Moçambique que já era detentora de legitimidade
material historicamente adquirida e consolidada no processo da luta de libertação nacional
e reconhecida tanto internacionalmente como pela própria potência colonizadora ao
negociar e concluir o Acordo de Lusaka com a Direcção da FRELIMO” (Ver em COSSA, Edgar
Alfredo, Colectânea da Legislação da Defesa Nacional e Forças Armadas, Académica,
Maputo, 2010, pp. 6-7).
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
“- A eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais e
tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente;
- A extensão e reforço do poder popular democrático;
- A edificação de uma economia independente e a promoção do
progresso cultural e social;
- A defesa e consolidação da independência e da unidade nacional;
- O estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e
cooperação com outros povos e Estados;
- O prosseguimento da luta contra o colonialismo e o imperialismo”38.
A opção pelo Estado de Democracia Popular e de orientação socialista
é fruto de um processo de luta de libertação nacional, da forma de vida nas
zonas libertadas e do papel negativo exercido pelas democracias ocidentais
que se recusaram a dar o seu apoio a este processo de libertação nacional,
optando por apoiar o regime fascista português e o sistema de apartheid da
África do Sul.
Perante a hostilidade demonstrada pelo Ocidente pelos movimentos
de luta de libertação nacionalistas, em particular, nas colónias portuguesas,
a FRELIMO “(...) viu-se mais ou menos obrigada a lançar-se nos braços do Leste
que tinha fornecido a necessária ajuda militar durante a luta de libertação.
Isto veio também a influenciar a formulação da estratégia de
desenvolvimento”39. Com efeito, os países socialistas foram a engrenagem do
processo de luta de libertação nacional, o que tornou absolutamente
irreversível a adopção, após a Independência Nacional, de um modelo de
Estado de orientação marxista-Leninista40.

38 Artigo 4 da Constituição da República Popular de Moçambique.


39 ABRAHAMSSON H. E NILSSON A., Moçambique em transição. Um estudo da história de
desenvolvimento durante o período 1974-1992, PADRIGU/CEEI-ISRI, 1994, p. 10.
40 O teórico do Estado Socialista explica melhor as linhas gerais das “democracias populares”.

Assim, segundo Karl Marx, o Estado e o Direito são superestruturas, isto é, produtos e reflexos
da infraestrutura constituída pelos modos de produção. Os modos de produção determinam
as relações entre as classes sociais. Essas relações estão transpostas nas superestruturas (o
Direito, o Estado, a religião, a ideologia) que têm por objectivo operacionalizá-las e sancionar
a sua violação. O Estado é, nesta perspectiva, um instrumento das classes exploradoras cuja
finalidade é manter a sua dominação. Ele é produto e manifestação do carácter
inconciliável das contradições de classe. Assim, o Estado é apenas um instrumento de
opressão. Para devolver ao ser humano a sua liberdade e dignidade, o Estado deve, pois,
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ALBANO MACIE, 2021
A questão da forma do sistema de governo nos países da África e da
Ásia recém-independentes adquiriu um significado político especial devido à
existência, em muito deles, de um grande número de tribos e grupos
nacionalistas ainda não constituídos em nações, assim como devido às
diferenças étnicas, rácicas, e religiosas entre as tribos, os grupos nacionais e
as nações. As potências coloniais deixaram em herança aos jovens Estados
um novelo extraordinariamente complexo de contradições nacionais. Na

desaparecer na sua forma actual e para isso, Marx propõe a necessidade de se atacar as
causas do aparecimento do Estado e, consequentemente, mudar os modos de produção,
suprimindo a propriedade privada dos instrumentos de produção (Ver. MARX, K. e ENGELS, F.,
Manifesto do Partido Comunista, Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1979, p. 33 e ss.;
CISTAC, Gilles, Evolução Constitucional da Pátria Amada, CEDIMO, SARL, Maputo, 2009, pp.
15-16). Como esclarece CISTAC, sobre a teoria Marxista, com a apropriação dos meios de
produção, as classes exploradoras desaparecerão e o Estado como instrumento de opressão,
será privado da sua razão de ser e, consequentemente, se enfraquecerá, e desaparecerá a
função política do Estado e mudança radical de sua natureza (CISTAC, Gilles. Evolução ...,
ob. cit., [126], p. 16).
À concepção Marxista do Estado, Lenine trouxe importantes acréscimos, nomeadamente, a
teoria da ditadura do proletariado. Segundo esta teoria, o Estado, instrumento de opressão,
deve ficar temporariamente em funcionamento mesmo quando a classe dominante é o
proletariado. Ele não deve mudar a sua natureza, mas continuar a exercer a sua opressão,
mas ao serviço do proletariado que o exercerá contra as antigas classes exploradoras até ao
seu desaparecimento completo. Todavia, o proletariado ainda demasiado inculto
politicamente para conduzir a sociedade para a edificação do comunismo, deve ser guiado
na sua acção pelo Partido Comunista. Segundo Lenine, o Partido Comunista é a vanguarda
da classe operária e dos camponeses. Ele deve animar e supervisionar permanentemente
todos os órgãos do Estado e todas as organizações que enquadram o povo. Para poder
realizar a sua missão, o Partido Comunista deve organizar-se de forma muito estrita e ter uma
disciplina rigorosa. Todavia, ele deve também permanecer uma organização democrática.
A conciliação entre esta dupla exigência, da disciplina partidária e da democracia do
partido, segundo Lenine, resulta da aplicação do princípio do centralismo democrático. O
processo de decisão no Partido se desenrola em duas fases. Na primeira fase, se desenvolve
um debate livre, os dirigentes consultam a base sobre a política a seguir em relação a cada
problema; a cada nível, as soluções hipotéticas são apreciadas e teses são elaboradas e são
transmitidas ao nível superior onde elas são confrontadas e sintetizadas. Este processo
caminha até a cúpula onde a decisão é tomada. A esta fase crescente, sucede a fase
decrescente: as decisões tomadas no topo devem ser executadas de forma rigorosa pela
base, a todos os níveis, qualquer que seja o parecer que foi inicialmente formulado. Além
disso, o carácter democrático da organização manifesta-se também na eleição das
instâncias superiores pelas instâncias inferiores e devem apresentar relatórios periódicos sobre
a sua actuação. Assim, porque a democracia existe no Partido e que este ausculta as
aspirações das massas, Lenine acredita que a ditadura do proletariado é “um milhão de
vezes mais democrática que a democracia burguesa” (Ver LENINE, Vladimir I. O Estado e a
Revolução. Lisboa-Moscovo: Editorial «Avante», Ed. Progresso, 1978, pp. 32 e ss.; CISTAC, Gilles.
Evolução ..., ob. cit., p. 17).
Todavia, este raciocínio fundamenta-se num duplo postulado que numa perspectiva histórica
não se verificou, a saber: o partido é o fiel intérprete das aspirações das massas e que a
democracia funciona realmente dentro dele (CHANTEBOUT, B. Droit Constitucionnel et
Science Politique, p. 262 apud CISTAC, Gilles, Evolução ..., ob. cit., p. 17).
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administração colonial dividiram-se artificialmente as tribos e os povos; as
fronteiras estatais foram feitas sem ter em conta os factores nacionais,
económicos e geográficos; ao saírem das colónias, as potências imperialistas
complicaram ainda mais no sistema de governo, atiçando as desavenças
inter-tribais e religiosas41.
Por este facto, é característica dos jovens Estados, como Moçambique,
uma aspiração à formação de uma forma unitária (centralizada) de sistema
de governo, que possibilite o reforço do poder central e o fortalecimento da
sua soberania, a união das diferentes tribos e grupos nacionais numa nação
una, a formação de um mercado nacional único42.
Portanto, passamos a caracterizar a nova ideia de direito na
Constituição de 1975, que se traduziu nas seguintes características
marcantes43:
- Implantação de um Estado Socialista, baseado na democracia
popular, cujos objectivos era a construção de uma sociedade livre de
exploração do homem pelo homem; uma política económica
intervencionista segundo a qual incumbe ao Estado agir em todos os sectores
da vida económica para impedir que a circulação do poderio económico
conduza a uma dominação de algumas camadas possuidoras sobre o
conjunto dos cidadãos e para garantir ao Estado os rendimentos que lhe
permitam realizar a sua política de redistribuição (art.º 2.º, 6.º e 10.º da CRPM);
- O princípio de Estado Máximo, segundo o qual deve ser o Estado a
fazer o controlo de tudo que é essencial da vida do Estado e da sociedade:
planifica, promove e impulsiona a economia (art.º 3.º, 9.º e 10.º da CRPM);
- O carácter nacionalista, que é formulado na Constituição através da
apropriação da terra e dos recursos naturais (art.º 8.º da CRPM);
- A visão leninista do Partido de Vanguarda, entendida não como um
grupo de pessoas apenas ou uma oligarquia de poder, prestígio e privilégio,

41 ALEXANDROV, N. G. e Outros, Teoria Geral Marxista-Leninista do Estado e do Direito, 1.º


volume, Novo curso editores, Amadora, 1978, 225.
42 ALEXANDROV, N. G. e Outros, Teoria Geral Marxista-Leninista…, ob. cit., p. 226.
43 Cfr MONTEIRO, Óscar, Direito Constitucional Moçambicano, ob. cit., pp. 34-43.
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mas como o grupo político mais avançado na expressão dos interesses das
camadas populares inexperientes e menos capazes de articular todas as suas
aspirações;
- O princípio da unidade do poder, erigindo-se o Parlamento em órgão
supremo por virtude da legitimidade popular (art.º 37.º da CRPM);
- O número considerável de competências que cabem ao Presidente
da República, na qualidade de Presidente do Partido FRELIMO, tornando-o
figura incontornável do sistema político. Aliás, nos termos do número 1 do
artigo 47.º da CRPM, “O Presidente da República Popular de Moçambique é
o Presidente da FRELIMO”;
- Os direitos sociais e económicos primavam sobre os direitos individuais,
porque se entendia que estes são aqueles que ficavam desprovidos do
conteúdo e que a satisfação das necessidades básicas primava sobre outras
necessidades. Na verdade, os mecanismos de garantias dos direitos
individuais não eram suficientes ou quase inexistentes, não se podendo falar
de protecção do cidadão em relação à Administração Pública.
- A sociedade civil é toda ela subordinada ao Estado e este à FRELIMO,
que orienta a linha política e é a força dirigente do Estado e da sociedade
(art.º 3.º da CRPM); a FRELIMO orienta e dirige politicamente a acção das
Forças Populares de Libertação de Moçambique (art.º 5.º da CRPM). Portanto,
a FRELIMO aparece como uma organização política omnipotente que até a
criação da Assembleia com poderes constituintes, modifica a Constituição
da República (art.º 70.º da CRPM).
Em conclusão, o sistema politico instalado em Moçambique após a
independência, “(…) maxista-leninista caracteriza-se por três aspectos
fundamentais: a recusa da separação de poderes, a concentração
progressiva da totalidade do poder e a total subordinação do poder
administrativo ao poder político. A ideia de separação de poderes não faz
sentido num regime que considera o Estado como instrumento do povo na
conquista da sua liberdade e da sua felicidade. (...)”44.

44 CISTAC, Gilles, Evolução Constitucional..., ob. cit., p. 18.


MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
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A questão relevante a responder após esta caracterização é a de
saber qual é o Direito Administrativo que é acolhido pelo novo Estado?
Haverá uma tábua rasa em relação ao passado colonial?
A doutrina do marxismo-leninismo consiste no que a “a lei fundamental
da revolução socialista é a liquidação do velho poder do Estado, a passagem
do poder do Estado das mãos de uma classe para as de uma outra. Essa é a
primeira característica mais importante, fundamental de uma revolução
(…)”45. Disto resultou, claramente, que um dos objectivos da nova República
era “A eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais e
tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente”. Apesar disso, o
Direito Administrativo escapou a esta razia, pois, nos termos do artigo 71 da
Constituição de 1975, “Toda a legislação no que for contrária à Constituição
fica automaticamente revogada. A legislação anterior no que não for
contrária à Constituição mantém-se em vigor até que seja modificada ou
revogada”.
Portanto, todo o Direito Administrativo que não fosse contrário com o
espírito e filosofia do novo Estado sofria uma novação, encontrando
fundamento na nova Constituição, o que é dizer que o antigo direito
administrativo que não fosse contrário à nova Constituição passa a ser
interpretado e aplicado à luz de novos valores, que o fundamentam.
Apesar desta recepção do direito colonial, podemos caracterizar o
novo Direito Administrativo, através dos seguintes pontos essenciais:

1.º - No âmbito da relação jurídica de emprego público, o sistema adoptado


é unitário. Não existe uma diferenciação entre funcionários públicos e outros
agentes que prestam a sua actividade na administração Pública.
O primeiro regime jurídico aplicável aos trabalhadores da
Administração seria aprovado no ano de 1978, através do Decreto n.º 16/78,
de 21 de Outubro, que aprovou as Normas de Trabalho e Disciplina no
Aparelho do Estado. Este dispositivo legal é ainda aplicado fora do aparelho

45 LENINE, V. I., “Cartas sobre a táctica”, in Obras, vol. 24, p. 26.


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do Estado, nomeadamente nas empresas estatais e instituições subordinadas
ao aparelho do Estado. Isto é, sob sua tutela (art.º 23.º).
O espírito dessas normas é inerente à natureza do regime político
prevalecente após a Independência Nacional, que, propugnando
estabelecer um Estado de Democracia Popular, adoptaria os princípios
inspirados no marxismo-leninismo, em que o Estado aparece centralizado nos
planos jurídico e político-administrativo, cabendo ao poder central a
resolução de todos os negócios mais importantes da Administração Pública:
O Estado enfeixa em torno de si todas as atribuições, que, num Estado
descentralizado, pertenceriam a outras pessoas colectivas públicas.
Por este carácter, não existe uma diferença conceitual entre os
trabalhadores e os funcionários públicos. Com efeito, é proclamado um
princípio basilar, que confirma a afirmação anterior, nas Normas de Trabalho
no Aparelho do Estado: “Os trabalhadores no aparelho do Estado têm os
mesmos direitos que os demais trabalhadores, não beneficiando de quaisquer
privilégios”46.

2.º - Centralização político-administrativa. O Estado-Administração é a


única pessoa colectiva pública, com personalidade jurídica, o resto
constituindo braços do Estado.

3.º - Adopção da economia centralmente planificada, e dirigida


exclusivamente pelo Estado.

4.º - A Assembleia da República é o órgão supremo do Estado, dirigida


pelo Chefe do Estado, sendo os membros do Governo maioritariamente
membros do Parlamento. O Chefe do Estado é também o chefe do poder
executivo e do partido; aliás, as funções de chefia do Estado advém do facto
de ser Presidente do Partido.

46 Cfr. Art.º 3.º, n.º 1 do Decreto n.º 16/78, de 21 de Outubro.


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5.º - Rejeição do princípio de separação de poderes.

6.º - Os direitos económicos e sociais têm prevalência sobre os direitos


de cariz individual.

7.º - O Estado modela a vida privada e os costumes dos destinatários


do poder.

8.º - O Partido FRELIMO é a entidade que dirige o Estado e a Sociedade.

9.º - Existência de um dogmatismo ideológico.

10.º - Hibernação ou quase «não exercício» das funções do Tribunal


Administrativo, Fiscal e de Contas, formalmente extinto pela Lei n.º 5/92, de 6
de Maio (artigo 24).

Em conclusão, podemos afirmar que os actos legislativos promulgados,


particularmente no campo administrativo, introduziram alterações e reformas
na regulamentação da vida política e económica do país, reformando-se a
administração estadual, nacionalizando-se as terras, as empresas e todos os
ramos da economia; a criação de novos ministérios, empresas estatais e
cooperativas; regista-se, na verdade, quanto ao Direito Administrativo, a
mistura entre o direito nacional ou moçambicano em formação e o direito da
metrópole, mas também de outros países, nomeadamente de orientação
socialista, sendo este último que vai predominar.

7.1. O ensino do Direito Administrativo em Moçambique


Vamos agora analisar o ensino do Direito Administrativo em
Moçambique.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
A Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, única no
país, na altura, foi instituída através do Decreto-Lei n.º 299/7447. As aulas desta
Faculdade iniciariam no ano lectivo 1794-75, quer na Universidade de Luanda,
quer na Universidade de Lourenço Marques (actualmente, Cidade de
Maputo), correspondentes aos cursos de bacharelato e de licenciatura em
Direito.
Porque o país se encontrava na fase de transição para a
independência nacional, depois de assinatura do Acordo de Lusaka, o
Governo de Transição domesticou aquele Decreto-Lei colonial, através do
Decreto-Lei n.º 7/75, de 18 de Janeiro, publicado no Boletim Oficial, I Série, n.º
8, o que possibilitou a entrada em funcionamento da Faculdade.
Segundo este diploma do Governo de Transição, a Faculdade de
Direito passava a formar em três ciclos, nomeadamente:
- o 1.º Ciclo, que corresponde ao nível de bacharelato, com duração
de dois anos lectivos. Este é o tronco comum.
- o 2.º Ciclo, de licenciatura, que é dividido em duas especialidades,
nomeadamente a licenciatura em Ciências Jurídico-Privadas e em Ciências
Jurídico-Públicas, com duração de dois anos, cada.
- o 3.º Ciclo de doutor, que se regularia por legislação especial.

Neste programa, a nossa cadeira fazia parte do tronco comum do


bacharelato, com a designação «Direito Administrativo», havendo mais uma
no ramo da licenciatura em ciências jurídico-públicas com a designação
«Direito Administrativo Especial».
Qual era a justificação para a criação de dois ciclos na licenciatura?
O Dr. Rui BALTAZAR, enquanto Ministro da Justiça entre 1975 e 1978, dá
resposta a esta questão48:
-“corrida contra o tempo, para se prepararem rapidamente alguns
quadros com um mínimo de formação jurídica, que permitissem fazer face às

47 Publicado no Boletim Oficial, I Série, n.º 82, de 16 de Julho de 1974.


48 In Justiça Popular, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 4, Abril/Agosto, 1981.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
necessidades mais imediatas e prementes, por isso, um bacharelato em dois
anos;
- introduzir à partida uma perspectiva na formação jurídica susceptível
de abrir caminho à preparação de quadros que se pudessem inserir no
processo da revolução moçambicana (...)”.
A nossa disciplina «Direito Administrativo» sobrevive no currículo, tal
como é designada na metrópole porque “…, o que era necessário era ir
desmantelando o edifício jurídico colonial. À medida que esse
desmantelamento se foi processando, as disciplinas tiveram que se ir
adequando às novas concepções, às novas estruturas, às novas perspectivas
de construção do socialismo (…) que direito administrativo se podia ensinar,
se o direito vigente era ainda, no essencial, o dos Códigos ou leis avulsas
coloniais”49, aliás, a própria Constituição estava para nascer.
Não só, houve uma verdadeira corrida à Faculdade de Direito.
Seguiram, como cogumelos, centenas de candidatos, grande número deles
ex-seminaristas que trocavam a vocação sacerdotal pelo apetite das
benesses que com o curso esperavam conseguir. Perante esta avalanche e
a natureza da matéria-prima disponível houve que exercer um certo controle
na selecção, até porque o nível científico e cultural da maioria era muito
baixo”50.
Como refere, posteriormente, o Dr. Eduardo Joaquim Mulémbwè,
antigo Director da Faculdade de Direito, na entrevista à «Justiça Popular», “Na
altura da sua criação, a Faculdade não tem um só docente próprio, tem que
viver de “esmolas”, com professores em regime de acumulação. Esta situação
começa a melhorar com afectação dum docente (o prof. Geraldes de
Carvalho) em tempo inteiro e em regime de exclusividade, em Agosto de
1976. Em fins de 77 início de 78, a Faculdade conta já com um corpo docente
próprio e estável, embora de 5 elementos apenas. Em Março de 78 pela
primeira vez são destacados alguns estudantes da faculdade para o

49 BALTAZAR, Rui, “Entrevista”, In Justiça Popular, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 4,


Abril/Agosto, 1981.
50 BALTAZAR, Rui, “Entrevista”, ob. cit.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
monitorado: isto pode ser considerado o embrião do futuro corpo docente
moçambicano”51.
Os cursos de Direito eram lecionados em período laboral, de duração
de quatro anos e pós-laboral, com duração de seis anos.
Em relação ao corpo docente, podemos afirmar, como explica o ilustre
Director da Faculdade, que “é só em 78 que a Faculdade tem o seu corpo
de docentes; destes, o grosso vem da cooperação, vindos de muitos países,
socialistas principalmente e doutros países também, enviados por
organizações partidárias progressistas (…) . No conjunto os docentes são 19.
Destes 8 são em tempo inteiro e 11 vêm de outras Faculdades ou sectores de
actividade; entre eles temos a honra de ter o Ministro na Presidência como
professor de Direito do Estado”52.
Após a independência nacional, a Faculdade de Direito da
Universidade Eduardo Mondlane foi a única Escola de Direito em
Moçambique, que formava juristas, no modelo de Estado de orientação
«marxista-leninista».
A 21 de Março de 198353, o Presidente da República Popular de
Moçambique, Saudoso Samora Moisés Machel, no discurso de encerramento
da 11.ª Sessão da Assembleia Popular decretou o encerramento da única
Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, até que a
qualidade da formação aí ministrada possa ser substancialmente melhorada.
A razão de fundo do encerramento, lê-se no Jornal Notícias de 22 de Março
de 1983:
“O Chefe do Estado criticou a formação que ali tem sido ministrada,
questionando igualmente o nível político e profissional de um grande número
de quadros saídos daquela Faculdade. Ao fazer uma reflexão sobre a
legalidade no nosso País e as formas que devem assumir as penas para que

51 MULÉMBWÈ, Eduardo Joaquim, In Justiça Popular, Boletim do Ministério da Justiça, n.ºs 3 e


4, Abril/Agosto e Setembro/Dezembro, 1981, apud CUNHA, Fernando José da, “Historial da
Faculdade”, in Revista Jurídica da Faculdade de Direito, Vol. 1, Maputo, 1996, pp. 167-179.
52 MULÉMBWÈ, Eduardo Joaquim, “Entrevista”, In Justiça Popular, Boletim do Ministério da

Justiça, ob. cit.


53 CUNHA, Fernando José, “Historial da Faculdade de Direito da UEM”, in Revista Jurídica da

Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, Vol. II, Junho de 1997, pp. 225-203.
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elas cumpram a sua tripla missão de educação, de dissuasão e de repressão,
Samora Machel considerou como fundamental o conhecimento das
diferentes realidades sócio-culturais no nosso Pais. Samora Machel, dirigindo-
se aos deputados perguntou se os chamados «defensores populares»
contribuem para a descoberta da verdade e do crime, como é do interesse
do povo, ou são os maus imitadores dos advogados do capitalismo?
Porque é que as cadeias estão cheias de presos que aguardam
durante longos meses o seu julgamento? Porque não se julgam os criminosos
nos locais de residência, nos locais de trabalho, ou mesmo onde o criminoso
praticou o crime envolvendo, no julgamento, as populações que foram
vítimas desses actos anti-sociais? – perguntou ainda Samora Machel,
observando que na aplicação da justiça e na formação dos quadros que a
administram há aspectos importantes a corrigir?
A decisão e críticas feitas pelo Chefe do Estado mereceram uma
calorosa aprovação por parte dos deputados”.
A 9 de Março de 1987, depois de uma exposição54 feita ao Senhor
Ministro da Justiça, ao Presidente do Tribunal Superior de Recurso e ao
Procurador-Geral da República, pelos magistrados judiciais e do ministério
público, alegando a decisão do Presidente da República, Samora Machel,
que fora anunciada na II Conferência Nacional da Organização da
Juventude de Moçambique, realizada em Março de 1986, de «reabrir a
Faculdade de Direito», procuraram saber das medidas, passos e dificuldades
que estavam em curso para a concretização da decisão presidencial.
A 17 de Agosto de 1987, a Faculdade de Direito da Universidade
Eduardo Mondlane foi, finalmente, aberta, numa sessão dirigida pelo Reitor
da Universidade, Dr. Rui Baltazar dos Santos Alves, cujas aulas já tinham
iniciado no dia anterior. É nesta reunião que é apresentado o professor doutor
Machatine Paulo Munguambe, como novo Director da Faculdade de Direito.

54Consta que a exposição tinha sido assinada pelos ilustres Abdul Carimo Mahomed Issá,
Afonso Armindo Henriques Fortes, Sinai Josefa Nhatitima, Fernando Cunha, Isabel Rupia, Rosa
White e Afonso António Antunes.
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Na fase da retomada, a Faculdade funcionou apenas com alunos do
3.º ano, num total de 80 estudantes-trabalhadores.
O calendário apresentado obedecia ao início de cada ano lectivo
para o mês de Julho, devendo a partir de 1988, receber os novos ingressos.
Desde esta altura, a Faculdade cresceu e ganhou robustez,
colocando-se hoje como referência no ensino do Direito em Moçambique,
ministrando os cursos do 1.º Ciclo (licenciatura), 2.º Ciclo (Mestrado) e 3.º Ciclo
(Doutoramentos). Os programas de ensino foram sendo ajustados às
necessidades de cada época da evolução social, económica, cultural e
política do País.
A nossa disciplina é lecionada no segundo ano do 1.º Ciclo, quer no
período laboral, quer no período pós laboral.
Em termos de ensino da nossa disciplina, há que registar os seguintes
contributos, entre outros:
- a regência do Mestre Paulo Machatine Marrengane Munguambe,
que também assumiu as funções de Director da Faculdade, (…) modificou o
ensino da disciplina, mas o seu magistério teve como referência as obras do
Professor Marcello Caetano e Diogo Freitas do Amaral.
- Em 1993, a Faculdade conta com uma grande aquisição, na área do
Direito Administrativo, o Professor Catedrático Gilles Cistac, de origem
francesa, que modificou o ensino da disciplina metodologicamente e em
termos dos conteúdos.
- Ingressou na disciplina, desde 2010, depois da nomeação do Professor
Paulo Machatine Munguambe, como Presidente do Tribunal Administrativo, o
doutor João Martins, assumindo a regência do Direito Administrativo no
período laboral.
- Desde 2015, com a morte do Professor Gilles Cistac, barbaramente
assassinado a 3 de Março de 2015 e do doutor João Martins, assumiu a
regência da Disciplina o Professor Paulo Daniel Comoane, antigo assistente
dos dois professores, e actualmente Juiz Conselheiro do Tribunal
Administrativo.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
Em termos de literatura no âmbito do Direito Administrativo
moçambicano, há a registar, entre outros, o seguinte relevante para o ensino
da disciplina:
- do Juiz Conselheiro do Tribunal Administrativo, dr. Januário Fernando
Guibunda, “Dúvidas em Direito Administrativo”, Alcance editores, 2012;
- do Juiz Conselheiro do Tribunal Administrativo, Professor Paulo Daniel
Comoane, “Aplicação da Lei do Trabalho nas Relações de Emprego Público”
(Dissertação de Mestrado), Almedina, 2007;
- do dr. Alfredo Chambule, “Garantias dos Particulares, Vol. I”, Imprensa
Nacional, 2002;
Em particular, da nossa autoria, contam-se:
- Lições de Direito Administrativo Moçambicano, Vol. 1, Escolar Editora,
2012;
- Lições de Direito Administrativo Moçambicano, em especial, Função
Pública: Funcionários e Agentes do Estado, 2015;
- Lições de Direito Administrativo Moçambicano: Actividade
administrativa e garantias dos administrados, Vol. III, 2015;
- Lições de Direito Administrativo Moçambicano, Vol. 2, Escolar Editora,
2018;
- Tratado do Direito da Função Pública, Escolar Editora, 2021;
- Descentralização em Moçambique, Escolar Editora, 2021.
- Manual de Direito Administrativo, Editora Escolar, 2021.

§2.º
Essência do Direito Administrativo

8. O regime administrativo
Num texto interessante escrito pelo extinto Professor Gilles CISTAC, sobre
o Direito Administrativo em Moçambique, este, citando Maurice HAURIOU,
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escreveu que “Todos os países modernos assumem funções administrativas,
mas nem todos possuem regime administrativo”55.
Assumir funções administrativas significa simplesmente providenciar as
necessidades colectivas de ordem pública e assegurar o funcionamento de
alguns serviços públicos para a satisfação do interesse geral e a gestão dos
assuntos públicos56.
Qualquer Estado assume funções administrativas. Contudo, os Estados
podem desempenhar estas funções de uma de duas formas: Ou exerce as
funções administrativas confiando-as ao controlo de um poder jurídico
especial e submetidas ao controlo também de um tribunal especial; ou as
exerce submetidas a um regime jurídico comum ou ordinário e ao tribunal
comum, em igualdade de circunstâncias com os cidadãos em geral.
Ora, sendo as funções exercidas num modelo comum igual a dos
cidadãos, em termos da sua disciplina jurídica e controlo jurisdicional, então
esses Estados não têm regime administrativo. É o caso do Reino Unido da Grã
Bretanha, que não dispõe de regime administrativo, pois “… o direito é “um”,
no sentido de que, em princípio são as mesmas regras que regem todas as
relações jurídicas dentro de um mesmo Estado, qualquer que seja a natureza
dessas relações jurídicas. Para ser mais rigoroso, isto não quer dizer que não
existe um "Direito Administrativo" nos países anglo-saxónicos. Em bom rigor, em
todos os Estados, quaisquer que sejam, existe necessariamente, do ponto de
vista material, um conjunto de regras que se chamam "Direito Administrativo",
que regem a organização e as competências das autoridades administrativas
e definem os direitos e as garantias dos administrados quando eles sofrem um
prejuízo em relação a essas autoridades. O que não existe nesses países é um
“modelo europeu” e, sobretudo, um “modelo francês” de Direito
Administrativo”57.

55 HAURIOU, Maurice, Precis de Droit Administratif et de Droit Public, apud CISTAC, Gilles, O
Direito Administrativo em Moçambique, ob. cit., pp. 2-5.
56 CISTAC, Gilles, O Direito Administrativo em Moçambique, … ob. cit., p. 2.
57 CISTAC, Gilles, O Direito Administrativo em Moçambique, … ob. cit., pp. 2-3.
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As diferenças entre o regime administrativo e o anglo-saxónico residem
na espécie e não no género, isto é, na maneira de submeter a Administração
Pública ao Direito. Com efeito, no sistema executivo “as regras administrativas
específicas, apesar do seu número e importância, são apresentadas como
tendo um carácter excepcional e derrogatório do direito comum que seria o
direito privado; e que este, apesar de que ele regula muito pouco a
actividade da Administração Pública, é apresentado como o direito comum
da sua acção. Pois, trata-se, antes de tudo, de uma questão de hábito face
às necessidades e inevitáveis regras administrativas específicas”58.
Para os países que receberam o regime administrativo, como o nosso,
apresentam as seguintes características59-60:
- centralização das funções administrativas numa autoridade jurídica
do poder executivo, seguida de uma separação das atribuições entre o
Poder Executivo e o Poder Judicial, no que se refere à administração do
Direito.
O poder executivo, representado pelo Governo, como autoridade
central e principal da Administração Pública, enquanto jurídico, incumbe-lhe
estabelecer o quadro normativo que regulará a sua própria actividade e
actuação. Com efeito, incumbe ao Governo exercer o poder regulamentar
próprio (regulamentos independentes) e delegado pelo Legislador
(regulamentos executivos), bem como exercer o poder legislativo por
autorização da Assembleia da República (Decretos-lei)61.
- os agentes administrativos não estão sob autoridade directa dos
tribunais comuns e das leis gerais (Lei do trabalho), mas sim sob autoridade
hierárquica de superiores que pertencem ao poder executivo e a sua
actuação é regulada por regulamentos e leis especiais (art.º 251 da CRM);

58 BÉNOIT, F. P., n.º 98 apud CISTAC, Gilles, O Direito Administrativo em Moçambique, … ob.
cit., p. 3.
59 HAURIOU, Maurice, Précis de Droit Administratif, p. 1-3.
60 CISTAC, Gilles, O Direito Administrativo em Moçambique, … ob. cit., p. 3.
61 Cfr. artigos n.º 4 do artigo 142; n.º 3 do artigo 178, ambos da CRM.
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- as decisões das autoridades do poder executivo gozam de auto-
executoriedade sem que seja necessária a intervenção prévia dos tribunais –
privilégio de execução prévia [Alínea d) do art.º 19 da Lei n.º 14/201162];
- os funcionários têm um regime especial de responsabilidade civil em
caso de danos causados no exercício das suas funções e por causa deles,
subtraído do regime geral (Art.º 58 da CRM);
- uma dualidade de jurisdições: uma para julgar os cidadãos, no geral
(Tribunais Judiciais) e outra especial para julgar a Administração Pública,
nomeadamente a jurisdição administrativa (Art.ºs 222 e 227 da CRM);
- a Administração Pública actua pela “via administrativa” e não pela
“via judicial”. Isto é, as decisões da Administração Pública são executórias, e
para serem cumpridas não é preciso que sejam acompanhadas por uma
sentença judicial prévia, a Administração Pública pode constranger o faltoso
a cumprir coercivamente, através da polícia administrativa;
- a Administração Pública submete-se às normas diferentes das do
Direito Privado, isto é, a um direito especial, o Direito Administrativo.
Em conclusão, o regime administrativo consiste na “… ideia de uma
centralização das funções administrativas sob a autoridade jurídica do Poder
Executivo e, a seguir, de uma separação das atribuições entre o Poder
Executivo e o Poder Judicial no que diz respeito à própria administração do
Direito”63. Isto é, o regime administrativo assenta num duplo critério: i) a
submissão da Administração Pública a um direito especial, o Direito
Administrativo e ii) a existência de uma jurisdição especial para julgar a
Administração Pública em caso de litígios com outros sujeitos de direito, ou
para fiscalizar jurisdicionalmente a actividade administrativa,
nomeadamente, a Jurisdição Administrativa –Tribunal Administrativo e
tribunais administrativos.

62 Publicada no Boletim da República, I Série, n.º 32, de 10 de Agosto de 2011, Lei que regula
a formação da vontade dos órgãos da Administração Pública e estabelece normas de
defesa dos direitos e interesses dos particulares.
63 HAURIOU, Maurice, Precis de Droit Administratif et de Droit Public, apud CISTAC, Gilles, O

Direito …, ob. cit., p. 4.


MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
9. A Jurisdição Administrativa
Efectivamente hibernada desde 1975, a Jurisdição Administrativa
reemerge a partir de 1993, aplicando, essencialmente um direito colonial,
recepcionado pela Constituição de 1975, nomeadamente, a RAU – Reforma
Administrativa Ultramarina64, na parte referente ao «Contencioso
Administrativo» e um direito propriamente nacional, vertido na Lei n.º 5/92, de
6 de Maio, Lei Orgânica do Tribunal Administrativo.
A Jurisdição Administrativa é o juiz competente para julgar os litígios
entre a Administração Pública e outros sujeitos de direito, no exercício da
função administrativa de gestão pública.
Historicamente, a Jurisdição Administrativa, como sabido, nasce da
interpretação do princípio de separação de poderes pelos revolucionários
franceses (Infra 5.1. e 5.2.). A evolução desta Jurisdição pode ser sumarizada
em três períodos de fundo65:

1.º Até ao ano VIII e depois da queda da Monarquia, prevalece o


sistema de «Administrador-Juiz». Este sistema consiste na entrega, para
julgamento dos litígios administrativos, a uma instância da própria
Administração Pública (dentro do próprio poder executivo), no caso o Rei e
depois da sua queda, o Ministro ou directório do departamento para outra
categoria de litígios. Portanto, é um sistema que não oferece garantias aos
particulares, uma vez que é o Ministro ou funcionário administrativo do poder
executivo é juiz.

2.º A fase da justiça reservada (retenue, ou retida pela Administração)


à justiça delegada. Esta fase coincide com o nascimento do Conselho de
Estado Francês para o nível central da Administração Pública, que se limita a
fornecer pareceres à Administração pública activa e os conselhos de

64 Aprovada pelo Decreto-lei n.º 23229, de 15 de Novembro de 1933. A RAU entrou em vigor
nas Colónias a 1 de Janeiro de 1934 e a sua aplicação dependia das divisões administrativas
existentes em cada Colónia (Moçambique e Angola).
65 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 159-161.
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prefeitura criados ao nível do prefeito, como entidades de justiça delegada,
com uma competência reduzida, que também emitem pareceres para a
Administração activa do seu nível (Prefeito). Como se pode notar, é ainda a
própria Administração que decide, mas depois da intervenção do órgão de
consulta. Estes pareceres podiam ou não ser homologados pela
Administração Pública, em teoria.

3.º Desaparecimento da jurisdição do ministro. Na concepção inicial, o


soberano, ao decidir no Conselho de Estado, é um juiz de apelação: o
interessado deve, em primeiro lugar, recorrer para o ministro competente, que
decide em primeira instância. O ministro é, pois, o juiz de direito comum em
matéria administrativa, ou seja, o juiz a que se deve pedir a decisão sempre
que para uma determinada categoria de litígios um texto não atribua
expressamente competência a outra jurisdição”66.
O Conselho de Estado Francês pôs fim a esse estado de coisas, tendo-
se proclamado, a partir do Aresto Cadot, decidido a 13 Janeiro de 1889, juiz
administrativo de direito comum, eliminando assim o ministro, da jurisdição
administrativa67.
Em termos do Direito Administrativo, dissemos que este chega ao País
por via da extensão do Código Administrativo de 1842, através da Portaria
Provincial n.º 395, de 18 de Fevereiro de 1856. Por causa da importação do
modelo francês para Portugal, o sistema vigente na altura era correspondente
ao modelo de justiça reservada à caminho da delegada, funcionando na
Metrópole, como jurisdição administrativa, «os conselhos de distrito» e no
concernente às províncias ultramarinas, aqueles conselhos são substituídos
por «Conselho de Governo», órgão que funciona junto dos Governadores
Gerais, sendo composto por chefes de repartições judicial, militar, fiscal e

66 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 160.


67 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 160
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
eclisiástica e conselheiros escolhidos pelo Governador Geral de entre os
quatro membros mais votados das Juntas Provinciais68.
Este «Conselho de Governo», como jurisdição administrativa, emite
pareceres obrigatórios ao Governador Geral, o qual não decidirá sem opinião
prévia daquele órgão de consulta do contencioso administrativo. Portanto,
julgar a Administração Pública, nesta época, continua a ser administrar69.
Em 1869, através do Decreto de 1 de Dezembro, fazem-se alterações à
situação anterior, no que tange às províncias ultramarinas. Com efeito, passa
a existir nas províncias ultramarinas, nos termos do artigo 5 deste Decreto, um
tribunal administrativo com a designação de «Conselho de Província».
A 28 de Janeiro de 1922, é promulgada a Carta Orgânica da Província
de Moçambique, aprovada através do Decreto n.º 200, de 28 de Janeiro de
1922, publicado no Boletim Oficial, I Série, n.º 4. Esta Carta institui um «Tribunal
Administrativo». Em Julho de 1922, é publicado o Estatuto Privativo do Tribunal,
com a designação «Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas de
Moçambique», órgão independente do Poder Executivo no desempenho das
suas funções, nascendo desta forma, uma Jurisdição Administrativa imparcial
e independente do Executivo, cujas decisões passaram a produzir efeitos
próprios das sentenças judiciais.
Deste modo, a Jurisdição Administrativa nasceu seguindo todos os
passos do começo e desenvolvimento da Jurisdição Administrativa Francesa.
É, na verdade, o decalque deste modelo revolucionário francês.
No dia 1 de Janeiro de 1934, entrou em vigor em Moçambique, a
Reforma Administrativa Ultramarina (RAU), aprovada pelo Decreto-Lei n.º
23.229, de 15 de Novembro de 1933. A RAU revogou toda a legislação anterior
e introduziu novas regras orgânicas e de processar no Contencioso
Administrativo.
A RAU e o Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas são recebidos pela
Constituição da República Popular de Moçambique (artigo 71), mas ambos

68 CISTAC, Gilles, Direito Processual Administrativo Contencioso, Teoria e prática, Vol. I


(Introdução), Escolar editora, 2010, p. 123.
69 CISTAC, Gilles, Direito Processual Administrativo Contencioso, ob. cit., 124.
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permaneceram hibernados até o ano de 1993, pois a Constituição de 1975
não se referia a uma Jurisdição Administrativa, mas salvaguardava toda a
legislação anterior que não fosse contrária ao espírito do regime
constitucional pós independência.
Prova da continuidade da RAU e do Tribunal Administrativo, Fiscal e de
Contas, a Lei n.º 5/92, de 6 de Maio, Lei Orgânica do Tribunal Administrativo,
no seu artigo 44 prescreve que «É extinto o Tribunal Administrativo, Fiscal e de
Contas de Moçambique».
A questão de fundo que urge clarificar é a de saber se este Tribunal
chegou a funcionar efectivamente ou não na época 1975 a 1993?
Quando se faz a análise da Lei n.º 5/92, de 6 de Maio, ressalta, do seu
artigo 45, que os serviços, processos, documentos, pessoal e os bens do extinto
Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas são transferidos para o actual
Tribunal Administrativo.
Desta norma, pelo menos, pode deduzir-se que o Tribunal
Administrativo, Fiscal e de Contas esteve, formal ou teoricamente, em
funcionamento. Mas o carácter do Estado socialista, onde dominam os
direitos sociais e económicos sobre os direitos individuais, não se podia
compadecer com a defesa dos direitos subjectivos e interesses legítimos dos
particulares e muito menos com a defesa da legalidade democrática, pois
vinga naquele período a legalidade socialista70.
A 30 de Novembro de 1990, fruto da transição constitucional havida, é
aprovada uma nova Constituição da República, que consagrou
expressamente a existência de uma Jurisdição Administrativa, à qual incumbe
«administrar a justiça em matéria de controlo da legalidade dos actos
administrativos e a fiscalização da legalidade das despesas públicas,
julgando as acções que tenham por objecto os litígios emergentes das
relações jurídico-administrativas; as contas do Estado e os recursos

Sobre o conceito e significado do «princípio da legalidade socialista», ver ALEXANDROV, N.


70

G. e Outros, Teoria Geral Marxista-Leninista do Estado e do Direito, 2.º Volume, (Capítulo XVI).
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
contenciosos interpostos das decisões da Administração Pública» (artigo 167
e 173).
Na sequência da execução do artigo 174 da Constituição de 1990, a
Assembleia da República aprovou a Lei n.º 5/92, de 6 de Maio, que
estabeleceu as competências, a organização, a composição e o
funcionamento do Tribunal Administrativo. A partir deste momento, a
Jurisdição Administrativa tinha todos os instrumentos para efectivamente
funcionar no modelo do Estado de Direito Democrático.
O novo Tribunal Administrativo é constituído:
- pelo Plenário;
- Três Secções, nomeadamente, 1.ª Secção, do Contencioso
Administrativo; 2.ª Secção, do Contencioso Aduaneiro e Fiscal e 3.ª Secção,
da Fiscalização da Despesa Pública e Visto, repartindo-se esta em duas
Subsecções, nomeadamente a de fiscalização das despesas públicas e a de
visto.
Até 2001, a Jurisdição Administrativa aplicou principalmente a sua Lei
Orgânica e a RAU. Neste ano, entrou em vigor a Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho,
que estabeleceu as regras processuais do Tribunal Administrativo.
A Jurisdição Administrativa, com a revisão da Constituição, em 2004, e
as alterações subsequente do seu estatuto e das normas de processar, tem
vindo a desenvolver-se, encontrando-se actualmente representada em todas
as províncias do país, através dos tribunais administrativos provinciais,
constituindo-se hoje o Tribunal Administrativo, o topo da hierarquia dos
tribunais administrativos, fiscais e aduaneiros71.

SECÇÃO II
DEFINIÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

§1.º

71 Cfr. n.º 1 do artigo 227 da Constituição.


MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
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Construção histórica do objecto do Direito Administrativo

10. Questões gerais


O Direito Administrativo moçambicano é de inspiração francesa. Com
efeito, a análise da delimitação do objecto do Direito Administrativo seguirá
as calcagens do modelo executivo.
A Jurisdição Administrativa nascente na França fez a elaboração de
um Direito diferente do Direito Privado, autónomo e original, com
características que permitem concluir que os tribunais judiciais estariam mal
preparados para administrarem este direito especial recém-nascido (Supra n.º
5.2). É a presença de um Direito originariamente autónomo e especial que
justifica a existência da Jurisdição Administrativa, foro especial, para julgar os
litígios entre a Administração Pública e outros sujeitos de direito, afastando,
desta feita, as interferências dos tribunais judiciais.
Para uma melhor delimitação dos assuntos que deveriam ser
conhecidos pela Jurisdição Administrativa, procurou-se fixar o objecto do
Direito Administrativo ao longo dos tempos.

11. Construção do objecto do Direito Administrativo


Vários critérios têm sido utilizados para delimitar o objecto do Direito
Administrativo, ao longo das épocas da sua evolução.
Neste trabalho, vamos eleger alguns critérios para a sua análise
autónoma. Fora dos escolhidos, pode-se anunciar i) o critério que pretendeu
definir o Direito Administrativo através da noção de «interesse público»
(WALINE), visto que este domina toda a actividade administrativa. Apesar de
o interesse público ser comum à toda a actividade administrativa, quer de
gestão pública, quer de gestão privada, essa actividade pode ser
desenvolvida através de processos que não se reconduzem ao Direito
Administrativo, nomeadamente no caso de regras do Direito Privado, que
regem a actividade dos serviços comerciais, industriais e sociais; ii) o critério
de poder executivo ou «puissance du publique» (VEDEL), que pretendeu
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
centrar o objecto do Direito Administrativo no estudo de normas jurídicas
aplicáveis à actividade do Poder Executivo no exercício do poder público.
Portanto, segundo ele o Direito Administrativo seria o direito comum do poder
público.

11.1. Critério legalista ou das leis administrativas


Na história da formação científica do Direito Administrativo, o critério
legalista é orginário. É a chamada, actualmente, de escola caótica,
exegética, empírica por falta de qualquer preocupação sistemática ou por
grosseiro empirismo72.
Este critério considera que o Direito Administrativo tem por objecto o
direito positivo, sendo sua função, portanto, a interpretação das leis
administrativas e seus actos jurídicos complementares, abarcando a
organização e funcionamento da Administração Pública, bem como as suas
relações com outros sujeitos de direito.
Os sequazes desta escola sistematizaram e comentaram as leis com
base na jurisprudência das jurisdições administrativas, uma orientação que
era adoptada no Direito Privado, visto que havia neste ramo de direito uma
tradição sagrada baseiada nos códigos.
Dos cultores desta escola, contam-se Barão de Gerando, Macarel,
Foucart, entre outros. Por exemplo, MACAREL, na aula inaugural, em 1852, aos
seus estudantes afirmou, ao apresentar a noçaõ do Direito Administrativo, que
“o conjunto de todas estas leis e de todos estes regulamentos forma o corpo
do Direito Administrativo e é isto que me cabe explicar-lhes”73.
Outras definições podem ser ainda avançadas: a de POSADA DE
HERRERA, como sendo “o conjunto de leis administrativas”; ainda da escola
italiana, DE GIOANNIS GIANQUINTO, diz o Mestre que a “Administração em
sua organização está condenada a um sistema de leis: encontramo-nos aqui
diante do Direito Administrativo”74.

72 Cfr MASAGÃO, Mário, Conceito do Direito Administrativo, 1926, p. 21.


73 MASAGÃO, Mário, Conceito do Direito Administrativo, p. 21.
74 Por todos, vide JUNIOR CRETELLA, José, Direito..., ob. cit., p. 21.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
ALBANO MACIE, 2021
Tem-se posto em causa este critério pelo facto de que “… qualquer
ciência de direito positivo estuda sempre um conjunto sistemático de
princípios jurídicos, o que é bem diverso da simples exposição e comentário
de leis (…). Atribuir ao direito administrativo o estudo das leis administrativas,
em nada contribui para a recta intelijéncia do conteúdo científicodo direito
administrativo. Este critério explicável pelas razões istóricas tem sido, além de
um defeito formal, que acusa uma falsa direcção metódica, uma das causas
da lamentável falta de sistema que se nota na ciência do direito
administrativo”75.
Em conclusão, este critério não poderia ter sido aceite na actualidade,
“(...) porque é um absurdo querer reduzir todo o Direito Administrativo a
apenas um conjunto de textos legais comentados, trabalho puramente
exegético, quando se sabe que qualquer dos ramos do direito abrange, além
da parte positiva, sem dúvida importantíssima, a doutrina, a jurisprudência, a
praxe, os usos e costumes”76.

11.2. Escola do serviço público


Até 1872, na França, na ausência de um Tribunal de Conflitos (cuja
função é julgar o conflito de atribuições entre as Jurisdições Administrativa e
Comum) que se impusesse ao Conselho de Estado e ao Tribunal de Cassação
de Paris (ordinário), o Conselho de Estado agarrou-se à regra do «Estado
devedor», que visava reservar todos os litígios dirigidos a uma condenação
pecuniária do Estado à Jurisdição Administrativa77. Nesta época, a
competência variava conforme “… a natureza das regras em causa:
administrativa ou judicial consoante a Administração tenha querido utilizar as
suas prerrogativas ou agir nos quadros do direito privado. Esta ideia inspira a
distinção entre actos de autoridade, reservados à competência

75 PEDROSA, A. L. Guimarães, Ciência da Administração, ob. cit., p. 120.


76 JUNIOR CRETELLA, José, Direito..., ob. cit., p. 21.
77 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 166.
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administrativa, e actos de gestão, análogos aos dos particulares, que o juiz
ordinário conhece, salvo disposição em contrário”78.
Portanto, o objecto do Direito Administrativo, para dele se determinar a
competência da Jurisdição Administrativa, passou a ser «os actos de
autoridade». Mas era preciso que se encontrasse um critério menos impreciso
para distinguir entre «actos de autoridade», que se submeteriam à Jurisdição
Administrativa e «actos de gestão», que se reservariam à Jurisdição Comum.
O referido critério, como ensina RIVERO, “foi a jurisprudência encontrá-
lo, em parte sob a influência de Hauriou, no facto de o litígio se prender com
o funcionamento de um serviço público. Partindo da ideia (…) de que a
actividade administrativa se diferencia da dos particulares pela existência de
actividade dos serviços públicos que prosseguem a satisfação do interesse
geral segundo processos derrogatórios do direito comum (…)”79.
A partir deste momento, a actividade jurispruencial do Conselho de
Estado Francês começou a determinar a sua competência através do critério
de «serviço público».
O próprio Conselho de Estado, no Aresto Terrier, em 1903, formulou da
seguinte forma o «critério de serviço público»: “Tudo o que diz respeito à
organização e funcionamento dos serviços públicos propriamente ditos,
gerais ou locais, quer a Administração aja por via de contrato, quer proceda
por via de autoridade, constitui uma operação administrativa que é pela sua
natureza da competência administrativa”80.
Mas pode ocorrer que a Administração, na gestão de serviços públicos,
tenha querido se manter exclusivamente no quadro das relações de
particular para particular, nas condições do direito privado: isto é assim em
dois casos: “ou em razão da natureza do serviço que está em causa (gestão
do domínio privado) ou por causa do acto que se trata de apreciar, para o
qual a Administração escolheu o processo de direito privado. Nestas hipóteses

78 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 189.


79 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 190.
80 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 190.
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há gestão privada dos serviços públicos; a competência judicial decorre
naturalmente da aplicação do direito privado”81.
A partir desta orientação jurisprudencial, o critério de «serviço público»
foi aderido e interpretado pela doutrina, como nova aquisição para a
definição do objecto do Direito Administrativo. Nascia, com efeito, desta
forma a «Escola de serviço público», cujos defensores foram Gaston JÉZE, Léon
DUGUIT, Jules-Marie-Roger BONNARD e ROLLAND, que pretenderam definir o
Direito Administrativo através da noção do serviço público. Assim, o Direito
Administrativo seria o conjunto de regras relativas ao serviço público82.
Assim, para estes tratadistas, todas as situações relacionadas com a
execução de um serviço público seriam subtraídas da aplicação do Direito
privado e sujeitas a regras especiais, as de Direito Administrativo83.
Mas este critério entrou em crise, que se manifesta por duas vias84:
1.ª - O desenvolvimento da gestão privada. (…) os serviços tradicionais
recorrem frequentemente aos contratos de direito privado, o que alarga o
campo da competência judicial … o abandono progressivo do liberalismo
económico multiplicou os serviços públicos com carácter industrial e
comercial, que funcionam nas mesmas condições que as empresas privadas
similare, sob um regime de direito privado.
2.ª - Incerteza sobre a definição do serviço público. A noção de serviço
público esbateu-se. No conceito de serviço público estavam reunidos três
elementos: um organismos administrativo; uma actividade de interesse geral
e um regime jurídico derrogatório do direito comum. Ora, estes três elementos
dissociaram-se: i) é corrente que uma actividadae de interesse público

81 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 191.


82 Gaston JÈZE abre o seu livro referindo que é Direito Administrativo, “o conjunto de regras
jurídicas relativas ao serviço público”; Léon DUGUIT afirma que “Ao exercício da função
administrativa corresponde o Direito Administrativo, que compreende o conjunto das regras
que se aplicam aos efeitos dos actos administrativos e também ao funcionamento dos
serviços públicos” e LAFERRIÈRE refere que “A Administração, de resto, considerada em
conjunto, tem dois objectos principais que cumpre não confundir: um concernente à
estrutura e ao mecanismo dos serviços públicos, bem como à sua organização interior e
pormenorizada (...)”, por todos JUNIOR CRETELLA, José, Direito ..., ob. cit., p. 24.
83 CISTAC, Gilles, Curso do Direito Administrativo, Lições aos estudantes da Faculdade de

Direito da Universidade Eduardo Mondlane, 1997-1998, p. 9.


84 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 192-194.
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(serviço público no sentido funcional) seja gerido por uma entidade privada,
sob um regime que mistura direito privado e direito público; ii) os serviços
públicos económicos, comerciais ou industriais (serviço público no sentido
orgânico) podem ser colocados sob gestão privada, sendo-lhes aplicável o
direito privado.
Desta forma, tornou-se difícil e arbitrário dizer o que é ou não serviço
público, objecto de estudo do Direito Administrativo e, desde logo, o que
delimitaria a competência da Jurisdição Administrativa em relação à
Jurisdição Ordinária.
Em concliusão, o critério de «serviço público» tornou-se impreciso para
definir o Direito Administrativo, pois “a Administração não se limita a gerir
serviços públicos: a regulamentação da actividade dos particulares no
quadro da polícia administrativa, nomeadamente, que é uma parte
importante da sua acção, não constitui, para falar com propriedade, gestão
de um serviço. (...). Em sentido inverso, a gestão do serviço público nem
sempre utiliza os processos do Direito Administrativo; sucede que se serve de
processos de direito civil, nomeadamente em matéria de contratos (...). De
tudo isto resulta pois que o serviço público, para a sua gestão, não faz
necessariamente apelo ao Direito Administrativo”85.

11.3. Critério da doutrina espanhola: «Direito Administrativo como direito


estatutário»
Desde o ano de 1952, na Espanha, tem sido desenvolvida a «teoria
estatutária», que identifica o Direito Administrativo como tendo por objecto
«o estatuto privilegiado das Administrações Públicas»86.
É um critério subjectivo de definição do objecto do Direito
Administrativo, assente nas vantagens de se considerar a Administração
Pública como pessoa jurídica, dentre as quais se destaca a de permitir que a
relação entre o cidadão e a Administração Pública seja considerada como

RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 38 e 39.


85
86BLANQUER, David, Derecho Administrativo. El fin, los médios y el control, Tirant lo blanch,
Volumen 1.º, Valência, 2010, p. 43.
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uma relação entre dois centros de imputação jurídica, o que torna o vínculo
entre os dois sujeitos num relacionamento jurídico susceptível de controlo por
meio das técnicas de direito utilizadas pelos tribunais87.
Esta concepção subjectiva do objecto do Direito Administrativo levou
ENTERRÍA a defini-lo como “um direito de natureza estatutária , enquanto se
dirige à regulação das espécies singulares de sujeitos que se agrupam sob
denominação de Administrações Públicas, subtraindo esses sujeitos singulares
ao direito comum»88.
Apesar de ter muita aceitação esta concepção subjectiva do Direito
Administrativo na Espanha, não ficou imune a criticas. A partir de 1960, surge
um conjunto de fenómenos que fissuraram a concepção subjectiva de Direito
Administrativo. As fissuras que têm sido apresentadas desta concepção são89:
1.ª - o aparecimento de fenómenos de auto-administração, como o
que ocorre com as corporações profissionais, como as ordens profissionais
(Ordem dos Advogados, engenheiros e dos médicos, etc.). Diz-se que esses
profissionais que fazem parte dessas ordens não são funcionários públicos,
mas particulares que exercem uma actividade liberal. Estas ordens exercem
funções públicas nos casos de garantia da deontologia profissional e nos
casos de imposição de sanções disciplinares aos seus membros;
2.ª - as funções administrativas que são exercidas pelos órgãos
constitucionais, que não sendo Administrações Públicas, aplicam o Direito
Administrativo. É o caso dos órgãos do poder judicial, que na sua actividade,
não se limitam a ditar sentenças, mas, emitem decisões administrativas no dia
a dia, e. g., nomeações de juízes; realização da actividade burocrático-
administrativa;
3.ª - o surgimento de sociedades mercantis de natureza pública que se
submetem na sua gestão e funcionamento às regras do Direito Privado.
O Doutor FREITAS DO AMARAL, pondo em causa esta concepção
estatutária, diz que “o Direito Administrativo não é um direito estatutário: ele

87 BLANQUER, David, Derecho Administrativo, ob. cit., p. 44.


88 ENTERRÍA, García, Curso de Derecho Administrativo, Vol. I, 5.ª edição, 1989, p. 36.
89 BLANQUER, David, Derecho Administrativo, ob. cit., pp. 47-60.
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não se define em função do sujeito (Administração Pública), mas sim em
função do objecto (função administrativa, ou actividade administrativa de
gestão pública). O Direito Administrativo não é, pois, o direito comum da
Administração Pública, mas antes o direito comum da função
administrativa”90.
Apesar desta crítica, salienta-se actualmente que não é conveniente
definir o Direito Administrativo exclusivamente, através da «função
administrativa»; isto é, dizer-se que o Direito Administrativo é o direito da
função administrativa, visto que91:
- a função administrativa pode ser realizada por formas ou instrumentos
do direito privado;
- não se pode conceber toda a Administração Pública como função
administrativa porque a sua organização não é função e, portanto, não seria
objecto do Direito Administrativo;
- os autores que definem o Direito Administrativo, através do critério de
«função administrativa», acabam por resvalar, em parte, para a noção dita
estatutária do Direito Administrativo92;
- a noção de «função administrativa» é vaga e ampla para servir como
critério para a construção do conceito de Direito Administrativo.

§2.º
Noção do Direito Administrativo

Como asseveraram os Romanos, omnis definitio periculosa est93. Isto


para dizer que “não se atingiu ainda o conceito do Direito Administrativo”,

90 AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra,
2006, p. 155.
91 SOUSA, Nuno J. Vasconcelos Albuquerque, Noções de Direito Administrativo, Coimbra

editora, Lisboa, 2011, pp. 37-38.


92 Ver, por exemplo, a noção dada pelo Professor Marcelo Rebelo de SOUA: «“é o conjunto

de princípios e de regras jurídicas que disciplinam o exercício da função administrativa do


Estado-colectividade, sempre que, nesse exercício, não só está presente, como prevalece, a
prossecução do interesse público sobre interesses privados com ele relacionados ou
conflituantes” (Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, Lex, 1999, p. 56).
93 Toda a definição é perigosa, traduzido literalmente.
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parafraseando o pessimismo de Lorenzo Stein94. Antes de apresentar a minha
construção sobre o conceito de Direito Administrativo, analisa-se algumas
definições do Direito Administrativo apresentadas em várias ordens jurídicas.

12. Experiências estrangeiras na definição do Direito Administrativo


Começamos pela França. Para Jean REVERO, Direito Administrativo “é
o conjunto das regras jurídicas distintas das do direito privado que regem a
actividade administrativa das pessoas públicas”95.
Da Itália, vinga a definição do sempre Mestre ZANOBINI, segundo ele,
“o Direito Administrativo é aquela parte do direito público que tem por
objecto a organização, os meios e as formas da actividade das
administrações públicas e as consequentes relações jurídicas entre aquelas e
outros sujeitos”96.
Da Alemanha, Hart MAURER diz que “Derecho administrativo es la
noción com la que se alude al conjunto de disposiciones jurídicas (escritas y
no escritas) específicas de la administración (de la actividad, del
procedimento y de la organización administrativos). Es el derecho próprio de
la administración”97.
Da Argentina, chega-nos a definição de Austín GORDILLO, sendo o
Direito Administrativo “la rama del derecho público que estudia el ejercicio
de la función administrativa y la protección judicial existente contra ésta”98.
Da Espanha, García de ENTERRÍA, define o Direito Administrativo como
“um direito de natureza estatutária, enquanto se dirige à regulação das
espécies singulares que se agrupam sob a denominação de Administrações
Públicas, subtraindo esses sujeitos singulares ao direito comum”99.

94 STEIN, Lorenzo, apud, CORDEIRO, António Menezes, Manual…, ob. cit., p. 19.
95 RIVERO, Jean, Direito Administrativo…, ob. cit., p. 25.
96 ZANOBINI, Guido, Corso di diritto, apud PARADA, Roman, Derecho Administrativo, ob. cit.,

p. 27.
97 MAURER, Hart, Derecho Administrativo Alemán, Universidad Nacional Autónoma de México,

México, 2012, p. 37.


98 GORDILLO, Austín, Tratado de Derecho Administrativo, 7ª edición, Editora Del Rey y F.D.A.,

2003, p. V-19.
99 ENTERRIA, García, Derecho Administrativo, ob. cit., p. 36.
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De Brasil, registamos as definições de:
- Hely Lopes MEREILLES, o Direito Administrativo “... sintetiza-se no
conjunto harmónico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes
e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e
imediatamente os fins desejados pelo Estado”100.
- José CRETELLA JÚNIOR, Direito Administrativo “é o ramo do direito
público interno, pertinente às actividades das pessoas jurídicas públicas,
quando perseguem interesses públicos ou ramo de direito público interno que
regula as atividades das pessoas jurídicas públicas e a instituição de meios e
órgãos relativos à acção dessas pessoas”101.
- Maria Sylvia Zanella di PIETRO, sendo o Direito Administrativo “o ramo
do direito público que tem por objecto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas
administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica
não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução
de seus fins, de natureza pública”102.
Em Portugal, podemos anotar as seguintes definições:
- Marcello CAETANO considera o Direito Administrativo como “sistema
das normas jurídicas que regulam a organização e o processo próprio de agir
da Administração Pública e disciplinam as relações pelas quais ela prossiga
interesses colectivos podendo usar de iniciativa e do privilégio da execução
prévia”103.
- Marcelo Rebelo de SOUSA define o Direito Administrativo como “… o
conjunto de princípios e de regras jurídicas que disciplinam o exercício da
função administrativa do Estado-colectividade, sempre que, nesse exercício,
não só está presente, como prevalece, a prossecução do interesse público
sobre interesses privados com ele relacionados ou conflituantes”104.
- Diogo FREITAS DO AMARAL, segundo o qual Direito Administrativo é
“ramo de direito público constituído pelo sistema de normas jurídicas que

100 MEREILLES, Hely Lopes, Direito Administrativo …, ob. cit., p. 29.


101 CRETELLA JÚNIOR, José, Direito Administrativo …, ob. cit., p. 41.
102 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di, Direito Administrativo, ob. cit., p. 52.
103 CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, ob. cit., 2010, p. 43.
104 SOUSA, Marcelo Rebelo de, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, Lex, 1999, p. 56.
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regulam a organização e o funcionamento da Administração Pública, bem
como as relações por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito no
exercício da actividade administrativa de gestão pública”105.

13. Construção da nossa definição de Direito Administrativo


Queremos advertir que a noção do Direito Administrativo a ser
construída resulta do exame da realidade jurídico-política moçambicana,
que condiciona o nosso pensamento sobre a matéria em análise.
Em primeiro lugar, vamos fazer algumas considerações delimitadoras
da nossa definição:
- Já o dissemos, o Direito Administrativo não pode ser definido
exclusivamnete como direito da «função administrativa» (Supra n.º 11), pois
esta noção é vaga e excluiria da regulação administrativa a parte
organizatória da Administração Pública;
- não se pode também definir exclusivamente o Direito Administrativo
pela ideia de «poderes de autoridades; ou privilégio de execução prévia»106,
visto que os poderes de autoridades são poderes típicos previstos em muitas
normas do Direito Administrativo, mas são também normas administrativas as
que prevêem deveres, ónus, restrições por motivos de interesse público e as
que conferem direitos subjectivos e reconhecem interesses legítimos dos
particulares107;
- não se pode definir o Direito Administrativo, através da concepção
subjectiva ou estatutária, pois este não se limita a estudar as Administrações
Públicas, definindo seu estatuto e determinando sua estrutura; compreende
também as relações jurídico-administrativas (Ver supra 5.3);

105 FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, 3.ª Edição, Vol. I, Almedina,
2008, p. 140.
106 Ver definição do Professor Marcello Caetano em Manual de Direito Administrativo, ob. cit.,

p. 43, onde utiliza a expressão «privilégio da execução prévia» para definir o Direito
Administrativo; Quanto à utilização das palavras «poderes de autoridade» ( ver. Supra n.º 11).
107 SOUSA, Nuno J. Vasconcelos Albuquerque, Noções de Direito Administrativo, ob. cit., p. 38.
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- O Direito Administrativo não é direito «próprio» e «exclusivo» do Poder
Executivo108. Não é próprio, embora seja direito, por excelência, da
actividade do Executivo, porque regula também a função administrativa dos
demais poderes públicos do Estado, como o Parlamento e o Judiciário
(pense-se, e.g., na nomeação de um funcionário parlamentar ou de um juiz,
respectivamente), bem como o exercício das prerrogativas administrativas
por particulares que sejam concessionários de poderes públicos (por
exemplo, a empresa privada que gere a portagem de Maputo/Matola-
TRAC); não é direito exclusivo109 do Poder Executivo, porque este e outras
pessoas administrativas públicas são também regidos por outros ramos de
direito, que não o direito administrativo;
- não se pode definir o Direito Administrativo como direito excepcional
do direito privado, pois o Direito Administrativo é um direito autónomo, com
princípios jurídicos e produção normativa próprios.

Em segundo lugar, há que explicitar o seguinte110:

1.º- O Direito Administrativo deve inserir-se num ordenamneto jurídico de


um dado país; no caso, é o ordenamento jurídico moçambicano. E, por isso,
estudará um conjunto de normas e princípios jurídicos extraído do sistema das
fontes de direito moçambicano111.

2.º - O Direito Administrativo regula um sector da ordem jurídica que


compreende a organização e funcionamneto da Administração Pública; mas

108 MODESTO, Paolo, Notas de Introdução ao Direito Administrativo. Revista Electrónica de


Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n.º 9,
Janeiro/Fevereiro/Março, 2007. Disponível na Internet:
http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp. Acesso em: 27 de Abril de 2020.
109 ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo. Temas Nucleares,

Almedina, 2012, p. 18.


110 Ver CAETANO, Marcello, Princípios do Direito Administrativo, ob. cit., pp. 18-27; MODESTO,

Paolo, Notas de Introdução ao Direito Administrativo, ob. cit., pp. 11-18; BLANQUER, David,
Derecho …, ob. cit., pp. 39-57; SOUSA, Nuno J. Vasconcelos Albuquerque, Noções de Direito
Administrativo, ob. cit., pp.37-54.
111 Ver, por exemplo, o artigo 213 da Constituição que diz que “Nos feitos submetidos ao

julgamento os tribunais não podem aplicar lei ou princípios que ofendem a Constituição”.
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não se basta nisto, pois, abrange também as chamadas relações jurídico-
administrativas; e aplica-se excepcionalmente aos entes de direito privado
que exercem poderes públicos por delegação ou concessão da
Administração Pública, bem como se aplica a outros poderes públicos que
exercem materialmente e por força da lei a actividade administrativa,
nomeadamente, os casos do poder legislativo e judicial.

3.º - O Direito Administrativo, em Moçambique, porque de modelo


continental, tem lugar numa sociedade em que as relações jurídicas entre
particulares são regidas segundo os princípios da liberdade e da igualdade
entre as partes (autonomia privada- art.º 405.º do Código Civil), vectores
próprios do Direito Privado; e as relações entre a Administração Pública e os
administrados são regidas por um direito especial (o Direito Administrativo),
desde que esteja em causa a prossecução da actividade administrativa de
gestão pública.

4.º - A Administração Pública, que, de forma aproximativa, é objecto


do Direito Administrativo, não é toda ela que é regulada pelo Direito
Administrativo e não pode ser confundida com o Estado.

5.º - Há sectores da Administração Pública que, sem perder essa


qualidade, são regidos pelo Direito Privado. A Lei n.º 7/2012112 define a
Administração Pública como sendo o «conjunto de órgãos e serviços públicos
que asseguram a realização de actividades administrativas visando a
satisfação de necessidades públicas» (Ver Glossário). Esta Lei, ao descrever a
Administração Pública do Estado, nota-se:
- uma administração directa do Estado, que compreende os serviços
públicos directamente prestados pelos órgãos do Estado, nomeadamente os
órgãos centrais (Presidente da República, Governo, Ministérios, etc.),

Publicada no Boletim da República, I Série, n.º 6, de 8 de Fevereiro de 2012, Lei de bases


112

da organização e funcionamento da Administração Pública.


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independentes (Comissão Nacional de Eleições, etc.), a representação do
Estado na Província (Secretário de Estado na Província) e no estrangeiro
(embaixadas, consulados, etc.) - (art. 32);
- uma administração indirecta, que é constituída por um conjunto de
instituições públicas, dotadas de personalidade jurídica própria, criadas por
iniciativa dos órgãos centrais do Estado para desenvolver a actividade
administrativa, visando realizar o fim prescrito no acto da criação, que
compreende o Banco de Moçambique, os Institutos Públicos, Fundações
Públicas, Fundos Públicos e o sector empresarial do Estado (cfr. art. 32 e art.
74);
- os entes descentralizados, nomeadamente os órgãos de governação
provincial e distrital descentralizados e autarquias locais (artigo 268 da
Constituição);
- as instituições públicas do ensino superior (art. 102 e ss).
- as associações públicas (art. 107 e ss.)
Dentro da Administração Pública, como a descrevemos, o sector
regido principalmente pelo direito privado, é o sector «empresarial do Estado».
Di-lo o artigo 105, n.º 1 que “As empresas que integram o sector empresarial
do Estado regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver especialmente
regulado na lei das empresas públicas, bem como nos diplomas legais que
aprovam os respectivos estatutos”.
Portanto, apesar de o Direito Administrativo ter por objecto a
Administração Pública, pode concluir-se que ele não regula todos os sectores
da Administração; existem sectores, por natureza, submetidos ao Direito
Privado, como regra, e, excepcionalmente, ao Direito Administrativo.
O Direito Administrativo não é, por exclusividade, o direito que regula a
Administração Pública. A Administração Pública pode submeter-se ao direito
privado, através das chamadas «Fugas para o Direito Privado» (ESTORNINHO),
o que faz com que ao Direito Administrativo se reserve o papel de «direito
comum ou geral da actividade administrativa» no sector da Administração
que a ele se submete.
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6.º - A Administração Pública não pode ser confundida com o Estado.


O Estado pode assumir três acepções:

- Estado-Colectividade, que é estudado em Direito Constitucional. Esta


acepção do Estado corresponde ao exercício do poder político ou
soberania, incluindo todos os três poderes do Estado, nomeadamente
Executivo, Legislativo e Judicial. Os fins deste Estado é a justiça, bem estar e
segurança. Este Estado tem como elementos o Povo, o Território e o Poder
Político, embora também se verifiquem estes elementos nas duas seguintes
acepções.
- Estado no plano da soberania internacional, estudado no Direito
Internacional Público. Esta acepção coloca o Estado no plano de exercício
da soberania no plano internacional em paridade de circunstâncias com
outros Estados soberanos.
- Estado-Administração, que é estudado pelo Direito Administrativo.
Nesta perspectiva, o Estado corresponde ao chamdo «Estado-Administração»
ou «Estado como pessoa colectiva pública». O Estado-Administração tem
personalidade jurídica própria, embora criando outras pessoas colectivas
públicas, como por exemplo, institutos públicos, empresas públicas; ele
confronta-se e convive, no plano do direito interno, com outros entes privados
ou públicos com personalidade jurídica. Dos entes públicos com
personalidade jurídica, contam-se:
- os institutos públicos;
- as empresas públicas;
- as associações, os fundos e fundações públicos;
- as autarquias locais;
- os órgãos de governação descentralizada provincial e distrital.
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Portanto, a Administração Pública material há-de ser constituída pelas
pessoas colectivas públicas e serviços públicos, tendo como seu órgão
central ou principal, o Governo.

7.º - Todas estas entidades que integram a Administração Pública


realizam a actividade administrativa. Mas o ponto de fundo no exercício
dessa actividade tem a ver com os processos jurídicos pelos quais ela se
processa, embora tenha de comum a prossecução do interesse público.

7.1. A actividade administrativa desses entes pode ser realizada no


quadro do Direito Privado, como regra geral. É o caso, por exemplo, da
actividade administrativa das empresas públicas. Neste caso, dir-se-á que se
está perante uma actividade administrativa de gestão privada, aplicando-se
o direito civil, o direito comercial e o direito do trabalho.

7.2. A actividade administrativa desses entes pode processar-se através


de regras do Direito Público, nomeadamente o Direito Administrativo, como
regra. Neste caso, diz-se actividade administrativa de gestão pública.

8.º - Portanto, interessa ao Direito Administrativo estudar as normas


jurídicas que regulam a actividade administrativa de gestão pública. Mas o
Direito Administrativo aparece como regime regra, pois estas entidades da
Administração Pública podem, quando a lei assim o permitir, realizar a sua
actividade no quadro do direito privado, mas como uma excepção.

9.º - As normas que compõem o Direito Administrativo podem ser de


vária ordem, tendo cada uma seu objectivo113.

113Podem ser identificados vários tipos de normas administrativas, a exemplo de: i) normas de
conduta, as que se destinam a regular o comportamento dos agentes administrativos e os
administrados de modo geral; e normas de organização, que estruturam os órgãos,
organismos e serviços administrativos; ii) normas de acção, que regulam a actividade da
administração com vista à prossecução do interesse público; normas de relação, que,
embora tutelando os interesses públicos, visam garantir aos particulares uma posição
autónoma e com relevância externa, isto é, uma posição que exorbita da esfera da
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9.1. As normas orgânicas, são aquelas que criam, modificam e


extinguem órgãos, instituições e serviços públicos. No fundo, estas normas
traçam a estrutura e o modo de organização dos órgãos, instituições e
serviços da Administração Pública. Estas normas podem constar directamente
da Constituição, das leis ou dos regulamentos que tenham como função
tratar da organização e estruturação desses entes públicos.

9.2. As normas processuais são as que se ocupam do modo de


funcionamento dos entes públicos, traçando os procedimentos e
formalidades a observar na formação da vontade dos órgãos e agentes da
Administração Pública, bem como a sua execução. Avultam neste conjunto
as ditas normas de procedimento administrativo.

9.3. As normas relacionais que estabelecem as relações jurídicas entre


a Administração Pública e outros sujeitos de direito. Estas normas repartem-se
em:
- normas relacionais, que conferem poderes de autoridade à
Administração Pública para impor o interesse público sobre os interesses
privados, conferindo à Administração o privilégio de execução prévia,
visando constranger os particulares a cumprir as decisões administrativas,
quando, voluntariamente, não as cumpriram dentro dos prazos
determinados;

administração; iii) normas internas, que obrigam apenas os agentes administrativos e com
eficácia reservada exclusivamente ao âmbito interno da administração; externa, as que se
têm eficácia externa bilateral, que, dirigindo-se à administração e, portanto, aos seus
agentes, produzem também efeitos em relação aos cidadãos ou, de um modo geral, a
sujeitos estranhos a ela; iv) normas materiais, que estatuem sobre direitos e obrigações
recíprocas da administração e dos particulares; as instrumentais, que disciplinam as
condições de desenvolvimento, da actividade da administração ou dos particulares, no
exercício dos seus direitos ou no cumprimento das suas obrigações respectivas (Ver QUERÓ,
Afonso Rodrigues, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976, pp. 283-287).
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- normas relacionais, que conferem direitos subjectivos e interesses
legítimos aos administrados114;
- normas relacionais, que prevêem deveres, restrições ou ónus por
motivos de interesse público; que colocam travões à Administração Pública
de modo que respeite os direitos e interesses dos administrados.

Em conclusão, teríamos que Direito Administrativo é um ramo de direito


público interno, constituido por um o conjunto de normas e princípios jurídicos
que regem a organização, o funcionamento da Administração Pública e as
relações jurídicas que esta estabelece com outros sujeitos de direito no
desempenho da actividade administrativa de gestão pública, bem como
regula a actividade administrativa de outros entes públicos ou privados,
quando, por lei ou outro título jurídico, sejam arremetidos ao exercício da
actividade administrativa de gestão pública.

Abreviadamente, seria Direito Administrativo, o conjunto de normas e


princípios jurídicos que disciplinam a actividade administrativa de gestão
pública, independentemente da qualidade pública ou privada do sujeito que
a exerce.

§3.º
Direito Administrativo como ramo de Direito Público, sua dinstinção
com o direito privado

14. Aspectos gerais


O Direito constitui uma única realidade dividida por motivos115 culturais,
teóricos, práticos ou didácticos e político-ideológicos, em público e privado.

114 O termo «administrados» é mais amplo que «particulares», o primeiro designa as pessoas
físicas e morais ou colectivas públicas ou privadas; e o segundo designa unicamente as
pessoas físicas – pessoas humanas.
115 Ao nível cultural, o Direito privado remonta ao Direito Romano às recepções; tendo sofrido

um processo de cientificação, ele atingiu um estádio que possibilitou a sua codificação; pelo
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A divisão do Direito, em público e privado, remota a ULPIANO116, Jurista
Romano, na base da célebre distinção entre “ius publicum” e o “ius privatum”.
No geral, pode dizer-se que as relações jurídicas do direito privado
caracterizam-se essencialmente pelos valores enunciados no artigo 405.º do
Código Civil, segundo o qual as partes “… têm a faculdade de fixar livremente
o conteúdo dos contratos, celebrar contratos … ou incluir nestes as cláusulas
que lhes aprouver”. Anuncia-se aqui os princípios da autonomia da vontade,
liberdade de contratação e de estipulação, que constituem, no fundo, a
autonomia privada. Acrescenta-se aqui o princípio da igualdade entre os
sujietos no direito privado.
O direito privado, como regulador das relações entre sujeitos que
actuam segundo o princípio da liberdade e em pé de igualdade, subdivide-
se em:
- Direito privado comum, que corresponde ao chamado direito civil,
que se compõe de direito das obrigações, direitos reais ou das coisas, direito
da família e direito das sucessões.

contrário, o Direito Público tem origem jusracionalista e não apresenta uma sedimentação
compatível com uma codificação autêntica. Ao nível teórico, o Direito privado traduz
relações estáveis entre pessoas; assim, as modificações que nele ocorram correspondem a
alterações estruturais da própria cultura em jogo e operam lentamente; o Direito público, por
seu turno, traduz relações com o Estado ou por ele presididas, admitindo quebras ou
modificações bruscas e imprevisíveis. Ao nível prático, a qualificação de uma disciplina como
pública ou privada decide do seu destino académico, doutrinário, jurisdicional e profissional.
Ao nível político-ideológico, há que não esquecer o papel fundamental do Direito privado
na preservação das esferas das pessoas: prevenindo o arbítrio do contingente, evitando o
choque do imprevisível e assegurando o choque dos interesses mais imediatos de cada um,
o Direito privado constitui um travão historicamente eficaz perante a intromissão do Estado
ou de outras entidades, vide, nestes termos, CORDEIRO, António Menezes, Manual de Direito
do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 62 e 63.
116 A clássica e milenar sentença de ULPIANO enfatiza melhor esta diferença: “ius publicum

est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem” (Digesto
1.1 fr. 2). Porém, esta tese tem de ser reformulada, dando lugar à seguinte: direito público é o
conjunto de regras jurídicas que disciplina relações jurídicas em que preponderam
imediatamente interesses de ordem pública; direito privado é o bloco de regras jurídicas que
disciplina relações jurídicas em que predominam imediatamente interesses de ordem
particular. Cfr. JUNIOR CRETELLA, José, Direito Administrativo Brasileiro, Rio de Janeiro, Editora
Forense, 2.a Edição, 2002, pp. 5 e 6. Na verdade, ULPIANO, na sua diferenciação, faz apelo
ao critério de interesse em jogo numa determinada relação jurídica, critério que não é
rigoroso, nem certo
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- Direito privado especial, que se compõe de direito comercial, direito
do trabalho117, direito bancário, direito industrial, etc.
As relações jurídicas do direito público caracterizam-se, no geral, por
regular a actividade das entidades públicas, quando actuam investidos das
suas prerrogativas de autoridade e dentro da sua competência legalmente
definida. O Direito Público compõe-se de:
- Direito Constitucional;
- Direito Administrativo;
- Direitos Processuais Administrativo, Civil, Penal, Laboral, etc.;
- Direito Fiscal, Financeiro e Tributário;
- Direito Penal, etc.
Apesar desta forma simples que utilizamos para a distinção entre os dois
ramos de direito, o problema da separação de águas é deveras melindroso,
pois, saber quando é que uma relação jurídica é de natureza privada ou
pública foi sempre problemático, tendo-se erguido vários critérios para dar
resposta ao problema.

15. Critérios de distinção entre o direito público e o direito privado


A doutrina tem avançado três critérios para distinguir os dois ramos de
direito, mormente dos sujeitos, de interesses e de poderes de autoridade.

1.ª - A teoria dos sujeitos. É a mais antiga e assenta no que a diferença


entre o Direito Público e o Direito Privado reside na qualidade do sujeito que
intervém numa determinada relação jurídica. Assim, serão relações de Direito
Público aquelas em que um dos sujeito é público; e serão de Direito Privado

117 Como quer Menezes CORDEIRO, “A divisão entre o Direito público e o Direito privado já foi
criticada, designadamente a propósito do Direito do trabalho”. A actuação jus laboral
rebentara com a summa divisio que se pretende entre o Direito público e o Direito privado,
na medida em que este ramo de direito é miscigenado: as relações individuais de trabalho,
cujo protótipo é o contrato de trabalho e as relações colectivas de trabalho pertencem ao
direito privado ao passo que o processo de trabalho e o direito das condições de trabalho
reflectem a intervenção do Estado. Como se vê o âmbito do Direito do Trabalho é, desde
logo, conduzido a uma hibridez quanto à sua natureza jurídica, Manual de ..., ob. cit., pp. 63
e ss
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aquelas em que os sujeitos actuantes são entes privados ou particulares. Ora,
vezes sem conta o Estado ou outro ente público intercede ou actua sem o
seu poder de império, e em termos igualitários a dos particulares, mas não
deixa de ser uma entidade pública. É o caso de um Ministério que se vincula
através de regras do direito civil, adquirindo uma viatura numa empresa
privada, sem que a compra proceda de concurso público aberto para o
efeito, porque neste caso, o direito aplicável é o público.

2.ª- A teoria dos interesses protegidos. Segundo esta teoria, o Direito


Privado diria respeito ao conjunto de regras que disciplina os interesses
individuais e o Direito Público as que respeitam as utilidades públicas ou que
tangem a todos (o interesse da colectividade). Desde logo, esta teoria é
enfraquecida pela imprecisão na distinção entre o interesse público e o
interesse privado: por exemplo, o Direito da Família é um ramo de Direito
Privado, mas tutela interesses público-privados (de mistura); veja-se o caso do
artigo 119 da Constituição que define a família como “(…) elemento
fundamental e a base de toda a sociedade”, este artigo eleva a família a um
estatuto supra-individual, passando a desempenhar um interesse público de
toda a sociedade.
Não só, este critério, por parte dos civilistas, acabaria por reduzir o ramo
a um radicalismo do individualismo, o que não é do todo verdade. Do lado
do Direito Público, pode falar-se, por exemplo, de um contrato de concessão
de obras públicas, em que se jogam interesses públicos; e do lado dos
concessionários-privados, a busca de resultados para o retorno do
investimento realizado na construção. Portanto, há normas que protegem
simultaneamente interesses públicos e privados.

3.ª - A teoria de poderes de autoridade, fundada por HANS WOLF como


teoria de subordinação, supra-ordenação ou da hierarquia. A distinção entre
o direito público e o direito privado não pode assentar nos sujeitos que
intervêm numa relação jurídica, nem com base nos interesses protegidos
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pelas normas. Por isso, o critério decisivo para contrapor o direito público do
direito privado é o da subordinação. Assim, serão relações de direito público
aquelas em que os entes públicos actuam numa posição de superioridade
em relação aos demais sujeitos da relação jurídica. O que confere a
superioridade às entidades públicas numa relação jurídica é o facto delas
actuarem investidos de suas prerrogativas de autoridade, o que torna a
relação jurídica desnivelada.
Neste sentido, as relações jurídicas de direito público caracterizam-se
pelos poderes de decisão unilateral a cargo da Administração Pública,
nomeadamente, as actuações através do acto administrativo, actos
legislativos (decretos-lei) regulamento administrativo, o privilégio de
execução prévia, a requisição administrativa de funcionário, de bens dos
particulares e o direito de regresso nos casos de danos causados por actos
ilegais dos agentes administrativos, no exercício das suas funções; dentro das
relações contratuais públicas, o poder de modificação unilateral das
prestações, o poder de aplicar sanções, etc.
Depois desta incursão, duas notas conclusivas.
Primeira118, as teorias aqui reveladas são tendencialmente verdadeiras.
Houve quem modificasse a teoria dos sujeitos, para dar lugar à teoria dos
poderes especiais, sem, contudo, resolver o problema. Segundo esta teoria,
são relações de direito público, aquelas em que os entes públicos actuam
investidos de poderes de autoridade, sendo que o direito público seria «o
direito especial dos entes públicos em geral», quando munidos de
prerrogativas de autoridade; seria relações de direito privado aquelas em que
os sujeitos agem em pé de igualdade, resultando disto que o direito privado
é o «direito de qualquer pessoa», incluindo os entes públicos, quando actuam
sem poderes de autoridade.
Na Alemanha, uma das críticas que tem sido colocada é o facto de
não ser pacífico que o direito aplicável ao Estado e demais entes públicos no

118Ver neste sentido, SOUSA, António Francisco de, Direito Administrativo, Prefácio, Lisboa,
2009, p. 126.
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exercício de poderes de autoridade seja direito público. Por exemplo,
enquanto para WOLF o direito que o Estado tem sobre a propriedade, nos
termos do Código Civil, é direito público, porque apenas legitima ou autoriza
o Estado; já para BACHOF e BETTERMAN trata-se de direito privado, porque
não toma o Estado como ente munido de poderes de autoridade, mas
apenas como proprietário ou parte num negócio jurídico-civil119.
Segundo, de todas as teorias, a mais adequada para diferenciar o
direito público do privado é a de subordinação, hierarquia ou de poderes de
autoridade. Mas para o Direito Administrativo, independentemente do critério
a adoptar, é um ramo de Direito Público Interno. Desta forma, integram o
Direito Administrativo as normas marcadas, geralmente:
- pelos caracteres de obrigatoriedade e indisponibilidade dos interesses
em jogo;
- os fins e os interesses tutelados, bem como as formas de actuação da
Administração Pública são determinados pela lei.

16. Alcance prático da distinção entre o Direito Público e o Direito


Privado no Direito Administrativo
A distinção entre o direito público e o direito privado é importante no
Direito Administrativo por duas razões de fundo120:

1.ª No plano prático, permite:


- a determinação do âmbito da Lei da formação da vontade da
Administração Pública e sua execução, bem como estabelece as normas de
defesa dos direitos e interesses dos particulares. Veja-se no caso a Lei n.º
14/2011, de 10 de Agosto, no seu artigo 3, que é a actividade administrativa
de gestão pública, independentemente do sujeito que a exerce. Disto resulta
que a Lei do Procedimento Administrativo não é aplicável para as relações

119 MAURER, Hart, Derecho …, ob. cit., pp.53-54 e SOUSA, António Francisco de, Direito
Administrativo, ob. cit., p. 126.
120 SOUSA, António Francisco de, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 123 e 127.
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jurídico-privadas, nem que esteja presente a Administração Pública como um
dos sujeitos.
- a determinação da jurisdição competente para dirimir os litígios entre
a Administração e os particulares, sendo competente a Jurisdição
Administrativa sempre que se tratar de relações jurídico-administrativas, como
critério de base;
- a determinação da responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais entes públicos: é sempre competente a Jurisdição Administrativa
sempre que o dever de indemnizar nasça da actividade administrativa de
gestão pública; sendo competente a Jurisdição Ordinária, sempre que a
Administração tenha actuado no quadro do direito privado;
- a determinação do âmbito do privilégio de execução prévia, que é
somente aplicável quando se tratar de executar decisões resultantes de
utilização das prerrogativas de autoridade;
- é ainda critério de diferenciação entre as pessoas colectivas públicas
das pessoas colectivas privadas

2.ª Na resolução de casos práticos121-122:


- No dia-a-dia, os tribunais não decidem geralmente segundo esta ou
aquela teoria, mas procuram enquadrar os casos controversos sob diferentes
pontos de vista, o que torna desnecessário ao juiz fazer referências às teorias
perante o caso concreto.
- Uma vez encontrada a norma jurídica a um caso concreto pelo juiz,
bastará que este refira que a norma se integra no direito público ou privado,
o que permite o enquadramento do litígio num dos ramos de direito.
- Quando subsistam dúvidas sobre a natureza jurídica pública ou
privada da regra de direito aplicável ao caso concreto, excepcionalmente,
o juiz deverá recorrer às teorias de delimitação do direito público do direito

121 MAURER, Hart, Derecho …, ob. cit., pp.53-54.


122 SOUSA, António Francisco de, Direito Administrativo, ob. cit., p. 127.
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privado, embora, em muitos casos, não permitam chegar a uma conclusão
definitiva.
- Os casos mais complexos são aqueles em que o juiz não encontra
norma aplicável ao caso concreto; ou existem duas ou mais normas jurídicas
que se excluem mutuamente, sendo umas de direito público e outras do
direito privado. Nestes casos, o juiz deve começar por fazer o enquadramento
destas normas entre os dois ramos de direito, o que se faz com o recurso às
teorias delimitadoras dos dois ramos de direito e, em momento seguinte,
deverá atender às circunstâncias do caso concreto, ao fim e ao objecto da
actuação administrativa.

17. Relações entre o Direito Administrativo e o Direito Privado no plano


da técnica jurídica
O Direito Administrativo tem relações com o Direito Privado nos planos
da técnica jurídica e dos princípios jurídicos. Todavia, não estabelece
nenhuma relação quanto ao objecto, idade e soluções materiais dos
problemas. Ora vejamos:

1.º - Quanto à técnica jurídica (conceitos, instrumentos técnicos e


nomenclatura dos institutos), existem relações na medida em que, sendo o
Direito Administrativo jovem, no seu surgimento foi buscar ao Direito privado,
na qualidade de direito “velho”, algumas noções como a de contrato
“administrativo”; igualmente, o Direito privado, embora mais antigo, buscou
do Direito Administrativo inspiração para formatar a noção de acto jurídico
unilateral (por exemplo, o testamento e a doação), desenvolvido naquele
ramo de direito através da teoria do acto administrativo. Não só, “A influência
do Direito Privado sobre o Direito público chega a tal ponto que, em alguns
países, aquele absorveu durante muito tempo o próprio Direito Administrativo,
impedindo sua formação e desenvolvimento, (...) no Direito anglo-norte-
americano”123.

123 MERELLES, Hely Lopes, Direito ..., ob. cit., p. 33.


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2.º - No plano de princípios, o Direito Administrativo foi considerado


como direito excepcional ou exorbitante do Direito Civil, daí que muitos
princípios como os da boa fé e da protecção de confiança do Direito privado
são acolhidos pelo Direito Administrativo.

Porém, conhecem-se diferenças básicas entre o Direito Administrativo


e o Direito privado, no que diz respeito:
- ao objecto, porque o Direito privado ocupa-se das relações
estabelecidas entre particulares e o Direito Administrativo da função
administrativa e das relações entre a Administração Pública e os particulares
e outros sujeitos de direito, enquanto aquela detentora de poderes de
autoridade;
- a idade e origem, o Direito privado é mais antigo e nasce em Roma e
o Direito Administrativo é recente e nasce na França, com a Revolução
francesa;
- às soluções materiais que consagram para os problemas concretos de
que se ocupam: o Direito privado gira em torno da igualdade e liberdade e
o Direito Administrativo, em torno da autoridade e competência.

18. Critérios de aplicação subsidiária do Direito Privado no Direito


Público
A juventude do Direito Administrativo, pois nascido no século XVIII, em
relação ao Direito Privado, milenar, justifica, muitas das vezes, o empréstimo
que o Direito Administrativo faz ao Direito Privado, devido ainda às suas
imperfeições e lacunas. Mas o empréstimo só existe nos casos de similitude
das relações jurídicas reguladas, o que ocorre normalmente nas relações de
emprego público, nas relações contratuais públicas, na responsabilidade civil
da Administração Pública; ocorre ainda relativamente aos princípios da boa
fé, protecção de confiança e contagem de prazos.
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O ponto de partida é o de saber qual é a relação entre o Direito
Administrativo, como direito público, e o Direito Privado? Ou melhor, quais são
as condições de chamamento do Direito Privado para o Direito
Administrativo, funcionando como regra subsidiária?
É a existência de uma omissão, no sentido de lacuna de lei no Direito
Administrativo que origina o chamamento do Direito Privado, desde que não
haja uma norma que proíba ou que os respectivos princípios não sejam
incompatíveis. Este chamamento só é possível perante a resolução de um
caso concreto.
Por exemplo, nas relações de emprego público (Direito da Função
Pública, direito público), não se pode aplicar, quanto à greve, o regime
constante dos artigos 194 a 215 da Lei do Trabalho124. Aliás, o próprio artigo
196 da Lei do Trabalho restringe a aplicação no sector público deste regime,
por incompatibilidade.
O exemplo relativo à aplicabilidade do regime da Lei do Trabalho na
Função Pública encontra-se no Acórdão n.º 29/1.ª/98, da Primeira Secção do
Tribunal Administrativo125. Com efeito, quando colocado a resolver a
problemática da falta de um contrato de provimento escrito entre a
Faculdade de Ciências e António José Carlos Paulo Mabumo, em que o
segundo deveria leccionar a disciplina de Química, o Tribunal Administrativo
expendeu que “(...) não se pode falar da ausência de um contrato e, ainda
que este faltasse, tal facto não poderia ser imputado ao recorrente. Não
pode, pois, a recorrida vir ao processo alegar que não existe contrato,

124 Lei n.º 23/2007, publicada no Boletim da República, I Série, n.º 31, de 1 de Agosto, Lei do
Trabalho.
125 O Doutor Paulo COMOANE, sobre o posicionamento do Tribunal Administrativo tem

posição diversa. Adianta o Mestre que “Embora acertada e merecedora de aplausos, a


decisão do TA não está isenta de reparos. Ela peca por ter como pressuposto a alegada
ausência de uma norma que, dentro do EGFE, resolve a questão das relações contratuais de
facto. Não havia necessidade do Tribunal recorrer, nos termos em que o fez, para o artigo 5
da LT, na medida em que o n.º 2 do artigo 7 do EGFE resolve expressamente o problema de
falta de relação formal entre a Administração e os funcionários. Não merece, porém, censura
o recurso, por analogia, ao artigo 7 da LT, por força do qual os direitos adquiridos pelo
trabalhador não ficam prejudicados pelo facto de não haver contrato escrito cuja
responsabilidade de sua falta é imputada ao empregador – neste caso a Administração”, in
Aplicação da Lei do Trabalho …, ob. cit., p. 128.
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procurando justificar, aqui e agora, o não cumprimento da lei. O contrato
existiu, só que ele não foi formal, no sentido de que não foi reduzido a escrito;
terá sido consensual e, esta falta, só pode ser imputada à recorrida. É certo
que, a nível do Direito Administrativo, não encontramos um preceito similar
que nos possa conduzir a essa conclusão, mas, com referência ao número 1
do artigo 10 do Código Civil, facilmente poderemos chamar para o caso em
apreço o que se encontra disposto na Lei n.º 8/85, de 14 de Dezembro, vulgo
Lei do Trabalho. Com efeito, se o n.º 1 do artigo 5 desta Lei define o que é
contrato de trabalho, o n.º 5 do mesmo artigo e Lei prescreve que: “A relação
jurídico-laboral presume-se existente pelo simples facto de o trabalhador estar
a executar uma determinada actividade remunerada com conhecimento e
sem oposição da entidade empregadora”. Mas o número 3 do artigo 7 desta
Lei foi mais longe, pois que consagrou o princípio de que a falta de forma
escrita presume-se imputável à entidade empregadora, a qual fica
automaticamente sujeita a todas as consequências legais e não afecta a
validade do contrato (...). Deste modo, parece não ser repugnável aceitar o
princípio de que aquela norma do direito privado possa ser aplicada numa
relação jurídica do direito público na medida em que procedem os
pressupostos de analogia aceites pelo legislador”.
Neste caso, o Tribunal Administrativo aplicou a teoria do caso análogo
ou semelhante, constante dos princípios gerais do Direito que constam da
parte geral do Código Civil (artigo 1.º ao artigo 396.º), no caso, o artigo 10.º,
n.º 1 do Código Civil.
Pode alinhar-se as seguintes condições de chamamento do Direito
Privado nas relações jurídicas públicas126:
- Que as normas de direito público sejam omissas em relação a
determinada matéria que se encontra regulada no direito comum ou
privado;
- Que não exista caso análogo ou semelhante capaz de colmatar a
lacuna;

126 Ver neste sentido o artigo 10.º, n.º 3 do Código Civil.


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- Desde que o regime do direito privado não seja incompatível com as
necessidades do serviço público;
- Desde que seja evidente ou previsível que a regra do direito
administrativo não seria diferente da do direito privado em termos de
conteúdo, na medida em que tais casos o legislador ou o próprio juiz
administrativo estima que as exigências da vida administrativa são, em tal
matéria, análogas às de direito privado127.
O recurso ao Direito Privado fundamenta-se de modos distintos:
- O Legislador pode determinar expressamente a aplicação das normas
de direito privado na actividade administrativa, por exemplo, na constituição
de certas relações jurídicas de emprego público, através do contrato
submetido ao direito do trabalho;
- A Administração pode, recorrendo aos seus poderes discricionários,
escolher a vinculação pelo Direito Privado, desde que permitido pela lei;
- “Por um lado, certos princípios gerais de direito previstos e regulados
no Código Civil são de aplicação directa, em geral, a todos os domínios do
direito – por isso são chamados princípios gerais de direito. Estes princípios
aplicam-se directamente ao âmbito jurídico-público (…).
- Por outro lado, certas normas de direito privado aplicam-se
analogicamente ao direito administrativo. Para que esta aplicação seja
possível, devem verificar-se três requisitos: a) que não exista uma norma
correspondente no direito administrativo; b) que a lacuna não possa ser
colmatada pelo direito administrativo; c) que se verifiquem os pressupostos da
analogia (semelhança das circunstâncias de facto e de direito)”128.

19. Actuação da Administração Pública segundo o Direito Privado: O


Direito Privado da Administração ou o Direito Administrativo Privado?

COMOANE, Paulo Daniel, A Aplicação da Lei do Trabalho …, ob. cit., p. 145.


127

MAURER, Hart, Derecho …, ob. cit., pp.60-62 e SOUSA, António Francisco de, Direito
128

Administrativo, ob. cit., p. 127.


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Historicamente, a existência de um tal «Direito Privado da
Administração ou Direito Administrativo Privado» deve-se a dois autores
alemães, nomeadamente H. J. WOLFF e WOLFGANG SIEBERT129.
Para WOLF, haveria Direito Privado da Administração, quando uma
entidade da Administração Pública actua sob formas jurídico-privadas, para
prosseguir de forma imediata fins administrativos públicos. É uma construção
que parte do Direito Público.
Para SIEBERT, cuja teoria parte do Direito Privado, entende que as
fronteiras tradicionais entre o direito público e privado começaram a esbater-
se: “Por um lado, … verificou, no caso das relações de prestação em massa,
o Direito Privado aplicado se afasta das regras clássicas do Direito Civil. Por
outro lado, chamou atenção para o facto de o Direito Público ter começado
a criar formas jurídicas próprias para determinados fenómenos sociais e
colectivos (…). SIEBERT concluiu ser inevitável a aproximação das
regulamentações jurídico-privadas e jurídico-públicas no âmbito da
actividade administrativa típica do Estado Social …”130.
Como se pode notar, para a teorização do Direito Privado da
Administração, WOLF parte da ideia de que a Administração Pública utiliza,
em certos domínios, regras de Direito Privado para prosseguir o interesse
público; e SIEBERT arranca sua teoria da ideia de distorções que o interesse
público imprimia nas relações jurídico-privadas em que a Administração
participava.
O Direito Privado da Administração ou Direito Administrativo Privado
nasce no contexto da «Teoria do fisco» (Ver supra n.º 1.1.), na Alemanha, onde
dominava a dupla personalidade jurídica do Estado: um Estado soberano
(nas mãos do monarca, que correspondia à regra the king can do no wrong)
e outro não soberano, designado por «Fisco», com capacidade jurídica do
Direito Privado, estabelecendo relações jurídicas de carácter patrimonial com

129 ESTORNINHO, Maria João, A fuga para o direito privado, ob. cit., p. 121.
130 ESTORNINHO, Maria João, A fuga para o Direito Privado, ob. cit., pp. 122-123.
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os súbditos, comportando-se, portanto, o «Fisco» como um mero particular,
que podia ser demandado pelos particulares.
Então, o «Fisco» passou, por um lado, a representar o Estado não
soberano como titular de um património que podia ser demandado pelos
particulares; e por outro, a teorização do Direito Privado da Administração
impôs ao «Fisco» a subordinação a diversas sujeições jurídico-públicas mais
intensas131.
Exposta a breve nota histórica, resta agora olhar para a terminologia
«Direito Privado da Administração» e «Direito Administrativo Privado». Qual é a
mais correcta?
No Direito Comparado, optam pela terminologia «Direito Administrativo
Privado», os autores Rogério Ehrhardt Soares132, José Carlos Vieira de
Andrade133 e Luiz Cabral de Moncada134. Pela terminologia «Direito Privado
da Administração» militam Diogo Freitas do Amaral135, Vital Moreira136, Maria
João Estorninho137, entre outros.
O «Direito Privado da Administração» acentua a perspectiva de Direito
Privado, aparecendo o Direito Administrativo num plano secundário, como
direito de aplicação excepcional. Como direito regulador de uma
determinada entidade que exerce funções administrativas é conformado ou
afastado em determinadas circunstância, em virtude de aplicação de
preceitos e vinculações do Direito Administrativo138.
O «Direito Administrativo Privado» traduz a ideia do Direito Administrativo
aplicável a entidades que, exercendo funções administrativas, conduzem a

131 CORREIA, José Manuel Sérvulo, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos
Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987, p. 390.
132 SOARES, Rogério Ehrhardt, “Princípio da Legalidade e Administração Constitutiva”, In
BFDC, Vol. LVII, Coimbra, 1981, p. 177.
133 ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições de Direito Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, 2011,

pp. 67 e ss.
134 MONCADA, Luís Cabral de, A relação jurídica administrativa: para um novo paradigma de

compreensão da actividade, da organização e do contencioso administrativo, Coimbra


Editora, Coimbra, 2009, p. 94.
135 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, ob. cit., Vol. I, p. 154.
136 MOREIRA, Vital, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra editora,

Coimbra, 1997, p. 283.


137 ESTORNINHO, Maria João, A fuga para o Direito Privado, ob. cit., pp. 121-132.
138 ESTORNINHO, Maria João, A fuga para o Direito Privado, ob. cit., pp. 121-132.
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sua actividade pelo Direito Privado. Neste sentido, diferentemente do «Direito
Privado da Administração», o «Direito Administrativo Privado» coloca em
evidência o Direito Administrativo, que aparece como direito conformador de
um outro direito, o Direito Privado.
Em Moçambique, o problema de fuga para o Direito Privado surge
associado à crescente privatização da Administração Pública, que se dá
através da liberdade desta de escolher as formas de organização e sua
vinculação ao direito.
Através da liberdade de escolha das formas de organização, a
Administração Pública pode organizar-se através de outras pessoas
colectivas distintas do Estado-Administração139 e por este criadas, no âmbito
da descentralização por serviços e associativa. Neste sentido, a
Administração (entenda-se o Governo, como órgão central da
Administração) pode criar outras pessoas colectivas menores, submetendo a
sua organização ou ao Direito Administrativo ou ao Direito Privado,
nomeadamente, Direito das Sociedades Comerciais. Por exemplo, nos termos
do artigo 105 da Lei n.º 7/2012, de 8 de Fevereiro, “As empresas que integram
o sector empresarial do Estado regem-se pelo direito privado (…)”; o Estado
pode criar empresas públicas, sob forma de sociedades comerciais de
capitais exclusivamente públicos, mas organizadas sob formas privadas
(Direito Comercial).
A segunda modalidade da liberdade de escolha é quanto à
vinculação ao Direito. Com efeito, a Administração pode privatizar o direito
aplicável a si ou a outro ente público menor que criar, consubstanciando uma
verdadeira fuga para o Direito Privado, sendo o caso mais paradigmático o
do sector empresarial do Estado (Artigo 105 da Lei n.º 7/2012).
A Administração Pública pode exercer a sua autonomia de escolha das
formas de organização e de ministração do direito aplicável nas seguintes
áreas140:

139 Cfr n.º 2 do artigo 249 da CRM.


140 Ver artigo 104 da Lei n.º 7/2012, de 8 de Fevereiro.
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- económicas nos ramos da indústria, energia, hidrocarbonetos, turismo,
transporte e comércio;
- para a obtenção de níveis adequados de satisfação das
necessidades colectivas, bem como a promoção de desenvolvimento
segundo parâmetros exigentes de qualidade, economia, eficiência e
eficácia, contribuindo igualmente para o equilíbrio económico e financeiro
do conjunto do sector público.
Pode apontar-se outras áreas de aplicação do direito privado
administrativo, nomeadamente o arrendamento de prédios urbanos
pertencentes ao Estado e geridos pelo APIE (Administração do Parque
Imobiliário do Estado); ou outros contratos de arrendamento de bens públicos,
quando seja privatizado o direito aplicável.
Mas não estão sujeitas à liberdade de escolha das formas de
organização ou do direito aplicável, as seguintes áreas141:
- relativas ao exercício da soberania, a normação das matérias do
âmbito da lei e a definição de políticas nacionais;
- a representação do Estado, a definição e organização do território, a
defesa nacional, a ordem pública, a fiscalização das fronteiras, a emissão da
moeda e as relações diplomáticas.
A eleição das formas de organização ou de direito aplicável pela
Administração Pública pode resultar de duas vias:
- directamente feita pelo legislador, no caso do sector empresarial do
Estado (ver artigo 105 da Lei n.º 7/2012, de 8 de Fevereiro);
- através do poder discricionário da Administração Pública,
fundamentado numa lei que preveja esta faculdade.
Por fim, a terminologia mais adequada para o caso moçambicano é a
de «Direito Administrativo Privado», visto que coloca em foco o Direito
Administrativo, representando a aplicação do Direito Privado, as chamadas
fugas ao Direito Administrativo.

141 Artigo 139 da CRM.


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20. Função do Direito Administrativo
Relativamente à função do Direito Administrativo, historicamente,
existem duas teorias142: green light theories e red light theories.
Segundo a teoria dos “green light”, a função do Direito Administrativo
é a de conferir à Administração Pública poderes de autoridade, de modo a
que ela possa sobrepor o interesse público aos interesses privados.
Actualmente, podemos falar da atribuição do poder de decisão unilateral, o
privilégio de execução prévia ou forçada dos actos administrativos à
Administração Pública; naquilo que a Lei n.º 14/2011, no seu artigo 19,
considera de garantias da Administração Pública. Portanto, trata-se de uma
«concepção objectivista», segundo a qual o Direito Administrativo surge
exactamente para criar um estatuto privilegiado a favor da Administração
Pública, quando esteja em causa o exercício da actividade administrativa de
gestão pública.
A teoria dos “red light” defende que a função do Direito Administrativo
é a de reconhecer, aos administrados, direitos subjectivos e interesses
legítimos e estabelecer garantias em favor destes frente ao Estado, de modo
a limitar juridicamente os abusos do poder executivo e proteger os cidadãos
contra os excessos da autoridade do Estado. Enunciam-se aqui as chamadas
«concepções subjectivistas», segundo as quais ao Direito Administrativo
incumbe a preservação das posições jurídicas dos administrados face às
actuações da Administração Pública (n.º 2 do art.º 252 da CRM).
Criticando estas duas posições, podemos afirmar que a função do
Direito Administrativo não é apenas autoritária, como pretendem os green
lights, nem é apenas “liberal” ou “garantística”, como querem os red lights.
Na verdade, o Direito Administrativo desempenha uma função dupla: a de
legitimar a intervenção da autoridade pública e proteger a esfera jurídica dos
particulares; a de permitir a realização do interesse colectivo e a de impedir
que, na prossecução desse interesse, a Administração Pública esmague
ilegitimamente os interesses privados.

142 FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso ..., ob. cit., Vol. I, pp. 155-157.
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Em conclusão, pode apontar-se as seguintes tarefas fundamentais do
Direito Administrativo, na actualidade:
- a garantia dos administrados. O Direito Administrativo garante a
protecção jurídica efectiva dos administrados perante as actuações da
Administração, desde que sejam ilegais e prejudiciais dos seus direitos – artigo
252, n.º 3 da Constituição;
- a consagração do procedimento administrativo, como modo de
realização do Direito Administrativo143, pois, através do procedimento
protegem-se os direitos fundamentais dos cidadãos. O procedimento
administrativo consagra um conjunto de direitos e garantias aos cidadãos,
nomeadamente, de serem comunicados pela Administração Pública o início
de abertura de um procedimento que possa pôr em causa os respectivos
direitos subjectivos e interesses legítimos, bem como o direito de serem
ouvidos, informados pelo responsável da direcção do procedimento toda e
qualquer situação que lhes disser respeito e de intervirem nele quando possa
implicar a restrição, modificação ou extinção dos direitos e interesses
legítimos144;
- a criação de um sistema de vinculação da Administração Pública,
regulando os modos de formação da vontade desta e sua execução;
- a criação de mecanismos jurídicos para a Administração Pública
sobrepor o interesse público ao interesse particular, atribuindo-lhe
prerrogativas de autoridade de que os particulares não dispõem nas suas
relações, nomeadamente o privilégio de execução prévia, o poder de
decisão unilateral (acto administrativo e regulamento administrativo), o poder
de execução coerciva das decisões administrativas, o poder de requisição
administrativa de funcionário ou bens dos particulares, o direito de regresso
em caso de indemnização a terceiros por danos causados por actos ilegais
dos agentes públicos, etc.145.

143 Cfr. WAHL, Rainer, apud CUNHA, Paulo Ferreira da, O Procedimento Administrativo, Livraria
Almedina, Coimbra, 1987, p. 130.
144 MACIE, Albano, Lições de Direito Administrativo Moçambicano, Vol. II, Escolar Editora,

Maputo, 2018, p. 29.


145 Artigo 19 da Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto.
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21. Natureza do Direito Administrativo


São três as teses que têm sido apresentadas quanto à natureza do
Direito Administrativo, nomeadamente, a tese que considera o Direito
Administrativo como direito excepcional ao Direito privado; a tese que
considera o Direito Administrativo como Direito comum da Administração
Pública e a tese que considera o Direito Administrativo como Direito comum
da função administrativa.
Desenvolvamos as teses.

21.1. Direito Administrativo como direito excepcional do Direito Privado


Esta tese está ligada à própria história do nascimento deste ramo de
direito, segundo a qual o Direito Administrativo “é um direito excepcional; isto
é, um conjunto de excepções ao direito privado. O Direito privado –
nomeadamente o Direito Civil – era a regra geral, que se aplicaria sempre
que não houvesse uma norma excepcional de Direito Administrativo
aplicável. Daqui resulta uma consequência da maior importância: havendo
um caso omisso na legislação administrativa, a integração da respectiva
lacuna devia fazer-se mediante recurso às regras ou aos princípios gerais do
Direito privado”146.
Esta é uma concepção histórica, e, como tal, ultrapassada, pois ligada
à problemática de autonomia do Direito Administrativo que, actualmente,
não se coloca na medida em que o Direito Administrativo é um sistema de
normas e princípios jurídicos, desde logo, coerente, estruturado e com lógica
interna própria. Com efeito, resulta que em caso de lacuna em determinada
lei administrativa deve recorrer-se: i) à analogia dentro do Direito
Administrativo; ii) aos seus princípios gerais e nunca aos princípios gerais do
Direito Civil.

AMARAL, Diogo Freitas do, ”Direito Administrativo”, in Dicionário Jurídico da Administração


146

Pública, IV, col. 17 e ss.


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Não se encontrando solução nos princípios gerais do Direito
Administrativo, deve recorrer-se aos princípios gerais do Direito público e não
do Direito privado; por fim, aos princípios gerais do Direito que se encontram
na primeira parte do Código Civil.
Chama-se atenção aqui ao facto de as normas constantes da primeira
parte do Código Civil não serem privativas do Direito Civil, mas gerais do
Direito, encontrando-se aí depositadas por homenagem histórica.
São estes princípios gerais de direito que permitirão o preenchimento
de lacunas através da analogia (n.º 1 do artigo 10.º do CC). Na falta de caso
análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete
criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema (n.º 3).

21.2. Direito Administrativo como direito comum ou estatutário da


Administração Pública
Esta tese parte do pressuposto de que existem duas espécies de direitos:
os gerais e os estatutários.
Os gerais regulam a actividade administrativa, independentemente
dos sujeitos que intervêm na relação e os estatutários aplicam-se a uma
categoria de sujeitos.
Assim, o Direito Administrativo é um direito estatutário ou comum da
Administração Pública porque regula uma certa categoria de sujeitos de
direito, nomeadamente, as Administrações Públicas, enquanto sujeitos de
direito. Logo à partida, as relações entre particulares não seriam regidas pelas
normas relacionais administrativas, como vimos ao caracterizar estas normas.
Garcia de ENTERRÍA, o representante desta tese na Espanha, chega às
seguintes conclusões: i) que o Direito Administrativo é um direito público; ii) o
Direito Administrativo é direito comum ou estatutário das Administrações
Públicas e iii) a presença da Administração Pública é um requisito necessário
para que exista uma relação jurídico-administrativa147.

147ENTERRIA, Garcia de & FERNANDEZ, T.R., Curso de Derecho Administrativo, apud AMARAL,
Diogo Freitas do, “Direito Administrativo”, … ob. cit. , col. 17 e ss.
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O Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL move, contra esta tese, severas
críticas, nomeadamente que “não é por ser estatutário que o Direito
Administrativo é direito público. Há normas de direito privado que são
específicas da Administração Pública (regras especiais sobre arrendamentos
do Estado (...). O Direito Administrativo não é, por conseguinte, o único ramo
de direito aplicável à Administração Pública. Esta também actua sob égide
do direito privado administrativo, que é um direito específico dos sujeitos de
direito público, mas não é Direito Administrativo”148.

21.3. Direito Administrativo como direito comum da função


administrativa
O Direito Administrativo é direito comum da função administrativa
porque o seu âmbito de aplicação se define objectivamente em função da
actividade administrativa de gestão pública e a presença da Administração
Pública não é um requisito para que exista relação jurídico-administrativa. Esta
é a posição defendida por DIOGO FREITAS DO AMARAL (Sobre a crítica a esta
posição ver supra n.º 11.3).
No mesmo diapasão, o Professor MARCELO REBELO DE SOUSA considera
o Direito Administrativo como direito da função administrativa, pois149:
- não regula apenas a actuação da administração pública em sentido
orgânico;
- regula também a actuação de todos os sujeitos jurídicos, ainda que
não integrantes da administração pública, desde que exerçam a função
administrativa;
- regula ainda a actuação de todo e qualquer sujeito jurídico, quando
e na medida em que se interseccione com o exercício da função
administrativa;
- aplica-se na ausência de uma permissão de aplicação de qualquer
outro complexonormativo. Portanto, o Direito Administrativo não é direito

148 AMARAL, Diogo Freitas do, “Direito Administrativo”, …, ob. cit., col. 17 e ss..
149 SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral,
Introdução e princípios fundamentais, Tomo I, 3.ª edição, Dom Quixote, Lisboa, 2008, p. 55.
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exclusivo da função administrativa: esta pode ainda regular-se por normas de
direito privado.

21.4. Posição adoptada face ao problema


Como afirma Maria João ESTORNINHO, “é possível falar hoje numa crise
de crescimento do Direito Administrativo, a qual obriga, sem dúvida, a uma
redefinição das suas fronteiras conceptuais”150.
Neste sentido, René CHAPUS introduz a sua obra “Direito Administrativo
Geral”, com um título designado “Direito da Administração e Direito
Administrativo” e “considera que o “Direito da Administração” é um direito
misto, constituído em parte por regras de direito público e em parte por regras
do próprio direito privado. As primeiras constituem, por seu lado, o Direito
Administrativo”151.
O Direito Administrativo é sempre um direito de um determinado sistema
jurídico estadual. O sistema ou regime político constitucional prevalecente em
determinado país determina o carácter do Direito Administrativo, visto que
este é o Direito Constitucional concretizado.
Portanto, o Direito Administrativo é o direito comum da actividade
administrativa de gestão pública, independentemente da qualidade pública
ou privada do sujeito que a presta.

§4.º
Rasgos gerais do Direito Administrativo

24. Generalidades
O Direito Administrativo é, ao mesmo tempo, um meio de afirmação do
poder, conferindo prerrogativas de autoridade à Administração Pública e um

150 ESTORNINHO, Maria João, A Fuga para o Direito Privado, ob. cit., p. 348.
151 CHAPUS, René, Droit Administratif Général, apud ESTORNINHO, Maria João, A Fuga ..., ob.
cit., p. 350.
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meio de afirmação dos direitos subjectivos e interesses legítimos dos
administrados.
A afirmação dos direitos dos cidadãos ocorre quando a Administração
Pública é sujeita a um conjunto de restrições e limitações na sua actuação. É
assim que a Administração Pública, na sua actuação, deve procurar
harmonizar as exigências da acção administrativa com os direitos subjectivos
e interesses legítimos dos particulares152. Não é por acaso que a Lei n.º
7/2014153, no seu artigo 132, manda funcionar o princípio de equilíbrio entre o
interesse público e o direito dos administrados, quando esteja em jogo a
decretação da suspensão de eficácia de actos administrativos,
nomeadamente, que: “(…) a) a execução do acto seja susceptível de causar
prejuízo irreparável ou de difícil reparação para o requerente (…); b) a
suspensão não represente grave lesão do interesse público concretamente
prosseguido (…)”.
Feita esta caracterização geral, podemos dizer que os traços essenciais
do Direito Administrativo pátrio são os seguintes: regime jurídico, desequilíbrio,
juventude, autonomia, não codificado, com influência jurisprudencial e difícil
de estudo.

25. O Direito Administrativo estabelece um regime jurídico


O Direito Administrativo estabelece, através da lei, um verdadeiro
regime jurídico nas suas relações com outros sujeitos de direito, quer
conferindo direitos subjectivos e interesses legítimos aos particulares, quer
conferindo poderes de autoridades à Administração Pública numa relação
jurídico-administrativa concreta, bem como estabelece meios eficazes de
controlo da actividade administrativa (meios graciosos – as que se realizam
dentro da AP, através das reclamações, recursos hierárquicos e tutelares e
meios contenciosos – as que se realizam através da jurisdição administrativa).

152Cfr. FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso …, Vol. I, ob. cit., p. 161


153Publicada no Boletim da República, I Série, n.º 18, de 28 de Fevereiro, Lei que regula os
procedimentos do processo administrativo contencioso.
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É neste sentido que Prosper WEIL escreve que o Direito Administrativo
emergiu lentamente do nada e que se esboçou nos impulsos mais tarde
conhecidos como do regime administrativo, ou seja, “(…) a existência de uma
jurisdição administrativa especializada e a submissão da administração a
umas regras diferentes daquelas do direito privado”154.

26. O Direito Administrativo é um direito de desequilíbrio


O Direito Administrativo, como escreve o professor Gilles CISTAC, “é um
direito que organiza um regime de dificuldades entre as pessoas envolvidas
numa relação jurídica específica”155. Porém, o desequilíbrio em causa há-de
constituir um verdadeiro regime jurídico, porque os poderes funcionais e as
obrigações da Administração Pública são exercidas e executadas conforme
o Direito. É, pois, assim, porque “O Estado subordina-se à Constituição e funda-
se na legalidade”156, e não há nenhuma actividade administrativa à margem
do direito, a própria discricionariedade de que goza a Administração resulta
da sua previsão normativa.
O Direito Administrativo confere à Administração Pública um leque de
poderes jurídicos nas suas relações com os particulares de que estes não
gozam nas suas relações. São os casos de poder de tomar decisões unilaterais
que se impõem aos particulares independentemente da sua vontade.
Contudo, é bem verdade que a Administração Pública, no âmbito das
actuações bilaterais, conhece restrições no momento de formação dos
contratos administrativos administrativos. Mas este facto não põe em causa
os poderes de autoridade deste, pois ele dirige o processo de selecção e
qualifica os concorrentes; já na execução, estes poderes são expressivos, pois,
sem prejudicar o equilíbrio da equação financeira, a Administração pode
modificar unilateralmente o contrato, aplicar sanções e até sequestrar o
contrato.

154 WEIL, Prosper, O Direito Administrativo, ob. cit., pp.4 e ss.


155 CISTAC, Gilles, Curso de Direito..., ob. cit., p. 13.
156 Artigo 2, n.º 3 da CRM.
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27. O Direito Administrativo é jovem em relação ao Direito Civil
Diferentemente do que acontece com o direito privado comum, direito
civil, sazonado e bem sistematizado ao longo de milénios, o direito público,
em particular, o Direito Administrativo, não dispõe de uma concepção
fundamental devido ainda à sua juventude. A juventude do Direito
Administrativo só é possível, comparando-o, ao Direito Civil, que é milenar.
Assim, o Direito Administrativo conhece sua elaboração dogmática a partir
do Século XIX, sendo, por isso, que os seus conceitos privativos são ainda
recentes.
Como sintetiza ESTORNINHO, existe um “(...) arreigado “sentimento de
inferioridade” (SANTI PASTOR) dos administrativistas em face dos cultores do
Direito Civil. Na verdade, o Direito Administrativo nasceu, sem dúvidas, numa
situação de dependência em relação ao Direito Civil, aparecendo como um
conjunto de regras especiais para as relações jurídicas da Administração, em
termos de excepções às regras gerais contidas no Código Civil causando,
aliás, à época, grande escândalo entre os jus-privatistas”157.
Como dissemos, esta corrente de conceber a natureza jurídica do
Direito Administrativo – direito excepcional - é histórica, e, portanto, não tem
razão de ser nesta época.

28. O Direito Administrativo é um direito autónomo


Com ROCCO, existem três requisitos para que um ramo de direito possa
considerar-se autónomo, mormente: “i) extensão bastante para merecer
estudo adequado e particular; ii) doutrinas homogéneas, dominadas por
conceitos gerais comuns e distintos dos informadores de outras disciplinas e iii)
método próprio, ou seja, utilização de processos especiais para o
conhecimento da verdade que constitui o objecto da pesquisa”158. O que
importa para a autonomia de um ramo de conhecimento é objecto, institutos,

ESTORNINHO, Maria João, A fuga ..., ob. cit., p. 334.


157
158Alfredo, Principi di diritto commerciale, apud CRETELLA JUNIOR, José, Direito
Administrativo ..., ob. cit., p. 8.
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método e princípios próprios159, para além de uma elaboração legislativa
própria.
No seu surgimento, o Direito Administrativo era classificado como um
direito excepcional em relação ao Direito Privado, o que pressupunha que
em caso de lacunas na sua regulamentação, estas seriam preenchidas pelo
recurso às normas e princípios do Direito Privado. Pois, segundo esta tese, o
Direito Privado constituia a regra geral e o Direto Administrativo, regra
excepcional.
A autonomia do Direito Administrativo é marcada decisivamente no
ano de 1873, pelo Tribunal de Conflitos de Paris, no famoso caso Agnés
“BLANCO”, com o voto do Conselheiro DAVID. O caso deu-se, no dia 8 de
Fevereiro de 1873, da seguinte maneira: a menina Agnés BLANCO foi
atropelada por comboio público (trem), pertencente a uma companhia de
manufactura de fumo (tabaco), que tem grande semelhança com uma
indústria privada, mas de natureza pública. A família solicitou a
responsabilização do Estado pelos danos causados (amputação dos dois
membros inferiores).
Houve, em primeiro lugar, antes de se conhecer do fundo da causa,
necessidade de resolver uma questão prévia, o conflito de jurisdições: se o
fórum competente era administrativo ou comum?
O caso foi entregue ao Tribunal de Conflitos de Paris. Como refere
Odete MEDAUAR, citando BENOIT, à “luta havida em meados do Século XIX,
nos meios judiciários, contra o Direito Administrativo e, por trás dele, contra a
jurisdição administrativa”, tendo sido o Caso BLANCO uma tábua de
salvação160.
O voto do Conselheiro DAVID, neste caso, foi fulminante na
autonomização do Direito Administrativo. Ele utilizou método próprio para
julgar; deixou de lado o Código Civil e colocou o feito em termos de direito
público, derrogatório e exorbitante do direito comum161. Este foi o começo da

159 Nestes termos, CRETELLA JUNIOR, José, Direito Administrativo ..., ob. cit., p. 8.
160 MOREIRA, João Batista Gomes, Direito Administrativo …, ob. cit., p. 125.
161 Nestes termos, vide JÚNIOR CRETELLA, José, Direito ..., ob. cit., p. 9.
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elaboração do regime jurídico-administrativo, e consequente
autonomização do Direito Administrativo.
O Direito Administrativo apresenta um objeto próprio, método próprio,
institutos próprios e princípios informativos sectoriais, alicerce do regime
jurídico específico e peculiar, disciplinador dos institutos, bem como uma
elaboração legislativa própria.
Por isso, “a autonomia do direito administrativo impõe-se, porque
estamos diante de um ramo do direito público que tem objeto próprio — a
Administração — , método próprio, critérios publicísticos, trabalhados a partir
do momento categorial — institutos próprios, afectação, desafectação,
autarquias, concessões — , e princípios informativos próprios ou sectoriais, ou
seja, proposições que se encontram na base dos institutos administrativos,
legitimando-os, como, o princípio da hierarquia, o princípio da continuidade,
o princípio da indisponibilidade, o princípio da presunção da verdade, o
princípio da auto-executoriedade, o princípio do poder-dever, o princípio da
tutela administrativa, o princípio da auto-tutela administrativa, o princípio da
igualdade dos administrados, o princípio da especialidade”162.
Por estas razões, o Direito Administrativo é uma disciplina com
autonomia científica, legislativa e pedagógica, sendo que, em caso de
lacunas, estas preencher-se-ão:
1.º - com o recurso à analogia das normas e princípios gerais do Direito
Administrativo;
2.º - com recurso à analogia das outras normas e princípios de outros
ramos do Direito Administrativo e princípios gerais do Direito Público;
3.º - com recurso, por último, às normas e princípios gerais do Direito,
que se encontram depositados na primeira parte do Código Civil (artigo 1.º -
396.º).

162CRETELLA JUNIOR, José, «Fundamentos do Direito Administrativo», In Revista da Faculdade


de Direito da Universidade de São Paulo, pp. 299-317
(http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/download/66798/69408/). Consultado em
05/05/2020.
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29. O Direito Administrativo é um direito não codificado
Em Moçambique, uma das caracteristicas fundamentais da legislação
administrativa é a falta da codificação, como tem sido apanágio da tradição
civilista. Portanto, o Direito Administrativo não está codificado. A legislação
administrativa está dispersa em vários diplomas normativos.
A falta da codificação do Direito Administrativo fica a dever-se à
mutabilidade, dinâmica ou instabilidade das normas administrativas. O Direito
Administrativo é, por natureza, vasto, abrangendo as áreas gerais e especiais.
O seu conteúdo é dinâmico e de rápida mutação legislativa.
A codificação do Direito Administrativo levanta vários problemas: “… as
condições peculiaríssimas da sociedade actual, como que sujeita ao impulso
das revoluções donde saiu e agitada por aspirações irrequietas, quanto às
graves questões sociais. Aquela mutabilidade ou instabilidade mais se agrava
com a defeituosa redacção das leis modernas. Saem estas de assembleias
numerosas, não só como tais mais aptas para a proclamação dos grandes
princípios, do que para a organização de um sistema legislativo, mas em que
o elemento técnico é em geral escassamente representado, sendo assim
vencido por os que se supõem competentes; e ainda a obra legislativa sofre
de indiferença a que modernamente é votada, prevalecendo o interesse
pelas questões de índole política”163.
Diz-se que a amplitude e a especialização do Direito Administrativo
justificam o facto de não ser nem possível, nem desejável a sua codificação
geral. A codificação oferece, nalguns, poucos domínios, já estabilizados,
sobretudo, no Direito Administrativo Geral, a vantagem da clareza no
conteúdo e na forma, da certeza e da mais fácil influência doutrinária.
Apresenta, mesmo nesses domínios, o sinal da rigidez e do vício de excessos
doutrinais, e surge como muito questionável em áreas de profundas e rápidas
mutações tecnológicas económicas, sociais e culturais e, portanto, de
disciplina jurídica164.

PEDROSA, A. L. Guimarães, Ciência da Administração …, ob. cit., pp. 155-156.


163

Ver neste SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo
164

Geral, ob. cit., p. 61.


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A codificação pode ofecer vantagens como desvantagens. Resulta
disto que correntes opostas se colocam sobre a codificação do Direito
Administrativo.

A primeira, a negativista165. Os sequazes desta corrente rejeitam a


codificação do Direito Administrativo, alegando que um código implica a
ideia de uma ordem sistemática das leis que regem as matérias de um ramo
jurídico, tendo rigidez e duração. Os novos aspectos que a vida administrativa
constantemente apresenta em virtude das reiteradas alterações nas matérias
sociais, a complexidade e as múltiplas formas que apresentam os factos que
constituem o conteúdo do Direito Administrativo; a mudança nos critérios,
direcção e normas do Executivo dá ao Direito Administrativo um carácter
mutável, instável, dinâmico e flexível que torna inútil a sua codificação.

A segunda tese, a afirmativa166. Estes defende a utilidade e


necessidade da codificação do Direito Administrativo. Diz-se que o Direito
administrativo tem, como qualquer outro ramo de direito, bases fixas e
permanentes que um código administrativo deve conter, como elementos
fundamentais da Administração Pública, os quais são obra do poder
legislativo e não as disposições regulamentares, que não tenham carácter de
generalidade e de duração, as quais são da atribuição do poder executivo
e devem ficar fora da codificação administrativa. Argumenta-se ainda que a
multiplicidade, a mutabilidade e a instabilidade estão principalmente na
parte da regulamentação e a mobilidade prende-se esta com o aspecto
político, enquanto o elemento administrativo propriamente dito ou técnico é
estável, e nem a mobilidade é privativa do Direito Administrativo, pois todo o
direito tem uma parte móvel, que acompanha as transformações sociais; que
mesmo a suposta imobilidade do Direito Civil é apenas aparente, sendo

165 São defensores destas teses MALLEIN; DE GIOANNIS e MANTELLINI apud PEDROSA, A. L.
Guimarães, Ciência da Administração …, ob. cit., pp. 156-157.
166 São defensores destas soluções SOLON, MEUCCI, COTELLE, DUCROQ e outros apud

PEDROSA, A. L. Guimarães, Ciência da Administração …, ob. cit., pp. 158-160.


MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOL. 1
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actualmente objecto de pretendidas transformações bastantes das
instituições que os códigos civis abrangem; que, tendo sido revistos ou
havendo experimentado alterações os códigos dos outros ramos de direito,
também o código administrativo seria revisto ou modificado, quando as
circunstâncias o exigissem; que até seria conveniente a codificação para dar
maior firmeza à legislação administrativa e mais segura tutela aos direitos dos
cidadãos.

As teses intermédias. Estas teses tem como base o Congresso Jurídico


Espanhol realizado em Madrid em 1886, do qual se pode notar um debate
sobre a codificação do Direito Administrativo: “Deve procurar-se como
complemento das reformas a introduzir na jurisdição contenciosa-
administrativa, chamada a regular a vida de relação entre o Estado e os
particulares, a codificação administrativa, a cujo ideal pode chegar-se por
meio da codificação parcial, feita oficialmente por matérias, começando por
aquelas em que as leis sejam mais completas e adiantadas, tenham maior
carácter sistemático e sofram menos a influência dos partidos e das situações
políticas, e por trabalhos doutrinais que preparem a sistematização, que hoje
não existe, do direito administrativo”167.
Para SANTAMARIA de Paredes não se pode duvidar da utilidade de um
código oficial administrativo, na hipótese de ser possível; que não considera
impossível a existência de um código administrativo como ideal a que se deve
aspirar; que, como meios para se chegar a este ideal, podem aceitar-se
trabalhos doutrinais que preparem a sistematização do direito administrativo,
a qual hoje não existe, e a codificação parcial feita oficialmente por
matérias168.

Em conclusão, podemos dizer o seguinte:

167HERRERA, Posada, Derecho Administrativo, Tomo I, p. 182, nota 11.


168PAREDES, Vicente Santamaria de, Curso de Derecho Administrativo, Tipografia de Ricardo
Fe., Madrid, 1898, p. 44.
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1.º - É preciso aceitar que o Direito Administrativo é um direito que se
caracteriza pela sua vastidão, porque compreende um leque de matérias
que constituem o Direito Administrativo Geral e o Direito Administrativo
Especial. A parte geral abrange os princípios e as matérias de carácter geral;
a parte especial compreende matérias que se foram destacando, se
especializando e se autonomizando pedagogicamente do Direito
Administrativo Geral.

2.º - É possível codificar o Direito Administrativo na sua parte especial,


tendo em perspectiva as áreas sectoriais, donde podem emergir a
codificação, por exemplo, no Direito Fiscal e Aduaneiro e Contencioso
Administrativo.

3.º - A impossibilidade de codificação do Direito Administrativo Geral


tem sido negada devido às desvantagens da codificação, nomeadamente
a i) rigidez, embora esta não impeça a adaptação das normas à realidade
actual, sendo, por isso, a rigidez relativa; ii) vícios de excessos doutrinais, pois
a codificação pode tornar inacessível o conhecimento ou a legislação a
pessoas que não sejam manejadoras do direito, pois o código é feito por
pessoas especializadas, o que o torna ininteligível às pessoas comuns; iii) é
questionável a codificação em áreas de muitas e profundas mudanças ou
alterações legislativas.

4.º - Apesar das desvantagens da codificação, é possível assinalar


largas vantagens da mesma, nomeadamente, i) a certeza, pois toda a
informação encontra-se depositada num único instrumento; ii) a clareza, pois
não se verifica a dispersão legislativa e iii) a facilidade de acesso ao direito.

5.º - A codificação pressupõe a estabilização da matéria a submeter à


codificação; a estabilização de princípios fundamentais, o que se pode
considerar já possível no Direito Administrativo, como é o caso dos princípios
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da jurisdicidade/legalidade, da prossecução do interesse público,
imparcialidade, da discricionariedade, etc.
Por isso, é possível defender a tese da codificação parcelar do Direito
Administrativo, em particular, o Direito Administrativo Especial.

30. O Direito Administrativo é influenciado pela jurisprudência


O Direito Administrativo nasceu por via jurisprudencial: as decisões do
Conselho de Estado brotaram muitas regras de Direito Administrativo,
desempenhando o mesmo papel que as normas previstas no Código Civil,
para as relações entre privados. Veja-se que tais decisões são conhecidas
pelos nomes dos recorrentes. Por exemplo, o aresto BLANCO ficou a dever-se
ao nome da recorrente Agnés Blanco.
O Juiz Administrativo, nos primórdios do Direito Administrativo, teve de
encontrar ele próprio a regra jurídica que iria aplicar num caso concreto. Por
isso169:
- Do ponto de vista formal, muitas regras e princípios do Direito
Administrativo não têm origem que não seja a dos acórdãos (arestos) do
Conselho de Estado Francês, que as fixou no conhecimento dos casos que lhe
eram submetidos;
- O Direito Administrativo, porque se originou da jurisprudência, encarou
sempre os problemas que teve de solucionar na óptica do juiz. No Direito Civil,
por exemplo, o problema do regime da nulidade ou anulabilidade dos actos
é estudado em si mesmo, mas no Direito Administrativo só aborda na
perspectiva do contencioso administrativo: para saber em que casos o juiz
administrativo declarará a nulidade ou anulará os actos administrativos que
lhe são submetidos; muitas teorias e princípios do Direito Administrativo só
tiveram por fim resolver o problema do contencioso do juiz administrativo.
- O espirito geral das normas do Direito Administrativo reflecte a sua
origem jurispruencial. O juiz fixava-as para resolver um certo litígio. Ao formulá-
las, a sua preocupação era de não se vincular em demasia para o futuro, de

169 RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., pp. 36-37.


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modo que, mais tarde, tenha a possibilidade de readaptá-las ao
circunstancialismo do caso que lhe será submetido.
Na nossa Pátria, o Direito Administrativo nasce não por via
jurisprudencial, mas pela recepção do sistema português e por via legislativa,
que tem adoptado várias soluções tendo em conta a necessidade de
reformar, cada vez mais, a Administração Pública, com vista a sua
modernização. Porém, os juízes administrativos desempenham um papel
importante na concretização das normas e dos princípios gerais do direito.
Como refere FREITAS DO AMARAL “(...) não basta saber o que diz a lei
ou que sobre ela prescrevem os autores: é necessário conhecer o que
decidem os tribunais, para saber quais as soluções que efectivamente
vigoram como direito positivo numa dada ordem jurídica”170.

31. O Direito Administrativo oferece dificuldades no seu estudo


A questão que se deve colocar é a seguinte: será fácil o acesso ao
conhecimento administrativo em Moçambique?
O Direito Administrativo, como disciplina jurídica, é extenso e complexo.
É extenso pela amplitude das matérias que congrega e complexo, porque
apesar extensão das suas matérias, estas têm uma ligação intrinseca entre
elas, de tal modo que o desconhecimento de uma única delas põe em crise
a possibilidade de um aprendizado integrado das restantes ou subsequentes.
A doutrina moçambicana é, ainda, bastante embrionária; a legislação
administrativa não está codificada; a Administração Pública, ainda, está a ser
reformada, encontrando-se na sua terceira fase; o Estado é recente; o
Tribunal Administrativo, como tal, só começou a funcionar efectivamente, em
1993, porque hibernado desde 1975. Actualmente, para além do Tribunal
Administrativo, estão em funcionamento os tribunais administrativos de
província, o que procura melhorar a aproximação dos serviços ao cidadão.
Mas ainda falta muito por caminhar, estes são os primeiros passos.

170 AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito …, ob. cit., p. 167.
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Em relação à doutrina, o campo administrativo conta ainda com
pouca produção interna, recorrendo-se ainda ao sistema europeu que não
se coaduna com a realidade nacional, como ficou demonstrado supra n.º
7.1.

32. O Direito Administrativo cria relações jurídico-administrativas


32.1. Aspectos gerais
O Direito Administrativo para além de regular a organização e o
funcionamento da Administração Pública, institui também relações jurídicas
entre esta e outros sujeitos de direito, de natureza administrativa.
Vamos olhar agora a essa relação jurídico-administrativa.
A relação jurídica, em sentido restrito, surge quando, pela
concretização de momentos de previsão de uma norma jurídica, é regulada
uma posição jurídica entre pessoas concretas numa relação da vida social.
Em sentido técnico jurídico, podem existir também relações jurídicas com
sujeitos que não são pessoas, como acontece, por exemplo, com os órgãos
e as autoridades171.
Como se pode notar, o instituto de relação jurídica pertence à teoria
geral do direito. No passado, o direito administrativo não se preocupou com
este instituto, dominando o mundo do direito civil, em particular, o direito das
obrigações.
A relação jurídica administrativa tem maior relevância no âmbito do
Direito Processual Administrativo Contencioso, constituíndo critério delimitador
da competência da Jurisdição Administrativa172.
No âmbito do Direito substantivo, colocar o estudo ou a compreensão
sistemática do direito administrativo através da relação jurídica seria muito
restritivo. A doutrina das relações jurídicas pode certamente tornar visíveis
certos problemas que, no entanto, ela não pode resolvê-los de forma
conclusiva: “A doutrina das relações jurídicas não pode substituir ou reprimir

SOTOBER, Rolf; BACHOF, Otto e WOLFF, Hans J., Direito Administrativo, ob. cit., pp. 494-495.
171
172Alínea a) do artigo 3 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, Lei do procedimento
administrativo contencioso.
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as formas legais de actuação, nem os direitos subjectivos atribuídos por lei.
Desde logo, por isso, a discussão da relação jurídica não constitui o ponto de
Arquimedes do direito administrativo”173.
Apesar disso, “para o trabalho no direito administrativo é importante
que a ideia das relações jurídico-administrativas leve a novas visões e possa
ajudar na descoberta e na ultrapassagem de vicios estruturais de direito
administrativo (…). Assim, os direitos e deveres entre a Administração e as
pessoas civis devem ser conduzidos a uma relação de equilíbrio. Por outro
lado, a figura jurídica das relações de direito administrativo propicia-se a
conduzir o factor tempo a um equilíbrio razoável no lugar da “captação do
momento da actuação administrativa” e a incluir a posição de terceiros e as
relações jurídicas poligonais174 e complexas. Por conseguinte, a figura jurídica
das relações de direito administrativo serve à complementação de aspectos
especiais da doutrina das formas de actuação”175.
Podemos abreviar que a relação jurídico-administrativa constitui um
conceito genérico de todas as relações bilaterais e plurilaterais, externas e
internas, entre a Administração e as pessoas civis, as quais dizem respeito aos
direitos e deveres opostos resultantes de uma relação jurídica, visando servir à

173 WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto e STOBER, Rolf, Direito ..., ob. cit., p. 497.
174 São relações jurídicas poligonais ou multipolares, aquelas as relações em que, para além
do destinatário de uma medida administrativa, estão também abrangidos outros sujeitos que
são chamados de “terceiros”. Todavia, para que estejamos perante uma relação
administrativa multipolar, não basta que haja mais do que dois sujeitos, é necessário também
que esses sujeitos não estejam agrupados “enquanto titulares conjuntos de apenas duas
posições jurídicas subjetivas contrapostas (Cfr. FREITAS, Dinamene Geraldes Faria de,
As Relações Administrativas Multilaterais: reflexos da figura no novo regime do contencioso
administrativo, Lisboa, 2003, p.13). Em Moçambique, a noção de relações jurídicas poligonais,
multipolares ou complexas não foi ainda estudada, nem utilizada pela jurisprudência, pois a
delimitação da competência contenciosa não se baseia no conceito de relação jurídica
administrativa, embora no âmbito substantivo o conceito de contrato administrativo seja
construído a partir da relação jurídico-administrativa (artigo 176, n.º 1 da Lei n.º 14/2014, de
10 de Agosto). A nossa ordem jurídica baseia-se na ideia de direitos e interesses legalmente
protegidos, o que permite a tutela das posições jurídicas dos administrados que, numa
relação com a Administração, pudessem sair lesados com as actuações ou omissões
administrativas (Artigo 252 da Constituição). Portanto, a ideia de interesse legalmente
protegido contém a delimitação dos administrados que se inserem no círculo de sujeitos que
fazem parte da relação jurídica administrativa, isto é, o conjunto de indivíduos que podem
ser afectados por uma decisão da administração a favor de um requerente, por exemplo,
de uma licença de direito de uso e aproveitamento da terra; de uma licença ambiental, de
uma licença de construção de prédio urbano.
175 WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto e STOBER, Rolf, Direito ..., ob. cit., p. 498.
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concretização das funções especiais do direito administrativo e aos direitos
fundamentais dos atingidos. Por outro lado, também nas relações jurídicas
entre entes da Administração se trata de relações jurídico-administrativas176.
Portanto, as relações jurídico-administrativas estão juridicamente
limitadas à utilização das normas jurídicas do direito público, excluíndo as
situações em que a Administração actua sob o manto do direito privado. A
relação jurídica administrativa cria vínculos jurídicos entre dois ou mais sujeitos
de direito, sendo:
- uma pessoa colectiva pública, como sujeito activo, e um administrado
(pessoa individual ou colectiva privada) como sujeito passivo, embora tenha
algumas posições jurídicas. Mas, sempre a autoridade administrativa actua
com posição de supremacia.
- uma pessoa colectiva pública com uma outra pessoa colectiva
pública, por exemplo, Estado-Administração com as autarquias locais ou com
as províncias ou distritos; isto é, uma relação jurídica entre entidades
administrativas.
Por isso, hoje a relação jurídico-administrativa constitui uma categoria
consolidada do direito administrativo177.
A relação jurídico-administrativa cria posições jurídicas entre as partes
envolvidas.

32.2. Posições jurídicas dos administrados

32.2.1. Direito subjectivo público e interesse legítimo


O instituto de direito subjectivo, em si, foi cultivado na teoria geral do
direito. Mas a partir de certo tempo, os administrados passaram a ser vistos
como cidadãos e detentores de posições jurídicas face ao Estado e

176 WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto e STOBER, Rolf, Direito..., ob. cit., p. 496.
177 WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto e STOBER, Rolf, Direito..., ob. cit., p. 496.
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consequentemente em relação à Administração Pública: passaram os
cidadãos a ser titulares de direitos, liberdades e garantias fundamentais.
O direito subjectivo, por definção, é um poder jurídico reconhecido a
um sujeito por uma norma jurídica, em virtude da qual o referido sujeito pode
exigir de outra pessoa, para efeitos de satisfação de interesse próprio, um
acto de facere, non facere ou suportar178. Na verdade, trata-se de uma
faculdade ou aprovação normativa a um sujeito de uma relação jurídica de
aproveitamento de uma posição jurídica colocada à disposição pela ordem
jurídica.
Assim, podemos dizer que o direito subjectivo público consiste no poder
jurídico concedido a um indivíduo, por força de uma norma de direito
público, para poder exigir do Estado determinado comportamento, com vista
à satisfação dos próprios interesses179.
O significado prático do direito subjectivo público radica na
possibilidade da sua exigibilidade perante os tribunais. Deste ponto de vista,
resulta que o direito subjectivo público faz parte da relação entre o Estado e
o cidadão. Nos termos dos artigos 70, 62 e n.º 3 do artigo 252, todos da
Constituição, respectivamente, o cidadão tem direito de recorrer aos tribunais
contra os actos que violem os seus direitos e interesses reconhecidos pela
Constituição e pela lei; sendo que o Estado garante o acesso dos cidadãos
aos tribunais e, por fim, assegura-se aos cidadãos interessados o direito ao
recurso contencioso fundado em ilegalidade de actos administrativos, desde
que prejudiquem os seus direitos.
O pressuposto lógico e jurídico do direito subjectivo público é a
obrigação jurídica que corresponde a outra pessoa; obrigação que, por sua
parte, se baseia numa disposição jurídica objectiva. Portanto, não há direito
subjectivo sem a obrigação legal prévia correspondente, enquanto, pelo
contrário, a existência de uma obrigação legal sem direito subjectivo
correlato é perfeitamente concebível180.

178 MAURER, Hartmut, Derecho Administrativo Alemán, ob. cit., p. 160.


179 Cfr MAURER, Hartmut, Derecho Administrativo Alemán, ob. cit., p. 160.
180 MAURER, Hartmut, Derecho Administrativo Alemán, ob. cit., pp. 162-163.
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A concepção de direito subjectivo no direito público é mais complexa
que no direito privado, pois a Administração prossegue o interesse público e,
por esta razão, o direito administrativo regula uma Administração orientada
aos interesses da colectividade. Deste modo, para se admitir a existência de
um direito subjectivo público é preciso considerar, previamente, os seguintes
pressupostos181:

- Se existe uma norma jurídica que obriga a Administração Pública a um


comportamento (dever jurídico da Administração)?
- Deve a norma legal – pelo menos também – servir à protecção dos
interesses dos cidadãos (interesses individuais)?
Num ângulo próximo do direito subjectivo, existe o chamado «interesse
legítimo». Ora, qual é a diferença com o interesse legítimo?

O interesse legítimo deve ser visto na perspectiva substantiva e não


processual. Na perspectiva processual, o interesse tem a ver com a
legitimidade da parte para ter acesso livre à justiça. Portanto, no âmbito
privado, há-de ser o interesse directo em demandar, que se exprime pela
utilidade derivada da procedência da acção; ou interesse legítimo em
contradizer, exprimindo-se pelo prejuízo que pode advir da procedência da
acção182.
No âmbito processual administrativo, a legitimidade para demandar a
Administração, no recurso contencioso, advém do facto de o demandante
ser titular de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que
tenham sido lesados ilegalmente pela Administração183.
Na perspectiva substantiva, o interesse legalmente protegido existe
quando a norma cuja lesão é invocada prossegue o interesse geral, mas
igualmente o interesse particular.

181 MAURER, Hartmut, Derecho Administrativo Alemán, ob. cit., pp. 163-164.
182 Cfr. Artigo 26.º do Código do Processo Civil.
183 Cfr. Artigo 44 da LPAC.
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O direito subjectivo é uma faculdade pessoal, com protecção directa
pela lei, sendo, por isso, exigível perante a Administração. Por exemplo, na
França, a defesa judicial do direito subjectivo faz-se através do recurso de
pleno contencioso, atacando-se a ilegalidade da decisão ou a omissão que
afecta o direito; mas o interesse legítimo não tem somente incidência numa
situação pessoal, mas a sua defesa judicial visa evitar que o sujeito sofra
pessoalmente com a ilegalidade. Na noção de interesse legítimo existe um
elemento de apreciação subjectiva, visto que a protecção legal é reflexa ou
indirecta, sem a possibilidade de se exigir em benefício pessal à
Administração, mas sim, que esta, ao decidir, não prejudique ilegalmente a
posição jurídica pessoal. Na França, a defesa judicial do interesse legítimo
cabe no recurso por excesso de poder184.
Na doutrina italiana, é possível surpreender três citérios para distinguir
direitos subjectivos dos interesses legítimos185:

- critério da natureza da norma, de autoria de GUICCIARDI, que parte


do pressuposto de que as normas estão divididas em duas categorias: i)
normas de relação, que, através de um juízo de relação entre interesses
diversos dos sujeitos jurídicos, traçam uma linha de demarcação nítida entre
a esfera jurídica da Administração Pública e a esfera dos privados. Assim,
haverá violação de direito subjectivo se a Administração ultrapassar essa linha
de demarcação e invadir a esfera jurídica de um particular; ii) normas de
acção, que pelo contrário, regulam o exercício de um poder da
Administração, atribuído previamente por normas de relação – há violação
de um interesse legítimo se a Administração violar esse tipo de normas.
- critério da natureza vinculada ou discricionária da actividade
exercida. Assim, perante uma actividade vinculada, o particular gozará de
um direito subjectivo; pelo contrário, em caso da actividade discricionária, o
cidadão pode reivindicar somente um interesse legítimo.

184RIVERO, Jean, Direito Administrativo, ob. cit., p. 278.


185ANDRADE, José Vieira de, Lições de Direito Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, 2011, pp.
56-60.
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- critério baseado na distinção entre falta de poder e mau exercício do
poder. Sempre que se invoque um mau uso do poder, está a fazer-se valer um
interesse legítimo; quando se contesta a própria existência do poder da
Administração, faz-se valer um direito subjectivo.
Em conclusão, podemos dizer o seguinte:

(i) – o direito subjectivo realiza-se no quadro de uma relação jurídico-


administrativa, e assenta na faculdade conferida directamente pela lei ao
respectivo titular para exigir um determinado comportamento perante a
Administração Pública. Exemplo, nos termos do artigo 70 do EGFAE, o
funcionário público tem direito, em cada ano civil, a trinta dias de férias.
Portanto, qualquer funcionário que complete um ano civil de trabalho
constitui na sua esfera jurídica um direito subjectivo de exigir da Administração
a concessão (autorização) da licença de férias.
No direito subjectivo, a Administração tem a obrigação de decidir a
favor do particular, e não decidindo, pode recorrer aos meios de protecção
judicial para obrigar a Administração a decidir favoravelmente.

(ii) – o interesse legítimo é uma situação jurídica anterior ao direito


subjectivo, que prepara o terreno para o direito subjectivo, sendo apenas
uma questão de tempo, para se transformar em direito subjectivo; uma
situação que aparece como hipótese, que está prefigurada, com um grau
de grande possibilidade, sendo apenas uma questão de tempo (até se emitir
uma autorização; até se finalizar um contrato; até fazer exame; até a
conclusão de um processo)186. Por exemplo, a participação num concurso
público de ingresso na Função Pública, a obrigação de a Administração
seguir os critérios e regras definidas para o recrutamento protege um interesse
legítimo dos concorrentes de virem, por via do concurso, a ocupar as vagas
no quadro de pessoal da Administração. Portanto, uma boa tutela dessa

IORGOVAN, Antonie, “Noua lege a contenciosului administrativ”, apud CERNAT, Petronela


186

Adriana, A noção de interesse legítimo na doutrina romena de direito público, Revista


Sequência, n.º 55, Dezembro de 2007, pp. 219-232.
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expectativa, segundo as normas aplicáveis, permite, posteriormente, a
constituição de um direito subjectivo na esfera dos concorrentes. Portanto, o
interesse legítimo é uma protecção indirecta ou reflexa de uma expectativa
para que não seja posta em causa de forma ilegítima pela Administração,
embora utilizando maioritariamente os seus poderes discricionários
(perspectiva de tutela judicial).
No interesse legítimo há uma livre margem de apreciação da
Administração, no caso do nosso exemplo, a livre margem de apreciação é
a de avaliar os concorrentes segundo as regras concursais e o interesse
legítimo reside exactamente no que, nessa margem de apreciação, tudo
corra dentro dos parámetros legais e que sejam aprovados os que de facto
reúnam os requisitos.
Não há obrigatoriedade de a Administração Pública decidir
favoravelmente no sentido pretendido pelo particular, mas de salvaguardar
que a expectativa alheia não seja posta em causa
ilegitimamente/ilegalmente.
Os direitos subjectivos podem ser absolutos, por serem erga omnes, não
dependem de qualquer interposição de outro sujeito, é o caso dos direitos
fundamentais; relativos, que assentam numa relação jurídica, traduzindo-se
numa vantagem relativa em face de outro sujeito, por exemplo, o direito à
justa indemnização na expropriação por utilidade pública; direitos subjectivos
patrimoniais, não patrimoniais; direitos subjectivos públicos ou privados;
direitos subjectivos processuais, substantivos e procedimentais.
Por seu turno, os interesses legítimos podem ser individuais e colectivos
ou difusos, que, por exemplo, surgem no âmbito do direito ambiental, dos
consumidores, etc.

32.2.2. Obrigações dos particulares no âmbito do Direito Administrativo


Quando é que existe uma obrigação de direito administrativo para os
particulares?
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Ao abrigo do n.º 2 do artigo 46 da Constituição, todo o cidadão tem o
dever de cumprir as obrigações previstas na lei e de obedecer as ordens das
autoridades legítimas emitidas nos termos da Constituição e com respeito
pelos seus direitos fundamentais.
Ora, no campo em estudo, podemos afirmar que existe uma obrigação
de direito administrativo, quando, com base numa norma de direito
administrativo, é exigido pelo poder público, como efeito jurídico abstracto
ou concreto, um fazer, tolerar ou um omitir. Não é aqui relevante a questão
de saber se o particular conhece ou aprova a obrigação187.
As obrigações de natureza administrativa são impostas pelo pessoal da
Administração Pública devidamente autorizado pela lei, visto que os entes
administrativos não agem de per si. São os órgãos e o pessoal da
Administração que, exercendo as suas funções de prossecução do bem
comum, nos limites da Constituição e da lei, concretizam e actualizam, nos
limites necessários, as obrigações abstractas.
As obrigações dos cidadãos podem dar satisfação ao interesse
público, sendo de forma188:
- directa, quando realizam o fim público pelo seu cumprimento, uma
vez que se esgotam neste cumprimento da obrigação. Por exemplo, a
obrigação de vacinação, a obrigação de escolaridade até ao primeiro ciclo,
servem, por um lado, o interesse privado, mas, por outro, o interesse público;
- indirecta, quando do seu cumprimento realizam o fim público, porque
colocam os entes administrativos em condições de alcançar os fins gerais,
através de prestações de serviço ou em dinheiro.
Os cidadãos ficam também subordinados, como se refere o n.º 2 do
artigo 46 da Constituição, a deveres de cumprimento de ordens emanadas
pelas autoridades administrativas, desde que as ordens emitidas não sejam
ilegais ou que não ofendam os seus direitos, liberdades e garantias (artigo 80
da CRM).

187 WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto e STOBER, Rolf, Direito..., ob. cit., p. 627.
188 WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto e STOBER, Rolf, Direito..., ob. cit., p. 628.
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Estas obrigações assumem um carácter mais especial no caso de
funcionários públicos, agentes do Estado, agentes das forças de defesa e
segurança, pois são conteúdo de uma relação jurídica hierárquica, passando
a recair sobre estes o chamado dever de obediência.
As obrigações podem classificar-se de diversas formas, tendo em conta
o tipo de conduta imposta directa ou indirectamente pela lei189:

a) obrigações que exigem uma prestação natural. Tratam-se de ónus


que se caracterizam pela prestação natural de serviços, trabalho ou
prestações materiais que obrigam os cidadãos de forma geral e abstracta,
como forma de compensação por vantagens especiais recebidas. Por
exemplo, o dever de limpeza das praias; o dever de participar na limpeza da
cidade; zelar pela preservação dos valores culturais; defender e promover a
saúde pública; defender e conservar o ambiente; defender e conservar o
bem público e comunitário (artigo 45 da CRM).

b) obrigações que exigem uma prestação em dinheiro. Os cidadãos


têm obrigações de conteúdo pecuniário. Diz o artigo 45, alínea c), que o
cidadão tem o dever de pagar as contribuições e impostos. As contribuições
a cargo dos cidadãos, enquanto ónus públicos de natureza pecuniária,
podem consistir em:
- Impostos, que são criados ou alterados por lei, sendo fixados segundo
os critérios de justiça social – artigo 100 da CRM;
- Taxas devidas como contraprestação pelo serviço prestado pelo
Estado. Podem contar-se vários tipos de taxas administrativas: emolumentos;
taxas de utilização de serviços; taxas de concessões de serviços, etc.;
- Contribuições de variada natureza previstas em leis, decretos ou
diplomas municipais, provinciais e distritais.

189 WOLFF, Hans J., BACHOF, Otto e STOBER, Rolf, Direito..., ob. cit., p. 230-634.
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c) obrigações que exigem uma tolerância ou omissão. Neste tipo de
obrigações, o cidadão suporta na sua esfera jurídica ónus públicos, podendo
ser-lhe imposto ónus de facere, por exemplo, uma servidão administrativa;
requisição de bens seus para a prestação de interesse público; colocação de
instalações de energia eléctrica; etc.
As obrigações administrativas devem ser impostas através de um títuo
jurídico, seja, por autorização legal; seja por decisão judicial; seja por decisão
administrativa executiva; seja por contrato administrativo; ou outro acto
juridicamente legítimo.

32.3. Prerrogativas da Administração Pública


A Administração Pública aparece sempre numa relação jurídico-
administrativa, como sujeito activo, titular de um conjunto de poderes ou
faculdades de autoridade, que lhe conferem a supremacia, por,
exactamente, ser responsável pela prossecução do interesse público.
A Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, enunciou algumas prerrogativas da
Administração, tratando-as como «Garantias da Administração Pública»,
nomeadamente (artigo 19):
- o privilégio de execução prévia;
- a obrigatoriedade da apresentação imediata do funcionário ou
agente da Administração Pública ao respectivo superior hierárquico para
efeitos de entrega de serviço;
- o poder de requisição de bens dos particulares, em caso de
necessidade administrativa;
- a faculdade de utilização dos meios coercitivos ou de prevenção,
nomeadamente a polícia administrativa;
- o direito de regresso em caso de indemnização a terceiros pelos danos
por actos ilegais dos seus agentes no exercício das suas funções;
- o poder de execução coerciva dos actos administrativos definitivos e
executórios.
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§5.º
Ramos do Direito Administrativo e sua delimitação das áreas afins

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