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DEPARTAMENTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ESTUDOS DO ROMANCE
PROF. GIULIANO LELIS ILTO SANTOS
ACADÊMICA: GISELE DE Fª DO PRADO – 4NB

ATIVIDADE AVALIATIVA – ENSAIO

O romance escolhido para o presente ensaio, foi publicado originalmente no ano


de 1987 (um ano mais velho que eu), sendo o primeiro romance da autora norte-
americana Terry McMillan. Ler Mama é como vivenciar quase que a olho nu a vida de
uma mulher negra, mãe de cinco filhos – Freda, Dim-Dim, Lindinha, Boneca e Anjinho
- que sozinha na década de 60 faz de tudo e um pouco mais para garantir que sua família
viva da melhor maneira possível.

Logo nas primeiras páginas percebemos que o romance terá uma trama brutal,
marcada por inúmeras violências a qual sofre a personagem protagonista Mildred, mas
que apesar de toda violência que sofre, não aceita a situação que se encontra aos 27
anos.

O contexto geográfico onde vive Mildred Peacock e seus filhos é marcado por
tensões raciais e estas, permeiam a trajetória de todos os personagens. Estou falando da
cidade fictícia chamada Point Haven, no subúrbio de Detroit, em Michigan. Os
moradores desta cidade nunca tinham ouvido falar de Malcom X, e pouquíssimo sobre
Martin Luther King, por exemplo. É num contexto marcado pela vulnerabilidade social
e econômica que a trama se desenvolve.

Há um fluxo de leitura muito intenso, repleto de tensões sociais como violência


doméstica, abuso de drogas e álcool, estupro, doenças graves, traumas intergeracionais,
entre outras, as quais percebemos na maneira como o narrador descreve as situações, e
como tudo o que é narrado se torna uma representação da realidade através dos
diálogos, o que nos permite mergulhar em todas as sensações através da leitura.

A escrita textual é extremamente gráfica, pois através da leitura, conseguimos


perceber até as imperfeições corporais dos personagens descritas pelo narrador. O fluxo
de tensões é marcado por momentos de leitura um pouco mais branda, até certo ponto
em que a tensão se faz presente novamente.

À medida que a leitura segue seu rumo, percebemos a existência de uma segunda
protagonista, e então o foco narrativo vai para Freda, a primeira filha, que se percebe
herdando diversos traços da personalidade da mãe. Freda consegue sair de Point Haven,
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para Califórnia e após, Nova Iorque, mas carrega uma série de emoções perturbadoras,
com as quais verificamos a semelhança com Mildred.

Desde cedo Freda se viu obrigada a amadurecer precocemente, primeiro por ser a
filha mais velha, e a mãe sozinha criando cinco filhos, ela necessitava colaborar, sendo
assim identificamos na trama não apenas uma Mama, mas duas Mamas que se alternam
ao longo da narrativa.

Alguns acontecimentos na vida de Freda me marcaram como leitora, aqui citarei


dois deles que me fizeram chorar. O primeiro é a cena do Natal, e nesta Mildred não
possui dinheiro suficiente para comprar presentes para todos os filhos, então, numa
conversa com Freda, pede para que a filha, por ser a mais velha, esperasse até o
momento em que ela pudesse comprar, tendo assim, que demonstrar uma maturidade
que talvez ela não tivesse. Esse episódio cortou meu coração, pois, independentemente
de ser mais velha ou mais nova, como mãe, acredito que seria mais viável comprar um
presente de menor valor para todos, ou não comprar nenhum, essa obrigação imposta
aos filhos mais velhos de cuidar dos irmãos menores é quase que desumana.

- Então, quando eu tirar todas essas coisas no crediário e comprar


alguns brinquedos, pagar essas contas, vamos ter sorte se conseguirmos
um frango no Natal. Nem vamos falar de presunto ou peru. A mamãe
estava pensando se você poderia ser uma mocinha crescida e esperar até
depois do Ano-Novo, quando tudo vai estar em liquidação. Daí eu
consigo o resto das coisas das crianças também. [...] Consegue deixar
seus irmãos aproveitarem este Natal? Consegue fazer isso pra sua mãe?
- Consigo, Mama, eu espero – logo respondeu Freda. [...]
As duas estavam sentadas, empertigadas, como camisas
engomadas, mas, por baixo daquela postura, Mildred e Freda estavam
tristes por si mesmas”. (McMillan, 2022, p.49-50)
Outro episódio que é marcante em relação à Freda, é o momento em que ela sofre
um estupro de um “amigo” da família, um homem que era recebido por Mildred como
se fosse um irmão de sangue. O nome dele era Peso-Morto, e aproveitou um momento
que Mildred não estava em casa, e Freda estava sozinha, para cometer o abuso,
mostrando assim, sua face de pedófilo e estuprador.

- Ficou maluco, Peso-Morto? – gritou ela. – Tira as mãos de mim,


negão. [...]
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- Ora, relaxa, Freda – disse ele –, me deixa te dar um beijinho. Te


dou cinco dólares. Só um beijinho.
- Cê sabe que eu te amo, Freda – disse ele. – Sempre te amei. Te
amo desde que você tinha dez anos. Esperei esse tempo todo. Esse tempo
todo. – Peso-Morto não percebeu que, cuidadosamente, Freda tinha
pegado um abridor de costura com a mão direita e, quando ele tentou
levantá-la da cadeira pelo pescoço, ela enfiou o abridor na barriga dele.
Então, Peso-Morto ficou com raiva. [...]
Ele se encaixou no meio das pernas dela, mas antes que pudesse
penetrá-la por completo, Freda cuspiu em seu rosto. Ele se afastou e em
seguida gozou por cima do sofá laranja de Mildred. Então, subiu o zíper
das calças e saiu, satisfeito. (McMillan, 2022, p. 84-85)
Como já mencionei, o texto da narrativa é muito gráfico e também possui um
enredo extremamente humano, principalmente em relação ao cotidiano da mulher negra.
A trajetória errática de Mildred é fruto do mito da “mulher negra forte”.

No segundo parágrafo do início do romance, o narrador menciona como Mildred


se sentia já no início, mencionando que ela “odiava aquela casa caindo aos pedaços,
odiava aquela cidade horrenda, odiava nunca ter o suficiente de nada. Acima de tudo,
odiava Crook. E, se não fosse pelos cinco filhos, ela o teria abandonado muito tempo
antes” (p.10) e em seguida, continua nos contando que “aos vinte e sete anos, Mildred
estava cansada como um burro de carga velho e sentia como se tivesse atravessado uma
guerra. Seu rosto doía”. (McMillan, 2022, p.10).

A exaustão é um sintoma de quem não aguenta mais o que está vivendo, mais
ainda não se sente suficientemente forte para dar a volta por cima, e isso se deu na vida
de Mildred por diversos fatores, como o trabalho ruim, as contas sempre chegando, os
cinco filhos, não demonstrava carinho para não parecer fraca, a violência doméstica
diária, mas ao mesmo tempo é frágil e insegura, escondendo-se numa armadura forte.

Mildred é completamente humana, e o texto é louvável por mostrar exatamente


isso: uma mulher negra normal, mãe de cinco filhos, que quer sobrancelhas bem feitas,
sutiãs de renda e um companheiro para aquecê-la à noite, também não mede esforços
em busca de prazer. Da mesma forma mostra-nos uma relação de mãe e filha (Freda),
que um tanto conturbada, ambas sabem que poderiam sempre contar uma com a outra e
décadas depois, encontram abrigo e curam juntas suas feridas.
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Tradicionalmente, Mildred pode ser vista como a heroína, devido as suas virtudes.
Mas a intenção não está nesse rótulo, muito pelo contrário. A intenção é revelar a
humanidade presente nesta história, a capacidade de errar, de consertar, de ser
contraditória, tudo isso sem perder a sanidade e a essência.

O romance, desmistifica, como antes mencionado, o mito de que a população


negra tem que sempre ser muito forte, como se não sentissem dores, não sofressem,
como se não tivessem humanidade. A mulher negra não é nem subumana, nem sobre-
humana, é essencialmente humana, nada mais, nada menos que isso. Diante disso, não
posso deixar de mencionar que o texto também desmistifica o fato de que a mulher se
torna menos desejável por ser mãe, nem por ser madura.

Diante de todos esses fatos, e muitos outros, existentes no romance, há um


conceito que não posso deixar de colocar neste ensaio, que é o conceito de
“Escrevivência” e, de acordo com Maringolo, é

[...] como argamassa criativa a sua experiência de vida, Evaristo


escreve estabelecendo um constante diálogo entre o meio social,
cultural, histórico e de gênero em que vive com as obras que
escreve. A poética da Escrevivência significa escrever sobre a vida,
abarcando a experiência múltipla e diversa dos afrodescendentes;
significa também utilizar retalhos de memórias para a construção das
narrativas. Apoiada em sua vida, Conceição Evaristo confunde,
inventa, cria e recria o material narrativo para a construção das
narrativas. (2014, p. 10)
O conceito de Escrevivência foi elaborado pela autora Conceição Evaristo, pois
seus textos são baseados em sua vida, porém, da mesma forma, a mãe da autora Terry
McMillan possui uma história de vida parecida com a de Mildred, pois também teve
cinco filhos e a autora escreveu o romance para tentar entender a maternidade.
Ainda dentro deste viés da autoria baseada na realidade, podemos levar em
consideração o que menciona Bakhtin
O romance é o único gênero em formação, por isso reflete de
modo mais profundo, mais substancial, mais sensível e mais rápido o
processo de formação da realidade. Só o que está em formação pode
compreender a formação. O romance tornou-se o personagem central do
drama do desenvolvimento literário na Idade Moderna precisamente
porque é quem melhor expressa as tendências da formação de um novo
mundo pois é o único gênero concebido por esse mundo e em tudo
consanguíneo à ele. (2009, p. 70-71)
O gênero romance, a partir deste estudo de Bakhtin (2009), é um gênero com o
qual a Literatura não consegue defini-lo com precisão, pois ele muda de acordo com a
época na qual é escrito, por isso não se obtém uma definição estática. O autor lista
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algumas características sobre o gênero romance nas páginas 72 e 73, as quais podemos
identificar na narrativa sobre a qual estou escrevendo, características estas que são
ressalvas que anulam o traço de gênero, por exemplo:

o “O romance é um gênero de múltiplos planos” (p. 72): em Mama, percebemos o


plano da realidade, quando os diálogos ocorrem, e também o plano da memória,
quando ocorrem alguns flashes durante a narrativa: “Ai, por que ela tinha que
tocar nesse assunto, pensou Freda. Ela havia feito um ótimo trabalho em
esquecer aquele dia terrível”, (p. 149)
o “O romance é um gênero de enredo intenso e dinâmico”. (p. 72): no caso do
romance em questão, essa dinamicidade e tensão é percebida em todas as
páginas. Por vezes, durante a leitura, é como se tivéssemos que prender a
respiração, e logo, as cenas fluem com um pouco mais de leveza, para logo em
seguida a tensão retornar.
o “O romance é um gênero que trata de problemas” (p.72): em Mama, vários
problemas são tratados, como já mencionado, e todos eles de uma maneira que o
leitor consegue perceber como esses problemas conseguem realmente afetar as
pessoas se não forem tratados da devida maneira.
o “O romance é uma história de amor” (p. 73): sim! Mama é uma história de amor,
de vários amores, todos eles vividos de maneiras muito honestas.

Este ensaio foi elaborado com a intenção de convidar a todos que tenham
interesse em uma leitura real, que fala de pessoas reais, que vivem em lugares reais,
pois todo dia convivemos com inúmeras Mildreds em nosso cotidiano, assim como
conhecemos inúmeras Fredas que tiveram que amadurecer antes do tempo, muitos
Dim-Dins, que na adolescência e juventude se perderam no mundo das drogas e da
criminalidade, e encontraram um dia uma razão para viver. Pessoas como eu e você.
Humanas, apenas!

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Teoria do romance III: O romance como gênero literário. São


Paulo: Editora 34, 2009. Tradução de Paulo Bezerra.

MCMILLAN, T. Mama. Tradução Petê Rissatti – 1ª ed. Porto Alegre: TAG, 2022.
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MARINGOLLO, C. C. B. Ponciá Vicêncio e Becos da Memória de Conceição


Evaristo: construindo histórias por meio de Retalhos de memórias.
2014.132f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras). Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho. 2014.

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