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Rotten, criação de Christine Haughney, direção de Abigail Harper.

Documentário produzido por Zero Point Zero e Netflix, 2019.

O documentário “Rotten” conta com duas temporadas de episódios que


fazem uma crítica contundente à atual indústria alimentícia. Todos os
episódios são bastante interessantes e trazem informações relevantes
sobre o estado atual do mercado de alimentos global. Não obstante, o
episódio que será alvo desta resenha é o segundo da segunda
temporada, “O reinado de terroir”.

Esse episódio tem o foco na situação dos vitivinicultores do Sul da


França, mais especificamente, da região de Languedoc-Roussillon.
Nessa região, a produção vitivinífera atende a demanda de vinhos de
mesa dos franceses (Vin de Table), ou seja, aqueles vinhos que são
ingeridos no seu cotidiano. O documentário aborda a situação dos
produtores e não dos consumidores de vinho. E, a situação daqueles,
geralmente é desconhecida desses. Sendo assim, para os enófilos é
imprescindível assistir a esse episódio da série documentário Rotten e
conhecer a situação dos vitivinicultores.

Como se sabe, o vinho é um grande símbolo da cultura francesa.


Concorre com o lema da Revolução de 1789, “Liberté, Égalité,
Fraternité” como o mais representativo do seu modo de vida. Daí já se
nota a importância do vinho para o povo francês. Contudo, o mercado
de vinho na França tem sofrido alguns abalos. Em primeiro lugar, o
consumo de vinhos pelos franceses está caindo. Isso é ocasionado por
diversos fatores: a onda por uma vida mais saudável, o aumento da
população abstêmia na França, principalmente muçulmana, a
concorrência com outros tipos de bebidas, etc. E dentre aqueles que
bebem vinho, o produto francês ainda concorre com vinhos de outros
lugares do mundo que, atualmente, são tão bons quanto os franceses.
Esse quadro não é nada animador para os produtores de Languedoc-
Roussillon, pois eles não têm seus rótulos consagrados pela crítica
especializada internacional. Diante da globalização, da saturação do
mercado e de um consumidor mais exigente, o produtor deve apostar
em vinhos que possuam um diferencial, ou seja, que se destaquem pela
qualidade, ou que sejam orgânicos ou biodinâmicos ou até mesmo que
contem com uma estratégia de marketing bem pensada e executada,
como é o caso dos vinhos Beaujolais Nouveau.

Porém, os produtores de Languedoc-Roussillon apostam na tradição e


se mantém presos a ela, apesar de ela não ser capaz de resistir no
mundo globalizado, pelo menos quando voltada ao mercado de alta
demanda. Ou seja, pode-se apostar na tradição para atender pequenos
mercados. Mas, para isso, deve-se acompanhar esse processo com uma
estratégia de marketing bem pensada e executada para fortalecer os
laços entre a tradição e o produto ofertado. Dessa forma, o símbolo
passa a ter mais valor do que o produto. Contudo, os vitivinicultores de
Languedoc-Roussillon não fizeram isso. Pretenderam lutar contra aquilo
que os alemães chamaram de Zeitgeist. Em primeiro lugar, esperaram
protecionismo estatal. Depois subsídios e, por fim, partiram para a
violência.

O CRAV, que tem por líder Jean Huillet, possuía exatamente essa
pauta. Esperava que o estado socializasse os prejuízos dos produtores.

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O governo francês até tentou, mas como qualquer outro Estado que
tentou interferir no mercado, fracassou. Não só fracassou, como piorou
a situação com a política de “desenraizamento”. Os preços não
aumentaram e os produtores ainda se sentiram ofendidos por serem
obrigados a arrancaram suas videiras do solo.

A solução, pelo menos temporária, não veio das ações violentas do


CRAV, nem do governo. Mas, da união dos produtores. Para concorrer
com os vinhos mais baratos da Espanha, eles criaram cooperativas.
Devido à cooperação, ainda estão conseguindo sobreviver, exportando
seus vinhos principalmente para a China, onde o vinho francês é
bastante valorizado.

O consumo de vinho pelos chineses vem aumentando, pois a classe


média chinesa vem se fortalecendo bastante nos últimos anos e,
consequentemente, ambiciona o padrão de luxo dos ocidentais. Sendo
assim, os chineses têm consumido mais vinho e cada vez melhores.
Para atender a essa crescente demanda, os vinhos franceses foram
priorizados na importação, tendo em vista o reconhecimento
internacional e sua tradição de qualidade. Outra medida foi iniciar, na
China, o plantio e a produção de vinhos. O lugar escolhido foi a
província de Ningxia na borda do deserto de Gobi. O terroir é bastante
propício. Está protegido pelas montanhas Helan, pelo deserto e capta
água do Rio Amarelo, que é rico em sedimentos. O solo da região é bem
pobre em matéria orgânica e a amplitude térmica bem alta, afinal é um
deserto.

Um diferencial da vitivinicultura chinesa é que os protagonistas são


mulheres, diferentemente do que ocorre em outros lugares do mundo.
As enólogas Ema Gao e Wang “Crazy” Fang são dois grandes destaques
da vitivinicultura chinesa. Os vinhos chineses passaram a ganhar
prêmios internacionais em 2011, contudo, há uma distância grande
entre fazer bons vinhos e vendê-los. Precisa-se abrir o mercado para

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esses produtos. E, nesse quesito, a China têm dificuldades. Em
primeiro lugar, a China não tem tradição como região produtora de
bons vinhos. Mas, não acredito que a tradição seja o fator mais
relevante. Outras regiões com pouca tradição estão conquistando boas
fatias do mercado internacional, como é o caso do Brasil, Nova Zelândia
e África do Sul. O ponto crítico dos chineses é a falta confiança do
consumidor no seu produto. A China tem histórico de insegurança
alimentar e a falsificação de vinhos conta com grandes linhas de
produção.

Temendo essa desconfiança dos consumidores que os produtores de


Languedoc-Roussillon lutam, legitimamente, contra a falsificação dos
vinhos franceses e contra a rotulação de vinhos espanhóis fazendo
referência a símbolos franceses. É nesse ponto que o Estado deve se
fazer presente, fiscalizando o mercado, e não concedendo subsídios ou
impondo barreiras comerciais aos produtos importados.

Na China, como é de se esperar o Estado investe pesado na produção de


vinho, pois essa produção torna úteis terras estéreis e emprega uma
parcela da população empobrecida. Contudo, as ações do governo
chinês são autoritárias. Deslocam população muçulmana
compulsoriamente para os vinhedos e os alocam em seus postos de
trabalho sem verificar se estão qualificados para eles. Dessa forma, os
vinhos chineses não irão conquistar o mercado consumidor ocidental,
cada vez mais engajados no consumo consciente.

Tendo em vista essa desconfiança com relação ao vinho nacional, os


chineses, que já compravam 1/3 da produção de vinho de Languedoc-
Roussillon, agora estão comprando os Châteaus, as adegas e os
vinhedos franceses. Isso, mais uma vez, causa a reação dos
tradicionalistas. Mas, como evitar isso? O capitalismo rege as relações
comerciais globais, e nele, há apenas uma moeda, o dinheiro. Uma
saída para os produtores franceses de Languedoc-Roussillon é valorizar

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seus vinhos, visto que, na venda de uma garrada de vinho por ₤ 5, o
produtor recebe 6% enquanto na venda de uma garrafa por ₤ 20, o
produtor recebe 35%. Esse é o caminho que eles devem rumar.

E uma parcela considerável dos produtores da região seguiu nesse


caminho. Foram introduzidas técnicas modernas na cultura da videira,
observando, sobretudo, o correto espaçamento entre as videiras, podas
regulares, cuidados especiais com a colheita e com o transporte, o
plantio por unidades arbustivas foi aos poucos sendo substituído pelo
sistema de espaldeira, e principalmente, obediência à menor
produtividade em favor da qualidade (baixo rendimento).1

Conjuntamente a essas mudanças, foram implementadas técnicas


modernas de vinificação. A legislação foi modificada, criando sub-
regiões controladas de acordo com a denominação AOC, contrapondo-se
ao consagrado Vin de Pays. Ocorreu também um afluxo de grandes
nomes da vitivinicultura tanto da França como do exterior para a
região.

Diante do exposto, o segundo episódio da segunda temporada do


documentário Rotten traz informações valiosas para o enófilo.
Informações pouco difundidas sobre a produção de vinhos chinesa, bem
como sobre a situação dos produtores de vinho do Sul da França, suas
insatisfações e suas dificuldades.

Julio Fontana


Filósofo, escritor e sócio da Associação Brasileira de Sommeliers do Rio de Janeiro.

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A região do Languedoc-Roussillon sempre priorizou a quantidade em detrimento da
qualidade. E uma cepa foi fundamental para se alcançar esse objetivo: a prolífica
Aramon, medíocre sob o ponto de vista de produção de vinho de qualidade.
Atualmente, os vinhedos da híbrida Aramon estão sendo convertidos em vinhedos de
cepas tradicionais de outras regiões da França que possibilitam a produção de vinhos
de melhor qualidade.

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