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Natureza como terapia

Numa viagem de férias de final de ano, peguei para ler a revista da companhia
aérea que há algum tempo não circulava edições físicas. Apesar da consciência
ambiental, gosto do papel, do toque, do riscar com a lapiseira, do guardar para
ver depois. Pra mim, revistas precisam ser físicas para eu conseguir ler. Assim
como os livros, os jornais, os artigos científicos. Foi essa oportunidade de voltar
a folhear a revista que me levou a lê-la.

Curiosamente, a reportagem que mais me interessou intitulava-se “Será só


preguiça mesmo?” e discute o fato de que “o transtorno de ansiedade social é
mais comum do que se imagina e acomete 13% dos brasileiros”.

À medida em que lia a reportagem, comecei a fazer perguntas mentais como:


⁃ “será que estou dentro desses 13% que essa estatística mostra?”;
⁃ “como chegaram a essa porcentagem tão alta que representa quase 30
milhões de pessoas?”;
⁃ “podemos afirmar que toda essa gente está patologicamente ansiosa como a
reportagem defende?”

Como psicanalista, comecei a questionar aquilo que coloca muitos em um balaio


só. Isso, para a psicanálise, é um absurdo como dizer que 1+1=7. Antes e ao
contrário de qualquer estatística, a psicanálise acredita e se apoia no sujeito do
inconsciente, um a um, para entender o que um sintoma psíquico quer dizer para
um determinado indivíduo.

Nessa mesma reportagem que lia, há uma referência de que “o Brasil já foi
declarado o país mais ansioso do mundo, segundo estimativas da Organização
Mundial de Saúde: 68% de sua população entre 15 e 64 anos sofrem de algum
transtorno de ansiedade e depressão.”

Se formos nos apoiar nesses dados, somos um país doente, muito doente.

A partir dessa leitura, tenho 2 propostas a fazer para olharmos para a ansiedade
e pensarmos em como podemos interpreta-la.

A primeira, é a que possamos questionar estatísticas quando se trata de


questões tão subjetivas como o sentimento de ansiedade, mesmo porque há
uma ansiedade necessária e frutífera que nos impulsiona em direção ao desejo.

Sentir-se ansioso, por muito tempo, pode querer dizer muitas coisas, inclusive a
necessidade de sair do lugar subjetivo onde se está, de se movimentar, de
construir um novo saber sobre si mesmo. É, claramente, uma manifestação
física e corporal - taquicardia, nó na garganta, pensamentos invasivos e
persecutórios, insônia… - de algo que precisa ser elaborado. O que acontece,
muitas vezes, é que, ao primeiro sinal de ansiedade, lá se vai ao médico
procurar o remédio para voltar ao estado inicial. Ansiedade controlada, o sujeito
volta ao seu estado conhecido, sejam horas conectado a mídias sociais, sejam
práticas de compulsão sexual ou alimentar, e por ai vai. Sustentar a ansiedade,
ao contrário, dá trabalho. Trabalho de olhar pra dentro, de se conhecer,
entendendo o que pode parecer que está fazendo bem, mas que, na realidade,
faz um mal danado. Isso exige ter que olhar pra si e se deparar com aquilo que
não é tão agradável. O fato é que não há uma resposta “one fits all”, que sirva
para todos. Isso é o que o remédio faz quando é usado isoladamente. Meses ou
anos mais tarde, a dose precisa ser revista, o medicamento alterado porque não
faz mais efeito.

Não me entendam mal. Não estou demonizando remédios psiquiátricos. Eu


mesmo já os usei. E acredito que em muitos casos são necessários. O que
estou discutindo aqui é a distância entre como um sujeito lida com sua
ansiedade e o que espera como resultado para sua vida. Não adianta esperar
grandes mudanças daquilo que não faz mais sentido - um emprego, uma relação
amorosa, ou a falta deles - a partir de um anestesiamento dos conflitos internos
(leia-se ansiedade como sintoma) a qualquer custo.

Isso é o que observo todos os dias no consultório. A ansiedade precisa ser


interpretada, entendida, transformada. Mesmo aquela que nos paralisa e não
nos permite sair de casa, levantar da cama - e que muitas vezes só dão sinais
de mudança à base de remédios - também está nos comunicando algo que
deveríamos parar para perceber e transformar.

A segunda proposta que tenho a fazer é que, a partir dos dados apresentados
que retratam uma situação tão grave quanto essa, possamos nos questionar,
individualmente, sobre o que interfere na nossa ansiedade e como podemos
tratá-la.

Sem querer generalizar o que deve ser tratado caso a caso, o que percebo nos
atendimentos individuais são manifestações de ansiedade provocados por:
⁃ uso descontrolado de mídias sociais e aplicativos de relacionamento;
⁃ situações profissionais em que houve abuso de qualquer natureza;
⁃ a necessidade de se sentir produtivo e com alta performance
permanentemente;
⁃ pressão descontrolada com relação a prazos que a natureza (inclusive do
próprio corpo) desconhece;
⁃ o medo de se tornar irrelevante profissionalmente (uma demissão, por
exemplo) ou pessoalmente (ex. a saída dos filhos de casa sem o planejamento
de como seria q vida sem eles para cuidar todos os dias);
⁃ e a lista continua…

O fato é que temos motivo de sobra para ficarmos ansiosos. E como discutido
anteriormente, nem toda ansiedade é maléfica. Muitas vezes é dela que
precisamos para o empurrãozinho necessário. Mas não é dessa que estamos
falando agora, mas da que paralisa, ataca, interfere negativamente na nossa
saúde, nas nossas relações, na nossa capacidade criativa ou na nossa relação
com a gente mesmo.

É aqui que entra o meio ambiente. A natureza é uma grande aliada da saúde.
Não só como fonte de matérias primas para os remédios que tomamos quando
estamos ansiosos ou de alimentação de qualidade, mas como ambiente que nos
recebe, nos acolhe, nos faz refletir, nos acalma, nos faz relativizar a nossa
importância e, portanto, o nosso sofrimento.

Não é à toa que nos refugiamos em santuários naturais quando queremos


descansar. Seja o final de semana na praia, as férias em reservas ecológicas, as
longas caminhadas ou viagens de bicicleta pelas montanhas.

A ansiedade, por definição, pode ser entendida como uma relação desajustada
com o tempo. Sentimos ansiosos quando queremos diminuir, parar ou aumentar
a velocidade em que as coisas acontecem. E a natureza nos entrega,
gratuitamente, a oportunidade de ajustar essa relação.

A tecnologia nos trouxe inúmeros benefícios como o simples poder de escrever


esse texto on-line sem precisar passá-lo a limpo. Mas também nos trouxe a
ilusão de que tudo pode ter a sua velocidade. Aí é que nos enganamos. Somos
tecnologia mas também somos natureza. Nossa cabeça aparentemente
acompanha e se adapta aos estímulos tecnológicos mas nosso corpo segue
funcionando como há 10 mil anos atrás.

Sim, as estatísticas são importantes para decisões relacionadas a políticas


sociais e estão apoiadas na ciência. Mas para que você, eu, ou qualquer outra
pessoa do planeta que queira lidar com sua ansiedade, vai precisar lidar consigo
mesmo - com seus sentimentos, suas histórias, seus fantasmas - todos eles
singulares como você mesmo. Nesse caso, arrisco dizer, não com base na
estatística mas na experiência clínica, que dados ajudam menos que a
experiência de entrar numa jornada de fazer as pazes consigo mesmo.

Nada mais apropriado para isso que a natureza. Observar os ciclos de vida das
plantas e animais é se dar conta dos ciclos do próprio corpo. Respeitá-lo é um
primeiro passo para se perceber parte do meio ambiente e lidar com a
ansiedade que nos distancia dele. O respeito à natureza começa no respeito à
própria natureza.

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