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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Lívia Lima Costa


(jornalismo- bacharelado)

Conceituação filosófica por Abbagnano e Aristóteles e a contribuição de Hume para a


“Justiça”

Aracaju
2023
INTRODUÇÃO
A perspectiva de Justiça adotada por Aristóteles no texto “Os modos e objetos da justiça”
define o indivíduo justo como aquele que age em conformidade com a lei, e é imparcial. Para
essa ideia, é necessário que se parta do pressuposto de que todas as leis são justas, e portanto,
segui-las seria agir com justiça. Nessa mesma ótica, deve-se pensar a justiça como uma
virtude relacional, e como toda virtude, exige a aplicabilidade do hábito. Nesse caso, sendo
uma virtude relacional, ou seja, necessária à vida em sociedade, deve ser exercida e
aprimorada à medida em que as sociedades evoluem.
Outra visão de justiça que surge na filosofia, é a justiça como um instrumento. Nessa
perspectiva, o objeto “justiça” seria um instrumento para manutenção do equilíbrio e da
ordem nas relações humanas, sendo restrito a seu uso pragmático. Platão seria o primeiro a
instituir esse conceito e tratar a justiça como mero instrumento de regulação da convivência
humana (ABBAGNANO, 2007) e o filósofo Hume traz em sua obra, referências a esse
pressuposto básico que foi delimitado pelo filósofo clássico. Em uma definição abordada no
dicionário filosófico de Abbagnano, diz-se ainda que justiça é: “(...) a ordem das relações
humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem”. Portanto, é aquilo que se define pela
sua aplicabilidade na vida social.

HUME E A INSTITUIÇÃO DA JUSTIÇA


Os filósofos que estudaram a natureza do justo, e da justiça, propriamente, dão a esta última
dois sentidos possíveis: a justiça como virtude, ou a justiça como método para se alcançar o
equilíbrio e harmonia entre os seres humanos. Para o filósofo Hume, as virtudes, assim como
os vícios, são frutos das paixões humanas, e são por elas justificadas. Nesse emblema, se
institui um problema do conceito humeano de justiça, que problematiza que motivos fariam
uma pessoa agir com justiça? Portanto, onde está a virtude em ser justo? Para responder a
essas perguntas, o filósofo recorre à forma como as sociedades se constituíram e o
funcionamento que é dado a elas.

Para Hume, o ser humano é provido, dentre outras, de duas paixões: o egoísmo e a
generosidade limitada às pessoas próximas. O primeiro seria a observância do homem pelos
seus interesses próprios, e a segunda, a concessão ou preocupação com os interesses apenas
dos seus entes familiares e pessoas de sua afinidade. Segundo ele, essas duas paixões
inviabilizariam a vida em sociedade e a instituição da própria justiça.
Entretanto, tendo a noção da vulnerabilidade dessas duas coisas que o ser humano tem como
“bem” e da necessidade de se preservar aquilo que lhe é caro, o homem percebe que talvez
seja preciso se instituir algum mecanismo que impeça outrem de tomar ou de burlar aquilo
que é do seu interesse e do interesse de seus próximos. É dessa noção que nasce a justiça.
Mas, nessa ótica, seria incorreto classificá-la como virtude, se esta tem como razão a
observância aos interesses pessoais e o egoísmo humano. Como poderia classificar a justiça
como virtude, sem considerar a origem não virtuosa que ela possui se observada dessa forma?
Em um artigo intitulado “David Hume contra os contratualistas de seu tempo” sobre a obra
do filósofo, o autor Gabriel de Almeida discorre como esse seria um dilema da conceituação
de justiça por Hume, o que termina por classificá-la como uma "meia virtude”. E é por essa
razão que Hume trata a justiça como uma ‘virtude artificial’. O artifício, nesse caso, seria o
que permite os homens continuarem agindo com justiça, mesmo em casos que pareça
dispensável essa aplicação, ou seja, a justiça seria o resultado de uma convenção, e seu uso, a
necessidade que temos dela em sociedade.
Outra razão que justificaria a justiça é a busca por estabilidade de posse dos bens. Segundo
Hume, a propriedade foi um dos principais impulsos para que se instituísse a ideia de justiça,
visto que a escassez de recursos possuídos pelas humanidade geraria competição e disputa
pelos membros da sociedade, e a insegurança da posse demandava essa garantia. “A nossa
propriedade nada mais é do que aquele conjunto de bens, cuja posse constante é estabelecida
pelas leis da sociedade, ou seja, pelas leis da justiça.” (HUME, 2005, p. 163-164) Dessa
forma, se explica a paixão que está por trás da justiça como virtude: a paixão está, na
verdade, na consequência que a justiça gera, isto é, a preservação e a manutenção dos seus
bens e próprios interesses.
Como Hume sintetiza em sua obra, a virtude da justiça está nos interesses privados do
homem e no desejo de manter e preservar esses interesses. É, portanto, no resultado da justiça
que o homem encontra a garantia de seus bens e a preservação de seus interesses. É da paixão
humana por essa estabilidade que a justiça pode ser tida como virtude. Como essa paixão gera
satisfação, que é consequentemente mútua entre os indivíduos sociais, e como, segundo
Hume aquilo que gera satisfação, é por definição, uma virtude, a justiça passa a ser, portanto,
uma virtude.

Participamos da dor alheia por simpatia; e, visto que tudo que nas ações
humanas provoca dor, de um ponto de vista geral, é chamado de vício, e
qualquer coisa que produz satisfação é, do mesmo modo, chamado de
virtude, essa é a razão pela qual o senso do bem e do mal moral deriva da
justiça e da injustiça. (HUME, p. 173, 2005)

O PROBLEMA DA ARTIFICIALIDADE DA JUSTIÇA


Durante seu estudo, Hume entrou em certos sofismas quanto à natureza da justiça. Seria ela
uma virtude? E nesse caso, por que seria uma virtude artificial? Justamente porque o
problema que se instituiu no seu estudo é “qual o motivo da justiça?”, que essas questões se
tornaram pertinentes em sua obra. Segundo ele, para determinar uma virtude é preciso que se
faça uma investigação das causas dessa atitude virtuosa. Mas se analisarmos que a justiça não
necessariamente está vinculada a uma atitude isolada, e sim, a um conjunto de normas e às
convenções que se advém destas, pensá-la como algo para além da virtude não seria tão
errôneo. Em Hume, há uma tendência a qualificar as virtudes como mais ou menos nobres, e
a justiça, apesar de ser tratada como uma virtude do artifício, é uma das mais nobres, por se
tratar de uma virtude social. Então, que motivos estariam por trás da justiça, que a tornaram
virtuosa? É aí que o conceito de humanidade se torna importante para a teoria de Hume.
Antes em sua obra, esse sentimento seria traduzido como o interesse próprio do indivíduo
dirigido pelo entendimento. Esse “entendimento” geraria uma satisfação pela preservação da
felicidade alheia apenas como consequência, primeiro, da satisfação pela preservação do
próprio direito, sendo a razão atuante nesse processo de reconhecimento. Entretanto, o
interesse próprio, ainda estaria no cerne desse entendimento.
É ao instituir o conceito de humanidade, que essa contradição caminha para um acordo, pois
o sentimento de humanidade seria essa razão pela qual agimos com justiça e respeitamos a
lei. Hume passa a admitir que exista no cerne da natureza humana, esse sentimento, e que,
quando encontrado em seu estado natural, é ainda um sentimento bruto, germinário, mas que
quando purificado pela razão, passa a ter maior influência e eficiência sob o nosso
comportamento. A razão é como um catalisador das nossas emoções mais primárias, e por
esse motivo que o processo mental torna-se fundamental para que se instituam as normas
indispensáveis à vida em sociedade. Em seu artigo sobre a obra de Hume, mais uma vez, o
autor Gabriel de Almeida reafirma como essa conceituação foi importante para mitigar a
incongruência da teoria humeana sobre a justiça. Ele afirma:
Ora, Hume está, então, corrigindo uma negligência do Tratado, presente
na passagem referida anteriormente, em que afirmou ser o sentimento de
humanidade o interesse próprio modificado, isto é, alterado pelas
circunstâncias exteriores e pela ação do entendimento. [...] Revista a
negligência, vê-se que o sentimento de humanidade é algo tão natural
quanto nossos instintos egoístas, sendo que a virtude da justiça não é mais
apenas uma obrigação de agirmos em nosso próprio interesse. O
sentimento de humanidade é também um princípio geral da natureza
humana, assim como o egoísmo e a benevolência limitada [...] (2007)

Ainda nessa linha de pensamento, Hume admite que essa paixão não exige, então, uma
explicação ou motivação anterior a ela mesma. É, portanto, um princípio básico a ser
reconhecido na natureza humana, onde não precisa ser atribuído a ele uma causa.
Toda essa reformulação em sua teoria, torna possível o entendimento da justiça como uma
virtude, expressamente. Mas, por ela partir de um princípio natural humano, isso não quer
dizer que ela se torne uma virtude natural. Como foi dito, ainda são necessários os trabalhos a
nível simbólico e mental, para que esse sentimento de fato seja expresso como acontece nas
sociedades humanas desenvolvidas.

“em um animal tão sagaz, aquilo que surge necessariamente do exercício de


suas faculdades intelectuais pode com justiça ser considerado natural” [...] é
essa reflexão sobre as vantagens proporcionadas pela vida em sociedade
"que tem um controle mais completo sobre nossos sentimentos" (HUME
apud DE ALMEIDA, 2007).

É importante, por fim, se delimitar o conceito de sociedade que Hume utiliza para suas teses.
Para isso, é preciso, primeiro, que se delimite a noção de natureza humana utilizada por ele.
Para Hume, o ser humano é um ser movido por suas paixões. Como fica explicitamente
descrito nos parágrafos anteriores, somente as paixões movimentam as ações humanas,
mesmo que elas passem por um processo de purificação por meio da razão e do
entendimento. Assim, a justiça não poderia existir, se não satisfizesse, em algum nível, a
essas paixões humanas. Portanto, pode-se dizer que, para o conceito de justiça que ele
constrói, foi necessário que houvesse um acordo, onde as paixões de cada indivíduo fossem,
ou buscassem ser, satisfeitas em alguma medida. Ele institui que as paixões mais violentas,
são também as mais interessadas, mas que, à medida que o homem é civilizado, paixões mais
brandas vão tomando espaço, e impondo aos nossos sentimentos e instintos, o entendimento.
"as paixões calmas, quando confirmadas pela reflexão e apoiadas pela resolução, são capazes
de as dominar (as paixões violentas) nos seus momentos mais furiosos" (HUME In: David
Hume contra os contratualistas de seu tempo).
A sociedade surge, então, como a maneira mais eficiente que o ser humano teve de ter
protegidas suas mais íntimas necessidades e desejos, e a justiça, foi a instituição expressa
desse desejo de se preservar a todas as outras paixões.

CONCLUSÃO
Ficam evidenciadas, portanto, as proposições trabalhadas por Hume em seus estudos sobre
justiça. Para esse filósofo, a instituição da justiça nas sociedades é como o acordo que se
busca alcançar entre todas as outras paixões humanas incontroláveis, e a justiça, como
convenção, pode ser descrita, então, como essa virtude artificial. Artificial, porque se utiliza
de artifícios mentais e tratamento pela razão para ter aplicabilidade, ainda que tenha, em sua
essência, princípios que são naturais aos homens. Sobre as paixões humanas que se busca
acordar, estas podem ser violentas, mas também calmas, quando tratadas pelo entendimento,
e pela razão.

Seu papel é o de influenciar nossa conduta quando suscita uma paixão e nos
informa da existência de um objeto adequado, ou quando revela uma
conexão de causa e efeito para a fixação dos meios para o exercício de
determinada paixão. [...]
Assim, o sentimento de humanidade, como paixão calma, está também apto
a sobrepor-se ao interesse próprio, usualmente composto de paixões
violentas (fome, sede, esperança e medo, amor e ódio, inveja, desejo...),
desde que "confirmado pela reflexão e apoiado pela resolução” [...] É esse o
artifício que permite a prevalência das regras de justiça e a existência da
vida social.” (Hume contra os contratualistas de seu tempo, 2007)
REFERÊNCIAS
HUME, David. As circunstâncias da justiça [Tratado sobre a natureza humana]. In:
MAFFETTONE, Sebastiano; VECA, Salvatore. A idéia de justiça de Platão a Rawls.
Tradução de Karina Jannini. Revisão da tradução Denise Agostinetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 149-175.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada por Alfredo Bosi
e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ALVES, Rogério. O conceito de Justo em Aristóteles. Disponível em:
https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1238340/Rogerio_Pacheco_Alves.pdf
ARISTÓTELES. Os modos e objetos da justiça. In: MAFFETTONE, Sebastiano; VECA,
Salvatore. A idéia de justiça de Platão a Rawls. Tradução de Karina Jannini. Revisão da
tradução Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DE ALMEIDA, Gabriel. David Hume contra os contratualistas de seu tempo. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0100-512X2007000100005

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