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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023

l Figueiredo Dias entende que, apesar de comprovável a anomalia psíquica, não são
claras as conexões objetivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente e
tornam esse facto compreensível. Importa que o juiz decida se, para a socialização
do agente, é preferível que ele cumpra uma pena ou uma medida de segurança, e é
nesse sentido que se deve interpretar o n.º 3. Trata-se de ter em conta esse fator
(sensibilidade do agente conseguir ser influenciável por uma pena ou por uma
medida de segurança) na decisão de saber se o agente é inimputável ou não.

O art. 20.º/4 CP trata da figura da actio libera in causa. São situações em que o estado
de inimputabilidade é culposamente provocado pelo agente, por forma a praticar o
crime nesse estado e beneficiar de uma causa de exclusão da culpa. A propósito desta
figura, há uma querela doutrinal, reconduzida a 2 teses:
1. Modelo da exceção: há aqui uma exceção ao princípio da coincidência temporal
entre imputabilidade e o facto. Neste casos, excecionalmente, a culpa não se reporta
ao momento da prática do facto mas a um momento anterior: quando o agente
provoca o estado de inimputabilidade.
a) Objeções: choca com o princípio da legalidade, na medida em que, no art. 20.º/1
CP se exige que no momento da prática do facto o agente não seja capaz de
avaliar a ilicitude do facto e de se autodeterminar com essa avaliação. A
aceitação de uma culpa prévia viola o princípio da culpa, o que é
constitucionalmente inadmissível.
2. Modelo do tipo: a execução do ilícito típico vai-se iniciar quando o agente se
coloca no estado de inimputabilidade.
a) Objeções: reconduz-se a uma ficção, que é particularmente visível quando o
agente não passa o estádio da tentativa. Esta ficção de imputabilidade é
materialmente inconstitucional, viola o princípio da culpa.

Outro problema que se coloca é distinguir a figura da actio libera in causa do art. 295.º
CP. No art. 20.º/4 CP o agente provoca o estado de embriaguez ou intoxicação para
praticar o ilícito típico e é tratado como um imputável, enquanto que no art. 295.º CP
não há uma pré-ordenação, havendo uma inimputabilidade transitória, que funda a
exclusão da culpa quanto ao ilícito típico praticado.

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Neste caso:

Conforme está descrito, só se podia concluir pela imputabilidade do agente


relativamente ao crime de dano. Já quanto ao primeiro facto, poder-se-ia dizer que o
agente era inimputável.
Em abstrato, atendendo à anomalia psíquica do agente, podia-se concluir pela
inimputabilidade do agente relativamente aos dois factos.

CASO N.º
11

R, que se apoderara de objetos pertença do ofendido S, dirigiu-se a Macedo de


Cavaleiros, onde propôs ao arguido T a aquisição de uma mala de viagem preta,
contendo um berbequim, uma serra elétrica e uma lixadora elétrica, negócio que este
aceitou por 50 €. A pedido de R, T guardou uma “faca de borboleta”. Esta
encontrava-se indocumentada e T nãoera titular de licença de uso e porte de arma.
R e T foram julgados, para além do mais, nos termos das disposições
conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 2, al. e), e 86.º, n.º 1, al. d), todos do
RJAM, alegando ambos “desconhecerem que tal posse constituía a prática de
qualquer crime, tanto mais que se limitaram a detê-la, nunca a usando para a prática
de qualquer delito”.
Sendo juiz (a), que relevância daria a este argumento?

Artigo 2.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro – Regime Jurídico das Armas
e Munições (Detenção de arma proibida e crime cometido com arma) – RJAM
(Definições legais)

Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação,


entende-se por: 1 - Tipos de armas:

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n) «Arma branca» todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma


lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de
comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura
automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou
equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos
os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;

Artigo 3.º do RJAM (Classificação das armas, munições e outros


acessórios)

o) - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C,


D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a
sua utilização.
p) - São armas, munições e acessórios da classe A:
e) As facas de abertura automática ou ponta e mola, estiletes, facas de
borboleta, facas de arremesso, estrelas de lançar ou equiparadas, cardsharps e boxers;

Artigo 86.º do RJAM (Detenção de arma proibida e crime cometido com


arma)

1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em


contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar,
importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título
ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou
transferência, usar ou trouxer consigo: (…)
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura
automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp
ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras
armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser
usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas
brancas constantes na alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não
constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão,
bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º

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7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com


o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os
fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º
do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de Julho, e bem assim as munições de armas de
fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão
até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias; (…)

Trata-se de um erro sobre a ilicitude (art. 17.º CP).


Historicamente, o código penal de 1886 determinava que a ignorância da lei penal ou a
“ilusão sobre a criminalidade do facto” não afastava a responsabilidade penal. Ou seja,
o erro sobre a ilicitude não relevava. Só o erro sobre as circunstâncias de facto excluía
o dolo.
A doutrina alemã defendia a relevância do erro para a doutrina do dolo ou para a
doutrina da culpa, reconhecendo desde muito cedo a existência de dois tipos de erros:
erro sobre a factualidade típica (art. 16.º/1/1ª parte CP), que é um erro intelectual, e
o erro sobre a falta de consciência do ilícito (art. 17.º CP), que é um erro de valoração.

Saber se erro sobre a ilicitude releva ao nível do dolo ou ao nível da culpa é uma das
questões mais controvertidas do direito penal:
1. Teoria do dolo estrita: o cerne dos delitos dolosos está na consciência do ilícito
com que o agente atuou/na oposição consciente ao Direito Penal (dolus malus).
Assim, se o agente não tem consciência de estar a praticar um ilícito, excluir-se-ia o
dolo e poder-se-ia punir pela negligência, se o erro fosse censurável. Esta tese é
insustentável do ponto de vista político-criminal, porque levaria a absolvições em
massa, por força do princípio in dubio pro reo.
2. Teoria do dolo limitada: parte da teoria anterior, mas afirma que também devem
ser punidos a título de dolo todas aquelas hipóteses em que a falta de consciência do
ilícito se fica a dever a conceções do agente, de todo incompatíveis com os princípios
da ordem jurídica sobre o lícito e o ilícito. Ademais, faz uma distinção entre bens
jurídicos essenciais, como a vida e a integridade física, e não essenciais. Assim, se o
agente violasse um bem jurídico essencial, mostrava uma verdadeira contrariedade
ao Direito Penal e seria punido a título de dolo. A crítica que se faz é a determinação

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dos bens jurídicos essenciais.


3. Teoria da culpa estrita: parte-se da afirmação de que a consciência do ilícito não é
elemento constitutivo do dolo, que se esgota no conhecimento e vontade de
realização do tipo objetivo de ilícito. A consciência do ilícito é um elemento essencial
do juízo de culpa, na medida em que quem atua sem esta não pode ser punido, porque
sobre si não se pode formar um juízo de culpa pessoal. Se, todavia, o agente pudesse
ter conhecido o ilícito, mas tenha atuado sem consciência atual do ilícito, é punido
pelo dolo. Exclui-se a punição a título de negligência, só se admitindo a aplicação de
uma pena especialmente atenuada.
4. Teoria da culpa limitada (Doutor Almeida Costa e Doutor Figueiredo Dias): parte
da tese anterior mas introduz uma correção ao nível do erro sobre os elementos
constitutivos/de facto do tipo justificador (erro intelectual), aos quais se aplica o
art. 16.º/2/1ª parte CP e a solução é excluir-se o dolo, passando para a órbita da
negligência, e do tipo incriminador, aos quais se aplica art. 16.º/1/1ª parte CP e a
solução é a mesma, não igualando ao erro sobre a ilicitude.
Relativamente ao erro sobre a ilicitude/de valoração: sendo não censurável, aplica-
se o art. 17.º/1 CP e exclui-se a culpa, sendo censurável, aplica-se o art. 17.º/2 CP e
pune-se pelo crime doloso, podendo a pena ser especialmente atenuada. Por último,
o erro sobre as proibições, previsto no art. 16.º/1/2ª parte CP, que tem a mesma
solução do erro sobre as circunstâncias de facto.
Em qualquer dos casos, o que justifica a exclusão do dolo ou da culpa é a não
contrariedade ou indiferença face ao dever-ser jurídico penal. A diferença está ao
nível do juízo que se faz: se se puder fazer esse juízo ao nível do homem médio,
exclui-se o dolo, mas, se for apenas ao nível do concreto agente, exclui-se a culpa.

Neste caso estávamos perante um erro sobre a ilicitude. Teríamos que fazer a
avaliação se esse erro era ou não censurável, utilizando três critérios:
l Critério da vencibilidade ou evitabilidade do erro: a falta de consciência do ilícito
só não seria censurável se o erro fosse invencível ou evitável. É um critério
impraticável;
l Critério da tensão da consciência ética: o erro só não é censurável se o agente não
pode ativar a sua consciência ética. Também é impraticável e só vale para juízos
morais;

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l Critério da retitude da consciência idónea (Figueiredo Dias): a falta de consciência


do ilícito só não é censurável quando o erro da consciência ética não se fundamente
numa atitude interna desvaliosa do agente face aos valores jurídico-penais. A
personalidade que erra sobre a valoração jurídico-penal mantém-se
substancialmente responsável, pelo que deve arcar com a culpa do ilícito típico
praticado.
Pode, todavia, acontecer que, apesar do erro em valoração que cometeu, a
personalidade do agente venha a revelar-se essencialmente conformada com
aquele tipo de atitude interna que é exigido pela ordem jurídica. Propõe-se que se
avalie a personalidade do agente e, apesar do erro que cometeu, que a
personalidade ainda se conforme com o que é exigido pela ordem jurídica.
Há casos em que é fácil afirmar, em que a própria qualidade da personalidade
desvaliosa que vale como juízo de censura sobre a falta de consciência do ilícito.
Figueiredo Dias entende que uma falta de consciência do ilícito não censurável só
pode verificar-se em situações em que a ilicitude é discutível/controvertida.

Neste caso:

R não tinha uma personalidade conforme à consciência ética, já tinha cometido um


crime de furto. A falta de consciência é censurável e, acerca da consciência do ilícito,
não há propriamente uma contraversão na consciência social acerca deste tipo de crime.
O erro sobre a ilicitude é censurável, pelo que poderiam ser punidos pelo crime
cometido, podendo a pena ser especialmente atenuada.

Ainda referente ao caso nº 11:


Erro sobre a ilicitude e distinção para o erro sobre as proibições:
1. Erro sobre as proibições (previsto no art.º 16.º, n.º 1, 2.ª parte CP):
O erro sobre as proibições incide geralmente sobre normas de Direito Penal secundário,
normas de carácter técnico ou normas que se encontram em constante mutação, ou que
são de recente formação. Todas estas normas incriminadoras têm em comum não
estarem ainda enraizadas no conhecimento do Homem médio ou na consciência ética
da comunidade (ex.: normas incriminadoras do Código das Sociedades Comerciais).

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Do ponto de vista dogmático, contende com atuações sem ressonância ético-social.


Respeitam a constelações da vida que não convocam, aos olhos do Homem médio, a
representação da correspondente anti-juridicidade da conduta, de tal forma que o
conhecimento, representação e vontade de realização do tipo incriminador não exprime
uma atitude de contrariedade ou de indiferença face ao dever-ser jurídico-penal. O
preenchimento do tipo objetivo não convoca uma oposição frontal ao Direito.
Faltando o conhecimento efetivo da proibição legal, apenas é possível afirmar o ilícito
negligente e não o ilícito doloso.

2. Erro sobre a ilicitude (previsto no art.º 17.º CP)


Corresponde já a proibições enraizadas na consciência axiológica da sociedade, ou seja,
o conhecimento daquelas incriminações, que integram o Direito Penal clássico, resulta
da convivência social, do processo de formação do indivíduo em sociedade. São
proibições que de todos são conhecidas e que são aprendidas pela convivência social.
Isto significa que no erro sobre a ilicitude o conhecimento e a representação do tipo
objetivo suscita de imediato ao Homem médio a representação da anti-juridicidade da
conduta, pelo que se o tipo for preenchido já se revela uma atitude de contrariedade ou
de indiferença face ao dever-ser jurídico-penal. Portanto, a ressonância axiológica do
ilícito é de tal forma elevada que, do ponto de vista do Homem médio, o
desconhecimento do ilícito representa já uma oposição frontal ao Direito, mostrando
que o agente está verdadeiramente divorciado do quadro axiológico normal.
Daí que o erro sobre a ilicitude não exclua a ilicitude ou o dolo. Pode acontecer que, ao
nível da culpa (concreto agente), existam determinados elementos subjetivos que
afastem a censurabilidade do comportamento, permitindo a exclusão da culpa (ex.: o
Tarzan, por não ter crescido em sociedade, ao ser inserido nesta, não terá consciência
da ilicitude do ato de furto).

Conclusão: A grande diferença está na natureza das proibições, além das


consequências ligadas a cada um dos erros.

CASO N.º 12

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Em audiência de julgamento deram-se como provados os seguintes factos:


1 – No dia 6/5/2002, cerca das 21h 30m, A encontrava-se acompanhado de
B, com mais quatro indivíduos seus amigos.
2 – O arguido encontrava-se munido de uma espingarda caçadeira, que
ocultava sob o casaco que vestia.
3 – O grupo onde se encontrava o arguido decidiu ir a casa deste, a pedido
do mesmo para deixar a referida arma caçadeira.
4 – A determinada altura, A, a título de brincadeira, empunhou aquela
caçadeira e visou o B, que no momento se encontrava de frente para si, a uma
distância de cerca de dois metros.
5 – O B disse-lhe para estar quieto, pois não gostava daquelas brincadeiras,
contudo o arguido acabou por disparar a arma, atingindo o B.
6 – Em consequência, B veio a falecer.
Pronuncie-se, fundadamente, quanto à responsabilidade jurídico-penal de A.

O tipo de ilícito que a conduta de A preenche é o homicídio (art. 131.º CP, em


princípio).
Na perspetiva do Doutor Almeida Costa, o dolo do tipo não se esgota no dolo natural,
que corresponde ao tipo subjetivo. O dolo é condição necessária para a afirmação do
dolo do tipo, mas não é condição única ou suficiente. Este defende a tese do ilícito
pessoal, em que argumenta que o ilícito doloso corresponde a uma posição de
contrariedade ou indiferença face ao dever-ser jurídico-penal.
Ao nível do tipo de ilícito, além do dolo natural (conhecimento e vontade de realização
do tipo), ainda é preciso avaliar se, de um ponto de vista objetivo, atendendo ao critério
do Homem médio, que valora a conduta do agente como conteúdo que ela adquire como
ato humano em geral, o facto ilícito-típico revela ou não essa contrariedade ou
indiferença face ao dever-ser jurídico-penal:
l Se revelar essa atitude, estaremos perante um ilícito doloso:
l Se revelar uma atitude de leviandade ou de descuido face ao dever-ser jurídico-
penal estaremos perante um ilícito negligente.

O elemento volitivo traduz-se na vontade dirigida à realização do tipo objetivo de


ilícito. Essa vontade pode ter 3 matrizes: dolo direto (art. 14.º/1 CP), dolo necessário

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(art. 14.º/2 CP) ou dolo eventual (art. 14.º/3 CP).


No caso do dolo eventual, o crime é consequência da conduta, mas a sua verificação
surge com um grau de probabilidade menor. O preenchimento do tipo de crime é apenas
possível, mas não provável ou necessário. Quer no dolo eventual quer na negligência
consciente, o agente representa o ilícito típico, ou seja, sabe que o ilícito típico pode
ocorrer.
A diferença entre um e outro está no grau de conformação face a essa possibilidade:
l Se o agente se conforma com essa possibilidade, ou seja, toma a sério o risco da
possível lesão de bens jurídicos e, ponderando essa possibilidade de lesão, decidir
na mesma pela realização do facto, estaremos perante dolo eventual;
l Se o agente representa a realização do ilícito típico como possível, mas acredita
que o ilícito não se verificará, estamos perante uma hipótese de negligência
consciente (art. 15.º/a) CP).

A não atuou com dolo direto, a finalidade primeira da sua conduta não era matar B.
Também não atuou com dolo necessário nem dolo eventual, na medida em que não há
propriamente uma conformação com o resultado. A não ponderou seriamente a
verificação do risco e mesmo assim decidiu avançar, não havendo uma atitude interna
de conformação com o resultado.
Não estando preenchido o tipo subjetivo, neste caso, não havendo dolo (elemento
volitivo), não se pode punir A pelo crime de homicídio previsto no art. 131.º CP.
Não se trata de um ilícito doloso, mas a verdade é que o dolo não é a única forma típica
de aparecimento do crime.
Poderemos estar, nesta hipótese, perante um crime negligente de ação, mais
concretamente, o homicídio negligente do art. 137.º CP.

O facto negligente não é simplesmente uma forma menos grave de aparecimento do


respetivo facto doloso. No crime doloso há uma convergência entre o plano objetivo e
subjetivo: o agente representa e quer uma dada conduta objetiva e efetivamente realiza-
a. Diversamente, no crime negligente, isso não acontece: o agente até pode representar
o facto ilícito, mas não o quer, sendo que esta representação do facto ilícito nem sequer
é necessária (negligência inconsciente).
De acordo com a doutrina maioritária, o fundamento material da negligência
corresponde à violação do dever objetivo de cuidado, que é o conteúdo do tipo de

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ilícito negligente.
Pelo simples facto de vivermos em sociedade, cada um de nós tem a obrigação de
manter uma certa tensão psicológica de modo a ter, em todos os momentos da sua vida,
um grau de atenção suficiente para antecipar as consequências dos seus atos e deste
modo poder abster-se das condutas que levarão à lesão ou à colocação em perigo de
bens jurídicos.
De modo a evitar a lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos, o legislador só pode
exigir que:
l Os indivíduos se abstenham da prática consciente e voluntária de condutas dolosas;
l Os indivíduos mantenham ao longo da sua vida, em função das caraterísticas
peculiares de cada situação, um determinado grau de atenção para prever as
consequências dos seus atos, a fim de que não venham a provocar lesões em bens
jurídicos, sem o pretenderem (crime negligente).

Nos termos do art. 13.º CP, a punição por negligência é excecional, só sendo possível
quando estão preenchidos cumulativamente dois requisitos:
l Requisito formal, que se traduz na previsão legal expressa que o tipo também é
punível a título de negligência;
l Requisito material, que se traduz na violação de um dever objetivo de cuidado.

Seguindo a conceção do ilícito pessoal de Almeida Costa, que tem também reflexos nos
crimes negligentes: do ponto de vista objetivo, tem de haver uma atitude de leviandade
e de descuido face ao dever-ser jurídico-penal, avaliada à luz do critério do Homem
médio.
O ilícito negligente consiste na realização de um comportamento que se mostre evitável,
de acordo com a atenção e a diligência que se espera dos intervenientes na vida
comunitária e, por conseguinte, contendo a infração de um dever objetivo de cuidado,
definido em função do padrão do Homem médio.

De acordo com a doutrina do duplo escalão, que é maioritária e seguida


inclusivamente por Figueiredo Dias, esta descreve a realidade da avaliação da
negligência como uma unidade de sentido subjetivo-objetivo, tanto ao nível do ilícito
como da culpa.
Do ponto de vista do ilícito, o tipo de ilícito do facto negligente considera-se preenchido

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por um comportamento sempre que este seja discrepante do comportamento que é


exigível ao Homem médio naquela situação para evitar a lesão ou a colocação em
perigo do bem jurídico, e, portanto, assenta na violação de um dever de cuidado e na
previsibilidade e possibilidade de evitar o resultado.
Ao nível do ilícito, essa avaliação faz-se de um prisma objetivo (padrão do Homem
médio). O dever de cuidado do Homem médio representa a exigência mínima de tensão
psicológica que o Direito coloca a qualquer agente (critério minimalista).
No âmbito do tipo de culpa negligente, o tipo de culpa negligente vai-se considerar
preenchido quando àquele concreto agente era exigível um dever de cuidado e a
previsão ou o evitar da lesão ou colocação em perigo do bem jurídico.

Estrutura dogmática dos crimes negligentes:

1. Ação negligente - adota-se um conceito personalista de ação (ação como


exteriorização de uma intencionalidade de sentido, ou seja, toda a manifestação da
vida consciente do indivíduo), que exclui os factos naturais, os factos praticados em
estado de inconsciência, os atos reflexos, os atos não humanos e os atos praticados
sob coação absoluta;

2. Tipo de ilícito negligente


a) Tipo objetivo - é composto pelo agente, pela conduta e pelo bem jurídico.
Traduz-se na violação do dever objetivo de cuidado que impende sobre o
agente nas vestes do Homem médio ou da pessoa social. Essa violação
corresponde ao desvalor da ação, ao passo que o desvalor do resultado se
traduz na produção, causação e na previsibilidade do evento típico e,
excecionalmente, na própria realização integral do tipo.
A conduta é avaliada sobre o prisma do Homem médio (critério do Homem
médio da posição socio-existencial do agente, ou seja, que tem as mesmas
qualidades físicas e intelectuais do concreto agente, a que se soma aquilo que
o Doutor Almeida Costa designa como as capacidades instrumentais
operatórias do concreto agente que estejam acima da média). Quanto às
capacidades abaixo da média, elas não excluem nem o ilícito nem a tipicidade,
na medida em que o critério do Homem médio já é, por si só, o critério mínimo
(abaixo deste fica a inimputabilidade com a eventual exclusão da culpa).

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Relativamente à problemática da imputação objetiva do resultado à conduta,


também se coloca no domínio dos crimes negligentes. A doutrina maioritária
entende que os critérios serão os mesmos que se colocam nos crimes dolosos
(teoria da equivalência das condições, teoria da adequação e teoria da conexão
do risco, com os respetivos corretores: princípio do risco permitido, princípio
da diminuição do risco, princípio do comportamento lícito alternativo e
princípio do âmbito ou campo de proteção da norma). O Doutor Almeida Costa
tem uma posição divergente, na medida em que entende que os critérios
aplicados aos crimes dolosos não se podem verificar relativamente aos crimes
negligentes.

Quais são as fontes do dever de cuidado?


l Fontes normativas - primeiro elemento concretizador dos deveres de
cuidado:
n Normas de conduta;
n Normas profissionais e de tráfego (correntes em certas atividades,
como as leges artis na medicina);
n Costumes profissionais comuns ao profissional médio;
n Na falta de todos estes, dever de cuidado imposto pelo concreto
comportamento socialmente adequado.

• Negligência na aceitação ou na assunção - corresponde àquelas


situações em que o agente assume ou aceita responsabilidades para as
quais não está preparado, ou porque lhe faltam as condições pessoais
ou porque lhe faltam os conhecimentos, ou porque lhe falta o treino
necessário ao correto desempenho de atividades perigosas.
Se a negligência referida ao momento do facto não pode ser
comprovada, ela é afirmada por referência ao momento em que o
agente aceitou ou assumiu o desempenho de atividades sabendo ou
sendo-lhe cognoscível que não estava preparado. Exige-se aqui que o
agente, antes de aceitar determinadas responsabilidades, tem de se
informar convenientemente dos riscos. Se não conseguir alcançar essa
informação ou esclarecimentos necessários, deve omitir a conduta

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projetada.

• Princípio da confiança ou da autorresponsabilização de terceiro -


exclui-se do dever de cuidado a necessidade de prever comportamentos
ilícitos que terceiros possam adotar, ou seja, quem se comporta de
acordo com o dever de cuidado, deve poder confiar que os outros
também o farão. Quando houver fundadas e concretas razões para
pensar ou dever pensar que os outros não vão cumprir o seu dever de
cuidado e o resultado ilícito se irá produzir, cessa o princípio da
confiança.
Este princípio tem o seu fundamento material no princípio da
autorresponsabilização de terceiro: como regra geral, não se responde
pela falta de cuidado alheio. O Direito autoriza que se confie que os
outros cumprirão os seus deveres de cuidado.
Todavia, o pensamento tem de ser temperado sempre que for claro,
evidente ou razoavelmente de supor para o agente, numa situação
concreta, que o terceiro não se comportará de uma forma responsável
(assume especial importância em atividades que envolvem a
fiscalização de outros).
Tem particular interesse no âmbito da divisão de tarefas em equipa,
nomeadamente nas equipas médicas. Qualquer membro de uma equipa
pode ou deve poder contar que os restantes membros observarão os
seus deveres de cuidado. Todavia, se for percetível ou previsível ou se
efetivamente se cometerem erros, eles devem ser impedidos ou
corrigidos pelos colegas de equipa, principalmente o chefe de equipa
(cenário em que cessa o princípio da confiança).
O princípio da confiança vale ainda e, finalmente, para dizer que o
agente pode contar que os terceiros não cometerão factos dolosos,
aproveitando-se de condutas negligentes do agente. Quando a própria
conduta negligente tiver criado um perigo intolerável e possibilidade
próxima ao da atuação dolosa de um terceiro, cessa também o princípio
da confiança.

b) Tipo subjetivo

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Alguma doutrina entende que nos crimes negligentes não há lugar a tipo
subjetivo. Roxin defende que existe, distinguindo entre negligência consciente
e inconsciente (art. 15.º/a) e b) CP, respetivamente). No âmbito da negligência
consciente, o agente representa a realização do ilícito típico como possível,
mas confia que o ilícito não se verificará. No âmbito da negligência
inconsciente, o agente não chega sequer a representar a realização do ilícito
típico.
Para relembrar, o tipo subjetivo é integrado ou pela representação imperfeita
ou pela não representação da realização do tipo objetivo.

Há ainda uma distinção feita na lei entre negligência simples e negligência


grosseira. A negligência grosseira corresponde a uma grave violação do dever
objetivo de cuidado, e essa gravidade apura-se, ou em função do carácter
particularmente perigoso do facto, ou em função da frequência da verificação
do resultado, ou em função do especial valor dos bens jurídicos em causa, ou
em função de uma particular atitude de leviandade ou descuido por parte do
agente perante o dever-ser jurídico-penal.

3. Culpa - a culpa negligente traduz-se no juízo de censura dirigido ao concreto


agente e tem como conteúdo material uma atitude de leviandade ou descuido face ao
dever-ser penal. Para haver culpa, o agente tem de se encontrar em condições
pessoais de poder prever ou evitar a lesão ou a colocação em perigo dos bens
jurídicos, tem que poder ser possível exigir ao agente que observe os seus deveres de
cuidado.

Neste caso:
Interessa-nos ver se houve violação de um dever objetivo de cuidado e se é possível
imputar o resultado à conduta:
l Relativamente à imputação objetiva do resultado à conduta, seria possível fazê-lo
logo no primeiro patamar – teoria da equivalência das condições.
l No que toca às fontes do dever objetivo de cuidado, poderia ser extraído
diretamente do art. 131.º CP (fonte normativa) ou, mais especificamente, no âmbito
da legislação que regula o uso e porte de arma.
l Do prisma objetivo, tendo em conta o critério do Homem médio, a conduta de A

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revela uma atitude de leviandade ou descuido perante o dever-ser penal.


Poder-se-á dizer então que o tipo objetivo do homicídio negligente estava preenchido.

Quanto ao tipo subjetivo, estaríamos perante um caso de negligência consciente, dado


que A representa a realização do ilícito típico como possível, mas confia que o ilícito
não se verificará (mediante justificação, e atendendo a alguma especificação do
enunciado, poderia aceitar-se negligência inconsciente).
Seria ainda negligência grosseira devido ao particular valor do bem jurídico em causa
ou a frequência com que o resultado se produz.

Quanto à culpa, não há nenhum elemento do concreto agente que permita excluir a
culpa - é possível fazer-se um juízo de censura que tem como conteúdo material a
atitude de leviandade e descuido face ao dever-ser jurídico-penal.
Assim, punir-se-ia A pelo homicídio negligente (art. 137.º/2 CP).

CASO N.º 13

F circulava a 70 km/h num local onde somente poderia circular a 50 km/h.


Em virtude da velocidade, não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia no sinal
vermelho do semáforo colocado num cruzamento. Cerca de 20 metros à frente,
atravessava a estrada o peão G, fora da passadeira, tendo sido colhido pelo veículo,
daí resultando a sua morte.
F foi julgado e condenado pelo crime p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1 e 2, do CP.
Inconformado, F interpôs recurso, alegando que: a) actuara com negligência
simples e não com negligência grosseira; b) a vítima contribuíra também para o
acidente, ao atravessar a estrada fora do local adequado.
Como apreciaria o recurso?

Relativamente ao primeiro argumento:


Não havendo razão para acreditar que o agente representou a possibilidade de
homicídio e confiou que não se ia verificar, resulta do enunciado que se trata de
negligência inconsciente.

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O facto de se tratar do bem jurídico vida e a frequência com que os peões passam fora
da passadeira determinam que se trate aqui de negligência grosseira.

Relativamente ao segundo argumento:

No segundo argumento, F invoca o princípio da confiança. De acordo com a


jurisprudência maioritária, o agente só pode aproveitar-se do princípio da confiança se
atuar de acordo com o seu dever objetivo de cuidado. F viola o seu dever objetivo de
cuidado, pelo que não pode aproveitar-se do princípio da confiança para invocar que
um terceiro também não agiu de acordo com o seu próprio dever de cuidado.
F poderia efetivamente ser condenado pelo homicídio negligente por negligência
grosseira.

CASO N.º 14

D circulava no seu automóvel dentro dos limites de velocidade estabelecidos


para o local que atravessava. Num cruzamento em que tinha prioridade de
passagem, D não diminuiu a velocidade do seu veículo. Aí surgiu E, da sua
esquerda, que nem sequer afrouxou a marcha do seu potente Ferrari. Em
consequência, os dois automóveis colidiram, vindo E a perecer devido à violência
do embate.

a) O M.P., no final do inquérito entretanto aberto, deduziu acusação contra D,


imputando-lhe a prática do crime de homicídio negligente, em virtude do facto de,
dada a velocidade em que E seguia, ser totalmente perceptível que este último
não tinha condições para imobilizar o seu veículo em segurança, o que deveria ter
motivado um afrouxamento ou mesmo paragem do automóvel conduzido por D.
Pronuncie-se sobre o conteúdo do despacho de acusação.

A acusação estaria correta - D poderia ser punido pelo crime de homicídio


negligente. Este tinha condições para perceber que, mesmo atuando ao abrigo do
princípio da confiança, o outro indivíduo (E) não iria atuar corretamente e que não pode

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confiar, configurando uma situação em que cessaria o princípio da confiança.

Sempre que seja evidente que os outros cidadãos não vão cumprir o princípio da
confiança, cessa esse princípio e é exigido ao agente que vai atuar a coberto do
princípio, que cesse a sua conduta. Se o agente não cessar, a morte pode ser imputada
a título de negligência (doutrina maioritária, incluindo Figueiredo Dias), havendo uma
limitação ao princípio da confiança, em conjugação com a ideia de que o Direito Penal
deve proteger bens jurídicos dignos de tutela penal.

O professor Lamas Leite discorda, dizendo que não parece razoável que se impute a
morte do infrator a quem cumpriu todos os deveres objetivos de cuidado. O agente que
atuou a coberto do princípio da confiança não incumpriu nenhum dever objetivo de
cuidado, pelo que não deveria existir responsabilidade penal (apesar de poder haver
responsabilidade civil).

b) E se D, apesar de circular dentro dos limites de velocidade estabelecidos,


conduzisse com uma taxa de alcoolemia de 1,3 g/l, a solução seria a mesma
(cf. art. 292.º, n.º 1, do CP)? Justifique.

O problema coloca-se no âmbito da imputação objetiva, pelo que se deve recordar a


matéria já estudada aquando do tipo objetivo dos crimes dolosos de ação (teoria da
equivalência das condições, teoria da adequação e teoria da conexão do risco, com
os respetivos corretores: princípio da diminuição do risco, princípio do risco
permitido, princípio do âmbito de proteção da norma e princípio do comportamento
lícito alternativo).

Neste caso:
Segundo a teoria da conexão do risco, o resultado só pode ser imputado à conduta
se esta tiver criado ou aumentado um risco proibido para o bem jurídico e se esse
risco se tiver materializado no resultado típico. O perigo em que se concretizou o
resultado tem de ser um daqueles que corresponde o fim de proteção da norma de
cuidado.
D, circulando em estado de embriaguez, segue dentro do risco permitido no que toca
à cedência de prioridade no cruzamento e no respeito pelos limites de velocidade. A

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condução em estado de embriaguez aumenta o tempo de reação do condutor, pelo


que faria com que D não fosse capaz de afrouxar ou parar o seu veículo percebendo
que o outro veículo circulava com excesso de velocidade.
O risco materializou-se no resultado típico e, portanto, a solução seria a mesma
em relação à alínea anterior.

O Doutor Almeida Costa responderia de forma diferente, argumentando que, neste


caso, a norma de cuidado era observar as regras da prioridade e circular dentro dos
limites de velocidade estabelecidos. Se o agente cumprisse com estes dois requisitos,
estaria a atuar dentro do risco permitido, sendo irrelevante a atuação em estado de
embriaguez, dado que o resultado se iria produzir de qualquer forma. Por força do
âmbito de proteção da norma, o resultado não se imputaria à conduta.
Na hipótese anterior, também resolve de forma diferente, não punindo o agente,
entendendo que o princípio da confiança opera. Os critérios utilizados por este autor
no âmbito da imputação objetiva são diferentes dos estudados em aula.

CASO N.º 15

Em meados de Agosto celebra-se na aldeia X a festa anual em honra do santo


local.F, presidente da Junta de Freguesia, tem por hábito disparar algumas balas de
borracha para o ar, no meio da multidão, como sinal de júbilo.
Na festa de 2001, G, conhecido “carteirista”, decidiu deslocar-se à aldeia, a fim de,
aproveitando-se da normal confusão da festa, furtar uma série de carteiras.
Enquanto F disparava as ditas balas, G aproximou-se dele, sem que o Presidente da
Junta disso se apercebesse. Estava já com a mão na carteira de F, quando uma bala
disparada por este fez ricochete num lampião e atingiu G, o qual sofreu leves
escoriações.
Em Tribunal, F defendeu ter agido em legítima defesa. Terá razão? Explicite a sua
resposta.

F, acusado de um crime de ofensa à integridade física, invoca um tipo justificador.


Este caso convoca a matéria dos tipos justificadores em sede de crimes negligentes

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de ação.
A doutrina maioritária, nomeadamente Figueiredo Dias, entende que a maioria dos
tipos justificadores estudados a propósito dos crimes dolosos de ação, também opera
para crimes negligentes de ação.
Mais controvertida é a questão de saber com que extensão e com que requisitos essas
causas de justificação se vão aplicar à negligência. Nem todos os autores defendem
que exista uma perfeita simetria de requisitos e de extensão entre os tipos
justificadores dos crimes dolosos e os dos crimes negligentes. Parece ser de aceitar
que, na negligência, algumas causas de justificação tenham um âmbito mais lato do
que para os crimes dolosos.
Outra questão controvertida é a de saber se, nas causas justificativas dos factos
negligentes se exige ou não o elemento subjetivo do tipo justificador, ou seja, que o
agente conheça e represente que se encontra a atuar a coberto de um tipo justificador.
Prescindindo deste elemento, Figueiredo Dias e alguma doutrina alemã aceitam que
se apliquem os tipos justificadores em sede dos crimes negligentes.

Analisando os tipos justificadores em concreto:


1. Legítima Defesa

A ação de defesa pode também, em teoria, ser punida a título negligente. Geralmente,
a ação de defesa é representada a título de dolo, ou seja, em situações que o agente
conhece e representa que está a atuar a coberto de um tipo justificador.
No cenário da negligência, admite-se o funcionamento da legítima defesa em tudo
quanto disser respeito à ação necessária de defesa perante o agressor, mas apenas nos
casos em que se provar que o facto doloso correspondente também estaria a coberto
da legítima defesa.
No fundo, tem de se fazer um paralelo: há uma defesa negligente e ela poderá ser
justificada com legítima defesa se a correspondente defesa dolosa também estivesse a
coberto da legítima defesa.
Da mesma forma, considera-se justificada pela legítima defesa, quando a conduta
resulta em situações ou consequências não previstas ou não queridas, desde que as
consequências pertençam aos riscos típicos do meio de defesa empregue.

2. Estado de Necessidade Justificante

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Valem exatamente as mesmas considerações que vimos para a legítima defesa. Uma
ação de salvamento em violação das normas de cuidado considerar-se-á justificada se
se provar que a ação de salvamento dolosa correspondente também estaria justificada.
Idem para as consequências indesejadas da ação de salvamento.

3. Consentimento presumido

O consentimento presumido, no âmbito da negligência, pode ocorrer sobretudo no


âmbito das intervenções médicas em violação das leges artis.

Podem-se colocar mais tipos justificadores, mas apenas estes relevam para exame.
Nem toda a doutrina aceita que os tipos justificadores funcionem no âmbito da
negligência, nomeadamente o Doutor Almeida Costa. O resultado prático dessa
posição é igual àqueles que aceitem o funcionamento dos tipos justificadores - a
conduta estaria justificada, excluía-se o ilícito e não há punição.
Para quem não aceita o funcionamento dos tipos justificadores, entende que aqui faz
sentido aplicar, por analogia, aquela solução que a doutrina maioritária defende para
as situações em que falha o elemento subjetivo (art. 38.º/4 CP) no âmbito do tipo
justificador. Acontece que, na negligência, a tentativa não é punível, pelo que o
resultado prático será, igualmente, a exclusão da pena.

Neste caso:
Seguindo a posição de Figueiredo Dias, iremos prescindir do elemento subjetivo e
teremos que, nesta hipótese, questionar se, caso F tivesse tido a intenção de disparar
contra G, essa conduta dolosa estaria ainda coberta pela legítima defesa.
Ora, caso F tivesse tido a intenção de disparar contra G, estaria efetivamente coberto
pela legítima defesa se tivesse praticado a ação de defesa com dolo.
Seguindo a orientação do Doutor Almeida Costa, iríamos concluir pela não verificação
do elemento subjetivo do tipo justificador, aplicaríamos o regime do art. 38.º/4, mas,
como a tentativa não é punida pela negligência, o agente não seria punido.

CASO N.º 16

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Na madrugada de 2/4/1998, quando B regressava a casa no seu automóvel, foi


surpreendida por C, toxicodependente, que a interceptou e, recorrendo a um
sedativo que lhe injetou, a colocou em estado de inconsciência.
Num local ali perto, violou B, abandonando-a de seguida. Passados 8 meses, em
análises de rotina, à vítima foi diagnosticada o VIH, tendo-se concluído, durante
o inquérito, que C era portador do vírus e que tinha sido em virtude da violação
que B passou a ser seropositiva.
a) Em julgamento, o arguido defendeu-se alegando que, apesar de saber que
era portador do vírus, nunca representou a possibilidade de contaminar a vítima.
Quid iuris?

Temos uma hipótese em que há uma violação e o violador, portador do VIH,


transmitiu a B o vírus. A conduta preenche o tipo de ilícito da violação (164.º/2 CP).
O facto de C ser portador do VIH tem alguma relevância do ponto de vista jurídico-
criminal?
Sim, de acordo com o art. 177.º CP, que prevê uma série de circunstâncias que
agravam as molduras penais do crime base. Neste caso, o facto de o agente ser
portador de uma doença sexualmente transmissível agrava a moldura penal, no seu
limite máximo e mínimo, em um terço (art. 177.º/3 CP).

Estamos perante um crime doloso ou negligente? O crime fundamental é um crime


doloso, dado que o sentido da conduta do C é de oposição frontal ao Direito.

Este caso prático remete-nos para a matéria dos crimes agravados pelo resultado,
prevista no art. 18.º CP. De acordo com este artigo, são crimes agravados pelo
resultado aqueles tipos cuja pena aplicada é agravada em função da produção de um
resultado que deriva da realização do tipo fundamental. Isto corresponde, na maior
parte dos casos, a um exercício interpretativo, para averiguar se há ou não um
resultado que decorra do crime fundamental, distinguindo os crimes qualificados e
os crimes agravados pelo resultado. No art. 177.º/1/a), por exemplo, trata-se apenas
de uma qualificante do crime, dado não haver resultado autónomo, mas apenas uma

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especial relação entre o agente e a vítima.


Só há um agravamento pelo resultado se ele estiver previsto expressamente na lei,
mas a verdade é que na própria só constam alusões ao agravamento, pelo que é
necessário saber se se convoca o regime do art. 18.º CP.

Do ponto de vista histórico, os crimes agravados pelo resultado têm origem no


Direito Canónico. Aplicando o vocábulo versari in re illicita, quem pratica um ilícito
responde pelas suas consequências, mesmo por aquelas que foram casuais, que não
eram queridas. Porém, não se pode considerar este aforismo compatível com o
princípio da culpa.
Durante a vigência do anterior Código Penal, introduziu-se a figura dos crimes
preterintencionais, cuja verificação dependia de quatro requisitos:
l Ocorrência de um crime fundamental doloso (por exemplo, exposição ao
abandono - art. 138.º CP);
l Ocorrência de um elemento agravante não doloso que resultasse do crime
fundamental (tomando o exemplo dado, o resultado morte);
l Esse elemento agravante tinha de ser imputado ao agente a título de negligência
grosseira e consciente
l Princípio da legalidade ou numerus clausus - só havia crime preterintencional
onde a lei expressamente previsse.

Atualmente, esta figura desapareceu e foi substituída, no art. 18.º CP, pelos crimes
agravados pelo resultado, com requisitos menos exigentes. Há uma mudança de
paradigma: nos crimes preterintencionais, a moldura penal que resultava desse
regime era sempre superior àquela que resultaria do concurso de crimes entre o crime
fundamental e o elemento agravante. Atualmente entende-se que, visto que o
resultado não é praticado com dolo, pelo que o juízo de censura é menor.
Mantêm-se como quatro os requisitos dos crimes agravados pelo resultado:
l Ocorrência de um crime fundamental, que já não precisa de ser doloso (pode ser
negligente, como as ofensas à integridade física por negligência - art. 148.º/3
CP);
l Há que se verificar um elemento agravante, que tanto pode corresponder a um
ilícito típico autónomo como pode corresponder a um simples estado, a um
facto, a uma situação que em si mesma não é criminosa (ex.: tomando o exemplo

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dado, o resultado gravidez);


l O resultado tem de ser imputado ao agente, pelo menos a título de negligência,
podendo esta ser simples e inconsciente;
l Aplica-se, nos mesmos moldes, o princípio da legalidade ou numerus clausus.

A justificação para estes crimes é a existência de um específico e forte nexo causal


entre o crime fundamental e o elemento agravante, de tal modo que o evento
agravante consubstancia um perigo típico quase necessário associado à realização
do crime fundamental.

Nesta hipótese, os dois primeiros requisitos verificam-se. Trata-se de uma


negligência consciente, aceitando o disposto no enunciado. Poderia punir-se C,
conjugando o art. 164.º/2 CP com o art. 177.º/3 CP.

B) Se C não soubesse que estava infectado, a resposta seria a mesma?


Explicite a sua resposta.

Tratar-se-ia de uma negligência inconsciente. O comportamento socialmente


adequado indica a utilização de contracetivos, pelo que há na mesma a violação de
um dever objetivo de cuidado. Atendendo que C era toxicodependente, fruto das
práticas relacionadas com esse facto, a probabilidade de ser portador de VIH era
acrescida, pelo que o dever de cuidado seria também superior.
Imputava-se na mesma o resultado, e punia-se C da mesma forma que na alínea
anterior.

CASO N.º 17

No dia 28/12/2009, pelas 23h, na Rua do Cruzeiro, na Trofa, A envolveu-se


numa discussão com B. Na sequência dessa discussão, B pegou num pau que se
encontrava no chão e, empunhando-o, aproximou-se de A, fazendo menção de o
atingir. De imediato, A retirou o pau da mão de B e empurrou-o, fazendo-o

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cair ao chão, que no local é composto por "paralelos" de granito.


Conquanto B continuasse a agredir A, este agarrou-o pela cabeça, batendo com
ela no chão, por várias vezes. Posteriormente, acorreram ao local várias pessoas,
que afastaram A de B, o qual foi conduzido de ambulância ao hospital. B acabou
por falecer em 3/1/2010, em virtude de lesões traumáticas crânio-encefálicas
originadas pelas pancadas da cabeça no solo.
Note bem:
Em sede de audiência de julgamento, provou-se que A nunca representara
nem quisera a morte de B.
Refira-se, fundadamente, à responsabilidade jurídico-penal de A.

O tipo incriminador preenchido pela conduta de A poderá ser um dos seguintes:


homicídio doloso (art. 132.º CP), homicídio negligente (art. 137.º CP) ou ofensas à
integridade física agravadas pelo resultado morte (art. 147.º CP).
l Não é homicídio doloso porque falha o dolo - A nunca quisera nem representara a
morte de B;
l Não é homicído negligente dado que não se trata apenas de uma atitude de
leviandade ou descuido face ao dever-ser jurídico-penal.
l Sobram então as ofensas à integridade física agravadas pelo resultado morte.

Tendo em conta os requisitos:


l Ocorre um crime fundamental, as ofensas à integridade física, que são dolosas;
l Ocorre um elemento agravante, neste caso sendo um crime autónomo (homicídio).
l Seria possível imputar esse elemento agravante, no mínimo, a título de negligência.
Há neste caso a violação de um dever de cuidado, pelo menos inconsciente.
l Princípio da legalidade - a lei prevê esta hipótese no art. 147.º CP.

Seria de imputar a A o crime de ofensas à integridade física agravado pelo


resultado morte.
Questão diferente é saber se poderíamos justificar a conduta de A através da legítima
defesa. Dando por preenchidos os requisitos da agressão (ilícita, atual, existência do
comportamento agressivo), não estaria preenchido o requisito da necessidade do meio,

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do lado da defesa. Efetivamente houve excesso intensivo de legítima defesa.


O tipo justificador não operaria, pelo que a punição se mantinha.

CASO N.º 18

A, guia de montanhismo, comandava uma expedição de alpinismo. No decurso da


mesma, um dos elementos do grupo ficou em situação de grave perigo, carecendo
de ajuda.
Tratando-se de um excursionista que ainda não havia pago o preço acordado com
A, este não o socorreu, com base em tal facto.
Na sequência do exposto, o alpinista em perigo veio a sofrer uma queda de que
resultou a fractura das pernas.
Qual a responsabilidade jurídico-penal de A? Justifique.

A não pratica uma ação proibida, mas não socorre o membro do grupo. Estamos no
âmbito dos crimes de omissão - A escolhe não agir.
Quando tratámos as formas de realização típica, vimos que o tipo tanto pode ser
preenchido ou realizado através da prática de uma ação proibida como através da
omissão de um comportamento juridicamente exigido ou devido. Efetivamente, se o
crime é a lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos essenciais, compreende-se
que o Direito Penal não se baste com a incriminação das ações, mas também incrimine
a omissão, ou seja, a inação, apesar de o fazer apenas e só quando a ação, para o agente,
era juridicamente esperada e devida.
Apesar de existir uma óbvia diferença estrutural entre crimes de ação e omissão, há uma
certa simetria, em sentido inverso, entre uns e outros. A punição da ação continua a ser
maioritária. Porém, com o crescimento da sociedade do risco, há uma tendência para
aumentar em número e em significado as omissões jurídico-penalmente relevantes. Não
obstante, não se deve alargar em demasia a malha da punição por omissão, sob pena de
isso representar uma intolerável intromissão de cada um na esfera jurídica dos outros.
De forma muito simples, a omissão corresponde, tipicamente, a uma obrigação de
atuar que impende sobre o agente e que ele não leva a cargo, colocando um bem

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jurídico em perigo, ou seja, à inação, quando, na concreta situação, ao agente se


impunha a ação.

Do ponto de vista histórico, a admissibilidade dos crimes de omissão apresentava dois


grandes problemas:
1. O conceito de ação - o sistema positivista tinha um entendimento causal de uma ação
(ação como a modificação do mundo exterior, cega a valores). A omissão é justamente
o inverso: a não modificação do mundo exterior. Neste quadro, como se poderia punir
a omissão?
l Teoria da ação precedente - aquilo que se punia não era a omissão em si mesma,
mas a ação que colocava em perigo o bem jurídico. Isto era uma posição criticável
porque nem sempre na omissão há uma ação precedente;
l Teoria do aliud agere - aquilo que se punia era a ação que impedia a ação devida,
isto é, punia-se a ação alternativa (a ação que o agente tinha realizado ao invés da
ação exigida). Levava a um absurdo: uma mãe que estaria a fazer tricot em vez de
vigiar o filho pequeno, que se encontrava a brincar com as facas da cozinha, seria
punida pelo ato de fazer tricot.
l Teoria da decisão da vontade - para esta teoria, havia um impulso, um ato da
vontade, que suspendia o impulso de agir, de realizar a ação juridicamente devida.
Punia-se a decisão do agente não atuar. Também é criticável dado que a omissão
pode resultar de uma negligência inconsciente.

Todas estas dificuldades são ultrapassadas com o conceito pessoal de ação como
ato de comunicação ou, dito de outra forma, como a exteriorização de uma
intencionalidade de sentido. Esse ato de comunicação tanto serve para a ação
como para a omissão, dado que esta também exprime um determinado sentido.

2. O sentido da punição por omissão - esta dificuldade decorre do próprio quadro


mental individualista do século XX. Se é natural punir um comportamento ativo que
lese ou coloque em perigo bens jurídicos, mais difícil é para esta conceção punir a não
realização de um comportamento altruístico que visa salvaguardar bens jurídicos
alheios. Parecia que na omissão se estava perante exigências de ordem moral e não
penal. Porém, no âmbito do Estado Social, a lesão de um bem jurídico deixa de ser
encarada como um dano exclusivamente individual, mas como um dano comunitário,

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pelo que, dentro de certos limites, parece ser razoável exigir a determinadas pessoas um
pequeno incómodo para evitar a lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos.

É com recurso ao conceito pessoal de ação que se vai distinguir a ação de omissão.
Porém, existem casos de ambivalência ou de dupla cabeça, que são casos de dupla
relevância entre a ação e a omissão, hipóteses em que é relevante tanto a ação como a
omissão. Por exemplo, se o médico interrompe o funcionamento da máquina a que
estava ligado C, o resultado morte analisa-se sobre o prisma da ação (desligar a
máquina) ou da omissão (não prestar os cuidados exigíveis pela profissão que
desempenha e os quais está obrigado a prestar)?

A resposta ao problema afere-se segundo os seguintes critérios:


1. Critério da introdução positiva de energia - segundo Roxin, a distinção entre ação e
omissão passa por saber se a conduta do agente envolveu uma introdução positiva de
energia que determinou causalmente o resultado. Se sim, estamos perante uma ação. Se
não, estamos perante uma omissão. É criticado na medida em que o Direito Penal não
corresponde à descrição de causalidades;
2. Critério do ponto de conexão da censurabilidade jurídico-penal - seria necessário
identificar o ponto central onde radica a censurabilidade. É criticável na medida em que
é demasiado vago;
3. Critério da subsidiariedade - uma omissão só deve ter-se por relevante quando, de
todo em todo, o comportamento não poder ser perspetivado como uma ação. Também
se critica, pois é a ausência de critério;
4. Critério da ilicitude típica (defendido por Figueiredo Dias e pelo Doutor Almeida
Costa) - estamos perante uma ação sempre que, com a sua conduta, o agente cria ou
aumenta um perigo para o bem jurídico que venha concretizar-se no resultado e estamos
perante uma omissão sempre que o agente não diminui um perigo para o bem jurídico,
perigo esse que ele não criou, não intervindo.

Roxin veio introduzir uma série de constelações ou casos díficeis, pretendendo


introduzir uma nova categoria: omissão através da ação. São situações que
correspondem a ações, de acordo com o critério da introdução positiva de energia, mas
que se vão punir como omissões:
l O primeiro caso é a tentativa interrompida do cumprimento de uma imposição legal

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(ex.: desistir da ação de salvamento do filho que se está a afogar);


l O segundo caso é o da comparticipação ativa em delito omissivo (ex.: A aconselha
B a deixar de prestar o auxílio necessário);
l O terceiro caso é o da omissio libera in causa (ex.: bombeiro que bebe até ficar
inconsciente, tornando impossível que responda a uma chamada para ir em socorro
de alguém);
l O último caso é o da interrupção técnica de um tratamento (ex.: médico que desliga
a máquina. Caso se tratasse de uma ação de um terceiro, este seria punido pela ação
porque não há uma obrigação pessoal de prestar cuidados).

Na verdade, todas estas constelações se integram no núcleo da omissão, sem


necessidade de uma categoria especial. São todas situações em que o agente não
diminuiu o perigo porque não intervém, sendo que o perigo não foi criado por este.

É preciso ter sempre presente que o crime de omissão tem como núcleo a violação de
uma imposição legal de agir. O crime de omissão só pode ser cometido por uma
pessoa sobre a qual recaia um dever jurídico de levar a cabo uma ação imposta e
esperada. Em face da situação concreta, nem todas as pessoas podem praticar um crime
omissivo, pois é preciso, de entre o conjunto de pessoas envolvidas com o facto, apurar
aquele conjunto de pessoas que estava obrigado juridicamente a intervir e não o fez.

A omissão só pode ser imputada às pessoas que estejam oneradas com um dever
jurídico de garante.

O CP recorre a dois mecanismos distintos para punir a omissão:


l Ou o legislador descreve integralmente os pressupostos fáticos do crime omissivo
(ex.: art. 200.º, 245.º, 284.º CP), de onde resulta o dever de garante;
l Ou recorre a uma cláusula geral de equiparação da omissão à ação (prevista no art.
10.º CP).

Estes dois instrumentos estão na base da distinção entre omissões puras ou próprias e
omissões puras ou impróprias.
A omissão pura ou própria abrange aqueles casos em que o Código Penal prevê
expressamente a omissão como forma de realização do crime e descreve os

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pressupostos fáticos de onde deriva o dever jurídico de atuar ou, pelo menos, referindo
esse dever e tornando o agente o garante do seu cumprimento.
A omissão imprópria ou impura abrange todos os outros casos, em que a punição da
omissão resulta da cláusula geral de equiparação à ação, prevista no art. 10.º CP.
Entre nós, o n.º 3 do art. 10.º determina que, no caso da omissão impura, se aplica o
agente a moldura penal correspondente ao crime de ação respetivo, podendo a pena ser
especialmente atenuada (trata-se de uma atenuação facultativa). Tratando-se de um
crime omissivo puro, a moldura penal resulta do próprio artigo.

Quanto à estrutura dogmática dos crimes omissivos:


Temos um tipo de ilícito, que se decompõe num tipo objetivo e subjetivo, e um tipo de
culpa.

I. Tipo de ilícito - o Professor Figueiredo Dias diz que existem essencialmente três
requisitos comuns a todos os crimes de omissão:
a) Situação típica - constituída pelos pressupostos fáticos que permitem determinar
o conteúdo do concreto dever de atuar (ex.: na omissão de auxílio estamos
sempre a falar de uma ação de salvamento). Nas omissões impuras, a
determinação é mais difícil. A situação típica reconduz-se à não diminuição de
um perigo que recai sobre o bem jurídico, sendo que os restantes elementos
relevantes da situação típica são determinados por referência ao delito de ação
correspondente.
b) Ausência da ação esperada - corresponde, na omissão pura, à ação que a lei
prescreve, e, na omissão impura, ao comportamento necessário e adequado para
obstar à verificação do resultado típico.
c) Possibilidade fática de ação - só existe omissão se o agente puder, pessoalmente,
levar a cabo a ação devida ou esperada. Se, para o agente, a ação for impossível,
então estaremos perante uma causa de atipicidade. Essa impossibilidade tanto
pode ser física, técnica, de conhecimentos ou de meios de auxílio (ex.: pai
paralítico e mudo que vê o filho a afogar-se).

Estes são os requisitos gerais de todos os delitos omissivos. Mas há um conjunto de


problemas específicos que resultam da omissão impura, da equiparação da omissão à
ação:

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l Imputação objetiva do resultado à omissão - este problema coloca-se porque os


crimes de omissão impura são sempre crimes de resultado. A doutrina tradicional,
que será a seguida, reconduz a imputação objetiva nos crimes omissivos impuros
aos mesmos critérios que os correspondentes crimes de ação, com exceção do
degrau da causalidade. Não existe, de facto, na omissão, um nexo causal entre a
conduta (neste caso, a ausência dela) e o resultado. Temos então dois critérios:
n Critério da adequação - o critério funciona exatamente da mesma forma que
para os crimes de ação, mas, em vez de se avaliar a idoneidade do
comportamento para a produção do resultado, avalia-se a idoneidade do
comportamento devido ou esperado para evitar o resultado.
n Critério da conexão do risco - segundo este critério, só há imputação objetiva
se a ação devida ou esperada fosse tal que teria diminuído o risco da
verificação do resultado. Funcionam também os corretores:
u Corretor do risco permitido - o agente só deve atuar quando a ação
esperada caia dentro do risco permitido;
u Corretor da diminuição do risco - exclui-se a imputação se da omissão
resultar uma diminuição do perigo;
u Corretor do comportamento lícito alternativo - exclui-se a imputação
quando se prove que o resultado se iria produzir na mesma, ainda que o
agente tivesse intervindo;
u Corretor do âmbito de proteção da norma - exclui-se a imputação quando
o resultado extravase o âmbito de proteção da norma.

l Fonte do dever de garante - é a questão mais relevante em sede de crimes


omissivos. A resposta ao problema de determinar qual a fonte do dever de garante
permite perceber sobre quais agentes impende um dever jurídico de atuar, que
constitua o agente numa posição de garante e que permite afirmar que, se ele não
intervier, pratica um ilícito omissivo.
O art. 10.º CP delimita o âmbito das omissões impuras jurídico-penalmente
relevantes, fazendo essa delimitação através de alguns critérios: requisitos gerais,
previstos no n.º 1, e requisito específico, previsto no n.º 2:
n Quanto aos requisitos gerais:
u O primeiro requisito é o de que o crime de ação correspondente seja um

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crime de resultado (a expressão resultado deve ser entendida num sentido


amplo. Aliás, defende o Professor Lamas Leite que a expressão resultado
significa, neste contexto, a lesão ou a colocação em risco de bens jurídicos,
ou seja, a afetação da situação de tranquilidade do bem jurídico). Assim,
podem ser cometidos por omissão os crimes de dano e os crimes de perigo
concreto (só se excluem os crimes de perigo abstrato).
u O segundo requisito é o da possibilidade fática de ação.
u O terceiro requisito (parte final do n.º 1 do art. 10.º CP) abrange os casos
refratários (denominação de Faria Costa): situações em que, pela própria
natureza das coisas, o crime de ação não pode ser cometido por omissão
(ex.: bigamia) ou situações em que o próprio legislador exclui a
possibilidade de equiparação da ação à omissão.
Para estarmos perante um crime omissivo impuro é preciso que se reúnam
todos estes requisitos.

n No n.º 2 temos o requisito específico ou concreto: sobre o agente tem de


impender um dever de garante e precisamente aqui se coloca a questão de
determinar qual é a fonte desse dever. A nossa lei, ao contrário de outras
legislações penais, nada diz a este respeito, o que coloca problemas de
inconstitucionalidade. Existem duas teorias:
u A teoria formal do dever de garante (já abandonada) - segundo esta teoria,
o dever de garante provinha de 3 fontes: lei, contrato ou ingerência
(abrange as situações em que alguém cria uma situação de perigo anterior
e deve por isso proteger os bens jurídicos que venham a ficar em perigo);
u A teoria das funções - divide em dois grandes grupos a fonte do dever de
garante:
1. Função de guarda ou proteção de um bem jurídico concreto - o bem
jurídico carente de tutela deve ser protegido contra todos os perigos
englobáveis no âmbito de proteção. Todas as situações típicas em que se divide
criam deveres de proteção e assistência e giram em torno de três tipos de
relação: relações de proximidade sócioexistencial, de confiança e/ou
dependência material. Pode ser dividida em:
a) Relações de comunidade de vida, familiares ou análogas (art. 1874.º CC
- dever de garante que os pais têm em relação aos filhos; filhos/pais;

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avós/netos; cônjuges e pessoas que vivem em condições análogas à dos


cônjuges);
b) Assunção de funções de proteção e de guarda - correspondia à velha fonte
contratual, abrangendo hipóteses em que alguém assumiu uma posição de
proteção ou de guarda relativamente a um bem jurídico carente de tutela,
pelo que uma vez assumida essa posição cria-se uma relação de confiança,
de tal modo que o agente não pode violar depois a relação que assumiu,
independentemente do vínculo. É o exemplo da babysitter que tem o dever
de salvar a criança que se está a afogar na banheira, apesar de os pais da
criança estarem atrasados e, entretanto, já ter passado da hora combinada
para ela ir embora;
c) Relações de comunidade de perigo – estamos perante empreendimentos,
tarefas arriscadas ou perigosas, sendo que o perigo ou o risco desse
empreendimento é reconhecido e aceite por todos os membros do grupo
de tal modo que entre cada membro do grupo acresce um dever de garante
face aos outros membros, pois estabelecem relações fáticas de confiança
que não podem ser violadas;
d) Situações de monopólio (são aceites por Figueiredo Dias e pelo Professor
Lamas Leite, mas não pela maioria dos penalistas) - estamos perante casos
em que não existe entre os sujeitos nenhuma relação de proximidade
existencial, de confiança e/ou dependência. Entre o omitente e o bem
jurídico carecido de proteção não existe nenhuma destas relações, a fonte
é a pura solidariedade. Não obstante, o omitente está, do ponto de vista
fático, numa posição de domínio absoluto da fonte de perigo, sendo que
esse domínio resulta do arbítrio, do acaso. É o exemplo de uma pessoa que
vai a correr numa floresta e vê alguém a afogar-se num lago, sem que
ninguém esteja por perto para salvar sem ser o corredor. Há desproporção
entre o bem jurídico em perigo e o esforço que é exigido ao omitente para
proceder à ação de salvamento. O dever de garante, segundo a doutrina,
recai sobre o agente, mediante o preenchimento de três requisitos:
i. Que o agente esteja investido, mesmo que por circunstâncias
ocasionais, numa posição de domínio fático absoluto e próximo da
situação (pode até tratar-se de uma pluralidade de agentes, desde que
cada um domine em absoluto a situação e tenha o mesmo custo de

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intervenção);
ii. O perigo em que se encontra o bem jurídico tem de ser agudo e
iminente e tem que estar em causa a lesão de um bem jurídico pessoal;
iii. O agente tem e poder levar a cabo a ação esperada sem ter de incorrer
numa situação danosa e perigosa para si mesmo, ou seja, a ação de
salvamente tem de representar para o agente um encargo irrelevante.

2. Função de vigilância, que cria deveres de segurança e controlo. Nesta


função, aquilo que se exige ao agente é que fiscalize concretas fontes de perigo
(ex.: papel do controlador aéreo). Pode ser subdividida em diversas situações
típicas, todas elas repousando numa situação de proximidade material do
agente com uma fonte de perigo:
a) Ingerência - quem cria um perigo que pode afetar terceiros deve
cuidar que esse perigo não venha a atualizar-se num resultado típico. Por
exemplo, quem sequestra alguém tem o dever de alimentar a pessoa;
b) Senhorio ou domínio - são situações relacionadas com as zonas lícitas
de risco permitido traduzidas em deveres de vigilância e de fiscalização
sobre fontes de perigo concretos - ex.: dono da fábrica tem um dever de
fiscalização em relação às chaminés da fábrica;
c) Atuações de terceiros - são situações especiais em que existe um
dever de controlo ou vigilância face a atuações de terceiros que não sejam
responsáveis ou tenham a sua responsabilidade limitada ou diminuída e
abrange ainda relações de supra-infra ordenação, em que o superior
hierárquico tem a função de fiscalizar a ação dos inferiores.

Relativamente ao tipo de ilícito subjetivo dos crimes de omissão, pode também


distinguir-se entre dolo e negligência como formas típicas de realização prática do
crime:
l Dolo – Na omissão, o dolo do tipo também é composto por um elemento intelectual
(corresponde ao conhecimento da situação típica) e um elemento volitivo
(corresponde à omissão devida ou esperada com vontade que se preencha o tipo
objetivo);
l Negligência – está em causa a violação consciente ou inconsciente de um dever
objetivo de cuidado.

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Relativamente à culpa, o conteúdo material é o mesmo do que foi visto para as outras
dogmáticas.

Neste caso:
Poderíamos imputar a A o crime de omissão de auxílio (art. 200.º CP) ou o crime de
ofensas à integridade física por omissão (art. 143.º combinado com o art. 10.º CP).
Deve-se sempre verificar se o agente pode ser punido por um crime de omissão impura,
já que a doutrina e a jurisprudência defendem que o art. 200.º deve ceder, ou seja, tem
carácter subsidiário perante um dever de garante inerente a uma omissão impura, razão
pela qual, caso se aplique em simultâneo o art. 200.º e um crime de omissão impura,
prevalece o segundo.

Requisitos gerais do art. 10.º CP:


l O delito de ação correspondente é um crime de resultado – neste caso são as ofensas
à integridade física, que são um crime material;
l O omitente tem de estar na posição de poder adotar um comportamento adequado
que evitasse a possibilidade fática da lesão – A podia intervir, mas escolheu não o
fazer;
l Que a situação não recaia no âmbito dos casos refratários – pode-se punir por
omissão e neste caso, o legislador não exclui essa possibilidade.

Requisito concreto:
Sobre o agente ter a ser cargo um dever de garante, recorrendo à teoria das funções, A
poderia estar investido numa função de guarda ou de proteção. Dentro desta função,
estávamos no âmbito da assunção de funções de proteção de guarda. Neste caso
tínhamos um contrato entre o grupo e A, mas A não intervém porque o elemento do
grupo não lhe tinha pagado o preço acordado no contrato.
A comandava a expedição de alpinismo e estabeleceu uma relação contratual com os
restantes elementos do grupo, assumindo assim uma função de proteção ou de guarda
perante estes, havendo uma relação de confiança que justifica o dever de garante que
impende sobre o A, que leva a que os membros do grupo, especialmente o membro
carente de proteção, ter confiado na disponibilidade e experiência interventora de A,
dessa forma se sujeitando a riscos acrescidos ou dispensando outra proteção.

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Era possível imputar a A o crime de ofensas à integridade física por omissão, na


medida em que estavam preenchidos os pressupostos do art. 10.º CP, a título de dolo,
dado que tinha conhecimento da situação e atuou sabendo que se produziria o resultado
típico. A poderia ter uma atenuação especial da pena, nos termos do art. 10.º/3 CP.

CASO N.º 19

Num dia de Verão, ao notarem que A se estava a afogar, as demais pessoas


quese encontravam na praia X lançaram-se à água na tentativa de o salvar.
Entretanto, vendo B dirigir-se ao local com um barco de salvamento – e,
portanto, convencidos da desnecessidade de prosseguirem os seus esforços –, os
restantes indivíduos interromperam a sua iniciativa, regressando ao areal.
4. Quando se aproximou de A, B reconheceu-o como um seu antigo namorado
que a abandonara, o que a leva a voltar para terra, deixando-o no local.
Apercebendo-sedo sucedido, dois outros veraneantes voltaram a lançar-se à água
mas, quando chegaram perto de A, já este se encontrava morto.
Avalie, legal e doutrinalmente, a responsabilidade jurídico-penal de B.

Estávamos no âmbito da omissão. Podíamos ter dois tipos legais em abstrato: crime de
omissão de auxílio (art. 200.º CP) ou o crime de homicídio por omissão (art. 131.º
conjugado com o art. 10.º CP). Sempre que, em abstrato, seja possível a aplicação de
um crime de omissão pura (omissão de auxílio do art.º 200.º CP) e impura, temos de
testar a possibilidade do preenchimento dos requisitos do art. 10.º CP, que permitem a
punição pelo crime de omissão impura.
Olhando para os requisitos do art.º 10.º CP:
l O crime de ação correspondente tem que se tratar de um crime de resultado - sim,
o crime de homicídio é um crime de resultado;
l Possibilidade fática de ação - também se verifica;
l Não se trata de um caso refratário;

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l Fonte do dever de garante (o agente está investido numa posição que


pessoalmente o obriga a evitar o resultado) - esta situação reconduzir-se-ia à
primeira função, mais especificamente uma situação de monopólio. São casos em
que o omitente, fruto das circunstâncias, tem um domínio absoluto fático e próximo
da situação de perigo, embora não a tenha criado, e não tem nenhuma relação de
proximidade existencial ou dependência do bem jurídico carecido de amparo.
É preciso reconhecer que B não se coloca na situação de monopólio por força do
acaso e que, ao aproximar-se de barco da vítima, é que se coloca nessa situação. A
doutrina maioritária, apesar de negar a situação de monopólio como fonte do dever
de garante, tem mais facilidade em aceitar o monopólio como fonte do dever de
garante nos casos em que o próprio omitente se coloca nessa posição.

Logo, era possível punir B pelo crime de homicídio por omissão a título doloso.

5. Partindo da mesma factualidade, suponha agora que B pensava que o


náufrago era o seu ex-namorado quando, na verdade, não o era. Este facto altera a
responsabilidade de B? Fundamente a sua resposta.

As funções de guarda e proteção de um bem jurídico, nomeadamente em situação de


monopólio, implicam que se faça uma avaliação de quem é a pessoa?
Não, basta que o omitente domine a fonte de perigo, não é necessário que se verifique
uma relação de proximidade existencial ou dependência para com a pessoa em perigo.
Por outra via, está em causa um erro sobre as circunstâncias de facto, mais propriamente
um erro sobre a pessoa ou o objeto (error in persona vel objeto). Neste erro, a
execução é perfeita, mas há um problema na formação da vontade - o agente está em
erro quanto à pessoa ou ao objeto.
No âmbito da omissão também se verificam os erros intelectuais ou de valoração já
estudados:
l Erro sobre as circunstâncias de facto, que se designa por erro sobre a posição de
garante ou erro sobre os pressupostos materiais do dever de garante (art. 16.º/1/1ª
parte CP, cuja consequência é a exclusão da culpa)
l Erro sobre a ilicitude, que se designa por erro sobre o dever de garante (art. 17.º
CP, que exclui a culpa, se não for censurável).

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Neste caso concreto, estamos perante um erro sobre a posição de garante, mais
concretamente uma das situações típicas do erro sobre as circunstâncias – o erro sobre
a pessoa ou objeto. Segundo a doutrina maioritária, o erro é irrelevante se houver
identidade típica entre o crime consumado e o crime projetado ou entre o objeto
atingido e o objeto projetado, punindo-se o agente a título de dolo. Não havendo
identidade típica, a doutrina maioritária defende que ele deverá ser punido ou só pela
tentativa ou por concurso pela tentativa quanto ao crime projetado e pela negligência
quanto ao crime consumado.
Aplicava-se aqui a primeira hipótese, dado que há uma identidade típica entre o crime
projetado e o crime consumado. Logo, a resposta seria exatamente a mesma da alínea
anterior.

CASO N.º 20

Certo dia, D e o seu filho E dirigiram-se a uma praia repleta de veraneantes, na


qual F exercia as funções de nadador-salvador.
Após alguns “banhos de sol”, D tomou uma lauta refeição. Algum tempo
depois adormeceu, sendo acordado por uns gritos lancinantes. Apercebeu-se então
de que alguém, que não identificou, se estava a afogar, mas decidiu nada fazer,
receandovir a ter uma congestão. Dada a passividade de todos os presentes, a pessoa
em perigo acabou por morrer.
12. No decurso do inquérito judicial, F defendeu que se limitara a
telefonar paraos bombeiros por considerar que não estava obrigado a intervir, uma
vez que, apesar de à data dos factos se encontrar no seu posto de trabalho e em
funções de vigilância, o seu contrato com o concessionário da praia havia caducado
há mais de um mês. Quid iuris?

Tendo em consideração que teríamos dois tipos legais de crimes em abstrato (crime
de omissão de auxílio e crime de homicídio por omissão) e sendo necessário testar a
possibilidade do preenchimento dos requisitos do art. 10.º para que houvesse punição
pelo crime de omissão impura:
Todos os outros requisitos do art. 10.º se encontravam preenchidos, pelo que há então
que verificar o requisito da fonte do dever de garante: qual era a fonte do dever de

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garante que onerava F?


Estaríamos no âmbito da função de guarda de um bem jurídico, nomeadamente uma
hipótese típica de assunção de deveres de guarda e assistência (a velha fonte
contratual). O nadador-salvador, estando no seu posto, identificado como tal, e nas
suas funções de vigilância, assume uma função de proteção materialmente baseada
numa relação de confiança, que existe porque os veraneantes confiam na
disponibilidade de F para proteger os bens jurídicos.

F entendeu que não tinha de atuar e que não tinha praticado um crime de omissão,
dado que tinha ligado para os bombeiros. Nos crimes de omissão, pune-se a não
adoção da conduta esperada ou devida. Neste caso, a ação esperada resulta daquilo
que segundo a situação típica é necessário ou idóneo para obstar à verificação do
resultado típico. Logo:
l Quanto ao primeiro argumento, no âmbito da teoria das funções, o que interessa
é a relação material ou de confiança que se estabelece entre o omitente e os bens
jurídicos carecidos de amparo, não relevando o vínculo contratual;
l Relativamente ao segundo argumento, não era devido ou esperado de F que
ligasse para os bombeiros, dado que essa ação poderia ter sido tomada por
qualquer outra pessoa na praia.

Assim, F poderia ser punido pelo crime de homicídio por omissão (art. 131.º
conjugado com o art. 10.º CP).

13. E se o náufrago fosse E? A solução seria a mesma? Justifique.

Relativamente a F, a solução seria a mesma. Aquilo que se podia concluir é que havia
mais do que uma pessoa onerada com um dever de garante: além de F, D, o pai de
E, também estaria onerado com um dever de garante.
Dando por preenchidos todos os outros requisitos do art. 10.º, olhemos para o requisito
da fonte do dever de garante:
Estávamos perante uma fonte relacionada com uma função de guarda e proteção e, no
âmbito das situações típicas, as relações familiares ou de proximidade existencial.
D poderia invocar duas justificações:

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l Quando diz que não interveio porque tinha feito uma refeição lauta e temeu ficar
indisposto, está a colocar em causa o requisito da possibilidade fática da ação, mas
não se poderia aplicar, dado que a congestão não tem consequências gravosas para
D;
l D poderia não se ter apercebido que quem se estava a afogar era o filho, E.
Poderíamos estar perante um erro sobre a posição de garante, excluindo o dolo e
punindo-se o homicídio por negligência, uma óbvia violação de um dever de
cuidado.

Logo, era possível a punição de D por homicídio negligente por omissão.

CASO N.º 23

J, L e M decidiram assaltar o “Banco X”. Para tal, procederam ao


estudo das instalações e dos respectivos sistemas de segurança, adquirindo, em
seguida, os mecanismos adequados a desactivar os alarmes e, bem assim, armas de
fogo destinadasa intimidar os guardas.
q) Refira-se à punibilidade das condutas em apreço. Justifique doutrinal e
legalmente.

Estamos perante atos preparatórios não puníveis em geral, nos termos do art. 21.º
CP. Isto leva-nos para o iter criminis ou caminho do crime, ou seja, as fases que vão
da preparação à execução de um crime, que são essencialmente quatro:
l Nuda cogitatio ou puro pensamento – não têm qualquer relevância jurídico-penal,
não têm materalização, o pensamento é penal e socialmente irrelevante;
l Atos preparatórios – o agente não está ainda a executar o crime, mas já está a
prepará-lo/estudá-lo. Antecedem temporalmente e segundo a natureza das coisas
a execução de ato ilícito. Como regra geral não são puníveis, mas a lei pode prever
o contrário. O legislador pode efetivamente e a título excecional prever que certos
atos preparatórios constituam desde logo crimes autónomos (geralmente crimes
de perigo abstrato - ex.: art. 262.º CP) ou punir os atos preparatórios enquanto tais
(ex.: art. 271.º CP);
l Atos de execução – fundam a punição na tentativa;
l Consumação.

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Neste caso, era da máxima importância distinguir entre atos preparatórios e atos de
execução. Os critérios que permitem determinar se estamos perante um ato de
execução estão previstos no art. 22.º/2 CP, sendo que cada uma das alíneas consagra,
respetivamente, o critério formal-objetivo, o critério material-objetivo e a
formulação de Frank, com o sentido desenvolvido por Welzel.
A teoria material objetiva diz-nos que seriam atos de execução todos aqueles que de
acordo com as regras da experiência comum e conhecimentos especiais e normais do
agente fizessem antever como possível ou provável ou pelo menos não impossível a
consumação do crime. Seria uma execução os atos que fossem já idóneos para produzir
a consumação.
Segundo a fórmula de Frank, deveriam considerar-se atos de execução aqueles atos
que segundo a normalidade social aparecem já como próximos de um perigo iminente
para o bem jurídico protegido.
Welzel diz que, para que haja um ato de execução, não basta que este seja idóneo para
produzir a consumação, mas que é ainda necessário um avançar imediato para a
execução do crime. A execução começa quando o agente dá início a um momento em
que, numa situação de continuidade, sem quebra ou uma necessidade de renovação de
vontade, vai já conduzir a um ato final de execução.

De acordo com isto, nenhum destes atos elencados no enunciado se pode


enquadrar nos atos de execução, são ainda atos preparatórios.

No dia combinado, entraram no Banco e chegaram à caixa-forte. Quando se


preparavam para abandonar o local, já na posse de milhares de euros, J recordou-
se de ter ouvido dizer que as notas em causa eram de uma série nova e, portanto,
facilmente detetável, circunstância que frustraria os objectivos do crime. Em
conformidade, J dirigiu-se aos comparsas, incitando-os a voltarem a colocar o
dinheiro no cofre respectivo e a aguardarem por outra ocasião mais propícia. Assim
fizeram todos os agentes. À saída do Banco foram capturados pela Polícia.
r) Avalie, justificadamente, a responsabilidade jurídico-penal de J, L e M.

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Estamos perante uma hipótese de desistência da tentativa. Temos de distinguir entre


tentativa acabada e tentativa inacabada. Vimos que a prática de um único ato de
execução é já bastante para configurar a tentativa, mas distinguem-se duas situações:
l O agente não chega a praticar todos os atos de execução que seriam indispensáveis
ou necessários à consumação, que corresponde à tentativa inacabada ou
simplesmente tentativa;
l O agente pratica todos os atos necessários à consumação, mas a consumação não
chega a ter lugar por motivos alheios à sua vontade, que corresponde à tentativa
acabada.

Esta distinção tem relevância sobretudo na desistência voluntária de tentativa. No caso


da tentativa acabada, caso em que o agente realizou todos os atos executórios que,
segundo as suas representações, são necessários à consumação, tem de haver da sua
parte um arrependimento ativo: tem de impedir a consumação ou a verificação do
resultado ou pelo menos esforçar-se seriamente (tem que desfazer o que fez ou pelo
menos tentar). Nestas hipóteses a tentativa deixa de ser punível nos termos do art.º 24.º
CP.

O art.º 24.º/1 abrange três situações distintas:


l Abandono da prossecução do crime - estamos no âmbito da tentativa inacabada;
o agente interrompe, abandona ou omite a prática dos atos executórios restantes
que ele crê como indispensáveis para a consumação;
l Impedimento da consumação - tem como horizonte os casos de tentativa acabada,
que exigem do agente um arrependimento ativo. O agente praticou todos os atos de
execução que segundo as suas representações eram necessários à sua consumação,
e agora tem de impedi-la através de uma atividade própria, normalmente com o
auxílio de terceiros. Tem de colocar em marcha uma nova cadeia de eventos
destinadas a evitar a consumação e tem que ter êxito;
l Desistência em caso de consumação - o Código Penal alarga o privilégio da
desistência também aos casos em que existe uma consumação formal, mas não
material do crime, ou seja, quando ainda não teve lugar o resultado atípico (não
compreendido no tipo de crime) que a lei teve em vista evitar quando construiu a
incriminação. Tem sobretudo interesse nos crimes de perigo, em que a consumação
ocorre quando o bem jurídico é colocado em perigo.

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No n.º 2 do art. 24.º são situações de tentativa acabada que ainda que o agente tenha
iniciado um processo causal destinado a evitar a consumação ou a verificação do
resultado, um ou outro vêm a ser impedidos, não por força da sua atividade, mas por
um facto independente da sua conduta.
Nestes casos exclui-se a punibilidade da tentativa se o agente se tenha esforçado
seriamente para evitar o resultado. Aqui, esforços são mais do que meras intenções de
salvamento ou preocupações, é preciso que o agente tenha efetivamente criado uma
oportunidade de salvação para o bem jurídico. O agente tem de fazer tudo aquilo que
subjetivamente pensa que teria que fazer para evitar a consumação.

Requisito comum:
A desistência tem de ser voluntária. Quanto ao requisito da voluntariedade há duas
posições:
l O Doutor Almeida Costa afirma que a voluntariedade deve ser interpretada no
sentido da espontaneidade, a desistência não se deve a qualquer pressão ou coação
de fator externo, mas não é necessário sequer que o agente abandone o projeto
criminoso (conceção psicológica da voluntariedade, com que se identificam o
Professor Lamas Leite e o Professor Tiago Rocha);
l Figueiredo Dias (conceção normativa) afirma que a voluntariedade não depende só
da pressão psicológica, mas de uma atitude interna do agente de regresso ao
Direito, um arrependimento no sentido de fidelidade ao Direito (“corresponde a
uma obra pessoal do agente que detém o domínio do facto no sentido da desistência
e toma nas suas próprias mãos a decisão de regressar ao Direito”).

Estaríamos perante o crime de furto qualificado ou o crime de roubo, numa hipótese de


tentativa inacabada, pelo que se aplica a primeira parte do art. 24.º/1. Os agentes
abandonam a prossecução do crime. Analisando o requisito comum, a desistência é
voluntária na perspetiva do Doutor Almeida Costa, pelo que se afirma a isenção de pena
para os agentes do crime de furto ou roubo, não se excluindo a pena de outros crimes.
Seguindo a conceção de Figueiredo Dias, afirmar-se-ia que os agentes do crime seriam
punidos pelo crime de furto ou de roubo na forma tentada, aplicando-se uma atenuação
obrigatória da pena (ar. 23.º CP).

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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023

Suponha agora que L, sensível aos argumentos de J, manifestou-se no mesmo


sentido deste último. Pelo contrário, M preparava-se para abandonar o Banco com o
dinheiro, apesar da insistência dos seus companheiros. Face a tal comportamento, J
e L agarraram-no com o objectivo de impedir a sua fuga. No entanto, dada a maior
força física de M, foram empurrados para o chão e o agressor conseguiu fugir com
o “produto” do roubo, tendo todos sido detidos.
s) A factualidade agora apresentada implica uma diferente responsabilidade
jurídico-penal dos agentes? Fundamente a sua resposta.

Aplica-se, nestes casos, o art. 25.º CP, que consagra a desistência da tentativa em
caso de comparticipação. A especialidade deste regime prende-se com a
circunstância de cada um dos participantes ter posições diferentes: uns desistem e
outros não.
Assim, J e L não seriam punidos, eles esforçam-se seriamente para impedir a
consumação do crime, pelo que poderiam beneficiar da isenção de pena. M,
contrariamente, seria punido pela tentativa.

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