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Kelley Armstrong

MATILHA
(Bitten)
Mulheres de outro mundo – 01

Disponibilização/ Tradução: Yuna


Revisão: Joelma
Revisão Final: Sky
Projeto Revisoras Traduções
Formatação e Conversão: Baixelivros.org
PRÓLOGO
Tenho que fazê-lo.
Estive resistindo toda a noite. Vou perder. Minha batalha é tão fútil como a de uma mulher que, ao sentir
as primeiras dores do parto, decide que não é um momento conveniente para dar a luz. A natureza se impõe.
Sempre.
São quase duas da manhã, muito tarde para esta tolice e preciso dormir. Quatro noites investigando para
cumprir com uma entrega me deixou exausta. Não importa. A pele atrás dos meus joelhos e os cotovelos
começou a formigarem e agora ardem. Meu coração pulsa tão apressado que tenho que tomar ar. Fecho os
olhos com força, desejando que essas sensações acabem, mas não se acabam.
Philip dorme a meu lado. Ele é outro motivo pelo que não posso ir, escapulir no meio da noite outra vez e
voltar com uma corrente de desculpas sem sentido. Amanhã vai trabalhar até tarde. Se tão apenas pudesse
esperar um dia mais. Minhas têmporas pulsam. A sensação de ardor se estende pela pele de meus braços e
pernas. A ira forma uma bola tensa em minhas vísceras e ameaça explodir.
Tenho que sair daqui... já não tenho tempo.
Philip não se move quando saio da cama. Tenho uma pilha de roupa colocada debaixo de meu trocador
para evitar os ruídos das gavetas e das portas do guarda-roupa. Pego minhas chaves com força, para que
não tilintem, abro suavemente a porta e saio ao corredor.
Tudo está tranqüilo. As luzes parecem atenuadas, como se o vazio as dominasse. Quando toco o botão do
elevador, ele chia seu protesto de que o estorve a esta inacreditável hora. O térreo e a entrada estão vazios.
As pessoas que têm dinheiro para alugar um imóvel tão perto do centro de Toronto dormem comodamente
neste momento.
Além de minhas pernas doerem também formigam e curvei os dedos para ver se deixam de picar. Mas
não. Olho as chaves do automóvel em minhas mãos. Agora é muito tarde para ir a um lugar seguro. A coceira
condensou-se em um forte ardor. Com as chaves no bolso, saio às ruas, procurando um lugar para me
transformar. Enquanto caminho, monitoro a sensação nas pernas que se transfere aos braços e à nuca. Logo.
Logo. Quando o couro cabeludo começa a formigar, sei que já caminhei tudo o que podia, assim procuro um
beco. O primeiro que encontro está ocupado por dois homens que se abrigam juntos, dentro de uma caixa
de papelão de um televisor de tela grande, mas o seguinte está vazio. Vou rápida até o extremo, dispo-me
detrás uma barricada de latas de lixo e oculto a roupa sob um jornal velho. Então começo a Mudança.
Minha pele se retesa. A sensação se faz mais profunda e tento bloquear a dor. Dor. Que palavra
corriqueira: melhor direi agonia. Não se pode dizer que é só "dolorosa" a sensação de ser esfolado vivo.
Respiro fundo e concentro minha atenção na Mudança, baixando ao chão antes que me dobre em duas e
me veja obrigada a fazê-lo. Nunca é fácil. Possivelmente ainda sou muito humana. Esforçando-me para
manter o controle de minhas idéias, tento antecipar cada fase e ponho o corpo na posição adequada, com
a cabeça encurvada e os braços e pernas encolhidas, os pés e as mãos flexionadas e as costas arqueada.
Formam-se nós e tenho convulsões nos músculos das pernas. Esforço-me para respirar e relaxar. Suo e o
suor cai de meu corpo a jorros, mas os músculos finalmente se abrandam e relaxam. Logo vêm os dez
segundos de puro inferno que antes me faziam jurar que preferia morrer antes que suportá-lo outra vez.
Então se acaba.
Transformada.
Alongo-me e pisco. Quando olho em redor, o mundo transformou-se em uma paleta de cores
desconhecidas ao olho humano, negros, marrons e cinzas com tons sutis que meu cérebro ainda converte
em azuis, verdes e vermelhos. Elevo o nariz e inalo. Percebo rastros de asfalto fresco e tomates podres e
plantas em vasos de barro nas janelas e suor de vinte e quatro horas e um milhão de coisas, que se mesclam
em um aroma tão cansativo que me obriga a tossir e sacudo a cabeça. Ao me virar, consigo vê fragmentos
de meu reflexo em uma lata amassada. Meus olhos me devolvem o olhar. Estiro os lábios e grunho para mim
mesma. Presas brancas cintilam no metal.
Sou uma loba, uma loba de sessenta e cinco quilogramas com uma pelagem loira claro. Quão único fica
de mim são meus olhos, faiscantes de uma inteligência fria e uma ferocidade que arde a fogo lento, que
nunca poderia confundir-se com nada que não fosse humano.
Olho em redor, voltando a inalar a fragrância da cidade. Aqui estou nervosa. Muito sitiada, confinada,
cheirava a humano. Devo tomar cuidado. Se me virem, acreditarão que sou uma cadela, de um cruzamento
de raças grandes, possivelmente de cadela esquimó com Lavrador amarelo. Mas uma cadela de meu
tamanho causa alarme quando anda solta. Vou para o fundo da passagem e procuro uma saída através das
ruazinhas emaranhadas que se cruzam pela cidade.
Meu cérebro está atordoado, desorientado não por minha mudança de forma mais sim pela modificação
do que me rodeia. Não consigo me orientar e o primeiro beco que dobro resulta ser o que encontrei em
minha forma humana, o dos dois homens na caixa do Sony desbotada. Um deles está acordado agora. Puxa
dos restos de uma manta com crostas de sujeira, como se pudesse estirá-la o suficiente para proteger-se da
fria noite de outubro. Levanta os olhos e me vê e seus olhos se abrem. Começa a retirar-se, logo se contém.
Diz algo. Sua voz me fala com esse tom musical, exagerado, que as pessoas usam com as crianças e os
animais. Se me concentro poderia entender as palavras, mas não tem sentido. Sei o que diz, alguma variante
de lindo cachorrinho, repetida uma e outra vez com uma variedade de inflexões. Suas mãos estiradas, as
palmas estendidas para me afastar, a linguagem física que contradiz a vocal. Para trás, lindo cãozinho, para
atrás. E a gente se pergunta por que os animais não entendem quando lhes falam.
Cheiro o abandono e o desgaste de seu corpo. Cheira a debilidade, como um cervo ancião empurrado a
borda da manada, fácil de caçar para os depredadores. Se tivesse fome cheiraria a jantar. Por sorte ainda
não, por isso não tenho que conter a tentação, o conflito, a repulsão. Exalo a respiração e o ar se condensa
ao sair de meu nariz, logo me viro e saio correndo pelo beco.
Mais à frente há um restaurante vietnamita. O aroma de comida está incrustado na madeira do edifício.
Em uma extensão do edifício, ao fundo, gira lentamente a hélice de um ventilador, tocando a cada volta o
protetor metálico. Sob o ventilador há uma janela aberta. Cortinas com desenhos difusos de girassóis saem
à brisa noturna. Ouço as pessoas no interior, uma sala cheia de gente, grunhidos, roncos de gente dormindo.
Quero vê-la. Quero colocar o focinho pela janela aberta e olhar ao interior. Uma mulher lobo pode divertir-
se muito com um quarto cheio de gente desprotegida.
Começo a me adiantar, mas me detém um repentino rangido e um gemido. O gemido se faz mais suave,
logo o sufoca a voz aguda de um homem, as palavras como ramos quebrados. Viro a cabeça para cada lado,
o radar procura a fonte. Está mais adiante. Abandono o restaurante e vou para ele. Somos curiosos por
natureza.
Está parado em um estacionamento para três automóveis, na passagem estreita entre os edifícios. Tem
um walkie-talkie junto ao ouvido e se apóia em um cotovelo, contra um edifício de tijolos, tranqüilo, mas
não descansa. Seus ombros estão relaxados. Seu olhar se perde. Está crente que tem direito a estar ali e não
teme a noite. Provavelmente ajuda a essa atitude a arma que pende de seu cinto. Deixa de falar, toca um
botão e coloca o walkie-talkie em sua capa. Seus olhos observam uma vez todo o estacionamento, faz o
inventário e, ao não ver nada que requeira sua atenção, entra mais no interior do labirinto do beco. Isto
poderia ser divertido. Sigo-o.
Minhas unhas tamborilam o pavimento. Não parece notá-lo. Acelero esquivando bolsas de lixo e caixas
vazias. Finalmente estou suficientemente perto. Escuta o som contínuo de minhas unhas e se detém.
Escondo-me atrás de um lixeiro, e o espio. Vira-se e tenta ver na escuridão. Logo segue adiante. Deixo-o
afasta-se alguns passos e continuo. Esta vez quando se detém, espero um segundo mais antes de me ocultar.
Deixa escapar uma maldição baixa. Viu algo, um brilho de movimento, uma sombra que se move, algo. Sua
mão direita vai à arma, acariciando o metal e logo a retira, como se lhe bastasse para sentir-se tranqüilo.
Vacila, logo olha a um lado e ao outro do beco, e percebe que está sozinho e não muito seguro do que fazer
a respeito. Murmura algo, logo segue adiante, um pouco mais rápido.
Ao caminhar seus olhos vão de lado a lado, alerta, a beira do alarme. Respiro fundo, e registro apenas
brisas de temor, o suficiente para fazer meu coração pulsar forte mais não para perder o controle. É uma
presa aceitável para um jogo de caça. Não vai escapar. Posso controlar a maioria de meus impulsos. Posso
espreitá-lo sem matá-lo. Posso suportar a primeira sensação de fome sem matá-lo. Posso vê-lo tirar a arma
sem matá-lo. Mas se fugir não poderei me deter. Essa é uma tentação contra a qual não posso lutar. Se
correr, persigo-o. Se o perseguir, mata-me ou o mato.
Ao dar a volta por outro beco, começa a tranqüilizar-se.
Tudo está tranqüilo. Adianto-me agora, pondo o peso sobre os calcanhares para atenuar o som de minhas
unhas. Logo estou a poucos metros. Posso cheirar sua colônia, que quase anula o aroma natural de um
comprido dia de trabalho. Posso ver suas meias brancas que aparecem e desaparecem entre a borda do
sapato e a beira das pernas da calça. Ouço sua respiração, o ritmo ligeiramente aumentado que revela que
caminha mais rápido que o habitual. Deslizo-me para diante, o suficientemente perto para me equilibrar e
lançá-lo ao chão antes que possa pegar a arma.
Sua cabeça se eleva. Sabe que estou aqui. Que há algo aqui me pergunto se ele se voltará. Atrever-se-á a
olhar, a enfrentar algo que não pode ver nem ouvir, a não ser só intuir? Sua mão vai para a arma, mas não
se vira. Caminha mais rápido. E logo sai à segurança da rua.
Sigo-o até o final e observo da escuridão. Avança com as chaves na mão até uma viatura estacionada, abre
e se mete dentro. O automóvel ruge e sai chiando. Olho as luzes que se afastam e suspiro. Acabou-se o jogo.
Ganhei.
Foi bom, mas nem de longe suficiente para me satisfazer. Estas ruas laterais são muito estreitas. Meu
coração pulsa com uma excitação que não consegui descarregar. Minhas pernas doem de tanta energia
contida. Devo correr.
Do sul vem um sopro de vento que traz o forte aroma do lago Ontário. Penso em me dirigir à praia,
imagino-me correndo pela areia, sentindo a água gelada em minhas patas, mas não é seguro. Se quero
correr; devo ir para ravina. Fica longe, mas não tenho opção a menos que queira ficar rondando becos com
aroma de humano pelo resto da noite. Viro para o noroeste e início a viagem.
Quase meia hora mais tarde estou parada no topo de uma colina. Meu nariz se move, registrando os
vestígios de uma fogueira de folhas em um pátio próximo. O vento agita minha pele, frio, revigorante.
Vamos, o tráfico passa como um trovão pelo viaduto elevado. Debaixo está o santuário, um oásis perfeito
no meio da cidade. Lanço-me para frente. Por fim estou correndo.
Minhas pernas adquirem ritmo antes de chegar à metade da ravina. Fecho os olhos um segundo e sinto o
vento no focinho. Ao golpear minhas patas contra a terra endurecida, há espetadas de dor em minhas
pernas, mas me fazem sentir viva, como se despertasse de repente logo depois de dormir muito. Os
músculos se contraem e estendem em perfeita harmonia. Com cada passo sinto dor e uma explosão de
felicidade física. O corpo me agradece o exercício, e me premia com golpes de adrenalina quase
narcotizantes. Quanto mais corro, mais leve me sinto, a dor se libera como se minhas patas já não
golpeassem a terra. Inclusive no fundo da ravina sinto que corro costa abaixo, incrementando minha energia.
Quero correr até eliminar toda a tensão de meu corpo, e que não fiquem nada mais que as sensações do
momento. Não poderia me deter embora quisesse. E não quero.
As folhas mortas rangem sob minhas patas. Uma coruja canta suavemente no bosque. Terminou sua
caçada e descansa contente, não lhe importa quem anda por aí. Um coelho sai correndo dos arbustos diante
de mim, percebe seu engano e volta a ocultar-se na mata. Sigo correndo. Meu coração bate alerta. Sinto o
ar gelado contra o calor de meu corpo, arde ao passar por meu nariz para os pulmões. Respiro fundo,
desfrutando do choque que produz ao chegar a meu interior. Corro muito rápido para cheirar algo. Em meu
cérebro percebo alguns rostos em uma mixórdia 1 que cheira a liberdade. Já incapaz de resistir, finalmente
me detenho, lanço a cabeça para trás e uivo. A música sai de meu peito em uma evocação tangível de pura
felicidade. Ecoa no barranco e sobe ao céu sem lua, para que todos saibam que estou aqui. Sou proprietária
deste lugar! Quando acabo, baixo a cabeça, ofegando pelo esforço. Estou parada ali, olhando folhas
amarelas e vermelhas de árvores pulverizadas pelo chão, quando finalmente um som consegue atravessar
até minha consciência. É um grunhido, um grunhido suave de ameaça. Há um pretendente a meu trono.
Elevo os olhos e vejo um cão amarelo amarronzado a poucos metros. Não, não é um cão. Meu cérebro
demora um segundo, mas finalmente reconhecer o animal. Um coiote. Demoro um segundo para adverti-lo
porque é algo inesperado. Ouvi falar de coiotes na cidade, mas nunca me encontrei com um. O coiote se
sente igualmente confuso por minha causa. Os animais não conseguem entender o que sou. Cheiram ao
humano, mas vêem um lobo e justo quando decidem que o nariz os engana, olham aos olhos e vêem um
humano. Quando me encontro com cães, fogem ou atacam imediatamente. O coiote não faz nenhuma das
duas coisas. Levanta o focinho e cheira o ar, logo se arrepia e dá um grunhido prolongado com os lábios
retesados. É da metade de meu tamanho, não vale a pena. O faço saber com um grunhido lento e uma
sacudida da cabeça que dizem “cuide-se". O coiote não se move. Olho para ele por um momento. Desvia o
olhar.
Sopro, volto a sacudir a cabeça e lentamente lhe dou as costas. Estou no meio do giro quando vejo uma
pele marrom que se lança contra meu ombro. Jogo-me de lado, giro, logo me ponho rapidamente de pé. O
coiote me olha grunhindo. Respondo com um grunhido sério, o equivalente canino de "agora está me
zangando". O coiote fica firme. Quer briga. Bem.
Minha pelagem se arrepia, com a cauda abrindo-se em um leque. Baixo a cabeça entre os ossos de meus
ombros e aplano as orelhas. Mostro-lhe meus dentes e sinto o grunhido que sobe por minha garganta e sai
ressoando na noite. O coiote não retrocede. Agacho-me para saltar quando algo me golpeia duro no ombro
e me desequilibra. Sinto dor no ombro. Tropeço e giro para enfrentar a meu atacante. Um segundo coiote,
cinza-marrom, pendurado em meu ombro, cravando suas presas até o osso. Com um rugido de ira e dor,
elevo-me e lanço todo meu peso sobre o flanco.
Quando o segundo coiote sai voando, o outro se lança direto em minha cara. Agachando-me, puxo-o pela
garganta, mas meus dentes mordem pêlo em vez de carne e ele consegue escapulir. Tenta retroceder para
atacar de novo, mas me lanço sobre ele, obrigando-o a afirmar-se contra uma árvore. Eleva-se em duas
patas, tentando escapar. Lanço minha cabeça, apontando a sua garganta. Esta vez peguei bem. O sangue
enche minha boca, salgado e grosso. O companheiro do coiote aterrissa em minhas costas. Sinto que minhas
1
Mixórdia – mistura desordenada (Aurélio)
pernas se debilitam. Dentes que se afundam na pele solta sob meu crânio. Sinto uma nova dor.
Concentrando-me, mantenho-me obstinada a garganta do primeiro. Afirmo-me, logo solto um segundo, o
suficiente para dar o golpe fatal e rasgar. Ao me retirar, o sangue que salta me cega. Fecho os olhos e giro
forte a cabeça, rasgando a garganta do coiote. Quando sinto que está morto, jogo-o para um lado. Logo me
lanço ao chão e giro. O coiote em minhas costas grunhe de surpresa e me solta. Levanto-me e giro em um
só movimento, pronta para acabar com este outro animal, mas ele foge para a mata. Um brilho de sua cauda
e se foi. Olho o coiote morto. De sua garganta sai sangue que a terra bebe sedenta. Sinto uma sacudida,
como o último tremor de desejo satisfeito. Fecho os olhos e tenho um calafrio. Não foi minha culpa.
Atacaram-me. A ravina está em silêncio, fazendo eco a calma que me alaga. Não canta sequer um grilo. O
mundo está escuro, silencioso e dormindo.
Tento examinar e limpar minhas feridas, mas estão fora de meu alcance. Estiro-me e avalio a dor. Dois
cortes profundos, os dois sangrando, embora só o suficiente para manchar minha pele. Viverei. Viro e início
o caminho de volta à cidade, saindo da ravina.

Transformo-me ao voltar para beco. Logo me visto e saio do beco como um drogado ao quem tivessem
pegado em fragrante. Sinto frustração. Não deveria acabar assim, suja e furtiva, em meio ao lixo e a sujeira
da cidade. Deveria terminar em um tranqüilo bosque, a roupa abandonada nas folhagens, estendida nua,
sentindo o frescor da terra e a brisa noturna fazendo cócegas na minha pele. Deveria ficar dormindo no
pasto, exausta, sem pensar, só com os vapores da satisfação flutuando em minha mente. E não deveria estar
sozinha. Em minha mente imagino a outros, descansando ao redor sobre o pasto. Ouço os roncos familiares,
sussurros e risadas ocasionais. Sinto a pele cálida junto à minha, um pé nu enganchado em minha
panturrilha, que se agita ao sonhar que corre. Posso cheirá-los, seu suor, seu fôlego, mesclados
com o perfume do sangue, de um cervo morto na caçada. A imagem se faz pedacinhos e me encontro
olhando uma vidraça onde meu reflexo devolve o meu olhar. Sinto o peito oprimido, de uma solidão tão
profunda e completa que não posso respirar.
Giro rapidamente e golpeio o objeto mais próximo. Ressoa um poste de luz. A dor percorre meu braço.
Bem-vinda de volta à realidade: Transformo-me em becos e me arrasto de volta a meu apartamento. Minha
condenação é viver entre dois mundos. Por um lado, a normalidade. Pelo outro, há um lugar onde posso ser
o que sou sem temor de represálias, onde posso assassinar e nem sequer provocar um gesto de quem me
rodeia, onde inclusive me excita fazê-lo para proteger esse mundo. Mas o deixei.
Ao caminhar para o apartamento, posso sentir minha ira contra o pavimento a cada passo. Uma mulher
encolhida sob uma pilha de mantas sujas me olha ao passar e instintivamente se afunda mais em seu ninho.
Ao dar a virar à esquina, aparecem dois homens que me avaliam como presa. Resisto apenas o impulso de
lhes grunhir. Caminho mais rápido e parecem decidir que não vale a pena me perseguir. Não deveria estar
aqui Deveria estar em casa, na cama, não percorrendo o centro de Toronto às quatro da madrugada. Uma
mulher normal não estaria aqui. É outra coisa que me recorda que não sou normal. Não sou normal. Olho a
rua às escuras e posso ler um pequeno cartaz em um posto telefônico a quinze metros. Não sou normal.
Sinto um leve aroma de pão fresco de uma padaria que começa a trabalhar a quilômetros de distância. Não
sou normal. Detenho-me diante de um comércio, Puxo uma barra sobre a vidraça e me elevo. O metal se
queixa. Não sou normal. Nada normal. Repito as palavras em minha mente, me flagelando. A ira
aumentando.
Na porta de meu apartamento me detenho e respiro fundo. Não devo despertar Philip. E se o faço, não
devo permitir que me veja assim. Não necessito de um espelho para saber como estou, com a pele tensa, a
cor intensificada, os olhos incandescentes de ira que agora sempre vem com a transformação.
Definitivamente nada normal.
Quando finalmente entro no apartamento escuto a respiração dele que chega até mim do quarto. Ainda
dorme. Estou quase no banheiro quando sua respiração se interrompe.
-Elena? -murmura sonolento.
-Vou ao banheiro.
Tento passar a porta, mas agora está sentado, me olhando com sua miopia. Franzido o cenho.
-Vestida? -diz.
-Saí.
Um momento de silêncio. Passa a mão pelo cabelo escuro e sussurra.
-É perigoso. Droga, Elena. Disse-lhe isso a semana passada. Desperta-me e irei contigo.
-Preciso ficar sozinha. Para pensar.
-É perigoso.
-Sei. Sinto muito.
Entro no banheiro, e fico mais do que o necessário. Faço de conta que uso o vaso sanitário, lavo as mãos
com água suficiente para encher um yacuzzi, logo encontro uma unha que necessita de minha atenção.
Quando finalmente acredito que Philip voltou a dormir, vou para o quarto. O abajur está aceso. Ele se
encontra sentado, com os óculos postos. Vacilo na porta. Não me decido a passar a porta, me colocar na
cama com ele. Odeio-me por isso, mas não posso fazê-lo. A lembrança da noite perdura e me sinto
deslocada.
Como não me aproximo, Philip baixa as pernas da cama e se senta.
-Não quis gritar com você – disse -. Mas me preocupo. Sei que necessita de liberdade e tento...
Detém-se, esfregando a boca com a mão. Suas palavras me cortam. Sei que não quer brigar comigo, mas
o faz. Para mim é um aviso de que estou fodendo a coisa, de que tenho sorte de ter encontrado alguém tão
paciente e pormenorizado como Philip, mas estou desgastando sua paciência a uma velocidade supersônica
e parece que não posso fazer mais que esperar que aconteça o desastre.
-Sei que necessita de liberdade - diz novamente-. Mas tem que haver outra maneira. Possivelmente
poderia sair de amanhã. Se preferir que seja de noite, poderíamos ir ao lago no automóvel. Poderia
caminhar. E eu fico no automóvel e cuido de você. Possivelmente poderia caminhar contigo. Ficar vinte
passos detrás de você. - Consegue sorrir.
-Possivelmente não. Provavelmente me prenderiam por ser um quarentão que anda espreitando uma
jovenzinha.
Detém-se e logo se inclina para frente.
-Aí, Elena, é quando você diz que aos quarenta e um anos não se é nenhum quarentão.
-Já veremos o que se pode fazer - digo.
Não se pode fazer nada. Tenho que correr de noite e tenho que fazê-lo sozinha. Não há maneira de chegar
a um acordo.
Vendo-o sentado a beira da cama, sei que o nós não temos futuro. Minha única esperança é obter que a
relação seja tão perfeita em todos outros sentidos para que Philip chegue a aceitar esta excentricidade. Para
obtê-lo o primeiro passo teria que ser me meter na cama, beija-lo e lhe dizer que o amo. Mas não posso
fazê-lo. Esta noite não. Esta noite sou outra coisa, algo que ele não conhece e não poderia entender. Não
quero ir a ele assim.
-Não estou cansada - digo -. Não vou me deitar. Quer tomar o café da manhã?
Olha-me. Vacila e sei que falhei... outra vez. Mas não diz nada. Volta a sorrir.
-Saiamos. Tem que haver algum lugar aberto na cidade há esta hora. Daremos uma volta até encontrar
um bar. Tomaremos cinco xícaras de café e veremos o amanhecer. Está bem?
Assinto. Não me atrevo a falar.
-Você toma banho primeiro? -diz-. Ou jogamos a moeda?
-Vai você.
Beija-me na bochecha ao passar. Espero até escutar a ducha e então vou à cozinha
Às vezes me dá tanta fome.

HUMANA
Fiquei parada em frente à porta antes de chamar. Era o Dia das Mães e eu estava parada em frente a uma
porta com um presente, o que teria sido bastante normal caso se tratasse de um presente para minha mãe.
Mas minha mãe tinha morrido fazia muito tempo e eu não tinha relação com nenhuma de minhas mães
adotivas nem, muito menos, levava-lhes presentes. O presente era para a mãe de Philip. Isto também seria
normal se Philip estivesse ali comigo. Mas não. Ligou do escritório fazia uma hora para dizer que ainda não
podia sair e se queria ir sozinha ou preferia esperá-lo. Decidi ir sozinha e agora estava parada ali me
perguntando se tinha sido a decisão correta. Ia uma mulher visitar a mãe de seu namorado no Dia das Mães
sem o aludido namorado? Possivelmente me esforçava muito. Não seria a primeira vez.
As regras humanas me confundem. Não é que foi criada em uma cova. Antes de virar licántropo, já tinha
aprendido as coisas básicas: como chamar um táxi, usar um elevador; pedir uma conta bancária, todas as
minúcias da vida humana. O problema era a interação com humanos. Minha infância foi bastante ruim.
Então, quando estava a beira de me tornar adulta, morderam-me e passei os seguintes nove anos de minha
vida com outros licántropos. Nesses anos tampouco estive separada do mundo humano. Voltei para a
universidade, viajei com os outros, inclusive tive vários empregos. Mas sempre estiveram ali, para me dar
apóio, amparo e companhia. Não tinha que me virar sozinha. Não tive que fazer amigos nem ter amantes
nem ir almoçar com meus colegas de trabalho. E não o fiz. O ano passado, quando rompi com os outros e
vim para Toronto sozinha, pensei que me amoldar à situação seria a menor de minhas preocupações. O que
podia acontecer? Faria o elementar que aprendi quando era criança, misturado com a capacidade de
conversar como uma adulta, com um toque de cautela e voilá, faria amigos rapidamente. Veja só!
Já era muito tarde para dar a volta e ir?Não queria fazê-lo. Respirando fundo, toquei a campanhia.
Imediatamente se escutaram passos. Então uma mulher de rosto redondo com cabelos castanhos grisalhos
abriu a porta.
-Elena! -disse Diane-. Mamãe, Elena chegou. Philip está estacionando? Há tantos automóveis! Todo
mundo estar com visitas.
-Na realidade Philip não está comigo. Teve que trabalhar, mas virá logo.
-Trabalha no domingo? Terá que falar com ele seriamente, moça. Passa, passa. Estão todos aqui.
A mãe de Philip, Anne, apareceu detrás de sua filha. Era diminuta. Não chegava nem em meu queixo com
os cabelos cinza vigorosos, cortados curtos.
- Continua tocando a campanhia, querida? Disse, levantando os braços para me abraçar. -Só os
vendedores tocam a campanhia. As pessoas da família entram sem chamar.
-Philip chegará mais tarde - disse Diane-. Está trabalhando.
Anne fez um som profundo em sua garganta e me acompanhou para dentro. O pai de Philip, Larry; estava
na cozinha roubando doces de uma bandeja.
-Isso é para a sobremesa, papai - disse Anne, espantando-o.
Larry me pegou um dos ombros com um braço, na outra mão rude tinha um doce.
-Onde está...?
-Vem mais tarde - disse Diane -. Está trabalhando. Vem para o living Elena. Mamãe convidou aos vizinhos,
Sally e Juan para almoçar. -Baixou a voz: - Seus filhos estão todos no oeste. -Empurrou as portas de vaivém.
- antes que chegasse mamãe lhes estava mostrando seus últimos artigos no Focus Toronto.
-Isso é bom ou mau?
-Não se preocupe. São muito liberais. Adoraram seus artigos. Aqui estamos. Sally, Juan, ela é Elena
Michaels, a namorada de Philip.

A namorada de Philip. Isso sempre soava estranho, não porque me incomodasse que dissessem
"namorada” em vez de “companheira” ou qualquer outra ridicularia politicamente correta do estilo.
Chamava-me a atenção porque fazia muitos anos que não era a noiva de ninguém. Não tinha relações
estáveis. Para mim, se durava um fim de semana inteiro, já estava ficando muito sério. Minha única relação
duradoura tinha sido um desastre. Mais que um desastre. Uma catástrofe.

Philip era diferente.


Conheci Philip umas poucas semanas depois de me mudar para Toronto. Vivia em um apartamento a
poucas quadras. Dado que nossos edifícios tinham o mesmo administrador, os inquilinos do seu tinham
acesso ao ginásio e a piscina do meu. Ele foi à piscina um dia depois da meia-noite e ao me encontrar sozinha
me perguntou se me incomodava que nadasse um pouco, como se eu tivesse direito de expulsá-lo. Com o
passar do mês seguinte nos encontramos sozinhos ali, sempre tarde da noite. Sempre perguntou se não me
incomodava. Finalmente lhe disse que o motivo pelo qual fazia exercícios era para não ter que me preocupar
de que me atacasse um estranho e que iria contra meu objetivo ficar nervosa com sua presença. Isso o fez
rir e ficou depois de seu exercício e me trouxe suco da máquina vendedora. Quando o suco se tornou um
hábito, foi percorrendo a cadeia alimentara com convites para tomar café, logo almoços e jantares. Quando
chegamos a compartilhar o café da manhã já tinham passado seis meses do dia em que nos conhecemos na
piscina. Esse pôde ter sido um dos motivos pelo que me deixei apanhar, adulada de que alguém investisse
tanto tempo e esforço em me conhecer. Philip me cortejou com a paciência de quem tenta convencer a um
animal meio selvagem de que entre a casa e igual a muitos desencaminhados, encontrei-me domesticada
antes que pensasse em resistir.
Tudo andou bastante bem até que sugeriu que vivêssemos juntos. Teria que ter dito que “não”. Mas não
o fiz. Uma parte de mim não podia resistir ao desafio de ver se podia fazê-lo. Outra parte de mim temia
perdê-lo: era a maior prova de meu êxito no intento por ter uma vida normal. O primeiro mês foi um
desastre. Então, justo quando pensei que a borbulha estava por explodir, a tensão diminuiu. Obriguei-me a
pospor mais minhas Mudanças, o que me permitia fazer minhas corridas quando Philip viajava a negócios
ou trabalhava até tarde. É obvio que não posso dizer que fui eu sozinha que salvei a relação. Inclusive quando
começamos a viver juntos, Philip foi tão paciente como quando saíamos. Quando eu fazia algo que levantaria
as sobrancelhas da maioria das pessoas, Philip o deixava passar com uma brincadeira. Quando a tensão me
superava, levava-me para jantar ou a um espetáculo, para me distrair, de uma vez dava a entender que
estava disposto a me ouvir falar e que entenderia se eu não quisesse fazê-lo. No princípio pensei que era
muito bom para ser real. Todos os dias eu voltava para casa do trabalho, detinha-me em frente à porta do
apartamento e me preparava para o caso de ele ter me abandonado. Mas não o fez. Há algumas semanas
começou a falar de procurar um lugar maior quando terminasse meu contrato de aluguel, inclusive insinuou
que um apartamento em um condomínio poderia ser um investimento adequado. Uau. Isso soava a algo
permanente, não é verdade? Fiquei emocionada uma semana inteira. Mas era uma forma boa de comoção.

Era meio tarde. Os vizinhos já se foram. O marido de Diane, Ken, foi-se cedo para levar ao menor de seus
filhos ao trabalho. A outra irmã de Philip, Judith, vivia na Inglaterra e teve que conformar-se com uma ligação
telefônica depois do almoço e falou com todos, inclusive comigo. Igual a toda a família de Philip, tratava-me
como se fosse sua cunhada em vez da namorada do momento de seu irmão. Eram todos tão amigáveis,
mostravam-se tão dispostos a me aceitar, que custava acreditar que não fosse por simples cortesia. Era
possível que realmente lhes caísse bem, mas depois de ter tido tão má sorte com as famílias, resistia em
acreditar. Desejava-o muito.
Quando estávamos lavando os pratos soou o telefone. Anne atendeu no living. Em poucos minutos veio
me buscar. Era Philip.
-Sinto muito carinho - disse, quando atendi-. Mamãe está zangada?
-Não acredito.
-Bom. Prometi-lhe levá-la para jantar outro dia.
-Virá?
Suspirou.
-Não vou chegar. Diane levará você para casa.
-Não é necessário. Posso tomar um táxi ou o...
-Agora não - disse-. Já disse a mamãe que pedisse a Diane. Agora não lhe deixarão ir sem um acompanhante.
-Fez uma pausa. -Realmente não quis abandonar você. Está sobrevivendo?
-Muito bem. Todos me tratam muito bem, como sempre.
-Alegro-me. Voltarei para casa às sete. Não prepare nada. Comprarei comida pronta. Caribenha?
-Você não gosta da comida caribenha.
-Estou me castigado. Vejo você às sete. Amo você.
Desligou antes que pudesse dizer nada.

-Teria que ter visto os vestidos - dizia Diane enquanto me levava ao meu departamento -. Horríveis. Como
bolsas com buracos para os braços. Os desenhistas devem pensar que quando necessitam um vestido de
mãe de noiva às mulheres já não vão se importa com sua aparência. Encontrei um vestido azul marinho
bonito provavelmente pensado para a nova esposa jovem do pai da noiva, mas a cintura era muito apertada.
Pensei em não comer uma semana para poder usá-lo, mas não. É questão de princípios. Já tive três filhos,
ganhei esta pança.
-Tem que haver algo melhor – disse-. Não procuraste em lojas que não sejam para casamento?
-É o que vou fazer. Na realidade pensava em pedir para você que me acompanhasse. A maioria de minhas
amigas pensa que as bolsas com buracos estão bem. Camuflagem para gente madura. E minhas filhas não
querem nada que não lhes permita exibir o piercing no umbigo.
Incomodaria-se? Convido você para almoçar. Com três martines incluídos.
Ri.
-Com três martines, qualquer vestido parecerá bom. Diane sorriu.
-Esse é meu plano. Sim?
-Com certeza.
-Que bom. Ligo para você, e marcamos o encontro.
Conduziu até a esquina diante de meu apartamento. Abri a porta e então lembrei que devia ser amável.
-Quer subir para tomar um café?
Estava segura de que me daria alguma desculpa, mas em vez disso disse:
-Com certeza uma hora mais de paz antes de voltar para a trincheira. Além disso, terei a oportunidade de
brigar com meu irmãozinho por deixar você hoje no meio dos tubarões.
Ri e lhe indiquei onde podia estacionar.
CHAMADO
Talvez tivesse dado a impressão equivocada fazendo tanto alarde a respeito de meu desejo de viver no
mundo humano, como se todos os licántropos se separassem da vida humana. Não o fazem. Na realidade e
por necessidade, a maioria dos licántropos vive no mundo humano. Se não desejarem criar uma comuna no
Novo o México, não têm outra alternativa. O mundo humano os provê de alimento, teto, sexo e outras
necessidades. Entretanto, embora vivam no mundo, não se consideram parte dele. Vêem a interação
com humanos como um mal necessário, com atitudes que vão do desprezo à risada mal dissimulada. São
atores que fazem seu papel, às vezes desfrutam de seu momento na cena, mas geralmente se sentem
aliviados ao deixá-la. Eu não queria ser assim. Queria viver no mundo humano e, na medida do possível, ser
autêntica ao fazê-lo. Não escolhi esta vida e não ia me entregar a ela, renunciando a todos os sonhos de meu
futuro, sonhos medíocres e ordinários de ter um lar, uma família, uma carreira e, sobretudo, estabilidade.
Nada disso era possível sendo uma mulher loba.
Eu me criei em lares adotivos. Maus lares adotivos. Como quando era uma menina não tive uma família,
estava decidida a criar uma. Ao me converter em licántropo, liquidaram-se esses planos. Mas embora não
pudesse ter marido e filhos, isso não queria dizer que não pudesse cumprir parte daquele sonho. Estava
fazendo carreira no jornalismo. Tinha um lar em Toronto. E estava formando uma família, embora não uma
família tradicional, com o Philip. Já estávamos juntos a tempo suficiente para que começasse a pensar que
era possível obter um pouco de estabilidade. Sentia-me muito afortunada de ter encontrado alguém tão
normal e boa pessoa como Philip. Eu sei que sou difícil, temperamental, obstinada, em nada o tipo de mulher
que interessaria a Philip. É obvio que não me comportava assim com o Philip.
Ocultava essa parte de mim - a parte de mulher loba-, com a esperança de poder ir me desfazendo dela,
como se fosse me liberando de uma pele velha. Com o Philip tinha a oportunidade de me reinventar, me
converter no tipo de pessoa que ele acredita que sou. Que é obvio é exatamente o tipo de pessoa que eu
quero ser.
A Matilha não entendia por que escolhi viver entre os humanos. As reações foram da exasperação ao
sorriso, como se fosse uma adolescente no meio de uma explosão de rebeldia, até a crença de que me infligia
um autocastigo ao viver com uma espécie inferior. Não podiam entender porque não são como eu. Primeiro,
eu não nasci mulher loba. A maioria dos licántropos sim, ou ao menos tem o sangue em suas veias ao nascer
e vivem sua primeira Mudança quando amadurecem. A outra maneira de converter-se em licántropo é ser
mordida por um deles. Mas são poucas as pessoas que sobrevivem à mordida do licántropo. Os licántropos
não são nem estúpidos nem altruístas. Se mordem, procuram matar. Se mordem e não conseguem matar,
espreitam a sua vítima até terminar o trabalho. É uma simples questão de Sobrevivência. Se for uma mulher
loba ou um licántropo que conseguiu adaptar-se comodamente em um povoado ou cidade, a última coisa
que quer é um novo licántropo, meio enlouquecido solto em seu território, matando gente e chamando a
atenção. Embora alguém consiga escapar logo depois de ser mordido, as possibilidades de sobreviver são
mínimas. Nas primeiras vezes a Mudança é um inferno para o corpo e a mente. Os licántropos hereditários
crescem sabendo o que lhes acontece e têm seus pais para guiá-los. Os licántropos mordidos têm que se
ajustarem sozinhos. Se não morrerem pela tensão física, a tensão mental os leva a suicidarem-se ou a fazer
suficiente alvoroço como para que os encontre outro licántropo e acabe com seu sofrimento antes que
possam causar problemas. Por isso não há muitos licántropos por aí. Segundo o último censo, havia trinta e
cinco licántropos no mundo. Um total de três não hereditários, incluindo a mim.
Eu. A única mulher loba existente. O gene do licántropo se transmite através da linhagem masculina, de
pai a filho, de modo que uma mulher só pode converter-se em licántropo se for mordida e conseguir
sobreviver, o que, tal como disse, é muito raro. E em conseqüência não causa espanto que eu seja a única
mulher loba. Mordida propositadamente, convertida propositadamente em mulher loba. Incrível na
realidade é que tenha sobrevivido. No final das contas, quando há uma espécie com três dúzias de machos
e uma fêmea, a fêmea se torna um prêmio a disputar. E os licántropos não solucionam suas disputas jogando
xadrez. Tampouco têm a tradição de respeitar às mulheres. As mulheres cumprem duas funções no mundo
do licántropo: sexo e comida ou, caso se sintam cansados, sexo seguido de comida. Embora duvide que
algum licántropo tenha vontades de me comer, sou um objeto irresistível para satisfazer a outra urgência
primária. Fui por decisão própria, teriam me violado até me matar no primeiro ano. Por sorte não me
deixaram sozinha. Desde que me morderam, estive sob o amparo da Matilha. Toda sociedade tem sua classe
dominante. No mundo dos licántropos, é a Matilha. Por motivos que não tinham nada a ver comigo e sim
com o status do licántropo que me mordeu, eu fui parte da Matilha do momento em que me converteram.
Parti faz um ano. Separei-me deles e não ia voltar. Dada a opção entre ser humana e mulher loba, escolhi
ser humana.

Philip trabalhou até tarde no dia seguinte. Esperava sua ligação dizendo que chegaria tarde, quando
entrou no apartamento com o jantar.
-Espero que tenha fome - Disse, deixando uma bolsa de comida indiana sobre a mesa da cozinha.
Estava faminta apesar de ter comido duas salsichas em um lugar vira-lata a caminho de casa. Isso reduziu
a fome, de modo que agora bastaria com um jantar normal. Outro dos milhões de truques que aprendi para
me acomodar à vida humana.
Philip falou de seu trabalho ao tirar as caixas da bolsa e pôr a mesa. Afastei meus papéis para um lado
para lhe permitir colocar meu prato e talheres. Às vezes posso ser assim amável. Inclusive quando a comida
já estava em meu prato, consegui resistir um segundo a comida, enquanto escrevia a linha final do artigo no
qual trabalhava. Logo coloquei de lado o papel e finquei o dente.
- Mamãe ligou para mim no trabalho - disse Philip-. Esqueceu-se de perguntar a você ontem se a ajudaria
a organizar a festa de despedida de solteira de Becky.
- Sério?
Escutei o tom de felicidade em minha voz e me surpreendi. Organizar uma festa não era motivo para
entusiasmar muito a ninguém. Mas tampouco ninguém me convidou a fazê-lo antes. Nunca nem sequer me
convidaram a uma festa como essa, salvo minha colega de trabalho, Sara, mas ela convidou a todas suas
companheiras do escritório.
Philip sorriu.
-Aceita? Bem. A mamãe ficará satisfeita. Adora esse tipo de coisas.
-Não tenho muita experiência no assunto.
-Não importa. As damas de honra de Becky farão a despedida principal, assim esta vai ser uma menor,
limitada à família. Bom, não exatamente pequena. Acredito que mamãe queira convidar a todos os parentes
que temos em Ontário. Conhecerá todos. Estou seguro de que mamãe já falou com todos sobre você. Espero
que não se aflija.
-Não - disse-. Eu adoro.
-Tem certeza. Diz isso agora, antes de conhecê-los.
Logo depois do jantar, Philip desceu para ginásio para fazer exercícios aeróbicos para reduzir o peso.
Quando trabalhava em seu horário normal, gostava de fazer exercício cedo e ir para cama cedo, porque
admitia que estava ficando muito velho para sobreviver com cinco horas de sono por noite. O primeiro mês
que vivemos juntos eu o acompanhei em seus exercícios. Não era fácil demonstrar que me esforçava para
mover cinqüenta quilogramas quando podia fazer cinco vezes mais. Então chegou o dia em que estava tão
distraída conversando com um vizinho que não me dei conta de que estava manejando um aparelho com
uma carga de trinta quilogramas com uma mão e falando tão tranqüila como se baixasse uma cortina...
Quando vi que o vizinho olhava meus pesos, compreendi que tinha metido os pés pelas mãos e disfarcei
com alguma tolice a respeito de que a máquina estava mal calibrada. A partir dali voltei para meu hábito de
fazer exercício entre a meia noite e as seis, quando o ginásio estava vazio. Disse a Philip algo a respeito de
aproveitar o ar madrugada. Ele aceitou, como tantas outras coisas. Quando ele trabalhava até tarde, íamos
nadar e correr juntos, como ele fazia quando nos conhecemos. Se não, ele ia sozinho.
Essa noite, quando Philip saiu, liguei a televisão. Não é algo que me interessasse muito, mas quando
olhava, afundava-me no pior da programação, fazendo zapping com os programas educativos e os filmes de
alto nível, para ir aos de intrigas e conversas corriqueiras. Por quê? Porque me tranqüilizava ao ver que havia
gente no mundo em pior situação que eu. Sem importar o que saísse mal durante o dia, podia ligar a TV, e
ver algum idiota dizer a sua esposa e ao resto do mundo que se deita com a filha dela e me dizer: "Bom, eu
estou melhor que ela”. O pior da televisão como terapia de reafirmação. É uma maravilha.
Hoje Inside Scoop, Relatório Secreto, continuava informando de um psicótico que escapou de um cárcere
da Carolina do Norte há uns meses. Puro sensacionalismo. O tipo se colocou no departamento de um
estranho, amarrou o homem e o matou porque "queria saber o que se sente”. Os roteiristas temperaram a
história com palavras tais como «selvagem», «louco» e «animal». Que estupidez. Quero ver um animal que
mata alguém pelo prazer de vê-lo morrer. Por que persiste o estereótipo do «animal assassino»? Porque os
humanos gostam. Explicam as coisas com baboseiras, elevam aos humanos civilizados ao topo da escala
evolucionista e põe aos assassinos junto aos monstros mitológicos, os homens-bestas, como os licántropos.
A verdade é que se um licántropo se comportasse como esse psicopata não se deveria a sua parte animal,
mas sim a que ainda continuava sendo muito humana. Só os humanos matam por esporte.
O programa quase tinha terminado quando Philip voltou.
-O exercício foi bom? -perguntei.
-Nunca é bom. -disse, fazendo uma careta-. Continuo esperando o dia que inventem uma pílula para
substituir o exercício físico. O que está vendo? -inclinou-se em cima de minha cabeça. -Alguma briga
interessante? Esse é Jerry Springen Não posso vê-lo. Tentei uma vez. Agüentei dez minutos, tentando
entender o que havia detrás da linguagem vulgar. Finalmente cheguei à conclusão de que tudo o que havia
era a linguagem vulgar; um descanso entre programas de catch.
Philip riu e me despenteou com a mão.
-Está com vontade de caminhar? Tomo uma ducha enquanto você termina de ver o programa.
-Parece bom.
Philip se dirigiu ao banheiro para tomar uma ducha. Eu fui até a geladeira e peguei um pedaço de
provolone que escondi antes entre as verduras. Quando soou o telefone, ignorei-o. Comer era mais
importante e dado que Philip já tinha aberto a torneira, não poderia escutá-lo tocar e saber que eu não o
respondia. Equivoquei-me. Ao ouvi-lo fechar a torneira, voltei a esconder o queijo e corri até o telefone.
Philip era do tipo que atendia ao telefone durante o jantar e deixava que sua comida esfriasse para
responder as perguntas de uma pesquisa telefônica. Tentava seguir seu exemplo, ao menos quando ele
estava. Estava no meio do caminho quando a secretária eletrônica começou a funcionar. Minha voz lançou
uma saudação nauseabundamente alegre que convidou à pessoa que ligava a deixar uma mensagem. E esta
o fez.
-Elena? Quem fala é Jeremy - detive-me-. Por favor, me ligue. É muito importante. Ligue assim que possa.
Sua voz se interrompeu. O telefone chiou quando ele tomou ar. Sabia que estava tentado de dizer algo
mais, lançar um ultimato, mas não podia. Tinham um acordo. Não podia vir aqui nem enviar a nenhum dos
outros. Resisti ao impulso de estirar a língua à secretária eletrônica. Não, não me pode agarrar. A maturidade
é algo ao que se dá um valor exagerado.
-É urgente Elena - continuou Jeremy-. Não ligaria para você se não fosse assim Sabe que não ligaria se não
fosse assim.
Philip ia atender, mas Jeremy já tinha desligado. Ele pegou o fone e o aproximou de mim. Eu desviei o
olhar e fui para a poltrona.
-Elena? -disse-. Não vais ligar para ele?
-Não deixou um número.
-Não o tem? Soava como se pensasse que o tem. É um parente? Um velho amigo?
-Éeee... um segundo primo.
-Assim minha órfã misteriosa tem família. Algum dia terei que conhecer este primo.
-Não gostaria de conhecê-lo, asseguro-lhe isso.
Riu.
-Seria justo. Eu impus minha família a você. Agora pode ter sua vingança. A festa de Betsy dará a você o
motivo para buscar seus primos loucos, encerrados há anos em alguma colina. Embora na realidade os
primos loucos que vivem em colinas são os mais interessantes. Melhores que as tias avós que contam a
mesma história desde que era criança e dormem na hora da sobremesa.
Fiz um gesto de exasperada solidariedade.
-Está preparado para sair?
-Terminarei minha ducha. E se ligar para o serviço de informações?
-É que cobram, consigam ou não o número?
-Custa menos de um dólar. Podemos nos dar ao luxo. Ligue. Se não encontrar seu número, possivelmente
haja outra pessoa que o tenha. Com certeza há mais primos destes, não é verdade?
-Crê que têm serviço de mensageiros nessas colinas? Têm sorte se tiverem luz.
-Liga Elena – esbravejou, embora fosse de brincadeira, e voltou para o banheiro. Quando saiu do quarto,
fiquei olhando o telefone. Philip podia ter brincado, mas eu sabia que ele esperava que eu respondesse a
ligação de Jeremy. E por que não? Era o que faria qualquer ser humano decente. Philip escutou a mensagem,
escutou o tom de urgência na voz de Jeremy. Se me negasse a responder o que parecia uma ligação muito
importante daria a impressão de ser insensível. Um humano ligaria. O tipo de mulher que eu queria ser
ligaria.
Podia fazer de conta que ligava. Era tentador, mas não evitaria que Jeremy ligasse uma e outra vez. Não
era a primeira vez que tentava comunicar-se comigo nos últimos dias. Podia fazer de conta que ligava. Os
licántropos têm certo grau de comunicação telepática entre se. A maioria dos licántropos a ignora e
preferem modos menos místicos de comunicação. Jeremy refinou essa capacidade até convertê-la em uma
arte, principalmente porque lhe dava um recurso a mais para meter-se debaixo de nossa pele e nos
incomodar até que fizéssemos o que ele queria ele tentava se conectar e eu o evitava. Então recorreu ao
telefone. Não era tão efetivo como bombardear o cérebro de alguém, mas passados alguns dias de fitas
cheias de mensagens, me renderia, embora fosse mais para me liberar dele.
Parei junto ao telefone, fechei os olhos e respirei fundo. Podia fazê-lo. Podia ligar para ele, saber o que
Jeremy queria, agradecer amavelmente por me dizer isso e me negar a fazer o que quer que fosse, sabendo
muito bem que ia me pedir algo. Embora Jeremy fosse o Alfa da Matilha e eu estivesse condicionada a
cumprir suas ordens, já não era obrigada a fazê-lo. Eu já não fazia parte da Matilha. Ele não tinha controle
sobre mim.
Peguei o fone e disquei de cor o número. Soou quatro vezes, logo atendeu a secretária eletrônica. Uma
voz com um forte sotaque sulino, não o tom profundo de Jeremy, o que me fez cortar a ligação antes de
escutar toda a mensagem. Tinha suor na testa. O ar no apartamento parecia ter subido cinco graus e perdido
à metade do oxigênio. Passei as mãos pelo rosto, sacudi a cabeça e me afastei.

Na manhã seguinte, antes do café da manhã, anunciei que ia tentar me comunicar novamente com
Jeremy. Novamente Philip me deixou sozinha e foi procurar o jornal lá em baixo. Voltei a ligar para o Jeremy
e outra vez a secretária eletrônica.
Embora não quisesse reconhecer, já estava começando a me preocupar. Não podia evitar. Preocupar-me
com meus antigos irmãos de Matilha era instintivo, algo que não podia controlar. Ou, ao menos, isso é o que
me disse quando meu coração começou a pulsar forte na terceira ligação sem resposta.
Jeremy devia estar ali. Raramente saía de Stonehaven e preferia reinar de seu trono, enviando aos agentes
da Matilha a fazer o trabalho sujo no mundo exterior. Bom, não era uma descrição justa do estilo de
condução de Jeremy, mas não me sentia com ânimo de pensar bem dele. Disse-me que ligasse e, caralho,
devia estar ali quando ela o fizesse.
Quando Philip voltou, eu estava junto ao telefone, olhando-o com ira como se pudesse obrigar Jeremy a
atender.
-Não responde? -perguntou Philip.
Neguei com a cabeça. Olhou meu rosto com mais atenção do que eu queria. Quando ia lhe dar as costas,
atravessou o quarto e me pôs a mão sobre o ombro.
-Está preocupada.
-Em realidade não. Só...
-Está preocupada, coração. Se fosse alguém de minha família estaria preocupado. Possivelmente teria
que ir lá. Ver o que estar acontecendo. Parecia urgente.
Afastei-me.
-Não, isso é ridículo. Vou continuar ligando.
-É de sua família, carinho - disse, como se isso pudesse antepor-se a qualquer argumento. Para ele era
assim. Isso não se podia discutir. Justo quando Philip e eu começávamos a ter uma relação mais firme,
venceu-se o contrato de aluguel de seu apartamento. Ele disse com toda claridade que queria morar comigo,
mas eu resisti. Então me levou para conhecer sua família. E então vi como se relacionava com sua mãe, seu
pai e sua irmã, até que ponto estavam integrados a sua vida. No dia seguinte disse a ele que não renovasse
seu aluguel.
Agora Philip considerava que eu devia ajudar alguém que ele acreditava que era um parente. Se me
negasse, pensaria que não era o tipo de pessoa que ele queria? Não podia correr esse risco. Prometi que ia
continuar tentando me comunicar. E prometi que se até o meio-dia não conseguisse fazê-lo, pegaria um
avião e iria ver o que estava acontecendo.
Cada vez que liguei nas seguintes horas roguei que alguém atendesse. Mas sempre atendeu a secretária
eletrônica.
Philip me levou ao aeroporto no automóvel depois do almoço.
PRÓDIGA
O avião aterrissou em Syracuse às sete da tarde. Tentei me comunicar com Jeremy mais novamente
atendeu a secretária eletrônica. A esta altura estava mais zangada que preocupada. Ao diminuir a distância,
comecei a recordar como era viver em Stonehaven, a casa de campo de Jeremy. Em particular recordei os
hábitos para responder ao telefone, ou melhor, a falta deles. Viviam duas pessoas em Stonehaven, Jeremy
e Clayton, seu filho adotivo convertido em guarda-costas. Havia dois telefones na casa de cinco dormitórios.
O quarto de Clay tinha um ramal; mas o telefone mesmo tinha perdido a campainha fazia quatro anos,
quando Clay o jogou do outro lado do quarto, logo depois de ser despertado por duas noites consecutivas.
Também havia um telefone no escritório, mas se Clay precisava usar a linha para seu notebook muitas vezes
esquecia de voltar a conectá-lo, às vezes por vários dias. Embora houvesse um telefone funcionando na casa,
os dois homens podiam estar sentados a dois metros e não incomodar-se de atender. E pensar que Philip
acreditava que os meus eram maus hábitos.
Quanto mais pensava, mais zangada estava. E quanto mais zangada, mais decidida a não sair do aeroporto
até que alguém respondesse o maldito telefone. Afinal de contas, se me convocavam, deviam vir me buscar.
Essa pelo menos era minha desculpa. A verdade é que não queria deixar o movimento do aeroporto. Sim,
parece loucura. A maioria das pessoas julga o êxito de um vôo de avião pelo tempo longo ou curto que teve
que passar no aeroporto. Normalmente eu sentiria o mesmo, mas sentada ali, absorvendo o que havia para
ver e cheirar e os sons que me rompiam os tímpanos, desfrutei de quão humano era isso, o caos cotidiano
e sem sentido da vida humana. Ali, no aeroporto, era um rosto anônimo em meio a muitos rostos igualmente
anônimos. Reconfortava-me a sensação de ser parte de algo maior mais não estar no centro da coisa. As
coisas mudariam no instante em que saísse dali e fosse ao isolamento físico e psicológico de Stonehaven.
Duas horas mais tarde decidi que já não podia adiar a coisa. Fiz minha última ligação a Stonehaven e
deixei uma mensagem. Duas palavras. “Estou indo". Bastaria.
Não foi fácil chegar a Stonehaven. Ficava em uma parte remota do norte do estado de Nova Iorque, perto
de um povoado pequeno chamado Bear Valley. Caiu à noite enquanto ia para lá e olhei pela janela do táxi,
vendo como se foram reduzindo as luzes de Syracuse até que se extinguiram. O silêncio da noite no campo
me tranqüilizou, e me fez relaxar mais do que poderia na cidade. Os licántropos não se acomodam à vida
urbana. Não há aonde correr e a multidão de pessoas muitas vezes provoca mais tentação do que oferece
o resguardo do anonimato. Às vezes penso que escolhi viver no centro de Toronto simplesmente porque vai
contra minha natureza, outro instinto para combater e derrotar.
Ao olhar pela janela calculei o tempo vendo passar os lugares conhecidos. Com cada um, meu estômago
batia as asas mais e mais. Temor, disse-me, não desejo de estar ali. Embora tivesse passado quase dez anos
em Stonehaven não o considerava meu lar. Para mim o conceito de lar era difícil, uma construção etérea
que emergia de sonhos e contos e não da experiência real. É obvio que por um tempo tive um lar, um bom
lar com uma boa família, mas não durou o suficiente como para que deixasse mais que uma mínima
impressão em minha mente.
Meus pais morreram quando eu tinha cinco anos. Voltávamos para casa de uma feira, por um caminho
secundário, porque minha mãe queria me mostrar uma potranca de pony diminuta que viu em uma granja
por ali. Ouvia meu pai rir no assento dianteiro, perguntando a minha mãe como esperava que visse algo em
um campo a meia-noite. Não recordo o que aconteceu, nem os chiados das rodas, nem os gritos, nenhuma
perda de controle. Só a escuridão.
Não sei como cheguei à banqueta. Tinham-me prendido com o cinto de segurança, mas devia ter me
arrastado até ali depois do acidente. Quão único recordo é que estava sentada no cascalho junto à cabeça
de meu pai, olhando seus olhos que me observavam, rogando que o ajudasse. Seu corpo estava a cinco
metros. Lembro-me que comecei a soluçar, uma menina de cinco anos, acocorada junto ao caminho,
olhando a cabeça decapitada de meu pai e soluçando porque estava escuro e ninguém vinha me ajudar,
soluçando porque minha mãe estava no automóvel esmagado, sem mover-se e o corpo de meu pai estava
estendido sobre a capota e sua cabeça aqui na terra e estava tão escuro e frio e ninguém vinha me socorrer.
Se tinha mais parentes, nunca soube. A única pessoa que tentou me reclamar quando meus pais morreram
foi a melhor amiga de minha mãe e não me entregaram a ela porque não era casada. Entretanto só passei
umas poucas semanas no orfanato antes que me adotasse o primeiro casal que me viu. Ainda posso vê-los,
ajoelhados ante mim, dizendo com palavras de bebê quão linda era. Tão pequena, tão perfeita com meus
cabelos loiros quase albinos e meus olhos azuis. Disseram que era uma boneca de porcelana. Levaram a
boneca para casa e começaram sua vida perfeita. Mas não funcionou assim. Sua boneca bonita ficava
sentada em uma cadeira todo o dia e não abria nunca a boca e de noite - todas as noites - gritava até o
amanhecer. Passadas três semanas me levaram de novo. Assim passei de uma família adotiva a outra, e
sempre me escolhiam por meu rosto, mas eram incapazes de dirigir minha psique transtornada.
Quando cheguei à adolescência, os casais que me tiravam do orfanato eram diferentes. Já não era a esposa
quem me escolhia a não ser o marido, que se sentia atraído por minha beleza infantil e meu temor. Converti-
me na eleição favorita de depredadores masculinos que procuravam uma menina muito especial.
Contraditoriamente, foram esses monstros que me fizeram descobrir minha força. Ao crescer comecei a
entender o que eram. Não eram os perspicazes e poderosos que se metiam em meu quarto de noite, a não
ser criaturas débeis aterrorizadas de que as rechaçasse e denunciasse. Ao perceber isso, comecei a perder
o temor. Podiam me tocar, mas não podiam tocar a meu eu, não ao eu que estava além de meu corpo. Ao
dissipar o temor, também o fez a ira. Desprezava-os, tanto quanto a suas esposas igualmente débeis e cegas,
mas não eram dignos de minha ira. Ao mesmo tempo descobri outra fonte de poder: a força de meu corpo.
Cresci alta e magra. Uma professora me inscreveu no programa de práticas na pista de esportes, pensando
que isso permitiria que me relaciona-se com outros jovens. Não foi assim, mas aprendi a correr; descobri o
prazer inigualável do físico, senti minha força e minha velocidade pela primeira vez. Quando estava no meio
da escola secundária levantava pesos e fazia exercícios todos os dias. Meu pai adotivo já não me tocava
naquele tempo dificilmente alguém me teria tomado por uma vítima

-É aqui, senhorita? -perguntou o chofer.


Não senti o automóvel parar, mas ao olhar pela janela vi que estávamos em frente à grade exterior de
Stonehaven. Confirmava isso uma figura sentada no pasto, com os tornozelos cruzados e apoiado no muro
de pedra. Clayton.

O chofer forçou a vista, tentando adivinhar a casa na escuridão, sem ver a placa de bronze nem o homem
esperando junto à grade. A lua se ocultou depois de uma nuvem e as luzes da entrada estavam apagadas.
-Desço aqui - disse.
-Não. Não pode senhorita. Não é seguro. Há algo ali.
Pensei que se referia ao Clay. «Algo» era uma boa descrição. Estava para dizer que, desgraçadamente,
conhecia esse «algo», quando o chofer disse:
-Tivemos problemas neste bosque, senhorita. Parece que há cães selvagens. Uma das garotas do povoado
foi encontrada perto daqui. Massacrada pelos cães. Encontrou-a meu amigo e disse... bom, que não era nada
lindo de ver, senhorita. Fique sentada e eu abrirei a porta e a levo ao interior.
-Cães selvagens? - repeti, segura de que tinha escutado mal.
-Sim. Meu amigo encontrou rastros. Enormes. Um tipo da universidade disse que os rastros eram de
apenas um animal, mas não pode ser. Tem que ser uma Matilha. Você não vê... - O olhar do chofer foi até a
janela lateral e saltou. -Por Deus!
Clay deixou seu lugar junto ao portão e se materializou junto a minha janela. Estava parado ali me olhando,
com um sorriso lento iluminando seus olhos pegou o trinco da porta. O chofer se virou e pôs ré no
automóvel.
-Tudo bem - disse-lhe, muito a meu pesar-, está me esperando.
A porta se abriu. Clay colocou a cabeça.
-Vai descer ou só está pensando? -perguntou.
-Olhe - disse o chofer, virando-se-. Não desça. Se você for suficientemente parvo para andar por este
bosque de noite é assunto seu, mas não vou deixar que esta senhorita caminhe até a casa que está a não sei
que distância. Se quiser que leve vocês, abra o portão e suba. Se não, feche a porta.
Clay se virou para o chofer; como se só agora notasse sua presença. Estirou os lábios e abriu a boca. Sabia
que não ia dizer nada bonito. Antes que Clay pudesse armar um escândalo, abri a porta do outro lado e
desci. Quando o chofer baixou sua janela para me deter, deixei cair uma nota de cinqüenta em seu colo e
dei a volta por atrás do táxi. Clay fechou a porta com um golpe e se dirigiu para o caminho de entrada. O
chofer vacilou e logo se foi a toda velocidade, lançando uma chuva de cascalho em sinal de desgosto por
nossa tolice juvenil.
Ao me aproximar, Clay deu um passo atrás para me observar. Em que pese ao ar frio da noite, só vestiu
um jeans desbotado e uma regata preta, que permitiam apreciar seus quadris estreitos, peito amplo e bíceps
perfeitamente esculpidos. Não tinha mudado nada nos dez anos transcorridos desde que o conheci. Sempre
esperava ver alguma diferença: algumas rugas, uma cicatriz, algo que afetasse seu aspecto de modelo e o
convertesse em um mortal igual a todos outros, mas sempre me desiludia.
Ao avançar para ele, inclinou a cabeça e seus olhos nunca deixaram de olhar os meus. Seus dentes brancos
cintilaram em um sorriso.
-Bem-vinda a casa, carinho. - Seu sotaque sulino deformou a palavra carinho e a fez soar como se cantasse
uma canção country do oeste. Eu odiava essa música.
-É o comitê de recepção? Ou é que Jeremy por fim amarrou você à grade, que é onde deve estar?
-Eu também senti saudades.
Estendeu a mão para pegar-me, mas o esquivei e logo iniciei a marcha de quatrocentos metros até a casa.
Clay me seguiu. Uma brisa de ar fresco noturno elevou uma mecha de cabelo de minha nuca e me trouxe
uma variedade de aromas: cedro, o perfume leve das flores de macieira e também o aroma de um jantar
devorado há algum tempo. Cada aroma diminuía minha tensão, com lembranças prazerosas. Sacudi-me,
rechaçando essa sensação e me obrigando a manter os olhos no caminho, concentrada em não fazer nada,
não falar com Clay, não cheirar nada, sem olhar a esquerda ou à direita. Não me atrevia a perguntar ao Clay
o que estava acontecendo. Isso significaria fazê-lo falar e seria indicativo de que queria conversar com ele.
Com o Clay até o mínimo intercâmbio era perigoso. Por mais que estivesse ansiosa por saber o que acontecia,
teria que esperar que Jeremy me dissesse isso.
Quando cheguei a casa parei na porta e olhei para cima. A casa de pedra de dois andares parecia inclinar-
se para trás, alerta. As boas-vindas estavam aí, mas muda, à espera que eu fizesse o primeiro movimento.
Tão parecida com seu dono. Toquei uma das pedras frescas e senti uma enxurrada de lembranças. Retirei a
mão, abri a porta, joguei minha bolsa no chão e me dirigi ao escritório, esperando encontrar Jeremy lendo
junto à lareira. Sempre estava ali quando eu voltava, não esperando no portão como Clay, mas, entretanto
me esperando.
A sala estava vazia. Havia uma cópia do jornal de Melam, o Ccorriere della Sera, junto à cadeira de Jeremy.
Sobre a poltrona e na escrivaninha havia pilhas de revistas e publicações sobre antropologia pertencentes à
Clay. O telefone principal estava na escrivaninha e parecia intacto e ligado.
-Liguei - disse-. Por que ninguém atendeu?
-Estávamos aqui - disse Clay-. Por aqui. Teria que ter deixado uma mensagem.
Deixei uma. Faz duas horas.
Bom, isso explica a coisa. Estive junto ao portão todo o dia esperando você e sabe que Jer nunca escuta
as mensagens.
Não perguntei como Clay sabia que eu viria hoje se não deixei nenhuma mensagem. Tampouco perguntei
por que ele passou todo o dia sentado junto ao portão. A conduta de Clay não podia ser julgada de acordo
com os padrões humanos de normalidade... nenhum padrão de normalidade.
Então onde está? - perguntei.
-Não sei. Não o vi desde que trouxe o meu jantar faz umas horas. Deve ter saído.
Não precisava ver se o automóvel de Jeremy estava na garage para saber que Clay não dizia “saído" no
sentido usual. As palavras humanas comuns adquirem novo sentido no Stonehaven. Significava que tinha
saído por aí. E não a correr.
Jeremy esperava que voasse até aqui e depois ficasse esperando que ele se dignasse a me atender? É
obvio. Era o castigo por ignorar seu chamado? Em parte desejava poder acusá-lo disso, mas Jeremy nunca
se preocupava com pequenezas. Se planejou sair esta noite, o faria, viesse eu ou não. Senti-me doída além
de zangada, mas tentei ocultar isso. Estava zangada, nada mais. Podia jogar o mesmo jogo. Jeremy queria
ficar sozinho em sua saída. O que faria eu? Invadiria sua privacidade, é obvio. Jeremy pode não se importar
com as coisas pequenas, mas eu sim.
-Saiu? - disse-. Bom, então terei que encontrá-lo.
Passei junto a Clay em direção à porta. Pôs-se na minha frente.
-Voltará logo. Sente-se e...
Voltei a esquivá-lo caminhando para o corredor traseiro e abri a porta de atrás. Clay me seguiu de perto.
Atravessei o jardim rodeado de muros até o caminho que leva ao bosque. As raminhas se quebravam sob
meus pés. Começaram a me chegar os aromas da noite: folhas queimadas, ganho distante, a terra molhada,
uma multidão de rastros; tentadores. Em algum lugar longínquo um camundongo chiou açoitado por uma
coruja.
Continuei caminhando. A quinze metros o caminho se tornava apenas um rastro de pasto pisoteado e logo
desaparecia. Parei e farejei. Nada. Nenhum rastro nem som nem gesto de Jeremy. Nesse momento notei
que não escutava nenhum som, nem sequer os passos de Clay detrás de mim. Virei-me e só vi as árvores.
-Clayton! - gritei.
Chegou-me a resposta um instante mais tarde ao escutar alguém abrir-se caminho na mata em algum
lugar longínquo. Tinha ido alertar Jeremy. Golpeei a árvore mais próxima com a palma da mão. Realmente
esperava que Clay me permitisse me intrometer na privacidade de Jeremy com tanta facilidade? Nesse
aspecto esqueci algumas coisas no último ano.
Passei entre as árvores. As raminhas golpeavam meu rosto e meus pés tropeçavam com as trepadeiras.
Segui adiante, com uma sensação de ser imensa, torpe e nada bem-vinda aqui. O caminho não era para
pessoas. Não tinha nenhuma possibilidade de ganhar do Clay assim. Por isso procurei uma clareira e me
preparei para a Mudança.
Minha Mudança foi acelerada, por isso resultou torpe e torturante e logo tive que descansar, ofegando
no chão, uns minutos. Ao me pôr de pé, fechei os olhos e respirei fundo o aroma de Stonehaven. Senti um
tremor de prazer que nascia em minhas garras, subia por minhas patas e sacudia todo meu corpo. Deixou-
me uma mescla indescritível de excitação e calma que me deu vontade de me lançar através do bosque e
me deixar cair em doce paz ao mesmo tempo. Estava em casa. Sendo humana, podia negar que Stonehaven
era meu lar, que as pessoas daqui eram minha Matilha, que o bosque era mais que um pouco de terra alheia.
Mas sendo loba no bosque de Stonehaven, havia um coro ressonando em minha cabeça. O bosque era meu.
Era território da Matilha e, portanto meu. Meu para correr, caçar e brincar sem temer os adolescentes de
farra, caçadores muito ansiosos ou raposas e guaxinins raivosos. Não havia sofás descartados que
bloqueassem meu caminho, nem latas enferrujadas que cortassem minhas garras, nada de bolsas de lixo
que enchessem o ar de porcarias ou produtos químicos que poluíssem a água que eu tomava. Este não era
um grupinho de árvores para uma ou duas horas. Eram quinhentos acres de bosque, cheios de atalhos
familiares e carregados de coelhos, cervos e meia dúzia mais de animais para caçar, um bufê para meu
prazer. Meu prazer. Aspirei grandes baforadas de ar. Meu. Saí ao caminho. Minha. Esfreguei-me em um
carvalho, sentindo que a casca me raspava tirando a pele morta. Meu. A terra tremeu com três vibrações
leves: um coelho a minha esquerda. Meu. Minhas pernas queriam correr, redescobrir o mundo intrincado
do bosque. Alguém no fundo de meu cérebro, uma diminuta voz humana gritou: “Não, não, não. Isto não é
teu. Deixou-o. Não o quer”. Ignorei essa voz.
Faltava só uma coisa, uma última coisa que diferenciava este bosque do barranco solitário de Toronto. No
momento em que pensava, um uivo atravessou a noite, não o canto musical da noite, a não ser o chamado
urgente de um lobo solitário, o sangue chamando o sangue. Fechei os olhos e senti vibrar em mim o som.
Então lancei minha cabeça para trás e respondi. A pequena voz de alerta deixou de gritar injurias e a ira se
transformou em algo mais parecido ao terror. "Não” - sussurrou- isso não. Recupera o bosque. Reclama
como teu o ar e os caminhos e as árvores e os animais. Mas isso não.
Os arbustos a minha costas se agitaram, e girei para ver Clay saltando. Alcançou-me de frente e me atirou
de costas, logo ficou parado sobre mim e mordiscou a pele frouxa de meu pescoço. Quando lhe dei uma
dentada, retirou-se. Gemeu, medindo meu pescoço com seu focinho, me rogando que brincasse com ele,
me dizendo quão sozinho esteve. Podia sentir a resistência dentro de mim, em alguma parte, mas muito
profunda e longínqua. Peguei sua pata dianteira com meus dentes e o fiz cair. Lancei-me sobre ele.
Derrubamo-nos na mata, dando mordidas e chutando e lutando por nos colocar acima do outro. Justo
quando estava para me imobilizar, liberei-me e escapei. Corremos em círculos. A cauda de Clay me percorria
o flanco, me acariciando como uma mão. Aproximou-se e esfregou seu flanco contra o meu... ao dar a
seguinte volta, pôs uma perna diante da minha para me deter e afundou seu focinho em meu pescoço. Senti
seu fôlego quente em minha pele e ele absorveu meu aroma. Logo me puxou pelo pescoço e me jogou para
trás, com um grito de triunfo enquanto eu caía. Não pôde sustentar sua vitória mais que um par de segundos.
Lutamos um momento mais, logo me liberei. Clay deu um passo para trás, agachou-se, deixando em alto
seus quadris. Tinha a boca aberta, a língua pendurada e as orelhas para frente. Agachei-me como me
preparando para enfrentar seu ataque. Quando saltou, pulei para um lado e comecei a correr.
Clay me seguiu a toda velocidade. Corremos através do bosque, acre detrás acre. Então, justo quando
dava a volta para voltar para a casa, soou um disparo, quebrando a paz. Detive-me escorregando. Um tiro?
Realmente escutei um tiro? É obvio que enfrentei armas no passado, as armas e os caçadores eram perigos
que se podia chegar a enfrentar em um bosque estranho. Mas isto era Stonehaven. Era seguro.
Outro disparo perturbou a paz do bosque. Meus ouvidos se moviam de um lado a outro. Os estampidos
provinham do norte. Havia árvores frutíferas no norte. Era que o granjeiro usava esses aparelhos que imitam
disparos para assustar aos pássaros? Devia ser. Era isso ou alguém estava caçando nos campos vizinhos. O
bosque de Stonehaven estava claramente delimitado com arame farpado e avisos. As pessoas do local
respeitavam os limites. Sempre foi assim. A reputação de Jeremy com as pessoas do lugar era perfeita. Podia
não ser muito sociável, mas o respeitavam.
Ia me dirigir ao norte, para esclarecer o mistério. Não tinha andado mais de três metros quando Clay se
interpôs. Grunhiu. Não era um grunhido brincalhão. Olhei-o, me perguntando se tinha interpretado mal o
significado. Voltou a grunhir e aí soube com certeza que estava impedindo minha passagem. Joguei as
orelhas para trás e foi a minha vez de grunhi. Fechou minha passagem. Estreitei os olhos e o olhei com ira.
Obviamente me afastei por muito tempo se ele acreditava que podia mandar em mim como fazia com
outros. Se tinha esquecido quem eu era, estava disposta a lhe dar uma lição para refrescar a memória dele.
Estirei os lábios e lancei um último grunhido de alerta. Não retrocedeu. Lancei-me contra ele. Mas chocou-
se comigo no ar, me deixando sem fôlego. Quando recuperei os sentidos, estava estirada no chão com os
dentes do Clay prendendo a pele solta de atrás da cabeça. Estava fora de forma.
Clay grunhiu e me sacudiu fortemente, como se fosse uma cachorrinha que se comportou mal. Logo
depois de fazê-lo umas quantas vezes retrocedeu. Pus-me de pé com toda a dignidade que pude. Antes que
estivesse parada de tudo, Clay me golpeou o quadril com o focinho. Voltei-me para lhe dá um olhar
indignado. Voltou a me empurrar no sentido contrário ao que queria ir. Segui-se o jogo uns quinhentos
metros, logo fui para a um lado e tentei esquivá-lo. Em poucos segundos me alcançou e senti que lançava
seus cem quilogramas sobre minhas costas e me atirava sobre a terra. Os dentes de Clay se afundaram em
meu ombro, o suficiente para me fazer sangrar e que sentisse uma forte dor e comoção. Esta vez não me
deixou terminar de me pôr de pé que já estava me tocando de volta a casa, mordendo minhas pernas
traseiras se dava sinais de reduzir a marcha.
Clay me levou até a clareira onde eu tinha Trocado e Trocou do outro lado da folhagem. Minha Mudança
foi mais rápida que a primeiro. Mas desta vez não precisei descansar. A fúria me deu energia. Pus minha
roupa, rasgando a manga da camisa. Logo saí da clareira. Clay estava ali, com os braços cruzados, esperando.
É obvio que estava nu, sua roupa abandonada em uma clareira mais no interior do bosque. Nu, Clay era
ainda mais perfeito que vestido, o sonho de um escultor grego feito realidade. Vendo-o senti o calor que
percorria meu corpo, trazendo lembranças de outras corridas e sua inevitável conseqüência. Amaldiçoei a
traição de meu corpo e me aproximei dele.
-Que caralho está fazendo? -gritei
-Eu? Eu? Eu não sou o idiota que quis correr para os homens com armas. No que está pensando Elena?
-Não diga sandices. Eu não sairia de nossas terras e você sabe. Tinha curiosidade. Não faz uma hora que
voltei e já está me pondo a prova. Até que ponto pode manobrar-me, até que ponto pode controlar...
-Esses caçadores estavam em nossas terras Elena - a voz do Clay soava grave e seus olhos estavam
cravados nos meus.

-Esta é uma estup… -detive-me e estudei seu rosto-. Fala sério, é verdade? Caçadores? Nas terras de
Jeremy? Os anos já estão atrofiando seu cérebro?
Admitiu o golpe mais do que eu esperava. Apertou os lábios. Seu olhar se endureceu. Havia ira ali, a beira
da explosão. A ira não estava dirigida a mim, a não ser contra quem tinha se atrevido a invadir seu santuário.
Cada fibra de Clay se rebelava contra a idéia de permitir que houvesse homens armados nas terras
pertencentes à casa. Só havia uma coisa que poderia o impedir de caçá-los: Jeremy. De modo que Jeremy
devia ter proibido que ele se ocupasse dos intrusos, não só matá-los, mas também de utilizar suas infames
técnicas para assustá-los. O método usual de Clay expulsar aos intrusos humanos. Duas gerações de
adolescentes locais em busca de lugares para fazer festas cresceram transmitindo o conto de que os bosques
de Stonehaven eram enfeitiçados. Enquanto os contos tivessem a ver com fantasmas e não se falasse de
licántropos, Jeremy o permitia, inclusive o estimulava. Afinal de contas, permitir que Clay assustasse as
pessoas locais era mais seguro e muito menos problemático que outra alternativa. Então por que Jeremy
não o permitia agora? O que mudou?
-Ele deve estar lá dentro agora - disse Clay-. Vai e fala com ele.
Virou-se para ir em busca de sua roupa.

Ao ir para a casa pensei no que havia dito o chofer do táxi. Cães selvagens. Não havia cães selvagens aqui.
Os cães não se aproximariam do território dos licántropos. E os cães tampouco andavam matando mulheres
jovens e saudáveis. Pegadas imensas de cães em volta do corpo significavam uma só coisa. Um licántropo.
Mas quem poderia estar matando tão perto de Stonehaven? A pergunta mesma era tão incrível que não
podia ter resposta. Para um licántropo que não fosse da Matilha seria suicídio cruzar a fronteira do estado
de Nova Iorque. Os métodos de Clay para espantar aos intrusos eram tão conhecidos que nenhum se atreveu
a se aproximar menos de oitenta quilômetros de Stonehaven em mais de vinte anos. Conta-se que Clay
desmembrou ao último licántropo intruso dedo a dedo, membro por membro, mantendo-o vivo até o último
momento possível, quando lhe arrancou a cabeça. Naquele tempo Clay tinha dezessete anos.
Também era ridícula a idéia de que Clay ou Jeremy pudessem ser responsáveis por semelhante feito.
Jeremy não matava. Isso não significa que não pudesse matar ou que nunca sentisse o impulso de fazê-lo,
mas sim, que simplesmente entendia e canalizava melhor sua energia em outras coisas, assim como um
general deve renunciar ao calor do combate e dedicar-se a questões de estratégia e condução. Se tivesse
que matar alguém, Jeremy ordenava que outro o fizesse. Inclusive isso se fazia em casos extremos e
raramente se tratava de humanos. Não importa qual fosse à ameaça, Jeremy nunca ordenaria matar a um
ser humano em seu território. E quanto a Clay, por mais falhas que tivesse, matar a seres humanos por
esporte não era uma delas. Matá-los significava tocá-los, cair na indignidade de entrar em contato físico com
eles, coisa que não fazia a menos que fosse absolutamente necessário.

Quando voltei a entrar na casa, esta continuava em silêncio. Fui de novo ao escritório, o coração de
Stonehaven. Jeremy não estava ali. Decidi esperar. Se estivesse na casa, me escutaria. E por sua vez, viria
para mim.
Jeremy governava a Matilha com autoridade absoluta. É a lei dos lobos selvagens, embora nem sempre
fosse à lei da Matilha. Às vezes a história dos Alfas da Matilha fazia que as batalhas pela sucessão imperial
em Roma parecessem civilizadas. Um licántropo da Matilha conseguia tomar o mando, manter seu posto de
Alfa por alguns meses, possivelmente inclusive alguns anos, mas terminava assassinado ou executado por
um de seus irmãos mais ambiciosos, que ocuparia seu lugar até que chegasse seu próprio fim, geralmente
não por morte natural. Ser Alfa na Matilha não tinha nada que ver com a capacidade de condução, a não ser
com o poder.
Na segunda metade do século vinte a Matilha estava se desmembrando. O mundo após a industrialização
não tratava bem aos licántropos. Os bosques e as pradarias cediam terreno à extensão urbana. As pessoas
na sociedade moderna respeitavam muito menos que a da Inglaterra feudal a privacidade de seus vizinhos
ricos que preferiam viver uma vida retirada. A rádio, a televisão e os jornais podiam fazer correr por todo
mundo em poucas horas à notícia de que se avistou um licántropo. Os novos métodos de trabalho da polícia
permitiam vincular assassinatos cometidos por um cão no Tallahasse com feitos similares aos acontecidos
em Miami e Key West. O mundo começou a cercar à Matilha. Em vez de unirem-se para sua mútua defesa,
os membros da Matilha começaram a lutar entre si, disputando cada vestígio de segurança, inclusive
chegando a roubar territórios de seus próprios irmãos.
Jeremy mudou tudo isso.
Embora Jeremy nunca tivesse sido considerado o melhor lutador da Matilha, possuía uma força que era
ainda mais importante para a sobrevivência e o êxito. Jeremy tinha absoluto autocontrole. O fato de que
pudesse dominar seus próprios instintos e impulsos significava que podia analisar racionalmente os
problemas que enfrentava a Matilha e os dirigir de modo racional, tomando decisões que não respondessem
a meros impulsos. À medida que as cidades foram se convertendo em terras de humanos e cimento sem
frestas, mudou a Matilha para o campo. Ensinou a seus membros a conduzir-se com os seres humanos, como
ser parte do mundo e estar afastado do mundo ao mesmo tempo. Quando as histórias a respeito dos
licántropos começaram a difundir-se cada vez mais rápido e com maior facilidade, exerceu seu controle não
só sobre a Matilha, mas também sobre os licántropos que não eram membros dela. No passado se
considerava os licántropos que não eram da Matilha como cidadãos de segunda. Sob o reinado de Jeremy
os licántropos que não eram da Matilha não melhoraram seu status, mas a Matilha descobriu que não podia
se dar ao luxo de ignorá-los. Se um licántropo que não era da Matilha criava problemas no Cairo, ressonava
em Nova Iorque. A Matilha começou a fazer arquivos dos licántropos que não eram membros dela, tomando
conhecimento de seus hábitos e rastreando-os. Quando um licántropo causava problemas em qualquer
lugar do mundo, a Matilha atuava de forma rápida e concludente. A pena por pôr em perigo à Matilha ia de
uma advertência, passando por uma surra, até uma rápida execução. Sob o reinado de Jeremy, a Matilha
era mais forte e estável que nunca ninguém questionava sua liderança. Sabiam que tinham algo bom.
Deixei de pensar nisso e foi para perto da escrivaninha, para olhar a pilha de papéis que havia ali. «As
escavações revelam novos elementos do fenômeno Chavín» era o título de um artigo. Debaixo aparecia
outro se referido aos antigos cultos do jaguar de Chavín de Huántar. «Que interessante», bocejei. Embora
muitos se surpreendessem, Clay era na realidade um tipo brilhante, que tinha um doutorado em
antropologia. Especializava-se em religiões antropomórficas. Ou dito de outro modo, estudava simbolismo
de homens besta nas culturas antigas. Ganhou sua reputação a base de investigações, já que não gostava de
lidar diretamente com o mundo humano, mas quando considerava necessário ter contato com o mundo
acadêmico, dava cursos breves. Assim o conheci.
Novamente tentei deixar de lado tais pensamentos. Dando as costas aos papéis de Clay, afundei na
poltrona. Olhando ao redor, notei que a sala estava exatamente como eu a deixei há quatorze meses.
Recordei como era o escritório antes, comparei com o que via e não encontrei uma só diferença. Não era
possível. Jeremy redecorava essa sala - e a maior parte da casa - tão freqüentemente que se brincava a
respeito de que se alguém pestanejava já havia algo diferente. Clay disse uma vez que as mudanças tinham
a ver com más lembranças, mas não adicionou nada mais. Mas depois que Clay me trouxesse aqui, Jeremy
me recrutou como assistente decoradora. Lembrava de ter passado noites inteiras estudando catálogos,
movendo móveis e olhando catálogos de pintura. Ao olhar para o teto junto à lareira vi montículos
endurecidos de cola de papel para parede, que datavam de uma vez em que, muito cansados já às quatro
da madrugada para seguir empapelando as paredes, Jeremy e eu travamos uma dura batalha, jogando
grumos de uma ponta à outra da sala um no outro.
Lembrava ter olhado para esses montículos a última vez que estive no escritório. Jeremy estava parado
em frente à lareira, me dando as costas. Enquanto eu contava o que fiz, desejava ansiosamente que ele se
virasse e me dissesse que estava tudo bem. Mas eu sabia que não era assim. Era algo totalmente
equivocado. Ainda assim queria que me dissesse algo, algo que me fizesse sentir melhor. Como não o fez,
partir, jurando não voltar. Olhei novamente aos grumos de cola. Outra batalha perdida.
-Assim, por fim... voltou.
A voz me sobressaltou. Jeremy estava na porta. Estava com uma barba curta, coisa que acontecia quando
estava muito concentrado em algo para barbear-se e logo já não queria arrumar o assunto. Fazia que ele
parecesse mais velho, embora nem de longe a sua verdadeira idade, cinqüenta e um anos. Como disse,
envelhecemos lentamente. Jeremy parecia estar no meio dos trinta; seu corte de cabelo, que chegava até
os ombros e estava amarrado na nuca, sublinhava essa ilusão de juventude. Era um estilo que adotou não
por seguir a moda mais sim porque podia cortar menos seus cabelos. Para Jeremy as idas ao cabeleireiro
eram intoleráveis, de modo que Clay ou eu o cortávamos, coisa que não suportava mais de umas quantas
vezes ao ano. Quando entrou no escritório, caiu-lhe o cabelo sobre os olhos, tirando toda austeridade de
seu rosto. Atirou-o para trás, um gesto tão familiar que fez minha garganta doer.
Olhou ao redor.
-Onde está Clay?
Típico. Primeiro se zanga comigo porque cheguei tarde. Logo pergunta pelo Clay. Senti dor, mas a rechacei.
Não é que esperasse que me recebesse aos abraços e aos beijos. Esse não era o modo de ser de Jeremy,
embora tivesse sido bom que dissesse “fico feliz em ver-te” ou “como foi o vôo?”.
-Escutamos disparos no bosque - disse. -Clay murmurou algo a respeito de tumbas pouco profundas e se
foi.
-Estive três dias tentando contatar você.
-Estava ocupada.
Houve um tic em sua bochecha. Nisso Jeremy era o equivalente de uma explosão emocional.
-Quando chamar você, me responda - disse, com voz enganosamente suave-. Não chamaria você se não
fosse importante. Se chamar, responda. Esse foi o acordo.
-Correto, esse foi o acordo. Passado. Nosso acordo terminou quando deixei a Matilha.
-Quando deixou a Matilha? Quando foi isso? Perdoe-me se perdi algo, mas não me lembro de ter falado
de tal coisa, Elena.
-Acreditei que nos entendíamos.
Clay entrou na sala trazendo uma bandeja com frios e queijo. Deixou-a na escrivaninha e me olhou e logo
ao Jeremy.
Jeremy continuou.
-Assim já não é parte da Matilha agora?
-Correto.
-Então é uma deles, uma piolhenta?
-É obvio que não, Jer - disse Clay, deixando-se cair junto a mim no sofá.
Parei e fui para perto da lareira.
-Bom, como é então? -perguntou Jeremy me atravessando com o olhar-. Matilha ou não?
-Vamos, Jer - disse Clay-. Sabe que não disse a sério.
-Tínhamos um acordo Elena. Não contataria você se não a necessitasse. Agora necessito de você e
choraminga e se zanga porque tive a desfaçatez de recordar você de suas responsabilidades.
-Para que me necessita? Para que me ocupe do vira-lata intruso? Essa é a tarefa de Clay.
Jeremy sacudiu a cabeça.
-Não se usa dinamite para matar um camundongo. Clay tem seus pontos fortes. A sutileza não é um deles.
Clay sorriu para mim e encolheu seus ombros. Eu desviei o olhar.
-Então que coisa tão importante há para que me necessite? -perguntei.
Jeremy virou-se e foi para a porta.
-Já é tarde. Falaremos pela manhã. Possivelmente esteja menos agressiva depois de dormir.
-Um momento! Disse, me interpondo em seu caminho-. Deixei tudo para vir aqui. Faltei ao trabalho,
paguei uma passagem de avião e vim o mais rápido que pude porque ninguém respondia ao maldito
telefone. Se sair, não prometo que vá me encontrar aqui pela manhã.
-Que assim seja -- Disse Jeremy, sua voz tão fria que me fez tiritar-. Se decidir ir embora, que Clay leve
você ao Syracuse.
-Sim, com certeza – disse -. Teria mais probabilidades de chegar ao aeroporto pedindo que o psicopata
local me levasse.
Clay sorriu.
-- Esqueceu, querida, que eu sou o psicopata local.
Murmurei que concordava. Jeremy não disse nada, ficou ali e esperou que me afastasse a um lado. Fiz. É
difícil quebrar velhos hábitos. Jeremy saiu da sala. Um minuto mais tarde a porta de seu quarto acima se
fechou.
-Filho da puta arrogante - murmurei.
Clay deu de ombros. Estava reclinado em seu assento, me olhando, com um sorriso pensativo que me
punha nervosa.
-Que caralho querem? - disse
Seu sorriso se fez mais largo com o brilho de seus dentes brancos.
-A você. O que outra coisa?
Onde? Aqui? Na terra?
-Não. Isso não. Ainda não. Só o mesmo que sempre quis. Você. Aqui. Para sempre.
Desejei que tivesse aceitado minha interpretação de suas palavras. Olhou-me novamente nos olhos.
- Alegro por sua volta, carinho. Senti saudades.
Quase tropeço ao sair correndo da sala.
REUNIÃO
Não importando o que houvesse dito Jeremy, eu sabia que não devia tentar deixar a casa. Jeremy podia
fazer de conta que não se importava com o que eu fizesse, mas me deteria se tentasse ir sem escutar o que
ele queria me dizer 'Tinha três opções. Primeiro, podia forçar a mão e tentar de ir embora. Segundo, podia
subir a seu quarto e ameaçar ir embora se não me dissesse o que acontecia. Terceiro, podia ir a meu antigo
quarto, dormir e averiguar pela manhã o que queria. Avaliei as opções. Agora seria impossível conseguir um
táxi para voltar para Syracuse, dado que o serviço local fechou a mais de uma hora. Podia pegar um dos
automóveis e deixá-lo no aeroporto, mas as possibilidades de que houvesse um vôo para Toronto às três da
madrugada eram quase nulas e eu não gostava da idéia de dormir no aeroporto. Tampouco eu gostava da
idéia de brigar com Jeremy. A gente não brigava com Jeremy Danvers; podia gritar e amaldiçoá-lo, mas ele
ficava parado com um olhar inescrutável, esperando que alguém se cansasse, e logo com calma se negava a
discutir o assunto. Eu encontrei a maneira de superar suas defesas, mas me faltava prática. Não, esta noite
lutaria me negando a seguir seu jogo. Iria dormir, Cuidaria do assunto pela manhã e iria. Simples assim.
Subi para meu antigo quarto, ignorando o fato de que embora supostamente ninguém soubesse que eu
vinha - o quarto foi arejado, a janela estava aberta, havia lençóis limpos e prontos para dormir. Peguei meu
celular da bolsa e liguei para Philip. À medida que ia tocando e ninguém respondia, fui sentindo uma
crescente desilusão. Provavelmente já estava deitado. Quando atendeu a secretária eletrônica; pensei em
desligar e ligar de novo com a esperança de que por fim despertasse, mas sabia que era egoísta de minha
parte querer falar com ele para restabelecer meu vínculo com o mundo exterior. Assim que deixei uma
mensagem breve, comunicando que cheguei bem e que voltaria a ligar antes de partir no dia seguinte.

O silêncio da casa me despertou na manhã seguinte. Eu estava acostumada a despertar na cidade,


amaldiçoando os sons do tráfico, atirando o relógio despertador no outro lado do quarto, ameaçando fazer
o mesmo com o Philip se não me deixasse ficar na cama. Quando nada conspirou para me levantar esta
manhã, despertei de repente as dez, meio acreditando que o mundo se acabava. Então me dei conta de que
estava em Stonehaven. Não posso dizer que me senti aliviada.
Liberei-me dos lençóis bordados e os travesseiros de pluma e corri as cortinas da cama. Despertar em meu
quarto de Stonehaven era como despertar de um pesadelo de novela vitoriana. A cama com dossel por si só
terrível, algo tirado de um conto de fadas. Mas a coisa ficava pior. Ao pé da cama havia gaveta de cedro com
cobertores de pluma e perfume de madeira, para o caso de que não bastassem os de algodão egípcio que
havia em cama. Na janela se agitavam cortinas de voile, sobre um divã embutido na parede, forrado de seda.
As paredes estavam pintadas de rosa pálido e adornadas com aquarelas de flores e crepúsculos. No outro
lado do quarto havia uma penteadeira de carvalho, com espelho de moldura dourada, escova e espelho de
mão com base prateada. O tampo da cômoda estava cheio de bonequinhas de Dresden. Scarlett haveria se
sentido em sua casa.
O assento na janela foi o motivo principal pelo qual Jeremy escolheu este quarto para mi. Isso e que as
cerejeiras florescessem justo debaixo da janela. Parecia apropriadamente lindo e feminino. A verdade é que
Jeremy não sabia nada de mulheres e esperar que ficasse louca pelas flores de cerejeira foi o primeiro de
muitos enganos. Não se podia esperar que soubesse muito. As mulheres tinham um papel quase
insignificante em mundo dos licántropos. O único motivo que tem um licántropo para averiguar o que pensa
uma mulher é encontrar a melhor maneira de levá-la à cama. A maioria nem sequer se molesta em averiguar
isso. Se a gente for dez vezes mais forte que a fabulosa ruiva sentada junto ao bar, por que incomodar-se
em comprar um gole. Esse é ao menos o ponto de vista dos que não fazem parte da Matilha. Os da Matilha
são mais sutis. Se um licántropo quer viver em um lugar, não pode manter o hábito violar a uma mulher
cada vez que sente necessidade. Os licántropos da Matilha inclusive têm amantes e noivas, embora nunca
formem o que os humanos chamam de relações estáveis. É obvio que não se casam. Tampouco permitem
às mulheres criar seus filhos. É lei da Matilha que todo filho varão deve ser separado de sua mãe na infância
e se devem cortar todos os laços com ela. Assim não se podia esperar que Jeremy soubesse muito sobre o
sexo oposto, posto que foi criado em um mundo no que as mães, irmãs e tias eram só palavras em um
dicionário. E não havia mulheres lobo. Exceto eu, é obvio. Quando me morderam, Jeremy esperava
encontrar-se com uma criatura infantil e dócil que timidamente aceitaria seu destino e se contentaria com
um quarto bonito e roupas lindas. Se tivesse previsto o futuro, possivelmente teria me expulsado... ou algo
pior.
Quem me mordeu me traiu da pior maneira possível. Eu o amei, confiei nele e ele me converteu em um
monstro. Então me deixou com Jeremy. Dizer que reagi mal é dizer pouco. O do quarto não funcionou. Em
uma semana Jeremy teve que me prender em uma jaula. Minhas Mudanças ficaram tão descontrolados
como meus ataques de fúria. Nada que Jeremy dissesse fazia que eu o escutasse. Odiava-o. Era meu captor;
o único ao que podia culpar de todas as minhas torturas, físicas e emocionais. Se a jaula era meu inferno,
Jeremy era meu Satã.
Finalmente escapei. Consegui viajar para Toronto comprando a passagem com a única coisa que tinha
para dar em troca: meu corpo. Mas poucos dias depois de chegar compreendi que minha valoração da jaula
era totalmente inexata. Não era o inferno. Era só uma estação de passagem a caminho do inferno. Viver sem
limites e incapaz de controlar minhas Mudanças era o nono círculo do inferno.
Comecei matando animais para sobreviver, coelhos, guaxinins, cães e inclusive ratos. Em pouco tempo
perdi toda ilusão de me controlar e comecei a afundar na loucura. Incapaz de raciocinar, mal podia pensar
e só respondia às urgências de meu estômago. Os coelhos e guaxinins já não bastavam. Comecei a matar
gente. Depois do segundo assassinato, Jeremy me encontrou, levou-me para casa e me treinou. Não voltei
a tentar escapar. Tinha aprendido a lição. Havia coisas piores no mundo que Stonehaven.

Desci da cama e caminhei pelo piso de madeira frio até o tapete. Minha bolsa estava lá embaixo, mas não
importava. A cômoda e o guarda-roupa estavam cheios de roupa que acumulei ao longo dos anos. Encontrei
jeans e uma camisa e os vesti. Não tinha vontade de me pentear, assim que fiz uma trança.
Já semi-apresentável abri a porta do quarto e olhei a porta fechada do outro lado do corredor. Os roncos
de Clay conseguiam transpassar sua porta e eu relaxei um pouco.
Esse era um problema que queria evitar esta manhã.
Saí ao corredor e passei por sua porta. De forma surpreendentemente abrupta se detiveram os roncos.
Amaldiçoando, desci os primeiros degraus. A porta de Clay se abriu com um rangido e logo escutei seus pés
descalços sobre o piso de madeira. “Não pare", alertei-me. “Não pare". Então é obvio parei e me virei.
Estava parado acima, e parecia suficientemente exausto para cair pela escada. Seus cachos dourados
estavam em desordem e esmagados com o suor do sono. Tinha uma sombra de barba loira. Seus olhos
estavam meio abertos e se esforçavam por me enfocar. Vestia apenas a cueca branca com estampa de
pisadas de patas pretas que comprei para ele para fazer uma brincadeira durante um dos períodos em que
estávamos bem faz uns anos. Espreguiçando-se, girou os ombros para trás, expondo os músculos de seu
peito.
-Passou uma má noite vigiando minhas rotas de escapamento? -perguntei.
Encolheu os ombros. Quando eu tinha um mau dia em Stonehaven, Clay passava a noite me vigiando.
Como se eu fosse tão covarde para fugir de noite. Bom, é certo que o tinha feito, mas essa não era a questão.
-Quer que acompanhe você no café da manhã? -perguntou.
-Não.
Outra vez encolheu os ombros sonolento. Dentro de umas horas não deixaria passar o rechaço sem brigar.
Caralho, em algumas horas não se incomodaria de perguntar se podia me acompanhar. Continuei descendo.
Tinha dado três passos, quando ele despertou de repente, seguiu-me e me puxou pelo cotovelo.
-Eu preparo seu café da manhã - disse-. Verei você no alpendre. Quero falar contigo.
-Não tenho nada para dizer a você, Clayton.
-Dê-me cinco minutos. Já desço.
Antes que pudesse responde; subiu correndo e desapareceu em seu quarto. Poderia segui-lo, mas teria
significado segui-lo a seu quarto. Decididamente isso não era uma boa idéia.
Ao chegar ao térreo, chegou-me o aroma de presunto com mel e panquecas, meu café da manhã favorito.
Fui ao alpendre e olhei a mesa Sim, havia pilhas de presunto e panquecas sobre um prato. Não tinham
chegado sozinhos ali, mas teria me surpreendido menos se fosse assim. A única pessoa que podia havê-lo
preparado era Jeremy, mas ele não cozinhava. Não é que não pudesse, não o fazia. Isso não quer dizer que
ele esperasse que Clay ou eu o servíssemos, mas quando ele preparava o café da manhã, a única coisa que
fazia era o café. O resto era uma mixórdia de pães, queijos, frios, frutas e qualquer outra coisa que
requeresse uma preparação mínima.
Jeremy entrou detrás de mim na sala.
-Esfriará. Sente-se e coma.
Não disse nada do café da manhã. Quando Jeremy fazia um gesto amável, não gostava que lhe
agradecessem. Por um momento estive convencida de que essa era a maneira de Jeremy me dar as boas-
vindas. Então reapareceram as velhas dúvidas. Possivelmente só preparou o café da manhã para me
tranqüilizar. Nunca descobriria as intenções de Jeremy. Às vezes estava segura de que me queria em
Stonehaven, outras vezes pensava que só me aceitava porque não tinha mais remédio, porque havia me
metido em sua vida e me ter calma e controlada era o melhor para sua Matilha. Sei que eu pensava muito
nisso, me esforçando para interpretar cada gesto dele, muito ansiosa para ver um sinal de aprovação.
Possivelmente ainda estivesse presa aos velhos patrões da infância, desejando um pai mais do que estava
disposta a admitir. Desejava que não fosse assim. A imagem que queria projetar não era precisamente a de
uma menina carente.
Sentei-me e comecei a comer. As panquecas foram preparadas com uma mistura tirada de uma caixa, mas
não me queixei. Estavam quentes e me enchiam e tinham manteiga e xarope de arce 2. A coisa autêntica,
não a porcaria de imitação que sempre comprava para economizar um pouco. Engoli o primeiro montão e
me servi do segundo. Jeremy não moveu um cabelo. Uma coisa boa em Stonehaven era que eu podia comer
tudo o que quisesse sem que ninguém comentasse ou notasse.
Parece que enquanto Clay estava vigiando a janela de meu quarto ontem à noite, Jeremy me esperava
aqui esta manhã. Seu cavalete estava posto entre a janela e sua cadeira. Havia ali uma folha com algumas
linhas. Não tinha avançado muito no novo esboço. As poucas linhas que tinha esboçado evidentemente
tinham sido apagadas e novamente traçadas várias vezes. Em um lugar o papel ameaçava rasga-se.
-Vais me dizer o que está acontecendo? -perguntei.
2
Arce = Bot. 1. Árvore acerácea. 2. Madeira dessa árvore. Então seria um xarope feito com a casca desta árvore.
-Vais escutar? Ou está procurando outro motivo para briga?
Riscou outra linha sobre o fantasma da anterior e voltou a apagá-la se via o marrom da madeira do
cavalete através do buraco que deixou.
-Ainda não superou o que aconteceu, não é verdade? - disse-lhe -. O motivo pelo qual parti. Ainda está
zangado.
Não levantou a vista do esboço. Caralho, por que não me olhava?
-Eu não estava zangado contigo, Elena. Você estava zangada consigo mesma. Por isso partiu. Você não
gostava do que fez. Assustou-se e acreditou que podia deixá-lo para trás se partisse. Foi assim?
Não respondi.
Há dezesseis meses fui investigar a informação de que alguém vendia informação sobre os licántropos. A
Matilha não saia perseguindo cada tipo que dizia que tinha provas da existência de licántropos. Isso seria
um trabalho de tempo integral para cada licántropo existente dentro e fora da Matilha. Seguimos as histórias
que soam verídicas, excluindo palavras chaves tais como balas de prata, assassinato de bebês e criaturas
metade homem, metade besta, que assolam o mundo. O que resta é uma tarefa de algumas horas que
cumprimos Clay e eu. Cada um cumpre um rol. Se um licántropo de fora estiver causando problemas e
Jeremy quer lhe dar um castigo exemplar, enviava Clay. Se o problema ia além do que ele pudesse resolver
rapidamente -Ou se havia um humano envolvido - então eram necessárias cautela e fineza. Para esses casos
me enviava. O caso de José Carter requeria meus serviços.
José Carter era um mascate especializado em fenômenos paranormais. Passou a vida enganando aos
crédulos e vulneráveis dizendo a eles que seus seres queridos mortos queriam entrar em contato com eles
do além. Então, faz dois anos, enquanto trabalhava na América do Sul, chegou a um povoado onde se
afirmava que havia um licántropo. Não ia perder essa oportunidade e Carter foi ao lugar para começar a
reunir o que supunha que eram evidências falsas. O problema é que não eram falsas. Um dos cães esteve
viajado pelo Equador, atacando uma aldeia detrás de outra e deixando um rastro de cadáveres. O cão pensou
que tinha a solução perfeita, ao atacar aldeias tão remotas que ninguém veria uma relação entre elas. Não
contava com o José Carter. E Carter nunca pensou que ia encontrar a coisa verdadeira, mas quando o fez
soube o que era rapidamente. Foi para o Equador com as declarações de testemunhas, amostras de pêlo,
moldes tirados das pegadas e fotografias. Ao voltar para o EUA se contatou com várias sociedades
paranormais e tentou vender a informação. Estava tão seguro do que tinha encontrado que se ofereceu para
acompanhar a expedição de volta a Sudamérica com quem fizesse a melhor oferta para rastrear a besta.
Eu encontrei José Carter em seu 'leilão de informação em Dallas. Tentei desacreditá-lo. Tentei roubar as
prova Quando nada funcionou fiz o único que restava. Matei-o. Fiz isso por minha conta, sem ordens de
Jeremy e sem sequer me contatar com ele. Depois voltei para hotel, banhei-me e desfrutei de um bom sono.
Quando despertei, logo compreendi o que tinha feito.
Nem tanto o que tinha feito a não ser como o tinha feito, o fácil que me resultou. Matei um homem com
tanta preocupação moral como a que me tivesse provocado matar uma mosca.
No caminho de volta para Nova Iorque, preparei meus argumentos para explicar a Jeremy por que atuei
sem consultá-lo. Carter era uma ameaça real. Fiz tudo o que pude para detê-lo. Acabava-se o tempo. Se
ligasse para Jeremy ele teria dito que o fizesse, assim simplesmente economize um passo e me encarreguei
da coisa. Antes de chegar a Stonehaven compreendi que não era ao Jeremy a quem eu queria convencer, a
não ser a mim mesma. Tinha cruzado a linha. Atuei com um só propósito o de proteger a minha Matilha,
sem uma gota de compaixão. Atuei como Clay. Isso me assustou, assustou-me tanto que fugi e jurei nunca
mais voltar para essa vida.
Tinha mudado? Sentia-me totalmente no controle de meus instintos e impulsos? Não sabia. Por um ano
não fiz nada tão terrível, mas tampouco me encontrei em uma situação onde tivesse a oportunidade. Outro
motivo pelo qual não quis voltar para Stonehaven. Não sabia se já tinha tirado isso de cima de mim e não
estava segura de querer averiguá-lo.

Uma comoção na porta me tirou de minha distração. Ao levantar os olhos uma figura alta de cabelo escuro
irrompeu na sala. Nicholas Sorrentino me viu, chegou junto a mim em três passos e me levantou de meu
assento. Enganchei a cadeira com um tornozelo e a derrubei. Grunhiu de brincadeira ao me abraçar.
-Faz muito tempo, irmãzinha. Muito.
Nick me levantou e me beijou. O beijo decididamente não era fraternal, um beijo profundo, que me deixou
sem fôlego. A qualquer outro teria dado uma bofetada, mas ninguém mais beijava como Nick, assim decidi
não reprovar sua indiscrição.
-Fique a vontade - disse uma voz com sotaque sulino da porta.
Nick se virou para Clay e sorriu. Ainda me mantinha cativa. Aproximou-se de Clay e o golpeou nas costas.
Clay pegou a cabeça dele em uma chave. Liberou-me e afastou Nick. Nick recuperou o equilíbrio, sorriu e
voltou a se aproximar.
-Quando chegou? -perguntou-me e logo cravou um dedo nas costelas de Clay-. E por que não me disseram
que vinha?
Alguém me pegou pelas costas e me elevou do chão.
-A filha pródiga retornou.
Virei o rosto para ver um rosto tão familiar como o do Nick.
-É tão mau como seu filho - disse me liberando dele-. Não sabem dar a mão?
Antonio riu e me baixou.
-Teria que apertar você mais forte. Possivelmente assim aprenderia a ficar em casa.
Antonio Sorrentino tinha o mesmo cabelo escuro ondulado e os olhos castanhos impactantes de seu filho.
Geralmente se faziam passar por irmãos. Antonio tinha cinqüenta e três e parecia ter a metade disso, coisa
que devia tanto a sua paixão pela vida saudável como ao fato de que era um licántropo. Era mais baixo e
maciço que seu filho, com ombros largos e bíceps que faziam que os do Clay parecessem os de um peso-
pena.
- Peter já chegou? - perguntou Antonio, sentando-se junto a Jeremy, que sorvia seu segundo café sem que
o perturbasse a comoção.
Jeremy negou com a cabeça.
-Vêm todos? - perguntei.
-Termina seu café da manhã - disse Jeremy, com olhar crítico-. Perdeu peso. Não pode fazê-lo. Se não tiver
energia suficiente perderá o controle. Já alertei você sobre isso.
Deixando por fim seu cavalete de lado, Jeremy se virou para falar com Antonio. Clay estendeu a mão por
sobre meu ombro, pegou um pedaço de presunto e o engoliu inteiro. Quando o olhei chateada, dirigiu-me
um gesto de "só tentava ajudar você".
-Não coloque a mão em seu prato - disse Jeremy sem vira-se. O seu está na cozinha. Há para todos.
Antonio foi o primeiro a sair. Quando Nick ia segui-lo, Clay o puxou pelo braço. Não disse nada. Não
precisava fazê-lo. Nick assentiu e foi encher dois pratos enquanto Clay continuava a meu lado.
-Prepotente - murmurei.
Clay elevou as sobrancelhas, com os olhos azuis cintilando sua perfeita inocência. Sua mão tentou tirar
outro pedaço de presunto de meu prato. Cravei-lhe o garfo na mão com força suficiente para fazê-lo uivar.
Jeremy nos ignorou.
Antonio voltou para a sala, com o prato tão carregado que pensei que em qualquer momento as
panquecas se deslizariam ao chão, porque, além disso, sustentava o prato com uma mão. A outra mão estava
ocupada em levar uma panqueca à boca. Nick chegou detrás de seu pai e deixou cair o prato de Clay diante
dele, logo aproximou uma quinta cadeira, virou-a e se sentou com o respaldo para frente. Houve um
maravilhoso silêncio por uns minutos. Os licántropos não falam muito durante a alimentação. A tarefa de
encher o estômago exige concentração total.
O silêncio podia ter durado mais se a campanhia não o tivesse feito pedacinhos. Nick foi atender e voltou
com Peter Myers. Peter era baixo e duro, com um sorriso fácil e cabelos vermelhos rebeldes que sempre
parecia como se ele tivesse se esquecido de penteá-los. Novamente o ritual de abraços de urso, batidas nas
costas, beijos brincalhões, as saudações na Matilha eram tão entusiastas como físicas, e muitas vezes
deixavam tantas contusões como uma briga.
-E Logan? - perguntei, quando todos voltavam para sua tarefa alimentícia.
-Não vem. -disse Jeremy - Teve que voar para Los Angeles para um julgamento. Contei-lhe o que acontece,
mas teremos que nos arrumar sem ele por agora.
-O que me lembra algo - disse Clay, dirigindo-se a mim-. A última vez que falei com Logan, comentou que
falou contigo na páscoa. É obvio que isso não é possível já que deixou de ter contato com a Matilha, verdade?
Olhei para Clay, mas não respondi. Não precisei fazê-lo. Podia ver a resposta em meus olhos. Seu rosto
avermelhou de ira e atacou uma fatia de presunto com força suficiente para sacudir a mesa. Sim, falei com
Logan na páscoa, no dia de seu aniversário e no meu, no Natal e meia dúzia de vezes. Disse-me que enquanto
não o visse, não estava faltando a meu voto. Além disso, Logan era mais que meu irmão na Matilha, era meu
amigo, possivelmente o único verdadeiro amigo que tive. Tínhamos a mesma idade e compartilhávamos
algo mais que saber os nomes de ambos os integrantes da banda de rock Wham. Logan entendia a atração
do mundo exterior. Desfrutava do amparo e do companheirismo que oferecia a Matilha, mas se sentia
igualmente à vontade no mundo humano, onde tinha um apartamento em Albany, uma noiva de longa data
e exercia a profissão de advogado. Quando me inteirei que Jeremy convocou uma reunião, pensei que era
genial que Logan viesse. Mas agora possivelmente eu não teria nenhuma compensação ante esta visita
indesejada.

Uns minutos mais tarde, Jeremy e Antonio foram conversar no alpendre de atrás. Como era o amigo mais
próximo e mais velho de Jeremy, Antonio muitas vezes servia para provar suas idéias, uma espécie de
assessor da corte. Antonio e Jeremy criaram-se juntos, filhos das duas famílias mais distintas da Matilha. O
pai de Antonio foi o Alfa da Matilha antes de Jeremy. Quando Dominic morreu, muitos na Matilha supuseram
que Antonio ocuparia seu lugar, embora a chefia não fosse hereditária. Igual ao que acontece com os lobos
verdadeiros, o Alfa da Matilha tradicionalmente era o melhor lutador. Antes que Clay crescesse, Antonio era
o melhor guerreiro. Além disso, tinha mais inteligência e sentido comum que uma dúzia de licántropos
normais. Mas com a morte de seu pai, Antonio apoiou Jeremy, vendo nele virtudes que salvariam à Matilha.
Com a ajuda de Antonio, Jeremy pôde liquidar todas as objeções a sua sucessão como Alfa. Depois ninguém
o desafiou. O único licántropo que poderia disputar a posição de Jeremy era Clay e Clay cortaria o braço
direito antes de desafiar ao homem que o resgatou e criou como a um filho.

Quando Jeremy tinha vinte e um anos, seu pai voltou com uma estranha história de uma de suas viagem.
Estava passando pela Luisiana quando sentiu o aroma de um licántropo. Rastreou-o e descobriu um menino
lobo, pré-adolescente, que vivia como um animal nos pântanos. Para Malcolm Danvers, não foi mais que
uma história intrigante no jantar, já que ninguém tinha ouvido falar antes de um menino lobo. Embora os
licántropos hereditários não tivessem sua primeira Mudança até se tornarem adultos, geralmente entre os
dezoito e os vinte e um anos, um humano mordido por um licántropo virava licántropo imediatamente
qualquer que fosse sua idade. A pessoa mais jovem convertida em licántropo até então tinha tido quinze
anos. Supunha-se que se um menino mais jovem fosse mordido, morreria, se não pela mordida, sem dúvida
pela comoção. Embora sobrevivesse milagrosamente ao ataque, entre os licántropos era um fato aceito que
ninguém de menos de quinze anos tinha força para sobreviver a primeira Mudança. O menino de Louisiana
parecia não ter mais que sete ou oito anos, mas Malcolm o viu em ambas as formas, de modo que era
claramente um licántropo mordido. A Matilha considerou que sua sobrevivência era só questão de sorte,
uma casualidade, que não tinha nada a ver com a sua força ou à vontade. O menino lobo sem dúvida não
viveria muito mais. A seguinte vez que Malcolm visitasse a Louisiana, certamente se inteiraria de que o
menino tinha morrido fazia tempo. Inclusive fez apostas com seus irmãos da Matilha.
No dia seguinte, Jeremy pegou um vôo no Baton Rouge, onde encontrou o menino, que não tinha idéia
do que lhe tinha acontecido ou desde quando era lobo. Vivia nos pântanos e cortiços, caçando ratos, cães e
crianças. Com tão pouca idade suas Mudanças eram incontroláveis e passava de uma forma a outra
continuamente, o que quase o deixou louco. O menino parecia um animal até em sua forma humana, nu
com mechas de cabelos mortas e unhas como garras.
Jeremy levou o menino para sua casa e tentou civilizá-lo. Resultou que a tarefa era tão impossível como
civilizar a um animal selvagem. O mais que se pode fazer foi domá-lo. Clay tinha vivido tanto tempo como
licántropo que não recordava ter sido humano. Tornou-se lobo, mais lobo do que seria qualquer um
licántropo normal, dominado pelos instintos mais elementares, a necessidade de caçar para conseguir
comida, de defender seu território e proteger sua família. Se Jeremy duvidasse disso, o primeiro encontro
de Clay com Nicholas terminou com suas dúvidas.
Quando era criança, Clay não queria ter nada a ver com os meninos humanos, de modo que Jeremy
arrumou um encontro com um dos filhos da Matilha, pensando que Clay possivelmente ia se sentir mais
disposto a aceitar um companheiro de brincadeiras que, não sendo ainda um licántropo, ao menos tivesse
esse sangue nas veias. Como disse, separavam-se os filhos da Matilha de suas mães e os criavam seus pais.
Mais ainda, criava-os toda a Matilha. Os meninos eram mimados. Talvez fosse para compensá-los pela vida
difícil que tinham por diante, mas mais provavelmente fosse porque se buscava criar os vínculos necessários
para manter unida à Matilha. Os meninos muitos vezes passavam as férias de verão indo de uma casa a
outra, passando todo o tempo possível com os “tios" e “primos" que seriam seus irmãos de Matilha. Dado
que a Matilha nunca era numerosa, pelo geral tampouco havia mais de dois moços da mesma idade. Quando
Clay veio viver com Jeremy só havia dois filhos da Matilha menores de dez anos: Nick, que tinha oito, e
Daniel Santos, que estava para completar os sete, precisamente a idade que Jeremy atribuiu oficialmente a
Clay. Nick seria o primeiro de seus companheiros de brincadeiras. Possivelmente por que era filho de seu
melhor amigo. Ou possivelmente Jeremy já tinha visto algo em Daniel que o fez pensar que não seria bom
companheiro de brincadeiras. Qual quer que fosse o motivo, a escolha de Jeremy teve Conseqüências ao
longo de toda a vida dos três meninos.
Mas essa é outra história.
Antonio trouxe Nick para Stonehaven e o apresentou a Clay, esperando que os dois meninos fossem
brincar de policia e ladrão ou algo assim Conforme narra Antonio, Clay parou um momento avaliou o moço
mais velho e mais alto, logo saltou, aprisionando Nick contra o chão, apertando sua garganta com o braço,
e Nick fez xixi nas calças. Aborrecido pela pouca coragem de seu adversário, Clay decidiu deixá-lo viver e
logo descobriu que podia usar Nick como saco de pancadas; menino de recados e seguidor devoto. O que
não quer dizer que nunca brincaram de policial e ladrão, mas quando o faziam, fosse qual fosse o papel de
Nick, ele sempre terminava amordaçado, amarrado a uma árvore e às vezes abandonado.

Eventualmente Clay aprendeu a controlar melhor seu instinto, mas inclusive então era uma batalha
contra sua própria natureza. O instinto dominava Clay. Aprendeu truques que podia empregar se lhe davam
uma notícia antecipada das coisas, como por exemplo, que ouviram caçadores nas terras da propriedade de
Jeremy a certa distância. Mas se não suavizavam tal alerta, dominava-o a ira e explodia, o que às vezes punha
em perigo à Matilha. Por mais inteligente que fosse não podia controlar seu instinto. Às vezes eu pensava
que isso fazia mais dura à coisa, já que tinha inteligência para dar-se conta de que o quê estava fazendo era
errado, mas sem poder evitá-lo. Outras vezes imaginava que se realmente fosse era tão inteligente, teria
que ser capaz de controlar-se. Possivelmente não se empenhava o suficiente. Essa última explicação era a
que mais eu gostava.

Quando Jeremy e Antônio voltaram de seu bate-papo, fomos para o escritório, onde Jeremy explicou a
situação. Havia um homem lobo em Bear Valley. A história do cão selvagem era uma explicação plausível
para os vizinhos, que procuravam desesperadamente uma resposta. No fim das contas, encontraram-se
rastros caninos em volta do cadáver. A forma do crime também era canina, com a garganta destroçada e o
corpo em parte devorado. É obvio que ninguém podia explicar porque a jovem andava pelo bosque de noite,
com saia e saltos altos. Parecia que um cão a matou, e os vizinhos decidiram que foi assim. Nós sabíamos
que não.
O assassino era um licántropo. Todos os indícios estavam ali. O surpreendente era que ainda estivesse em
Bear Valley, que tivesse chegado ali Como um dos piolhentos conseguiu aproximar-se tanto de Stonehaven?
Como matou uma mulher local antes que Jeremy e Clay soubessem que estava ali? A resposta era simples:
complacência. Passados vinte anos da última vez que um licántropo chegou mais ao norte da cidade de Nova
Iorque, Clay tinha relaxado sua vigilância. Jeremy monitorou a coisa nos papéis, mas prestou mais atenção
aos eventos em outras partes do território da Matilha. Se fosse para ter problemas, seria possivelmente em
Toronto ou Albany, onde Logan tinha um apartamento, é na região das montanhas Catskills, onde estava à
casa dos Sorrentino, ou em Vermont, onde vivia Peter. Mas não perto de Stonehaven. Nunca perto de
Stonehaven.
Quando a mulher desapareceu e logo foi encontrada morta, Jeremy se inteirou, mas não prestou atenção.
O desaparecimento de humanos não era algo incomum. Não havia nenhum indício de que o
desaparecimento tivesse algo a ver com um licántropo. Mas há três dias tinham encontrado o corpo da
mulher. Então já era muito tarde. Já tinha perdido a oportunidade de despachar o intruso de forma rápida
e segura. As pessoas do povoado já tinham levantado as armas pelo desaparecimento. Quando se encontrou
o corpo, apareceram as armas. Em poucas horas os caçadores já estavam percorrendo o bosque, procurando
predadores, humanos ou caninos. Por mais que fosse respeitado na comunidade, Jeremy não deixava de ser
um forasteiro, alguém que vivia ali, mas se mantinha a margem do resto. Durante muito tempo as pessoas
de Bear Valley e seus arredores respeitaram a privacidade dos Danvers, inspirados pelas grandes somas que
chegavam de Stonehaven a cada Natal para melhorias na escola ou uma nova biblioteca ou o que fosse que
precisasse financiar o conselho da cidade. Mas quando aparecia um perigo, a natureza humana os levava a
procurar um de fora. Não demorariam muito a olharem para Stonehaven e seus habitantes generosos, mas
misteriosos, e dizerem: Sabem, na realidade não os conhecemos, Não é mesmo?
-O que temos que fazer antes de tudo é encontrar a este vira-lata - disse Jeremy-. Elena é a que tem o
melhor olfato, assim ela...
-Não ficarei - disse.
A sala ficou em silêncio. Todos se viraram para mim. A expressão de Jeremy era inescrutável. Clay apertou
os dentes, preparado para briga; Antônio e Peter pareciam preocupados e Nick me olhava totalmente
confuso. Amaldiçoei-me por ter permitido que a coisa chegasse até esse ponto. Em meio de uma reunião,
não era o momento para afirmar minha independência da Matilha. Tentei dizer isso ao Jeremy a noite
anterior; mas ele obviamente preferiu ignorar para ver se eu mudava de idéia logo depois de dormir bem
uma noite. Teria que ter passado à parte da manhã explicando a ele em vez de me sentar para tomar o café
da manhã e deixar que todos pensassem que as coisas tinham voltado a sua normalidade. Assim funcionava
Stonehaven. Eu voltava, enredava-me - correndo com Clay, discutindo com Jeremy, dormindo em meu
quarto, me encontrando com outros - e todo o resto era esquecido. Agora, quando Jeremy queria me impor
seus planos, voltava para o anterior.
-Acreditei que tinha voltado - disse Nick, quebrando o silêncio-. Está aqui. Não entendo.
-Estou aqui porque Jeremy me deixou uma mensagem urgente para que ligasse para ele. Tentei ligar, mas
ninguém atendeu, então tive que vim ver o que estava acontecendo.
Percebi que isto soava fraco no momento em que as palavras saíam de minha boca.
-Liguei - disse-. E liguei e liguei e liguei. Estava preocupada. Então tive que vim ver o que Jeremy queria.
Tentei averiguar ontem à noite, mas não me disse isso.
-Então agora que sabe, vai embora. De novo - disse Clay, sua voz era baixa, mas dura.
Virei-me para ele.
-Disse-lhe isso ontem à noite...
-Jeremy chamou você por um motivo, Elena - disse Antônio, interpondo-se entre eu e Clay -. Precisamos
saber quem é este cão. Você é a que tem os arquivos. Conhece-os. É sua tarefa.
-Era minha tarefa.
Nick se endireitou. Sua confusão mesclada com alarme.
-O que isto significa?
Clay começou a ficar quieto.
Jeremy se interpôs.
-Significa que Elena e eu temos que discutir algo em privado. Continuaremos esta reunião depois.
LEGADO
Peter e Antônio saíram da sala rapidamente. Nick demorou um momento mais, tentando fazer que eu o
olhasse nos olhos, Quando não o fiz vacilou e logo seguiu seu pai. Clay ficou em seu assento.
-Clayton - Disse Jeremy.
-Fico. Tem tanto a ver comigo como contigo. Possivelmente mais se Elena acredita que pode aparecer e ir
embora de novo, quando a esperei por mais de um ano...
-O que vai fazer? -disse dando um passo para ele-. Voltará a me seqüestrar e prender em um quarto de
hotel?
-Isso foi há seis anos. E só tentava convencer você para que falasse comigo antes de ir.
-Convencer? Certo. Provavelmente continuaria ali se não tivesse convencido você a me deixar ir te
pendurando do balcão pelos tornozelos. Deveria tê-lo deixado cair.
-Não teria servido de nada neném. Eu ricocheteio. Não pode se desfazer de mim com tanta facilidade.
-Eu estou me desfazendo de você agora - disse Jeremy -. Vai. É uma ordem.
Clay se conteve, suspirou, ficou de pé e saiu da sala fechando a porta. Mas isso não significava que ele se
foi. Não se escutaram passos que se afastavam pelo corredor. Senti a batida no piso quando se deixou cair
junto à porta para espiar. Jeremy decidiu ignorá-lo.
-Necessitamos de sua ajuda - disse, Jeremy, virando-se para mim- você investigou os vira-latas. Essa era
sua tarefa Sabe mais sobre eles que qualquer um de nós.
-Eu tinha essa tarefa quando era parte da Matilha. Disse-lhe isso...
-Necessitamos de seu olfato para encontrá-lo e de seu conhecimento para identificá-lo. Logo necessitamos
de sua ajuda para eliminá-lo. É uma situação complicada, Elena. Clay não pode dirigi-la.
Temos que proceder com total cautela. Este vira-lata já matou em nosso território e se insinuou em nosso
povoado. Precisamos encontrá-lo sem chamar atenção nem permitir que o pânico o domine. Você pode
fazê-lo. Só você.
-Sinto muito, Jer, mas não é problema meu. Já não vivo aqui. Não tenho que procurar vira-latas aqui. Não
é minha tarefa.
-É minha tarefa, sei. Isto nunca devia ter acontecido. Não estava suficientemente atento. Mas isso não
muda o fato de que aconteceu e que todos nós estamos em perigo, inclusive você. Se esse vira-lata continuar
causando problemas, corre o risco de que o apanhem. Se o apanharem, o que lhe impedirá de falar de nós
à polícia?
-Mas eu...
-Tudo o que quero é que me ajude a solucionar este problema. Quando se esclarecer, pode fazer o que
quiser.
-E se quiser deixar a Matilha? Vale o que disse ontem à noite? Que sou eu quem decide?
Algo passou pelo rosto de Jeremy. Tirou os cabelos de seu rosto e sua expressão voltou à normalidade.
-Estava zangado ontem à noite. Isso não é motivo para que esteja tão zangada, Elena. Disse que deixaria
você ir e que vivesse sua vida e só a convocaria caso se tratasse de algo urgente. Isto é urgente. Não chamei
você por nenhum outro motivo. Não deixei que Clay entrasse em contato contigo. Não a convoquei para
outras reuniões. Não esperava que mantivesse os arquivos nem nenhuma das outras coisas que fazia
normalmente para nós. Não daria esse tratamento a ninguém mais. Dou-lhe isso porque quero que tenha
toda a liberdade necessária para tomar uma decisão racional.
-Esperas que o supere.
-Adaptar-se a isto foi mais difícil para você do que para qualquer outro. Não cresceu sabendo que seria
mulher loba. Que mordessem você já foi bastante ruim, mas o modo como aconteceu, as circunstâncias,
tornaram tudo dez vezes pior. Sua natureza é lutar contra algo que não escolheu. Quando escolher, quero
que seja porque passou o tempo suficiente lá fora para saber o que é o quer e não porque seja teimosa e
queira afirmar seu direito de se auto-estabelecer-se aqui e agora.
-Em outros termos, esperas meu consentimento.
-Estou pedindo uma ajuda a você, Elena. Peço, não a exijo. Se me ajudar a resolver este problema poderá
voltar para Toronto. Ninguém deterá você. -Olhou para a porta, esperando o protesto de Clay, mas houve
silêncio. – Darei a você tempo para pensar. Vem me vê quando estiver preparada.

Fiquei no escritório mais de uma hora. Amaldiçoei-me em parte por voltar; amaldiçoei Jeremy por me
impor isto, amaldiçoei Clay por... bom, por todo o resto. Queria espernear como uma menina de dois anos
e gritar que não era justo. Mas era. Jeremy agia razoavelmente. E isso era o pior.
Tinha uma dívida com a Matilha que não havia terminado de pagar. Estava em dívida com Antônio, Peter,
Nick e Logan por sua amizade e amparo, e embora me tratassem como a uma irmãzinha mais nova; a quem
deviam mimar, embalar e fazer piadas, aceitaram-me e me cuidaram quando eu não podia fazê-lo por mim
mesma. Mas a quem mais devia era a Jeremy. Por mais que me queixasse de suas exigências e sua autoridade
tirânica, eu nunca me esquecia do quanto lhe devia.
Quando me morderam, Jeremy me acolheu, alimentou e me ensinou a controlar minhas Mudanças e
impulsos e a me adaptar ao mundo exterior. A Matilha freqüentemente brincava dizendo que criar Clay foi
o maior desafiou para Jeremy, as sete tarefas de Hércules em apenas uma. Se soubessem o que Jeremy
passou comigo, possivelmente mudariam de idéia. Viveu um inferno comigo durante um ano inteiro.
Quando me trazia comida, a jogava. Quando falava comigo, amaldiçoava-o e o cuspia. Quando tentava me
tocar, atacava-o. Quando finalmente escapei, pus em risco toda a Matilha. Qualquer outro licántropo se
daria por vencido, teria me caçado e matado. Jeremy me rastreou, trouxe-me de volta a Stonehaven e
começou tudo de novo.
Quando me recuperei, encorajou-me a terminar meus estudos universitários, pagando os custos dos
estudos, um apartamento e todo o resto. Quando terminei os estudos e comecei a trabalhar como jornalista
por conta própria, apoiou-me. Quando anunciei que queria experimentar viver sozinha, obviamente esteve
em desacordo, mas me deixou ir e me protegeu de longe. Agora o amaldiçoava por interferir em minha nova
vida. A verdade é que sem a ajuda de Jeremy, não teria uma nova vida. Se tivesse sobrevivido, seria como
os vira-latas, apenas capaz de controlar minhas Mudanças, totalmente incapaz de controlar meus impulsos,
matando humanos, indo de um lugar a outro, escapando das suspeitas, sem emprego, sem apartamento,
sem amigos, nem amante, nem futuro.
Agora me pedia algo. Um favor, que nem sequer pedia de tal modo. Um pedido de ajuda.
Não podia me negar.

Disse ao Jeremy que ficaria o tempo suficiente para ajudá-los a encontrar e matar a esse cão, com a
condição de que, quando o assunto terminasse partiria sem que ele ou Clay tentasse me impedir Jeremy
aceitou. Depois foi dizer aos outros, e levou Clay para o fundo da sala para lhe dar uma explicação especial
e mais extensa. Quando Clay voltou, estava contente, brincava com Peter, lutava com Nick, falou com o
Antônio e me ofereceu o sofá quando voltamos para o escritório para continuar a reunião. Dado que Jeremy
não ocultaria o acordo a Clay, obviamente o tinha reinterpretado com sua própria lógica, uma lógica tão
indecifrável como seu próprio código de conduta e ética. Logo o faria ver a realidade.
Como era de se esperar, o plano era caçar e matar ao cão. Em vistas da delicadeza do assunto, terei que
fazê-lo em uma ou duas etapas. Esta noite os cinco, todos menos Jeremy, iríamos ao povoado para rastrear
ao cão. Dividir-nos-íamos em dois grupos, Antônio e Peter por um lado e o resto no outro grupo. Se
encontrássemos sua guarida, Antônio e eu conduziríamos à atuação do grupo e decidiríamos se podíamos
matar o cão sem perigo. Nós decidiríamos. Se não fosse possível tínhamos que reunir as informações
necessárias, voltaríamos para casa e sua morte seria adiada para outra noite. Depois do fiasco com José
Carter, surpreendeu-me que Jeremy ainda estivesse disposto a me dar a responsabilidade de tomar uma
decisão, mas ninguém mais a questionou, assim fiquei calada.

Antes de almoçar fui a meu quarto e chamei Philip, lá em baixo Peter e Antônio debatiam aos gritos alguma
sutileza das altas finanças. Abriam-se e fechavam gavetas na cozinha e me chegou o aroma de cordeiro
assado quando Clay e Nick começaram a fazer o jantar. Embora não pudesse escutar Jeremy, sabia que ele
continuava onde o tínhamos deixado, no escritório, estudando mapas com o fim de estar em condições de
determinar as melhores áreas do povoado para o rastreamento da noite.
Já em meu quarto, abri o dossel da cama, instalei-me com o celular e deixei que se fechasse a cortina, para
me isolar. Logo disquei o número. Philip atendeu à segunda chamada. Quando me chegou sua voz pela linha,
pareceu-me que se detinha todo o ruído lá de baixo e me senti transportada a outro mundo, onde planejar
a caça de um licántropo só era tema para um filme ruim.
-Sou eu- disse-lhe- Está ocupado?
- Estou indo almoçar com um cliente. Um cliente em potencial. Recebi sua mensagem, desci para o ginásio
por trinta minutos e por isso não estava quando ligou. Dá-me o número de seu telefone ai? Espera vou
procurar um papel.
-Estou com meu celular.
-Certo, que idiota. Assim se quiser falar com você ligo para o celular. Não é Verdade?
-Não posso levá-lo ao hospital. Não deixam usá-lo ali. Mas logo verei se me deixar uma mensagem.
-O hospital? Caralho. Sinto muito. Estamos falando faz cinco minutos e nem sequer perguntei o que
aconteceu com seu primo. Foi um acidente?
- Na realidade foi sua esposa que sofreu um acidente. Antes eu vinha para cá no verão e nos juntávamos
vários, Jeremy, seus irmãos, Célia, sua esposa. –Philip sabia que meus pais tinham morrido, mas não lhe
contei nada dos detalhes acidentados, nem que idade eu tinha quando aconteceu, de modo que podia
improvisar livremente – Sabe como é, Célia sofreu um acidente com o automóvel, esteve à beira da morte,
foi quando Jeremy me chamou. O pior já passou.
- Graças a Deus, que horrível. E como seu primo está suportando?
-Está bem. O problema são as crianças. Têm três. Jeremy não sabe como manejá-los preocupado como
está com a Célia e a confusão dos meninos. Ofereci-me para ficar uns dias, ao menos até que voltem os
parentes da Célia da Europa. Neste momento estão bastante sacudidos.
-Imagino. Espera –Senti ruído na linha – bem, já saí da rota. Sinto muito. Assim você fica ajudando-o?
- Até na segunda-feira. Está bem?
-Com certeza, claro. Se não tivesse tanto trabalho esta semana iria dar uma mão a você. Quer algo?
-Estou com o cartão de crédito.
Riu.
É todo o se necessita hoje em dia. Se ultrapassar seu limite me avise e transfiro dinheiro de minha conta.
Droga, passei da saída.
-Bom, desliguemos.
- Sinto muito. Ligue para mim esta noite se puder, embora suponha que estará bastante ocupada. Três
crianças. Merda, de que idades?
-Todos têm menos de cinco anos..
-Ai. Sim vais estar ocupada. Vou sentir saudades de você.
- Serão somente alguns dias.
-Bom, falaremos logo. Amo você.
-Eu também. Tchau.
Ao cortar a comunicação fechei os olhos e soltei o ar contido nos pulmões. Vê? Não foi tão terrível. Philip
continuava sendo Philip. Não tinha mudado nada. Philip e minha nova vida me esperavam ali. Em poucos
dias eu voltaria.

Logo depois de almoçar fui ao escritório para ver meus arquivos, esperando encontrar algo que pudesse
me ajudar a descobrir qual era vira-lata que estava causando problemas em Bear Valley. Uma de minhas
tarefas na Matilha era fazer o seguimento dos licántropos que não pertenciam a ela. Criei um arquivo com
fotos e sinopse de condutas. Podia recitar de cor duas dúzias de nomes e último lugar onde se encontravam
e dividir a lista entre os bons, os maus e os feios: os que podiam conter o impulso de matar, os que não e os
que nem sequer tentavam. A julgar pela conduta deste vira-lata, pertencia à terceira categoria. O que
reduzia a lista de vinte e sete a uns vinte.
Voltei minha atenção aos armários sob a biblioteca. Abri o segundo, corri as taças de brandy e medi o
painel posterior em busca de uma trava. Quando a encontrei, a girei e o painel se abriu. Dentro do
compartimento secreto se guardavam os únicos elementos condenatórios de Stonehaven, os únicos que
podiam nos vincular com o que somos. Um deles era minha pasta com o arquivo. Mas não a encontrei ali -
Suspirei. Jeremy era o único que poderia havê-la tirado e ele foi caminhar fazia uma hora. Podia ir buscá-lo,
mas sabia que não estava simplesmente fazendo exercícios. Estava arquitetando os planos para nossa
caçada ao vira-lata de noite. E não lhe agradava que o interrompesse em tais circunstâncias.
Quando estava fechando o compartimento, vi o outro livro que se guardava ali e, por impulso, tirei-o e o
abri, embora o tivesse lido tantas vezes já que podia recitá-lo de cor. Quando Jeremy me falou pela primeira
vez do Legado, esperava encontrar um livro úmido, fedorento e meio podre. Em vez disso, o livro que tinha
vários séculos de idade parecia melhor que muitos de meus livros de texto da universidade. Certo que as
páginas estavam amareladas e eram frágeis, Olhe cada Alfa da Matilha o conservou em um compartimento
especial, livre de pó, umidade, luz e qualquer outro dos elementos que pudessem estragar o livro.
O Legado contava a história dos licántropos, em particular da Matilha. Mas não era um relato com datas
e eventos. Em vez disso, cada Alfa tinha agregado o que considerava importante, por isso consistia em uma
mixórdia de história, genealogia e tradições.
Uma seção estava dedicada inteiramente à experimentação científica com a natureza e os limites da
condição do licántropo. Um Alfa da época do renascimento em particular se viu fascinado pelas lendas da
imortalidade dos licántropos. Tinha detalhado todas e cada uma, das histórias de licántropos que se
tornaram imortais bebendo sangue de infantes até as histórias de licántropos que se convertiam em
vampiros, depois da morte. Então realizou experimentos bem controlados com licántropos vira-latas que
capturava, trabalhava e matava, e logo esperava sua ressurreição. Nenhum de seus experimentos teve êxito,
mas teve grande êxito em reduzir a população de vira-latas da Europa.
Um século mais tarde, um Alfa da Matilha se obcecou por ter relações sexuais: o único fato surpreendente
disso é que levou várias centenas de anos para obtê-lo. Começou com a hipótese de que as relações sexuais
entre licántropos e humanos eram inerentemente insatisfatórias Porque envolviam duas espécies
diferentes. Então mordeu a algumas mulheres. Como não sobreviveram, concluiu que os rumores da
existência de mulheres lobo ao longo dos séculos eram falsos e que tal coisa era biologicamente impossível.
Avançando, tentou variações das relações sexuais: lobo com lobo, humano com lobo, lobo com humano.
Nada disso se aproximava do sexo entre humanos, assim voltou para as mulheres e começou a experimentar
com variações de posições, atos, lugares, etc. Finalmente encontrou o máximo em satisfação sexual: esperar
até que soassem as primeiras notas do clímax e então destroçar com mordidas a garganta de seu casal.
Descreveu sua fórmula com vívidos detalhes, com toda a emoção aflorando no texto. Afortunadamente sua
prática nunca se fez popular na Matilha, provavelmente porque o Alfa foi queimado alguns meses mais
tarde, logo depois de ter liquidado a disponibilidade de mulheres jovens em sua aldeia.
Pelo lado menos factual, o Legado continha incontáveis histórias de licántropos ao longo dos séculos. A
maioria eram histórias do tipo “minha mãe me contou isso quando era criança", muitas originadas antes que
se escrevesse a primeira edição do Legado. Havia histórias de licántropos que viveram suas vidas ao reverso,
mantendo-se como lobos a maior parte do tempo e mudando para humanos só quando o impunha a
necessidade física. Havia histórias de cavalheiros e soldados e bandidos e assaltantes que supostamente
foram licántropos. A maioria destes nomes desaparecidos da história, mas as pessoas ainda eram
conhecidas, inclusive por quem nunca tinha aberto um livro de história. A história humana conta a lenda de
que a árvore genealógica de Gengis Khan começava com um lobo e uma serva. Segundo o Legado, havia
nisso mais de verdade que de alegoria: o lobo era um licántropo e a serva uma analogia de uma mãe humana.
Segundo essa linha de raciocínio, Gengis Khan mesmo foi um licántropo, o que explicava sua sede de sangue
e sua destreza quase sobrenatural na guerra. Provavelmente essa não era mais certa que as inumeráveis
genealogias humanas que incluem Napoleão e Cleópatra na árvore genealógica. Mas a história era divertida.
Outra boa história se encontra também na mitologia humana sobre os licántropos. Qualquer aficionado
nos contos de licántropos conhece a história do nobre recém casado cuja aldeia sofria ataques de um
licántropo. Uma noite quando rastreava à besta, o nobre escutou um ruído na mata e então viu um lobo
monstruoso. Salta da montaria e o persegue pelo bosque a pé. A besta escapa. Em um ponto se aproxima o
suficiente para cortar uma das patas dianteiras do lobo. A criatura escapa, mas quando o nobre vai procurar
a pata esta se converteu em uma mão de mulher. Exausto, volta para casa e vai contar a sua esposa o
acontecido. Encontra sua esposa escondida nos quartos traseiros, enfaixando o coto ensangüentado de seu
braço sem mão. Ao compreender o que acontecia, a mata. A versão humana da história culmina ali, mas o
Legado vai mais à frente, dando ao final um giro em favor dos licántropos. Na história do Legado, o nobre
mata a sua esposa lhe abrindo o estômago. Ao fazê-lo, saem vários filhotinhos de lobo, seus próprios filhos.
À vista disso o nobre enlouquece e se mata com sua própria espada. Como sou uma mulher loba, eu não
gosto muito da idéia de ter a barriga cheia de cachorrinhos. Prefiro interpretar os cachorrinhos como um
símbolo alegórico da culpa do nobre. Quando percebe que matou sua esposa sem lhe dar oportunidade de
defesa, fica louco e se mata. Um final muito mais digno.
Além de escrever estas histórias e divagações, cada Alfa tinha que fazer a crônica da genealogia da Matilha
durante seu reinado. Isso incluía não só a árvore genealógica, mas também breves descrições da história de
cada pessoa e de suas vidas. A maioria das árvores genealógicas eram longas e complicadas. Mas na atual
Matilha havia três exceções, nomes sem antecessores. Clay e eu fomos dois deles. Logan era o terceiro.
Diferente de Clay e de mim, Logan era um licántropo por herança. Ninguém sabia quem era o pai de Logan.
Tinham-no deixado para adoção quando era um bebê. Quando o adotaram de menino, com ele veio com
um envelope que devia ser aberto em seu décimo sexto aniversário. No interior do envelope havia um
pedaço de papel com dois sobrenomes e dois endereços: os Danvers no Stonehaven e os Sorrentino em sua
mansão nos subúrbios de Nova Iorque. Era improvável que o pai de Logan fosse da Matilha, já que nenhum
membro da Matilha daria seu filho em adoção. Mas seu pai sabia que a Matilha não abandonaria um
licántropo de dezesseis anos, não importando quem fosse seus pais, por isso dirigiu seu filho a eles,
assegurando-se de que Logan descobrisse o que era, antes de sua primeira Mudança e, ao fazê-lo, tivesse a
oportunidade de iniciar sua nova vida com a necessária educação e amparo. Possivelmente a história de
Logan fosse uma prova de que nem todos os vira-latas eram maus pais ou possivelmente que as anomalias
são possíveis em qualquer forma de vida.
A maioria das outras árvores genealógicas da família tinha muitos ramos. Ao igual aos Danvers, a família
Sorrentino tinha suas origens no começo mesmo do Legado. O pai de Antonio, Dominic, foi Alfa até sua
morte. Teve três filhos, Gregory, que morreu, Benedict, que deixou a Matilha antes que eu chegasse, e
Antonio, o mais novo. O único filho de Antonio era Nick. No Legado, junto às iniciais de Nick aparecia anotado
LKB entre parêntese. Nick não sabia o que significava. Até onde eu sabia, nunca perguntou. Se é que chegou
a ler o Legado, o que duvido, teria chegado à conclusão de que se ninguém lhe explicou seu significado não
devia ter importância. Assim era Nick, aceitava tudo. As letras eram importantes, mas não fazia sentido dizer
a Nick seu significado, provocando interrogações sem resposta e emoções que não encontrariam satisfação.
LKD eram as iniciais da mãe de Nick. Era o único lugar do Legado no qual figurava uma mãe. Jeremy foi quem
as pôs ali. Nem Jeremy nem Antônio me explicaram isso. Foi Peter quem me contou a história faz anos.
Quando Antonio tinha dezesseis anos e era aluno de uma escola particular muito cara nos subúrbios da
cidade de Nova Iorque, apaixonou-se por uma garota do lugar. Sabia que não tinha que contar isso a seu pai,
mas sim contou a seu melhor amigo, Jeremy, que então tinha quatorze anos. E os dois ocultaram a relação
à Matilha. A coisa funcionou durante um ano. Então a menina ficou grávida. Por conselho de Jeremy, Antônio
contou a seu pai. Aparentemente Jeremy acreditou que Dominic entenderia que seu filho estava apaixonado
e lhe permitiria quebrar a lei da Matilha. Suponho que todos fomos jovens um dia. Jovens, românticos e
muito ingênuos. Inclusive Jeremy. As coisas não funcionaram como Jeremy esperava. Grande surpresa.
Dominic tirou Antônio da escola e o confinou em casa enquanto a Matilha aguardava o nascimento do bebê.
Antonio fugiu com a ajuda de Jeremy, voltou para a garota e se declarou independente da Matilha. A partir
dali a coisa ficou realmente feia. Peter não entrou em detalhes. Tão somente narrou que Antônio e sua
garota se esconderam enquanto Jeremy ficou como intermediário entre o pai e seu filho, desesperado por
reconciliar-se. Em meio a isso tudo nasceu Nick.
Três meses mais tarde Antônio teve sua primeira Mudança. Nos seis meses seguintes compreendeu que
seu pai tinha razão. Por mais que amasse a mãe de Nick, a coisa não ia funcionar. Não só arruinaria a vida
dela, mas também arruinaria a de seu filho, condenando-o a viver como um vira-lata. Uma noite pegou Nick,
deixou um envelope com dinheiro na mesa e se foi. Entregou Nick a Jeremy e lhe disse que levasse o bebê
para Dominic. Então desapareceu. Antonio ficou ausente por três meses e nem Jeremy sabia para aonde ele
foi. Reapareceu abruptamente. Encarregou-se da criação de Nick e nunca voltou a mencionar a garota.
Todos acreditaram que aí terminava a história. Mas anos mais tarde Peter foi visitar Antonio e o seguiu até
um subúrbio, onde o encontrou em seu automóvel em frente a uma praça, observando uma jovem mulher
que brincava com um menino pequeno. Perguntei-me quantas vezes teria feito isso, perguntei-me se
continuava fazendo-o, isso de ver como andava a mãe de Nick, possivelmente vendo-a brincar com os netos.
Ao vê Antônio - barulhento, seguro de si mesmo - não posso imaginá-lo mantendo aceso o fogo de um amor
perdido, mas desde que o conheço nunca o ouvi mencionar a nenhuma mulher. Há mulheres em sua vida,
mas nunca duram o suficiente para que hajam motivos para falar delas.
Naquele tempo naquele tempo me perguntei por que Peter me contou isso, um capítulo da história da
Matilha que nunca apareceria no Legado. Mais tarde compreendi que pensou que ao me fazer conhecer um
segredo inofensivo da Matilha, me faria sentir mais integrada e me ajudaria a entender melhor a meus
irmãos de Matilha. Peter fazia isso seguidamente. Não é que outros me excluíssem ou me fizessem sentir
rechaçada. Nada nesse estilo. Do único que cheguei a duvidar a respeito era de Jeremy e possivelmente isso
fosse mais problema meu que dele. Conheci Logan e Nick, através de Clay, antes de me converter em
licántropo. Logo depois que me mordeu, os dois estiveram a meu lado, e quando estive disposta a aceitar
sua ajuda fizeram tudo o que estava em seu alcance para me levantar o ânimo. Tudo o que se pode levantar
o ânimo de alguém que acaba de inteirar-se de que se acabou sem remédio a vida que levou até então.
Quando conheci Antônio em minha primeira reunião na Matilha, elogiou-me, brincou e conversou comigo
com tanta facilidade como se me conhecesse há anos. Mas Peter foi diferente. Não lhe bastava à aceitação.
Sempre fez um esforço a mais. Foi o primeiro que me contou seus antecedentes, como um tio recém
descoberto que me informasse coisas da família.
Peter foi criado na Matilha, mas aos vinte e dois decidiu deixá-la. Não foi por uma briga ou por rebelião.
Simplesmente decidiu experimentar a vida fora da Matilha, mas um exercício no conhecimento de outros
estilos de vida que uma rebelião contra a Matilha. Como dizia Peter, Dominic não o considerava nem
perigoso fora da Matilha nem necessário dentro dela, de modo que deixou que se fosse. Tendo obtido seu
título universitário em tecnologia áudio-visual, Peter obteve o trabalho mais apaixonante que pôde
imaginar: técnico de som de bandas de rock. Começou com bandas que tocavam em bares e, em cinco anos,
chegou a trabalhar em grandes concertos. Aí foi que se tornou perigoso seu desejo de novas experiências,
porque assimilou todo o estilo de vida das bandas de rock: drogas, álcool e festas intermináveis. Então
aconteceu algo, algo ruim. Peter não me explicou isso, mas disse que foi algo suficientemente ruim para
justificar que a Matilha o matasse se chegasse a descobri-lo. Poderia ter corrido para ocultar-se com a
esperança de que a coisa passasse. Mas não o fez. Em vez disso ficou a analisar sua vida e o que tinha feito
e percebeu que a coisa não ficaria melhor se fugisse. Simplesmente voltaria a fazer o mesmo. Decidiu pedir
clemência à Matilha. Se Dominic ordenasse sua execução, ao menos seu primeiro erro seria o último.
Entretanto, esperava que Dominic o absolvesse, permitindo retornar à Matilha, onde poderiam ajudá-lo a
recuperar o controle de sua vida. Para ter maiores probabilidades de êxito, apelou ao irmão da Matilha em
quem mais confiava. Ligou para Jeremy. Em vez de levar o assunto a Dominic, Jeremy foi para Los Angeles
levando consigo Clay, que então já tinha dez anos. Enquanto Peter cuidava de Clay, Jeremy passou uma
semana apagando todos os rastros do erro cometido por Peter. Logo levou Peter de volta à Nova Iorque e
organizou sua volta à Matilha sem dizer uma palavra de seu mau passo na Califórnia. Hoje ninguém poderia
adivinhar que Peter cometeu um engano de tal magnitude, nem sequer que deixou a Matilha. Queria com
tanta devoção ao Jeremy como Clay e Antônio, embora a sua maneira, silenciosa. Jamais discutia nem
discordava. A única coisa que restava do passado de Peter era seu trabalho. Seguia trabalhando como
técnico em som e era um dos melhores. Habitualmente saia em excursão, mas Jeremy nunca se preocupava
com ele nem duvidava de que atuasse com absoluta circunspeção no mundo exterior. Jeremy inclusive
permitiu que eu fosse com Peter por algumas semanas quando começava a me orientar como licántropo.
Peter me convidou para acompanhá-lo em uma excursão de U2 pelo Canadá. Foi a melhor experiência de
minha vida, fez-me esquecer os problemas que enfrentava o que era precisamente a intenção de Peter.
Enquanto pensava em tudo isso, um par de mãos me puxou pelas axilas e me levantaram da cadeira.
-Acorda! -disse Antônio, me fazendo cócegas e logo me deixou cair novamente na poltrona. Inclinou-se
sobre meu ombro e pegou o Legado.
-Bem a tempo, Peter. Cinco minutos mais de leitura e estaria em coma.
Peter se moveu diante de mim, pegou o livro das mãos de Antônio e fez uma careta.
-Somos uma companhia tão ruim que prefere se esconder aqui lendo essa coisa?
Antônio sorriu.
-Acredito que não é a nós a quem procura evitar, a não ser a certo tornado loiro. Jeremy o enviou às
compras com o Nick, assim pode sair de seu esconderijo.
-Viemos perguntar se quer ir caminhar - disse Peter-. Estirar as pernas, nos pôr em dia.
-Na realidade...
Antônio voltou a me pegar pelas axilas e esta vez me obrigou a ficar de pé.
-Na realidade ia nos buscar para dizer o quanto sentia saudades e que morria por ficar em dia.
-Eu...
Peter me puxou pelas mãos me arrastando para a porta. Cravei os calcanhares.
-Vou - disse-. Só queria dizer que devia ler os arquivos, mas Jeremy deve ter tirado eles daqui. Pensei que
poderiam servir para descobrir quem é o responsável por tudo isto. Vocês pensaram em algo?
-Em muitas coisas. -disse Antonio-. Agora vem caminhar e lhe diremos.

Quando deixamos o jardim e entramos no bosque, Antônio disse:


-Eu aposto que é Daniel.
-Daniel? -Peter franziu o sobrecenho-. De onde tirou isso?
Antônio elevou a mão e começou a enumerar as razões.
-Um, era da Matilha e sabe o quanto é perigoso matar assim em nosso território, que não podemos e não
iremos sair do lugar. Dois, odeia Clay. Três, odeia Jeremy. Quatro, odeia a todos. Com exceção de nossa
querida Elena que, convenientemente, estava fora de Stonehaven e não se veria afetada, coisa que estou
seguro de que Daniel sabia. Cinco, realmente odeia Clay. Seis -ah, um momento, a outra mão- seis, é um
filho da puta canibal assassino. Sete, já disse que escolheu fazê-lo quando Elena não estava por aqui? Oito,
Elena poderia estar procurando uma nova parelha e ele poderia chamar sua atenção. Nove, seriamente,
seriamente, SERIAMENTE, odeia Clay. Dez, jurou vingar-se de toda a Matilha, em particular daqueles
membros que vivem atualmente em Stonehaven. Acabaram-me os dedos, amiguinhos. Quantos motivos
mais necessitam?
-Que tal algum que tenha a ver com a estupidez suicida? Não se ofenda, Tônio mais acredito que imagina
que Daniel está metido nisto porque é o que desejas. É fácil jogar a culpa nele e querer derrubá-lo. E não é
que eu não gostaria de ser quem o derrubasse. Mas se abrir às apostas, pequenas, por favor; não tenho
tanto capital como você, eu apostaria em Zachary Cain. Estúpido e bruto. Com certeza despertou uma manhã
e pensou: "Ei, por que não mato uma garota no território da Matilha para me divertir?” Provavelmente se
perguntou por que não tinha pensado antes nisso. Porque é estúpido, estúpido.
-Pode ser alguém mais insignificante - disse-. Um dos que odeia ver-se longe do centro da questão. Algum
vira-lata andou fazendo confusões ultimamente?
-Coisas de garotas - disse Antônio-. Nenhum das ligas menores andou fazendo grandes jogadas. Dos quatro
grandes, Daniel, Cain e Jimmy Koenig estiveram tranqüilos. Karl Marsten matou a um vira-lata em Miami o
inverno passado, mas não acredito que ele tenha provocado isso. Não é seu modus operandi, a menos que
além de matar humanos agora goste de comê-los. Não é provável.
-A quem matou? --perguntei.
-A Ethan Ritter - disse Peter-. Disputa por uma área. Matança limpa. Desapareceu por completo. Coisa
típica de Marsten. Só soubemos por que passou pela Florida na primavera com uma banda. Marsten me
encontrou, convidou-me para jantar, disse-me que tinha liquidado Ritter assim podia tirar ele de seus
arquivos. Tivemos um lindo bate-papo, o jantar custou uma soma astronômica e ele pagou em dinheiro.
Perguntou se tínhamos noticias suas e enviou saudações.
-Surpreende-me que não envie cartões de Natal - disse Antônio-. Imagino-os. De bom gosto, os melhores
que se possa roubar. Pequenas notas de saudação com caligrafia perfeita. "Feliz festas. Espero que todos
estejam bem. Fiz migalhas ao Ethan Ritter em Miami e pulverizei seus restos no Atlântico. Meus melhores
augúrios para o ano novo. Karl".
Peter riu.
-Esse tipo nunca decidiu de que lado da cerca estar.
-Sim decidiu - disse-. E esse é o motivo pelo qual nos convida para jantar e nos põe em dia com suas
matanças de vira-latas. Espera que esqueçamos de que lado da cerca está.
-Coisa pouco provável - disse Antônio-. Um vira-lata é um vira-lata e Karl Marsten é claramente um vira-
lata. E perigoso. Assenti.
-Mas como você disse não é provável que ande comendo humanos em Bear Valley eu tenho tanta
antipatia por ele como você, mas realmente gosto da idéia de que seja Daniel. Sabemos onde está?
Houve um instante de silêncio. E depois mais. Muito mais silêncio.
-Ninguém o vigiou - disse Peter por fim.
-Não é grave - disse Antônio com um sorriso, e me elevou e lançou pelos ares. Esqueçamos a Matilha.
Diga-nos o que anda fazendo. Sentir saudades.
Mas o assunto era grave. Eu sabia por que brincavam. Porque era minha culpa. O acompanhamento dos
vira-latas era minha tarefa. Se tivesse dito a Jeremy no ano passado que ia deixar a Matilha, teria procurado
outro que o fizesse. Se tivesse ligado em qualquer momento para dizer que não voltaria, também teria
procurado outro. Mas eu fui deixando a porta aberta para voltar. Como sempre. Já tinha fugido antes de
Stonehaven, para fugir de Clay, reflexo de uma briga, em busca de um descanso reparador. Passavam dias e
até semanas, mas voltava. Esta vez, as semanas se tornaram meses, logo um ano. Pensei que teriam se dado
conta, que entenderiam que não ia voltar, mais possivelmente não, possivelmente continuavam esperando,
como Clay, que me esperou todo o dia no portão da entrada, acreditando que voltaria porque sempre o
fazia e porque não disse que não o ia fazer. Perguntei-me quanto teriam esperado.

Logo depois do jantar, quando me dirigia a meu quarto para pôr uma roupa mais quente, de repente
Nicholas saiu do quarto de Clay, puxou-se pela cintura e me arrastou para dentro. O quarto de Clay era o
oposto do meu, tanto em localização como em decoração. Estava pintado de branco e preto. O tapete era
branco. Jeremy pintou as paredes de branco, com figuras geométricas pretas. A cama de Clay era de bronze
e enorme e estava coberta com um edredom preto e branco, que tinha símbolos de alguma religião escura
bordados.
Ao longo da parede oeste havia um moderno sistema de entretenimento, com o único equipamento de
estéreo, vídeo e televisão da casa. A outra parede estava coberta de fotos e gravura minhas, montagem nas
quais me recordava os “altares” que se encontram nas casas de psicopatas obcecados, o que, pensando
bem, não era tão má descrição de Clay.
Nick me jogou sobre a cama e saltou sobre mim, tirando minha camisa dos jeans para me fazer cócegas
na barriga. Sorriu sugestivo, com os dentes brancos brilhando sob seu bigode escuro.
-Entusiasmada para esta noite? -perguntou subindo os dedos do meu umbigo para cima. Dei batidinhas
em sua mão e ele a baixou novamente a meu estômago.
-Não se supõe que vamos nos divertir - disse-. É uma questão séria e requer uma atitude séria.
Do banheiro chegou uma gargalhada. Clay saiu, secando as mãos com uma toalha.
-Quase o diz a sério, carinho. Estou impressionado.
O olhei exasperada e não disse nada.
Clay se deixou cair junto a mim, fazendo as molas do colchão ranger.
-Vamos, admita. Você gosta.
Encolhi meus ombros.
-Mentirosa. Quantas vezes podemos correr pela cidade? Uma caçada oficialmente sancionada.
Os olhos de Clay brilharam. Estendeu a mão para acariciar a parte interior de meu antebraço e eu
estremeci. Senti uma sensação de nervos em meu estômago. Girando a cabeça, Clay olhou o entardecer pela
janela. Fez-me cócegas no lado interior do cotovelo. Meu olhar percorreu seu rosto, sua mandíbula, os
tendões de seu pescoço, a sombra de sua barba e a curva de seus lábios. Senti um calor no estômago que
se irradiou para baixo. Virou-se para me olhar. Tinha as pupilas dilatadas e podia cheirar sua excitação. Riu
com risada rouca, inclinou-se para mim e sussurrou essas cinco pequenas palavras.
-É hora de caçar, carinho.

PARCERIA
Bear Vailey era um povoado de operários, com uma população de oito mil almas que nasceu com a
industrialização e teve seu esplendor máximo nos anos quarenta e cinqüenta. Mas três recessões e as
demissões nas fábricas tiveram seu efeito. Restavam uma fábrica de tratores ao leste e uma fábrica de papéis
ao norte, e a maioria das pessoas trabalhavam em alguma das duas. Era um povoado que se orgulhava de
seus valores familiares, em um ambiente em que as pessoas trabalhavam duro, jogavam duro e enchiam o
estádio de beisebol, mesmo que a equipe de segunda divisão local estivesse na primeira colocação ou na
última. Em Bear Valley, os bares fechavam a meia-noite nos dias de semana, o leilão anual (da Associação
de Pais e Mestres) era um evento social importante e o controle de armas significava que, não era permitido
aos jovens atirar com nada que superasse o calibre vinte. Em particular recordei os hábitos para responder
ao telefone, ou melhor, a falta deles. Viviam duas pessoas em Stonehaven, Jeremy e Clayton, seu filho
adotivo convertido em guarda-costas. Havia dois telefones na casa de cinco dormitórios. O quarto de Clay
tinha um ramal; mas o telefone mesmo tinha perdido a campainha fazia quatro anos,
Separamo-nos. Antônio e Peter se dirigiram ao lado oeste do povoado onde estava o único edifício de
apartamentos de Bear Valley e dois hotéis. O que significava que tinham o melhor setor, já que era mais
provável que o vira-lata se encontrasse ali; mas o problema era que Jeremy decidiu que deviam manter-se
em forma humana, dado que não poderiam andar pelo complexo de apartamentos como lobos.
Clay, Nicholas e eu devíamos percorrer o leste, onde poderíamos encontrar o vira-lata em uma casa ou
em um quarto alugado. Levamos meu automóvel, um velho Camaro, que estava em Stonehaven. Clay Dirigia.
Na realidade foi minha culpa: desafiou-me a correr até a garagem. Meu ego aceitou e meus pés perderam.
Chegamos à cidade pouco depois das nove e meia. Clay me deixou detrás de uma clínica médica que fechava
às cinco. Transformei-me entre dois depósitos de lixo que fediam a desinfetante.
Mudar de forma era igual a qualquer outra função corporal, é mais fácil quando o corpo o necessita. Um
licántropo descontrolado transforma-se sob duas circunstâncias: quando o ameaçam ou quando seu ciclo
interno lhe impõe a necessidade de fazê-lo. Nossa Mudança se apóia aproximadamente nos ciclos da Lua,
embora tenha pouco que ver com a lua cheia. O ciclo natural pode variar entre três dias e uma semana para
pessoas diferentes. Quando se aproxima o momento, podemos sentir os sintomas: a inquietação, a ardência,
as cãibras e dores internas, a sensação angustiosa de que se tem que fazer algo e que o corpo e a mente não
poderão descansar até que se satisfaça essa necessidade. Os indícios são tão reconhecíveis instintivamente
como os da fome. E igual à fome, podemos pospô-lo, mas em pouco tempo o corpo obriga à Mudança. E
igual à fome, podemos nos antecipar aos sintomas e Trocar antes que apareçam. Ou podemos deixar de
lado o ciclo natural por completo e Trocar tanto como queiramos. Isso é o que nos ensinou a Matilha. Trocar
mais freqüentemente para melhorar o controle e nos assegurar de não esperar muito, dado que isso poderia
provocar efeitos secundários complicados, tais como iniciar uma Mudança no meio das compras ou, tendo
Trocado, nos sentir frustrados pela ira e o desejo de sangue. Em Toronto deixei de lado os ensinos de Jeremy
e Trocava só quando era necessário, em parte para me distanciar da «maldição» e em parte porque a
Mudança em Toronto era uma grande produção, que requeria tanto planejamento e cautela que me deixava
exausta por muitos dias. Assim estava fora de prática. Tinha Trocado ontem. E sabia que fazê-lo novamente
menos de vinte e quatro horas depois seria terrível, como ter sexo sem preliminares. Seria doloroso ou
possivelmente não poderia fazê-lo. Devia ter esclarecido isto ao Jeremy quando disse que tínhamos que
Trocar para a caçada, mas não pude. Senti-me envergonhada. Em Toronto Trocava o menos possível porque
me dava vergonha. Dois dias mais tarde, estava em, Stonehaven, me negando a admitir que não podia Trocar
possivelmente, porque me dava vergonha. Outra coisa mais para que meu cérebro entrasse na confusão
total.
Demorei mais de meia hora para Trocar, o triplo do tempo normal. Doía? Bom, não tenho muita
experiência com a dor que não tenha que ver com a mudança de forma, mas acredito que se pode dizer que
se me esquartejassem doeria um pouco menos. Quando terminei, fiquei ali outros vinte minutos,
descansando e agradecida por ter podido Trocar. Frente à opção entre a agonia que significava a Mudança
e admitir diante de Clay e outros que já não podia Trocar de acordo com minha vontade, escolhia o
esquartejamento. A dor física desaparece antes que o orgulho ferido.

Comecei por uma subdivisão de fileiras de casas velhas que não se converteram em condomínios e
provavelmente nunca o fariam. Eram mais de dez, mas as ruas já estavam desertas. Os pais ansiosos tinham
tirado seus filhos das praças, muitas horas atrás. E inclusive os adultos se protegiam ao cair do sol. Em que
pese que era uma cálida noite de maio, não havia ninguém tomando ar nos alpendres nem crianças
brincando nas entradas das garagens. Em troca havia janelas fechadas através das quais saíam à luz dos
televisores. Ouviam-se gargalhadas dos programas de televisão, que ofereciam um escape para os nervosos.
Bear Valley tinha medo.
Deslizei-me pela frente das casas, escondida entre as paredes e os arbustos que as adornavam. Em cada
porta usava o focinho e farejava, logo corria para me esconder atrás da seguinte fileira de arbustos. Cada
brilho de luzes de automóveis me paralisava. Meu coração bombeava, cheio de excitação nervosa. Não era
divertido, mas o perigo adicionava um elemento que não experimentava desde que era criança. Se me
vissem, sequer por um segundo, estaria em perigo. Era uma loba farejando pelo povoado, no meio de um
pesadelo coletivo por um suposto cão selvagem. Se minha silhueta se recortava por um segundo a luz das
janelas, sairiam com escopetas em um instante.
Passada mais de uma hora, estava a meio caminho de meu quarto beco de casas em fila, quando senti
passos que sapateavam na calçada. Apertei-me contra os tijolos frescos da casa e escutei. Alguém vinha pela
calçada e cada passo ressoava com seu clique. Pensei por um instante em Clay. Não o faria, verdade? Melhor
que não. Detive-me oculta atrás dos ramos baixos de um cedro e tentei ver. Era uma mulher que vinha
rápido pela vereda, com os saltos tamborilando sobre o cimento. Vestia um uniforme de algum tipo, com
uma saia de poliéster que mal que cobria seus largos quadris. Usava uma bolsa de couro falso apertada nas
mãos e caminhava o mais rápido que lhe permitiam seus saltos de cinco centímetros. A cada passo olhava
para trás. Farejei e senti um leve aroma de colônia Obsessão, mesclada com o fedor de gordura e o aroma
de cigarro. Uma garçonete que voltava para casa do trabalho e que não esperava que a rua estivesse tão
escura. Quando se aproximou mais cheirei outra coisa. Temor. Inconfundivelmente temor. Roguei para que
não começasse a correr. Não o fez. Lançando outro olhar de medo, entrou em sua casa e fechou a porta.
Voltei para o trabalho.
Alguns minutos mais tarde escutei um uivo no silêncio da noite. Era Clay. Não utilizou o uivo típico dos
lobos, que tivesse chamado indevidamente a atenção, mas sim imitou o chamado de um cão solitário.
Encontrou algo. Esperei. Quando me chegou um segundo uivo, localizei-o e comecei a correr. O chão fluía
sob meus pés enquanto ia tomando velocidade. Mantive-me no limite da rua, mas não me preocupei muito
de me esconder. A esta velocidade, quem quer que me visse só divisaria um pouco de pele clara.
Ao chegar ao caminho principal descobri que tinha que cruzá-lo. Isso me levou uns minutos. Do outro lado
da rua estava a área de Clay, uma subdivisão de casas e duplex da época da guerra. Justo quando tentava
encontrar seu rastro, percebi outro, que me fez parar e quase caí para trás. Sacudi-me, amaldiçoando minha
estupidez e retrocedi. Ali, no cruzamento de duas ruas, OH um licántropo, alguém a quem não reconheci. O
rastro era velho, mas claro. Tinha passado por ali mais de uma vez. Olhei rua abaixo. Era na direção de onde
escutei ao Clay, assim mudei de rumo e comecei a seguir o rastro do vira-lata de ruas.
O rastro me levou a uma casa de tijolos de uma só andar, com extensões de chapa de alumínio atrás. O
pátio traseiro era pequeno e a grama estava recém cortada, mas as hortaliças competiam de igual a igual
com o mato. Havia lixo empilhado junto à entrada e o aroma me incomodou. Parecia haver dois anexos a
casa, um com porta lateral e outro com a porta presumivelmente atrás. A casa estava escura. Farejei a
vereda. O aroma do licántropo era forte e não podia distinguir um rastro de outro. O fator mais notório era
sua Antigüidade. Esteve passando por aqui durante uma semana. Ficou aqui.
Estava tão excitada por encontrar o apartamento, que não vi a sombra que se aproximava. Quando a
percebi, girei a cabeça para ver Clay em forma humana. Passou sua mão sobre minha nuca. Atirei-lhe uma
dentada e me ocultei atrás dos arbustos. Logo depois de Trocar para a forma humana, saí.
-Sabe que odeio isso - murmurei, passando os dedos pelos cabelos cacheados-. Quando estiver Trocada,
mantenha-se Trocado ou respeite minha privacidade. Acariciar-me não serve de nada.
-Não estava "acariciando” você, Elena. Deus, até o mínimo gesto... - conteve-se, tomou ar e voltou a
começar. -Este é o lugar do vira-lata, o apartamento do fundo, mas não está aqui.
-Esteve lá dentro?
-Estava investigando um pouco e esperando você.
Olhei seu corpo nu e depois o meu.
-Suponho que não se incomodou de procurar roupa enquanto andava por aqui.
-Espera que eu encontre algo pendurado nos varais a esta hora? Sinto muito, carinho. Mais veja, isto tem
suas vantagens. Se o dono vier, estou seguro de que pode convencê-lo a não chamar à polícia.
Soprei e fui à porta traseira. Só tinha uma fechadura comum. Foi fácil forçá-la. Tinha aberto apenas uma
fresta quando me chegou o aroma fétido de carne podre. Tive que me esforçar para não tossir. Cheirava
como um matadouro. Ao menos para mim. O nariz comum provavelmente não sentiria o cheiro de nada.
A porta dava para o living. Parecia-se com o típico apartamento de solteiro, com roupas sem lavar jogada
sobre o sofá e latas de cerveja vazias em um canto. Obviamente o aluguel não incluía serviço de limpeza.
Havia caixas com fatias de pizza e restos de peixe e batatas fritas sobre uma mesa no canto. Mas essa não
era a fonte do mau cheiro. O vira-lata tinha matado aqui. Não havia sinal de um cadáver; mas o forte aroma
de sangue e carne podre o delatava. Trouxe uma mulher a seu apartamento, matou-a e ocultou os restos
em outro lugar.
Comecei pelo quarto principal, olhando nos armários e sob os móveis, em busca de algum indício da
identidade do vira-lata. Não reconheci seu aroma, mas possivelmente pudesse saber quem era com um par
de pistas.
Como não encontrei nada, fui ao quarto onde Clay procurava. Estava no piso, olhando debaixo da cama.
Quando entrei, tirou um couro cabeludo e o jogou para um lado e seguiu procurando algo interessante.
Olhei a coisa sangrenta e senti que vomitaria. Clay lhe deu tanta atenção como a um lenço de papel, mais
preocupado por haver sujado as mãos que por outra coisa. Clay tinha um quociente de inteligência de mais
de cento e sessenta, mas não podia entender por que matar humanos era um tabu. Não matava pessoas
inocentes, pelo mesmo motivo que qualquer pessoa não mataria intencionalmente um animal com seu
automóvel. Mas se um humano representava uma ameaça, o instinto lhe dizia que fizesse o necessário.
Jeremy lhe proibia matar os humanos, e o evitava só por esse motivo.
-Nada - disse em voz baixa. Saiu de baixo da cama. -E você?
-O mesmo. Não deixou nada que o identifique.
-Mas não sabe que não pode atacar às pessoas do lugar.
-Hereditário, mas jovem - disse-. Cheira a novo, mas nenhum licántropo mordido poderia ter essa classe
de experiência, assim deve ser jovem. Jovem e presunçoso. Seu papai deve ter lhe ensinado o básico, mas
não tem experiência suficiente para evitar problemas e manter-se longe do território da Matilha.
-Bem, não vai viver o suficiente para ter a experiência necessária. Sua primeira mancada foi a última.
Estávamos revisando pela última vez o apartamento quando Nick passou pela porta, ofegando.
-Ia chama-los - disse-. Encontrou seu apartamento? Está aqui?
-Não - disse.
-Podemos esperar? -pergunto. Nick, esperançoso.
Vacilei e logo neguei com a cabeça.
-Sentiria nosso cheiro antes de chegar à porta. Jeremy disse que o matássemos só se pudéssemos fazê-lo
sem perigo. E não podemos. Não é um novato; ele sentiu nosso aroma. Com um pouco de sorte, entendeu
a indireta e saiu da cidade. Não obstante podemos apanhá-lo e assassiná-lo depois, fora daqui, um trabalho
totalmente limpo.
Clay estendeu a mão e puxou da mesinha de cabeceira as coisas que tirou de debaixo da cama. Entregou
duas caixinhas de fósforos.
-Agora sabemos onde passa as noites - disse-. Se não estiver aqui quando nos vingarmos amanhã, aposto
que estará em algum destes mercados de carne procurando o jantar.
Olhei as caixas de fósforos. O primeiro era do Botequim do Rick, um dos três estabelecimentos autorizados
da área. A segunda era uma caixinha marrom fajuta, com um endereço anotado no lado. Memorizei os
nomes dos bares, já que não poderíamos levar nada disso, pois não tínhamos bolsos.
-De volta ao automóvel - disse Clay-. Melhor Trocamos.
Meu coração começou a pulsar acelerado.
-Por quê?
-Por quê? Bem carinho, acredito que três pessoas nuas correndo pela rua poderiam chamar a atenção.
-Há roupa aqui
Clay bufou.
-Prefiro que me vejam nu a vestir a roupa de um vira-lata. -Como não lhe respondi, virou-se com o cenho
franzido. -Aconteceu algo, carinho?
-Não, só... não. Não está acontecendo nada.
Virei-me e fui ao quarto, deixando a porta um pouco aberta, para poder sair quando Trocasse, se é que
conseguiria fazê-lo. Por sorte ninguém pareceu estranhar que quisesse Trocar em privado. É o que faz a
maior parte da Matilha. Não importa a confiança que se tenha em alguém, há coisas que ninguém não quer
que outros vejam. Clay era a exceção, como em todas as coisas. Não se importava que o vissem Trocar. Para
ele era um estado natural e nada do que envergonhar-se. Embora na metade da Mudança fossemos algo
digno de um circo. Para Clay, a vaidade era outro conceito estranho dos humanos. Nada natural devia ser
ocultado. As fechaduras dos banheiros em Stonehaven estão quebradas há vinte anos. Ninguém se dignava
a arrumá-las. Algumas coisas não valiam à pena serem discutidas com Clay. Mas divergíamos com respeito
a Trocar.
Passei ao outro lado da cama para que ninguém pudesse me ver através da abertura da porta. Então me
pus no piso e me concentrei esperançosa. Não aconteceu nada por cinco longos minutos. Comecei a suar e
tentei com mais afinco. Passaram-se vários minutos mais. Acreditei sentir que as mãos se convertiam em
garras, mas quando olhei, eram só meus dedos muito humanos fundados no tapete.
Pela extremidade do olho vi a porta move-se. Um nariz negro se meteu no quarto. Seguiu-o um focinho
dourado. De um salto, fechei a porta antes que Clay pudesse me ver. Gemeu com tom interrogativo. Grunhi,
com a esperança de que o som fosse suficientemente canino. Clay respondeu com outro grunhido e se
afastou da porta. Uma pausa, mas breve. Em menos de cinco minutos tentaria de novo. Clay era muito
impaciente.
Empurrei um pouco a porta para poder abri-la se Trocasse - quando, por favor; quando Trocasse-. Mas
pelas dúvidas pensei em um plano alternativo. Pegar um pouco de roupa e escapar pela janela? Enquanto
avaliava se poderia saltar pela janela, comecei a sentir um comichão na pele que se retesava. Olhei e percebi
que minhas unhas se engrossavam, meus dedos diminuíam. Com um forte suspiro de alívio fechei os olhos
e deixei que a transformação seguisse seu curso.

Atravessamos o pátio traseiro e saímos do lado norte do centro comercial de Bear Valley onde havia locais
de todos os boxes de comida sucata. Escapulimos pelas margens do estacionamento, entrando em um
labirinto de becos em meio aos galpões. Como já não estávamos à luz dos refletores, atrevemo-nos a correr.
Pouco depois que Clay e eu começamos a correr. Era mais uma corrida de obstáculos que outra coisa, com
escorregões e tropeções. Eu estava na frente quando ouvimos que uma lata de lixo caía no final do beco.
Nós três paramos escorregando para escutar.
-Que merda está fazendo? -disse uma voz jovem-. Tome cuidado e comece a andar. Se meu velho
descobrir que escapamos vai nos esfolar.
Outra voz masculina respondeu com uma risadinha de bêbado. A lata de lixo foi arrastada pelo cascalho e
logo apareceram duas cabeças. Tentei retroceder às sombras e bati contra uma parede. Estava presa entre
uma pilha de lixo e um montão de caixas. Em frente de mim, Clay e Nick se meteram em um portal,
afundando-se na escuridão, de modo que só se divisava o fulgor azul dos olhos de Clay. Olhou-me e logo aos
moços, me dizendo que as sombras não me ocultavam. Era muito tarde. Só podia esperar que os moços
estivessem muito bêbados para prestarem atenção ao que os rodeava enquanto avançavam a tropeções.
Os moços falavam de algo, mas as palavras passaram por meus ouvidos como ruído sem significado. Para
entender a fala humana estando sob esta forma, tinha que me concentrar, como tinha que me concentrar
para entender a alguém que falasse em francês. Agora não podia me ocupar disso. Estava muito ocupada
olhando os pés deles à medida que se aproximavam.
Quando chegaram junto à pilha de lixo, agachei-me e me esmaguei contra o piso Suas botinhas deram
mais três passos, e Passaram justo diante de meu esconderijo. Obriguei-me a não escutar; a olhar seus rostos
somente e me guiar pelo que visse. Não tinham mais de dezessete anos. Um era alto e vestiu uma jaqueta
de couro com a cabeça rapada e piercing nos lábios e no nariz. Seu companheiro estava embelezado de
modo similar, mas sem a cabeça rapada e os piercings, lhe faltava a coragem ou a idiotice para converter
uma moda em uma desfiguração semipermanente.
Continuaram falando enquanto se afastavam. Então o menino rapado tropeçou. Ao cair; girou para pegar
o lado do lixeiro e me viu. Piscou uma vez. Logo puxou a manga de seu amigo e me mostrou. O instinto me
levava a responder à ameaça com o ataque. A razão me obrigou a esperar. Há dez anos teria matado aos
meninos no momento em que entraram no beco. Faz cinco anos, teria saltado assim que um deles se deu
conta de minha presença. Ainda hoje podia sentir o impulso nas vísceras, um temor que fazia meus músculos
se retesarem, preparados para atacar. Era isso - a batalha pelo controle de meu corpo - o que mais odiava.
Um grunhido grave ecoou pelo beco, e era eu quem grunhia. Tinha as orelhas esmagadas contra a cabeça.
Por um momento, meu cérebro tentou controlar o instinto, e logo percebi que era melhor me render a ele,
deixar que os meninos vissem o perto que estavam de morrer.
Grunhi mais forte. Os dois moços saltaram para trás. O que tinha cabelo, virou-se e correu pelo beco,
tropeçando com o lixo. Os olhos do outro moço seguiram seu amigo. Mas então, em vez de correr atrás dele,
sua mão pegou algo do lixo. Algo brilhou a luz da Lua. Virou-se para mim com uma garrafa quebrada na mão,
o temor substituído por uma careta de poder. Houve um movimento impreciso a suas costas e eu consegui
divisar Clay a ponto de saltar. Olhei ao moço e saltei. Clay saltou. No ar, esquivei-me do moço e me choquei
diretamente com o Clay. Caímos juntos e corremos ao chegar ao chão. Nick nos seguiu, provavelmente antes
que o menino soubesse o que via. Corremos o resto do caminho até o automóvel.

Chegamos à casa pouco depois das duas. Antônio e Peter não haviam voltado, mas não havia uma maneira
segura de rastreá-los e lhes dizer que já tínhamos descoberto onde se alojava o vira-lata. Quando entramos,
a casa estava silenciosa e escura. Jeremy não se incomodou de nos esperar levantado. Sabia que se tivesse
acontecido algo, o despertaria. Clay e eu corremos até os degraus, brigando para ser o primeiro a subir.
Detrás, Nick zombava de nossa briga, nos seguindo de perto. Chegamos acima e corremos até o quarto de
Jeremy no fim do corredor. Antes que pudéssemos chegar ali a porta se abriu.
-Encontraram-no? -perguntou Jeremy, uma voz sem corpo que saía da escuridão.
-Descobrimos onde fica - disse-. Está...
-Mataram-no?
-Não - disse Clay-. Muito arriscado. Mas...
-Bem. Contam-me o resto pela manhã.
A porta se fechou. Clay e eu nos olhamos. Encolhi os ombros e retrocedi pelo corredor.
-Terei que ganhar de você amanhã - disse.
Clay correu e saltou sobre mim, me jogando no piso. Ficou em cima de mim, sustentando meus braços
contra o chão e Sorrindo, com a excitação da caçada ainda nos olhos.
-Você acha? Que tal se decidimos com um jogo? Você decide qual jogo.
-Pôquer – disse Nick.
Clay se virou para olhá-lo.
-E por que jogamos?
Nick sorriu.
-O habitual. Faz muito tempo.
Clay riu, saiu de cima de mim e me levantou. Quando chegamos a seu quarto, atirou-me em sua cama e
foi até o bar para preparar bebidas. Nick se jogou em cima de mim. Afastei-me para um lado e me levantei.
-O que os faz pensar que quero jogar? -perguntei.
-Sentiu saudades. - disse Nick.
Desabotoou a camisa e a tirou, assegurando-se de que eu visse seus músculos, despir-se era um maldito
ritual de emparelhamento com estes tipos. Pareciam acreditar que a visão de um belo rosto, bíceps
musculosos e um estômago plano me converteria em uma massa de hormônios indefesa, disposta a jogar
seus jogos juvenis. Geralmente funcionava, mas essa não é a questão.
-Uísque e soda? -disse Clay do outro lado do quarto.
-Perfeito - disse Nick.
Clay não se incomodou de perguntar o que eu queria. Nick tirou a presilha do meu cabelo e começou a
mordiscar minha orelha, com seu fôlego quente que cheirava levemente a molho de tacos. Relaxei na cama.
Quando seus lábios percorreram meu pescoço, girei o rosto e o afundei no seu e inalei seu aroma familiar.
Baixei até o oco de sua clavícula e senti que seu coração dava um salto.
Nick deu um coice. Elevei a vista e vi Clay que apertava um copo frio contra suas costas. Pegou Nick pelos
ombros e o tirou de cima de mim com um puxão.
-Vá procurar as cartas - disse.
-Como vou saber onde as guardas? - perguntou Nick.
-Procure. Manterá você ocupado um momento.
Clay se sentou junto a minha cabeça e me entregou a bebida. Bebi rum e coca. Engoliu o seu e se inclinou
sobre mim.
-Noite perfeita, não é verdade?
-Poderia ser - sorri-lhe- Mas você estava ali.
-O que significa que foi só o começo de uma noite perfeita.
Ao inclinar-se sobre mim, seus dedos roçaram meus quadris e se deslizaram sobre ele. O aroma espesso
e evidente do Clay me fez sentir um calor que se irradiava para baixo desde meu estômago.
-Divertiu-se - disse-. Reconheça.
-Possivelmente.
Nick voltou para a cama.
-Hora de jogar. Vão manter a aposta? O ganhador diz a Jeremy o que aconteceu esta noite?
Os lábios de Clay se curvaram em um lento sorriso.
-Não. Eu quero outra coisa. Se ganhar, Elena vem comigo ao bosque.
-Para que? -perguntei.
O sorriso se ampliou, mostrando seus dentes brancos e perfeitos.
-Isso importa?
-E se eu ganhar, que me dará? - perguntei.
-O que queira. Se ganhar, você escolhe seu prêmio. Você pode dizer a Jeremy o que aconteceu, ou pode
matar ao vira-lata amanhã, ou qualquer outra coisa que queira.
-Posso matá-lo?
Atirou a cabeça para trás e riu.
-Sabia que você gostaria disso. Com certeza, querida. Se ganhar, o vira-lata é teu.
Era uma oferta que não pude resistir. Assim jogamos. Clay ganhou.

CULPA
Segui Clay ao bosque. Nick quis vir conosco, mas um olhar de Clay o fez ficar no quarto. Quando chegamos
à clareira, Clay se deteve, virou-se e me olhou sem dizer nada.
-Não podemos - tremi de frio.
-Por que não? -sussurrou, com a voz rouca-. A noite não se acabou. Não está pronta para isso.
Quantas vezes repetimos esta cena? Não aprendia nunca? Já sabia como terminaria isto quando peguei
as cartas. Não pensei em outra coisa desde esse momento.
Beijou-me. Podia sentir o calor de seu corpo, tão familiar que podia me afogar nele. O rico aroma dele me
alagou o cérebro, tão intoxicante como a fumaça de peiote3. Senti que sucumbia ao perfume, mas a parte
de meu cérebro que ainda podia pensar fez soar forte os alarmes. Já estive ali. Já o fiz. Recorda o resultado?
Retrocedi um pouco, provando sua reação mais que resistindo seriamente. Atirou-me contra uma árvore,
suas mãos baixaram a meus quadris e os pegou com força. Seus lábios voltaram para os meus, seus beijos
ficaram mais profundos e me atravessavam. Comecei a resistir. Apertou-se contra mim, me prendendo
contra a árvore. Chutei-o e ele se retirou, sacudindo a cabeça. Tentei me recuperar e olhei ao redor. A
clareira estava vazia. Clay se foi. Quando meu cérebro confundido tentava processar isso, meus braços foram
dobrados detrás de minha cabeça, me pondo de joelhos.
-O que...?
-Não resista - disse Clay de atrás de mim-. Tento ajudar você.
-Ajudar-me? Ajudar-me a quê?
Tentei baixar os braços, mas me sustentava com força. Senti algo suave em volta de meus pulsos. Senti
um ramo que se movia. Então Clay me soltou. Movi meus braços, mas só uns centímetros até que o tecido
se apertou sobre meus pulsos. Uma vez que viu que não podia me soltar, virou-se e se ajoelhou em cima de
mim, obviamente muito feliz com o que via.
-Isto não é engraçado - disse-. Desamarre-me. Agora.
Ainda sorridente, Pegou a parte de acima de minha camiseta e a rasgou ao meio. Depois soltou meu sutiã.

3
Peiote = cacto pequeno que quando se fuma vira um alucinógeno como a maconha.
Comecei a dizer algo, logo me detive e inalei profundamente. Tinha tomado meu peito em sua boca e
brincava com meu mamilo. Moveu sua língua e se endureceu. Senti que o desejo nublava minha mente. Riu
e a vibração de sua risada me fez cócegas.
-Assim está melhor? -sussurrou-. Já que não pode lutar contra mim, não poderia me deter. Não está sob
seu controle.
Sua mão desceu de meu seio e começou a me acariciar o estômago, movendo-se para baixo com lentidão
frustrante. Tive uma imagem de seu corpo nu sobre mim. Acendeu meu desejo. Ele se moveu. Senti sua
ereção subindo pela coxa. Abri um pouco as pernas e senti seu jeans que me arranhava. Então se retirou.
-Pode sentir a noite ainda? -sussurrou, dobrando minha orelha-. A caçada. A perseguição. Correr na
cidade.
Tive um calafrio.
-Onde a sente? - perguntou Clay, sua voz mais grave, seus olhos de um azul fosforescente.
Baixou as mãos até meus jeans, desabotoou-os e os tirou. Tocou o lado interno de minha coxa. Deixou
seus dedos aí o suficiente para que meu coração desse um salto.
-Sente-a ali?
Logo baixou sua mão até detrás de meus joelhos, riscando o caminho dos calafrios que me percorriam.
Fechei os olhos e deixei que as imagens da noite fluíssem por meu cérebro, as portas fechadas, as ruas
silenciosas, o perfume do medo. Recordei a mão do Clay me acariciando a pele, a faísca de fome em seus
olhos ao entrar no apartamento, a alegria de correr pela cidade. Recordei o perigo no beco, enquanto
observava os adolescentes, esperando, ouvindo o rugido de Clay ao equilibrar-se sobre eles. A excitação
continuava ali, pulsando em cada parte de meu corpo.
-Pode senti-la ali? - perguntou, com seu rosto perto do meu. Comecei a fechar os olhos.
-Não - sussurrei-.
-Olhe-me.
Seus dedos subiram por minhas coxas lentamente. Brincou com a borda de minha calcinha um momento
e logo os afundou em mim. Deixei escapar um suspiro. Seus dedos se moveram dentro de mim, encontrando
o centro de meu prazer. Mordi meus lábio para não gritar. Justo quando as ondas do clímax começavam a
subir, meu cérebro começou a funcionar e percebi o que fazia. Lutei para resistir a sua mão, mas a manteve
ali, com seus dedos em movimento. O clímax começou a subir novamente, mas resisti não queria lhe dar
isso. Fechei os olhos fortemente e puxei as ataduras. A árvore rangeu, mas não pude escapar. De repente
sua mão se deteve e saiu. O som que produziu ao baixar o seu zíper cortou o ar da noite.
Meus olhos se abriram e o vi baixar o jeans. Ao ver seu desejo nos olhos e no corpo, meus quadris subiram
para ele. Sacudi a cabeça tentando me afastar e me virar. Clay se inclinou pondo seu rosto junto ao meu.
-Não vou forçar você, Elena. Você gostaria de pensar que eu o faria, mas não o farei. Tudo o que tem que
fazer é dizer que não quer. Dizer que pare. Que desamarre você. E eu o farei.
Sua mão se meteu entre minhas coxas, separando-as antes que pudesse fechá-las. Saiu a seu encontro
meu calor e minha umidade, meu corpo me traiu. Senti que a ponta de seu pênis me roçava, mas não
avançou.
-Diga-me que pare -sussurrou-. Diga-me isso.
Olhei-o com ira, mas as palavras não saíram de meus lábios. Ficamos um momento nos olhando nos olhos.
Então me pegou embaixo dos seus braços e me penetrou. Meu corpo se convulsionou. Por um instante não
se moveu. Podia senti-lo dentro de mim, seus quadris junto dos meus. Retirou-se lentamente e meu corpo
protestou, movendo-se involuntariamente com ele, tentando retê-lo. Senti que seus braços subiam. Liberou
minhas mãos. Entrou em mim novamente e já não pude resistir. Coloquei as mãos em seus cabelos, as pernas
envolvendo-o. Desamarrou meus braços e me beijou, beijos profundos que me devoravam enquanto se
movia dentro de mim. Fazia tanto tempo. Fazia tanto tempo e senti tantas saudades.
Quando se acabou nos afundamos na grama, ofegando como se tivéssemos corrido uma maratona.
Ficamos ali, ainda enredados. Clay afundou seu rosto em meus cabelos, disse-me que me amava e
lentamente dormiu. Eu fiquei nas nuvens. Finalmente virei a cabeça e o olhei. Meu amante demônio. Há
onze anos dei tudo a ele. Mas não foi suficiente.
-Mordeu-me - sussurrei.

Clay me mordeu no escritório em Stonehaven. Estava sozinha com Jeremy, que tentava encontrar uma
maneira de se desfazer de mim, embora eu não soubesse então. Parecia estar fazendo perguntas simples e
benignas, do tipo que faria um pai preocupado em conhecer uma jovem com quem seu filho pensava em
casar. Clay e eu estávamos comprometidos. Havia me trazido para Stonehaven para me apresentar a Jeremy.
Quando Jeremy me interrogava, acreditei escutar os passos de Clay; mas se detiveram. Tinha-o imaginado
ou ele foi tomar o café da manhã. Jeremy estava parado junto à janela, em um canto de perfil para mim.
Olhava o pátio traseiro.
-Quando se casarem, Clayton terá terminado seus estudos na universidade - disse Jeremy-. O que
acontecerá se conseguir trabalho em outro lugar? Está disposta a abandonar seus estudos?
Antes que pudesse formular uma resposta, a porta se abriu. Queria poder dizer que se abriu com um
chiado de dobradiças ou algo igualmente detestável. Mas não foi assim. Simplesmente se abriu. Vendo que
se movia, virei-me. Um cão grande entrou, com a cabeça encurvada como se esperasse que o desafiassem
por estar em um lugar indevido. Era imenso, quase tão alto como um grande Dinamarquês, mas tão sólido
como um pastor de músculos bem desenvolvidos. Sua pele dourada refulgia. Ao entrar na sala, olhou-me.
Tinha olhos de um azul muito brilhante. O cão me olhou e abriu a boca. Eu lhe sorri. Em que pese seu
tamanho, sabia que não tinha nada que temer. Senti isso claramente.
-Uau - disse-. É bonito. Ou é uma fêmea?
Jeremy virou-se. Seus olhos se abriram e empalideceu. Deu um passo para frente, logo se deteve e chamou
Clay.
- Clay o deixou escapar? -perguntei-. Tudo bem. Não me importo.
Deixei cair minha mão, convidando ao cão com meus dedos.
-Não se mova - disse Jeremy em voz baixa-. Retire sua mão.
-Não há perigo. Vou deixar ele me cheirar. Supõe-se que se deve fazer isto com um cão estranho antes de
acariciá-lo. Tive cães quando era garota. Ao menos meus pais adotivos os tinham. Vê sua postura? As orelhas
para frente, a boca aberta? Meneia a cauda. Significa que está calmo e curioso.
-Retire sua mão agora.
Olhei para Jeremy. Estava tenso, como se ele se preparasse para saltar sobre o cão se me atacasse. Voltou
a chamar Clay.
-Sério, não há problema - disse, já zangada-. Se for nervoso vai assustá-lo gritando. Confie em mim. Um
cão me mordeu uma vez. Um chihuahua bem pequeno, mas doeu muito. Ainda tenho a marca. Este é uma
besta bruta, mas é amigável. Como a maioria dos cães grandes. É dos pequenos que terá que se cuidar.
O cão se aproximou mais. Com um olho olhava Jeremy, alerta, observando sua linguagem corporal, como
se esperasse uma surra. Senti ira. Maltratavam ao cão? Jeremy não parecia esse tipo de pessoa, mas o
conhecia fazia menos de doze horas. Dei as costas ao Jeremy e estendi mais a mão.
-Vem, moço - sussurrei-. Sim que é lindo, verdade?
O cão deu outro passo para mim, lento e cauteloso, como se temêssemos nos assustar o um ao outro. Seu
focinho veio para minha mão. Ao elevar seu nariz para cheirar meus dedos, de repente pegou minha mão e
a beliscou com seus dentes. Dei um grito, mais por surpresa que por dor ou medo. O cão começou lamber
minha mão. Jeremy saltou através da sala. O cão se esquivou dele e saiu correndo pela porta. Jeremy o
seguiu.
-Não - disse-lhe, ficando de pé-. Não quis me machucar. Estava brincando.
Jeremy veio para junto de mim e inspecionou a mordida. Dois dentes tinham atravessado minha pele,
deixando pequenas feridas das quais só saíram um par de gotas de sangue.
-Apenas me furou a pele - disse-. Uma dentada de afeto. Vê?
Passaram-se alguns minutos enquanto Jeremy examinava minha ferida. Logo houve um ruído na porta.
Olhei para cima, esperando voltar a ver o cão. Mas era Clay. Não pude ver sua expressão. Jeremy estava
entre nos dois, me obstruindo a visão.
-O cão me mordeu - disse-. Não é nada. Jeremy se virou para Clay.
-Sai - disse, com voz tão baixa que mal o ouvi.
Clay não se moveu. Ficou petrificado na porta.
-Saia! -gritou-lhe Jeremy.
-Não é sua culpa - disse-. Possivelmente deixou o cão entrar, mas... detive-me. A mão começava a arder.
Olhei para baixo.
As duas perfurações ficaram muito vermelhas. Sacudi fortemente a mão e olhei para Jeremy.
-Melhor eu ir lava-la - disse-. Têm algum desinfetante?
Ao avançar, minhas pernas cederam. Quão último vi foi que Jeremy e Clay tentaram me segurar. E depois
tudo se obscureceu.

Depois que Clay me mordeu, não recuperei a consciência até dois dias mais tarde, embora naquele
momento acreditasse que só tinham passado algumas horas. Despertei em um dos quartos de hóspedes,
que logo se converteria em meu dormitório. Tive que fazer esforço para abrir os olhos Tinha as pálpebras
quentes e inchadas. A garganta, os ouvidos e minha cabeça, doíam. Até meus dentes doíam. Pisquei um par
de vezes.
O quarto se movia e logo consegui enfocar os olhos. Jeremy estava sentado em uma cadeira junto a minha
cama. Levantei a cabeça. A dor detrás de meus olhos explodiu. Minha cabeça caiu no travesseiro e dei um
gemido. Ouvi Jeremy parar, depois o vi me olhando.
-Onde está Clay? -perguntei. Soou mas bem como ohedaclay, como se falasse com a boca cheia de mato.
Engoli, e senti mais dor. -Onde está Clay?
-Está doente. - disse Jeremy.
-Sério? Não tinha me dado conta. -O sarcasmo me custou muito. Tive que fechar os olhos e engoli antes
de continuar. -O que aconteceu?
-Mordeu-te.
Voltou-me a lembrança. Agora sentia pulsações na mão. Esforcei-me por elevá-la. As duas feridas estavam
incharam até alcançar o tamanho de um ovo de codorna. Sentia o calor que irradiavam. Não havia sinal de
pus ou infecção, mas claramente acontecia algo ruim. Senti medo. O cão estava com raiva? Quais eram os
sintomas da raiva? Que mais podia causar uma mordida de cão? Babava?
-Hospital - disse-. Tenho que ir para o hospital.
-Tome isto.
Um copo apareceu ante meus olhos. Parecia água. Jeremy colocou sua mão detrás de meu pescoço e me
levantou a cabeça para que pudesse beber. Afastei-me, choquei o copo com o queixo e o derrubei. Jeremy
amaldiçoou e tirou o cobertor molhado de mim.
-Onde está Clay?
-Tem que beber - disse.
-Pegou outro cobertor que estava ao pé da cama e o estendeu sobre mim. Escapuli-me.
-Onde está Clay?
-Mordeu-te.
-Sei que o maldito cão me mordeu - disse me afastando da mão de Jeremy quando me pôs isso na frente-
. Responda. Onde está Clay?
-Clay te mordeu.
Deixei de resistir e pisquei. Acreditei que tinha escutado mal.
-Clay me mordeu? - disse lentamente.
Jeremy não me corrigiu. Ficou ali, me olhando, esperando.
-O cão me mordeu - disse.
-Não era um cão. Era Clay. Ele... ele mudou de forma.
-Mudou de forma - repeti.
Olhei para Jeremy e logo me movi de lado a lado e tentei me levantar. Jeremy me puxou pelos ombros e
me conteve. O pânico me dominou. Lutei com mais força do que acreditava ter, agitando os braços e
chutando. Esmagou-me contra a cama com tanto esforço como o que necessitaria para conter a uma criança
de dois anos.
-Basta, Elena. - Meu nome em sua boca soava estranho, como uma palavra estrangeira.
-Onde está Clay? - gritei, ignorando a dor que fazia minha garganta arder -. Onde está Clay?
-Foi-se. Fiz que se fosse quando... mordeu você.
Jeremy segurou por ambos os braços e me conteve, tão firme que eu não podia me mexer. Tomou ar e
recomeçou.
-É um... -deteve-se, logo sacudiu a cabeça. -Não preciso dizer o que ele é, Elena. Viu trocar de forma. Viu-
o converter em um lobo.
-Não! -Chutei o ar. -Está louco. Está louco, caralho. Vi um cão. Solte-me! Clay!
-Mordeu você, Elena. Isso significa... significa que é o mesmo que ele. Está se transformando na mesma
coisa que ele. Por isso está doente. Tem que deixar que eu ajude você. Tenho que ajudar você para que
possa sobreviver.
Fechei os olhos e gritei, lhe sufocando as palavras. Onde estava Clay? Por que me deixou com esse louco?
Por que me abandonou? Amava-me. Sabia que me amava.
-Sei que não acredita em mim, Elena. Mas me olhe. Só me olhe. É a única maneira.
Virei o rosto para não vê-lo. Só podia sentir seus braços que me aprisionavam contra a cama. Passado um
momento, seu braço pareceu tremer e contrair-se. Sacudi a cabeça, sentindo que a dor ricocheteava dentro
de mim como uma brasa. Minha vista se nublou e logo se esclareceu. O braço de Jeremy entrou em
convulsões, sua mão se apertava e se retorcia. Queria fechar meus olhos, mas não pude. O que estava vendo
dominava-me. Engrossaram os cabelos negros de seu braço. Apareceram mais cabelos, que saíam de sua
pele, cada vez mais longos. Afrouxou-se a pressão de seus dedos. Olhei e já não havia dedos. Havia uma
garra negra. Fechei os olhos então e gritei até que o mundo voltou a apagar-se.
Levei um ano para compreender realmente no que me converti, que não era um pesadelo nem nenhuma
loucura e que não se acabaria, que não havia cura alguma. Clay teve permissão para voltar dezoito meses
mais tarde, mas as coisas nunca voltariam a ser iguais entre nós. Não podiam sê-lo. Há coisas que não se
pode perdoar.

Despertei algumas horas mais tarde, sentindo o braço de Clay que me abraçava, minhas costas contra ele.
Senti uma lenta quebra de onda de paz que me acariciava. Mas então despertei de repente. Seu braço.
Minhas costas contra ele. Deitados no pasto. Nus. Merda
Separei-me dele sem despertá-lo, e fui rapidamente para casa.

Jeremy estava no alpendre traseiro, lendo o New Cork time com a primeira luz da alvorada. Assim que o
vi parei, mas já era tarde. Tinha me visto. Sim, estava nua, mas esse não era o motivo pelo qual desejava
evitar Jeremy. Os anos de vida com a matilha me fez perder toda vergonha Quando corríamos, sempre
terminávamos nus e muitas vezes longe de onde tínhamos deixado a roupa. No princípio era algo
desconcertante isso de despertar do descanso depois de correr e encontrar-se com três ou quatro tipos nus.
Experiência desconcertante embora não de tudo desagradável, dado que esses tipos eram todos licántropos
e, portanto estavam em excelente estado físico e não se viam muito mal ao natural. Mas estou saindo do
tema. A questão é que fazia anos que Jeremy me via nua. Quando saí de entre as árvores sem roupa nem
sequer o notou.
Dobrou o jornal, levantou-se da cadeira e esperou. Elevei o queixo e avancei até o alpendre. Ele ia sentir
o aroma de Clay em mim. Não podia fugir disso.
-Estou cansada - disse, tentando passar ao lado dele-. Foi uma longa noite. Vou para cama.
- Queria saber o que encontraram ontem à noite.
Sua voz era suave. Um pedido, não uma ordem. Teria sido mais fácil ignorar uma ordem. Parada ali, a idéia
de ir para cama, de ficar a sós com meus pensamentos, afligiu-me. Jeremy me oferecia uma distração. Decidi
aceitá-la. Afundei-me em uma cadeira e lhe contei toda a história. Bom, não foi tudo, mas lhe contei que
encontramos o apartamento do vira-lata, sem mencionar os moços no beco e excluindo todo o acontecido
desde que voltamos. Jeremy escutou e falou pouco. Justo quando terminava, divisei um movimento no
jardim. Clay saía do bosque, os ombros rígidos, a boca dura.
-Vai para dentro - disse Jeremy-. Dorme. Eu me ocupo dele.
Escapei para o interior da casa.

Em meu quarto peguei o celular de minha bolsa e liguei para Toronto. Não liguei para Philip, mas não
porque me sentisse culpada. Não liguei para ele porque sabia que devia me sentir culpada e como não era
assim, não me parecia bem ligar para ele. Faz sentido? Provavelmente não.
Se tivesse tido sexo com outro que não fosse Clay, teria me sentido culpada. Por outro lado, a possibilidade
de que enganasse Philip com alguém que não fosse Clay era tão ínfima que a coisa não fazia sentido. Eu era
leal por natureza, quisesse-o ou não. Mas o que havia entre eu e Clay era tão velho, tão complexo, que me
deitar com ele não podia ser considerado sexo normal absolutamente. Era me render ante algo tão profundo
que toda ira, dor e ódio do mundo não podiam evitar que voltasse para ele. Ser mulher lobo. Estar em
Stonehaven e me unir a Clay eram coisas tão entrelaçadas que não podia as separar. Rende-me a uma coisa
era me redimir de todas. Entrega-me a Clay não era trair a Philip era trair a mim mesma. Isso me aterrorizava.
Sentada na cama, com o telefone em uma mão, podia sentir como perdia o controle. A barreira entre os dois
mundos se solidificava e eu estava presa do lado errado.
Fiquei ali, olhando o telefone, tentando decidir a quem ligar; que contato de minha vida humana tinha o
poder de me levar de volta ao outro lado. Meus dedos discaram os botões por iniciativa própria. Quando o
telefone soou, perguntei-me a quem teria ligado. Então escutei a secretária eletrônica. "Olá, comunicou-se
com Elena Michaels da Focus Toronto. Agora não estou no escritório, mas se me deixa seu nome e seu
número quando escutar o sinal, ligarei para você o quanto antes possível.” Soou o bip. Desliguei, levantei os
lençóis, deitei-me, logo peguei o telefone e apertei o botão para que voltasse a ligar para o mesmo número.
À quinta chamada, dormi.

Era quase meio-dia quando despertei. Enquanto me vestia, escutei no corredor uns passos que me
paralisaram.
-Elena? -Era Clay. Sacudiu o trinco.
-Escutei você se levantar. Deixe-me entrar. Quero falar com você.
Terminei de vestir meu jeans.
--Elena? Vamos. -A porta se sacudiu mais forte-. Sabe que posso quebrar isto. Estou tentando de ser
amável. Deixe-me entrar. Temos que conversar.
Coloquei a presilha no cabelo. Logo cruzei o quarto, abri a janela e saltei, caindo no chão com um golpe.
Senti dor nas panturrilhas, mas não me machuquei. Um salto do primeiro andar não era perigoso para uma
mulher lobo.
Vamos, Clay começou a golpear minha porta. Dei a volta na casa e entrei pela frente. Jeremy e Antônio
vinham pelo corredor quando entrei. Jeremy se deteve e elevou uma sobrancelha.
-Você já não gosta das escadas? -perguntou.
Antonio riu.
-Não tem nada que ver com gostar. Acredito que é pelo lobo mau que quer derrubar sua porta. -Gritou
pela escada. -Pode deixar de sacudir a casa, Clayton. Ela escapou. Está aqui embaixo.
Jeremy sacudiu a cabeça e me levou para a cozinha.
Quando Clay desceu, eu já tinha terminado a metade do café da manhã. Jeremy lhe indicou uma cadeira na
outra ponta da mesa. Queixou-se, mas obedeceu. Nicholas e Peter chegaram um pouco depois e, no caos
do café da manhã, relaxei e pude ignorar Clay. Quando terminamos de comer, dissemos aos outros o que
tínhamos descoberto, enquanto falávamos, Jeremy olhava os jornais. Eu estava terminando quando Jeremy
deixou o jornal e me olhou.
-É tudo? - perguntou.
Havia algo em sua voz que estava me desafiando, mas assenti de todos os modos.
-Está segura? -perguntou.
-Sim. Parece-me que se..
Dobrou o jornal com grande alvoroço e o pôs ante mim. A primeira página do Bear Valley Post. “Cães
selvagens na cidade”.
-Ai –disse- Up.
Jeremy fez um ruído que poderia ser interpretado como um grunhido, mas não disse nada. Em vez disso,
esperou que eu lesse o artigo. Eram os dois meninos que tínhamos visto no beco. Seus pais despertaram ao
editor do jornal em sua casa. Tinham visto os assassinos. Dois, possivelmente três, imensos cães tipo
pastores no centro da cidade.
-Três. Disse Jeremy, a voz contida-. Os três. Juntos.
Peter e Antônio saíram da mesa. Clay olhou para Nick e lhe indicou com o queixo que podia sair também.
Ninguém culparia Nick disto. Jeremy sabia distinguir os instigadores dos seguidores. Nick sacudiu a cabeça e
ficou. Aceitaria sua parte da culpa.
-Voltávamos do departamento do vira-lata - disse-. Os meninos dobraram pelo beco. Viram-me.
-Elena não teve culpa - interveio Clay-. Um deles pegou uma garrafa quebrada. Eu me descontrolei.
Ataquei-os. Elena me deteve e escapamos. Não aconteceu nada com eles.
-A eles não mais a nós sim - disse Jeremy mostrando o jornal; disse que andassem separados.
-Fizemo-lo - disse-. Isso foi depois que encontramos o apartamento.
-Disse-lhes que Trocassem logo depois de encontrá-lo.
-E o que íamos fazer? Ir até o automóvel nus?
Jeremy fez uma careta. Houve um minuto de silêncio. Logo Jeremy ficou de pé, indicou-me que o seguisse e
saiu da sala. Clay e Nick me olharam, mas sacudi a cabeça. Este era um convite privado, por mais que eu
quisesse compartilhá-lo. Segui Jeremy.
Jeremy me conduziu ao bosque pelos caminhos. Havíamos andando um quilômetro e meio antes que
dissesse algo. E inclusive então não se virou, seguiu adiante.
-Sabe que estamos em perigo - disse.
-Todos nós sabemos.
-Não estou seguro de que seja assim. Possivelmente esteve afastada muito tempo, Elena. Ou
possivelmente acredite que porque mudou para Toronto, isto não lhe afeta.
-Está sugerindo que sabotei o plano de propósito...?
-É obvio que não. Digo que talvez tenha que lhe recordar o quanto isto é importante para todos nós, não
importa onde vivamos. As pessoas de Bear Valley procuram um assassino, Elena. O assassino é um
licántropo. Nós somos licántropos. Se o apanharem, quanto tempo acredita que demorarão a vir aqui? Se
encontrarem a esse vira-lata vivo e descobrirem o que é, conectarão-no diretamente comigo e com Clayton
e, através de nós, com o resto da Matilha e, eventualmente, com todo licántropo existente, incluindo os que
tentam negar sua vinculação com a Matilha.
-O que me inclui. Crê que não entendo isso?
-Era você quem devia levar a batuta 4ontem à noite, Elena.
-Bom, então esse foi seu erro - ladrei-lhe-. Não pedi que confiasse em mim. Olhe o que aconteceu com
Carter. Confiou em mi. Não é verdade? Quem se queima com leite...
-No que a mim concerne seu único erro com o Carter foi não ter avisado antes de agir. Sei que significa
mais para você, mas esse é precisamente o motivo pelo que tem que se contatar comigo, para que eu dê a
ordem. Eu tomo a decisão. De matar ou não matar sei que você...
-Não quero falar disso.
-É obvio que não.
Caminhamos em silêncio. Senti que as palavras tentavam desesperadamente sair de minha garganta.
Queria ter a oportunidade de falar do que fiz e do que senti. Enquanto caminhávamos percebi um aroma e
as palavras se dissiparam.
-Cheira isso?
Jeremy suspirou.
4
Batuta= bastão com o qual o maestro rege a orquestra, quem leva a batuta comanda.
-Elena. Queria que...
-Sinto muito. Não quis interromper você, mas... -Meu nariz se franziu, registrando o aroma na brisa. -Esse
aroma. Cheira-o?
Os orifícios nasais do Jeremy se abriram. Ele moveu a cabeça de um lado a outro, farejando. Logo piscou.
Essa pequena reação bastava. Tinha-o cheirado também. Sangue. Sangue humano.

INTRUSÃO
Segui o aroma do sangue até a linha do alambrado do leste. Ao nos aproximar se desvaneceu, superado
por algo pior. Carne em decomposição.
Chegamos a uma ponte de madeira sobre um arroio. Ao chegar ao outro lado me detive. Já não senti o
aroma. Voltei a cheirar o vento. Havia rastros da podridão no ar, mas não o aroma forte. Virei-me e olhei o
arroio. Havia algo pálido debaixo da ponte. Era um pé descalço, inchado, com dedos cinza apontando ao
céu. Baixei trotando e entrei na água. Jeremy se inclinou sobre a ponte, Viu o pé, logo se retirou e esperou
que eu investigasse.
Pegando o lado da ponte, ajoelhei-me na água fria do arroio, e molhei o jeans do tornozelo ao joelho. O
pé nu estava unido a uma panturrilha magra. O aroma era insuportável. Meu estômago se convulsionou.
Agora podia sentir o aroma de podre. Voltei a respirar pelo nariz. A panturrilha rematava em um joelho, logo
se via pele e músculos destroçados e um osso protuberante. O fêmur se parecia como um grande osso de
presunto mordido por um cão com mais desejo de destruir que de comer. A outra coxa era um coto infestado
de vermes, com o osso partido por mandíbulas poderosas. Ao olhar sob a ponte vi o resto da segunda perna,
ou melhor, pedaços dela, esparramados, como quando se sacudisse a lata de lixo e se esparramassem os
últimos restos. Por cima do quadril, o torso era uma massa irreconhecível de carne destroçada. Não vi se
tinha braços. A cabeça estava retorcida para trás, a garganta quase partida. Não quis olhar o rosto. É mais
fácil de suportar se não se olha a face, se pode pensar que o cadáver em decomposição é apenas parte do
cenário de um filme de terror de segunda. Mas o mais fácil nem sempre é o melhor. Não era uma peça de
cenário e ela não merecia que lhe considerasse assim. Supus que era uma mulher pelo tamanho e porque
era uma pessoa muito magra, mas ao virar a cabeça percebi o meu engano. Era um jovem, pouco mais que
um menino. Tinha os olhos muito abertos e cheios de terra, opacos. Fora isso, o rosto não tinha marcas, pele
suave, bem alimentado e muito, muito jovem.
Era outro assassinato de um licántropo. Embora não pudesse cheirar ao vira-lata pela decomposição e o
sangue, soube pela maneira brutal que foi destroçado o pescoço e as marcas dos dentes no torso. O vira-
lata trouxe o corpo até aqui. A Stonehaven. Não o matou aqui. Não havia sinais de sangue, mas havia terra
ali, sobre sua pele pálida. Tinha enterrado ele. O vira-lata o matou há alguns dias, enterrou-o, depois o tirou
da terra e o atirou aqui. Ontem à noite quando revistávamos seu departamento. Estava trazendo o corpo
para Stonehaven, onde pudéssemos encontrá-lo. Zombava de nós o insulto me fez tremer de ira.
-Teremos que nos desfazer do cadáver - disse Jeremy-. Por agora o deixe. Voltemos para a casa...
Um ruído nos arbustos o fez calar. Tirei a cabeça de debaixo da ponte. Vinha alguém, fazendo tanto
barulho como se fosse um rinoceronte. Eram humanos. Rapidamente me inclinei, lavei minhas mãos no
arroio e subi pela borda. Tinha chegado acima quando dois homens com coletes de caçador laranja saíram
do bosque.
-Isto é uma propriedade privada - disse Jeremy e sua voz cortou o silêncio da clareira.
Os dois homens se sobressaltaram e se viraram. Jeremy ficou na ponte, estendeu a mão e me aproximou
dele.
-Disse que é uma propriedade privada - repetiu.
Um homem, um menino de vinte anos, avançou.
-Ah sim. E então o que faz aqui velho?
O homem mais velho o puxou pelo cotovelo e o fez retroceder.
-Perdoe as maneiras de meu filho. Senhor. Suponho que você é... tentou recordar o nome, mas não pôde.
-SIM, eu sou o dono - disse Jeremy, a voz ainda suave.
Um homem e uma mulher vinham atrás dos dois homens, e quase os derrubaram. Detiveram-se e nos
olharam como se fôssemos; uma aparição. O homem mais velho lhes sussurrou algo e logo se virou para
Jeremy, enquanto esclarecia a garganta.
-Sim, senhor. Entendo que seja o dono desta terra, mas veja há um problema. Estou seguro de que ouviu
falar da garota morta faz poucos dias. Foram cães, senhor. Cães selvagens. Grandes. Dois meninos do
povoado os viram ontem à noite. Logo nos chamaram esta manhã, dizendo que viram algo no outro lado do
bosque por aqui, ao redor da meia-noite.
-Assim está investigando.
O homem se endireitou e esboçou um pequeno sorriso.
-Sim. Assim, se não se importar...
-Sim me importo.
O homem piscou.
-Sei, mas veja, teremos que ver o que estar acontecendo e...
-Passaram pela casa para pedir autorização?
-Não. Mas...
-Ligaram a casa para pedir autorização?
A voz do homem subiu uma oitava e o menino detrás dele se movia e grunhia. Jeremy continuou com o
mesmo tom, sem alterar-se.
-Então sugiro que voltem por onde vieram e me esperem na casa. Se querem procurar no bosque,
necessitam de autorização. Dadas às circunstâncias, é obvio que lhes darei permissão, mas não quero ter
que me preocupar com encontrar gente baleada em minha propriedade.
- Procuramos cães selvagens - disse a mulher-. Não gente.
-Com a excitação da caça se pode cometer qualquer engano. Dado que são minhas terras, não quero
correr esse perigo. Eu uso este bosque. Por isso não permito caçadores aqui. Agora, se forem a minha casa
terminarei minha caminhada e os verei ali. Posso lhes dar mapas da propriedade e alertar a meus convidados
para que não venham ao bosque enquanto estejam aqui. Parece-lhes razoável?
O casal se uniu ao moço nas queixa, mas o homem mais velho parecia estar pensando, analisando os
inconvenientes versus o correto. Justo quando pensei que o homem ia aceitar soou uma voz detrás de mim.
-Que caralho está acontecendo aqui?!
C1ay saiu do bosque. Eu estremeci e me pareceu ver que Jeremy fazia o mesmo, embora pudesse ter sido
um efeito da luz do sol através das árvores. Clay se deteve no limite da clareira e olhou ao grupo de pessoas,
a nós e de volta ao grupo.
-Que caralho fazem aqui? -disse, aproximando-se do grupo de pessoas.
-Procuram os cães selvagens - disse Jeremy brandamente.
Clay tinha os punhos apertados ao lado do corpo. Sua fúria se sentia de lado a lado da clareira. O outro
dia, quando escutamos aos caçadores no bosque. Clay estava furioso. Tinham invadido seu território. Mas
pôde controlar-se porque não tinha visto os intrusos, lhe tinha proibido se aproximar e cheirá-los e reagir
seguindo seu instinto. Isto era diferente. Os intrusos já não eram armas invisíveis que disparavam na
escuridão, a não ser seres humanos, parados diante dele, alvos de sua ira.
-Não viram os malditos avisos ao entrar? -grunhiu, virando-se para o jovem, o mais forte do grupo -. Ou
são muitas sílabas para que vocês as entendam, caralho?
-Clayton - alertou-o Jeremy.
Clay não o ouviu. Dava-me conta de que só podia sentir o sangue que ressoava em seus ouvidos e a
necessidade de defender seu território que uivava em seu cérebro. Aproximou-se mais do jovem. O moço
retrocedeu para uma árvore.
-Isto é propriedade privada. Entendem o que isso significa?
Jeremy desceu da ponte e eu o segui. Tínhamos chegado ao centro da clareira quando se ouviu outro som
no bosque. Um cão de caça uivando. Um cão seguindo um rastro. Olhei ao Jeremy e ao Clay. Ambos se
detiveram a escutar, tentando localizar de onde vinha o som. Voltei para a ponte. O uivo do cão se
aproximava e se repetia mais e mais rápido, cheio de alegria pelo triunfo. Tinha encontrado seu objetivo.
Tinha cheirado o corpo sob a ponte.
Dei outro passo para trás. Antes que pudesse pensar, o cão saiu do bosque. Dirigia-se direito para mim,
sem ver, seu cérebro dominado pelo aroma. Chegou a um metro de mim e se deteve. Cheirava algo mais.
Eu.
O cão me olhou. Era um cruzamento de pastor e galgo avermelhado. Por um segundo baixou o focinho e
piscou confuso. Então elevou a cabeça e grunhiu. Não sabia o que eu era, mas não gostava do que cheirava.
Um dos homens gritou. O cão o ignorou. Voltou a grunhir, me alertando. O homem mais velho deu um salto
para frente e correu para o cão. Vendo que se evaporava minha oportunidade, olhei ao cão nos olhos e lhe
mostrei meus dentes. Vem brigar. Ele veio.
O cão me atacou. Seus dentes pegaram meu antebraço. Caí no chão, elevando meus braços para me
proteger. O cão me mordeu com força. Quando seus dentes se afundaram em meu braço, dei um uivo de
dor e medo. Chutei fracamente à besta, apenas tocando seu estômago. Escutei um tumulto. Algo arrastou
o cão para trás, puxando-o de meu braço. Quando o cão ficou desfalecido. Soltou meu braço. Vi Clay parado
sobre mim, com as mãos ainda pegando a garganta do cão morto. Tirou o cadáver para um lado e ficou de
joelhos. Afundei a cabeça em meus braços e comecei a soluçar.
-Vamos, vamos - disse, me abraçando e acariciando meu cabelo -. Já passou.
Esforçava-se por não rir, mas se sacudia pelo esforço. Resisti ao impulso de beliscá-lo e continuei
choramingando. Enquanto seguíamos sentados no chão, o alvoroço se fazia maior Jeremy exigiu saber quem
era o dono do cão e se suas vacinas estavam em dia. As pessoas do grupo gritavam suas desculpas. Alguém
foi em busca do dono do cão. Clay e eu ficamos no chão, eu soluçava e ele me consolava. Desfrutava-o muito,
mas não me atrevi a parar por medo que as pessoas notassem que não havia lágrimas em meus olhos e que
estava estranhamente composta para ser uma jovem que foi atacada por uma besta selvagem.
Passados alguns minutos apareceu o dono do cão, e não estava nada feliz de encontrar seu sabujo favorito
morto. Mudou de tom quando soube o acontecido e começou a prometer que pagaria os gastos médicos,
temendo provavelmente um julgamento. Jeremy o repreendeu por deixar a seu cão solto em propriedade
privada. Quando Jeremy acabou, o homem lhe assegurou que o cão estava vacinado e depois levou o
cadáver com ajuda do jovem. Esta vez, quando Jeremy disse que se fossem, ninguém discutiu. Quando se
acabou o caos tirei Clay de cima de mim e fiquei de pé.
-Como está seu braço? -perguntou Jeremy, vindo para mi. Examinei a ferida. Havia quatro buracos de onde
ainda saia sangue, mas não me esmigalhou. Abri e fechei o punho. Doía muito mas tudo parecia funcionar
bem. Não me preocupei muito. Os licántropos cicatrizam rápido, o que provavelmente era o motivo pelo
que nos machucávamos ao brincar sem nos preocupar muito.
-A primeira ferida de guerra - disse.
-Oxalá seja a última - disse Jeremy cortante, pegando meu braço para examinar o dano. Podia ser pior,
suponho.
-Sim, fez bem Elena - disse Clay.
Olhei-o com ódio.
-Não teria que fazê-lo se não tivesse vindo gritando como um louco. Jeremy quase já os tinha tirado de
cima quando chegou.
Jeremy se moveu à esquerda, me impedindo de ver Clay, como se fôssemos peixes siameses de rixa que
não pudéssemos atacar se não nos víamos.
-Vem comigo a casa e limparemos seu braço. Clay, há um corpo embaixo da ponte. Coloque-o no abrigo e
nos desfaremos dele esta noite.
-Um corpo?
-Uma menina. Provavelmente fugindo.
--Quer dizer que esse vira-lata trouxe um corpo...?
-Tira o daqui antes que decidam voltar.
Jeremy me puxou pelo braço são e me afastou antes que Clay pudesse discutir.

A Caminho da casa conversamos. Ou devo dizer que Jeremy falou e eu escutei. Cada hora que passava, o
perigo parecia aumentar. Primeiro nos viram na cidade. Depois encontramos um corpo na propriedade.
Então tivemos um choque com as pessoas do lugar, chamando a atenção e provocando suspeitas. Tudo em
doze horas. O vira-lata tinha que morrer. Essa mesma noite.

Quando Clay voltou para a casa quis falar com Jeremy e comigo. Eu inventei uma desculpa e fui para meu
quarto. Sabia o que ele queria dizer. Queria pedir desculpas por complicar as coisas. Por enfrentar-se com
as pessoas e criar problemas. Que o absolvesse Jeremy. Era sua tarefa.

Depois de conversar com Clay. Jeremy levou os restantes ao escritório. Enquanto ele contava aos outros
o que aconteceu fui a meu quarto e liguei para Philip. Contou-me sobre uma campanha publicitária em que
trabalhava, algo respeito de condomínios em frente ao lago. Tenho que admitir que não prestei muita
atenção a suas palavras. Em troca, escutei sua voz, fechando os olhos e imaginando que estava junto a ele,
em um lugar onde os cadáveres no pátio traseiro seriam motivos de horror indescritível e não motivo para
concretizar planos de extermínio. Tentei pensar o que Philip teria feito, sentiria compaixão e pena por esse
menino morto, uma vida tão plena como a minha liquidada.
Enquanto Philip falava, eu pensava na noite com Clay. Não precisava me esforçar muito para saber
como Philip receberia isso. Que diabos estive pensando? Não pensei e esse foi o problema. Se antes não
sentia culpa, sentia-a agora, escutando Philip e imaginando como reagiria se soubesse onde passei a noite.
Eu era uma idiota. Tinha um homem maravilhoso que se preocupava comigo e eu andava de farra com um
monstro que me traiu da pior maneira possível.
Tudo o que podia fazer agora era reconhecer que me equivoquei e jurar que não se repetiria.

Logo depois de um almoço tardio, Jeremy levou Clay para caminhar para lhe dar instruções sobre o que
teríamos que fazer a noite. Já tinha me dito isso. Clay e eu iríamos atrás do vira-lata, juntos. Não tinha opção,
mas mesmo assim discuti. Eu encontraria o vira-lata e o conduziria a um lugar seguro onde Clay o liquidaria.
Era uma velha rotina e, embora eu não quisesse reconhecer, funcionava.
Enquanto outros lavavam os pratos, escapuli. Vaguei pela casa e terminei no escritório de Jeremy. O sol
do meio tarde dançava através das folhas da castanheira lá fora, lançando sombras que faziam piruetas no
piso.
Folheei uma pilha de telas que estava junto à parede, cenas de lobos brincando e uivando e dormindo
juntos, com seus membros e peles enredados. Junto a esses havia desenhos de lobos em becos, olhando os
transeuntes passarem, lobos que permitiam que as crianças os tocassem enquanto suas mães olhavam para
outro lado. Quando Jeremy aceitou vender um de seus quadros, o que o público quis foi o segundo estilo.
As cenas eram enigmáticas e surrealistas, pintadas em vermelhos, verdes e púrpuras tão escuros que
pareciam tons de negro. Havia toques de amarelo e laranja que eletrificavam a escuridão em lugares
incongruentes, como o reflexo da lua em um atoleiro. Tema perigoso. Mas Jeremy era cuidadoso. Vendia-os
sob pseudônimo e nunca aparecia em público. Ninguém fora da Matilha vinha a Stonehaven, salvo pessoas
que deviam fazer algum serviço, de modo que seus quadros estavam resguardados aqui no escritório.
Jeremy também pintava modelos humanos, embora só membros da Matilha. Um de seus favoritos estava
na parede da janela. Mostrava-me a beira de uma ravina, nua e de costas. Clay estava sentado no chão junto
a mim, seu braço em volta de minha perna. Ao pé da ravina, uma matilha de lobos brincava em uma clareira
do bosque. O título estava escrito abaixo, em um canto: Éden.
Na parede em frente havia dois retratos. No primeiro se via Clay no fim da adolescência, sentado ao fundo
em uma cadeira de palha, branca. Tinha um meio sorriso sonhador no rosto, com o olhar enfocado em algo
acima do pintor. Parecia o David de Miguel Angel, vivo, perfeição juvenil, todo inocência e sonho. Em um
bom dia o retrato parecia uma expressão dos desejos de Jeremy. Em um mau dia parecia um auto-engano.
O retrato junto a esse era igualmente inquietante. Era eu. Estava sentada de costas para o pintor, virada
de modo que me visse o rosto e a parte superior do corpo. Meu cabelo caía solto para cobrir meus seios.
Mas, igual ao quadro de Clay, a expressão era o centro. Meus olhos azuis escuros pareciam mais claros e
definidos que o normal, como tivessem adquirido um brilho animal. Sorria com os lábios separados
mostrando os dentes. O efeito era de sensualidade selvagem, com um toque perigoso que eu não vejo ao
me olhar no espelho.
-Ah - disse Nick da porta-. Assim é aqui que você se esconde. Ligação para você. É Logan.
Saí tão rápido que quase bato em uma pilha de pinturas. Nick me seguiu e mostrou o telefone do
escritório. Quando ia pelo corredor, Clay entrou pela porta de atrás. Não me viu. Meti-me no escritório e
fechei a porta enquanto escutava Clay perguntar a Nick onde eu estava. Nick deu uma resposta vaga, sem
atrever-se a lhe dizer a verdade e zangá-lo. Clay continuava zangado de que eu tivesse me contatado com
Logan durante minha ausência. Não é que suspeitasse que me deitasse com Logan nem nada tão banal.
Sabia a verdade: que Logan e eu éramos amigos, muito bons amigos mais isso bastava para lhe provocar
ciúmes, não de meu corpo, mas sim de meu tempo e minha atenção.
Peguei o telefone da escrivaninha e disse "olá".
-Ellie! -A voz de Logan ressoou através da estática. -Não posso acreditar que esteja ai. Como está?
Continua viva?
-Até agora sim, mas só passaram-se dois dias. Dê tempo à coisa. -A linha zumbiu. Interrompeu-se a
comunicação um segundo e logo voltou. – Los Angeles tem pior serviço que o Tibet ou você fala de um
celular. Onde está?
-Estou em um automóvel indo para o tribunal. Escuta, as coisas estão se arrumando rápido aqui. Temos
um acordo. Por isso ligue.
-Vem para cá?
Sua risada chegou distorcida pela linha.
-Está ansiosa para me ver? Sentiria-me adulado se não suspeitasse que só queira amparo contra Clayton.
Sim, volto não sei exatamente quando, mas deveria ser esta noite ou amanhã pela manhã, hora de Nova
Iorque. Temos que terminar o trabalho aqui e pego o primeiro avião que possa.
-Que bom. Tenho muita vontade de ver você.
-O mesmo digo, embora siga ofendido porque não me permitiu ir a Toronto no Natal. Queria comer suas
bolachas de gengibre queimadas. Outra grande tradição festiva que se perde.
Possivelmente o façamos este ano.
-Este ano, sem dúvida. -O telefone chiou e voltou a ficar em silêncio uns segundos e logo voltou. -... a?
-Continuo aqui.
-Bom. Melhor desligar antes de perder você. Não me espere acordada. Vejo você amanhã e levo você para
almoçar fora assim poderá relaxar por um momento. De acordo?
-Absolutamente de acordo. Vemo-nos.
Disse adeus e desligou. Quando desliguei, consegui escutar Nick que juntava jogadores para um jogo de
futebol. Deteve-se junto à porta do escritório e bateu.
-Eu jogo -disse-. Vemo-nos lá.
Voltei a olhar o telefone. Logan vinha. Isso bastava para me fazer esquecer de todos os problemas e
moléstias do dia. Sorri saí pela porta, com o espírito elevado e de repente desejosa de algumas sacudidas
antes da excitação da caçada noturna ao vira-lata.

PREDADOR
Logo depois do jantar comecei a me preparar para sair. A escolha da roupa era um problema. Se ia fisgar
ao vira-lata, tinha que pôr a mascará que melhor funcionava com os licántropos: Elena a predadora sexual.
O que não significa minissaia, meias de rede e blusa transparente, em primeiro lugar porque não tenho nada
disso, e não porque me ache ridícula com essas coisas. Os tops escassos, os saltos agulha e as saias diminutas
me fazem parecer uma menina de catorze anos brincado de mulher fatal. A natureza não me benzeu com
curvas abundantes e meu estilo de vida não me permitiu adicionar recheio. Sou muito alta, muito atlética
para que algum tipo me veja como carne de revista pornô.

Quando cheguei a Stonehaven minha roupa era estritamente esportiva e barata, mais quando cheguei aqui
não importava quanto dinheiro me desse Jeremy. Não sabia o que mais comprar. Quando Antônio comprou
entradas para um camarote em uma estréia na Brodway entrei em pânico. Não havia mulheres a quem pedir
conselho para comprar roupa, e não me atrevia a perguntar ao Jeremy por medo de terminar como uma
monstruosidade apta para um baile de escola secundária. Tentei ir a uma sucessão de lojas caras em Nova
Iorque, mas logo me perdi. No sentido literal e figurado. Meu salvador foi alguém um pouco inesperado:
Nicholas. Nick passava mais tempo com as mulheres, em especial com mulheres jovens, bonitas e ricas, que
qualquer homem fora de um filme de James Bond. Seu gosto era impecável. Interessavam-lhe os desenhos
clássicos, tecidos simples e linhas suaves que de algum modo convertiam minha altura e falta de curvas em
coisas positivas. Toda minha roupa comprei levando Nick comigo. Não só não se incomodava de passar uma
manhã percorrendo a Quinta Avenida comigo, mas também punha seu cartão de crédito no balcão antes
que eu pudesse tirar um de minha carteira. Outro motivo pelo qual era tão popular com as damas.
Escolhi um vestido para essa noite, um que Nick me comprou em meu aniversário justo antes que partisse
de Stonehaven. Era de seda azul anil, chegava ao joelho e não tinha nenhum adorno. Para que não fosse tão
coberta, decidi não colocar meias e usar sandálias.
Quando estava me maquiando, Clay entrou e estudou meu conjunto.
-Está bonita -disse. Depois olhou em redor de meu quarto de princesa e sorriu. -É obvio que não vai com
o ambiente. Necessita algo. Talvez um xale de renda feito com o tecido das cortinas. Ou um raminho com
flores de cerejeira.
Grunhi-lhe do espelho e continuei me maquiando estudando um pote de algo rosado e tentando lembrar
se era para os lábios ou para as bochechas. Detrás de mim, Clay ricocheteou sobre minha cama,
acomodando-se nos travesseiros e rindo. Vestia uma calça folgada, uma camiseta branca e um blusão de
linho solto. O conjunto ocultava seus músculos e lhe dava um aspecto de estudante limpinho, um jovem
nada ameaçador. Nick devia ter ajudado ele a escolher a roupa. Clay não sabe o que quer dizer não ameaçar.

Saímos às nove. Fomos com o Explorer. Clay odiava esse veículo pomposo, mas necessitaríamos de espaço
se por acaso conseguíssemos capturar e matar o vira-lata. Essa noite Antônio e Nicholas se desfariam do
corpo da jovem no lixeiro local. Poderíamos lhes ter economizado a viagem e levá-lo nós, mas o aroma de
carne decomposta não era um bom perfume se procurávamos nos mesclar com seres humanos.
Apesar de não gostar da idéia de passar a noite com Clay depois do acontecido, logo me tranqüilizei. Não
mencionou a noite anterior nem disse nada sobre a ligação de Logan. Quando chegamos à cidade, estávamos
distraídos em uma conversa perfeitamente normal em relação ao culto do jaguar no Sudamérica. Se não o
conhecesse, quase teria pensado que um esforço para ser amável. Mas o conhecia. E fossem quais fossem
suas motivações, segui-lhe o jogo. Tinha que fazer um trabalho e tínhamos que estar juntos toda a noite.
Primeiro o dever.
Nossa primeira parada foi no apartamento do vira-lata. Estacionei no McDonald's detrás da casa e logo
demos à volta. O apartamento estava às escuras. O vira-lata tinha saído. Nossa esperança era encontrá-lo
em algum dos bares.
Não estava em nenhum dos três bares. O quarto da lista não tinha nome, só um endereço que Clay
memorizou. Era o endereço de um depósito abandonado detrás da fábrica de papel. Pelos sons que saíam
dali, essa noite não estava “abandonado”.
-Que é isto? -perguntou Clay.
-É um lugar para festas clandestinas, um rave. Nem bar, nem festa privada.
-Ah. Pode entrar?
-Provavelmente.
-Não há problema então. Entra. Eu fico junto a uma janela.
Fui à parte traseira. A entrada era uma porta do porão ao pé de uma escada. Saía luz pelas bordas. Quando
bati um homem calvo abriu a porta para mim. Com uma inclinação de cabeça e um sorriso prometedor
consegui um punhado de tickets grátis para o bar. Esperava que fosse algo um pouco mais difícil.
Um corredor estreito conduzia a uma sala imensa, mais ou menos retangular. Apesar de ser segunda-feira,
o clube estava cheio. Caixas poeirentas e taboas velhas faziam às vezes de bar com o passar do muro da
esquerda. Diante do bar esparramaram mesas e cadeiras enferrujadas, o tipo de mobiliário que se
encontrava nas liquidações e que teria de ser deixadas de lado se não estivesse com a vacina antitetânica
em dia.
Preocupava-me que isso fosse como as rave de Toronto, onde a metade dos participantes passava mais
tempo preocupada com exames da universidade que com o pagamento de contas hipotecárias.
Decididamente em uma festa assim não passaria despercebida. Eu parecia jovem, mas já tinha passado
decididamente do tempo da ortodontia. Não era necessário que eu me preocupasse. Bear Valley não era
uma grande cidade. Havia alguns menores, mas os superavam em número os adultos jovens e não tão
jovens, a maioria dos quais se conformava com cerveja e maconha. Embora alguns usassem heroína de
maneira tão aberta como bebiam. Esse era o bairro de Bear Valley que os vereadores tentavam ignorar. Se
um político local aparecesse por aqui, teria se convencido de que todas as pessoas eram de fora do povoado,
provavelmente da cidade de Syracuse.
O lado direito era a pista de dança, uma extensão sem móveis no qual as pessoas dançavam ou sofriam
um ataque de epilepsia em massa. A música era ensurdecedora, o que não me incomodaria tanto se não
soasse como algo que os valentões da bola de boliche tivessem gravado na sala de atrás. O aroma de bebida
barata e perfume caro faziam piruetas em meu estômago. Contive a náusea e comecei a procurar.
O vira-lata estava ali.
Encontrei o rastro na segunda volta pela sala. Movendo-me em meio às pessoas, segui o aroma até que
conduziu a uma pessoa. Quando vi quem conduzia o rastro, duvidei de meu nariz e dei uma volta para voltar
a checá-lo. Sim, o tipo da mesa era definitivamente o vira-lata. E nunca vi um licántropo menos
impressionante. Até eu parecia mais temível que este tipo. Tinha cabelos castanhos, era magro, limpo, com
cara de boa pessoa, o perfeito estudante universitário. Parecia-me conhecido, mas não tinha tentado
memorizar as caras nas fotos dos arquivos. Não importava quem era. Só importava que estivesse ali. Senti
uma explosão de ira. Esse era o vira-lata que causava tantos problemas? Esse nenê de mamãe tinha toda a
Matilha enlouquecida de medo, olhando por sobre o ombro e correndo pela cidade para encontrá-lo. Tive
que me conter para não ir até ele, pegá-lo pelo pescoço e jogá-lo lá fora para que Clay acabasse com ele.
Resisti inclusive ao impulso de ir para junto dele. Que ele me encontrasse. Sentiria meu aroma logo e
saberia quem eu sou. Todos os vira-latas sabem. Lembrem que sou a única mulher loba. Por meu aroma o
vira-lata poderia saber que era um licántropo e mulher. O que significa que descobrir quem sou não é
exatamente uma façanha sherlockiana para um licántropo. Passei a cinco metros da mesa do vira-lata e não
sentiu meu aroma. Os aromas da sala eram muito fortes ou ele era muito parvo para usar o olfato.
Provavelmente se tratasse do último.
Sabendo que terminaria por me cheirar, pedi um rum com coca, encontrei uma mesa junto à pista de
dança e esperei. Olhando para a multidão, voltei a encontrar facilmente o vira-lata. Com seus cabelos curtos,
camiseta e cara barbeada, parecia um fã de Paul McCartney em um concerto de Iron Maiden. Estava sentado
sozinho, olhando a multidão com uma fome que tirava a inocência de seus olhos.
Tomei uns goles, logo olhei a mesa do vira-lata. Foi-se. Senti alarme. Estava para me pôr de pé quando me
deteve uma voz a minha costa.
-Elena.
Sem me virar, farejei. Era o vira-lata. Voltei a me sentar, tomei outro sorvo e continuei olhando a pista.
Deu a volta à mesa, olhou-me e sorriu. Logo pegou uma cadeira.
-Posso me sentar? -perguntou.
-Não.
Ia sentar se.
Olhe-o.
- Disse que não, não é verdade?
Vacilou, Sorrindo enquanto esperava algum sinal de que eu estava brincando. Enganchei a cadeira com o
pé e a virei para aproximá-la da mesa. Deixou de sorrir.
-Sou Scout - disse. Scott Brandon.
O nome fez cócegas no fundo de minha mente. Quando tentei encontrar mentalmente sua página no
arquivo da Matilha, não o obtive. Tinha passado muito tempo. Precisava me pôr em dia.
Deu um passo para mim. Olhei-o com ira e retrocedeu. Voltei a beber e o olhei sobre a borda da taça.
-Sabe o que acontece aos vira-latas que se metem no território da Matilha? -perguntei.
-Deveria?
Soprei e sacudi a cabeça. Jovem e desafiante. Má combinação. Mas era mais inoportuno que perigoso.
Obviamente o pai do vira-lata não contou nada a respeito de Clay. Um buraco em sua educação que logo se
solucionaria. Quase sorri.
-E o que traz você a Bear Valley? - disse, fingindo um aborrecido interesse pelo tema - A fábrica de papel
não contrata pessoas há anos, assim espero que não esteja procurando trabalho.
-Trabalho? -um sorriso malévolo nos olhos-. Não. Eu não gosto de trabalhar. Procuro diversão. Nosso tipo
de diversão.
Olhei-o por um longo minuto e logo me pus de pé e me afastei. Brandon me seguiu. Cheguei até o muro
do lado oposto antes que Brandon me puxasse pelo cotovelo. Seus dedos apertaram até o osso. Dei um
puxão e me virei para enfrentá-lo. Já não estava sorrindo. Seu sorriso foi substituído por uma expressão dura
mesclada com o mau humor petulante de um menino mau criado. Tudo bem. Agora tudo o que tinha que
fazer era escapar e deixar que me seguisse para fora. Estaria então suficientemente zangado para não ver
Clay até que fosse muito tarde.
-Estava falando com você. Elena.
-E?
Puxou-me pelos dois braços e me empurrou contra a parede. Elevei os braços para afastá-lo, mas me
contive. Não podia me dar ao luxo de fazer uma cena e uma mulher lutando com um homem sempre chama
atenção, em particular se pode lançá-lo do outro lado da sala.
Quando Brandon se inclinou para mim, um sorriso feio desfigurou seu rosto. Com um dedo acariciou
minha bochecha.
-É tão bonita, Elena. Sabe a que cheira? -Inalou e fechou os olhos. -Uma puta de classe. -apertou-se contra
mim para que sentisse sua ereção. -Poderíamos nos divertir muito.
-Não acredito que você goste de meu tipo de diversão.
Seu sorriso se tornou predador.
-Estou seguro de que sim. Estou seguro de que temos muito em comum, Elena. Soube que não se diverte
muito. Tem à Matilha sobre você, sufocando você com todas suas normas e leis. Uma mulher como você
merece algo melhor. Necessita alguém que ensine a você o que é matar, matar de verdade, não a um coelho
ou a um cervo, a não ser a um humano, um humano que pensa, respira, um humano consciente.
Deteve-se e logo continuou.
-Viu alguma vez os olhos de alguém que sabe que vai morrer, no momento que se dá conta de que você é
a morte?
- Inalou, logo exalou lentamente, com a ponta da língua entre os dentes. Os olhos cheios de desejo. -Isso é
poder, Elena. Poder verdadeiro. Posso mostrar isso a você esta noite.
Sem soltar meus braços, afastou-se para um lado para me mostrar a multidão.
-Escolhe a alguém, Elena. Qualquer um. Hoje morrerá. Esta noite é tua. Como isso faz você se sentir?
Não disse nada.
Brandon continuou.
-Escolhe alguém e imagina-o. Feche os olhos. Imagine conduzindo-o para fora, levando-o a um bosque
para abrir a garganta dele. -Percorreu-o um estremecimento. -Pode ver seus olhos? Pode cheirar seu
sangue? Pode sentir o sangue por toda parte, que empapa você, o poder da vida fluindo a seus pés? Não
será suficiente. Nunca é. Mas eu estarei ali. Eu farei que seja suficiente. Farei amor com você ali mesmo, no
atoleiro de seu sangue. Pode imaginar isso?
Sorri para ele e não disse nada Em vez disso, baixei um dedo por seu peito e seu estômago. Brinquei um
momento com um botão de sua braguilha, logo lentamente coloquei a mão sob sua camisa e acariciei seu
estômago, fazendo círculos em volta de seu umbigo. Ao me concentrar podia sentir que minha mão se
engrossava, as unhas se tornavam maiores. Clay me ensinou isto, um truque que nenhum outro licántropo
conhecia, trocar só parte do corpo. Quando minhas unhas se transformaram em garras, raspei-as sobre o
estômago de Brandon.
-Sente? -sussurrei em seu ouvido, me apertando contra ele.
-Se não se retirar agora mesmo, vou arrancar suas tripas e lhe farei come-las. Esse é meu tipo de diversão.
Brandon tentou se afastar. Contive-o com minha mão livre. Atirou-me contra a parede. Afundei minhas
garras no meio da transformação em seu estômago, sentindo como atravessava sua pele. Seus olhos se
abriram e esbravejou, mas a música cobriu seu grito. Olhei em volta, para assegurar-me de que ninguém
prestava atenção no casal de jovens abraçados no canto. Quando me virei para Brandon, percebi que tinha
deixado que o jogo se prolongasse demais. Sua face se retorcia seu pescoço ficou rígido e suas veias
saltaram. Seu rosto brilhou e se ondulou como um reflexo em uma correnteza em movimento. Sua testa
começou a engrossar e sua bochecha a ir para seu nariz. O clássico reflexo de medo de um licántropo
treinado: a Mudança.
Peguei Brandon por um braço e o arrastei até o corredor mais próximo. Enquanto procurava uma saída,
pude sentir que seu braço se transformava em minha mão, rasgou-se a manga de sua camisa, seu antebraço
pulsava e se contraía. Estava quase no final do corredor quando percebi que não era uma saída, apenas
levava para as duas portas do banheiro. A porta do banheiro dos cavalheiros foi aberta e um homem arrotou
com força. Outro riu. Olhei de novo para Brandon, com a esperança de que sua Mudança não tivesse ido
mais à frente do ponto que pudessem ver como uma deformidade. Mas não era assim. A menos que a pessoa
estivesse suficientemente bêbada para não prestar atenção a alguém cujo rosto parecia como se tivesse
vermes gigantes movendo-se sob a pele. Um homem saiu do banheiro. Fiz Brandon se virar e vi um depósito
a poucos metros. Empurrei-o para frente e corri em direção à porta, quebrei a fechadura, abri a porta e
empurrei Brandon dentro.
Apoiada contra a porta, minha mente procurava a toda velocidade uma solução. Podia tirá-lo? Com
certeza, punha uma coleira e uma corrente em um lobo de setenta e cinco quilogramas e o podia levar assim
até a porta. Ninguém se daria conta. Amaldiçoei-me. Como pude permitir que isto acontecesse? Tinha-o. No
momento em que se ofereceu para matar a um ser humano o tinha. Só tinha que dizer que sim. Escolher
alguém que saísse do bar e segui-lo à rua. Brandon teria me seguido e Clay estaria esperando lá fora. Final
do jogo. Mas não, não me bastava. Tinha que levar a coisa mais longe, para ver até onde podia chegar.
-Merda, merda, merda - murmurei.
Detrás da porta fechada havia um rugido de dor, que a música não conseguiu cobrir. Duas mulheres que
passavam se viraram para olham
-Meu namorado –disse, tentando sorrir-. Está doente. Droga ruim. Um novo vendedor.
Uma das mulheres olhou a porta fechada.
-Talvez deva levá-lo ao hospital - disse, mas logo continuou caminhando, depois de ter dado seu conselho
e cumprido seu dever.
-Clayton – sussurrei - Onde está?
Não estava surpresa que Clay não tivesse atirado abaixo a porta quando Brandon me abandonou. Clay
nunca subestimava minha capacidade de me defender. Só vinha em meu resgate quando estava em perigo.
Não estava em perigo agora, mas necessitava de sua ajuda. Desgraçadamente, onde estivesse oculto, não
podia me vê no corredor.
Dentro do depósito senti um ruído forte. Brandon tinha terminado sua Mudança. Agora tentava sair. Tinha
que impedi-lo. E para impedi-lo, quase com certeza teria que matá-lo. Podia fazê-lo sem chamar atenção?
Outro ruído do interior do quarto, seguido do som de madeira quebrando. Logo o silêncio.
Abri a porta. Havia roupa destroçada no chão. Na parede que dava ao sul havia uma segunda porta. No
meio do aglomerado barato havia um imenso buraco.

CAOS
Corri à sala principal. Não havia gritos. Não imediatamente. Os primeiros sons que escutei eram vozes,
mais zangadas que alarmadas. “Que caralho.." "Viu...?" "Cuidado". Quando dava a volta na esquina do
corredor vi uma sucessão de cadeiras e mesas caídas, em um semicírculo que ia do depósito até a pista de
dança. Havia gente em volta das mesas, recolhendo seus casacos e carteiras e copos quebrados. Um rapaz,
claramente menor de idade, estava sentado com as pernas cruzadas no chão e sustentava seu braço
quebrado. Uma mulher estava parada sobre uma cadeira, apontando com uma taça vazia para o caminho
que Brandon abriu na pista e reclamando que o "maldito filho da puta" pagasse seu gole desperdiçado, como
se de algum modo não notasse que o "maldito filho da puta" em questão tinha presas, e nenhum lugar à
vista onde guardar uma carteira.
Estava indo para a pista quando escutei o rugido de Brandon. Logo o primeiro grito. Logo o trovão de cem
pessoas correndo para a saída.
A correria complicou as coisas. Especialmente porque meu objetivo se encontrava em direção oposta ao
fluxo humano. No princípio fui amável. Sério. Disse “perdão", tentei dá passagem às pessoas, inclusive pedi
desculpas por pisar em alguns calos. O que posso dizer, sou canadense. Logo depois de algumas cotoveladas
no peito e algumas obscenidades gritadas em meu ouvido, dei-me por vencida e abri caminho à cotoveladas
também. Quando um grandão tentou de me empurrar para trás, peguei pelo pescoço e lhe dei uma saída
por uma via rápida. A partir dali a coisa ficou um pouco melhor.
Embora já não estivesse em perigo imediato de que me pisoteassem, avançava a centímetros. Não podia
ver nada. Meço um metro e oitenta mais mesmo uma super-estrela da NBA provavelmente não poderia ver
através dessa massa de humanos. Pelo pouco que podia ver, não havia maneira de me esquivar da multidão.
Se havia porta atrás ou saída de emergência, ninguém parecia dar-se conta. Todos foram para a entrada
principal, amontoando-se no estreito corredor.
Não só não podia ver. Tampouco podia ouvir outra coisa que não fosse o ruído da multidão, as maldições
e gritos e exclamações, em uma torre de Babel de ruído, nada claro exceto a linguagem universal do pânico.
As pessoas se empurravam e golpeavam, como se estar um passo mais perto da porta significasse a diferença
entre a vida e a morte. Outros pareciam não mover-se por vontade própria, mas sim os arrastava a multidão.
Olhei rostos e não vi nada. Estavam tão em branco e sem expressão como máscaras de gesso. Só os olhos
diziam a verdade, enlouquecidos, dominados pelo instinto de sobrevivência. A maioria provavelmente não
sabia do que fugia. Não importava. Podiam cheirar o medo surgindo da multidão tão bem como qualquer
licántropo e lhes metia no cérebro infectando-os com seu poder O cheiravam, sentiam-no e fugiam. Davam
a Brandon exatamente o que queria.
Estava na metade da pista de dança quando tropecei com uma mulher no chão. O sangue ainda saía de
sua garganta a fervuras salpicando tudo o que passava perto. As pessoas a pisoteavam e escorregavam em
seu Sangue. Ninguém se incomodou de olhar para baixo. Eu tampouco devia olhar. Mas o fiz. Seus Olhos se
encontraram com os meus por um instante. De seus lábios saía uma baba sanguinolenta. Sua mão se
convulsionou no chão como se tentasse pega-lo. Logo se deteve no ar e caiu no atoleiro de sangue. Seus
olhos morreram. O sangue deixou de sair a jorros. Agora saía um pequeno fio. Um homem tropeçou com
ela olhou para baixo. Amaldiçoou e a chutou para um lado. Deixei de olhá-la e segui adiante.
Quando passava sobre o corpo, escutei um estalo de vidros. Elevando o olhar divisei os pés de Clay
atravessando uma janela perto do bar. Desprendeu-se e caiu no piso Foi uma queda de cerca de sete metros,
algo que Jeremy não nos tinha animado a fazer diante de uma multidão, mas quando ninguém prestava
atenção a um cadáver sob seus pés, certamente ninguém perceberia que um homem se lançava através de
uma janela. Clay subiu no bar e estudou a multidão. Ao me ver, Fez sinal para que fosse para junto dele.
Indiquei ao interior da multidão, onde supus que Brandon estava. Clay sacudiu a cabeça e me chamou
novamente. Escolhi um ângulo que me permitisse Seguir o movimento das pessoas e me aproximei dele.
-Eu adorei a entrada - gritei por sobre o clamor, subindo sobre o balcão.
-Viu a porta da frente, carinho? Teria necessitado de uma tocha de acetileno para atravessar a multidão.
A única outra entrada está selada com tijolos.
Olhei por sobre a multidão.
-Assim Brandon não está nesse canto?
-Quem?
-Ele o vira-lata. Está ali?
-Sem dúvida. Mas gastas energias inutilmente tentando apanhá-lo.
Finalmente divisei Brandon. Tal como suspeitei, transformou-se completamente em lobo. Parecia estar
ricocheteando entre as paredes do canto, saltando e atirando dentadas no ar. Estava para dizer que parecia
que o vira-lata tinha ficado louco. Logo a multidão se abriu o suficiente para me deixar ver que estava
atacando algo mais que o ar. Havia um homem atirado ao chão, barriga para acima, com os joelhos sobre o
peito, a cabeça encurvada, as mãos protegendo sua nuca. Suas roupas pareciam farrapos e cobertas de
sangue. Estava imóvel, obviamente morto, mas Brandon não o deixava. Lançou-se contra o homem, pegou
seu pé e o fez girar, logo se moveu para trás, com a cauda elevada. Agachou-se e fez que atacava, lançando-
se de um lado. O homem agora jazia retorcido e de lado, e consegui ver mais de suas feridas do que teria
desejado. Sua camisa estava rasgada. Seu torso coberto de sangue, seu estômago vermelho. A ponta do
cinto caía ao chão. Então percebi que não era um cinto, a não ser o intestino. Quando me virei, o corpo se
moveu. O homem se balançou, como se tentasse ficar de cara para chão para proteger-se.
-Por Deus -sussurrei-. Não está morto.
Brandon voltou a saltar sobre o homem, afundando os dentes na sua cabeça. Elevou-o, atirou-o para um
lado e voltou a afastar-se se balançando.
-Nem sequer tenta matá-lo - disse.
-Por que o faria? -disse Clay, retraindo o lábio-. Está se divertindo.
Expressava o desprezo com cada palavra que dizia. Isto não era matar para comer ou para sobreviver. Clay
não podia entender. Isto para ele era um rasgo humano incompreensível: matar por prazer.
-Enquanto está ocupado, vou inspecionar - continuou Clay-. Dê-me cinco minutos. Quando as pessoas
começarem a diminuir, pode agir. Toca-o para o corredor do lado. Estarei esperando.
Clay saltou do bar e desapareceu no meio da multidão. Olhei ao Brandon torturando a sua presa. E
novamente não quis vê; não queria pensar no que acontecia ali, que um homem estava sofrendo uma morte
horrível, mas ainda estava vivo e eu não fazia nada a respeito. Recordei-me que quase com certeza era
muito tarde para salvá-lo e, embora sobrevivesse, teria que ir ao hospital, coisa que não podíamos permitir
porque, dado que foi mordido, o homem já era licántropo. Embora racionalmente soubesse que não podia
me arriscar a ir em sua ajuda, senti-me obrigada a fazê-lo, embora que fosse para acabar com seu
sofrimento. Às vezes penso que seria melhor que fosse como Clay, capaz de entender que o que Brandon
fazia estava errado, mas também que não podia evitá-lo e lhe dar as costas sem sentir remorsos. Mas não
quero ser assim, tão dura, tão insensível. Clay tinha uma desculpa para ser assim. Eu não.
Deixei de olhar Brandon e sua presa. Doente filho da puta, pensei. Nenhum animal faria isso. Enquanto
pensava, algo se moveu em meu cérebro, uma peça que caiu com tal ressonância que me sobressaltei. A
sala de repente estava em silêncio, o rugido de meus ouvidos sufocava o da multidão, o que me deu um
momento de claridade perfeita no meio do caos.
Sabia onde tinha visto o rosto de Brandon e escutado seu nome, e não foi no arquivo de licántropos da
Matilha. A televisão. Inside Scoop. A história do assassino na Carolina do Norte. Voltei a ver em minha
imaginação a entrevista da polícia, a imagem granulosa que ganhava vida com um sorriso malévolo. Queria
que alguém morresse. Scott Brandon. Sacudi a cabeça. Não, não podia ser. Não fazia sentido. Um licántropo
não podia sobreviver na prisão sem que o descobrissem. Então recordei novamente o aroma de Brandon,
um matiz que registrei em seu apartamento aquela noite. "É novo", havia dito ao Clay. Podia cheirá-lo e
também soube que era um licántropo jovem e hereditário. Mas não era. Foi mordido.
Novamente meu cérebro rechaçou a idéia. Brandon só tinha escapado fazia um par de meses. Um
licántropo levava mais tempo para se recuperar do choque de ser transformado. Ou não? Era impossível que
se recuperou tão rápido? Tinha que admitir que não. Minha própria recuperação foi dificultada por minha
negação a aceitar o que me aconteceu. E o que acontecia quando não era assim? O que acontecia quando
alguém queria a maldição, estava preparado, desejava-a? Aí podia estar à diferença.
Mas havia algo mais que não fazia sentido. Que fazia Brandon ali? Se era um licántropo hereditário, isso
explicaria por que sabia de Bear Valley, a Matilha e Stonehaven. Como podia saber a respeito disso um
licántropo recém convertido? Mas Brandon sabia. Sabia muito. Chamou-me por meu nome. mais de uma
vez, disse que ouviu coisas sobre mim. De quem? De outro licántropo, é obvio. Um licántropo experiente.
Mas os forasteiros não faziam isso. Não permitiam que aos licántropos mordidos vivessem e muito menos
falavam com eles ou os ajudavam. Era impossível. Não, corrigi-me. Impossível não. Só tão incrivelmente
improvável que meu cérebro se negava a pensar nas implicâncias.
Não podia pensar nisso agora. Tínhamos um problema mais sério entre as mãos que descobrir os por que
e os como da existência de Brandon. Bastava sua existência. Terminar com ela não seria tão simples. Não
era um menino descuidado, e sim um ser um pouco mais perigoso: um assassino. Virei-me e procurei Clay,
com a intenção de alertá-lo. Então percebi que não serviria de nada. Brandon era um assassino do mundo
humano. Se dissesse a Clay que Brandon era um contador diplomado teria o mesmo efeito. Não entenderia.
Saltei do extremo do balcão e avancei em meio dos atrasados da multidão. No fundo, Brandon continuava
brincado com sua comida que de vez em quando dava um coice. Quando cheguei atrás a multidão já estava
fora da sala e apertada no corredor. Continuei avançando. Brandon voltou a brincar com sua presa e saltou.
Tinha as presas afundadas no antebraço do homem, quando pressentiu minha presença. Grunhiu com
incerteza, seu cérebro afogado em sangue demorou a me reconhecer.
Detive-me. Olhamo-nos. Pensei em quão perigoso era enfrentá-lo assim. Pensei nos olhos de Brandon
que brilhavam com desejo quase carnal ao falar de matar. Pensei no que poderia me fazer antes que Caly
chegasse em minha ajuda. Funcionou. Comecei a cheirar a medo. O que chamou a atenção de Brandon.
Deixou sua presa e se lançou contra mim. Esperei até que estivesse no ar, logo girei e corri. É obvio que me
seguiu. A presa que escapa é muito mais divertida que a variedade quase em coma.
Dei a volta para o muro de atrás para evitar que Brandon fosse para a saída. Corri por detrás do balcão e
me dirigi para as escadas da plataforma. Quando estava para pisar no primeiro degrau, virei e corri para o
corredor que levava aos banheiros. Clay estava ali. Passei-o e me detive escorregando. Detrás de mim,
Brandon fez o mesmo, com suas unhas chiando no linóleo 5. Ao virar, vi Brandon parado em frente a Clay.
Movia a cabeça de lado a lado, com as abas do nariz abertas, novamente duvidando. Seu nariz dizia que Clay
era um licántropo e uma parte de seu cérebro que mal funcionava indicava que era motivo de preocupação.
Grunhiu tentativamente. O pé de Clay bateu sob seu focinho e o lançou de costas. Antes que Clay pudesse
aproximar-se novamente, Brandon ficou de pé, virou-se e fugiu. Clay correu detrás dele e desapareceram
rumo ao salão principal. Quando cheguei ali, Clay já perseguia Brandon na plataforma.
Eu estava quase no degrau mais alto que dava para plataforma quando Brandon saltou sobre a borda,
seguido de um ressoante: “Caralho!" Clay saltou a borda e logo ao chão antes que pudesse me virar. Desci
correndo a escada e corri para a saída para impedir que Brandon saísse por ali. O corredor continuava lotado.
Ninguém saía nem entrava.
Brandon não foi para a saída. Fez uma curva para o canto posterior do quarto. Clay o seguia de perto.
Contive o impulso de segui-lo e fiquei em meu posto junto à saída. Brandon correu para o canto,
possivelmente porque era vagamente familiar para ele. Quando chegou, quase se chocou contra a parede.
Girou e fez uma volta fechada, tropeçando com o corpo no chão. Esta vez, o homem não se moveu. Seus
olhos mortos olhavam o teto. Recuperado do tropeção, Brandon voltou para o canto esperando que ali se
materializasse uma porta. Finalmente percebeu que estava encurralado e se virou para enfrentar Clay.
Por vários segundos Clay e Brandon se olharam. Senti pela primeira vez ansiedade. Nem sequer Clay estava
a salvo frente a um licántropo em forma de lobo. Senti a tensão que zumbia em meu corpo. O instinto me
dizia que protegesse Clay enquanto que o sentido comum me indicava que cuidasse da saída.
Brandon quebrou o impasse com um grunhido. Agachou-se, elevando os quadris. Clay não se moveu.
Brandon voltou a grunhir como se o alertasse. Logo saltou. Clay se deixou cair e rodou para um lado. Brandon
caiu de repente e patinou sobre o linóleo. Antes que pudesse recuperar-se Clay se jogou em cima. Pegou
5
Linóleo = tela recoberta de substância impermeável e que é usada para tapetes
Brandon pela pele solta de detrás da cabeça e pôs sua perna sobre as costas de Brandon. Logo esmagou a
cabeça de Brandon contra o chão, imobilizando-o.
Brandon se debateu enfurecido. Suas patas rasparam o chão sem poder firmar-se. Grunhiu e bufou,
atirando dentadas, tentando agarrar as mãos de Clay. Clay pôs seu joelho esquerdo nas costas de Brandon
e o puxou pela garganta. Quando Clay começou a apertar, Brandon deu um tremendo pinote. O pé direito
de Clay se separou do chão, o suficiente para fazê-lo mudar de posição. Quando voltou a baixá-lo, vi que seu
pé cairia em um atoleiro de sangue do homem morto.
-Clay! -gritei.
Muito tarde. Seu pé caiu no sangue e seu tornozelo torceu, deslizando-se de lado. Brandon se lançou para
frente justo no instante que tirou Clay de cima dele. Nesse instante Brandon viu a saída e se lançou para lá.
Não tentei impedir sua passagem. Poderia jogá-lo para um lado sem esforço. Em vez disso, quando passava,
lancei-me para ele e peguei sua pele com as duas mãos. Caímos juntos. Ao rodar, atirou uma dentada em
meu braço. Tentei evitá-lo, mas não com rapidez suficiente. Um de seus caninos enganchou na pele de meu
antebraço, abrindo-a até o cotovelo e reabrindo a ferida da manhã. Fiquei sem ar ao sentir a dor no braço.
Não o soltei, mas afrouxei minha mão esquerda. Para Brandon isso bastou para liberar-se. Clay chegou um
segundo tarde. Brandon já corria pelo corredor. O outro extremo continuava entupido de gente, mas de
algum modo conseguiram abrir passagem ao verem Brandon.
Clay ia perseguir Brandon, mas eu estendi a mão e o puxei pela camisa.
--Não. Disse - Não devemos sair juntos.
-Certo... Você o segue. Eu sairei de novo pela janela.
Não sabia como poderia obtê-lo, a menos que tivesse desenvolvido a capacidade de escalar muros, mas
não havia tempo de debater a questão. Assenti e corri pelo corredor. Ao sair pela porta me encontrei em
meio a um caos muito pior que o que houve dentro do local. A multidão se deteve à saída. Algumas pessoas
pareciam revoltadas. O restante não se movia porque não queria perder nada. Além disso, tinham chegado
toda a força policial de Bear Valley e um batalhão de agentes do estado, a maioria dos policiais continuava
meio dormindo, dando voltas em confusão. Uivavam as sirenes. Os policiais vociferavam instruções.
Ninguém os escutava. Não havia sinal de Brandon.
Fiquei ali um minuto, me orientando. Finalmente pude filtrar os necessários me centrar nas pistas. A minha
esquerda havia uma barricada derrubada. Um dos da festa apontavam o caminho. Três policiais corriam até
ele. Segui-os. Quando consegui passar a barricada caída descobri que outro grupo de policiais já o perseguia.
Cobriam o caminho, gritando instruções e apontando para um beco. Quando dois agentes começaram a
correr para lá, alguém os deteve, dizendo que não havia por que correr, era um beco sem saída. Brandon
estava preso.
Eu estudava a área, vendo se poderia chegar a Brandon antes que os policiais e preferentemente sem
receber nenhuma bala perdida. Quando desci o cordão de isolamento, alguém me puxou pelo braço. Virei-
me para ver um agente do estado, quarentão.
-Volte para trás da linha, senhorita. Não há nada para ver.
-Graças a Deus - suspirei-. Estive tentando encontrar alguém. Ninguém se dispõe a dá atenção... todos...
–Parei de respirar -Dentro. Há... há um cão, um cão imenso. Gente machucada. Meu namorado...
O agente amaldiçoou e deixou cair meu braço. Voltou-se para o grupo mais próximo de policiais que se
dirigiam para o caminho.
-Há gente lá dentro! – gritou - Alguém averiguou se há feridos?
Um policial se virou e disse algo que não escutei. Deslizei-me para trás enquanto os dois agentes gritavam
e gesticulavam. Aparentemente. Nenhum dos dois sabia quem estava encarregado ou se tinham pedido
ambulâncias ou se alguém tinha entrado. Outros mais somaram suas opiniões. Vários correram para o local.
Eu cruzei a rua. Ninguém se deu conta.
Ainda havia agentes suficientes guardando à entrada do beco para que eu não pudesse entrar ali e
enfrentar ao Brandon. Procurei uma saída. Avançava por um beco próximo, quando escutei soar uma lata
de lixo. À distância vi movimento iluminado pela Lua. Uma figura de quatro patas apareceu sobre uma
parede de tijolo. Agachou-se e saltou. Obviamente o beco não estava tão bloqueado como os policiais
esperavam embora tivesse que reconhecer que por certo não esperavam que um animal saltasse sobre um
muro de três metros de altura.
Ia correr para o muro quando notei que Brandon fugia em direção oposta para mim. Esperei. Quando
Brandon se aproximou o suficiente para ver-me, corri e saltei por sobre suas costas, caindo na terra detrás
dele com uma cambalhota e aterrissando em pose de corredor. Foi um movimento absolutamente perfeito
que não poderia jamais repetir. É obvio que não havia ninguém ali para apreciá-lo. Calculei corretamente. O
desejo de Brandon de me perseguir superou seu instinto de sobrevivência. Quando virei em uma esquina
me seguiu. Corri pelos becos, afastando-o da rua bloqueada pela polícia. Uma ou duas vezes senti o aroma
de Clay. Estava perto, à espera de poder emboscá-lo, mas o lugar não era apropriado. Finalmente olhei ao
longo de um beco que saía a um caminho. Do outro lado, a seção industrial se abria a um parque com
árvores. Perfeito. Um lugar para Trocar e emboscar ao Brandon sem perigo e logo tirar seu corpo.
Corri para o caminho. Desgraçadamente, esqueci a norma mais elementar do jardim da infância.
Atravessei a rua sem olhar. Cruzado diretamente diante de um caminhão, tão perto que o vento me fez cair.
Girei para um lado do caminho e me pus de pé de um salto. Ao girar, escutei um disparo. Brandon cruzava
o caminho quando o tiro o alcançou. Sua cabeça estalou em uma explosão de sangue e cérebro. A força do
tiro o lançou para um lado, diante de um automóvel. O automóvel bateu nele, produzindo um ruído
horrendo, depois perdeu o controle, com o corpo do Brandon encravado nas ferragens. Não precisava mais
olhar. Brandon tinha morrido assim que recebeu o tiro. As balas de prata eram um bom toque gótico, mas
não eram necessárias para matar a um licántropo. Algo que mate a um ser humano ou a um lobo pode nos
liquidar também.
Uma multidão juntava-se em volta do corpo maltratado de Brandon. Tudo o que podiam ver era um cão
marrom muito grande e muito morto. Não se transformaria em humano. Essa era outra mentira em relação
aos licántropos. De acordo com o mito, os licántropos viram humanos quando são feridos. Há milhões de
lendas de granjeiros ou caçadores que matam um lobo, mas quando rastreiam à besta ferida encontram - Ai
Deus! - com rastros humanos ensangüentados. Lindo truque, mas não funciona assim. O que é bastante
bom, porque do contrário estaríamos trocando de forma cada vez que um irmão da Matilha nos mordisca
um pouco forte. Na realidade seria muito inconveniente. A verdade é que caso morra sendo um lobo melhor
se esquece dos planos para um funeral de corpo presente. Os restos de Brandon seriam levados a Sociedade
Protetora de Animais de Bear Valley e se desfariam dele sem cerimônias nem autópsia. Jamais encontrariam
a Scott Brandon, o assassino fugitivo da Carolina do Norte.
– Caralho, espero que lhe dêem um enterro apropriado - disse uma voz detrás de mim-. O pobre bastardo
desorientado com certeza merece um bom enterro, não concorda?
Virei-me para Clay e sacudi a cabeça.
–Fiz um desastre.
–Não. Está morto. Esse era o objetivo. Fez a coisa certa, carinho.
Pôs seu braço em volta de minha cintura e se inclinou para me beijar. Fugi disso.
–Temos que ir. – Disse – Jeremy não gostaria que ficássemos.
Clay tentou me pegar novamente, tentando dizer algo. Girei rapidamente e caminhei para a rua – Ele veio
em seguida trotando detrás de mim. A caminhada até o estacionamento foi silenciosa.

Demos à volta na esquina do armazém, onde deixamos o Explorem. O estacionamento estava escuro, as
luzes foram apagadas ao fechar os comércios: Bear Valley era o tipo de lugar aonde a luz ainda se usava para
os clientes e não pensando na segurança. O Explorer estava estacionado no fundo do lote, junto a uma
cancela de correntes. Havia mais alguns automóveis quando chegamos mais agora não, dado que os bares
legais tinham fechado fazia algum tempo. Tirei as chaves da carteira. Soaram alto no silêncio.
–Filho da puta – murmurou Clay.
Virava-me, pensando que o som das chaves o tinha sobressaltado, mas olhava para o Explorer. Andou
mais devagar e sacudiu a cabeça.
–Parece que alguém conseguiu pegar o vôo da noite – disse. Segui seu olhar. Havia um jovem de cabelo
claro e barbado sentado no asfalto, apoiado na roda dianteira do Explorer com os tornozelos cruzados. Uma
bolsa a seu lado. Logan. Sorri e comecei a correr. Detrás de mim, Clay gritou. Ignorei-o. Esperei um ano paro
ver o Logan. Clay podia enfiar os ciúmes no traseiro. Melhor ainda, podia ir caminhando para Stonehaven,
amaldiçoando. Afinal de contas, eu tinha as chaves.
–Ei! –exclamei–. Chegou atrasado uma hora. Perdeu todo entretenimento.
Agora ouvia Clay correndo, gritando meu nome. Detive-me diante de Logan e sorri para ele.
–Vai ficar ai sentado o...
Detive-me. Os olhos de Logan olhavam para o outro lado do estacionamento. Em branco. Sem ver. Mortos.
–Não–sussurrei–. Não.
Mal escutei Clay que me alcançou correndo e senti seus braços me segurando quando cai para trás. Um
uivo ensurdecedor partiu o silêncio da noite. Alguém uivava. Era eu.
DOR
Não recordo como voltei para Stonehaven, suponho que Clay me enfiou no Explorer. Depois colocou o
corpo de Logan na mala e nos levou para casa. Lembro vagamente de ter entrado na casa pela porta da
garagem e ser recebidas pelo Jeremy no corredor perguntando o que tinha acontecido com o vira-lata. Deve
ter visto algo em meu rosto porque não terminou a pergunta. Passei junto a ele. Detrás de mim escutei Clay
dizer algo, escutei a maldição de Jeremy, ouvi correrem os outros que tinham escutado e começaram a
aparecer dos lugares de onde estavam nos esperando. Eu segui para a escada. Ninguém tentou me deter.
Ou possivelmente sim, não me lembro. Fui para meu quarto, fechei a porta, abri o cortinado de minha cama
e me meti em seu santuário escuro e silencioso.
Não sei quanto tempo se passou. Talvez horas. Provavelmente fossem minutos, o tempo que necessitou
Clay para explicar o assunto aos outros logo escutei os passos dele na escada. Deteve-se em frente a minha
porta e bateu. Como não respondi, bateu mais forte.
– Elena? –chamou-me.
–Vá embora.
A porta se queixou como se ele se apoiasse nela.
–Quero vê você.
–Não.
– Deixe-me entrar em falar contigo. Sei o quanto está doendo...
Levantei-me e gritei:
–Não tem idéia do que me dói. Por que teria que tê-la? Provavelmente está contente de que não viva
mais. Um obstáculo a menos para que você preste atenção. É tudo o que era para você, não é verdade? Um
obstáculo para que me tivesse.
Respirou fundo.
–Não é verdade. Sabe que não é assim. Não importa o que sentisse quando Logan estava perto de você,
não deixei de gostar dele como a um irmão. -A porta voltou a queixar-se. – Deixe-me entrar, carinho. Quero
ficar contigo.
–Não.
–Elena, por favor. Quero...
–Não!
Ficou em silêncio um momento. Escutei sua respiração, ouvi que deixava de respirar um instante para
engolir saliva. Depois fez um som baixo de angústia que se transformou em um rugido de dor. Seus sapatos
chiaram quando girou de repente, depois bateu o punho contra a parede do outro lado do corredor. Uma
chuva de gesso chegou ao chão. A porta de seu quarto se fechou com uma batida. Logo outra coisa se chocou
contra a parede, algo maior esta vez: um candelabro ou um abajur. Em minha cabeça, segui o alvoroço,
vendo pedaços do mobiliário que ele fazia migalhas e desejando poder fazer o mesmo. Queria lançar coisas,
as destruir, sentir a dor de minhas mãos golpeando a parede, golpear tudo o que houvesse ao redor até que
minha pena e minha fúria fossem tragadas pelo cansaço. Mas não podia fazê-lo. Deteve-me uma parte
racional de meu cérebro, que me recordou que isso teria conseqüências. Quando recuperasse o controle ia
me envergonhar de ter perdido o controle produzindo uma destruição pela qual outro pagaria. Olhei as
pastorazinhas de Dresden sobre minha cômoda e pensei em lançá-las contra o piso, ver seus rostos insípidos
em meio a vidros quebrados. Seria uma sensação maravilhosa, mas não ia fazer isso. Recordei o quanto
custou, o tempo que Jeremy dedicou para escolhê-las para mim, o quanto o machucaria se destruísse seu
presente.
Por mais que quisesse explodir, não podia fazê-lo. Não podia me dar esse luxo. E odiei Clay porque ele sim
podia fazê-lo.
Incapaz de descarregar minha dor; passei as horas que se seguiram encolhida sobre a cama, sem me mover
até que cãibras nos músculos das pernas me rogaram para que mudasse de posição. Mantive o olhar fixo no
cortinado da cama. A mente o mais em branco que podia, com medo de pensar ou de sentir alguma coisa.
Horas mais tarde continuava assim quando Jeremy bateu em minha porta. Não respondi. A porta se abriu,
depois se fechou. As cortinas sussurraram e o colchão se afundou quando Jeremy se sentou junto a mim.
Suas mãos descansaram sobre meu ombro. Fechei os olhos e senti o calor de seus dedos que atravessava
minha camisa. Durante vários minutos não disse nada. Logo tirou uma mecha de cabelo de meu rosto e o
colocou detrás de minha orelha.
Não merecia sua bondade. Eu sabia. Suponho que era por isso que sempre questionava seus motivos. No
início, cada vez que ele fazia algo amável, tentava descobrir o mal oculto atrás desse gesto, uma motivação
nefasta. Afinal de contas, era um monstro. Tinha que ser malvado. Quando percebi que não havia nada de
ruim em Jeremy, recorri à outra desculpa; que era um bom comigo porque não podia me tirar dali, porque
era um tipo decente e inclusive porque sentia certa responsabilidade pelo que seu filho adotivo me fez. Se
me levasse ao teatro na Broadway e para jantar em lugares elegantes, era porque me queria tranqüila e
contente, não porque desfrutasse de minha companhia. Queria que desfrutasse de minha companhia, mas
não podia acreditar nisso porque não via muito em mim que o merecesse. E não é que acreditasse que não
era merecedora de amor e cuidados, mas não de alguém do calibre moral de Jeremy. Eu não consegui ganhar
o afeto de uma dúzia de pais adotivos, assim não acreditava que agora o tivesse ganhado, de alguém que
valia mais que todos esses homens juntos. Mesmo assim houve momentos em que me permiti acreditar que
Jeremy gostava mesmo de mim, quando estava muito doída para me negar essa fantasia. E esta era uma
dessas vezes. Fechei os olhos, senti sua presença e me permiti acreditar.
Ficamos em silêncio um momento e logo disse com suavidade:
–Enterramo-lo nos fundos. Há algo que queira fazer?
Sabia que estava me perguntando se havia algum rito humano de enterro que pudesse me fazer sentir
melhor. Desejei que fosse assim. Desejei poder encontrar dentro de mim algum ritual de morte
tranqüilizador, mas minhas experiências religiosas juvenis não me deram confiança no poder de um ser todo-
poderoso. Minha lembrança mais vívida da igreja era estar sentada em um banco no meio de um dos casais
que me adotou, minha mãe adotiva inclinada para diante, tentando ouvir o pastor e tentando ignorar o fato
de que a mão de seu marido estava explorando os mistérios espirituais ocultos sob minha saia. Só aprendi a
rezar para que me liberasse dessa tortura. Deus deve ter estado ocupado com algo mais importante.
Ignorou-me e eu aprendi a responder do mesmo modo.
Mesmo assim, e apesar de minhas crenças, considerei que tinha que fazer algo para marcar a morte de
Logan, pelo menos ir ao lugar onde estava enterrado e me despedi dele. Quando disse isso a Jeremy;
ofereceu-se a me acompanhar, coisa que aceitei com um movimento de cabeça. Ajudou-me a me levantar,
segurou-me pelo cotovelo e me conduziu brandamente escada abaixo. Se tivesse sido outro ou em outro
momento, teria rechaçado a ajuda. Mas nesse momento agradeci. O chão parecia mover-se e afundar-se
sob meus pés. Desci com cautela os degraus e saímos ao corredor de atrás. A porta do escritório se abriu e
Antonio mostrou a cabeça, com uma taça de brandy meio cheia na mão. Olhou para Jeremy, transmitindo
uma pergunta silenciosa. Quando Jeremy sacudiu a cabeça Antonio assentiu, logo retrocedeu ao escritório.
Quando saímos pela porta, ouvi que se abria novamente. Sem necessidade de olhar sabia quem estava
saindo. Jeremy olhou por sobre seu ombro e elevou uma mão. Não ouvi que se voltasse a fechar a porta,
nem ouvi que os passos de Clay nos seguissem. Imaginei-o no corredor olhando como nos afastávamos, e
caminhei um pouco mais depressa.
Enterraram Logan no meio de um arvoredo, no bosque detrás da casa. Era um lugar bonito, onde o sol do
meio-dia dançava nas folhas e caía sobre as flores silvestres. Pensei nisso e logo notei o absurdo de se
escolher um lugar agradável para enterrar aos mortos. Logan não podia vê-lo. Não lhe importava onde jazia.
O lugar escolhido cuidadosamente era só reconfortante para os vivos. E não me reconfortava.
Inclinei-me e peguei umas flores brancas diminutas para deixá-las sobre a terra removida. Tampouco
soube para que isso. Logan não importaria. Outro gesto sem sentido que procurava oferecer um pequeno
grau de consolo, o consolo de um ritual realizado sobre os corpos dos mortos desde que os seres humanos
começaram a velar a seus mortos. Parada junto à tumba, agarrada a meu patético raminho de flores,
recordei do último e único funeral no que estive. O de meus pais. A melhor amiga de minha mãe – a que
tentou me adotar – fez os acertos para o pequeno funeral. Mais tarde soube que meus pais não tinham
seguro de vida, assim estou segura de que a amiga de minha mãe deve ter custeado tudo. Levou-me ao
funeral, ficou junto a mim e me segurou a mão. Foi a última vez que a vi. O sistema de adoção impunha
como regra a separação total.
Esse dia fiquei parada ali, olhando as tumbas e esperando. Voltariam. Sabia. Tinha visto os ataúdes e pude
ver minha mãe dentro de um deles, vi os homens baixar as gavetas e os cobrir de terra. Não importava.
Voltariam. Não tinha nenhuma experiência com a morte real, só a coisa ruidosa e gritalhona que via nos
desenhos animados aos sábados pela manhã, nos quais o coiote morria e voltava a morrer, mas sempre
voltava para tentar outro plano idiota antes que terminasse o assunto. Assim funcionava. A morte era
temporária, só durava o suficiente para provocar risadas em crianças vestidas com pijamas, sentadas de
pernas cruzadas diante do televisor, enchendo-se de cereais. Até tinha visto um truque quando meu pai me
levou a um show de magia na festa de Natal de seu escritório. Colocaram uma mulher em uma caixa,
cortaram-na ao meio e fizeram a caixa girar. Quando reabriram a porta, saiu de um salto, sorridente e
completa, recebendo os aplausos e as risadas das pessoas. E meus pais sairiam de suas caixas enterradas do
mesmo modo, sorridentes e inteiros, a cabeça de meu pai onde devia estar. Era uma brincadeira. Uma
brincadeira maravilhosa e apavorante. Tudo o que tinha que fazer era esperar que ela terminasse. Parada
junto às tumbas de meus pais, comecei a rir. O pastor se virou para mim, me condenando com o olhar por
ser uma garotinha sem sentimentos. Não me importou. Ele não sabia da brincadeira. Fiquei ali, sorridente e
esperando... esperando.
Olhando a tumba de Logan, desejei que essa fantasia retornasse, que me permitisse pensar que ele ia
voltar, que a morte era só temporária. Mas agora sabia da verdade. Morto é morto. Enterrado é enterrado.
Foi-se. Caí de joelhos, esmagando as flores em meus punhos. Algo se quebrou dentro de mim. Caí para frente
e uivei minha dor sobre uma terra indiferente. Uivei até que meus gritos se transformaram em soluços e
ganidos, o único som que saía de minha garganta maltratada. Logo me encolhi sobre a terra revolvida e a
senti sob o peso de meu corpo, como se a tumba se abrisse para me receber. Cobri meu rosto com os braços
e comecei a soluçar. Passados alguns minutos, uma voz conseguiu chegar a minha mente. Não era a do
Jeremy, que estava em silencio junto a mim, sabendo que não devia interferir. Aquele era o único que se
atrevia a interferir.
– Agora! –gritava Clay–. Não posso escutá-la e não...
A voz de Jeremy, palavras suaves em um sussurro suave e contido.
– Não! -gritou Clay–. Não podem fazer isso. Ao Logan. Nem a ela. Não vou ficar quieto...
Outro murmúrio que o interrompeu.
– Deus! Como pode... –-A voz do Clay se afogou em sua própria fúria.
Escutei algo, um roce nos ramos, Jeremy afastando Clay, levando-o ao interior do bosque, me deixando
com minha dor. Arremessada sobre a terra, escutei-os. Clay queria ir à busca do assassino de Logan, nem
amanhã, nem esta noite. Agora mesmo. Jeremy tentava dissuadi-lo, dizendo que ainda era de dia, estava
muito zangado, precisavam planejar as coisas. Não importava o que Jeremy dissesse nem se o que dizia tinha
sentido. A tormenta da fúria de Clay afogava toda a lógica. Sabia qual seria o resultado. Sabia o que Clay ia
fazer com ou sem permissão de Jeremy. Ao esfregar minhas mãos cheias de terra sobre meu rosto úmido, o
medo superou a dor. Enquanto discutiam me levantei, saí silenciosa do bosque e fui rápido a casa.
Dez minutos mais tarde, Clay abriu a porta de seu automóvel e se deixou cair pesadamente no assento
atrás do volante.
– Aonde vamos? –perguntei. Minha garganta me permitia apenas sussurrar.
Sobressaltou-se e virando-se me viu encolhida ao seu lado.
– Vai atrás dele – disse antes que pudesse dizer algo –. Quero estar ali. Necessito-o.
Isso era certo em parte. Precisava exorcizar de algum jeito minha dor e, igual à Clay, só conhecia uma
maneira de fazê-lo. A vingança. Quando pensava que um vira-lata tinha matado Logan, a fúria que me enchia
quase me dava medo. Retorcia-se dentro de meu corpo como uma víbora demoníaca, incitando a cada parte
de meu corpo a sentir a fúria, movendo-se tão rápido e tão sem controle que tive que apertar os punhos e
me conter para evitar golpear algo. Passei por momentos de fúria assim na infância. Então me senti frustrada
por minha incapacidade de usá-la, de agir de algum modo efetivo. Hoje podia usar a fúria mais do que jamais
acreditei ser possível. O que era ainda mais apavorante. Nem sequer sabia o que aconteceria se entregasse
a ela. Saber que entrava em ação ao sair em busca do assassino me ajudava a controlar minha ira.
Havia outro motivo para ir com Clay. Temia deixá-lo sozinho, temia que se eu não estivesse ali para cuidar
dele haveria outra tumba no bosque. Essa idéia me fez sentir coisas que nem sequer podia admitir.
– Está segura? – perguntou, girando a cabeça para mim–. Não tem que vir.
–Sim, tenho que fazê-lo. Não tente me deter ou direi a Jeremy que partiu. Direi-lhe que o proíba. E se já
tiver partido, levá-lo-ei até você.
Clay estendeu a mão para me tocar, mas eu olhei pela janela. Logo depois de um momento de silêncio,
abriu-se a porta automática da garage com um chiado e o motor do automóvel se ligou com um rugido. Deu
ré pelo caminho de saída a toda velocidade e já estávamos na rota para Bear Valley.

A Caminho de Bear Valley, a bruma de dor e fúria que girava em meu cérebro se dissipou ante a
perspectiva de ação: ação clara e definitiva. Centrei minha mente nisso. Qualquer impulso de correr para
Bear Valley e procurar enloquecidamente ao assassino de Logan se dissipou sob o peso frio da realidade.
Necessitávamos de um plano. Ao entrar em Bear Valley, ficamos no meio do tráfico e tivemos que esperar
toda uma mudança de luzes no semáforo antes de podermos virar à esquerda de uma rua principal para
outra.
Quando o segundo semáforo ficou vermelho, Clay o passou, ignorando as buzinadas.
– Sabe aonde vai? – perguntei-lhe.
– Estacionar.
– E depois...?
– Encontrar ao filho de puta que matou Logan.
– Boa idéia. Um plano preciso. – Segurei o trinco da porta quando Clay virou na entrada do único
estacionamento público do centro do povoado. – Não podemos caçá-lo agora. É de dia. E se encontrarmos
ao vira-lata, não poderemos fazer nada.
– O que sugere? Desfrutar de um jantar enquanto o assassino de Logan anda solto?
Embora não tivesse comido desde a noite anterior, meu estômago rechaçou a idéia de comer. Queria ir
em busca do assassino de Logan tanto quanto Clay, mas devia ser cautelosa. Por mais que me repelisse a
idéia de que algo pudesse nos distrair de vingar ao Logan, isso era o que tínhamos que fazer, nos distrair
umas horas.
– Devemos investigar o que aconteceu ontem à noite.
Clay colocou o carro em um espaço para estacionar.
– O quê?
– Descobrir como reage o povoado ante o que aconteceu na festa de ontem à noite. Avaliar o dano. Ainda
procuram mais cães selvagens? Vão fazer algo com o corpo do Brandon? Alguém viu você saltar da janela
do primeiro andar? Alguém me viu com o vira-lata?
– Por Deus, quem se importa com o que viram ou pensaram?
– Você não? Não se preocupa que estudem o que restou de Scott Brandon e encontrem algo um pouco
estranho? É seu quintal Clay. Seu lar. Não pode se dar ao luxo de não se importar.
Clay fez um ruído, mescla de suspiro e grunhido de frustração.
– Bom. O que sugere?
Dei uma pausa, já que ainda não tinha pensado. A imagem de Logan ainda alagava meu cérebro. Afastei-
me para um lado para me concentrar nos passos seguintes. Logo depois de alguns minutos disse:
– Compraremos o jornal, vamos ao café e o lemos escutando as pessoas falarem. Depois planejaremos
como rastrear o vira-lata. E quando anoitece o fazemos.
– Ler um jornal não nos vai ajudar a encontrar ao assassino de Logan. Melhor comemos.
– Tem fome?
Desligou o motor e ficou em silêncio um momento.
– Não.
– Então a menos que tenha uma maneira mais produtiva de passar um par de horas, esse é o plano.

RASTRO
Logo depois de comprar um jornal, procurei um telefone público para ligar ao Jeremy. Peter atendeu,
assim na realidade não necessitei falar com ele. Pedi ao Peter que lhe dissesse que estava com Clay e que o
convenci de que não era o momento de ir atrás do assassino de Logan. Em vez disso, estávamos fazendo um
inventário do dano causado na noite anterior. É obvio que não disse que rastrearíamos ao assassino de Logan
depois. Era tudo uma questão de interpretação. Não estava mentindo. Verdadeiramente.
Bear Valley tinha três cafés, mas The Donut Hole era o único que importava. Os outros dois estavam
reservados as pessoas de fora do povoado, caminhoneiros e qualquer outra pessoa que saísse da estrada
para reanimar-se com um pouco de cafeína e açúcar. Ao entrar no Hole, soou o guizo sobre a porta. Todos
se viraram. Algumas pessoas sorriram do balcão, alguém elevou a mão em saudação. Eu podia lhes parecer
vagamente familiar, mas a quem reconheceram foi ao Clay. Em um povoado de oito mil habitantes, um tipo
com o aspecto de Clay tinha tantas chances de não ser notado como seu Porsche Boxster no estacionamento
local. Clay odiava que prestassem atenção nele. Para ele, a maldição era seu rosto, não seu sangue de
licántropo. Clay não queria outra coisa que passar despercebido como um ser humano a mais. Acredito que
se desfaria do Boxster se pudesse, mas igual ao meu quarto, era um presente de Jeremy, o último de uma
série de automóveis esportivos que foram comprados para satisfazer ao prazer que Clay tinha ao dirigir
rápido e fazer as curvas a toda velocidade.
Mesmo assim, Clay tinha sorte em Bear Valley. Embora seu automóvel e seu rosto fizessem os olhos se
virarem para ele, ninguém o incomodava como fariam em uma cidade. Estava isento da atenção indevida
das mulheres pela aliança de ouro que usava no quarto dedo de sua mão esquerda, sendo Bear Valley um
lugar onde uma aliança de casamento ainda significava que uma pessoa não estava à disposição do sexo
oposto. A aliança tampouco era uma mentira. Clay não se rebaixaria a tal coisa. Sua aliança era igual a que
comprou para mim há dez anos, antes que a pequena questão de uma mordida em minha mão acabasse
com a felicidade marital para sempre. Clay não se importava com o fato de que não houve casamento. A
cerimônia em si era irrelevante, um ritual humano sem sentido. O que lhe importava era o compromisso de
fundo, a idéia de uma companheira por toda vida, algo que o lobo que havia nele reconhecia, chame-se
matrimônio ou emparelhamento ou o que queiram. Assim usava a aliança. Isso eu podia suportar,
considerava-o outra fantasia de seu cérebro dominado pelas ilusões. Foi quando me apresentou como sua
esposa que a coisa ficou feia.
The Donut Hole era um café típico, incluindo os assentos de vinil vermelho rasgados dos reservados e o
persistente aroma de chicória queimada. Não havia modo de escapar da seção de fumantes:
Embora pudesse encontrar um reservado sem cinzeiro, a fumaça das mesas próximas chegava as outras
em segundos, ignorando a emissão do sistema de ventilação muito fraco. As garçonetes eram todas
mulheres maduras, que provavelmente já tinham criado uma família e que, tendo decidido passar seus anos
de ninho deserto ganhando um pouco de dinheiro, descobriram que esse era o único emprego para o qual
o mundo as considerava qualificadas. A essa hora do dia, a maioria dos clientes eram trabalhadores, que
vinham em busca de uma última bebida antes de ir para casa ou que se atrasavam ali para evitar voltar para
casa mais cedo do que o necessário.
Enquanto eu procurava um reservado, Clay foi ao balcão e voltou com dois cafés e duas porções de bolo
de maçã caseiro. Coloquei a comida de um lado e abri o Bear Valley Post sobre a fórmica da mesa. O incidente
no bola de boliche ocupava parte da primeira página. O jornal fazia referência a uma grande festa privada
cheia de "atividades ilegais”, o que o fazia aparecer como algo muito mais divertido do que era em realidade.
Embora o jornal não dissesse explicitamente, insinuava que a maioria dos festeiros era de fora de Bear
Valley. Claro.
Os detalhes em relação ao «incidente» eram escassos, devido a uma combinação de fatores mitigantes,
quer dizer, que a maioria das testemunhas estava bêbada ou drogada e que o criminoso era um cão morto,
o que o fazia duplamente difícil de entrevistar. Os fatos se reduziam a isto: um grande cão massacrou três
pessoas em uma festa antes que a polícia o matasse. Não era exatamente material para encher a primeira
página, por isso o repórter o inflou com suficiente especulação para conseguir um trabalho em um jornal
sensacionalista. Supunha-se que o cão morto era um cão e todos pareciam contentes com essa explicação,
o que significava que as autoridades não tinham intenção de chamar peritos em vida selvagem ou enviar os
restos a um laboratório caro da cidade. O que restou de Brandon já tinha sido “eliminado", quer dizer,
incinerado na sociedade protetora dos animais. Nem sequer fizeram testes para ver se tinha raiva,
provavelmente porque se considerava que qualquer um que tivesse participado da festinha merecia
suportar algumas injeções anti-rábicas, embora fosse mais para que os torturassem um pouco. Além disso,
o repórter deixou obvio que o cão morto esteve envolto no assassinato da jovem da semana anterior,
embora a polícia não descartasse a possibilidade de que houvesse mais cães selvagens no bosque,
especialmente porque os jovens viram dois cães na noite anterior. Finalmente, e além de tanta especulação,
não havia nenhuma menção de que alguém tivesse visto um homem ou a uma mulher loiros que pareciam
estar envolvidos no incidente. Tal como eu esperava, Clay e eu não fomos mais que duas testemunhas no
meio do caos.
– É uma perda de tempo – queixou-se Clay. Esteve lendo o artigo ao reverso. – Não há nada.
– Bem. Isso é o que queríamos, assim não foi uma perda de tempo que nos assegurássemos.
Bufou e cravou seu garfo no bolo, provocando uma explosão de crosta. Logo a afastou sem prová-la.
– Está seguro sobre quem farejou no Logan – inalei para suportar a dor que me produziu pronunciar seu
nome – foi alguém a quem não reconheceste.
– Sim – os olhos de Clay se nublaram e logo faiscaram de ira Um vira-lata. Um puto vira-lata. Dois em Bear
Valley. De todos...
– Não podemos ficar pensando nisso agora. Esqueça como e por que. Concentre-se em quem.
– Não reconheci o aroma. E nenhum dos outros o reconheceu. O que quer dizer que é um vira-lata com
quem não cruzamos o suficiente para lhe reconhecer o aroma.
– Ou é novo. Igual a Brandon.
Clay franziu o sobrecenho.
– Dois novos vira-latas? Um já é bastante raro, mas...
– Bom, deixemo-lo aí. Não o reconheceu. Vejamos se conseguimos ouvir alguém falar do que aconteceu
ontem à noite.

Clay se queixou. Ignorando-o, recostei-me no respaldo para ouvir a conversa ao redor, enquanto
procurava beber o café. A experiência era deprimente, não porque ninguém falasse do «incidente», mas sim
porque o que a maioria discutia não dava uma imagem muito positiva da vida das pessoas comuns. De todos
os cantos da sala chegavam queixam de patrões injustos, colegas de trabalho traidores, filhos ingratos,
vizinhos intrometidos, trabalho aborrecido e matrimônios ainda mais aborrecidos. Ninguém parecia feliz.
Possivelmente não fosse tão ruim como parecia. Possivelmente as relações impessoais nos cafés do pequeno
povoado fossem perfeitas para descarregar as frustrações corriqueiras da vida que as pessoas das grandes
cidades levariam a um terapeuta, investindo muito mais que um dólar em café para descarregar-se.
Enquanto escutava, começou a aflorar em mim uma antiga ira e ressentimento. Por que as pessoas se
queixavam de seus empregos, cônjuges, filhos e demais parentes? Não se davam conta de que eram
afortunados por terem essas coisas? Até quando era uma menina odiava ouvir outras crianças queixarem-
se de seus pais e irmãos. Queria gritar: se não gostam de suas famílias, dêem eles, eu fico com eles e nunca
me queixarei de ter que ir cedo à cama ou de que me incomode minha irmã mais nova. Ao crescer estive
rodeada de imagens de famílias. Pareciam estar em cada livro, cada programa de televisão, cada filme, cada
publicidade. Mãe, pai, irmão, irmã, avós, mascotes e lar. Palavras tão familiares para cada criança de dois
anos que qualquer outro tipo de vida seria impensável. Impensável e equivocada, simplesmente equivocada.
Quando superei a etapa da autocomiseração, percebi que perder estas coisas na infância não significava que
as tinha perdido para sempre. Podia ter uma família quando crescesse. Nem sequer teria que ser a
tradicional marido, três filhos, cão e um lindo chalé. Qualquer variação seria boa. A questão era que poderia
mudar minha vida e conseguir tudo o que a vida me negou. E então, no momento em que me tornava adulta,
virei mulher lobo.
Meus planos para o futuro desapareceram em uma noite. Podia forjar uma vida no mundo humano, mas
nunca seria o que tinha imaginado. Não teria marido. Viver com alguém já era bastante arriscado,
compartilhar a vida com alguém era impossível: havia muito que não poderia compartilhar. Nada de filhos.
Não havia antecedentes de uma mulher lobo que desse a luz. Embora estivesse disposta a correr o risco,
não podia submeter uma criança à possibilidade de viver como licántropo. Nada de marido nem de filhos e,
faltando isso, nenhuma esperança de formar uma família ou ter um lar. Tirou-me tudo isso, colocando tão
longe de meu alcance como quando era menina.
Clay me olhava, com os olhos cheios de preocupação.
– Está bem?
Buscou-me, não com comiseração nem com tapinhas no joelho, nem nada tão óbvio. Em troca, deslizou
sua perna para frente até tocar a minha e continuou estudando meu rosto. Virei-me para olhá-lo. Ao
encontrarem-se nossos olhares, queria lhe gritar, lhe dizer que não estava bem, que nunca estaria bem, que
ele se assegurou de que assim fosse. Roubou todos meus sonhos e toda esperança de ter uma família em
um gesto de egoísmo imperdoável. Retirei minha perna bruscamente e desviei o olhar.
– Elena? -disse, inclinando-se sobre a mesa –. Está bem?
– Não. Não estou bem.
Detive-me. Do que serviria dizer algo mais? Estávamos aqui para caçar ao assassino de Logan, não para
brigar por nossos problemas pessoais. Não era o momento. E no fundo sabia que nunca chegaria o momento.
Se falássemos, possivelmente federíamos solucionar a coisa. Era um risco que não estava disposta a correr.
Não queria esquecer e não queria perdoá-lo jamais. Não me permitiria isso.
Arrumar as coisas com Clay significaria me render. Significaria lhe dar a vitória, reconhecer que me morder
valeu a pena. Ele teria a companheira que desejava, seria a concretização de seus sonhos. Mas eu tinha meus
próprios sonhos e Clay não tinha nenhum lugar neles. Licántropo ou não licántropo, não suportava a idéia
de renunciar a eles, especialmente agora que vi as possibilidades que me abriam com o Philip. Tinha um
homem bom e decente, alguém que reconhecia e inspirava meu potencial para ser boa e normal, coisa que
Clay não via, que nem sequer se importavam e por certo que nunca as inspiraria. Talvez o casamento, os
filhos e a casa nos subúrbios não fossem nossos destinos, mas, como disse, qualquer variante era bom. Com
Philip podia imaginar uma variante satisfatória, com um companheiro, um lar, uma família. 'Tudo o que tinha
que fazer era sair desta confusão com a Matilha, voltar para Toronto e aproveitar a oportunidade que me
oferecia.
– Não – repeti. – Não estou bem. Logan está morto e seu assassino anda solto e estou em um estúpido
café com... – Engoli o resto. – supõe-se que escutaríamos os rumores, recorda? Cale-se e escute.
Fiz um esforço por voltar a me concentrar nas conversações em redor. As pessoas seguiam se queixando
de suas vidas, mas os ignorei e me concentrei em tentar escutar o que queria ouvir. Junto com a
desesperança geral, aqui e ali os clientes comentavam os eventos da noite anterior com esse tom lento que
diz "aonde iremos parar”, que as pessoas provavelmente usaram desde que os primeiros homens viram seus
vizinhos caminharem em duas patas. Embora a maioria das pessoas repetisse o que dizia o artigo do jornal,
alguns faziam nascer rumores que andariam por todo o povoado até o anoitecer. Uma mulher em um canto
ao fundo disse que escutou que não se tratava de um animal selvagem, mas sim de um cão de guarda de um
parente do prefeito que fugiu, e que subornaram ou ameaçaram à polícia para que dissesse que foi um cão
selvagem. Alguns inclusive pensavam que o cão não teve nada que ver, que quem os matou foram as pessoas
enlouquecidas pelas drogas. Ficaram loucos, iniciou-se o pânico e os policiais mataram a um pobre cão. As
pessoas às vezes podem ser muito criativas. Surgiram outras histórias aqui e ali, embora nenhuma tão
interessante como essa. Mas o certo é que ninguém falava de lobos muito grandes nem exigiam uma
investigação para saberem por que o animal atuou como o fez. Todos achavam é obvio que era
perfeitamente natural que um cão se descontrolasse e massacrasse a várias pessoas em um local lotado de
gente. Enquanto eu prestava atenção à conversação, Clay fazia de conta que lia o jornal. Digo "fazia de conta"
porque eu sábia que não se importava um caralho com o que acontecesse em Bear Valley ou em nenhum
outro lugar do mundo. Igual a mim, tentava pescar algum rumor; embora não o admitisse.
– Já podemos ir? – perguntou finalmente.
Sorvi meu café frio. Ficavam três quartos da taça. Clay nem sequer tinha provado o seu. E nenhum dos
dois havia meio doido o bolo. Por uma vez a fome era uma preocupação distante.
– Suponho que podemos começar – disse, olhando pela janela –. Falta muito para que escureça, mas
provavelmente levaremos um tempo para encontrar um rastro. Começaremos pelo estacionamento?
Não podia dizer «o estacionamento onde encontramos Logan», mas Clay sabia a qual me referia. Assentiu,
ficando de pé e abriu a porta para mim sem dizer mais nada.

Quando íamos nos aproximando do estacionamento do armazém, detive-me antes de dobrar a esquina,
para não ver o lugar onde tínhamos encontrado Logan. Meu coração pulsava tão rápido que tive que me
concentrar para poder respirar.
– Posso fazê-lo – disse Clay, pondo sua mão em minhas costas–. Fique aqui. Eu encontrarei o rastro e
verei aonde conduz.
Afastei-me de sua mão.
– Não pode. O aroma já se desvaneceu muito ontem à noite. Será pior agora. Necessita de meu olfato.
– Posso tentar.
– Não.
Virei à esquina, vacilei, quase me detive, logo me impulsionei para frente. Quando vi o lugar onde esteve
estacionado o Explorer, desviei o olhar, mas foi muito tarde. Minha mente já reproduzia a cena de ontem à
noite: eu corria para frente, Clay me chamava e corria detrás de mim. Ele percebeu o que tinha acontecido
antes que eu. Por isso tentava me deter. Agora eu entendia, embora seu motivo não importasse agora. Era
só uma distração sem sentido que atravessou minha mente, evitando que pensasse no acontecido aqui na
noite anterior.
De dia, o estacionamento parecia outro lugar. Havia gente indo dos automóveis aos negócios e vice-versa.
Igual ao café, o estacionamento estava cheio de trabalhadores, a maioria de jeans, alguns em ternos.
Carregavam bolsas com o jantar da noite ou leite ou pão comprado a caminho de casa. Ninguém prestou
atenção em nós quando passamos rumo a um lugar perto da grade posterior. O lugar estava vazio, ficava
muito longe do comércio para que o usassem, salvo nos dias em que havia mais clientes.
Fiquei do lado direito, onde esteve a porta do acompanhante do Explorer. Fechei os olhos e inalei. O aroma
de Logan me alagou o cérebro. Senti que meus joelhos amoleciam. Clay me pegou pelo cotovelo. Firmei-me,
logo voltei a aspirar, tentando bloquear o aroma de Logan. Não funcionou. Seu rastro deslocava todos os
aromas menos familiares. Com os olhos fechados podia imaginá-lo parado diante de mim, suficientemente
perto para tocá-lo. Abri os olhos. A luz do dia fez a fantasia retroceder para as sombras de minha mente.
– Eu... – tentei falar –. Tenho problemas.
– Está aqui – disse Clay –. Muito leve, mas registro algo. Espere um segundo e verei se posso pescá-lo.
Foi à esquerda, deteve-se, sacudiu a cabeça, logo voltou e se dirigiu em outra direção. Em sua segunda
ronda dos quatro pontos cardeais, voltou para mim.
– Encontrei – disse. – O rastro vem do leste, mas o vira-lata saiu por aqui.
Não havia nada em um rastro que pudesse dizer sequer ao melhor rastreador se alguém vinha ou ia. Clay
sabia por que o rastro de aproximação também traria o aroma de Logan, embora não dissesse.
– Vem aqui e tenta – disse.
Ao me afastar do lugar comecei a me tranqüilizar. Clay estava parado perto de uma minivan. Fui para junto
dele e farejei. Sim, aqui estava o rastro. Um licántropo desconhecido. O rastro me conduziu através do
estacionamento, me afastando do armazém para a loja de artigos de caça e ferragens. Dali ia para oeste pelo
atalho, logo voltava para a rua principal, onde o seguimos até o centro. Se isso parece incrivelmente rápido
e fácil, não foi assim. Caminhando direto do ponto A ao B, teríamos demorado quinze minutos. Mas levamos
mais de uma hora, perdíamos a cada momento o rastro, retrocedíamos para descobrir onde tinha entrado
o vira-lata e voltamos a começar. Uma ou duas vezes perdi o rastro por completo. O rastreamento como
humana fazia o assunto ainda mais difícil, não só porque tinha menos olfato, mas sim porque não podia pôr
o nariz contra o chão para cheirar. Bom, podia, mas a sociedade educada geralmente rechaça tais ações e
normalmente conduzem a uma visita ao psiquiatra mais próximo. Alguém que fareja ou anda em círculos já
provoca surpresa. Assim devia ser discreta. Embora pudesse convencer Clay a esperar até a meia-noite, não
poderíamos nos transformar em lobos. Depois de tudo o que tinha acontecido em Bear Valley, isso não seria
um risco, seria suicídio.
O centro de Bear Valley fechava as cinco, permitindo que os empregados chegassem a suas casas a tempo
para jantar e ignorando o fato de que todos trabalhavam até as cinco e precisavam ir às compras depois.
Semelhante descuido podia ser a explicação da quantidade de locais vazios no centro, o que afetava a um
comércio, logo ao seguinte e ao seguinte, até que a quadra inteira parecesse como um aviso gigante da
Imobiliária de Bear Valley. Para quando chegamos ali, já eram mais de sete e até o mais dedicado dos clientes
já tinha partido. As ruas estavam vazias. Todo o povoado parecia ter fechado. Pude dissimular menos o
rastreamento e avançamos outros oitocentos metros em vinte minutos. O rastro chegava a um Burger King
que foi separado de seus similares no lado leste do povoado. Aparentemente o vira-lata parou aqui para
colocar combustível. Passados outros vinte minutos de dar voltas, avanços e retrocessos voltei a encontrar
o rastro. Dez minutos mais tarde estávamos parados no estacionamento do Big Bear Motor Lodge.
– Isto sim que não foi nenhuma genialidade – murmurei enquanto estudávamos a coleção de pick Up e
automóveis de quatro portas –. Há dois hotéis. Não era muito difícil encontrá-lo.
–Você foi quem insistiu para que começássemos pelo estacionamento do armazém.
– Não ouvi você propor outra coisa.
– Isso se chama instinto de sobrevivência, carinho. Sei quando fechar a boca.
– Desde quando...? – detive-me, notando a presença de uma mulher junto a sua porta que não tentava
ocultar que escutava nossa conversa. Sempre é lindo saber que podemos oferecer entretenimento quando
a novela da tarde já terminou.
Dei a volta em uma pick up e olhei o edifício de dois andares.
– Quantos quartos há?
– Trinta e oito – disse Clay sem um segundo de demora–. Dezenove em cada andar. Uma porta principal
embaixo. No primeiro andar uma entrada principal e uma de emergência.
– Se fosse eu, conseguiria um quarto no térreo – disse –. Acesso direto. Mais fácil entrar e sair a qualquer
hora.
– Mas o primeiro andar tem balcões, carinho. E uma grande vista.
Olhei para o outro lado do caminho, a um lote vazio coberto de mato, entulhos e lixo suficiente para
manter um grupo de meninos exploradores ocupados todo um dia.
– térreo – disse – Eu começo. Vá se esconder.
– Sim. Já jogamos este jogo. Eu me oculto. Você nunca procura. Sou lento, mas começo a ver seu jogo.
– Vê.
Clay sorriu, puxou-me pela cintura e me beijou, logo escapou antes que pudesse castigá-lo. Embora fosse
bom ver que estava de melhor ânimo, seria ainda melhor que não fosse à perspectiva de um assassinato o
que lhe produzira tal coisa. Eu também estava melhor dos ânimos. Nas últimas duas horas de rastreamento
esqueci o ressentimento que saiu à superfície no café. Isso podia ser sinal de que fugia do assunto ou uma
diminuição da capacidade mental, mas na realidade era uma técnica de sobrevivência. Se me concentrasse
em minha ira contra Clay cada segundo que me visse obrigada a passar com ele, teria me convertido em
uma bruxa amargurada muitos anos atrás. Alguns é obvio poderiam sustentar que tinha cruzado essa porta
fazia muito tempo, mas essa não é a questão.
Enquanto Clay ia em busca de um lugar adequado para esperar, eu olhei para ver se podia encontrar algo
que justificasse minha presença perto de um Impala enferrujado vi uma folha de papel. Era um recibo de
um novo rádio para o carro, que esperei que não tivesse sido colocado no Impala, porque se fosse assim, o
dono tinha gasto mais no sistema de áudio que no automóvel. Tirei a folha molhada do recibo, alisei-a,
depois a dobrei ao meio e me dirigi caminho que levava a entrada do andar superior. Comecei da saída de
emergência e lentamente fui pelo caminho, fazendo de conta que estudava o recibo e me permitindo parar
de forma prolongada diante de cada porta a farejar. A mulher fofoqueira tinha voltado para seu quarto. Duas
pessoas saíram de um dormitório perto do fundo, mas ignoraram a jovem que tinha tal dificuldade para
encontrar o número do quarto escrito em seu papel. As pessoas acham que as loiras têm menos capacidade
mental.
Quando cheguei ao final, encontrei o rastro do licántropo, que se dirigia à recepção. Aqui o aroma era
forte, o que indicava que passou várias vezes por este lugar. Um quarto do primeiro andar ao qual só se
podia acessar por esta entrada. Possivelmente gostava de ver o amanhecer sobre um lote vazio. Atravessei
a borda do estacionamento. Clay saiu de detrás do edifício antes que pudesse procurá-lo.
Suficiente – Vamos – disse.
– Vê, carinho? Nunca ninguém disse que os vira-latas têm cérebro.
Joguei o recibo no meio dos arbustos e fomos para a porta principal. Ao ingressar na recepção, Clay me
segurou pela cintura e começou a queixar-se de um jantar imaginário em um restaurante local. Enquanto
ele tagarelava, eu vi as escadas à esquerda do balcão e fiz que nos encaminhássemos para lá, assentindo
enquanto Clay se queixava de ter tido que esperar a conta por vinte minutos. O show não era necessário. O
empregado nem sequer elevou a vista quando passamos.
Vamos, o rastro chegava à terceira porta da esquerda. Clay pegou o tricô e o quebrou com um ruído baixo.
Enquanto eu vigiava para denunciar a possível presença de ocupantes do hotel, Clay esperou para ver se
alguém dentro do quarto respondia ao som da fechadura ao se quebrar. Não escutou nada e abriu a porta
suavemente. As cortinas estavam corridas e o quarto às escuras. Uma porta mais à frente se abriu ao
corredor. Empurrei Clay para frente e nos introduzimos no quarto antes que pudessem nos ver.
Clay olhou no banheiro para assegurar-se de que o vira-lata não estava ali, depois tirou uma moeda do
bolso.
– Cara, ficamos esperando por ele, Coroa o procuramos.
– Devemos ficar aqui – disse –. Investigar, procurar pistas enquanto esperamos.
Clay elevou a vista.
– Tudo bem – disse–. Jogue a bendita moeda.
Quando saiu cara, estirei a língua para ele. Tentou pegar minha língua com os dedos, mas a retirei a tempo.
– A próxima vez serei mais rápido – disse, depois olhou ao redor–. Que esperas encontrar?
– Algo que explique por que tivemos dois novos licántropos em Bear Valley em uma semana. Isso não o
preocupa nem desperta sua curiosidade?
– É obvio, coração. Mas estou deixando a preocupação e a curiosidade para outro momento. Haverá
bastante tempo para analisá-lo quando este vira-lata morrer. Não vou esperar que este filho da puta ataque
vocês enquanto tento averiguar o que faz aqui.
– E você acredita que estou fazendo você perder seu tempo?
– Não, acredito que tenta usar o tempo de forma eficiente. Isso é bom. Só digo que não espere que me
mostre muito disposto a revistar as gavetas do armário enquanto o vira-lata anda por nossas ruas.
– Então vá olhar pelo balcão enquanto procuro.
É obvio que Clay não fez isso. Ajudou-me a procurar, depois de deixar claro que não o entusiasmava. A
mim tampouco, mas sei que não poderia deixar passar uma oportunidade. Além disso, procurar entre as
coisas do vira-lata mantinha minhas mãos e mente ocupadas, restando pouco tempo para pensar em por
que rastreávamos a este vira-lata.
Clay começou pelo banheiro. Passaram-se uns dez minutos antes que dissesse:
Grande novidade. O tipo usa o xampu e o sabão do hotel. Não quebrou o selo do inodoro. Há um
barbeador elétrico descartável, não há sinais de escova de dente, pasta dental ou enxágüe. Assim
procuramos um tipo com mau hálito. Isto serve de algo, coração?
Neguei-me a responder. As paredes eram muito finas para andar gritando. Além disso, eu tampouco
encontrei grande coisa. Encontrei dois pares de jeans, três camisas e vários pares de meias e roupa íntima,
todas usadas e deixadas em uma cadeira para lavar. Tinha desenhado pentagramas e cruzes investidas na
Bíblia sobre a mesinha. Maravilhoso. E muito pouco original. Quero dizer que se a pessoa quer desenhar
símbolos satânicos em uma Bíblia o mínimo que se pode fazer é não desenhar coisas que se encontram em
cada edição do World Weekly News. Um licántropo pouco criativo e obviamente desinformado. Desiludiria-
se ao saber que um licántropo provavelmente conhece mais a receita para fazer carne ao forno que a um
rito satânico. Em dez anos, o diabo nunca entrou em contato comigo com instruções especiais ou sequer
para me saudar. Mas tampouco o tinha feito Deus. Possivelmente isso significa que não existem. O mais
provável era que nenhum dos dois queira ser responsável por mim.
– Deus, tem que ver o que há aqui, coração – disse Clay saindo do banheiro –. Colônia e desodorante. Se
não soubéssemos que o vira-lata era novo por seu aroma, saberíamos pela maneira que usa o olfato. Dito
de outro modo, nenhum licántropo com experiência usaria colônia, pelo menos não se seu sistema olfativo
funcionar. O aroma de si mesmo sufocaria todo rastro, fazendo que seu nariz fosse inútil. Eu nem sequer
uso sabonete perfumado. E não é tão fácil encontrar produtos de toalete feminino sem perfume. As
indústrias dos cosméticos parecem obcecadas em fazerem que as mulheres cheirem diferente do que são.
E nos pomos essas coisas sem sequer tentar produzir um aroma uniforme, mesclando o xampu com aroma
de morangos com o desodorante com aroma de talco de bebê e sabonete de lilás, agregado à última
fragrância do Calvin Klein. Quando tinha a desgraça de subir em um elevador cheio de manhã cedo, a mistura
de aromas me deixava com dor de cabeça até o meio-dia.
Logo depois de olhar pela janela alguns minutos, Clay se aproximou de aonde eu revolvia a lata de lixo
junto à cama.
– Ofereceria-lhe ajuda – disse – mas parece ter tudo sob controle.
– Obrigado.
– Olhaste debaixo da cama?
– Não posso. O marco chega ao piso. – Usei o lápis do hotel para puxar um lenço de papel usado. Não
direi para que foi usado, mas os licántropos não se resfriam nem sofrem de gripe.
– Olharei debaixo do colchão – disse Clay.
Tinha esquecido. Os licántropos muitas vezes usam identificação falsa e ocultam sua documentação
autêntica em algum lugar sob o colchão.
– Nada de identificação – disse Clay –. Só este caderno de recortes. Suponho que não interessa a você.
Levantei-me tão rápido que bati no braço extensível do abajur. Clay sorriu e sustentou um álbum azul
longe de meu alcance.
– Meu – disse, com sorriso mais largo. Tendo-o fora de meu alcance, passou umas páginas, logo parou de
sorrir e fechou o livro. –Pensando bem, é todo teu. Que o desfrute, coração. Eu ficarei junto à janela. Depois
me faça uma síntese.
Peguei o álbum e me sentei na beira da cama. Era um álbum de fotos, do tipo que tem um filme
transparente que se pode separar das páginas e colocar as fotos debaixo. Em vez de fotos, o vira-lata encheu
esse álbum com recortes de jornal. Não recorte ao azar. A não ser um que seguia um tema específico:
assassinos seriais. Passei página detrás de página de artigos, vendo alguns rostos conhecidos – Berkowitz,
Dahmer; Bundy – e outros que nunca tinha visto. Todos os recortes eram sobre assassinos em série, mas,
além disso, continham um elemento chave; algo que o vira-lata destacava: a quantidade de pessoas
assassinadas. Inclusive utilizava cores diferentes, marca texto amarelo para a quantidade de pessoas que o
assassino dizia ter assassinado, azul para a quantidade de corpos encontrados e rosa para a quantidade que
as autoridades lhe atribuíam. Nas margens, o vira-lata escreveu notas, com os totais e comparações entre
as cifras, como um fanático que recolhesse estatísticas de algum evento esportivo macabro.
Os artigos enchiam a metade do álbum. Estava para fechá-lo, quando notei que havia mais recorte perto
do final. Passei as páginas vazias e encontrei outro artigo. Diferente dos outros, este não tinha nada que ver
com as estatísticas. Em realidade nem sequer falava de um assassino. O artigo, datado de 18 de novembro
de 1995, do Chicago Tribune, simplesmente dizia que um corpo de uma jovem foi encontrado. O artigo
seguinte dava mais detalhes, dizendo que esteve desaparecida uma semana e que parecia ter estado cativa,
antes que a estrangulassem e a atirassem detrás de uma escola primária. Passei rapidamente as seguintes
páginas. Encontraram-se três mulheres mais, com o mesmo patrão de crime. Logo escapou uma, que contou
uma história horrorosa de uma semana de violações e torturas enquanto estava cativa no porão de uma
casa abandonada. A polícia foi a casa e rastreou a um tal de Thomas Le Blanc, técnico de laboratório médico
de trinta e três anos. Entretanto, quando chegou o momento de que a mulher identificasse a Le Blanc, não
pôde fazê-lo. Seu atacante só esteve com ela às escuras e nunca falou com ela. E mais, Le Blanc estava fora
da cidade a trabalho na semana que a terceira mulher desapareceu. Em uma foto de jornal Le Blanc poderia
se passar pelo irmão mais velho de Scott Brandon, não por nenhuma semelhança física, mas sim pela total
banalidade do rosto, bem arrumado, mais ou menos elegante e totalmente insignificante, o branco anglo-
saxão típico da Wall Street, livre de todo os traços étnicos ou de interesse. O rosto do amável assassino em
série de seu bairro.
Em face de uma investigação extensa, a polícia não pôde encontrar evidencias suficientes para julgar Le
Blanc. O último artigo do Tribune falava que Le Blanc empacotou suas coisas e saiu de Chicago. Embora o
sistema judicial não pudesse condenar Le Blanc, o povoado de Illinois sim o fez. Esse era o último artigo de
Chicago, mas o álbum não terminava ali. Contei mais seis artigos nos últimos anos, que seguiam o rastro de
mulheres desaparecidas através do meio oeste até a Califórnia, para voltar depois para a costa leste. Thomas
Le Blanc esteve movendo-se. O último recorte datava por volta de oito meses e era de Boston.
– Merda – disse Clay, me sobressaltando –-. Caralho, não pode ser. Deixa o álbum, carinho. Tem que ver
isto.
Fui até a janela. Clay afastou a cortina o suficiente para que pudesse olhar. Perto da porta da entrada
estacionou um Acura. Saíam três homens dele. Quando vi o rosto do homem que saía do lado do condutor
não me sobressaltei ao ver a cara que aparecia nas fotos do Tribune: o alto Thomas Le Blanc, de cabelo
escuro, que não parecia bem como nas fotos. É obvio que Clay não o reconheceu e nem sequer sabia a essa
distância que era um licántropo. Os outros dois homens foram quem chamaram sua atenção. Karl Marsten
e Zachary Cain, dois vira-latas que ambos conhecíamos muito bem.
– Marsten e Cain? Que demônios fazem juntos? –- disse Clay.
– Quem é o outro tipo? Deve ser o que procuramos.
– O assassino de Logan – disse –. Thomas Le Blanc. Temos que sair daqui.
– Um momento – disse Clay, mantendo-se firme quando tentei arrastá-lo para a porta –. Não vamos a
nenhuma parte. Viemos para isto, carinho.
– Devíamos matar um vira-lata. Um vira-lata sem experiência. Três contra dois já é ruim, mas...
– Podemos dominá-los.
– Sem dormir nem comer em vinte e quatro horas?
– Podemos...
– Eu não posso.
Clay se deteve. Ficou calado um momento.
– Se ficar eu fico – adicionei –. Mas não estou em condições de brigar. Estou exausta e faminta e ainda me
dói o braço pelas mordidas do cachorro e de Brandon.
Estava jogando sujo, mas não me importava. A expressão de Clay mudou, primeiro foi de incerteza e logo
decidida.
– Bem – disse –. Vamos. Resta algum tempo...?
– O balcão. Teremos que descer. Nada de saltar.
– Seu braço? – olhou a ferida cicatrizada. Curamos rápido e parecia bom, mas não ia admitir isso para ele.
Não agora.
– Não vou morrer – disse.
Clay foi até a porta do balcão, afastou as cortinas para um lado e abriu a porta.
– Eu desço primeiro e seguro você se não poder se sustentar.
Ele já tinha descido antes que eu pudesse sair ao balcão. Passei uma perna sobre a borda, então olhei para
trás e vi o álbum sobre a cama. Devia tê-lo pego. Haveria mais pistas para me ajudar a entender ao Blanc e
encontrar a maneira de matá-lo.
– Vou em seguida – disse ao Clay de acima.
– Não!
Já tinha voltado para quarto. Peguei o álbum da cama justo quando senti que colocavam um cartão na
fechadura eletrônica.
– Não funciona – disse uma voz desconhecida do outro lado da porta –. Teria que acender a luz verde.
Lancei-me da cama ao balcão, me enredando com um calção e saindo disparada pela porta. Quando me
lançava do balcão, alguém testou a porta, descobriu que estava aberta e a empurrou. Eu me deixei cair. Clay
não estava ali para me receber. Quando me virei o vi correndo para a porta da recepção. Ia gritar seu nome,
pensei melhor e em vez disso corri e o empurrei. Caímos ao chão justo diante da porta do primeiro quarto.
O álbum escapou de minhas mãos e bateu sob o queixo dele com força.
– Opa – disse–. Sinto muito.
– Quase soa como se o dissesse a sério – grunhiu, com o álbum em uma mão –. Voltou por causa disso?
– Necessito-o.
Murmurou algo. Não pude escutar o que disse e provavelmente tampouco queria fazê-lo. Seguíamos
escancarados no caminho, eu em cima dele. Elevei a cabeça para escutar. Alguém saiu ao balcão no quarto
de Blanc. Escutei o rangido do corrimão quando a pessoa se inclinou, olhando o estacionamento. Mas nós
estávamos ocultos a seu olhar.
– Psiu – sussurrei.
– Já sei – moveu os lábios em silêncio.
Moveu-se debaixo de mim, levando suas mãos a meu traseiro. Não era uma posição incômoda – não é
que quisesse estar ali – mas dadas às circunstâncias... Ai; não importa.
– Assustou-me – sussurrou.
Levou uma mão a minha cabeça, empurrou-me para ele e me beijou. Fechei os olhos e o beijei. Afinal de
contas, se tínhamos que estar deitados no caminho em frente a um hotel, ao menos teríamos que estar
fazendo algo que pudesse explicá-lo, verdade? Passado um minuto vi que seus olhos se moviam para a
direita e se fechavam um pouco. Afastei-me, e ele saiu de abaixo de mim e centrou o olhar colérico em uma
pessoa as minhas costas. Olhei sobre o ombro e me encontrei com a mulher que nos viu discutir antes.
Estava de novo junto a sua porta, tomando uma lata de Coca Diet, olhando o espetáculo.
– Quer carinhos também? – disse Clay, ficando de pé e sacudindo sua roupa.
– É um país livre – respondeu a mulher.
Clay tinha pouca paciência com os humanos em geral, mas ainda menos com humanos que invadiam sua
privacidade e não sabiam como justificar-se. Apertou os dentes e passou junto a mim. Deteve-se de costas
para mim, olhando à mulher. Levou um segundo. Os olhos da dama em questão se arregalaram, retrocedeu
e fechou a porta com uma batida e com ferrolho. Clay não lhe disse nada. Só lhe deu seu olhar de pura
malevolência que nunca deixou de fazer fugir aos humanos. Tentei aperfeiçoar o olhar uma vez. Quando
acreditei que já o tinha obtido, provei-o com um idiota que me incomodava sempre em um bar. Em vez de
assustá-lo, os motores aceleraram mais ainda. Aprendi minha lição. As mulheres não podem com a
malevolência.
A esta altura o que saiu ao balcão de Blanc já não estava ali. O passo seguinte poderia ser que descesse
para olhar ali fora, dado que Marsten e Cain poderiam cheirar que Clay e eu estivemos no quarto de Blanc e
provavelmente suporiam que não tínhamos saído há muito tempo. Empurrei Clay para frente e fomos pelo
caminho, grudados ao edifício. Cruzei os dedos com a esperança de que não saíssem. Não é que não
pudéssemos escapar. Podíamos fazê-lo. Mas Clay não o faria. Se viessem e o vissem, não ia correr.
Por sorte demos a volta ao edifício e pudemos ir sem que nos vissem. A volta até o automóvel foi rápida.
Em menos de vinte minutos retornávamos a Stonehaven em busca de reforços.
SINCRÔNICO
– De maneira nenhuma – disse Jeremy, levantando-se de sua cadeira para ir para perto da lareira.
Estávamos todos no escritório. Os outros estavam nos esperando. Clay e eu estávamos sentados no sofá,
Clay na borda, preparado para saltar imediatamente nem bem Jeremy dissesse que podíamos ir atrás dos
vira-latas. Nick estava parado junto a Clay, tamborilando com os dedos no respaldo do sofá, igualmente
ansioso, mas esperando que Clay lhe desse a ordem. Peter e Antônio estavam sentados no outro lado da
sala. Os dois pareciam cheios de fúria pelas novidades, mas se mantinham compostos, graças ao maior
controle que lhes davam a idade e a experiência-.
– Não posso acreditar que me perguntaram isso – continuou Jeremy–. Os dois foram quando
expressamente proibi Clayton de ir atrás desse vira-lata. Depois Elena me liga para dizer que só estão
tentado averiguar como seguiu o de ontem à noite e de algum modo terminam...
– Não foi intencional – disse –. Mas encontramos o rastro. Não podíamos deixar a oportunidade passar.
Jeremy me deu um olhar que me aconselhava a fechar a boca antes que me complicasse mais. Fechei-a.
Jeremy voltou para junto de sua cadeira, mas não se sentou.
– Ninguém vai atrás destes três esta noite. Estamos todos exaustos e nervosos pelo que aconteceu ontem
à noite, especialmente vocês dois. Se não tivesse acreditado no que Elena me disse quando ligou, teria ido
para lá esta tarde para trazê-los de volta.
– Mas não fizemos nada – disse Clay, ficando de pé.
– Só porque não tiveram oportunidade.
– Mas...
– Ontem tínhamos um vira-lata no povoado. Hoje está morto e apareceram mais três. Não só isso, mas
também dois dos quatro é Karl Marsten e Zacary Cain, dois vira-latas que já dariam bastantes problemas
cada um de seu lado.
–Estão totalmente seguros de que eram Marsten e Cain? – perguntou Antônio –. São os dois vira-latas que
dificilmente consigo imaginar juntos. O que teriam em comum?
– Os dois são vira-latas – disse Clay.
– Eu suspeito que não estejam associados em equipe – disse –. Marsten deve ter dominado Cain por algum
motivo. É claramente uma relação de líder e seguidor. Karl quer o território. Faz anos que o quer.
– Se quiser o território, tem que unir-se à Matilha disse Jeremy.
– Caralho – cuspiu Clay –. Karl Marsten é um ladrão, um trapaceiro filho da puta que cravaria uma adaga
nas costas de seu pai para conseguir o que quer.
– E não se esqueçam dos novos recrutas – disse –. Brandon e Le Blanc são assassinos. Humanos assassinos.
Alguém – provavelmente foi Marsten – encontrou-os, mordeu-os e os treinou. Está formando um exército
de vira-latas. E não é qualquer vira-lata, a não ser pessoas que sabem espreitar e matar. Sabem fazê-lo e
gostam.
Antônio sacudiu a cabeça.
– Mesmo assim não imagino Marsten detrás disto. Que seja parte do assunto sim. Mas isso de criar novos
vira-latas, não é... fino. E recrutar Cain? Esse tipo é um idiota. Desequilibrado, mas idiota. São muitas as
possibilidades de que faça desastres. Marsten sabe disso.
– O que importa, caralho! – disse Clay, explodindo em seu assento –. Temos três vira-latas no povoado.
Um deles matou Logan. Como podem ficar aí sentados discutindo as motivações dos caras e...?
– Sente-se, Clayton – disse Jeremy com voz contida.
Clay ia se sentar, depois se deteve. Por um instante ficou ali, com dois instintos batalhando em seu interior.
Então apertou os punhos. Endireitou-se, virou-se, e foi para a porta do escritório.
– Se for, não volte – a voz de Jeremy era pouco mais que um sussurro, mas deteve Clay –. Se não puder
controlar o impulso, Clayton, então vai para baixo, à jaula. Prenda-se até que passe. Mas se o problema é
que não quer se controlar e for, então não será bem-vindo aqui.
Jeremy não queria dizer isso. Bom, sim, mas não como soou. Se Clay fosse e Jeremy o tinha ameaçado
desterra-lo, teria que fazê-lo. Mas não deixaria Clay ir sem lutar. A ameaça era a melhor maneira de evitá-
lo. Clay ficou ali, com a mandíbula movendo-se como se mastigasse a fúria e as mãos apertadas aos flancos,
prontas para golpear a alguém ou a algo. Mas não se moveu. Não o faria. O desterro seria a morte para
Clay, não por forças exteriores, a não ser internas, a morte lenta de separar-se daquilo no que mais
acreditava. Nunca deixaria ao Jeremy ou à Matilha. Eram sua vida. Era o mesmo que Jeremy o ameaçar de
morte se fosse atrás dos vira-latas.
Lenta e deliberadamente, Clay se virou para Jeremy. Seus olhares se encontraram. Depois Clay saiu pela
porta, para a esquerda, não para a garagem ou a porta da frente à não ser para o fundo da casa. A porta de
atrás se abriu e logo se fechou com uma batida. Olhei para Jeremy e logo segui Clay.

Segui Clay para o bosque. Caminhou até que já não podiam nos ver nem nos escutar da casa e então
golpeou a árvore mais próxima com seu punho, sacudiu-se e gemeu. Voaram gotas de sangue.
– Não podemos deixar que Cain e Marsten saiam com a sua. – disse–. Não podemos deixar que acreditem
que retrocedemos. Temos que agir. Agora.
Não disse nada.
Virou-se para me olhar.
– Está equivocado. Estou tão seguro de que se equivoca.
Fechou os olhos e respirou fundo, com o rosto decomposto. Mesmo a idéia de questionar ao Jeremy o
transpassava até a alma como a pior traição possível.
– Tem razão – continuou Clay logo depois de um instante –. Não estamos preparados. Mas não posso ficar
quieto enquanto o assassino de Logan anda por aí, sabendo que os vira-latas poderiam atacar você ou ao
Jeremy. Ele tem que saber disso.
Não disse nada, sabendo que não procurava uma resposta, que só tentava entender as coisas por si
mesmo.
– Caralho! – gritou ao bosque –. Caralho, caralho, caralho!
Novamente golpeou com o punho a árvore mais próxima. Passou a mão por seus cachos e películas
vermelhas de sangue seco se esparramaram por seus cabelos dourados. Fechou os olhos, seu peito subia e
baixava convulsivamente. Depois soltou o ar, tremendo, e me olhou. Em seus olhos brilhavam a ira frustrada,
mesclada com o medo.
– Estou tentando, carinho. Sabe que tento. Tudo em mim grita para que vá atrás deles, que os cace, que
destroce a garganta deles. Mas não posso desobedecer a ele. Não posso.
– Sei.
Aproximou-se de mim, abraçou-me, sua boca sobre a minha. Seus lábios tocaram os meus levemente,
experimentando, esperando ser rechaçado. Eu podia sentir o sabor de seu pânico, sua luta por controlar os
instintos que bramavam em seu interior com mais força que algo que eu pudesse imaginar. Abracei-o,
subindo as mãos até enredá-las em seus cabelos, aproximando-o de mi. Um gemido de alivio o sacudiu.
Deixou cair o manto de controle e me pegou, me empurrando contra uma árvore.
Rasgou minha roupa, arranhando minha pele com suas unhas ao me tirar a camisa e as calças. Eu não
conseguia abrir seus jeans, os dedos torpes porque me contagiei com seu desespero como fogo. Ele baixou
seus jeans e os lançou longe.
Seus lábios voltaram para meus e me machucaram. Enredei a mão em seus cabelos, atraindo-o para mim.
Lançou um gemido rouco. Suas mãos percorreram meu corpo nu, amassando, agarrando, meus quadris,
minha cintura, meus seios. A casca da árvore se cravou em minhas costas. Quando seus dedos chegaram ao
meu rosto, cheirei o sangue em suas mãos, senti que voltava a sangrar e seu sangue caía sobre minhas
bochechas quando me acariciou a face. O sangue gotejou sobre nossos lábios e eu o saboreei, metálico e
familiar.
Sem aviso, suas mãos caíram em cima de meu traseiro, me levantando do chão e me colocando sobre sua
cintura. Grunhiu ao deslizar-se dentro de mim. Meus pés penduravam no ar e ele ficou no controle. Golpeou
contra mim. Seus olhos, fixos nos meus, pareciam me atravessar cada vez que empurrava. Do interior de seu
peito saiu um grunhido rítmico de desejo desesperado. Seus dentes apertados. Quando seus dedos se
afundaram em meus quadris, senti que a borda de sua aliança de casamento me cortava. Então seus olhos
se nublaram. Vacilou e seu corpo se sacudiu convulsivamente. Lançou um gemido baixo e sem fôlego e
depois foi diminuindo o ritmo, afundando o rosto em minha clavícula, e suas mãos subiram para proteger
minhas costas da árvore. Continuou movendo-se lentamente dentro de mim, ainda duro. Ainda não tinha
alcançado o clímax. Era uma liberação de outro tipo, uma diminuição repentina da violência que o tinha
atravessado.
Suas mãos acariciaram minhas costas e me apertaram contra ele. Com seu rosto ainda esmagado contra
mim, sussurrou:
– Amo você, Elena. Amo tanto você.
Abracei-o, colocando meu nariz em seu ouvido e murmurando sons sem palavras. Sem deixar de mover-
se dentro de mim, separou-me da árvore e deu um passo para trás e foi se deixando cair ao chão comigo em
cima dele. Envolvi-o com minhas pernas, depois me elevei no ar e baixei, retomando o ritmo. Inclinei a
cabeça para trás, fechando os olhos e sentindo o ar fresco da noite no rosto. Podia escutar a voz de Clay,
como se viesse de muito longe, repetindo meu nome. Escutei-me responder, dizendo seu nome ao bosque
silencioso. O clímax veio lento, quase lânguido, cada onda me atravessou com gloriosa singularidade. Senti
seu clímax, igualmente lento e descendente, e seu gemido de liberação compassado com o meu.
Levantou os braços e me esmagou contra seu peito, afundando minha cabeça sob seu queixo. Por um
longo tempo não nos movemos. Eu fiquei ali, escutando os batimentos de seu coração e aguardando o
temido momento que voltássemos à realidade. Aconteceria. Abriria-se a bruma do amor e ele diria algo,
faria algo, exigiria algo que nos lançaria rugindo um contra o outro. Senti-o engoli, sabia que sairiam as
palavras e desejei poder tampar os ouvidos para não as escutar.
– Queria correr – disse brandamente.
Fiquei silenciosa um momento. Não estava segura de havê-lo escutado bem. Esperava uma nova frase.
– Correr? – repeti.
– Se não estiver muito cansada.
– Ainda precisa tirar a tensão?
– Não. Só quero correr. Fazer algo. Algo contigo.
Vacilei e logo assenti. Ficamos mais alguns minutos antes de nos levantar para procurar um lugar onde
Trocar.
Fi-lo lentamente e a Mudança me resultou surpreendentemente fácil. Depois fiquei parada na clareira e
me alonguei, girando a cabeça, movendo as orelhas, estirando minhas patas traseiras e agitando a cauda.
Sentia-me gloriosamente bem, como se não tivesse Trocado por longas semanas. Pisquei para habituar a
visão à escuridão. O ar cheirava deliciosamente e o inalei ávida, até encher meus pulmões, para exalar depois
e ver como saíam apenas algumas brumas de condensação de meus orifícios nasais.
Estava para voltar à clareira quando senti um golpe forte no flanco que me jogou no ar. Vi um fulgor
dourado, logo me encontrei de novo só com um leve vestígio do aroma de Clay como única companhia.
Fiquei de pé com desconfiança e dei alguns passos. Nada aconteceu. Inclinei a cabeça e farejei. Nada ainda.
Dei mais três passos e novamente me golpeou, caí de flanco contra um arbusto, sem ver um cabelo sequer
de meu atacante.
Esperei, recuperei o fôlego, depois fiquei de pé e comecei a correr. Detrás de mim, escutei Clay aparecer
de novo na clareira e uivando ao não ver sua presa. Corri mais rápido. O chão castigava minhas garras e a
adrenalina percorria todo o meu corpo. Detrás de mim senti que Clay atravessava os arbustos. Virando,
lancei-me no meio de umas plantas e me deixei cair. Uma mancha dourada passou. Fiquei de pé de um salto
e comecei a voltar por onde tinha vindo. Clay levou alguns segundos para perceber, mas logo pude escutar
que voltava a me perseguir.
Na vez seguinte que saltei para um lado do caminho, devo ter demorado um milésimo de segundo a mais,
permitindo que ele visse por um instante minhas patas traseiras ou minha cauda. Acabava de me agachar
detrás de um arbusto, quando seus cem quilogramas de músculos caíram sobre mim. Lutamos alguns
minutos, ladrando e grunhindo, mordendo e chutando. Consegui colocar meu focinho sob a garganta dele e
lançá-lo para trás e logo me pus de pé. Dentes afiados prenderam minha pata traseira e a retorceu, me
fazendo rodar. Clay saltou e me apanhou. Ficou um minuto em cima de mim, com seus olhos azuis
triunfantes. Então, sem aviso, saltou e se foi correndo para o bosque. Agora eu devia persegui-lo.
Persegui Clay uns oitocentos metros. Saiu do caminho em um ponto e tentou me perder no matagal do
bosque. O truque lhe deu uma vantagem de dez metros, mas não mais. Esperava outro ardil quando uma
pequena sombra saiu correndo na clareira adiante. A brisa me trouxe o aroma do coelho. Clay diminuiu sua
velocidade e girou para tentar cercar os dois coelhos que fugiam. Eu acelerei, estiquei-me e saltei sobre as
costas dele. Muito tarde. Já não estava.
Ao recuperar o equilíbrio, ouvi um chiado agudo que cortava o silêncio, seguido de uma forte crac6. Em
segundos, Clay voltou através dos arbustos, o coelho morto pendurando em suas mandíbulas. Olhou-me e
sacudiu o coelho, seus olhos transmitiam a mensagem: Quê-lo? Ao sacudir o coelho, fez cair sangue no chão.
O aroma me chegou misturado com o da carne quente. Dei um passo adiante, farejando. Meu estômago
lançou um gemido. Ele fez um som no fundo de sua garganta, um meio grunhido que quase soava como uma
risada e afastou o coelho de mim. “Não faça brincadeiras”, disse-lhe com a fúria de meu olhar. Fez de conta
que me lançaria o coelho, mas não o soltou. Rugindo, equilibrei-me sobre ele. Balançando para trás, com o
coelho suficientemente perto de mim para que seu aroma me alagasse o cérebro e fizesse meu estômago
retorcer. Dirigi-lhe um olhar de desconsolo e logo olhei o bosque. Havia muito jantar por ali.
Quando ia, Clay jogou o coelho a meus pés. Olhei-o, e logo a ele, à espera de outro truque. Ele em troca
se sentou e esperou. Olhei-o, depois mordi o coelho e engoli a carne quente. Clay se aproximou e se esfregou
contra mim, lambendo o sangue que manchava meu focinho e meu pescoço. Parei de comer o suficiente
para lhe agradecer com uma carícia de meu focinho. Quando voltei a comer, ele correu de volta ao bosque
6
Crac= som que se faz ao quebrar algo.
em busca de seu próprio jantar.

Quando despertei na manhã seguinte, estava deitada sozinha na grama coberta de orvalho. Levantei-me
e olhei ao redor em busca de Clay. A ultima coisa da qual recordava era ter Trocado novamente. Logo nos
aconchegamos para dormirmos. Estendi a mão e toquei ao meu lado o lugar seco onde ele esteve, para me
convencer de que tinha estado ali. Ao olhar ao redor da clareira vazia, atravessou-me um toque de
ansiedade. Clay não me deixava assim. O problema geralmente era me desfazer dele. Ao me levantar senti
água fresca caindo em minha cabeça. Vi Clay parado sobre mim, sorridente. Caía água de suas mãos.
Continuava nu; não nos incomodamos em procurar nossa roupa na noite anterior; sem saber muito bem
aonde a tínhamos deixado ou mesmo se estavam em condições de serem usadas novamente.
– Procurava-me? – perguntou, deixando-se cair junto a mim.
– Pensei que essa matilha de cães selvagens poderia ter encontrado você.
– Parecia preocupada.
– Estava. Deus sabe a indigestão que poderia dar a essas pobres criaturas.
Riu e ficou em quatro patas, enquanto me empurrava ao chão e me beijava. Beijei-o, enredando minhas
pernas nas dele, e retirei em seguida os pés ao sentir os seus gelados e molhados.
– Fui ver o lago – disse Clay antes que eu perguntasse –. Pensei que podíamos ir nadar. Pela primeira vez
nesta estação. Terminaríamos de despertar.
– Há comida lá?
Riu.
– Não bastou o coelho ontem à noite?
– Nem de longe.
– Bom, então este é o trato. Se não puder esperar, comemos e depois nadamos. Se não, vem nadar comigo
agora e eu prepararei o café da manhã depois, algo, tudo o que você queira.
Não vacilei muito antes de aceitar a segunda opção. Não porque quisesse que alguém preparasse meu
café da manhã, mas sim porque sabia que se fossemos primeiro para casa, não iríamos nadar. Aconteceria
algo. O mundo real destruiria este mundo de fantasia que construímos com tanto cuidado desde ontem à
noite. Não queria que se acabasse. Algumas horas mais, um pouco mais de tempo para fazer de conta que
realmente podia ser assim, Clay e eu juntos como amantes e companheiros de brincadeiras, sem passado
nem futuro que interrompesse nossa utopia.
Quando disse que "sim" a nadar primeiro, Clay sorriu e me beijou ficando de pé de um salto.
– Uma corrida? Quem chegar primeiro joga o outro na água? Fiz de conta que pensava, e então me pus de
pé e fugi. Cinco segundos mais tarde, percebi que escolhi o caminho errado ao ouvir Clay correndo no meio
dos arbustos a minha esquerda. E embora girasse para ali, foi muito tarde. Ao chegar correndo a clareira em
torno do lago vi Clay parado na borda alta do norte, sorridente.
– Perdeu, carinho? – Disse.
Fui para ele, arrastando o pé direito.
– Malditas trepadeiras – murmurei –. Acredito que torci o tornozelo.
Alguém pensaria que passados tantos anos ele saberia que o enganava. Mas quando cheguei à borda, se
aproximou cheio de preocupação. Esperei que se agachasse para olhar meu tornozelo e o lancei à lacuna.

Uma hora mais tarde íamos tropeçando para a casa, ainda nus, sem nos dar conta e sem nos importar.
Logo depois de nadar fizemos amor à beira do lago, assim ficamos como se tivéssemos lutado no barro, o
que era verdade em certo sentido. Lavamo-nos rapidamente na lacuna, mas Clay ainda tinha barro em uma
bochecha. Isso o fazia parecer-se como um menino travesso, além disso, havia o fulgor em seus olhos e o
sorriso perdurável que se transformava em risada cada vez que tropeçávamos com algo pelo caminho.
-– Panquecas, não é verdade? – disse enquanto me ajudava a parar depois que tropecei em uma raiz
oculta.
– Começando pelo primeiro. Nada de atalhos.
– E presunto, suponho. Que mais?
– Um bife.
Riu e pôs seu braço em minha cintura quando o caminho se fez suficientemente largo para que
caminhássemos ao mesmo tempo.
– Bife? Para o café da manhã?
– Disse que podia comer o que quisesse.
– Um pouco de fruta para equilibrar a comida?
– Não, mas pode procurar bacon. Bacon e ovos.
– Posso me atrever a pedir que me ajude com a comida?
– Eu farei o café.
Voltou a rir.
– Muito obri...
Deteve-se. Tínhamos chegado ao limite do bosque e entramos no pátio traseiro. Ali, a menos de quinze
metros, estava Jeremy... rodeado de cinco ou seis rostos humanos pouco conhecidos, todos os quais se
deram viraram no instante em que saímos do bosque. Clay grunhiu e ficou diante de mim para cobrir minha
nudez. Jeremy se virou rapidamente e levou o grupo para um lado. Demoraram uns segundos para se
moverem e alguns mais para deixar de olhar.
Quando os visitantes desapareceram pelo lado da garagem, peguei Clay pelo braço e corremos para a
porta de atrás, sem parar até chegar à cima. Antes que ele pudesse dizer algo, empurrei-o em seu quarto e
entrei no meu. Só tinha conseguido pôr minha roupa íntima e um sutiã quando escutei que a porta do Clay
se abria. Pensando que iria descer para enfrentar aos intrusos fui até minha porta e a abri. Mas ele estava
ali.
– Ei – disse, sorridente–. Se estiver tão ansiosa para que entre em seu quarto, oferecerei-me para fazer o
café da manhã mais freqüentemente.
– Estava... não está... está bem?
– Muito bem, carinho. Vim buscar você para o café da manhã enquanto Jeremy se desfaz de nossos
visitantes não convidados. Inclinou-se para frente, pôs uma mão em minhas costas e me beijou. – E não, não
vou sair para ajudá-lo. Estou com muito bom humor para deixar que um montão de humanos me arruínem
isso. Jeremy pode dirigi-los.
– Que bom – disse, pondo os braços em volta de seu pescoço.
– Alegro-me de que o passe. Assim vamos preparar o café da manhã, então podemos imaginar algumas
maneiras de nos distrair até que Jeremy esteja disposto a nos revelar seus planos para o Marsten e Cain.
Quando se inclinava para me beijar novamente, alguém pigarreou na porta. Olhei por sobre o ombro de
Clay e vi Jeremy com os braços cruzados e um leve sorriso.
– Lamento interromper – disse – mas necessito de Elena lá embaixo. De preferência vestida se é que
queremos nos desfazer alguma vez destes homens.
– Sim, senhor – disse, me separando de Clay –. Vou em seguida.
– Um momento – disse Clay quando Jeremy saía do quarto – preciso falar com você.
Saíram. Pude escutar Clay que pedia desculpas por sua conduta na noite anterior, mas rapidamente deixei
de escuta; para não me intrometer. Terminei de me vestir, passei um pente nos cabelos, olhei-me ao espelho
e logo saí ao corredor. Jeremy e Clay continuavam ali.
– Vou fazer o café da manhã – disse Clay, indo para as escadas –. Divirta-se, carinho.
– Estou segura que sim – disse. Ao descer, olhei por sobre o ombro ao Jeremy. –Lamento que tenhamos
andado pelo bosque nus. Não esperávamos visitas.
– Não tinham por que – disse, enquanto me levava para a porta de atrás –. Não tem que pedir desculpas.
Aqui deveria poder ir e vir como quisesse. Estes malditos intrusos... –Sacudiu a cabeça e não terminou.
– O que aconteceu desta vez?
– Outra pessoa desaparecida.
– O moço do outro dia?
Jeremy sacudiu a cabeça e abriu a porta para que eu passasse.
– Esta vez se trata de um dos homens que encontramos em nossa propriedade na quinta-feira. O homem
amaduro. O líder.
– Está desaparecido?
– Não só desaparecido, há mais, além disso, acontece que ele deixou uma mensagem para um amigo
dizendo que vinha para cá ontem à noite para investigar outra vez. Algo sobre o lugar lhe incomodava.
Queria voltar a olhar.
– Ai, merda.
– Falando sinteticamente.

DESCONFIANÇA
O grupo era conformado por seis pessoas, três policiais locais e três civis. Jeremy, Peter, Nick e eu saímos
para ajudá-los a investigar, enquanto Antônio voltava para casa para vigiar Clay, em caso de que não
mantivesse sua disposição de não interferir. Nós quatro cumprimos o papel de bons cidadãos, sensíveis,
investigando no bosque e por sua vez mantendo o nariz alerta por algo que não quiséssemos que
encontrassem os humanos. Uma coisa que teria preferido que não encontrassem apareceu rapidamente.
– Tenho algo! – gritou um dos homens.
– É Mike – gritou outro, afastando-se correndo.
Quando todos se dirigiram para a cena, a voz do Nick ressoou, abafada pela risada apenas contida.
– Esqueçam. Não... não é nada importante.
– Que caralho quer dizer? – disse o primeiro homem. – Possivelmente para você isto seja uma brincadeira,
filho, mas...
O resto da oração se perdeu quando chegamos à clareira para encontrar a um do grupo olhando uma
camisa rasgada. Havia roupas rasgadas pelo chão e penduradas nos arbustos. Nick levantou uma calcinha
branca e sorriu para mim.
– Cães selvagens? Ou foi Clayton?
– Ai, Deus – murmurei.
Fui tirar a calcinha dele, mas a sustentou sobre sua cabeça, Sorrindo como um menino.
– Vejo Paris, vejo a França, vejo a calcinha da Elena – cantarolou.
– Todos viram muito mais que isso – disse Jeremy –. Acredito que podemos continuar com a busca.
Peter tirou a camisa de Clay de um galho e a levantou para poder olhar através de um buraco que tinha
no meio.
– Caralho; vocês sim sabem fazer um estrago. Onde está a câmara oculta quando alguém a necessita?
– Assim, quem fez isto não foram os cães selvagens? – perguntou um dos participantes do grupo.
Peter sorriu e deixou a camisa cair.
–Não. Só hormônios selvagens.
Os outros homens, que finalmente tinham deixado de me olhar de soslaio depois do incidente em que me
viram “nua no pátio”, agora me olhavam com renovado interesse. Sorri, me esforçando para não lhes grunhir
e logo voltei rapidamente para o bosque.

Jeremy, dois participantes do grupo e eu estávamos revistando os arbustos no quadrante nordeste do


bosque quando escutamos um grito, esta vez tão urgente que corremos para lugar. Quando chegamos, Nick
e dois do grupo estavam junto a um corpo. Nick elevou os olhos e me deu um olhar que dizia que tentou
evitar que os homens viessem a este lugar. Jeremy e eu fomos para junto do corpo e o olhamos. Era o homem
desaparecido. Sua camisa estava rasgada na gola e cheia de sangue. Tinha a garganta aberta, com rasgões
na carne. As conchas vazias onde estavam seus olhos nos olhavam. Os corvos o tinham encontrado ou os
abutres antes que nós. Além dos olhos, tinham-lhe bicado o rosto e deixado buracos sangrentos através dos
quais se via o osso branco. Sua camisa e sua cabeça estavam rodeadas de pedaços de carne, como se as
pessoas tivesse espantado as aves de rapina quando se davam seu festim.
– Igual aos outros – disse um homem e logo deixou de olhar.
– Há uma diferença – disse outro –. Não o comeram. Pelo menos não os cães. Suponho que o fizeram os
pássaros; os filhos da puta não perderam tempo.
Um homem mais jovem de repente se virou e correu ao bosque. Segundos mais tarde o ouvimos vomitar.
Dois dos homens sacudiram a cabeça em uma expressão de comiseração, e os dois pareciam também um
pouco verdes. Meu estômago tampouco estava de tudo bem, embora isso não tivesse nada que ver com o
cadáver. Quando o homem mais jovem terminou de vomitar, ficou calado um momento e depois saiu
correndo da mata.
– Venham! Têm que ver isto!
Sabia o que tinha encontrado. Sabia e temia entrar na mata para confirmar minhas suspeitas, mas Jeremy
me empurrou para frente. Quando me coloquei entre as árvores, o aroma do vômito me provocou mais
nauseias. Logo olhei para o chão, seguindo a direção que indicava o jovem com o dedo. No chão úmido havia
rastros de um animal.
– Olhem o tamanho – disse o jovem –-. Deus, são grandes como pratos. Como disseram esses meninos.
Estes cães são imensos!
Ao observar as árvores, consegui ver algo em um espinheiro. Um pouco de cabelo dourado que brilhava
inclusive à sombra. Enquanto todos os outros olhavam os rastros, fui até o arbusto, parei diante dele, estendi
a mão para trás e coloquei o cabelo em meu bolso. Logo procurei a ver se havia mais. Como não encontrei,
olhei os rastros, tão reconhecíveis como os rastros de um par de sapatos familiares. Ao olhá-los me senti
mal. Depois a desilusão se converteu em outra coisa. Fúria.
–Tenho que ir – murmurei enquanto começava a me afastar.
Ninguém tentou me deter. Os humanos supuseram que era uma reação demorada por causa do cadáver
e a Matilha não queria fazer escândalo.

– Clayton! – gritei ao deixar que a porta se fechasse detrás de mim.


Clay apareceu na porta da cozinha, com uma colher de madeira na mão.
– Não demoraram muito. Vem e faz o café.
Não me movi.
– Não vai perguntar se encontraram o homem desaparecido?
– Isso implicaria que me importa.
– Encontraram-no.
– Alegro-me, assim irão embora. Muito melhor. Agora vêem e...
– Encontrei isto junto ao corpo – disse, tirando os cabelos de meu bolso.
– Parecem que são meus.
– São teus. E seus rastros também estavam ali.
Clay se apoiou no marco da porta.
– Meus cabelos e meus rastros no bosque. Que curioso. Espero que não esteja insinuando o que acredito,
carinho, porque se o recorda, eu estive contigo toda a noite, que é quando Tônio diz que desapareceu este
tipo.
– Não estava comigo esta manhã quando despertei.
Clay quase deixou a colher cair.
– Sai cinco minutos! Cinco minutos para rastrear a um tipo e matá-lo? Sou bom, mas nem tanto.
– Não tenho idéia de quanto tempo foi.
– Sim sabe, porque estou dizendo isso a você. – Os vestígios de bom humor desapareceram do rosto de
Clay ao se aproximar de mim.
– Não o fiz. Usa a cabeça, Elena. Se tivesse perdido o controle e matado a esse tipo diria isso a você. Teria
pedido a você que me ajudasse a me desfazer do corpo e a decidir o que dizer ao Jeremy. Não estaria pulando
no lago enquanto houvesse um humano em nosso bosque, à espera que o encontrasse outro grupo de
caçadores.
– Acreditou que tinha mais tempo. Pensava em ocultar o corpo mais tarde, logo depois de me tirar dali.
–Isso é mentira; sabe. Não oculto nada de você. Não minto para você. Não engano você. Nunca.
Adiantei-me com o rosto para cima.
– Sério? Não sei por que esqueço a discussão que tivemos antes que me mordesse, quando me disse o
que pretendia fazer. Suponho que é uma amnésia conveniente.
–Não o planejei – disse Clay, erguido diante de mim. A colher de madeira se quebrou em duas quando
apertou o punho. – Já falamos disso. Senti pânico...
–Não quero ouvir suas desculpas.
–Nunca as quis ouvir, não é verdade? Ou melhor, quer falar de coisas que não fiz, e depois coloca isso no
meio quando aparece a oportunidade. Por que me incomodo em me defender? Você já sabe tudo o que
faço e não faço e os motivos. Nada que eu diga pode mudar isso.
Virou-se e voltou para a cozinha. Eu girei em sentido contrário, caminhei até o escritório e fechei a porta
com um golpe.

Sentada no escritório, notei surpresa que não tinha o impulso de fugir. Minha briga com Clay não me
deixou com o impulso irresistível de escapar de Stonehaven. O que aconteceu ontem à noite foi um engano,
do qual aprendi algo. Baixei a guarda, cedendo a meu desejo inconsciente de voltar a ficar com Clay. E o que
aconteceu? Em poucas horas estava mentindo. No mesmo momento em que estávamos no bosque,
enquanto eu dormia, ele dava rédea solta a seu lado mais escuro. Não mudaria. Não podia mudá-lo. Era
violento, egoísta e não se podia confiar nele. Foi necessária uma noite para voltar a me dar conta disso, e
valeu a pena.

Uns vinte minutos mais tarde, abriu-se a porta do escritório e Nick olhou ao interior; Eu estava encolhida
na poltrona. Quando abriu a porta me endireitei.
– Posso entra? – perguntou.
– Cheiro comida. Se a compartilha é mais que bem-vindo.
Entrou no escritório e pôs um prato de panquecas e presunto no banquinho. As panquecas não tinham
nem manteiga nem xarope de arce.
Peguei uma e a engoli muito rápido para lhe sentir o gosto, para não recordar quem as tinha feito e por
que.
– Acabou-se? – perguntei.
Nick se deixou cair no sofá e se estirou.
– Quase. Chamaram mais policiais do povoado. Estão lá agora. Jeremy e Peter me enviaram.
Antônio atravessou a porta.
– Estão investigando? – perguntou enquanto tirava as pernas de seu filho de cima do sofá para sentar-se.
Nick deu de ombros.
– Suponho que sim. Trouxeram câmaras e uma bolsa de coisas. Vem alguém do necrotério procurar o
corpo.
– Crê que encontrarão algo? – perguntou-me Antônio.
– Com sorte, nada que não vincule o assassinato a um cão selvagem – disse –. Se parecer claro,
provavelmente fechem a investigação rapidamente e dediquem seus esforços a encontrar os cães. Não tem
sentido procurar evidências quando os pressupostos assassinos nunca irão a julgamento.
– Tão somente um disparo de escopeta –disse Antonio –. Se virem o mínimo sinal de uma pelagem no
bosque, vão atirar. Quando precisarmos correr, vamos ter que encontrar algum lugar longe daqui e de Bear
Valley.
–-Caralho – disse Nick, sacudindo a cabeça –-. Quando soubermos quem é o responsável, vai pagar por
isso.
–- Eu tenho idéia de quem é o responsável.
Tirei o cabelo de meu bolso e o atirei a seus pés. Nick o olhou um momento, confuso. Logo seus olhos
grandes se abriram e me olhou. Evitei seu olhar, para não ver a incredulidade que se desenhariam neles.
Antônio olhou uma vez o cabelo, depois se recostou no respaldo e não disse nada.

Uma hora mais tarde me encontrava outra vez no escritório, enquanto os outros foram cumprir obrigações
menos sedentárias ou em busca de uma companhia mais amável. Sentada ali, meu olhar foi até a
escrivaninha ao outro lado da sala. Estava coberta com as habituais pilhas de papéis e revistas de
antropologia. Fez-me recordar de como conheci Clay, de como me meti nesta confusão. Quando eu era
estudante da Universidade de Toronto, tinha um interesse menor na antropologia. Em meu primeiro ano fiz
um trabalho sobre religiões antropomorfas, que era a especialidade de Clay, e eu estudei suficientes
trabalhos dele para reconhecer seu nome ao ver um aviso de sua série de conferências. Suas aparições
públicas eram tão escassas que já estava coberta a quota de inscrição e eu entrei de penetra. O maior erro
de minha vida.
Não sei o que Clay viu em mim que o fez deixar de lado seu desprezo pelos humanos. Diz que viu em mim
algo que reconhecia em si mesmo. Isso é lixo, é obvio. Eu não era parecida com ele em nada ou, se era, foi
a partir de quando me mordeu. Se tivesse me deixado em paz, eu cresceria, assimilaria o mundo humano e
seria uma pessoa feliz, bem adaptada, que teria deixado para trás toda a carga e a fúria da infância. Estou
segura.
– Sangue – disse Clay, abrindo com tanta força a porta do escritório que a bateu contra a parede e
adicionou mais uma às marcas acumuladas ao longo das décadas. Onde está o sangue?
– Que sangue?
– Se matei ao tipo, haveria sangue em mim.
– Lavou-se no lago. Por isso inventou isso de que foi ver a temperatura da água, para explicar por que
estava molhado.
– Eu inventei? Caralho... – Estive, tomou ar e começou de novo –. Bom, caso tenha me lavado no lago e
decidido que seria mais fácil inventar uma desculpa do por que estava molhado em vez de me secar, mesmo
assim cheiraria a sangue. O aroma não sai tão fácil.
– Já teria diminuído. Teria que estar procurando-o para percebê-lo.
– Bom, faz isso agora. Vamos. – Olhou-me nos olhos. – desafio você.
– Teve muito tempo para se lavar.
– Então vá ver minha ducha. Verifique se estar molhada. Olhe minhas toalhas. Verifique se estão úmidas.
– Já teria ocultado o rastro. Não é tão estúpido.
– Não, só suficientemente estúpido para deixar um corpo no bosque com meus rastros e cabelos por toda
parte. Para que me incomodo? Nada que diga fará você mudar de idéia. Sabe por quê? Porque quer
acreditar. Assim pode se trancar aqui e pensar em quão estúpida foi por me procurar ontem à noite, se
amaldiçoar por ter cedido ante mim, por ter esquecido que monstro eu sou.
– Isso não é o que...
– Não? – Deu um passo para frente. – olhe-me nos olhos e me diga que não é o que esteve fazendo na
última hora.
Olhei-o com ódio e não disse nada. Clay ficou ali ao menos um minuto, logo elevou as mãos e se foi furioso.
No mesmo instante Jeremy entrou. Sem dizer nada, foi até onde estavam os cabelos de Clay, pegou, logo
o deixou e se sentou em sua cadeira.
– Não acredita que ele fez isso, não é verdade? – eu disse.
– Se disser que não, tentará me convencer de que sim. Se disser que sim, usá-lo-á contra ele. Não importa
no que eu acredite. O que importa é o que você acredita.
– Uma vez me consultei com um terapeuta que falava assim. Abandonei-o depois de duas sessões.
– Não tenho dúvida.
Não sabia como responder, assim não o fiz. Em troca fiz de conta que estava enormemente interessada
nos desenhos do tapete turco. Jeremy se recostou em sua cadeira e me olhou um momento antes de
continuar.
– Ligou para ele?
– A quem? – disse, embora soubesse a quem se referia.
– Ao homem de Toronto.
– Tem nome, estou segura de que sabe.
– Ligou para ele?
– Liguei anteontem. Ontem foi um dia um pouco terrível, como recorda, e eu estava preocupada esta
manhã com outras coisas.
–Tem que ligar para ele todos os dias, Elena. Para que saiba que está bem. Não lhe dê nenhuma desculpa
para ligar para cá ou aparecer aqui.
– Só tem o número de meu celular.
– Não me importa. Não pode correr esse risco. Clay sabe que existe, embora tente esquecer-se disso. Não
lhe dê motivo para recordá-lo. E não me acuse de proteger os sentimentos de Clay. Estou protegendo à
Matilha. Não podemos nos dar o luxo de que Clay se distraia pela presença desse homem aqui. E não
podemos nos dar o luxo de que esse homem apareça. Já tivemos visitas suficientes.
– Vou ligar.
– Ainda não. Enviei Nick a convocar uma reunião.
– Pode-me informar logo.
– Uma reunião implica uma reunião do grupo – disse Jeremy –. Uma reunião do grupo implica que se
espera que todos os membros do grupo estejam pressentes.
– O que acontece se não for membro do grupo?
– É enquanto esteja aqui.
– Poderia remediá-lo.
Jeremy levantou os pés e recostou a cabeça contra o respaldo.
– Lindo clima verdade?
– Alguma vez discute algo que não quer?
– É o privilégio da idade.
Soprei.
– É o privilégio do poder.
– Isso também.
Jeremy deu um leve sorriso e seus olhos negros cintilaram. Reconheci o olhar, mas demorei alguns
minutos para entendê-lo. Um desafiou. Esperava que eu reiniciasse um debate que temos desde que me
integrei à matilha. Como pessoa que por um tempo foi humana em uma sociedade democrática, a idéia de
um líder todo-poderoso e inquestionável me incomodava. Quantas noites Jeremy e eu passamos neste
escritório debatendo isto, tomando brandy até que eu estava muito cansada e bêbada para subir para meu
quarto e ficava dormindo aqui, mas despertava mais tarde em minha cama?
Tinha sentido saudades. Inclusive agora, vivendo na mesma casa que ele durante quase cinco dias, sentia
saudades. Todos os outros me deram boas-vindas sem fazer perguntas e sem ressentimentos. Mas Jeremy
não. Não se mostrou inamistoso, mas não agiu como sempre. Mantinha distância, como se não estivesse
disposto a comprometer-se na relação até ter certeza de que eu não ia fugir de novo. O problema é que eu
tampouco estava segura.
Tentei pensar em uma resposta, com o cérebro enferrujado, me esforçando para recordar os argumentos.
Enquanto pensava, os olhos do Jeremy se fecharam e seu sorriso desapareceu. Vi que minha oportunidade
passava e me lancei para pegá-la. Quando abria a boca, pronta para dizer o que me viesse à mente, a porta
se abriu. Os outros entraram e meu momento a sós com o Jeremy se evaporou.

A primeira questão abordada na reunião foi que Jeremy nos proibiu de correr na propriedade até que se
arrumasse a confusão com a polícia. Quando chegasse o momento de correr, iríamos todos aos bosques do
norte. Não tenho nada contra correr em grupo e, em circunstâncias normais, eu adoro correr com a Matilha,
mas nisso de converter uma corrida da Matilha em um evento organizado com prazo fixo havia algo que lhe
subtraía o prazer. Só faltava que alugássemos um ônibus de excursão, levássemos sanduíches e fôssemos
cantando canções de acampamento.
O segundo tema tinha haver com o plano de ação de Jeremy. Novamente Clay não gostava dos planos de
Jeremy. Eu tampouco, mas não fui eu quem se levantou para responder antes que Jeremy terminasse.
– Não pode me deixar aqui – gritou Clay.
Jeremy elevou as sobrancelhas um milímetro.
– Não?
– Não deve. É estúp... Não tem sentido.
– Tem perfeito sentido. E você não é o único que resta.
Queixei-me, mas com calma, em silêncio e para mim mesma, embora os olhos de Jeremy efetivamente
espiassem em minha direção quando o fiz.
Jeremy continuou.
– Não admito que você e Elena venham, quando estão tão confrontados.
– Mas eu não fiz nada! – disse Clay–. Nem sequer me acusaram de matar a esse tipo. Não sabem se o fiz.
Por que me castigar...
– Não é um castigo. Não importa se o fez ou não. Enquanto brigarem entre si, quero-os aqui, onde só
podem causar-se dana um ao outro... e ao mobiliário.
– Por que deixar aos dois? – perguntei.
– Porque não necessito de nenhum dos dois. Não penso em rastrear nem brigar contra ninguém. Só se
trata de reunir informações. Embora não estivessem brigados, provavelmente não os levaria. É um risco
desnecessário. Quero saber mais desses cães. Não quero me apoiar em informações de segunda mão, assim
eu vou e levo Antônio e Peter como respaldo. Nick tampouco virá e não o ouço queixar-se.
– Não soa muito divertido - disse Nick.
Jeremy sorriu.
– Exatamente.
– Mas... – disse eu.
– Já passou da hora do almoço – disse Jeremy, ficando de pé –. Devemos comer antes de ir.
Saiu antes que pudéssemos discutir nada. Essa era provavelmente sua intenção. Quando ele saiu, Fiquei
de pé.
– Acredito que vou preparar algo de comer.
Nick se ofereceu a me ajudar. Pela primeira vez, Clay não o fez. Nem sequer nos seguiu à cozinha.

Depois do almoço, Jeremy, Antônio e Peter se foram em missão de reconhecimento. Essa era a maneira
que Jeremy tinha de conduzir-se ante a bola, com efeito, que os vira-latas jogaram. Não tinha experiência
em enfrentar um ataque de vários vira-latas de uma só vez, então tomava seu tempo, para reunir
informações antes de fazer planos de como íamos agir. No sentido lógico, tinha razão. Mas isso resultava
insatisfatório para as emoções. Eu preferia planejar uma ação direta contra os vira-latas e ao caralho com
os riscos. Por isso Jeremy era o Alfa e eu apenas um soldado.
Quando se foram, voltei a me retirar, esta vez a meu quarto, de onde liguei para Philip. Disse-lhe que
demoraria alguns dias a mais.
Aspirou.
– Bom. – Um momento de silêncio. – Tenho saudades de você.
– Eu…
– Não é que queira fazer você se sentir culpada, carinho. É só que… sinto saudades. Sei que faz o correto
e não pediria a você que abandone seus primos. Só que não pensei que demoraria tanto – Fez uma pausa e
então deu um estalo com a língua. – Já sei. Irei para ai. Que tal manhã? Estou livre.
– Vou fazer meu trabalho no avião.
Apertei o fone enquanto meu cérebro gritava: “merda!" Apertei os dentes e me obriguei a me controlar.
– E perder suas férias? – disse no tom mais leve que pude. – Prometeu-me uma semana no Caribe. Em
unas férias com tudo incluído. Recorda? Eu adoraria ver você, mas se isso significa renunciar a uma semana
de tomar tudo o que possa de álcool e de sol…
Rio.
– Um dia ajudando você a cuidar de três crianças é um mau substituto, não é verdade? Entendo isso.
Possivelmente possa arrumar algo com James, trabalhar no sábado que vem em vez de... Embora pareça
que de todos os modos vou ter que trabalhar no sábado e provavelmente também no domingo.
– Sim. Não continue fazendo acordos ou talvez não possa ver você por várias semanas inclusive depois de
voltar para casa.
– Entendido. Vou sobreviver a alguns dias de solidão. Mas se for mais que isso...
– Não será.
Falamos mais alguns minutos e depois desligamos. Uns dias mais. E não mais que isso. Esta vez não tinha
alternativa. Se não voltasse para Toronto em alguns dias, Philip encontraria uma maneira de que lhe dessem
um dia de folga e apareceria em Nova Iorque. Isso seria... bom, era mais do que me atrevia a pensar.

Quando finalmente cortei a comunicação com Philip, estirei-me na cama e descansei. Cochilei um pouco
para recuperar o sono perdido de duas noites. Mas não funcionou. Preocupei-me com a possibilidade de
que Philip aparecesse em Stonehaven e meu nível de estresse subiu meia dúzia de pontos. Então lembrei
por que continuava em Stonehaven e pensei no Logan. Senti que a dor voltava e me alagava a mente e não
pude pensar em nada mais, especialmente em dormir. Finalmente Nick veio me resgatar; entrou no quarto
sem bater.
– Alguma vez bate? – disse, me endireitando na cama.
– Nunca. Perderia tudo. – Saltou sobre a cama, olhou através das cortinas e sorriu com malícia. – Perdi
algo?
– Tudo.
– Suponho que então eu mesmo terei que iniciar algo – disse – enquanto abria as cortinas e se deixava
cair ao meu lado na cama –. Está-se bem aqui. Há silêncio e é muito privado.
– Perfeito para dormir.
– É muito cedo para dormir. Tenho em mente algo melhor.
– Estou segura que sim.
Sorriu e se inclinou para me beijar, logo evitou minha bofetada.
– Na realidade pensava em outra coisa. Dado que não podemos correr aqui, pensei que possivelmente nós
três poderíamos ir para algum lugar correr esta noite.
– Corri ontem à noite.
– Mas eu não e vou precisar Trocar logo. Começo a senti-lo.
– Então vai com Clay. Não há motivo para irmos os três.
– Já falei com ele. Só vai se você for. Não quer que ninguém fique sozinho aqui, pelas dúvidas de que os
vira-latas ataquem de surpresa.
– Estou segura de que não o fariam... – detive-me ao me dar conta de que não estava tão segura. Só a
idéia me deu calafrios. –Tem que ser esta noite? Foi um dia longo e...
– Pensava em caçar.
– Não estou segura de que...
– Caçar um cervo.
– Um cervo?
Ele riu.
– Agora suas orelhas se levantaram. Quanto tempo faz que não caça nada maior que um coelho? Pelo
menos por sua conta.
– Tem razão – a voz de Clay veio do outro lado das cortinas e nos sobressaltou. Ao me virar, vi sua silhueta,
mas ele não abriu as cortinas.
– Seria uma boa idéia irmos caçar – continuou Clay –. Para nos mantermos ocupados enquanto esperamos
Jeremy. Nick precisa Trocar e não pode fazê-lo aqui. E eu não vou deixar você sozinha, Elena. Estou seguro
de que pode suportar nossa companhia uma ou duas horas.
Abri a boca para responder, mas virou-se e saiu do quarto. Vacilei um momento, logo me virei para Nick
e assenti. Sorriu e saiu trotando do quarto, sabendo que o seguiria.

ESPREITA
Levamos meu automóvel. Nick dirigia. Clay se sentou na frente com ele. Eu me sentei atrás e cochilei pelo
caminho, principalmente para não ter que participar da conversa. Não precisava me preocupar. Clay não
queria falar comigo inutilmente e Nick encheu o vazio tagarelando para quem quisesse escutar.
Nick falava de seu último negócio, algo que tinha haver com o comércio eletrônico e uma nova empresa
que estava financiando. A questão não era se a nova empresa teria êxito, a não ser quanto perderia. As cifras
exatas em dólares não eram importantes, já que os Sorrentino eram suficientemente ricos para que Jeremy
parecesse ser classe média. Antônio tinha três empresas multinacionais. Nick não herdou o toque de Midas
de seu pai. De fato, estava excluído de todos os negócios de Antônio. Nick era um playboy, simplesmente.
Metia-se em uma interminável série de negócios, nos quais não ganhava mais que amigos e amantes, que
era tudo o que queria da vida na realidade. Como reagia Antônio frente a isso? Apoiava-o. Antônio percebeu
que esse estilo de vida era o único ao que seu filho podia adaptar-se, e se o fazia feliz e podiam dar-se esse
luxo, por que não? Eu, que tinha economizado cada centavos a maior parte de minha vida, não podia
entender realmente essa filosofia. Invejava, nem tanto a quantidade de dinheiro, mas sim que Nick tivesse
alguém no mundo que o quisesse tanto e se interessasse tanto por sua felicidade e tão pouco pelo que
obtivesse na vida.

Nick nos levou a um bosque que já tínhamos utilizado; passamos uma entrada e percorremos o caminho
abandonado de uma madeireira, raspando a base do piso do automóvel contra o chão muitas vezes. Meu
automóvel não estava em bom estado, e eu suspeita que embaixo tivesse mais ferrugens que chapa, embora
nunca me decidi a pôr a prova minha teoria. Jeremy se oferecia para restaurá-lo ou comprar outra coisa. Fiz
escândalo suficiente para que nunca se sentisse tentado a "me surpreender" com um automóvel novo ou
restaurado. Não é que me incomodasse arrumar meu Camaro, embora não fosse mais que para prolongar
a vida útil do carro, mas me aterrorizada a idéia de que se eu permitisse que Jeremy colocasse a mão, ele o
mandaria pintar de rosa.
No interior do bosque, Nick parou o automóvel e o deixou com o cambio posto. O motor se desligou com
um som pouco são. Tentei não pensar no assunto, porque podia implicar que não voltaria a funcionar e isso
seria realmente ruim. Estar presa em um bosque do estado de Nova Iorque, fora do alcance do celular, com
um automóvel quebrado e dois tipos que não distinguiam o óleo do anticongelante.
Enquanto entravamos no bosque, Nick continuou falando.
– Logo depois de arrumar este assunto, Devíamos fazer algo. Ir a algum lugar. Tirar umas férias.
Possivelmente na Europa. Clayton tinha que ir esquiar comigo na Suíça este inverno mais não foi.
– Não dei pra atrás – respondeu Clay. Caminhava na frente, abrindo caminho no meio da mata,
possivelmente tentando ajudar, mas o mais provável é que não quisesse caminhar comigo –. Nunca disse
que iria.
– Sim disse. No Natal. Tive que perseguir você para perguntar isso Nick se virou para mim – Mal apareceu
durante toda a semana que a Matilha ficou em Stonehaven. Estava tão enfiado em seus estúpidos livros e
papéis. Esperava que você aparecesse e como não foi assim. Clay lhe dirigiu um olhar e Nick se deteve. Como
é, disse que deveríamos esquiar. Perguntei a você e gritou algo que soava como sim.
– Hmmm.
– Exato. Isso. Bom, não foi realmente um sim, mas tampouco foi um não. Assim me deve uma viagem.
Iremos os três. Aonde quer ir quando acabar tudo isto, Elena?
Ia dizer "a Toronto", mas não o fiz. Rechaçar os planos de Nick quando tentava suavizar as coisas era como
dizer a um filho que Papai Noel não existe porque a gente teve um dia ruim. Não era justo e ele não merecia.
– Veremos – disse.
Clay me olhou nos olhos por sobre o ombro. Sabia exatamente o que queria dizer. Com uma careta de
desgosto, voltou a olhar para frente, tirou um galho do caminho e foi em busca de um lugar para Trocar.
– Não estou segura de que esta seja uma boa idéia – disse ao Nick logo depois que Clay se foi –. Talvez
fosse melhor que eu esperasse no automóvel.
– Vamos. Não faça isso. Pode se descarregar um pouco. Ignora-o.
Concordei com ele. Bom, na realidade não consegui concordar, pois Nick se foi antes que pudesse discutir
isso com ele e ele continuava com as chaves de meu automóvel.

Ignora-o. Bom conselho. Um conselho muito bom. Mas em termos práticos tinha tanto valor como dizer
a alguém que tem medo de altura que não olhe para baixo.
Quando saí do campo logo depois de Trocar. Clay estava ali. Deu um passo para trás, farejando. Logo abriu
a boca com a língua pendurada e com um sorriso de lobo como se não tivéssemos brigado. Por mais que
quisesse, não pude sentir ira, como se a tivesse deixado no mato junto com a minha roupa.
Vigiei-o por um momento, e logo com cautela comecei a me esquivar dele. Tinha quase passado por ele
quando, virou-se e me atacou o flanco, pegando minha pata traseira para me fazer cair. Saltou sobre mim.
Rolamos pelo mato até bater contra uma arvorezinha e fazer fugir a um esquilo para outro lugar mais
seguro, enquanto nos resmungava suas queixa correndo. Quando finalmente consegui escapar, fiquei de
pé e comecei a correr. Detrás de mim, Clay vinha trotando no meio do bosque. Corri uns dez metros e então
ouvi um chiado e logo senti o chão tremer com a queda de Clay. Olhei sobre o ombro para vê-lo mordendo
e puxando uma trepadeira enganchada em sua pata dianteira. Detive-me para me virar e ir buscá-lo, mas
então vi que se liberava e voltava a correr. Percebendo que se aproximava, girei para continuar e me choquei
contra algo sólido, dei uma cambalhota e fui cair sobre umas urtigas.
Elevei o olhar e vi Nick parado sobre mim. Com um grunhido e toda dignidade que pude reunir, fiquei de
pé. Nick deu um passo para trás ou olhou, rindo com os olhos enquanto me desenganchava das urtigas. Pela
extremidade do olho, vi que Clay se aproximava de Nick sigilosamente por detrás. Agachou-se, com a cauda
no ar, e saltou contra Nick, que foi cair sobre as urtigas. Quando Nick lutava para ficar de pé, fui para junto
dele e lhe lancei um bufo: “Merece isso”. Puxou-me pela pata dianteira e me fez cair. Lutamos um minuto
antes que eu conseguisse me liberar e me colocar junto a Clay.
Enquanto Nick tirava as urtigas dele, Clay esfregou seu focinho contra o meu e seu fôlego quente agitou a
pele de meu pescoço. Enquanto o esfregava com meu focinho, uma parte aturdida de meu cérebro me
recordou que estava zangada com ele, mas não podia recordar por que e não me importava. Nick caminhou
em volta de nós, esfregando-se e farejando a modo de saudação. Quando passou um pouco mais de tempo
farejando perto de minha cauda. Clay grunhiu e Nick retrocedeu.
Depois de alguns minutos, separamo-nos e começamos a correr. Clay e eu brigávamos por ir primeiro.
Nick ia ficando para trás contente. O bosque estava cheio de aromas, inclusive de rastros de cervos, mas
eram rastros velhos principalmente. Tivemos que correr uns mil metros antes de perceber o aroma que
procurávamos. Um cervo vivo. Senti uma explosão de energia e corri para frente. Detrás. Nick e Clay me
seguiam no meio do bosque quase em silêncio. Só os delatava o sussurro das plantas mortas sob seus pés.
Então o vento mudou e nos lançou o aroma do cervo à cara. Nick lançou um ganido de excitação e ficou a
meu lado, tentando tomar a dianteira. Atirei-lhe uma dentada, que conseguiu apanhar um pedaço de sua
pele escura enquanto ele se afastava de meu caminho.
Ao me ocupar de Nick, notei que Clay não vinha atrás. Detive-me, depois me virei e caminhei para trás.
Estava parado a uns cinco metros, farejando o ar. Quando cheguei junto a ele. Olhou-me nos olhos e soube
por que se deteve. Já estávamos suficientemente perto. Era o momento de fazer um plano. Pode parecer
bobagem pensar que um cervo é perigoso, mas não somos caçadores humanos que nunca se aproximam
mais de trinta metros de sua presa. Os chifres podem cortar a um lobo. Um casco que bater no alvo pode
destroçar um crânio. Clay tem uma cicatriz de trinta centímetros onde o casco de um cervo bateu nele. Até
os lobos selvagens sabem que caçar um cervo requer cautela e planejamento.
Planejar não quer dizer discutir o assunto, já que a comunicação a tão alto nível é impossível em nossas
formas de lobos. Diferente dos humanos, entretanto, tínhamos algo melhor: o instinto e um cérebro com
padrões de condutas incorporados que davam bons resultados a milhares de gerações. Podíamos avaliar a
situação, recordar um plano e comunicá-lo com o olhar. Ou, ao menos, Clay e eu podíamos fazê-lo. Igual ao
que acontecia com muitos licántropos, Nick não sintonizava as mensagens que lhe enviava seu cérebro de
lobo, ou seu cérebro humano não confiava neles. Não importava. Clay e eu éramos os Alfas ali, de modo
que Nick seguiria nossas ordens sem necessidade de explicações.
Fui para o leste, farejei o ar e voltei a pescar o aroma do cervo. Era um macho solitário. Isso era bom
porque não teríamos que afastar um cervo de uma manada. Mas um macho era mais perigoso,
especialmente na primavera, quando têm os chifres plenamente crescidos. Clay se aproximou e farejei o
cervo, logo me dirigiu um olhar que dizia: “Que diabos, só se vive uma vez”. Soprei concordando e fui para
junto de Nick. Clay não me seguiu. Em troca, voltou a enfia-se no bosque e desapareceu. O plano estava
decidido.
Nick e eu demos uma volta pelo bosque, para nos colocar à contra o vento antes de voltar a seguir o rastro.
Encontramos o macho pastando em um bosquezinho. Enquanto Nick esperava o sinal, esfregou-se contra
mim, gemendo muito baixo como para que o cervo pudesse ouvir. Grunhi no profundo de minha garganta
e se deteve. O cervo levantou a cabeça e olhou ao redor. Quando voltou a pastar, agachei-me e me equilibrei.
O cervo só demorou um milisegundo para saltar alguns arbustos e lançar-se a galopar. Nick e eu o
perseguimos, mas a distância entre nós e o cervo aumentava. Os lobos são corredores de resistência, não
velocistas, e a única possibilidade que tínhamos de alcançar um cervo correndo era indo atrás, era caçá-lo.
Como acontece freqüentemente, o cervo cometeu o engano fatal de pôr toda sua energia no primeiro
esforço. Não tínhamos ido muito longe quando começou a perder velocidade, ouvia-o resfolegar; tentando
aspirar mais ar e muito assustado para regular sua marcha. Eu também estava um pouco cansada, depois de
já ter gasto toda uma quantidade de energia para encontrar e perseguir o macho, o que me fazia continuar
era seu aroma, esse perfume denso que fazia meu estômago grunhir.
Encontrei o rastro de Clay no ar e tangi o cervo nessa direção, abrindo para um lado com um breve
impulso, o que o fez ir na direção oposta. Na corrida, o temor do cervo se converteu em pânico. Ia a pleno
galope, saltando árvores caídas e atravessando a toda carreira a mata. As árvores e os arbustos o
machucavam e no ar começou a haver aroma de sangue. Quando dávamos uma volta, Clay saltou dos
arbustos e pegou o cervo pelo focinho.
O macho se deteve escorregando e começou a sacudir a cabeça enlouquecido, tentando livrar-se de Clay.
Então nós chegamos. Coloquei-me debaixo do cervo e afundei os dentes em seu estômago. Provei o sangue
quente sob a capa de gordura e isso começou a me dá água na boca. Nick atacou o cervo pelo flanco,
investindo, mordendo e saindo do alcance dos cascos e dos chifres do animal. Clay era sacudido de um lado
a outro, mas não soltou. Esse era um estratagema surgido da memória subconsciente: se morder a cara da
presa, ela ficará muito ocupada tentando livra-se do perigo mais evidente para incomodar-se com os outros
atacantes.
Agarrada ao cervo, abriu-lhe a barriga batendo com os dentes, balançando todo o tempo para me esquivar
dos cascos. Quando consegui abrir um buraco, soltei e coloquei o focinho mais acima. Começaram a sair as
vísceras pelo primeiro buraco e o aroma quase me deixou louca. O sangue também jorrava por onde Nick
atacou, o que fazia o couro do animal ficar escorregadio e difícil de agarrar. Mordi mais forte e senti que
meus dentes atravessavam a pele, alcançando para os órgãos vitais. Por fim as pernas dianteiras do cervo
cederam. Clay soltou o focinho e lhe abriu a garganta. Então o cervo caiu ao chão.
Quando o cervo caiu, Nick retrocedeu e se deitou em um lugar próximo. Clay baixou a cabeça e se virou
para me olhar. Tinha o focinho coberto de sangue. Lambi-o e me esfreguei nele, sentindo o tremor que
provocava a adrenalina. As patas do cervo ainda tremiam, mas seus olhos olhavam fixos para frente, sem
vida. Quando o abrimos pelo lado, formou-se um vapor no ar fresco da noite. Nós começamos a devorá-lo,
arrancando pedaços de carne e engolindo-os sem mastigar.
Quando acabamos e nos afastamos, Nick se aproximou e começou a comer. Clay foi até uma clareira e
me olhou por sobre o ombro, segui-o e me deixei cair junto a ele. Clay se aproximou, pôs uma pata em meu
pescoço e começou a lamber meu focinho. Fechei os olhos enquanto ele trabalhava. Quando acabou de tirar
o sangue do meu pescoço dos meus ombros, eu comecei a limpá-lo. Nick terminou de comer e logo se
aproximou, aconchegando-se conosco. Terminamos de nos higienizamos e logo dormimos em um enredo
de patas e pele de lobo.
Não tínhamos dormido muito quando Clay se levantou e começou sacudir ao Nick e a mim. Despertei de
repente quando minha cabeça bateu contra uma pedra; fiquei de pé, tensa e alerta ao perigo. Estávamos
sozinhos na clareira. A noite tinha caído, e ouvi somente os sons normais da noite, os chamados dos
caçadores e os chiados das presas. Grunhi para Clay e já estava para voltar a me acomodar, quando ele bateu
em minhas costelas com o focinho e me indicou que farejasse. Olhei-o com ira, mas fiz o que me pedia. No
princípio não percebi nada. Então o vento mudou e soube o que o fez saltar tão rapidamente. Havia alguém
ali. Outro licántropo: Zachary Cain.
Assim que comprovou que eu lhe entendi, Clay se foi. Detrás de mim, Nick continuava sacudindo a bruma
do sono interrompido. Olhei-o, depois comecei a correr, sabendo que me seguiria embora não soubesse por
quê. No limite da clareira, o aroma de Cain ficou mais forte, segui o rastro até um bosquezinho próximo.
Esteve ali, suficientemente perto para poder colocar o focinho entre as sarças7 e nos observar dormir. Havia
algo estranho, mas não estava segura do que podia ser. A parte humana de meu cérebro queria ficar e
analisar o problema, mas o instinto do lobo dominou e pus meus pés em movimento. Havia um intruso e
tínhamos que nos ocupar dele.
Apesar de que eu vacilei perto do bosquezinho, Nick não. Colocou o focinho, inalou profundo, retrocedeu
e começou a correr atrás de Clay. Desta vez fiquei na retaguarda Os outros dois se adiantaram tanto que
não podia vê-los nem ouvi-los e tive que seguir o rastro de Clay. Enfiava-se no bosque, atravessando
arvoredos tão densos que ocultavam a luz da Lua e das estrelas. Por boa que fosse minha visão noturna,
necessitava de luz, embora não fosse luz refletida. Aqui não havia nada. Só podia discernir as formas dos
troncos de árvores e os arbustos, sombras escuras sobre um fundo ainda mais escuro – Ao atravessar a mata,
notei que não era tão capaz de me desfazer de meus sentidos humanos como eu gostava de acreditar. Ainda
dependia muito da visão. Desacelerei e pus o nariz no chão para seguir o rastro de Clay.
Do outro lado da vegetação, as árvores se abriam e deixavam entrar um pouco de luz da lua. Comecei a
aumentar a velocidade, logo escutei arbustos que se abriam indo para o norte a passagem de algo grande.
Não era Clay nem Nick. Até o Nick se movia no bosque com mais fineza. Abandonei o rastro de Clay e virei
para o norte. Tinha deslocado uns quinhentos metros quando senti a vibração de patas que batiam na terra
detrás de mim. Eram Clay e Nick. Sabia sem olhar, assim não reduzi a marcha, mas como era eu quem abria
a passagem, não corria tão rápido como eles e em pouco tempo escutei a respiração rítmica de Clay detrás
de mim. Demos a volta a umas rochas grandes e então escutamos os galhos que se quebravam detrás de
nós. Girei para ver uma sombra marrom avermelhada imensa que saltou atrás da rocha e correu na direção
oposta.
Cravei as garras na terra mole para me deter, girei e fui atrás de Cain. Só me seguiram as pisadas de Nick.
Clay tomou outro caminho, com a esperança de emboscar Cain como fez com o cervo. Cain seguiu o atalho
que eu tinha aberto, em direção ao lugar de onde veio. Depois de uns quatrocentos metros virou para o
leste. Ia para a estrada, com a esperança de fugir. Adiantei-me até me aproximar o suficiente para que sua
cauda me roçasse a cara. Então minha pata bateu em um acidente do terreno. Não era um buraco nem nada
suficientemente grande para me fazer tropeçar, simplesmente uma mínima mudança da altura do terreno
que me fez andar mais lento. O suficiente para que Cain conseguisse se afastar um pouco de mim. Nick me
alcançou. Então avancei mais devagar para conservar energia. Adiante o bosque se abria à medida que nos
aproximávamos da estrada. Girei à esquerda, esperando ganhar uns metros ao me antecipar à rota de Cain.
Mas ele não virou. Em troca, seguiu correndo, de volta ao bosque.
Vendo o que parou Cain, olhei adiante e vi uma zona menos densa do bosque ao noroeste. Cain não foi
7
Sarça = Silva, planta rosácea medicinal.
para lá, mas eu sim. Nick seguiu ao Cain, nem tanto para alcançá-lo mais para cansá-lo. Meu caminho me
levou a uma colina rochosa. Ao subir senti o aroma de Clay. Esteve aqui, embora não soubesse quanto tempo
antes. O terreno se fazia mais difícil à medida que avançava, o que me fazia andar mais devagar e amaldiçoar
por ter escolhido esse atalho. Na metade da subida, uma de minhas patas dianteiras escorregou em umas
pedras, uma delas suficientemente afiada para cortar a planta acolchoada de minha pata. Grunhi de dor,
mas segui adiante. No topo da colina, meu esforço parecia dar seus frutos. Daqui podia olhar para baixo e
ver todo o terreno. Para o leste divisei um reflexo dourado, que era Clay movendo-se entre as árvores. Por
ser um lobo negro, Nick não era tão fácil de ver a noite; mas, passado um instante, vi sacudir umas árvores
abaixo. Segui com o olhar o caminho de árvores e arbustos que se moviam. Vinham em minha direção. Fui
até o lugar onde pensei que sairia. Meu esforço se viu premiado com uma movimentação na vegetação
diretamente adiante. Uns segundos mais tarde uma forma imensa saiu do mato.
Ao me ver em seu caminho, Cain parou. Grunhiu e agachou a cabeça. Seus olhos verdes refulgiram e seu
pêlo avermelhado ficou arrepiado, aumentando dez centímetros de tamanho, o que era supérfluo; Cain não
necessitava disso para parecer imponente. Em sua forma humana media dois metros, com os ombros e o
físico de um marechal de campo de futebol americano. Em sua forma de lobo, media o dobro que eu. Retire
os lábios e grunhi, mas me senti tão ameaçadora como um cãozinho enfrentando a um touro. Uma parte de
meu cérebro, cheio de adrenalina, insistia que eu podia dominar ao Cain, por mais diferença de tamanho
que houvesse. Outra parte se perguntava onde caralho estavam Nick e Clay. Mas o grito mais forte dizia:
“Corre, idiota, corre!”.
Enquanto pensava, Cain de repente se virou e... correu. Por um momento não pude me mover, sem poder
acreditar no que via, Cain fugia? De mim? Por mais que meu ego desfrutasse da idéia de que me temesse, o
sentido comum me dizia que não era assim. Então por que fugiu? Novamente meu instinto de lobo não
deixou que meu cérebro pensasse no assunto. Justo quando Cain desaparecia colina abaixo, dominou-me o
instinto e o segui.
Não tinha avançado mais que dois ou três metros quando algo aterrissou em minhas costas, me lançando
ao chão. Girei para ver Clay parado sobre mim. Tentei me pôr de pé, mas ele me impediu disso. Estava louco?
Cain escapava dei-lhe uma dentada, pegando sua pata dianteira, grunhindo. Pegou-me por debaixo da
garganta e me imobilizou. A cada segundo via que Cain fugia para mais e mais longe. Debati-me, mas Clay
me conteve. Finalmente soube que já era muito tarde. Cain tinha ido. Ao percebe isso, Clay fez um som
dentro de sua garganta. Não era um grunhido, mas tampouco um som amigável. Então correu, não seguindo
ao Cain, a não ser em direção oposta. Quando me pus de pé o segui. Segui seu rastro vinte metros até uma
clareira onde podia cheirar sua roupa. Aqui tinha Trocado. Coloquei o focinho no meio do mato e vi Clay
Trocando, as costas arqueadas, a pele pulsando, muito imerso na transformação para notar minha presença.
Vacilei um segundo. Logo procurei minha roupa e Troquei.
Quando saí da clareira, Clay me esperava.
– Onde está Nick? – disse Clay antes que pudesse articular uma palavra –. Caralho! Está com as chaves.
Não estava detrás de você?
– De que falas?
Clay se meteu entre os arbustos, procurando.
– Não entende? Estava nos distraindo, tinha-nos ocupados.
– Nick?
– Cain. Ela já não via Clay, só escutava sua voz no bosque. – Estávamos dormidos e não nos atacou.
Perseguimo-lo e não lutou nem tentou escapar. Andou em círculos. Nicholas!
– Mas por que...?
Jeremy. Foram atrás do Jeremy. Caralho! Provavelmente estavam vigiando a casa e nós nem sequer... Ali
está!
– Um momento – a voz de Nick saiu da escuridão –. Dá-me um segundo para pôr as calças?
Clay saiu de entre os arbustos, arrastando Nick pelo braço.
– Para o carro. Os dois. Movam-se!
Movemo-nos.

EMBOSCADA
A caminho de Bear Valley, Clay conduziu, Nick foi atrás e eu me sentei na frente onde os cintos de
segurança eram melhores. Tal como temi, o Camaro não estava entusiasmado por voltar a andar. Quando
resistiu, Clay apertou o acelerador até o fundo, levou as revoluções do motor até a zona vermelha, e logo
empurrou o câmbio até a posição de marcha ré, ignorando os ruídos que vinham de baixo do motor. O carro
se rendeu e amavelmente se deixou tirar da imundície durante todo o caminho ao Bear Valley.
– Não, pegue a saída seguinte – disse quando Clay ia pegar o primeiro caminho para Bear Valley –. Vá para
o leste. Ao hotel.
– O hotel?
– Não tem sentido nos perseguir o rabo por todo Bear Valley se os vira-latas nem sequer deixaram seu
quarto de hotel. Mas se saíram, talvez possa seguir a pista deles.
Clay apertou as mãos. Sabia que estava convencido de que os vira-latas queriam apanhar ao Jeremy e ir
ao hotel significava perder um tempo precioso. Mas fazia sentido. Em vez de me responder, saiu de novo à
estrada, diante de um caminhão carregado de troncos. Fechei os olhos o resto do caminho.
Quando chegamos ao motel, Clay estacionou o automóvel no lugar para deficientes junto à entrada e já
saltava de seu assento antes de desligar o motor. Eu peguei as chaves e o segui. Esta vez não se esforçou
por enganar ao empregado do balcão. Por sorte não estava ali. Clay subiu os degraus de dois em dois. No
quarto de Blanc, quebrou a fechadura recém arrumada e entrou sem esperar para ver se havia alguém. Eu
subia os últimos degraus quando saiu.
– Não estão – disse, me empurrando para um lado para descer. Quando estava no meio da escada notou
que eu continuava subindo e se virou. – disse que não estão.
– Não é o único quarto – disse –. Não poderiam convencer Marsten a dormir no chão.
Clay grunhiu algo, mas eu já ia pelo corredor, parando em cada porta e tentando sentir o aroma de Cain
ou o de Marsten. Clay voltou a subir as escadas e me seguiu pelo Corredor.
–- Não temos tempo.
–- Então vá –- disse –. Vai.
Não o fez. Detive-me três quartos depois do de Blanc.
–- Cain – disse –- pegando o trinco.
–- Bem. Segue adiante e encontra o de Marsten.
Marsten tinha o quarto seguinte. Clay estava revistando o quarto de Cain quando arrombei a porta do de
Marsten e entrei. O quarto parecia desabitado. Só vi uma valise de couro italiana em um canto. A cama
estava feita, as mesas limpas e as toalhas estavam penduradas. Claramente era o quarto de Karl Marsten.
Se tinha que rebaixar-se a aceitar um quarto no Motel Big Bear, não ia ficar ali nem um minuto mais do
necessário. Estava para sair do quarto, quando uma brisa me trouxe ar fresco e um aroma familiar.
Jeremy – disse Clay detrás de mim ao entrar no quarto.
Foi até a janela e correu as cortinas. A porta estava um pouco aberta, como se alguém a tivesse fechado
de fora onde não havia trinco.
–- foi –- disse –. Deve ter vindo investigar.
Clay assentiu e me passou indo rumo à porta. Voltamos para o automóvel. A seguir Clay percorreu os
estacionamentos em busca do Mercedes ou o Acura. Na realidade não os percorreu, enfiou-se neles a toda
velocidade, deu voltas e saiu disparado. No estacionamento atrás da loja de roupa Drake's Family Wear,
encontramos o Acura de Marsten.
Só estava supondo que o Acura era de Marsten, mas era uma boa aposta. O Blanc teve um salário fixo
enquanto vivia uma vida normal em Chicago, mas pelo que se via em seu quarto de hotel, nestes tempos
não tinha dinheiro para automóveis de luxo. Marsten, em troca, era muito bem-sucedido... em sua carreira
de ladrão. Na realidade o roubo é a principal ocupação dos vira-latas. Seu estilo de vida não os inspira a ficar
em um povoado tempo suficiente para ter um emprego fixo. E embora tivessem a inclinação a criar raízes,
não podiam demorar. Pelo menos nos Estados Unidos, a Matilha rotineiramente perseguia aos ingratos que
pareciam acomodar-se a uma vida sedentária. Formar um lar significava apropriar-se de um território e isso
só podia fazer a Matilha Por isso a maioria dos vira-latas ia de cidade em cidade, roubando o suficiente para
manterem-se vivos. Para os ingratos era melhor. Marsten se especializou em jóias, quer dizer, jóias dos
pescoços e dos quartos de mulheres amaduras e solitárias. Tinha dinheiro e se considerava melhor que os
outros vira-latas. Para a Matilha não importava que falasse cinco idiomas e não tocasse em um uísque que
tivesse menos anos que ele. Um vira-lata era um vira-lata.
Clay desacelerou atrás do Acura, logo apertou o acelerador e saiu do estacionamento.
– Não estamos procurando por eles? – perguntou Nick, inclinando-se sobre o assento.
– Não me importa onde eles estão. Importa-me onde está Jeremy.
Encontramos o Mercedes de Antônio a um par de quadras no estacionamento da fábrica de papéis. Este
rastro me resultava mais fácil de seguir, porque os aromas eram tão familiares que podia deixar que meu
cérebro os processasse em piloto automático enquanto eu me concentrava em procurar pistas.
O rastro dava a volta no escritório do jornal local, o depósito onde havia sido a festinha, o Donut Hole e
um bar onde passavam música country e western perto da rua principal. Podia entender a lógica de Jeremy
em passar por cada ponto: o jornal para as últimas notícias, o café em busca de intrigas e o depósito em
busca de pistas. O do botequim era um pouco mais complicado, até que senti o aroma ácido de urina no
lugar onde Cain havia urinado contra a parede traseira, presumivelmente na noite anterior depois de beber.
Daí, o rastro levava para a fábrica de papel onde estava o automóvel de Antônio.
– Estão voltando – disse Nick –. Aposto que nos cruzamos.
Caminhamos cinco passos quando um gato fez um som sibilante detrás de uma lata de lixo. Nick lhe
respondeu de igual modo. O gato entrecerrou os olhos, levantando a cauda como um sinal de exclamação
ante a afronta.
– Deixa o bichano – disse –. Muito fraco, seria apenas uma mordida.
Ao girar, vi algo que saía de debaixo das bolsas de lixo. No princípio parecia uma fila de quatro pedregulhos
pálidos e redondos que saíam de duas bolsas. Isso parecia tão fora do lugar que me aproximei, ignorando o
fedor do lixo. Ao me aproximar entendi o que via: dedos.
–- Merda – murmurei –-. Olhem isto. Esses vira-latas estão ficando descuidados ou deixam as coisas à
vista de propósito.
–- Aposto vinte dólares que é o segundo –- disse Clay.
Deu um passo adiante e levantou a bolsa que o cobria para ver melhor. Os dedos estavam unidos a uma
mão, unida a um braço.
Quando Clay levantou mais a bolsa, o corpo caiu no chão de costas. A cabeça do homem ficou em um
ângulo impossível, com o pescoço quebrado. Seus cabelos avermelhados e indômitos brilhavam ainda na
escuridão.
–- Peter – sussurrei.
–- Não – disse Clay –-. Jeremy. Não!
Clay saiu correndo e seus passos ressoaram na escuridão do beco. Os olhos de Nick se abriram e
encontraram os meus. Então algo lhe recordou que Jeremy não era o único que estava com Peter. Correu
atrás de Clay. Segui-os, com o coração bombeando tão forte que não me deixava respirar. A cinco metros vi
brilhar um atoleiro de um líquido vermelho e espesso sob uma luz meio apagada. Dali saíam tentáculos de
sangue, que convergiam logo em um fio para o longe. Segui o rastro. Adiante, a camisa branca de Nick se
movia na escuridão. Escutava as pisadas de Clay, mas não o via. O rastro de sangue dava a volta em duas
esquinas. Ao dobrar a segunda, vi Clay e Nick adiante, detidos e logo retrocedendo. Tinham passado o rastro,
que terminava em um atoleiro de sangue junto à esquina.
Inclinei-me, pus o dedo no sangue e o levei a meu nariz.
– É dele? –- perguntou Clay.
– É de Jeremy –- sussurrei.
– E há muito mais aqui acima se quiserem olhar de perto – disse uma voz grave.
A cabeça de Clay se virou para trás. Olhamos ao redor e logo vimos um muro situado à direita. Clay chegou
primeiro. Subiu de um salto e desapareceu em uma abertura escura. Nick e eu o seguimos. Jeremy estava
sentado no fundo com sua perna direita elevada sobre uma caixa de madeira e Antônio rasgava sua camisa
em tiras. Quando nos aproximamos, Jeremy levantou o braço esquerdo para tirar os cabelos do rosto, mas
lançou um gemido e mudou à mão direita, deixando cair à esquerda.
–- Estão bem? –- perguntei.
–- Peter está morto –- disse Jeremy –-. Emboscaram-nos.
–- Voltávamos para automóvel – disse Antônio, adicionando outra atadura à perna de Jeremy –. Eu fui
procurar um banheiro. Cinco minutos. Mal dobrei a esquina e... –- concentrou-se em sua tarefa, mas em
cada palavra era evidente a culpa que sentia. –-menos de cinco minutos. Enquanto foi urinar...
–- Esperavam uma oportunidade –- disse Jeremy –-. Qualquer um de nós poderia ter ido atrás um
momento e teriam atacado aos outros dois.
Antonio olhou sobre o ombro.
– O novo, o vira-lata que matou Logan, atacou Jeremy com uma faca.
– Uma faca? –- Clay procurou confirmação de Jeremy, com tanta incredulidade como se Antônio tivesse
dito que atacaram Jeremy com um Howitzer antigo –-. Uma faca?
Jeremy assentiu.
Antônio continuou.
Atacaram ao Peter e ao Jeremy. Não houve tempo de reagir. Teria os seguido, mas Jeremy sangrava muito.
– Eu não teria deixado você persegui-los de todo modo – disse Jeremy –-. Não temos tempo de analisar as
coisas agora. Temos que limpar e ir.
Tentou ergue-se. Clay saltou uma caixa e o ajudou a ficar de pé.
– Deixamos Peter no lugar – disse Jeremy.
– Sei – disse –. Encontramo-lo.
– No lixo – disse Antônio, passando uma mão pelo rosto –. Isso não foi correto. Sinto muito, mas Jeremy
estava sangrando e eu...
–- Tinha que encontrar um lugar para que nos esconder rápido – terminou Jeremy por ele –. Ninguém
culpa você. Iremos procurá-lo e o levaremos para casa.
Clay ajudou Jeremy a descer do muro. Eu me coloquei à esquerda para pegar o outro braço, logo recordei
que estava ferido e me conformei caminhando a seu lado, pronta para sustentá-lo se sua perna cedesse. Dei
– as chaves de meu carro ao Nick e ele foi levar o Camaro até o beco para poder carregar os corpos. Quando
chegamos à pilha de lixo, Antônio descobriu Peter e o limpou.
– Marsten vai pagar por isso – disse Clay, olhando o corpo de Peter, apertando os punhos –-. Vai pagar,
de verdade.
– Marsten não matou Peter. Foi Daniel.
– Dão... – Clay se sufocou –. Merda.

Voltei para Stonehaven no Mercedes de Antônio, sentada no assento traseiro com o Jeremy para o caso
de ele começar a sangrar mais. Antônio dirigia em silêncio. Jeremy olhava pela janela, sustentando as
ataduras. Tentei me concentrar em outra coisa que não fosse olhar meu automóvel através do pára-brisa e
pensar no corpo de Peter na mala. Em vez disso, pensei nos vira-latas.

Assim era Daniel. O que significava um problema sério. Daniel sabia como operava a Matilha, como
operava cada um de nós. Daniel foi da Matilha. Fala-se que foi criado com o Nick e com o Clay..., ou melhor,
cresceu em seu “entorno”. "Com eles” soa como se fossem amigos, coisa falsa. Antes que Clay chegasse,
falam que Nick e Daniel brincavam juntos às vezes, aproximados por sua idade, como dois primos que
brincam juntos nas reuniões familiares porque não há ninguém mais com quem entreter-se. Então Clay
chegou. Eu não conhecia bem os detalhes, mas haviam me dito que Clay e Daniel se odiaram a primeira
vista. O fato desencadeante parece ter ocorrido na primeira vez que se encontraram, quando Daniel
obsequiou à Matilha com a história de como tinham expulsado Clay do jardim da infância, que tinha que
haver com uma dessecação de um porquinho da Índia da classe para ver como era por dentro, mas, como
foi, eu não conhecia os detalhes. Quando perguntei ao Clay a respeito disso, a única coisa que disse foi “já
estava morto", o que supostamente explicava tudo. Qualquer que tenha sido a história, envergonhou ao
Jeremy, quem fala oculta os detalhes quando explicou aos outros por que Clay só passou um mês na escola.
Ao incomodar Jeremy, Daniel ganhou o rancor eterno de Clay.
Nos anos que seguiram, a relação entre os dois se tornou mais difícil, porque Daniel e Clay lutavam pela
posição suprema na geração jovem. Ou deveria dizer que Daniel lutou por isso. Clay simplesmente deu por
certa que lhe correspondia e esmagou as aspirações de Daniel com o desprezo aborrecido de alguém que
espanta um mosquito. Quando os três tinham pouco mais de vinte anos, Jeremy se converteu em Alfa. Nem
uma vez dei a impressão de que foi uma ascensão sem sangue. Não foi. Sete membros da Matilha
respaldaram Jeremy e quatro não, incluindo o Daniel e seu irmão Stephen. A dissensão se tornou mais
violenta e Stephen tentou assassinar Jeremy, mas Clay o matou. Daniel insistiu em que seu irmão era
inocente e que Clay o assassinou para esmagar a oposição ao governo de Jeremy. Quando Jeremy foi
nomeado Alfa, Daniel decidiu que não havia lugar para ele na nova Matilha.
Desgraçadamente esse não foi o fim da história. Levando em conta que já não eram irmãos de matilha,
Daniel e Clay tiveram muitos embates após isso. Depois que eu apareci, a coisa ficou pior. Daniel decidiu que
devia me possuir, embora fosse mais porque eu “pertencia" a seu arquiinimigo. Quando Daniel se aproximou
de mim pela primeira vez, cheguei a pensar que era um tipo decente. Minha opinião mudou no dia em que
foi visitá-lo e o encontrei escondendo a uma mulher no guarda-roupa. Não teria sido tão mau se a mulher
estivesse viva. Aparentemente estava justo até o momento em que toquei a campanhia, momento em que
Daniel quebrou o pescoço dela e tentou colocá-la em um guarda-roupa para que não o encontrasse com
alguém. A partir dali, comecei a acreditar mais nas advertências de Clay a respeito de Daniel. A mulher no
guarda-roupa não era a primeira que Daniel matava. Quando deixou a Matilha, abandonou seus ensinos e
leis e se converteu em um assassino. Como todos os vira-latas assassinos bem-sucedidos e de vida
prolongada, Daniel aprendeu como convinha matar a humanos, o mesmo truque que usa um lobo quando
enfrenta uma grande manada: separar aos que estão nas bordas. Se alguém se limita aos marginais –
drogados, adolescentes em fuga, prostitutas, pessoas sem lar, havia muitas probabilidades de que não o
apanhassem. Por quê? Porque não importam a ninguém. É obvio que dizem que sim, os políticos, a polícia
e todos os que se supõe que defendem a lei, mas na realidade não. Essas pessoas podem desaparecer e,
enquanto não apareçam, não importam a ninguém. Não falo de ditaduras do terceiro mundo nem de
metrópoles dos Estados Unidos famosas por suas taxas de criminalidade. Em Vancouver desapareceram
trinta prostitutas de um só bairro antes que as autoridades suspeitassem que havia um problema. Acreditem
em mim, se essas mulheres fossem estudantes da universidade da Columbia Britânica, as pessoas teriam se
preocupado muito antes. Nisso foi que se equivocou Thomas Le Blanc, ao escolher como presas a filhas e
esposas de classe média. Se tivesse se limitado às prostitutas e crianças abandonadas, ainda estaria fazendo
grandes negócios em Chicago. Em todas minhas discussões com Jeremy em relação ao sistema hierárquico
da matilha sempre defendi o modelo democrático, onde todos supostamente são igualmente importantes.
É obvio que não é assim. Embora a matilha tenha uma hierarquia estrita, não permitiria que ficasse sem
vingança a morte inclusive do último de seus membros.
De volta a casa, Jeremy me pediu que o ajudasse com suas feridas. Possivelmente supôs que seria uma
enfermeira mais suave, mais tolerável que os homens. Correto. Jeremy pode não saber muito de mulheres,
mas aprendeu o suficiente desta em particular para não me confundir com a mãe Teresa. O mais provável
é que pensou que, ante a opção de me fazer de enfermeira ou cavar uma tumba, seria muito mais feliz
pondo touca e uniforme. Meu último episódio junto a uma tumba não era um dos que queria repetir tão
cedo. Ao menos, se cuidasse de Jeremy, podia esquecer um pouco o que acontecia em outros lugares.
Normalmente, Jeremy séria o encarregado das tarefas de enfermaria. Era o médico da Matilha. Não, esse
não era um papel que se herdeira através das gerações de licántropos, Foi algo que Jeremy se encarregou
quando Clay, quando criança, saltou cinco andares pelo poço do elevador de um centro comercial (não
perguntem) E fraturou o braço em várias partes. Para não pôr em risco a mobilidade futura de Clay com um
entalamento 8 improvisado, Jeremy o levou a um médico. Embora tivesse o cuidado de aduzir motivos
religiosos para impedir que fizessem análises de sangue e outros testes de laboratório, o médico os fez de
qualquer forma. Os resultados poderiam ter passado sem que ninguém se surpreendesse, dado que não
tinham muito que ver com um braço quebrado, mas um técnico de laboratório noturno que estava
aborrecido descobriu algo estranho e chamou Jeremy às duas da manhã. O sangue de licántropo tem algo
estranho. Não me peçam mais explicações, apenas passei em biologia no segundo grau. O que sei é que não
devemos permitir que nos tirem sangue e o analisem. O que o técnico de laboratório viu no sangue de Clay
lhe fez pensar que tinha algum problema grave e ordenou ao Jeremy que o levasse imediatamente ao
8
Entalar = apertar com talas fixando.
hospital. O resultado de toda essa confusão foi que tanto o técnico como os resultados da análise estavam
desaparecidos pela manhã. A partir dali, Jeremy comprou e estudou um carregamento de livros de
medicina. Há alguns anos cometi o engano de lhe dar de presente uma cópia de um guia de primeiros
socorros, gostou tanto que me fez comprar exemplares para todos para que os tivéssemos à mão e
pudéssemos curar nossas próprias amputações. Podem dizer que sou maricas, mas se alguma vez perder
um membro e não tiver ninguém perto, darei-me por morta, embora a guia tenha maravilhosas instruções
(com ilustrações muito úteis) a respeito de como se deve amarrar a ferida com um pau e uma bolsa de
plástico para os restos.
– A perna primeiro? – perguntei a Jeremy quando tirou sua caixa de provisões médicas do armário do
banheiro.
– O braço. Eu recoloco o osso. Você o entala.
Isso não soava muito ruim. Jeremy se sentou na privada e eu me agachei ao seu lado enquanto trabalhava.
Como tinha sido um golpe limpo, sem fraturas, só tinha que retirar o lixo da pele e do osso antes de o
realinhar sustentando-o justo debaixo do pulso – Depois enrolei uma atadura seguindo as instruções do
Jeremy, coloquei-a debaixo de seu cotovelo e ainda por cima da boneca - Então fiz um tipóia para manter o
braço alto. O entalamento demorou um pouco mas foi fácil... ao menos comparado com o que quis que
fizesse a seguir.
– Terá que costurar minha perna – disse.
Costurar...?
– Não posso fazê-lo com uma mão. – Ficou de pé e, apoiado no lavabo, desabotoou os jeans com sua mão
boa e os tirou com esforço. Necessitaria de sua ajuda para tirar isso de mim se não for pedir muito.
– Com certeza – disse –. Sou boa em despir homens. Em troca não sei se sou boa em costurar pessoas.
Talvez o corte não seja tão mau. Retirei a camisa empapada de sangue da coxa de Jeremy. A pele e o músculo
se abriram como o Mar Vermelho, analogia muito adequada tendo em conta o jorro de sangue que saiu
dali. Não tinha nenhum problema por ver Jeremy sem calças, mas essa visão interna era mais do que queria
ver.
– Pegue a toalha de mão – disse – sentando-se rapidamente e apertando uma toalha grande contra o
corte.
Molhei a toalha de mão, lavei a ferida e depois pus anti-séptico. Não trabalhei rápido o suficiente e quando
terminei tinha sangue derramando-se por meus dedos.
– Pegue uma atadura – disse Jeremy –. Não, essa fita não. A outra. Bom.
Utilizando a atadura e fazendo umas manobras complicadas, conseguimos deter a hemorragia antes que
Jeremy desmaiasse. Pegou algo claramente parecido com uma agulha e um fio de seu kit e me entregou.
– Deixa de dar voltas, Elena. Não vai te morder. Pegue a agulha e comece de uma vez. Não pense no
assunto. Simplesmente tente fazer uma linha o mais reta possível.
– Parece fácil, mas você nunca viu minha letra.
– Não, mas tive o prazer de sofrer seus dotes de cabeleireira. Como disse, tenta costurar em linha reta.
–Sempre cortei seus cabelos direito.

– Se puser a cabeça em certo ângulo, ficava perfeitamente direito.


– Cuidado. Tenho uma agulha.
– E possivelmente a faço se zangar o suficiente, para decidisse a me cravar isso e começar a costurar antes
que perca todo meu sangue.
Dava-me por manobrada. Face ao que Jeremy disse, não foi como costurar tecido e tampouco pude fazer
de conta que era. Tecido não sangra. Concentrei-me em fazer a coisa bem feita, sabendo que se não fizesse,
Zombariam de mim pelo resto de minha vida pela cicatriz do Jeremy. Estava terminando quando senti um
ataque de ira pelo fato do vira-lata se atrever a fazer isto ao Jeremy, o que me fez pensar em como
aconteceu, o que me fez recordar que Peter estava morto. Minhas mãos começaram a retesar-se. A velha
serpente da ira começou a mover-se em meu interior. Detive-me, tomei ar e comecei de novo, mas não
pude evitar que meus dedos tremessem.
– De modo que enfrentamos três vira-latas experientes – disse Jeremy, interrompendo meus
pensamentos.
Engoli o nó em minha garganta e me rendi ao seu intento de me distrair.
– E ao menos um novo.
– Não o esqueci, mas me preocupa mais os experientes. São bons – como demonstram meu braço e minha
perna – mas não estão ao nível de Daniel.
Cortei o fio.
– Diz isso porque conhece Daniel. E embora não conheça tanto ao Marsten e ao Cain, sabe o que esperar
deles porque são como você. Pensam como você, reagem como você, matam como você. Os novos não. Os
licántropos não enforcam as pessoas. Assim matou Blanc ao Logan e o obteve porque era a última coisa que
Logan esperaria. E depois atacou você com uma faca. Você esperaria isso tanto como um samurai estaria
atento a um pontapé nos testículos. Por isso Le Blanc continua vivo. Surpreendeu você. Se...
– Já cavamos a tumba – disse Antônio, entrando no banheiro –. Sinto muito. Interrompo algo?
– Nada que não possa concluir-se mais tarde – disse Jeremy, ficando de pé testando os pontos. Como não
abriram nem sangraram, assentiu. – Perfeito. Vestirei-me e verei a tumba.
CONDENAÇÃO
Fui com Jeremy ao lugar onde Peter foi enterrado. Não era algo que queria fazer; depois de ter passado
por mim última crise junto a uma tumba fazia menos de trinta e seis horas. E Jeremy não necessitava de
minha ajuda para assegurar-se de que a tumba estava bem escondida. Mas necessitava de minha ajuda em
outro sentido, embora não admitisse nem pedisse. Com sua perna recém costurada, não estava em
condições de caminhar sem alguém que o sustentasse. Assim o ajudei a sair para o pátio traseiro, embora
qualquer um que visse a cena acharia que Jeremy era quem me ajudava. Isso era intencional. O Alfa da
matilha não podia mostrar-se débil, embora acabasse de sair de uma batalha em que esteve em risco de
vida. Não é que Antônio, Nick ou Clay fossem se aproveitar da oportunidade para disputar com o Jeremy a
liderança. Mas como a Matilha dava ao Alfa o controle total, a idéia de que não estivesse à altura da tarefa,
embora fosse de forma temporária, poderia desequilibrar toda a Matilha.
Jeremy devia estar sofrendo uma dor tremenda, mas não demonstrou. Aceitou apoiar-se em meu braço
para ir e voltar da tumba, mas nunca se apoiou mais que um mínimo imprescindível. Só se deteve um
segundo ao voltar para casa, presumivelmente para recuperar o fôlego, embora parecesse estar olhando
para um tijolo descascado no muro do jardim.
– Suponho que agora iremos dormir – disse, fingindo que bocejava. Eu o necessito.
– Vá você – disse Jeremy–-, teve um par de dias duros. Reunirei-me com os outros e informo a você
amanhã.
– Todos devem estar exaustos. Podemos nos reunir pela manhã, não é certo? Não queria perder nada.
– Quero resolver isto esta noite. Se quer estar ali, pode se apropriar do sofá e cochilar enquanto falamos.
Bom, esqueçamos a sutileza. Hora de um ataque pleno e frontal.
– É você quem precisa dormir sua perna deve estar te matando e seu braço também. Ninguém vai pensar
que algo errado estar acontecendo se retardas a reunião até manhã.
– Posso fazer isto. Não aperte os dentes assim, Elena; não sou dentista para arrumar seus dentes que
quebrem. Se quer ajudar, reúna os outros e os leve para o escritório, se é que já não estão lá.
– Se quiser que o ajude de verdade, posso desmaiar você com um golpe até a manhã.
Dirigiu-me um sorriso forçado que dizia que minha sugestão soava mais tentadora do que queria admitir.
– Negociemos. Pode reunir os outros e me preparar uma bebida, de preferência duplo.
Antes da emboscada, Jeremy pode confirmar o que Clay e eu já sabíamos. Que havia três vira-latas em
Bear Valley. Também descobriu algumas coisas mais. Marsten foi o primeiro a chegar; antes de Cain e Le
Blanc. Alojou-se no Big Bear há três dias, o que significava que estava no povo antes da morte de Brandon.
Logo depois que algumas notas de vinte ajudaram o empregado da recepção a recordar reportou que um
jovem cuja descrição coincidia com a de Brandon visitado Marsten no hotel várias vezes. Já não restava
dúvida de que Brandon esteve envolvido com os outros. Perguntei-me se Marsten esteve na festa aquela
noite, desfrutando de um uísque com soda enquanto observava ao Brandon e a mim, seu aroma e forma
ocultos em um canto escuro e cheio de fumaça. Sim, estava segura de que esteve ali. Viu Brandon iniciar sua
Mudança, percebeu o que ia acontecer e partiu antes que o caos se instalasse, abandonando seu protegido
a própria sorte. Os vira-latas podiam estabelecer relações entre si, mas só enquanto eram proveitosas para
ambas as partes. Uma vez que Marsten viu que Brandon estava com problemas, sua única preocupação foi
sair daí antes de ver-se metido na confusão.
Cain e Le Blanc chegaram ao Big Bear na noite que Brandon morreu. Presumivelmente seguiram Logan
desde Los Angeles ou o encontraram no aeroporto. Apanhá-lo em Bear Valley teria sido quase impossível.
Enquanto perseguíamos Brandon, Logan já estava morto, na mala de um automóvel alugado a caminho de
Bear Valley. Em algum ponto devem ter sabido pelo Marsten que Clay e eu estávamos no povoado, e ali
surgiu a idéia de deixar o corpo de Logan perto de nosso automóvel. Supus que era idéia de Blanc. Cain não
tinha cérebro para tanto e Marsten consideraria isto algo degradante para ele.

Não eram sete horas ainda quando soou a campainha da porta. Todos nós levantamos a vista,
sobressaltados. A campainha de Stonehaven raramente soava, porque a casa ficava muito na contramão
para os vendedores e as Testemunhas de Jeová. As correspondências iam para uma caixinha do correio em
Bear Valley. A Matilha tampouco usava a campainha, exceto Peter. Acredito que todos nós lembramos dele
ao escutá-la. Ninguém se moveu até o segundo toque, então Jeremy ficou de pé e saiu do escritório. Eu o
segui. Da janela da sala de janta podíamos ver uma viatura da polícia estacionada na entrada.
– Não necessitamos disto – disse –. Realmente não necessitamos.
Jeremy tirou o lenço que usava como tipóia e o deixou no cabide do corredor, depois pegou a camiseta
de Clay que estava ali. Ajudei-lhe a vestir a camiseta de mangas longas e grandes que ocultava as talas do
braço e as calças cobriam as bandagens da perna. Sua roupa estava limpa e sem rugas, dado que a havia
trocado fazia poucas horas. Mas nós estávamos maus. Um olhar no espelho do vestíbulo bastou para ver
que minha roupa estava coberta de terra e sangue, rosto sujo e o cabelo feito um pão-doce.
– Leve os outros para cima para que se troquem – disse Jeremy –. Diga a Clay, Tônio e Nick que fiquem lá,
Pode se reunir comigo no alpendre de trás.
– Deve convidá-los a entrar. Vai parecer suspeito se os levar lá para trás pela segunda vez
– Sei.
– Convide-os a entrar e ofereça café para eles. Não há nada aqui que possa chamar a atenção deles.
– Sei.
– Bem, então nos encontramos no escritório.
Jeremy vacilou. Saber que devia convidar à polícia a entrar era diferente de fazê-lo. Os únicos humanos
que chegavam a Stonehaven eram os que deviam arrumar coisas, e isso só quando era absolutamente
necessário, e os tirava dali o mais rápido possível.
Não havia nada em Stonehaven que pudesse provocar suspeitas, nem pedaços de gente no freezer nem
pentagramas no piso de madeira. O impressionante em Stonehaven era meu quarto e não tinha intenção de
convidar nenhum policial ali, por melhor que se visse em um uniforme.
– O living – disse finalmente quando a campainha soou pela terceira vez –. Estaremos no living.
– Vou fazer café – disse e fui antes que pudesse mudar de idéia.
Quando cheguei ao living, dois agentes falavam com Jeremy. O mais velho era o chefe, um homem gordo
e careca chamado Morgan. Reconheci-o da manhã anterior, quando a polícia veio em busca do corpo de
Mike o caçador. Não reconheci ao outro. Era jovem e de rosto suave, o tipo de cara que alguém teria que
ver vinte vezes antes de recordá-lo. Em seu crachá estava escrito que se chamava Ou’Neil. Nem o rosto nem
o nome me recordaram nada do dia anterior, mas provavelmente esteve ali. O olhar que me dirigiu indicava
que se lembrava de mim, embora parecesse desiludido de me encontrar vestida. Pelo menos cheguei com
café.
Quando entrei, Jeremy e Morgan discutiam uma reclamação de terras dos aldeãos. Jeremy estava sentado
na cadeira apoiado contra o respaldo, com os pés no divã, o braço quebrado descansando contra sua perna.
Seu rosto estava relaxado, os olhos alertas e interessados, como se a polícia viesse a sua casa todos os dias
e não só soubesse da reclamação de terras, mas também se interessasse, além de concordar com as opiniões
do chefe de polícia com a tranqüilidade de um artista consumado. O agente mais jovem, Ou'Neil, olhava o
escritório sem se incomodar em dissimular, como se tentasse gravar todos os detalhes para contar mais
tarde aos amigos curiosos.
A conversa se interrompeu quando eu entrei. Coloquei o café em uma mesa e comecei a servir como uma
anfitriã perfeita.
– Não tomo chá – disse Morgan, olhando a cafeteira chapeada como se ela pudesse mordê-lo.
– É café – disse Jeremy, com um sorriso de desculpa –. 'Terão que nos perdoar. Não recebemos muitas
visitas, assim Elena tem que usar o bule.
Ou'Neil se inclinou para frente para receber sua xícara de café.
– Elena. É um lindo nome.
– É russo, não é verdade? – perguntou Morgan, entrecerrando os olhos.
– Pode ser – disse, sorrindo amplamente–. Nata e açúcar?
– Três colheres de açúcar. Não vi seu marido por aqui – Está dormindo?
Derrubei café quente na mão e contive um uivo. De modo que o invento marital de Clay percorreu toda
rede até que o rumor chegou ao chefe de polícia. Maravilhoso. Maravilhoso. O sentido comum me indicava
que devia seguir seu jogo. Afinal de contas, Bear Valley não é o tipo de lugar que tolera mulheres que andam
nuas pelo bosque com um homem que não seja seu marido. Na realidade provavelmente não tolera andar
nua pelo bosque e ponto, mas essa não era a questão. A questão era que isso de tranqüilizar as pessoas do
lugar era bom, mas até certo ponto. Uma coisa era lhes permitir entrar na casa, tolerar sua bisbilhotice e os
deixar acreditarem que não podemos diferenciar um bule de uma cafeteira, mas confirmar oficialmente o
rumor de que era casada com Clay, isso não. Uma garota tem que pôr limites.
– Sim, está dormindo – disse Jeremy quando me virava para lhe dizer como eram as coisas – Elena sempre
se levanta cedo para lhe preparar o café da manhã.
Dirigi-lhe um olhar de ódio para que soubesse que me pagaria Fez de conta que não o adverti, mas pude
ver o brilho risonho em seus olhos. Coloquei cinco colheradas de açúcar em seu café. É obvio que ele
perceberia, mas teria que tomá-lo. Afinal de contas, seria uma falta de amabilidade não tomar uma bebida
social com suas visitas.
– Como disse – começou Morgan–. Peço-lhes desculpas por vim vê-los em um domingo tão cedo, mas
acreditei que quisessem saber. Mike Braxton não foi assassinado em sua propriedade. O forense está seguro.
Alguém o matou em outro lugar e o jogou em sua propriedade.
– Alguém? – disse Jeremy –. Quer dizer uma pessoa e não um animal?
– Bom, diria que foi um animal, mas da variedade humana. Não tem muito sentido. As outras duas
decididamente foram matanças de animais, mas o forense diz que abriram a garganta de Mike com uma
faca, não com dentes.
– E os rastros que vimos? – Não queria perguntar; mas tínhamos que saber o que a polícia pensava.
– Acreditam que são falsas. Quem pôs o corpo ali às marcou na terra para que parecesse que foi outra
vez um cão. Mas o tipo se equivocou. Eram muito grandes. Foi isso que nos alertou. Os rastros de cão não
são tão grandes. Bom, um de meus homens diz que há um tipo de cão, o mastim ou algo assim, que poderia
deixar rastros como aqueles, mas não há cães dessa raça por aqui. Nossos cães de caça e pastores não
crescem tanto, por mais que lhes demos de comer. Recordarão que antes de sair Mike deixou uma
mensagem para alguém dizendo que vinha para cá. Resulta que o disse à esposa do moço, que agora diz que
achou que Mike parecia «estranho», diferente, mas pensou que havia um problema na linha telefônica. O
mais provável é que não foi Mike quem deixou a mensagem. Quem ligou deve ter feito para se assegurar
que viéssemos aqui e encontrássemos o cadáver. E juntando todo isso estou seguro de que temos um
assassino humano.
– Assim não há cães selvagens no bosque – disse Jeremy –. Isso é um alívio. Embora não possa dizer que
prefiro a idéia de um assassino humano que anda solto. Tem alguma pista?
– Estamos trabalhando nisso. Provavelmente foi alguém a quem Míke conhecia. Mike era um grande tipo,
mas... – Morgan fez uma pausa, como se não quisesse falar mal de um morto. – Todos têm problemas, não
é verdade? Inimigos e coisas desse estilo. – Outra pausa. Um lento sorvo de café. – E o que você diz? Têm
alguma idéia do por que alguém queria deixar o cadáver de Mike em suas terras?
– Não – disse Jeremy, com a voz firme. Eu mesmo me perguntava isso.
– Não tem inimigos no povoado? Teve algum desentendimento com alguém?
Jeremy sorriu levemente. Estou seguro de que você é consciente de que não somos as pessoas mais
sociáveis do condado de Granton. Não temos contato suficiente com nossos vizinhos para que haja
problemas. Diria que há duas soluções possíveis ao mistério. Talvez o assassino pensasse que culpar aos
“estranhos" afastaria as suspeitas dele, ou não tinha a intenção de nos envolver e pensou simplesmente que
este era um bom lugar para jogar o corpo.
– Está seguro de que não há ninguém a quem vocês possam ter incomodado? – disse Morgan inclinando-
se para frente –. Possivelmente alguém que pensa que você lhe deve dinheiro? Possivelmente um marido
ciumento – Morgan me olhou – ou uma esposa?
– Não e não. Não jogamos nem temos dívidas. Quanto à outra pergunta, estou seguro de que ninguém me
viu percorrendo os bares de solteiros de noite e Elena e Clayton não têm nem a inclinação nem a energia
para procurar aventuras. – Bear Valley é um povoado pequeno, delegado. Se houvesse rumores a respeito
de nós, você faria perguntas mais precisas.
Morgan não respondeu. Em troca olhou fixamente para Jeremy durante dois minutos corridos.
Possivelmente essa tática funcionava com suspeitos de vandalismo de dezesseis anos de idade, mas não ia
quebrar a um Alfa da Matilha de cinqüenta e um anos – Jeremy simplesmente lhe devolveu o olhar, com
expressão calma e aberta.
Logo depois de alguns minutos, Jeremy disse:
– Lamento que tenham tido que vir dois dias seguidos, mas lhe agradeço que tenha vindo nos informar
esta manhã.
Jeremy deixou de lado sua xícara e se deslizou até a borda do assento, Como Morgan e Ou'Neil se
mantiveram em seus assentos, ficou de pé e disse:
– Se for tudo...
– Queremos voltar a investigar em suas terras um pouco mais – disse Morgan por fim.
– É obvio.
– Possivelmente queiramos interrogar a seus convidados. Sugiro que não partam rápido.
– Não o farão.
Morgan manteve o olhar outro minuto. Como Jeremy nem sequer piscava, grunhiu e ficou de pé.
– Um assassino jogou um corpo em sua propriedade – disse –. Se eu fosse você, tentaria pensar em quem
poderia havê-lo feito, e se lhe ocorrer algo nos ligue.
– Não duvidarei em fazê-lo – disse Jeremy –. Espero que quem quer que tenha jogado o corpo do senhor
Braxton aqui não tenha nada contra nós, mas se for assim, não quero ignorá-lo e ficar esperando seu
movimento seguinte. Aqui ninguém tem desejos de meter-se com um assassino. Estamos mais que dispostos
a deixar que a polícia faça isso.
Morgan grunhiu e bebeu o que restava de seu café.
– Algo mais? – perguntou Jeremy
– Eu não andaria por esse bosque durante um tempo.
– Já deixamos de fazê-lo – disse Jeremy –. Mas obrigado por sua advertência. Elena, quer acompanhá-los
até a porta?
Fi-lo. Nenhum dos dois policiais me disse nada, mais que o "adeus" pouco cortês de Morgan. Obviamente,
sendo mulher, não valia a pena me interrogar.

Quando os policiais se foram notei que Clay, Nick e Antônio também o tinham feito. Se só tivessem sido
Clay e Nick, teríamos nos preocupado. Como Antônio foi com eles, Sabíamos que não estavam planejando
nenhuma vingança improvisada em Bear Valley
Tinham passado dez minutos desde que se foram os policiais quando apareceu o Mercedes na entrada.
Nick saltou do assento do acompanhante. Não percebi quem dirigia, porque minha atenção estava posta em
sua totalidade na grande bolsa de papel que Nick trazia na mão. Café da manhã. Não exatamente quente e
fumegando, porque demoraram alguns minutos na volta, mas eu tinha muita fome para que me importasse.
Quinze minutos mais tarde, a bolsa estava vazia, seu conteúdo reduzido a fantasmas de miolos e marcas
de gordura nos pratos repartidos sobre a mesa do solário. Logo depois de comermos, Jeremy explicou o que
disse o policial. Esperava que Clay dissesse algo, que proclamasse sua inocência e esperasse que lhe pedisse
desculpas. Não o fez. Escutou Jeremy, depois ajudou Antônio a limpar a mesa enquanto eu fugia para o
escritório, ostensivamente para ler o jornal que trouxeram do povoado.
Clay levou três minutos para me encontrar. Entrou no escritório, fechou a porta e ficou ali, me olhando
ler durante dois minutos. Quando já não podia suportar, dobrei o jornal ruidosamente e o joguei para um
lado.
Bom, não matou ao homem – disse – Dessa vez é inocente. Mas se espera que eu peça desculpas por
pensar que você é capaz de fazê-lo...
– Não o espero.
Lancei-lhe um olhar.
Clay continuou:
– Não espero que me peça desculpas por pensar que poderia havê-lo feito. É obvio que poderia fazê-lo.
Se o tipo nos tivesse visto correndo ou Trocando ou se nos tivesse ameaçado de algum modo, o teria matado.
Mas lhe diria isso. Isso foi o que me zangou. Que pensasse que o faria a suas costas, ocultando as evidências
e mentindo a respeito.
– Não, suponho que não lhe ocorreria que eu não ia querer que me dissesse isso. A idéia de me poupar
disso não entraria na sua cabeça.
– Poupa-la disso – Clay deu uma risada áspera. – Você sabe o que sou, Elena. Se tentasse negá-lo, acusaria-
me de enganar você. Não quero que venha para mim acreditando que mudei. Quero que venha para mim
aceitando o que sou. Não crê que já teria mudado por sua causa se pudesse? Quero que volte para mim.
Não por uma noite ou por algumas semanas ou sequer por um par de meses. Quero você definitivamente
comigo. Sinto-me muito mal quando não está aqui...
– Sente-se mal porque não tem o que quer. Não porque me queira.
– Caralho – Clay estendeu o braço e seu punho virou um porta-lápis de bronze que estava sobre a
escrivaninha. – Não escuta! Não escuta e não quer ver. Sei que amo você, que quero você. Caralho, Elena,
Se só quisesse uma companheira, qualquer companheira, crê que teria passado dez anos tentando recuperar
você? Por que não me dei por vencido e procurei outra pessoa?
– Porque é cabeça dura.
– Não. Eu não sou cabeça dura. Você é a que não pode superar o que fiz por mais que...
– Não quero falar disso.
– É obvio que não. Deus não queira que a verdade complique sua existência.
Clay se virou e saiu do escritório batendo a porta.
Depois de que Clay se foi, decidi ficar no escritório... ou me esconder ali, segundo a interpretação que
cada um queira dar à coisa. Estudei a coleção de livros nas prateleiras. Não haviam mudado. Na realidade
não mudavam já há uma década As prateleiras suportavam uma coleção variada de literatura e livros de
consulta. Poucos livros de consulta eram de Clay. Comprava todos os livros e revistas relacionados com sua
carreira e os jogava assim que terminava de ler. Não tinha memória fotográfica, simplesmente uma
capacidade incrível de absorver tudo o que lia, de modo que era inútil guardar algo escrito. Quase todos os
livros eram de Jeremy. Mais da metade não estava em inglês, o que tinha que ver com a carreira inicial do
Jeremy como tradutor. Jeremy nem sempre teve dinheiro para dar de presente automóveis esportivos e
camas a sua família adotiva. Quando Clay chegou a Stonehaven, Jeremy não tinha para pagar o gás, situação
derivada inteiramente do costume de seu pai de gastar muito e negar-se a fazer qualquer tipo de negócio
que pudesse gerar lucros – A partir dos vinte anos, Jeremy trabalhou como tradutor, ocupação ideal para
alguém com um dom para os idiomas e a tendência a se isolar. Mais tarde a situação financeira de
Stonehaven melhorou consideravelmente devido a duas circunstâncias: a morte de Malcolm Danven e o
lançamento da carreira de Jeremy como pintor. Atualmente Jeremy vendia poucos quadros, mas quando o
fazia, entrava dinheiro suficiente para manter Stonehaven por alguns anos.
Enquanto procurava algo para ler, Jeremy veio me lembra de ligar para Philip. Não tinha me esquecido,
Minha intenção era fazê-lo antes do jantar, e eu não gostei que me lembrasse disso, era como se Jeremy
pensasse que era necessário. Não sabia quanto conhecia Jeremy do Philip e não queria sabê-lo. Preferia a
idéia de que quando saí de Stonehaven, tinha fugido para um lugar longínquo do qual a Matilha não sabia
nada. Bom, era uma ilusão, mas era uma linda fantasia. Suspeitava que Jeremy tinha investigado ao Philip,
mas não me incomodei em lhe perguntar. Se perguntasse, provavelmente ia dizer que estava me protegendo
para evitar que me envolvesse com um tipo que tinha três esposas ou que batia em suas namoradas. É obvio
que Jeremy não interferiria com minha vida. Esquece-o.
Além de quanto soubesse Jeremy sobre o Philip, não sabia o que eu sentia por ele. E eu não pensava em
lhe dizer. Sabia o que poderia me dizer. Recostaria-se no respaldo do assento, me olhando um minuto,
depois começaria a falar de quão difíceis eram minhas circunstâncias, por causa de Clay e por ser a única
mulher loba, e que não me condenava por estar confusa e querer explorar minhas opções na vida. Embora
não dissesse abertamente, insinuaria que estava seguro de que se desse suficiente rédea para que
aprendesse com meus erros, eventualmente entenderia que meu lugar estava junto à Matilha. Ao longo da
conversa se mostraria completamente calmo e pormenorizado, sem elevar a voz nem ofender-se por nada
que eu dissesse. Às vezes penso que prefiro as explosões de ira de Clay.

Na realidade gostava de Philip mais do que Jeremy podia imaginar. Queria voltar para ele. Não esqueci
dele. Pensava em ligar para ele... mais tarde.

Parecia o momento mais indicado para que Jeremy nos pusesse a par de seus planos. Não o fez, mas
ninguém mais pareceu notá-lo. O mais provável era que não se importassem. Os licántropos da Matilha se
criavam com um conjunto de expectativas. Uma das quais era que seu Alfa se ocuparia deles. Perguntar ao
Jeremy quais eram seus planos implicaria que pensavam que ele não tinha nenhum. Inclusive Clay, por mais
ansioso para agir que estivesse, daria a Jeremy muito tempo antes de insinuar algo em relação a seus planos.
Essa atitude de confiança me deixava louca. Não é que pensasse que Jeremy não estava fazendo planos.
Sabia que era assim. Mas fica sem conhecê-los. Queria ajudá-lo. Quando finalmente me ocorreu uma
maneira sutil de lhe perguntar, encontrei-o fora com um par de revólveres. Não é que pensasse em ir atrás
dos vira-latas armado como Billy the Kid. Tampouco estava pensando em se suicidar. Estava atirando no
alvo, algo que fazia freqüentemente quando refletia. Não é exatamente o método mais seguro de obter a
concentração, mas quem sou eu para julgá-lo? Os revólveres eram um par de peças antigas e bonitas que
Antônio lhe deu fazia muitos anos. Junto com as armas entregou uma bala de prata com as iniciais de
Malcolm Danvers, uma sugestão meio de brincadeira que, é obvio, Jeremy não pôs em prática. Antônio lhe
deu de presente as armas precisamente para que praticasse tiro ao alvo.

Nesta época Jeremy já dominava o arco e a mola de suspensão e queria um novo desafiou. Não me
perguntem por que escolheu como passatempo o tiro. Certamente nunca usava os arcos nem as armas de
fogo fora do campo de prática. Seria o mesmo que se me perguntassem por que pintava. Isso tampouco é
um passatempo típico dos licántropos. Mas ninguém acusou Jeremy de ser um licántropo típico tampouco.
Como seja, quando saí e o encontrei praticando, decidi que não era um bom momento para importuná-lo
em relação a seus planos. Regra vinte e dois de sobrevivência urbana: não incomodar jamais a um homem
armado.

Deixei Jeremy e fui me recolher um momento em minha cama. Um par de horas mais tarde despertei e
desci para o almoço. A casa estava em silêncio, com todas as portas dos dormitórios fechadas, como se os
outros também estivessem recuperando o sono. Quando me dirigia à cozinha, Clay saiu do escritório. Tinha
os olhos avermelhados e escuros. Embora estivesse exausto, não podia dormir. Dois irmãos da Matilha
tinham morrido, seu Alfa estava ferido e nenhum deles foi vingado. Uma vez Jeremy comunicasse seus
planos, Clay poderia descansar, embora fosse mais para preparar-se.
Parou diante de mim, Quando tentei passar por ele, apoiou as mãos em cada lado do corredor.
–Trégua? – disse.
– Como queira.
– Eu adoro essas respostas categóricas. Eu vou tomar por um “sim”. Não é que nossa conversa tenha
acabado, mas por agora deixarei correr. Diga-me quando quizer retorná-la
– Avise-me quando o diabo for brincar na neve.
– Farei-o. Quer almoçar?
Quando assenti, deu um passo para trás e me indicou que fosse à cozinha. Sentia que estava muito
zangado, mas colocou uma máscara de felicidade, assim decidi ignorá-lo. Em uma crise nós dois fomos
capazes de ser suficientemente maduros para saber que não podíamos nos dar ao luxo de desestabilizar a
Matilha com nossas brigas. Ou, ao menos, podíamos fingir por um tempo.
Juntamos a comida fria da cozinha, com pratos cheios de carnes, pão e fruta, sabendo que os outros
despertariam famintos. Então me sentei no alpendre e abarrotei um prato. Clay fez o mesmo. Não falamos.
Embora não fosse incomum, o silêncio tinha uma qualidade morta que me fez comer um pouco mais rápido,
ansiosa por acabar e sair da sala. Quando olhei para Clay, estava digerindo seu alimento igualmente rápido
e sem prazer. Por sorte, a sala onde se toma o café da manhã em uma casa de licántropos não é um lugar
muito isolado pela manhã. Estávamos na metade do café quando Jeremy e Antônio entraram.
– Necessitamos de provisões – disse –. Estou segura de que isto é a ultima coisa que preocupa a todos,
mas não o será se ficamos sem elas. Irei buscá-las no povoado esta manhã.
– Vou fazer um pedido por telefone – disse Jeremy –. Suponho que o envolvimento com a polícia não
tenha mudado a relação com o comércio. Melhor vão procurar dinheiro para o caso de já não aceitarem
meus cheques. Alguém terá que ir contigo, é obvio. Ninguém sai sozinho ou fica sozinho nesta casa.
– Eu vou – disse Clay, com a boca cheia de melão. Tenho um pacote no correio.
– Com certeza sim – disse.
– É assim – disse Jeremy –. O carteiro deixou um aviso outro dia.
– Livros que encomendei na Inglaterra – disse Clay.
– Coisa que necessita agora mesmo – disse – para ler algo leve entre um assassinato e outro.
– Não devessem ficar no correio – disse Clay –. Alguém poderia suspeitar
– De textos de antropologia?
Antônio se inclinou sobre a mesa para pegar um cacho de uvas. Tenho que mandar alguns faxes. Irei com
os dois para fazer uma neutralização.
Retirei a cadeira da mesa.
– Bom, então não é necessário que eu vá, não é mesmo? Estou segura que vocês podem se encarregar do
pedido que Jeremy fará por telefone.
– Mas você é quem queria ir – disse Clay.
– Mudei de idéia.
– Vão os três – disse Jeremy –. Virá-lhes bem como distração.
Antônio sorriu.
– E não lhe viriam mal algumas de paz e tranqüilidade.
Quando levantei o olhar, juraria que vi Jeremy elevar os olhos, exasperado, mas o movimento foi tão
rápido que não o posso assegurar. Antônio riu e se sentou para tomar o café da manhã. Justo quando eu ia
discutir, começou a contar uma anedota a respeito de um encontro dele com um vira-lata em São Francisco
a última vez que esteve ali por motivos de negócios. Para quando ele terminou, já tinha esquecido do que ia
dizer, o que provavelmente foi o motivo para contar a história.
Uma hora mais tarde, enquanto Antônio e Clay me chamavam do automóvel, recordei que não queria ir
e tentava encontrar a maneira de evitá-lo quando Antônio me interrompeu. Então já era tarde. Não
encontrava Jeremy, Antônio esperava no Mercedes e Nick assaltava a cozinha, liquidando a pouca comida
que restava. Alguém tinha que ir procurar as provisões, e se não o fazia eu, passaria à hora do almoço
amaldiçoando minha teima, de modo que fui.

O Banco fica em frente ao correio, Como Antônio encontrou um lugar onde estacionar; convenci-os de
que era seguro para eu ir sozinha ao Banco enquanto Clay ia sozinho ao correio. De seu lugar, Antônio veria
ambos em todo momento. E assim reduzia um pouco o tempo que passaria com Clay
A conta bancária de Jeremy também estava no meu nome no de Clay, o que nos permitia retirar dinheiro.
Eu tinha um cartão para o caixa eletrônico, mas me desfiz dele no ano anterior ao sair de Stonehaven. Agora
desejava não havê-lo feito. Bear Valley era o tipo de povoado onde as pessoas continuavam indo ao balcão;
assim as máquinas sempre estavam livres. Fiquei na fila durante quinze minutos, enquanto um ancião
contava à caixa a respeito de seus netos, olhei com tristeza o caixa eletrônico. Quando começou a mostrar
suas fotografias, perguntei-me quanto demoraria a tirar um novo cartão para a máquina. Suspirando,
abandonei a idéia. Provavelmente teria que preencher dois formulários triplos e esperar que o gerente
voltasse de seu descanso do meio da amanhã de uma hora de duração. Fosse como fosse, não pensava ficar
em Stonehaven o suficiente para necessitá-lo.
Finalmente cheguei até ao balcão e tive que mostrar três identificações assinadas e com fotografia antes
que me deixassem retirar algumas centenas de dólares da conta. Pus o dinheiro no bolso, fui para a porta e
vi uma pick up marrom no lugar onde estava estacionada a Mercedes. Pensando que devia estar confusa a
respeito de onde Antonio tinha estacionado, saí e olhei em redor. O lugar detrás da pick up estava vazio.
Havia um Buick na frente. Olhei em uma e outra direção. Não havia sinal do Mercedes.
PRISIONEIRA
Havia tantas Mercedes em Bear Valley como porches, assim não tive que passar muito tempo estudando
a rua para saber que o automóvel de Antônio não estava ali. Só podia imaginar dois motivos para que me
abandonassem. Um, a mulher que controla os parquímetros andava fazendo suas rondas e nenhum dos dois
tinha uma moeda para o parquímetro. Dois, não pode me ver no Banco tão bem como eu acreditava e, como
demorei muito, acreditaram que eu tinha fugido. Havia uma terceira possibilidade:
Clay estava realmente zangado comigo, desacordou Antônio com um golpe e se foi, me deixando entregue
a minha sorte. Um lindo final dramático, mas não muito provável.
Havia atrás do Banco um pequeno estacionamento sem pavimentação para os empregados e os clientes
que não queriam gastar os dez centavos por hora nos parquímetros da frente. Olhei ali e só havia uma
minivan e outra Pick up. Esforcei-me para escutar. A tão poucos metros da rua tudo estava silencioso, como
se os edifícios da rua principal fossem construídos para bloquear qualquer som e circunscrevê-lo ao distrito
comercial. À distância escutei um motor diesel bem potente. Definitivamente não era uma Pick up. Fechei
os olhos e eliminei todos outros ruídos. A Mercedes estava a poucas quadras de distância. O som de seu
motor se desvanecia, logo voltava e se desvanecia parecia mover-se lentamente em círculos. Onde?
Logicamente em outro estacionamento, onde Antônio dava voltas, me esperando. Não tinha entendido
alguma instrução? Devia encontrá-lo em outro lugar? Isso não tinha sentido, já que Clay nem sequer queria
que eu entrasse sozinha no Banco. Bom, qualquer que fosse o motivo, não tinha sentido que ficasse parada
ali pensando.
Havia uns rastros estreitos de automóvel que iam por um beco em direção ao automóvel que dava voltas.
A passagem era barrenta e era apenas da largura suficiente para que a Mercedes compacta pudesse
atravessá-lo sem temor de arranhar os retrovisores, mas sabia que Antônio não se preocuparia com a terra
ou com os arranhões. Tanto Clay como Antônio gostavam de seus automóveis caros, mas eram elementos
puramente utilitários, que lhes serviam para chegar do ponto A ao ponto B rápido e comodamente. Não lhes
interessava vangloriassem.
Fui pelo beco, esquivando os atoleiros e os profundos rastros barrentos. A certa altura, o beco tinha uma
bifurcação para a direita. Não era necessário seguir os rastros do automóvel para saber que tinha que
contínua em linha reta. Tentar uma curva com tão pouco espaço teria significado perder algo mais que umas
capas de pintura. Ao adentra cada vez mais no caminho principal, o beco se alargou e se inclinou para cima
levemente, passando do barro ao cascalho. À direita da passagem se alinhavam depósitos de lixo, mas
deixando espaço suficiente para que passasse a Mercedes. O chão mais seco simplesmente servia para que
notasse mais a quantidade de água barrenta que havia entrado em meus sapatos. A cada novo passo, meu
calçado soava e meu ânimo piorava. Estava pronta para dar volta, voltar para Banco e ligar para Jeremy,
pedindo que me buscasse; quando vi um brilho prateado adiante. Detive-me. A uns trinta metros o beco
desembocava em um lote vazio e cheio de mato. Enquanto olhava, a Mercedes passou pela entrada do
beco. Agitei os braços, mas o automóvel desapareceu.
–-Vamos, rapazes –-murmurei–-, é muito cedo para brincar de esconde-esconde.
Segui adiante com meus sapatos molhados, agitando os braços em direção à Mercedes cada vez que
cruzava o beco repetindo epítetos malévolos cada vez que seguia sua rota. Ao passar por outra bifurcação
do beco, escutei um ruído suave, mas o ignorei porque não estava com humor para bisbilhotar. Uns três
metros mais adiante, senti pisadas no cascalho e vi uma grande sombra à esquerda de meu campo de visão.
Clay Estava à contra vento, mas não precisava cheirá-lo para reconhecer seu tipo de brincadeiras.
Quando virei para enfrentá-lo, uma mão me pegou pela camisa e me lançou de cara ao chão. Bom. Não
era Clay.
– Levante-se – disse uma voz uma vez que uma figura enorme passava sobre mim.
Elevei a cabeça, cuspindo cascalho e sangue.
–- O quê? Nenhuma frase engenhosa?
–- Levante-se.
Cain voltou a me pegar pela gola e me elevou, para depois me deixar cair com tanta força que torceu meu
tornozelo. Recuperei-me rapidamente, limpei a terra do rosto e passei os dedos pelo cabelo.
– Essa não é maneira de saudar uma garota, Zack –- disse –-. Por isso sempre tem que pagar para ter
relações sexuais.
Cain ficou parado ali de braços cruzados, sem dizer nada. Media ao menos dois metros e seus ombros
ocupavam a metade da largura da passagem. Tinha cabelo loiro escuro sobre um rosto com traços que
correspondiam mais com os de um buldogue que com os de um lobo.
–-Esperas que corra? –- perguntei –-. Ou continua pensando em sua resposta?
Lançou-se para frente. Eu girei e corri para o final do beco. Um vira-lata sempre fica parado e briga. Um
membro da Matilha sempre sabe quando correr. Eu não podia vencer ao Zachary Cain nem em meu melhor
dia e hoje não era ele. Media a metade que ele, mas era mais rápida o dobro. Se pudesse chegar ao final do
beco, estaria a salvo. Havia dois tipos ali, cada um dos quais podia enfrentar Cain sozinho e eu não era
suficientemente teimosa ou estúpida para me negar a pedir ajuda. No meio do caminho, a Mercedes voltou
a passar lentamente pela saída do beco. Elevei os dois braços para chamá-los e meu pé esquerdo torceu.
Quando caía vi desaparecer lentamente o automóvel prateado.
Fiquei de pé, mas era muito tarde. Novamente Cain estendeu a mão e me puxou pela parte de atrás da
camisa. Esta vez me levantou e me sustentou no ar. Meu pé esquerdo bateu contra uma lata de metal e eu
contive um uivo de dor. Com sua mão livre, Cain me segurou por debaixo do queixo e me jogou contra a
parede. Minha cabeça bateu nos tijolos e meu crânio se encheu de relâmpagos. Sustentou-me ali um
momento, com os pés no ar. Logo elevou a outra mão e arrancou minha camisa
–- Não há muito para ver, não? –- disse, me esforçando para falar com a garganta apertada –-. Já sei,
nestes tempos essas coisas se arrumam. Pode me chamar de feminista, mas eu acredito firmemente que o
valor de uma mulher não deve definir-se pelo tamanho de seu busto, a não ser…
Golpeei seu Pomo-de-adão com meu punho. Grunhiu e deu uns passos cambaleantes para trás.
–-... pela força de seu gancho de direita –- disse, me lançando contra ele antes que recuperasse o
equilíbrio.
Cain caiu. Quando caiu, fiquei em cima dele e lhe apertei a garganta contra o chão.
–- Sim, posso falar e pensar ao mesmo tempo –- disse –-. A maioria das pessoas podem fazê-lo, embora
suponho que não sabia...
Rugindo, Cain tentou levantar um braço. Ele estava no ar quando um sapato empurrou a mão de volta ao
chão.
– Não, senhor – disse Clay parado detrás de mim. –- Já brincou bastante com Elena. Bate em mim.
Esperei que Clay pusesse seu pé na garganta de Cain e então o soltei. Antônio estava parado ao lado.
–- Uma armadilha? –- perguntei.
Antônio assentiu.
– Clay o viu rondando o beco. Supusemos que viria nos procurar.
– De modo que deixaram um rastro e deram voltas nesse lote vazio, esperando que eu mordesse o anzol
e que Cain me pegasse como isca Ns~od0.
– Algo assim.
Clay levantou Cain. Tinham desaparecido a cor avermelhada e as bolsas sob os olhos do Clay – Agora estava
totalmente acordado. Isto era o que ele esteve esperando.
Cain media seus bons quinze centímetros a mais que ele e o superava em peso por uns trinta quilogramas.
Era uma briga entre pares.
Os dois deram um passo atrás e se olharam. Então Cain deu um passo para esquerda em direção ao Clay.
Clay se adiantou para a direita. Repetiram o movimento, olhando-se fixo aos olhos, cada um vigiando ao
outro. O patrão desse ritual estava incorporado em nossos cérebros. Dar um passo, girar, observar. Para
ganhar, teria que lançar-se sem que o outro pudesse prevê-lo ou notar que o outro estava por fazê-lo e
correr. A coisa seguiu vários minutos. Então Cain perdeu a paciência e se equilibrou. Clay correu, pegou-o
pela cintura e o lançou contra o muro. Cain se recuperou em um instante e golpeou Clay no peito, lançando-
o ao chão.
Não vou contar os detalhes, em parte porque séria uma aborrecida narração de golpes, cotovelada,
grunhido, tropeção, recuperação, e também em parte porque não olhei tão atentamente. Não é que não
me interessasse, ao contrário, não olhava porque estava muito interessada. Ficar sem fazer nada enquanto
golpeavam, chutavam e lançavam Clay contra a parede era mais do que podia suportar. E não é que de vez
em quando eu mesma não quisesse fazê-lo, mas isto era diferente. Sentiria-me do mesmo modo vendo
qualquer de meus irmãos de Matilha metido em uma briga. Não era só pelo Clay. De verdade.
Embora não olhasse a briga, isso não me impedia de cheirá-la. Cheirei o sangue primeiro de Cain, mas em
seguida o de Clay. Ao levantar o olhar, saia sangue do nariz e da boca de Clay, o que o fazia tossir.
Antônio e eu tentamos ficar olhando. Assim lutamos. Um contra outro, sem armas nem truques. Era o
lobo em cada um de nós quem ditava as regras do combate: o lado humano nos levaria a ganhar a qualquer
custo. Isso não quer dizer que fôssemos permitir que Clay fosse morto. Se tal possibilidade chegasse a
parecer certa, a lealdade com o irmão de Matilha estava acima de todos outros códigos de conduta. Mas há
muito sangue e ossos quebrados entre a vida e a morte, e até que se cruzasse essa linha não podíamos
intervir.
Terminou finalmente com Cain jogado no cascalho. Como não se levantava, pensei que estava morto.
Então vi que suas costas se moviam com um ritmo de respiração regular.
Inconsciente –- disse Clay esgotado, passando-a manga da camisa pelo nariz ensangüentado –-. Agora
pode olhar.
–- Estava olhando –- disse –-, virei-me porque pensei que tinha ouvido algo no fundo do beco.
Clay sorriu e um novo jorro de sangue saltou de seu lábio superior partido.
–- Não comecem –- disse Antonio –-. Temos que levar este vira-lata a Stonehaven para que Jeremy possa
interrogá-lo. Elena, pode ir até o automóvel? Assegure-se que não haja ninguém à vista. Clay, você pega as
chaves e abre a mala. Eu o carrego
O beco terminava em um lote vazio, tal como pensei. Há algum tempo se podia acessar ao caminho para
o norte, mas agora havia uma barricada de esgotos de dejetos, de modo que a única saída era para o sul
pelo beco. As latas que fechavam a passagem não impediam de passar caminhando, assim fui vigiar dali.
Detrás de mim, Antônio e Clay carregaram Cain para a mala. Depois Clay veio para meu lado.
– Está bem? – perguntou
– Fora minha bochecha arranhada, o tornozelo torcido, uma possível concussão cerebral, os tênis
enlameados e a camisa rasgada, estou muito bem. Usem-me como isca quando quiserem.
–- Alegro-me que o veja assim
–- Tome cuidado ou terá algo mais que seu nariz ensangüentado e o lábio partido. –-Dirigi-lhe um olhar
fugaz. –- É tudo?
–- Talvez algumas costelas machucadas. Nada permanente.
Ele rasgou sua camisa e usou o tecido para conter o sangue.
Quando chegamos ao automóvel, Antônio estava fechando a mala. O corpo inconsciente de Cain ocupava
até o último milímetro.
–- Suponho que não procuraremos as provisões–- disse.
– Parece que não –- disse Antônio –- teremos que comprar algo para comer a caminho de casa.
Acreditei que estava brincando. Não era assim. Antes de sair do povoado, Antônio parou no centro
comercial e foi em busca de sanduíches e saladas, deixando Clay e eu meio nus e sangrando no automóvel
e ao Cain inconsciente na mala. Não é para surpreender-se por eu está tão ansiosa para voltar a Toronto. Se
uma pessoa passar muito tempo com esta gente, começam a não se importar com roupa ensopada de
sangue e os tipos presos na mala do automóvel.

Em Stonehaven, Antônio e Nick levaram Cain, ainda inconsciente, para jaula, enquanto Jeremy
inspecionava nossas feridas. Deu-me duas aspirinas para a dor de cabeça, e desinfetante e comiseração por
meus arranhões e golpes. Clay recebeu uns pontos em seu lábio cortado, um espartilho de ataduras para as
costelas e uma chamada de atenção por me usar como isca face ao que eu disse a Clay, isso não me
incomodava. Caçar Cain valia uma camisa rasgada e uma dor de cabeça. Clay sabia que eu podia suportar e
eu estava contente por isso. Sentiria-me mais zangada se ele pensasse que não posso me arrumar com os
moços. É obvio que não o perdoei nem o defendi. Ao menos em voz alta. Se o fizesse, Jeremy se preocuparia
muito mais pelo golpe em minha cabeça.
Uma vez que Cain ficou enjaulado e Jeremy terminou com suas tarefas curativas, pudemos almoçar.
Depois, Nick e Antônio foram de novo ao povoado para buscarem as provisões, enquanto Jeremy, Clay e eu
falávamos da informação que queríamos obter de Cain. Ao redor do meio da tarde, gritos e ruídos que
chegavam do porão nos disseram que o prisioneiro estava acordado. Lavamos os pratos e logo Jeremy e Clay
desceram à jaula para iniciar a tarefa
Eu fiquei em cima. Podia descer se quisesse, mas sabia o que ia acontecer; assim fiquei no escritório, onde
podia ouvir o que Cain dissesse sem necessidade de ver o que o obrigava a falar. A tortura me incomoda.
Talvez soe tolo, considerando a quantidade de violência que fui testemunha e em que participei na minha
vida. Mas havia algo a respeito de se maltratar a alguém que não podia se defender que me dava calafrios e
pesadelos ao dormir. Possivelmente fossem vestígios de minha patologia de vítima na infância, enterrada
no profundo de minha psique. Faz anos fui ver um filme de terror com Clay. Quando chegou uma cena em
que queimavam pessoas com gasolina, eu tampei os olhos e Clay olhou sem replicar. Embora eu não pense
que ele fez isso a alguém, ele já fez coisas igualmente terríveis. E eu sabia por que havia estado ali. Tinha-o
visto as fazer e o que mais me assustava era seu olhar. Não ardiam de excitação seus olhos como quando
perseguia a sua presa. Pareciam azul, frios e impenetráveis. Quando torturava a um vira-lata, era
completamente metódico e não mostrava nenhuma emoção. É obvio que me preocuparia muito mais se
isso o fizesse feliz, mas há algo igualmente terrível em alguém que pode fazer coisas assim tão concentrado.
A maioria das pessoas tortura em busca de informação. Clay a usa por outro motivo: para dar um exemplo.
Por cada vira-lata que mutilava e deixava vivo, havia cinco mais que viam o vira-lata e aprendiam uma lição:
“não se metam com a Matilha". Por cada um que matava, havia uma dúzia que se inteirava. Quem pensasse
em atacar a um membro da Matilha só tinha que recordar essas histórias para mudar de idéia. A maioria dos
licántropos não temia morrer, mas havia coisas piores que a morte e Clay se assegurava de que soubessem.
Sentada no escritório escutando o que acontecia lá embaixo, tive que reconhecer que os métodos de Clay
tinham outra vantagem. Quanto mais se conhecia sua reputação, menos tinha que fazer para mantê-la. Não
havia chiados que gelassem o sangue enquanto Clay interrogava ao Cain. Nas quatro longas horas de
interrogatório, escutei três grunhidos de dor quando Clay presumivelmente bateu em Cain por não
responder. Que Clay estivesse ali parado e saber o que ele podia fazer bastava para fazer Cain falar.
Dos três vira-latas com experiência em Bear Valley, Zachary Cain era a pior opção como informante. Os
planos que Daniel e Marsten se dignaram a comentar com ele se perderam no deserto de seu cérebro.
Segundo Cain, Jimmy Koenig também era parte da "Insurreição revolucionária", mas ainda não tinha
aparecido.
Cain tinha se juntado a eles porque queria liberar-se da tirania, frase sem dúvida assimilada por ter visto
“Coração valente” muitas vezes. Como disse Cain de modo tão eloqüente, estava "cansado de ter que olhar
para trás cada vez que urinava do lado equivocado". Como a Matilha nunca se interessava pelos hábitos
urinários dos vira-latas supus que aludia que lutava por seu direito de matar seres humanos sem temor de
represálias. Coisa que estou segura de que está coberta pelas subcláusulas para licántropos da Constituição
dos Estados Unidos – Segundo Cain, Koenig queria o mesmo: exterminar à Matilha, do mesmo modo que os
assassinos sonham eliminando à polícia. Por algum motivo, estavam convencidos de que se a Matilha
acabassem teriam mais liberdade para exercer o canibalismo sem temor de represália. Daniel, como
sempre, tinha planos mais grandiosos. Queria liquidar a Matilha e criar a sua própria. Provavelmente
pensando em alguma forma de máfia de licántropos. Cain não tinha claros os detalhes e não lhe interessava.
Quanto a Marsten, Cain não sabia por que tinha se unido. E tampouco lhe importava.
Quanto aos novos recrutas, Daniel arquitetou o plano. Fez investigações, encontrou aos sujeitos e cumpriu
com o papel psicopata Padrinho: Fez-lhes uma oferta que não puderam rechaçar. Se o ajudassem a eliminar
alguns velhos inimigos, garantiria-lhes o corpo do assassino perfeito. Nenhum se negou. A partir de ali,
Daniel atribuiu um recruta a cada um de seus camaradas. Daniel se encarregou de dois, mordendo e
treinando Thomas Le Blanc e ao vira-lata que Jeremy matou na emboscada. Marsten se encarregou de Scott
Brandon. Ainda não conhecíamos o protegido de Cain. Aparentemente era um homem chamado Victor
Olson, que ficou esperando no automóvel no dia que Cain nos fez persegui-lo pelo bosque. Jeremy
perguntou a Cain o que havia feito Olson em sua vida humana. Essa era a pergunta que eu teria feito eu, e
acredito que Jeremy só a fez para me satisfazer... e porque sabia que estava escutando. Cain não sabia dos
detalhes com clareza, porque lhe interessava tão pouco o passado do Olson como qualquer outra coisa que
não lhe concernisse diretamente. Só sabia que Olson esteve preso por "meter-se com algumas garotas e
matar a uma delas”. Isso soava a violador em ascensão para o tipo de assassino que era Thomas Le Blanc.
Não era exatamente um assassino experiente, mas Daniel devia ter visto um potencial nele, já que enviou
Cain até o Arizona para tirar Olson do cárcere.
Como Cain já estava fora de circulação, restavam dois vira-latas experientes e dois novos. Não é verdade?
Oxalá. Como disse, Koenig ainda não chegou. Seu recruta se recuperava de ter sido mordido, mas logo
estariam em Bear Valley. Lutar contra esses tipos era como enfrentar a uma Hidra. Cada vez que cortávamos
uma cabeça, apareciam algumas mais. Clay tentou tirar mais coisas de Cain, mas não insistiu muito. Até
então Cain não tinha tentando guarda nada, assim não era provável que começasse a fazê-lo agora. Sua vida
estava em jogo. Diria absolutamente tudo para salvar-se da tortura, embora isso significasse condenar a
morte seus companheiros de conspiração. A lealdade de um vira-lata era algo que elevava o espírito.
Já passavam das dez quando Jeremy subiu. Veio ao escritório onde eu estava aconchegada em sua
cadeira.
– Algo mais? – perguntou.
Sacudi a cabeça ele voltou para baixo. Houve um grito, um som baixo, metade fúria, metade rogo. Logo
o silêncio. Segundos mais tarde, a porta do porão se abriu e escutei os passos de Jeremy indo para o pátio
traseiro. Sabia que devia deixá-lo só por um momento. Quando a porta se abriu pela segunda vez, coloquei
a cabeça para fora do escritório. Clay esfregava o rosto com uma mão. Tinha a camisa cheia de gotas de
sangue. Parecia exausto, como se tivesse passado as últimas quatro horas esmurrando Cain em vez de ficar
calado e ameaçador. Ao me ver, mal conseguiu sorrir.
– Oi.
– Pronto? – perguntei.
– Sim. Está morto. Tiraremo-lo amanhã. Agora está na jaula. – esfregou a nuca. Comeu?
Sacudi a cabeça.
– Tônio fez um guisado. Quer? – perguntei.
– Neste momento quero me banhar, mas se esquentar o jantar, descerei antes que esteja pronta. Jeremy
não vai ter fome por um momento, assim terá que comer comigo. Está bem?
Assenti e ele subiu as escadas.
Uma hora mais tarde, Clay e eu entramos no escritório e encontramos Jeremy ali, recostado em sua
cadeira com os olhos fechados. Abriu-os pela metade quando entramos.
– Sinto muito – disse –. Quer que saiamos?
Com sua mão sã nos indicou que entrássemos, logo voltou a fechar os olhos. Eu me sentei no sofá
enquanto Clay preparava uns drinques. Deixou um junto a Jeremy, mas ele não se moveu.
– Assim temos quatro no povoado – disse ao Clay quando se sentou a meu lado –. Mais outros dois a
caminho. A coisa é o que faremos.
– Matar a todos.
– Bom plano – murmurou Jeremy, sem abrir os olhos-, muito sucinto.
– Ouça, se não quiser ouvir o que penso, não escute.
– Eu cheguei aqui primeiro.
– Acreditávamos que estava dormindo – disse.
Jeremy levantou uma coxa, logo voltou a ficar em silêncio, com os olhos ainda fechados. Clay passou a
mão detrás de mim em busca de sua taça, tomou um sorvo, logo voltou a pôr um braço detrás de minha
cabeça, com seus dedos me tocando o ombro.
– Devemos liquidar ao primeiro Daniel –disse –. É o chefe. Ninguém mais sabe como organizar uma
Matilha. Se arrancarmos o centro, tudo cai em pedaços.
– Certo – disse –. Será fácil. É tão fácil. O único motivo pelo que não matou Daniel até agora é que não
superou o profundo carinho que sente por seu companheiro de brincadeiras de infância, não é certo?
Clay bufou.
– Exatamente – disse –. Está vivo porque sabe como opera e não vai cair em uma armadilha como Cain.
Eu acho que devíamos ir atrás dos dois novos primeiro. São dois imponderáveis. Se nos desfizermos deles,
saberemos exatamente com o que nos enfrentamos.
– Não vou perder meu tempo com um par de vira-latas novos.
– Então o farei eu. Sem você.
– Merda. Bateu a cabeça contra o respaldo do sofá. Jer, está escutando isto?
– Agora estou dormido – disse Jeremy.
Ficou em silêncio um momento. Como não retomamos a conversa, suspirou e abriu os olhos.
– Clay tem razão terá que centrar-se em Daniel –disse Jeremy –. Mas matá-lo não é tão fácil. Conformarei-
me falando com ele,
– Ralhar com ele? – disse Clay –. Por quê?
– Porque sei como é e possivelmente possa ser mais fácil apaziguá-lo que pôr em risco mais vidas ao lutar
contra ele. Se Daniel sair do quadro, os outros se separarão, tal como disse. Então os atacamos
individualmente e destruímos qualquer ameaça futura. Quanto ao Daniel mesmo, será mais fácil encarregar-
se dele quando estiver sozinho. Tolerei muitas coisas dele porque era da Matilha e seu pai era um bom
homem. Já não. Damo-lhe o que quer esta vez, depois o vigiamos. Se matar a um ser humano, embora seja
na Austrália, morrerá.
– O que faz você pensar que Daniel vai negociar? – disse –. Cain parecia pensar que quer eliminar à Matilha
– Possivelmente, mas mais que isso quer vingança – disse Jeremy –. Quer-nos de joelhos. Se lhe
oferecemos negociar, verá que teve êxito. Quando perceber que Zachary Cain está morto, começará a se
preocupar. Jimmy Koenig ainda não aparece. Tudo o que tem é ao Karl Marsten.
E os dois novos vira-latas?
– Eles não têm nada a ganhar nesta batalha. Os recrutou para uma guerra que não lhes concerne. Só
brigam porque fizeram um trato com o Daniel. Já têm o que queriam dele. Quando virem que as coisas
ficaram contra eles, ir-se-ão. Que motivação os retém aqui? Não se relacionaram o suficiente com a Matilha
para desejar vingança. Não são licántropos a tempo suficiente para que lhes nasça à necessidade de ter um
território. Por que brigariam?
– Por diversão. – Virei-me para Clay – Você viu Brandon no bar, como matou aquele homem, o prazer que
lhe deu. Alguma vez viu um licántropo agir assim?
– Não estamos lhes subtraindo importância, carinho – disse Clay –. Le Blanc morrerá pelo que fez ao Logan
e ao Jeremy. Não o esquecerei.
A mão de Clay caiu do sofá a meu ombro e brincou com minha camisa. Reclinei-me contra ele, sentindo o
efeito de um drinque com muito álcool e as noites sem dormir. Quando Jeremy fechou os olhos novamente,
eu fiz o mesmo, enquanto deixava cair minha cabeça sobre o ombro de Clay. Ele se inclinou para mim e
apoiou sua outra mão em minha perna. Senti o calor através de meus jeans. Seu fôlego cheirava a uísque.
Estava a ponto de dormir quando a porta se abriu de repente.
– O que é isto? – disse Nick – É hora de dormir?
Ninguém respondeu. Mantive os olhos fechados.
– Parece contente, Clayton – continuou Nick, deixando-se cair no chão –. Não terá nada que ver com o
fato de que Elena está aconchegada contra você, verdade?
– Faz frio aqui – murmurei.
– Não sinto frio.
– Faz muito frio – grunhiu Clay.
– Poderia queimar um obstáculo.
– Eu também poderia fazê-lo – disse Clay–, com sua roupa. E sem tirá-la de você.
– Está sugerindo algo, Nick – disse Antônio da porta –. Sugiro que entenda o que ele está dizendo a você.
Não desejo passar minha velhice sem um filho que cuide de mim.
Escutei Antônio atravessar o escritório. Soaram copos quando serviu dois drinques. Logo se acomodou na
outra cadeira. Nick ficou no chão, estirado e apoiado em nossas pernas. Passados alguns minutos, houve
silêncio novamente, interrompido só por ocasionais murmúrios de conversação. Logo a sonolência que me
afetava estendeu seus suaves tentáculos aos outros. As vozes se tornaram murmúrios, a conversa se fez
escassa, e logo se evaporou no silêncio. Estirei meus dedos sobre o peito de Clay, para sentir o batimento
de seu coração e deixar que ele me arrulhassem até que dormisse.
APRESENTAÇÃO
Quando despertei, recordei vagamente de haver dormido no sofá e comecei a me acomodar em
concordância, com os braços para fora e as pernas para baixo para evitar me deslizar ao chão. Então notei
que meus membros não estavam onde eu esperava. Meus braços estavam dobrados debaixo de um
travesseiro e minhas pernas enredadas em lençóis. Sentia o aroma de amaciante de roupa. Abri um olho
para ver a silhueta de um galho de árvore dançando sobre as cortinas de minha cama. Surpresa e mais
surpresa. Não só estava em uma cama, mas também era a minha. Geralmente, se adormecesse lá embaixo
com Clay, ele me levava ao seu quarto como um cavernícola que arrasta a sua companheira até sua guarida.
Despertar em meu quarto foi uma surpresa próxima a uma comoção... até que despertei o suficiente para
sentir o braço em minha cintura e os suaves roncos sobre minhas costas. Ao me mover, os roncos cessaram
e Clay se aproximou.
– É bom que recorde como se acomodar em minha cama – disse.
– Estava contigo quando dormiu – murmurou sonolento. Não me pareceu que fizesse muita diferença que
ficasse contigo.
Olhei meu corpo nu.
– Lembro que estava vestida quando adormeci contigo.
– Quis que estivesse cômoda
– E você também, conforme vejo – disse, movendo as pernas e sentindo sua pele nua contra a minha.
– Se quer ver, terá que se virar.
Soprei:
– Não é provável que o faça
Apertou-se contra minhas costas. Sua mão passou de meu quadril a meu estômago. Voltei a fechar os
olhos, meu cérebro ainda à deriva na névoa, semi-adormecida. Sentia Clay quente contra mim, o calor de
seu corpo me defendia da frieza da madrugada. As cortinas mantinham a cama às escuras e convidavam a
ficar. Fora do quarto, a casa estava em silêncio. Não havia motivo para nos levantar ainda e nenhuma
necessidade de inventar um motivo. Estava cômoda. Precisávamos descansar. A idéia e a sensação do corpo
nu de Clay junto ao meu gerou algumas imagens e idéias involuntárias, mas ele não fazia nada que
provocasse a necessidade de resistir. Respirava lenta e profundamente, como se estivesse dormindo. Suas
pernas estavam enredadas com as minhas, mas quietas, igual a suas mãos. Passados alguns minutos,
começou a me beijar a nuca. Não havia motivo de alarme ainda. Minha nuca dificilmente era uma zona
erógena, embora o que ele fazia me resultava agradável. Muito agradável, na realidade. Especialmente
quando moveu sua mão para tirar meu cabelo do ombro e levou a ponta de seus dedos por minha mandíbula
até meus lábios.
Abri um pouco a boca e tirei a língua para sentir o gosto de seu dedo, logo passei a língua pela aspereza
de sua unha. Quando abri os lábios, colocou a ponta de seu dedo entre meus dentes. Mordisquei-o, sentindo
as rugas de sua pele com os dentes. Baixou com seus lábios por meu pescoço. Seu fôlego fez cócegas nos
pêlos que havia ali e me produziu um calafrio. Enquanto lhe mordiscava o dedo, seus lábios e sua outra mão
me percorreram as costas e me arrepiou a pele. Sua mão deslizou para acariciar o terreno baixo entre minhas
costelas e meu quadril. Quando sua mão baixou ao meu estômago, soltei seu dedo e me virei para ele. Pô-
me de lado, de cara a ele e começou a me beijar. Os beijos eram suaves e lentos, compassados com o ritmo
de suas mãos que exploravam meu corpo, que se deslizavam por meus flancos, minhas costas, meus braços,
meus ombros, minhas coxas e meus quadris. Mantive os olhos fechado, flutuando em algum ponto entre o
dormir e o despertar. Apertei-me a ele, desfrutei do calor de sua pele, dos planos suaves e da pele de seu
corpo. Quando senti sua dureza contra meu estômago, não tive dúvidas do que fazer a seguir. Meu corpo
respondeu sem instruções: ficou de costas, separei as pernas e...

– Ligou para ele ontem? – perguntou-me Jeremy.


– Hem? – Estava esvaziando a máquina de lavar pratos. Minha mente ainda continuava na cama com Clay
– Seu amigo ligou antes que despertasse. Deixou seu celular no corredor da frente.
Minha mente saiu do dormitório de um salto.
– Atendeu?
– Preferia que esperasse que Clay atendesse? Não ligou para ele, não é verdade? – Não esperou resposta
– Não se preocupe, não disse nada, assim qualquer que seja a história que inventou, está a salvo. Parece
que espera que volte hoje
– Eu o arrumo.
– Elena.
– Eu o arrumo.
Deixei o último prato e me dirigi a porta.
Não liguei para Philip porque me esqueci dele. Soava horrível, mas era a verdade. Amava a esse homem,
sabia, e isso fazia que a coisa fosse ainda pior. Se ao menos pudesse dizer que não estava apaixonada por
ele... apaixonada? Sentia amor pelo Philip? Caralho, era uma expressão tão tola e gasta. Sentir amor. Não
existe isso de "sentir amor”... Existe “sentir desejo”, “sentir uma fixação” e “sentir uma quentura”, três
sentimentos normalmente destrutivos que não têm nada que ver com o amor real e duradouro. Esqueci de
Philip porque assim era como enfrentava esta confusão, dividindo minha vida em dois compartimentos, o
humano e o da Matilha. Philip pertencia ao mundo humano, e sequer pensar nele enquanto estava no
mundo da Matilha de algum modo degradava o que havia entre ele e eu. Ao menos essa foi a explicação que
me dei.
Estava para procurar meu celular no corredor da frente quando Clay apareceu. Naturalmente não podia
me acusar e correr para cima com o telefone. Assim deixei o telefone onde estava e saí a caminhar com o
Clay. Pensava em ligar para Philip quando voltássemos, mas ao negar à porta, Jeremy nos recordou que
tínhamos que nos desfazer do corpo de Cain. A partir dali as coisas ficaram complicadas e à luz do que
aconteceu nesse dia, acredito que possa me perdoar por ter esquecido de ligar para Philip... novamente.

Nos bons velhos tempos quando não imperava a lei e havia juizes de distrito, a Matilha podia jogar os
corpos onde quisesse. Quando os humanos começaram a preocupar-se mais com as pessoas mortas e
desaparecidas, a Matilha teve que começar a enterrar aos vira-latas que matava Hoje, com as análises post
mortem e as unidades de detetives vinculadas através de computadores e os testes de DNA, desfazer-se de
um corpo é um trabalho importante que exige meio-dia de preparação e de trabalho. Todos os membros da
Matilha foram instruídos na matéria e podíamos nos desfazer de um corpo melhor que o assassino humano
perito nas técnicas forenses.
Fomos com o Explorer uma hora para o norte, evitando todas as zonas que tivéssemos utilizado para
coisas similares nas últimas décadas. Passamos outra hora percorrendo um caminho de serraria e entrando
com a 4x4 profundamente no bosque. Logo tiramos o corpo da Caixa e o arrastamos a um lugar apropriado
onde o despimos, lavamos e examinamos para ver as feridas. A única marca no corpo eram duas manchas
sob a garganta, deixadas pelos polegares de Clay quando lhe quebrou o pescoço. Por segurança, Clay tirou
as contusões. Não queiram saber como. Prefiro não contar os detalhes. Finalmente enterramos Cain a dois
metros de profundidade. Eu repus cuidadosamente a terra enquanto Clay trazia duas rochas muito pesadas
para que as elevasse um ser humano e as colocou sobre a tumba. Fomos até o Explorer, cobrindo nossos
rastros, e logo fomos até um segundo lugar.
O segundo lugar se escolhia com a mesma cautela que o primeiro, mas a mais de uma hora de distância.
Ali cavamos um poço, jogamos a roupa, a identificação e as bolsas e tecidos que usamos para transportar e
limpar o corpo. Empapamo-las em querosene e as incineramos, tentando que houvesse a menor quantidade
de fumaça possível. Reduzido tudo a cinzas, Clay enterrou os restos e declaramos a tarefa cumprida.
Provavelmente não era perfeito, mas ninguém procurá Zachary Cain. Os vira-latas não deixam parentes.

Estávamos a menos de vinte minutos de Stonehaven quando vi o reflexo de luzes azuis no espelho
retrovisor. Olhei caminho acima e caminho abaixo, segura de que as luzes eram para outro. Sabia que não
havia infligido nenhuma lei. A coisa mais idiota que se podia fazer depois de enterrar um corpo era cometer
uma infração de trânsito, motivo pelo que dirigia eu em vez de Clay. O velocímetro estava há três
quilômetros por hora acima do limite de velocidade: dirigir exatamente no limite sempre me pareceu tão
suspeito como correr: Vinha viajando por um caminho reto nos últimos cinqüenta quilômetros e não havia
nenhuma possibilidade de fazer uma volta ilegal, não ver um sinal vermelho. Olhei para ver se havia
automóveis na frente e detrás, porém estávamos sozinhos. Clay olhou por sobre o ombro ao patrulheiro.
– O limite de velocidade mudou aqui? – perguntei.
– Limite de velocidade?
– Não importa. Vou parar.
– Não há problema. Está tudo limpo.
Detive-me na banqueta e cruzei os dedos, com a esperança que os policiais passassem ao lado,
convocados para alguma emergência. Em troca, o patrulheiro parou no cascalho detrás de nós. Amaldiçoei
em voz baixa.
– Está tudo limpo – disse Clay–. Deixa de se preocupar.
Um dos agentes foi para o lado do acompanhante e bateu na janela. Clay esperou o suficiente para
expressar seu descontentamento, mas não o suficiente para ser desrespeitoso, logo apertou o botão para
baixar a janela.
– Clayton Danvers? – perguntou o agente.
Clay olhou ao homem, mas não disse nada.
O jovem agente continuou.
– Meu companheiro reconheceu o veículo. Esperávamos que estivesse nele. Economiza–nos uma viagem
até sua casa.
Clay continuou olhando ao homem.
– Poderia descer do automóvel, por favor; senhor Danvers?
Novamente Clay vacilou o maior tempo que podia ser aceitável antes de abrir a porta. Tirei o cinto de
segurança e desci também, mas fiquei de meu lado. O pânico pedia resposta a minha memória. O
compartimento de trás estava limpo, não é verdade? Tínhamos limpado, não é verdade? Desfizemos de
tudo, não é verdade? Sim, sim, sim. Ao menos até onde eu sabia. O que aconteceria se tivesse passado algo
por alto? Havia um farrapo de tecido que não vimos na parte de atrás do Explorer? Nossa roupa cheirava
tão forte a fumaça para os narizes humanos como para o meu?
O outro agente, um homem robusto, perto dos quarenta, deu uma volta ao redor do Explorer, olhando
pelo pára-brisa traseiro, logo pôs o rosto grudado ao vidro escuro, com a mão por cima dos olhos para ver
para o interior.
– Há muito lugar para carga – Quanto pode colocar aqui?
– Quanto o que? – pisquei –. Ah, valises? O suficiente para umas férias, calculo.
Riu.
– Se empacotar como minha esposa, isso é muito. – Olhou ao interior forçando a vista – Bem limpo. Não
têm filhos verdade? – Riu novamente e ficou de cócoras para verificar as borrachas e a base do automóvel.
– É um desses novos veículos para todos os terrenos, não é verdade? 4x4 que não serve como 4x4.
– Pode andar fora da estrada – disse me esforçando para manter a calma enquanto olhava debaixo do
Explorer –. Mas é muito grandinho. Embora sirva para o inverno de Nova Iorque.
– Suponho que sim. – Olhou para Clay. – Que capacidade de arrasto tem um destes?
– Não tenho idéia – disse Clay, que se mantinha de lado, deixando que eu dirigisse as coisas. Era um de
seus truques para controlar-se. Evitar a confrontação.
– Nunca rebocamos nada – disse.
O policial mais velho continuava olhando sob o Explorem. Possivelmente olhasse a suspensão,
possivelmente procurava outra coisa. Esperei tudo o que pude e logo perguntei:
– Vinha muito rápido?
– Tivemos um chamado – disse o agente mais jovem, voltando-se para Clay –. Uma ligação anônima na
qual nos disseram que você sabia algo sobre o assassinato de Mike Braxton. Necessitamos que venha à
delegacia de polícia para responder algumas pergunta.
Clay apertou os dentes.
– Esperam que deixe o que seja que esteja fazendo...?
Deteve-se. Não disse nada, mas se deu conta do que eu estava pensando. Enfrentar aos policiais não ia
servir de nada. Embora ficar na defensiva poderia fazê-los retroceder se não tivessem motivos para prendê-
lo, era igualmente possível que enfrentassem a agressão com agressão e que reagissem revistando o
Explorer e mesmo ao Clay de modo exaustivo. Os policiais dos povoados pequenos nem sempre têm a
reputação de cumprir com os procedimentos. Legalmente não podiam obrigar Clay a falar com eles, porém
ao menos não iam descobrir evidências de nossas atividades matutinas mediante uma simples conversa.
Clay aceitou lhes dedicar uma hora. Foi até a delegacia de polícia no assento traseiro da viatura. Eu os
segui no Explorer. O autor da ligação “anônima" tinha que ser um dos vira-latas, assim isto poderia ser uma
armadilha. Se eu o seguia em outro automóvel, os vira-latas não iriam se atrever a tentar uma emboscada
Uma vez dentro da delegacia de polícia, estaríamos resguardados, já que não atacariam em um edifício cheio
de humanos armados.

A sala de espera da delegacia de polícia era menor que meu dormitório em Stonehaven e provavelmente
a haviam mobiliado a um custo menor do que valia meu espelho com moldura de prata. Tinha mais ou
menos três metros quadrados, com uma porta e duas janelas. A janela que dava ao sul era de vidro
espelhado e dava para um quarto ainda menor. O vidro espelhado não tinha muito sentido se as pessoas
não levavam em conta que toda a delegacia de polícia era em sua origem um centro de detenção da época
da depressão. A maioria das salas tinha que servir para uma função dupla. No caso pouco provável de que a
polícia precisasse observar a um suspeito ou manter uma interrogação importante, provavelmente usasse a
área de espera como sala de observação. Com Clay não a utilizaram; levaram-no a uma sala privada para
interrogá-lo assim que chegamos.
A segunda janela, que tinha grades, dava a uma cela onde uma recepcionista de vinte anos atendia ao
telefone, a recepção e a sala de espera, enquanto respondia ininterruptamente aos agentes que lhe pediam
que datilografasse, arquivasse e lhes levasse café. Não me perguntem por que a janela tinha grades. Talvez
por medo de que ela escapasse. As três cadeiras da sala de espera estavam estofadas com um tecido
dourado carcomido pelas traças e emendado com fita isolante. Escolhi a melhor e me sentei com cuidado,
evitando que o tecido tocasse alguma parte de minha pele e me lembrando de que devia lavar minha roupa
assim que chegasse a casa. Olhei as revistas que havia em uma mesa de aglomerado. Chamou minha atenção
a palavra “o Canadá” em um exemplar de Times. Peguei, percebi que o artigo aludia ao referendo de Quebec
e deixei a revista. Não só era um tema que curava a insônia de noventa por cento dos canadenses, mas
também, a menos que algo um pouco drástico tivesse acontecido na última semana, significava que a revista
era de cinco anos atrás. Muito atual.
Elevei o olhar e vi que a recepcionista me observava com gesto desconfiado que as pessoas reservam
habitualmente para os mendigos e aos cães raivosos. Através da janela podia ver o jovem agente que foi a
Stonehaven, que estava apoiado no balcão e falava com a recepcionista. Como os dois me olhavam, supus
que eu era o tema da conversa. Algo me disse que não falavam do lamentável estado de meus Reebok sujos.
Sem dúvida ele estava lhe contando a história de minhas aventuras pelo bosque. Justo o que eu necessitava.
Dez anos dedicados a criar uma reputação decente em Bear Valley e ia tudo ao diabo em um dia, porque me
viram brincando de correr nua pelo bosque em uma fria manhã de primavera e logo encontraram minhas
roupas feitas farrapos, produto de algum estranho ritual sadomasoquista. Os povoados como Bear Valley
tinham um lugar especial para as mulheres como eu: convidadas de honra no piquenique e fogueira anual
de verão.
Enquanto passava as folhas das revistas, a porta da sala de espera se abriu. Elevei a vista para me encontrar
com Karl Marsten, seguido de Thomas Le Blanc. Marsten vestia calças de tecido de algodão, sapatos de couro
que custavam mil dólares e uma camiseta cara. Não notei o que vestia Le Blanc. Junto a Marsten, ninguém
se fixaria nele. Marsten entrou com ar descuidado, não fingido, de alguém que passou anos estudando como
agir assim. 'Tinha as mãos nos bolsos, o suficiente para parecer relaxado, não o suficiente para que suas
calças se deformassem de um modo pouco elegante. O meio sorriso em seus lábios era a mistura perfeita
de interesse, aborrecimento e diversão. Quando sorriu para recepcionista, ela se endireitou e suas mãos
instintivamente acomodaram sua blusa. Ele murmurou umas palavras. Ela se ruborizou e se acomodou na
cadeira com os olhos brilhantes. Marsten se aproximou da grade e disse algo mais. Então se virou para mim
e levantou os olhos. Sacudi a cabeça. O único traço positivo de Karl Marsten é que sabia exatamente o
quanto era falso.
– Elena – disse, sentando-se ao meu lado. Manteve a voz baixa, embora não sussurrasse - Parece bem.
– Não pratique comigo, Karl.
Riu.
– Quero dizer que estar surpreendentemente bem logo depois de ter topado com Zachary Cain. Suponho
que por isso tem um arranhão na bochecha. Também suponho que ele já não esteja no jogo.
– Algo assim.
Marsten se inclinou para trás e cruzou os tornozelos, obviamente muito preocupado pelo falecimento de
seu sócio.
– Não vi você por um tempo. Quanto passou, dois anos? Muito. Não me olhe assim. Não estou praticando
contigo e não ataco você. Deus me deu uns gramas de cérebro. Simplesmente quis dizer que é raro falar
contigo. Não obstante, sua companhia é sempre intrigante.
Le Blanc se sentou do meu outro lado. O ignorei. Dada a opção, preferia falar com Marsten antes que com
o homem que matou Logan.
– Li alguns de seus artigos na revista – continuou Marsten –. Muito bem escritos. Parece que tem uma
carreira bem-sucedida.
– Não tanto como outros – disse, olhando seu Rolex –. Comprou-o ou é roubado?
Seus olhos brilharam.
– Adivinha.
Pensei.
– Comprou-o. Seria mais fácil – e mais barato– roubá-lo, mas você não usaria o relógio de outra pessoa.
Embora não se incomode de comprá-lo com o dinheiro que obteve roubando as jóias de alguém.
– Como sempre, acertou.
– Os negócios devem andar bem.
Marsten voltou a rir.
– Vai bastante bem, obrigado, considerando que sou um inútil para qualquer outra coisa E falando disso,
encontrei-me com algo faz uns meses que me fez pensar em você. Um colar de platina com um pingente
com a forma de uma cabeça de lobo. Um artesanato maravilhoso. A cabeça é feita de filigrana de platina
com olhos de esmeralda. Muito elegante. Pensei em lhe enviar isso mais calculei que terminaria na lata de
lixo mais próxima.
– Excelente predição.
– Mas não me desfiz dele. Se o quiser, é seu. Sem condições. Ficaria bem, um gesto irônico que saberia
apreciar.
– Sabe, surpreende-me que esteja envolvido nisto – disse. – Acreditei que você não gostava de Daniel.
Marsten suspirou teatralmente.
– Temos que falar de negócios?
– Nunca o imaginei anarquista
– Anarquista? – riu –. Difícil. Os outros têm suas motivações para querer liquidar a Matilha, a maioria das
quais tem a ver com poder praticar alguns hábitos sociais bem malévolos. Para mim a Matilha nunca trouxe
problemas. É obvio que tampouco fizeram algo por mim. Assim, como gesto de reciprocidade, não me
importa o que aconteça a Matilha. Só quero meu território.
– Se tivesse isso se retiraria da briga?
– E abandonar meus companheiros anarquistas? Isso me converteria em um ser desprezível e
inconsciente. Alguém que só se interessa pelo seu bem-estar, a custa de outros. Para você soa como algo
que eu faria?
Le Blanc fez um ruído de impaciência ao meu lado. Antes que pudesse retomar o tema com Marsten,
agitou a mão para chamar a atenção do outro.
– Este queria conhecer você – esse Marsten –. Quando vimos que seguia à polícia até o povoado, decidiu
que queria falar contigo. Vim para lhe apresentar a ele. Se começar a aborrecer você, grita – Eu lerei uma
revista. – Marsten pegou uma da pilha – Revista de caça, hummm. Possivelmente encontre bons conselhos.
Marsten se acomodou em sua cadeira e abriu a revista Le Blanc lhe dirigiu um olhar de desprezo.
Obviamente já tinha decidido que Marsten era um licántropo de terceira, que mal merecia o título.
Equivocava-se. Karl Marsten era o segundo vira-lata mais perigoso do mundo, depois de Daniel. De onde
tirou a reputação? Matando mais humanos que qualquer outro? Atormentando a Matilha ou nos causando
problemas? Não e não. Marsten era um dos poucos vira-latas que não matava humanos. Como tantas coisas,
isso não era digno dele. Quanto à Matilha, quando se encontrava conosco era tão cortês e amável como
tinha sido agora comigo. Mas o seguíamos mais de perto que a qualquer outro vira-lata fora Daniel. Por quê?
Porque possuía um poder de concentração e uma força de vontade comparáveis com as de Clay. Quando
Marsten se mudava para um povo novo, fazia contato com os licántropos que houvesse na área, levava-os
para jantar em lugares caros, conversava com eles, avisava-lhes que deviam sair do povoado, e logo os
matava se não se fossem a meia-noite. O que Marsten queria, Marsten tomava... sem sentir-se compungido
e sem rancor. Eu tinha uma idéia do por que Marsten se uniu ao Daniel. Queria território. Por vários anos
esteve dizendo que queria estabelecer-se em um lugar, brincando que estava chegando à idade de
aposentar-se. A Matilha o tinha ignorado. Agora Marsten estava cansado de esperar. Hoje se sentara a meu
lado e falara do trabalho e me oferecera jóias. Amanhã, se me pusesse em seu caminho me "tiraria do jogo”.
Nada pessoal. Era sua maneira de trabalhar.

IMPRESSÕES
Durante ao menos dez minutos Le Blanc me estudou como se estivesse examinando alguma nova espécie
de inseto. Queria ir. Talvez esse fosse o plano. Deixar que este lixo ficasse olhando tempo suficiente para
que eu corresse ao banheiro para lavar as mãos, onde ele e Marsten pudessem me abandonar. Tentei
recordar unicamente que Le Blanc matou Logan, mas não pude. Não deixava de pensar nas mulheres que
ele tinha matado, os detalhes que li em seu caderno de recortes. Pelo Logan queria matá-lo. Pelas outras o
queria morto, mas não queria fazê-lo eu mesma, dado que isso exigiria ter contato físico.
Obriguei-me a esquecer estas coisas e a me concentrar em analisá-lo. A vida não tinha sido boa com
Thomas Le Blanc nos últimos anos. Tinha caído muito abaixo, comparado com o homem polido que se via
na foto de sua detenção. Isso não quer dizer que estivesse sujo ou sem barbear ou que tivesse mau hálito,
qualquer das coisas que a pessoa meio espera em um psicopata assassino serial. Em vez disso, parecia com
um trabalhador de trinta e tantos com jeans sem marca, uma camiseta desbotada e tênis do Wall-Mart.
Tinha aumentado de peso. Desgraçadamente em músculos, não em gordura.
– Quer falar comigo? –disse finalmente.
– Perguntava-me por que tanta confusão. – Disse, com um olhar que indicava que ainda continuava
perguntando-se isso.
Voltou a ficar na posição de olhar silencioso tive que fazer um grande esforço para permanecer junto a
ele. Esforcei-me para manter uma visão ampla das coisas: era um licántropo novo; eu era uma mulher loba
experiente. Não tinha por que me preocupar. Mas a cada momento mudava o ponto de referência. Ele
atacava as mulheres; eu era mulher. Por mais que racionalizasse, por mais que tentasse me mostrar dura,
esse homem me assustava. Assustava-me no fundo das vísceras, ali aonde não chegavam a lógica nem a
razão.
Passados alguns minutos, vi uma sombra se mover ao outro lado do vidro espelhado. Com vontade de
uma distração, levantei-me e fui até ali. Clay estava na outra sala. Sozinho. Estava sentado em frente à mesa
e inclinava sua cadeira para trás com as pernas estiradas para frente. Não estava algemado nem vigiado nem
machucado. Até aí, tudo bem.
– É ele? – disse Le Blanc detrás de mim –. O infame Clayton Danvers. Diga que não.
Segui observando Clay.
– Maldito Deus – murmurou Le Blanc –. Onde a Matilha encontrou vocês dois? Em um campeonato de
voleibol? Lindo bronzeado, eu adoro esses cachos loiros – Le Blanc sacudiu a cabeça –. Nem sequer é tão
alto como eu. O que mede, um metro oitenta? Cem quilogramas com botas com ponteira de ferro? Caralho.
Esperava um monstro horrível, maior que Cain, e com o que me encontro? A próxima estrela de Baywatch.
Sua inteligência poderia ser suficientemente escassa. Pode mascar chiclete e amarrar o sapato ao mesmo
tempo?
Clay deixou de brincar com sua cadeira e lentamente se virou para o espelho. Levantou-se, olhou a sala e
parou diante de mim. Eu estava inclinada para frente, com uma mão contra o vidro. Clay pôs seus dedos à
altura dos meus e sorriu. Le Blanc deu um salto para trás.
– Caralho – disse –. Acreditei que era vidro espelhado.
– É.
Clay virou a cabeça para Le Blanc e disse três palavras. Então a porta detrás se abriu e um dos agentes o
chamou. Clay deu de ombros, dirigiu-me um último sorriso e se foi com o agente. Quando saiu senti uma
confiança renovada.
– O que disse? – perguntou Le Blanc.
– Espere-me.
– O quê?
– É um desafio – disse Marsten do outro lado do quarto. Não levantou os olhos da revista. – Convida você
a ficar para conhecê-lo.
–Você vai ficar? – disse Le Blanc.
Os lábios de Marsten formaram um sorriso.
– Não convidou a mim.
Le Blanc bufou.
– Para ser um montão de monstros assassinos, todos vocês não são mais que uma brincadeira, com suas
regras e desafios por trás. – Agitou uma mão para mim. – Como você. Parada ai tão tranqüila, fazendo de
conta que não está preocupada no mais mínimo por ter a nós dois na sala.
– Não estou.
– Deveria. Sabe o rápido que podia matar você? Está parada a menos de um metro de mim. Se tivesse
uma pistola ou uma faca no bolso, estaria morta antes que tivesse tempo de gritar.
– Sério? Tudo bem.
Le Blanc tinha um tic na mandíbula – Não acredita em mim, não é verdade? – Como sabe que não tenho
uma arma? – Não há detector de metais na porta. Poderia sacá-la agora, matar você e escapar em trinta
segundos.
– Então faça isso. Sei que você não gosta de nossos joguinhos, mas me dê o prazer. Se tiver uma pistola
ou uma faca, tira-o. Se não, faça de conta – Demonstre que pode.
– Não preciso demonstrar nada. Por certo não a uma charlatã...
Tirou a mão na metade da oração. A agarrei e lhe quebrei o pulso. O som ressoou na sala. A recepcionista
olhou, mas Le Blanc estava de costas a ela. Sorri-lhe e ela desviou o olhar.
– Maldita puta – disse Le Blanc, pegando o braço –. Quebrou meu pulso.
– Então eu ganhei.
Seu rosto ficou violeta.
– Pedaço de...
– Ninguém gosta de um mal perdedor – disse –. Aperte os dentes e agüente. Não há chorões nos jogos
dos licántropos. Daniel não ensinou isso a você?
– Já que não é bem-vindo – disse Marsten, ficando de pé e lançando a revista à pilha.
Como Le Blanc não se movia, Marsten se aproximou dele e tentou pegá-lo pelo braço. Le Blanc se afastou
para um lado, olhou-me com ódio e depois saiu da sala.
– Os prazeres de cuidar das crianças – disse Marsten –. Vou então. Saúda o Clayton.
Marsten se foi.
Fiquei ali com o coração golpeando meu peito. Tinha-o obtido. Ocultei meu temor me fazendo de má e
Le Blanc nem sequer notou a diferença. Que fácil. Podia ganhar desse vira-lata sem problemas. Então por
que meu coração continuava saltando como um coelho em uma jaula?

Vinte minutos mais tarde eu continuava na sala de espera, tentando encontrar algo para ler. Um artigo da
revista Cosmo me chamou a atenção. O título era: Discussões construtivas; Está fortalecendo sua relação
com seu amante ou afastando-o. Interessante especialmente na parte a respeito de afastá-lo, mas me
obriguei a deixar a revista. Cosmo nunca diz nada que tenha a ver comigo. Seus artigos sempre fazem
perguntas tais como "Como reagiria se seu amante lhe anunciasse que vai trabalhar no Alaska?” E saltar de
alegria não é jamais uma das eleições. Mudar para Alaska? Caralho, meu amante tinha trinta e sete e não
fala em sair de casa. Onde estavam as perguntas relevantes para minha vida? Tudo bem: “Como reagiria se
encontrasse cabelo e rastros de seu amante junto a um ombro morto?” mostrem-me isso no Cosmo e terão
uma assinante a mais.
Ainda procurava algo para ler quando Clay entrou. A recepcionista voltou a despertar. Sorriu e murmurou
algo que não escutei. Clay lhe respondeu com um olhar e uma careta de desinteresse. Quando ela quase
murchou e voltou para suas tarefas quase me deu tristeza. Clay podia ser encantador.
– Pena de morte? – perguntei quando se aproximou.
– Em seus sonhos. Eram tolices, carinho. Pura estupidez e eu fiquei sem almoço.
– Deveria processá-los.
–Talvez o faça. – Foi até a porta e a abriu para mim.
–Assim teve visitas?
– Marsten e Le Blanc.
– Quem? Ah, o tipo novo. O que queria Marsten?
– Ofereceu-me um colar.
– Em troca de…?
– Nada. Karl agindo como Karl. – Amável como sempre, sem preocupar-se com a pequena questão que
estamos em uma batalha sangrenta e de morte. Falando de morte, Le Blanc alardeou de que podia me
matar na sala de espera. Quebrei-lhe o pulso. Não se mostrou impressionado.
– Bem. Para que veio?
– Para me ver, acredito. Parece-me que tampouco ficou muito impressionado com você.
Clay bufou e fomos para o estacionamento.

Estacionamos na entrada ao chegar a Stonehaven. Jeremy nos esperava na porta da frente.


– Não chegaram para o almoço – disse–. Aconteceu algo ruim?
– Não – disse Clay –. Levaram-me a delegacia de polícia para me interrogar.
– Depois que levamos ao Cain – disse, antes que Jeremy tivesse um ataque do coração –. A polícia nos
deteve no caminho quando vínhamos de voltando. Parece que Daniel lhes disse que Clay sabia de algo a
respeito da morte de Mike Braxton. Certamente tinha a esperança de que nos encontrassem com o corpo
de Cain a caminho de nos desfazer dele. Mas não teve sorte.
– Quanto à polícia parecia saber?
– Não muito – disse Clay –. As perguntas eram bastante gerais. Saíram para pescar?
– Revistaram o automóvel?
– Difícil de saber – disse –. Um deles olhou bastante pelas janelas e por debaixo. Agiu como se só lhe
interessasse o Explorer em geral, quanta carga, como anda fora da estrada, coisas assim. Por outro lado,
pode ser sua maneira de revistar a plena vista de modo sutil.
– Maravilhoso – disse Jeremy, sacudindo a cabeça –. Venham para dentro. Teremos que sair logo.
– Pensou em como enviar uma mensagem ao Daniel? – perguntei.
Jeremy agitou a mão.
– Isso não foi problema. Já lhe transmiti minha mensagem.
– Respondeu?
– Sim, mas não tem nada a ver com o que vamos fazer. Apressem-se. Não temos muito tempo.
– Aonde vamos? – perguntou Clay, mas Jeremy já estava na casa.

Menos de uma hora depois, os cinco estavam no Explorer. Era a primeira vez que os integrantes da Matilha
não precisavam usar vários veículos para viajarem juntos. Só restaram cinco. É obvio que já havia notado,
mas não compreendi realmente até que pudemos sair um pouco em um só automóvel. Cabiam os cinco.
Quatro homens e uma mulher que não estava segura de contar-se como parte do grupo. Se fosse embora,
haveria Matilha? Podiam-se considerar dois pais e a dois parentes uma Matilha? Deixei de lado a idéia. Com
ou sem mim, a Matilha sobreviveria. Sempre o tinha feito. Além disso, não havia nenhuma necessidade
urgente de que eu declarasse minha independência agora e nem sequer no futuro próximo. Ainda pensava
em voltar para Toronto quando isto se acabasse, mas como Jeremy disse, não havia necessidade de tomar
uma decisão apressada em relação a meu status na Matilha.

Íamos ao aeroporto para nos encontrar com Jimmy Koening. Chamemos isso de um comitê de recepção
surpresa. Jeremy soube que Koenig chegava hoje à cidade de Nova Iorque no vôo das seis provenientes de
Seattle. Não me perguntem como soube. Suponho que obter a informação foi resultado de várias chamadas
telefônicas, algumas mentiras e muitas boas maneiras. Esse era o método habitual de Jeremy Era
assombroso o que se podia obter dos empregados das Aerolinhas, o pessoal das reservas em hotéis, os
representantes telefônicos de cartões de crédito e outros empregados de serviços ao cliente, simplesmente
armando uma boa história e sendo muito amável ao contá-la. Como dizia, supus que isso era o que Jeremy
fazia. Não se incomodou em comentar “como" quando transmitiu a informação. Nunca o fazia. Se fosse
outro, suspeitaria que estivesse alardeando, como um mágico que tiram um coelho da cartola sem revelar
o truque. Eu sabia que Jeremy não tinha tal motivo. Em todo caso ele pensava que dar uma explicação seria
alardear, como se esperasse que o aplaudissem por sua inteligência.
O plano era esperar Koenig na saída, ajudá-lo com sua bagagem e escoltá-lo para Bear Valley em grande
estilo, logo depois de reatar as relações tomando uns drinques no “21”. De verdade.
Bom. Esse não era o plano.
O plano era acabar com o pobre vira-lata antes que pudesse ver o Empire State. Terminou o período de
explorar cuidadosamente o problema. Por fim, entrávamos em ação.

VINGANÇA
O vôo de Seattle chegou quarenta minutos mais tarde, o que era bom, uma vez que nós não chegamos
até vinte minutos depois do que tinha que pousar o avião. Um trator virado na pista nos atrasou quase uma
hora. Antônio entrou no estacionamento do aeroporto às seis e meia fazendo chiar as rodas, esquivando-se
do tráfico como um taxista de Nova Iorque e nos deixou na entrada alguns minutos mais tarde. Quando
encontrou um lugar onde estacionar se uniu a nós no terminal, o vôo de Koenig estava aterrissando.
Chegamos apenas a tempo. Não sabia se interpretava isso como um bom ou mau presságio.
Mantivemo-nos longe da multidão de amigos, parentes e choferes e vimos os passageiros
desembarcarem. Jimmy Koenig era fácil de divisar. Era alto e magro, com um rosto que podia confundir-se
com a de Keith Richards em um dia ruim. Aparentava os sessenta e dois anos que tinha, a vingança de seu
corpo por estar submetido a todo tipo de estresse conhecido pelo homem por quinze anos. Muito álcool,
muitas drogas e muitas manhãs de despertar em um quarto de hotel estranho junto a mulheres ainda mais
estranhas. As pessoas que fazem os panfletos dos avisos da campanha “Digam não à droga" teria que
contratar a tipos como Jimmy Koening. Se passassem seu rosna na televisão, qualquer menino com um
grama de vaidade abandonaria a bebida e a droga por toda vida. Acreditem em mim.
Koenig não viajava sozinho. Desceu do avião com um tipo que parecia sua escolta do FBI: de trinta e tantos,
bem barbeado e higienizado, com um traje escuro e óculos de sol. Embora seus olhos estivessem ocultos
atrás das lentes, sua cabeça girava de um lado a outro como se vigiasse constantemente. Quase esperava
ver Koenig algemado a ele. Quando chegaram ao pé da rampa de saída, detiveram-se. Trocaram algumas
palavras. O tipo do FBI parecia zangado, mas Koenig não renunciava a suas opiniões. Logo depois de alguns
minutos, o tipo do FBI foi procurar suas malas. Koening foi para a sala de espera e se deixou cair na cadeira
mais próxima.
– Clay, Elena, encarreguem-se de Koenig – disse Jeremy –. Tônio e eu iremos atrás de seu amigo, Nick?
– Fico com Clay – disse Nick.
Jeremy assentiu e ele e Antônio se dirigiram para a área das bagagens. Clay e eu analisamos por um minuto
a tática, logo Clay e Nick se meteram entre as pessoas. Esperei que estivessem fora de meu campo de visão,
logo dava a volta a uma ruidosa reunião familiar e me coloquei detrás de Koenig. Quando estive detrás de
seu assento, fiquei esperando. Demorou um par de minutos para elevar a cabeça de repente. Farejou o ar e
girou lentamente.
– Bu! – disse.
Reagiu igual a todos os vira-latas quando os enfrento. Saltou da cadeira e correu para a saída mais próxima,
tremendo de terror. Em meus sonhos. Olhou-me e começou a procurar Clay com o olhar. Nunca falhava.
Não importa quão sólida fosse minha reputação como lutadora, os vira-latas só tremiam quando eu aparecia
porque geralmente significava que Clayton andava por perto. Eu não era mais que o arauto da morte.
– Onde está? – perguntou Koenig, entrecerrando os olhos e olhando a multidão.
– Estou sozinha – disse.
– Sim, claro.
Dei a volta nas cadeiras e sentei a seu lado. Tinha pouco cheiro de uísque, significava que havia bebido um
só copo no avião. Tampouco estava segura de se isso era bom ou ruim. Estando sóbrio era como um leão
sem dentes, malévolo, mas não mordia. Também significava, entretanto, que seu cérebro e seus reflexos
funcionavam bem.
– Clay foi encarregar de seu amigo, o dos óculos – disse.
– Amig... – Koenig se deteve e grunhiu.
– Imaginou que eu podia me encarregar de você.
Os olhos de Koenig se moveram abruptamente, obviamente se considerava insultado. Murmurou algo.
Estava para lhe pedir que repetisse quando vi que Nick se aproximava pelo outro lado. Observei-o e
amaldiçoei. Koenig girou a cabeça para olhar. Quando viu Nick, sua primeira reação foi de alívio. Começou a
relaxar, mas voltou a se retesar. Nick podia não ser tão mau como Clay, mas para Koenig era decididamente
mais motivo de preocupação que eu.
– Filho da puta – queixei-me–. Não devia interferir
Nick sorriu, não amigável, a não ser com o sorriso predador de um caçador que cheira a presa. Seus passos
se alargaram enquanto se aproximava. Seu olhar fixo em Koenig.
– Nicholas... – adverti-lhe ao me pôr de pé.
Koenig acreditou. Pensando que estava ocupada em me preparar para fazer frente à Nick, fugiu. Nick me
dirigiu um sorriso de vitória e o perseguimos. Apesar de que Koenig corria, não tinha ido muito longe. Era
como correr através de um bosque denso. Via-se obrigado a se esquivar de pessoas e cadeiras e só conseguia
evitar uma para se chocar com a seguinte. Nick e eu o seguimos caminhando a passos rápidos. Não só era
mais fácil esquivar obstáculos, mas também não parecia que estivéssemos seguindo a Koenig. Considerando
o aspecto de Koenig, a ninguém parecia estranho que atravessasse correndo a sala do aeroporto, escapando
de perseguidores invisíveis. Provavelmente acreditavam que estava bêbado, drogado ou que estava
rememorando os sessenta. Amaldiçoavam-no quando atropelava alguém, mas ninguém se meteu com ele.
Nick e eu o seguíamos, um a cada lado. Era a mesma técnica que usamos com o cervo uns dias antes. Fazer
que corresse e levá-lo para a linha de chegada. E adivinhem quem esperava ali? Quase me surpreendo por
Koenig cair na armadilha. Digo "quase", porque sabia que não tinha que me admirar. Os vira-latas não
caçam cervos. Koenig podia ter a habilidade no subconsciente, mas nunca a usou, assim não reconhecia
quando a usavam com ele.
Segui o rastro de Clay e tangemos Koenig para fora da sala lotada, por um corredor deserto detrás de uma
escada estreita. Clay saltou dali, pegou Koenig pela garganta e lhe quebrou o pescoço. Um anticlímax na
realidade, mas não podíamos nos dar ao luxo de interrogá-lo no aeroporto cheio de gente. Jeremy disse que
teria que matá-lo, assim foi isso que fez Clay, com absoluta eficiência. Antes que o corpo de Koenig caísse,
Clay já o estava metendo nas sombras sob as escadas.
Deixaremo-lo aqui? – perguntei.
– Não. Há uma porta de saída ali. Vi latas grandes de lixo. Se vocês montarem guarda, eu o levo.
– Necessita de ambos? – perguntei–. Talvez Tônio e Jeremy necessitem de ajuda.
– Boa idéia. Vai. Nick pode vigiar.
Fui.
Quando cheguei à área de coleta das bagagens, a maioria das pessoas do vôo de Koenig já tinha saído. Só
restavam os inevitáveis atrasados junto à esteira transportadora, olhando com tristeza. Com cada turno de
bagagens que passavam, despertavam, olhavam, com poucas esperanças de que aparecesse a sua, mas
negando-se ainda a acreditar que haviam sido devoradas pelo deus demoníaco das malas. O tipo do FBI não
estava entre eles. E tampouco Jeremy e Antônio. Olhei pela última vez e voltei sobre meus passos.
Junto aos banheiros, conseguir ver o tipo do FBI. Tentei sentir seu rastro de licántropo, mas se perdia no
meio do fedor dos estranhos. Tampouco vi Jeremy nem Antônio, mas isso não me Surpreendeu. Primeiro,
com todo o tráfico humano que ia e vinha por ali, tinha sorte de ter percebido um rastro. Segundo, Jeremy
provavelmente tinha escolhido outro caminho, dado que se sentia menos inclinado a fazer tolices infantis
como chegar junto a seu alvo e dizer “BU".
Segui o rastro do novo licántropo, Tomando cuidado de não me chocar com ele e foder os planos de
Jeremy. Pensava que o rastro do vira-lata levaria ao hall central onde Kornih esteve esperando. Não foi
assim. Em vez disso, dirigiu-se para uma saída de emergência. Olhei ao redor, logo testei a porta. Como não
soaram alarmes, saí e me encontrei em um caminho que parecia uma zona de carga. O rastro do vira-lata
levava ao estacionamento.
Novamente me surpreendeu seu rodeio. Em vez de ir ao estacionamento, dobrou por outro caminho.
Quando ia dobrar, o silêncio se viu sacudido por uma buzina aguda e eu me virei para me encontrar com um
guindaste para cargas que vinha para cima de mim. Quando a máquina passou ao nem lado, o condutor
mostrou o estacionamento com o dedo, porém não diminuiu a velocidade, obviamente muito atarefado
para preocupar-se com turistas que se metiam no que provavelmente era uma área restrita. A partir dali
avancei grudada ao muro, pronta para me esconder se aparecesse outra pessoa.
Corri até o fim do beco, porém o vira-lata tinha desaparecido. Procurei seu rastro. Perdeu-se em meio dos
aromas de máquinas e canos de escapamento. Comecei a suspeitar que Jeremy e Antônio não andassem
por ali. O ar estava denso, com aroma de nafta9 e diesel. Eles provavelmente se deram por vencidos. Estava
para retornar quando, virando em uma esquina, vi o vira-lata a cinco metros. Rapidamente me escondi,
detive-me, escutei e avaliei minhas opções. Se estivesse segura que Jeremy e Antônio não estavam por
perto, devia me retirar. Jeremy me arrancaria a pele viva se atacasse sozinha ao vira-lata, embora tivesse
êxito. Sabia, porém a tentação era muito grande. Dizendo-me que só queria olhar melhor, adiantei-me
sigilosamente.
Quando voltei a dobrar a esquina, o vira-lata já não estava Avancei pela rua, me mantendo perto do
edifício que estava a minha esquerda. Caminhou outros quatro ou cinco metros. Então se deteve e olhou ao
redor, como se tentasse se localizar. Eu me esmaguei contra a parede e esperei. Quando começou a
caminhar novamente, eu fiquei em meu lugar e deixei que se afastasse. Estava tão ocupada me
concentrando em minha presa que não escutei passos detrás de mim. Muito tarde. Girei. Uma mão me
segurou pela garganta e me empurrou contra a parede.
– Elena – disse Le Blanc –. Que surpresa! Você por aqui?
Girei a cabeça para olhar pelo beco, esperando ver o tipo do FBI voltando. Foi-se.
– É seu amigo? – perguntou Le Blanc.
– Seu, meu não.
Le Blanc elevou as sobrancelhas e então riu.
– Ah, já vejo. Você o seguiu porque o viu falando com Koenig. Assim pensou que era um dos nossos. Mas
se equivocou. E quanto. O protegido de Koenig não sobreviveu. Não pôde suportar a Mudança. Morreu
9
NAFTA = mistura de hidrocarbonetos de ponto de ebulição baixo, obtida por destilação do petróleo.
ontem. Que lástima. Daniel me enviou para procurar o velho. Vi vocês por aí, assim me escondi e vi o
espetáculo. Então vi você se afastar e pensei que talvez fosse cumprir esta missão.
Enquanto falava, preparei-me para um ataque, mas antes que pudesse golpeá-lo, tirou algo de seu bolso.
Uma arma. Le Blanc levantou a pistola e a pôs no meio de minha testa. Senti que o chão se movia, parecia
que meus joelhos não poderiam me sustentar. Basta, disse-me. É um jogo. Não é o tipo de jogo ao que está
acostumada, Mas é um jogo. Sim, apontava para mim com uma arma, mas já encontrarei a maneira de sair
disto. Os vira-latas bestas previsíveis. Le Blanc não me mataria porque eu era uma presa muito valiosa para
esbanjar em uns poucos segundos de prazer assassino. Eu era a única mulher loba. Poderia tentar me violar
ou me seqüestrar ou me bater um pouco, mas não me matar.
Engoli o medo e a fanfarrice serviu na vez passada. Usá-la-ia novamente.
– Os licántropos não usam armas – disse. – As armas são para os maricas. Você sabe, não é verdade?
Cale-se – disse Le Blanc, inclinando a pistola para cima.
– Acredito que tem razão quanto a que não somos muito inteligentes – disse – Se fosse inteligente teria
quebrado seu pulso direito. E como anda o esquerdo? Incomoda você?
– Cale-se.
– É para passar o tempo.
– Se quer falar – disse Le Blanc–, sugiro que comece por me pedir desculpas.
– Por quê?
Seu rosto ficou avermelhado, os olhos cheios de um sentimento que demorei um pouco para reconhecer.
Ódio. Ódio puro, dez vezes mais forte do que vi na delegacia de polícia essa manhã. Zangou-se tanto por eu
ter quebrado seu pulso? Emocionou-me. É obvio que a maioria das pessoas se zangava por coisas assim, mas
os vira-latas normalmente não se preocupavam muito, especialmente se fosse eu quem os machucava. Na
realidade habitualmente riam, como se em algum sentido perverso gostassem que eu tivesse a coragem de
fazê-lo. Faz anos arranquei uma orelha de Daniel. Não ficou ressentido. Em todo caso se sentia orgulhoso de
que lhe faltasse essa orelha e respondia a qualquer vira-lata que lhe perguntasse como foi que a perdeu,
como se demonstrasse que tínhamos uma relação estreita e pessoal. Nada é maior índice de amor que a
mutilação permanente.
– É pelo pulso? – perguntei-lhe –. Você foi quem quis demonstrar que podia me cravar uma faca. Eu só
demonstrei que podia me defender.
– Não diga tolices. Pareceu engraçado para você humilhar ao tipo novo. O que acha que fez Marsten
quando voltamos para casa? Contou ao Daniel e ao Olson. E os dois riram bastante. – Martelou a arma. –
Quero que se desculpe.
Pensei um segundo. Pedir desculpas não era grande coisa. É obvio que não lamentava o que fiz, mas ele
não tinha por que saber disso. Contudo, as palavras ficaram presas no gogó. Por que teria que me desculpar?
Bom, estúpida, porque o tipo apontava minha cabeça com uma arma. Porém se estivesse segura de que não
ia usá-la... Não importava. Não tinha sentido agravar a coisa
– Sinto muito – disse –. Não queria envergonhar você.
– De joelhos.
– O quê?
– Pede desculpas de joelhos.
– Não vou merda...
Le Blanc colocou a arma à força em minha boca. Eu a mordi involuntariamente. Senti aguilhões de dor na
mandíbula quando meus dentes se chocaram contra o metal. Tentei me mover, mas ele me sustentava
contra a parede. Quando me enterrou o canhão da arma no fundo da boca, deu-me náusea. O gosto do
metal era forte e repugnante. Tentei retirar a língua, porém o canhão estava enfiado muito dentro. Meu
coração dava saltos, mas não sentia pânico. Independente do que Le Blanc dissesse, eu sabia que não ia me
matar. Sua expectativa era que a ameaça de morte bastasse para me forçar a fazer o que ele queria. Ia dar-
se conta de seu engano muito em breve. Assim que me ocorresse como tirar a arma da minha boca. No
momento em que o pensei, dava-me conta de que a resposta era simples. Odiava fazê-lo, mas era a maneira
mais simples.
Elevei uma perna, fazendo o gesto de que estava disposta a me ajoelhar. Le Blanc deu um sorriso retorcido
e tirou a arma da minha boca.
– Boa garota – disse Le Blanc –. Loba ou não, é mulher. Quando as coisas ficam difíceis, sabe qual é seu
lugar.
Eu apertei os dentes e mantive o olhar baixo, o que parecia ser para ele a demonstração de que estava
adequadamente acovardada.
– Está bom? – Disse.
Inclinei a cabeça para frente, deixando que meu cabelo ocultasse meu rosto. Então comecei a
choramingar.
– Já não é tão valente, não é verdade? – riu Blanc.
Podia perceber o tom de triunfo na voz de Blanc. Choraminguei um pouco mais e elevei a mão para secar
meus olhos. Através do cabelo só podia ver a metade inferior de Blanc. Bastava. Passados alguns segundos
de pranto, baixou a mão com a pistola a seu flanco. Elevei ambas as mãos para cobrir meu rosto. Depois as
baixei de novo, envolvi com a mão esquerda o punho direito e golpeei forte ao Blanc na entreperna. Quando
cambaleou para trás, Joguei em cima dele. Lancei-o ao chão e comecei a correr. Na metade do beco escutei
o primeiro disparo. Instintivamente, lancei-me ao chão. Algo bateu em meu ombro esquerdo. Cai no
pavimento com uma meia cambalhota. Consegui me pôr de pé e continuei correndo. Seguiram dois disparos,
mas já tinha dobrado a esquina.
Ao correr, começou a descer sangue por, meu ombro, mas a dor era mínima, não era mais que um
arranhão. Ombro esquerdo, pensei. E uns quinze centímetros debaixo de meu ombro esquerdo, meu
coração. Apontava para meu coração, Controlei-me para não deixar que o pânico me dominasse. Conseguia
escutar que me perseguia. Dei a volta na primeira esquina, na seguinte e na seguinte, correndo só trechos
curtos em linha reta para que não pudesse voltar a atirar. Funcionou uns cinco minutos, mas então me lancei
por um comprido beco sem outra saída que a do outro extremo. Inclinei-me para frente e corri o mais rápido
que pude. Mas não o suficiente. Le Blanc dobrou a esquina antes que eu chegasse ao final do beco. Outro
disparo. Outra vez ao chão. Esta vez o disparo não foi preciso ou eu tinha me movido mais rápido. A bala
atingiu o lado de uma lata de lixo. Havia um automóvel justo na frente e outro a seu lado e outro e outro.
Era um estacionamento. Senti um lampejo de felicidade. Um lugar público. Salva.
Dei a volta na esquina, já fora de seu alcance. Ao correr; olhei ao redor procurando a maior concentração
de atividade humana. Essa era a chave. Aproxima-me o suficiente de um grupo de pessoas chamando a
atenção com gritos: um recurso feminino quase tão efetivo como chorar. A primeira vista não vi ninguém,
mas era difícil olhar enquanto corria a toda velocidade. Virei e me lancei no meio de uma fila de automóveis,
reduzindo a velocidade detrás de uma minivan. Olhei ao redor. Não havia ninguém no lado leste do
estacionamento. Olhei através da janela do lado do condutor para observar o lado oeste. Não havia
ninguém. Absolutamente ninguém. Estava em um estacionamento para empregados ou para estadias
prolongadas
Senti o aroma de Blanc comprovando a brisa.
Coloquei-me de mãos e joelhos no chão. Tomei ar, dominei o pânico que me envolvia e baixei a cabeça
para estudar o terreno ao nível do chão. Uns quinze metros a minha direita, havia um par de tênis Le Blanc.
Girei. Rodei debaixo da minivan e movi o pescoço para poder ver melhor. As filas de borrachas pareciam
chegar até o infinito em todas as direções. Finalmente decidi que a fila de borrachas a minha direita parecia
a mais curta. Arrastei-me de barriga para baixo até o frente da minivan, mostrei a cabeça e olhei à direita.
Mais à frente do estacionamento não se via nada. Então vi passar um automóvel no final da fila. Logo outro.
Um caminho. Possivelmente só uma rota de serviço, mas onde havia automóveis tinha que haver gente. Saí
de baixo da minivan e me lancei para frente, agachada detrás dos automóveis.
– Sai, sai daí – cantarolava Le Blanc. Uma breve pausa e logo: – Eu não gosto de brincar, Elena. Se me
forçar a lhe buscar lamentará. Posso fazer que lamente. Viu meu álbum de recortes. Sabe o que posso fazer.
Deslizei-me por detrás de um automóvel grande e olhei ao outro lado antes de cruzar um lugar vazio.
Consegui ver um movimento e retirei a cabeça – Por abaixo do automóvel, vi os tênis de Blanc. Fiquei
paralisada e verifiquei o vento. Sudeste. O vento levaria meu aroma para ele por mais quieta que ficasse. Os
tênis passaram pelo outro lado do automóvel e seguiram. Le Blanc nem sequer se deteve. Fechei os olhos e
soltei lentamente o ar. Não estava usando o olfato. Uma preocupação a menos. Esperei até que seus tênis
desaparecessem, logo segui avançando pela estreita passagem entre as duas filas de automóveis. Cada vez
que chegava a um espaço vazio, olhava antes de cruzar. Mais de uma vez não houve espaço para passar
entre dois automóveis. Isto era mais complicado que cruzar espaços vazios. Podia passar por cima ou por
debaixo. A primeira vez tentei passar por cima e sacudi o automóvel. Passei alguns minutos sem respirar
parada ali para estar segura de que Le Blanc não tinha percebido. A partir de então, quando não havia espaço
no meio, ia por debaixo. Mais lento mais também mais seguro.
Já tinha passado quinze automóveis e estimava que restassem outros dez quando escutei passos a minha
esquerda. Deixei-me cair, não me movi e escutei. Sabia que Le Blanc estava a minha esquerda, porém a
última vez que verifiquei, estava atrás. Estes passos vinham da esquerda e adiante. Não soavam como tênis.
Sapatos de sola dura no pavimento. Quem fosse que estivesse a minha esquerda com seus sapatos de sola
se movia rápido e vinha quase direto para mim. Atirei-me de barriga para baixo e olhei sob os automóveis.
Sapatos marrons pela fila imediatamente a minha esquerda. Uma mulher que ia para seu automóvel. Pensei
em parar, agitar os braços, chamar a atenção. Uma testemunha bastaria para evitar que Le Blanc atirasse?
– Merda – gritou Le Blanc.
Elevei de repente a cabeça e bati fortemente na base do automóvel. Le Blanc amaldiçoou e começou a
correr. Olhei em todas as direções, tentando ver seus pés ou descobrir para onde corriam. A mulher: tinha
que correr o risco e ir até ela. Mas não podia ouvir seus passos. Já havia subido em seu automóvel?
– Puta que o pariu! Gritou Blanc. Não posso acreditar. Elena!
Deixei de me mover. Por que me chamava? Ele sabia onde eu estava, não é certo? Embora não estivesse
me chamando, tinha que ter ouvido a batida de minha cabeça contra o automóvel. A batida foi tão forte que
ressoou por todo o estacionamento. Le Blanc continuava amaldiçoando. Segui o som e vi as sapatilhas de
Blanc a uns cinco metros. E junto aos sapatos de Blanc, o corpo de uma mulher; jogado no pavimento, com
seus olhos abertos me olhando sob uma cratera sangrenta no meio da testa. Quando Le Blanc gritou não me
viu. O ruído que escutei não era de minha cabeça batendo no automóvel. Tinha visto um movimento, uma
mulher movendo-se rápido, conseguiu ver seus cabelos claros e disparou. Ao ver a mulher morta comecei a
tremer. Disse-me que o horror que sentia era por ela, morta inocentemente em um estacionamento. Não
era certo. O nó em minha garganta e os fortes batimentos do coração em meu peito não eram por ela, mas
sim por mim. Observei seu corpo que olhava a eternidade sem ver, e me imaginei jazendo ali. Supunha-se
que era eu. Morta em um segundo. Um segundo breve. Viva e correndo. Então morta. Terminado. Tudo.
Teria ouvido o disparo? Haveria sentido? Poderia ter morrido hoje neste estacionamento. Ainda podia
morrer. Esta manhã poderia ter sido a última vez que despertei. O almoço minha última refeição. Uma hora
no aeroporto, a última vez que vi Antônio, Nick, Jeremy... Clay. Comecei a tremer mais. Podia morrer.
Realmente. Em que pese todas minhas batalhas, nunca o tinha pensado. Nunca pensei realmente o que
significava. O fim podia chegar a um segundo impossivelmente curto. Agora tinha medo. Mais medo que
nunca em minha vida.
Senti dor em meus punhos apertados. Abri-os e a dor diminuiu, senti um puxão, uma pulsação como se
algo se movesse sob minha pele. Ignorei-o. Tinha coisas mais importantes nas que pensar. Mas a sensação
não ia embora. Ficou pior. Olhei meus dedos que se retraíam para o interior de minhas mãos, os pêlos que
saiam do dorso. Pareciam estar trocando, mas eu não fiz nada para precipitar a Mudança, nem sequer o
tinha pensado. Sacudi minhas mãos e as flexionei, desejando deter a transformação. Ao mover os dedos,
senti novas dores em meus braços. Então meus pés começaram a fazer cócegas. Fechei os olhos e ordenei a
meu corpo que se detivesse. Minhas costas se arquearam. Minha camisa começou a se rasgar. "Não!”, gritou
meu cérebro. "Agora não! Pare!” Mas não parou. Minhas pernas tiveram espasmos, querendo meter-se
debaixo de meu corpo, mas não havia espaço suficiente. Estava sob o automóvel com apenas centímetros
de espaço. Não podia ficar em quatro patas. Não podia pôr minhas pernas e braços em posição. Apertei os
olhos e me concentrei. Nada aconteceu. Senti o primeiro alarme. E a Mudança se acelerou, minha roupa se
rasgou e meu corpo tentou contorções impossíveis. Era o medo. O temor de estar presa neste
estacionamento com um assassino era o que tinha provocado a Mudança e agora o temor de ficar presa sob
o automóvel o fazia pior. Sabia o que tinha que fazer. Tinha que sair. Uma nova faísca de temor fez que meu
torso se elevasse, golpeando minhas costas contra a base do automóvel. Esta vez soube que o ruído era real.
Escutei apenas as sapatilhas de Blanc chiando contra o pavimento. Ouvi-o dizer algo. Ouvi-o rir....
Lancei-me para frente, ao lado do automóvel. Minhas unhas rasparam o pavimento. No meio do caminho
minhas pernas se travaram e caí de cara ao chão, Todos os músculos de meus braços e pernas tiveram
espasmos simultâneos. Saiu um uivo de agonia de minha garganta. Apertei os dentes. Meus cotovelos saíam
das órbitas pela dor. Muito tarde para reverter a Mudança. Já tinha passado o ponto médio, ir para frente
levaria menos tempo que voltar atrás. Concentrei minha energia em terminar, me alimentando do medo.
Por fim, a última fase produziu uma quebra de onda de agonia tão terrível que desmaiei. Avivei-me assim
que meu focinho bateu no pavimento, logo fiquei de barriga para baixo, ofegando e tentando respirar. Não
queria me mover. Podia escutar seus passos que se aproximavam. Tinha me ouvido. Sabia aproximadamente
onde estava e reduzia a área de busca. Por um tempo me senti muito exausta para que me importasse.
Então girei a cabeça e vi a mulher morta. Com grande esforço me pus de pé e comecei a correr.
Abandonei toda idéia de escapar com cautela e sigilo, dominada pela necessidade de me afastar o mais
rápido possível. Saí de entre os automóveis ao caminho aberto e corri a toda velocidade. Não me pus a
escutar ruídos de perseguição. Não podia gastar energia nisso. Pus tudo o que tinha em correr. Escutei
vagamente um grito. E logo um disparo. Logo outro. Os dois passaram sobre minha cabeça Não andei mais
lento nem mudei de direção. Fechei-me a tudo e segui adiante. Finalmente a fila de automóveis terminou.
Estava em um caminho. Alguém tocou uma buzina. Passou uma ventania de um caminhão que agitou minha
pele. Entretanto, não reduzi a marcha. Do outro lado do caminho havia dois edifícios. Corri entre eles, sem
saber aonde ia, só que tinha que fugir.
Ao emergir entre os dois edifícios, escutei um grito. Meu nome. Alguém me chamava. O som vinha de
perto. Corri mais rápido. De repente um muro de tijolos. Tentei me deter, mas muito tarde. Deslizei e bati
contra o muro. Detrás de mim, Le Blanc continuava correndo, gritando meu nome. Fiquei de pé e me virei a
tempo de ver a figura de meu perseguidor. Não havia tempo de escapar. Não tinha terminado de girar e já
me lancei contra ele. Enquanto eu estava no ar, levou o braço à garganta para cobrir-se. Bati em seu peito e
caímos. Levantei a cabeça e lhe mostrei os dentes. Ao tentar morder, a névoa vermelha de pânico que me
cegava se desvaneceu e vi quem tinha debaixo. Não era Le Blanc. Era Clay
Contive-me bem a tempo. A mudança de direção me jogou de lado. Quando tentei parar, Clay me agarrou
e me sustentou. Sussurrou algo, mas não entendi. Ao ver que não compreendia, esperou um segundo e
voltou a falar, lentamente.
– Foi-se – disse – Não se preocupe. Foi-se.
Vacilei e olhei entre os dois edifícios, segura de que Le Blanc apareceria em qualquer momento, pistola na
mão. Clay sacudiu a cabeça
Foi, carinho. Quando cruzou o caminho se foi. Muito público.
Segui esperando e tremendo. Clay afundou suas mãos em minha pele e tentou me aproximar dele, mas
resisti. Tínhamos que estar preparados para correr. Começou a dizer algo quando escutei passos ecoando.
Fiquei de pé de um salto, mas Clay me reteve. Jeremy, Antônio e Nick deram a volta ao edifício. Fiquei um
momento parada, com as pernas tremendo, farejando para me assegurar de que os olhos não me
enganavam. Sim, estavam ali. Todos. Estava a salvo. Esperei um segundo e me deixei cair ao chão.
PROMESSA
Clay se sentou ao meu lado no caminho de volta a Stonehaven. Eu continuava trêmula, talvez
desequilibrada, mas ele não tentou se aproximar ou me consolar. Sabia que não devia fazê-lo. Em troca,
pegou minha mão e me olhava de tanto em tanto, vendo se queria falar. Eu não queria fazê-lo.
Quase tínhamos chegado a casa quando Clay quebrou o silêncio, se inclinado para chamar a atenção de
Jeremy que ia à frente.
– Não nos disse o que Daniel exigiu – disse –. Quer a Elena, não é verdade?
– Sim – disse Jeremy brandamente, sem vira-se.
Antônio saiu da estrada.
– É como um seqüestrador de aviões que pede dez milhões de dólares. Sabia que nem sequer íamos
pensar, assim é uma maneira de dizer que não negocia.
– Não é só isso – disse Clay –. Está nos alertando. Sabe que não entregaremos Elena. Está nos avisando de
seu próximo movimento. Quer apanhá-la.
Jeremy assentiu.
– Se tivesse me dado conta há algumas horas nos salvaríamos de correr um risco muito sério. Pensei, igual
à Tônio, que só estava dizendo que não ia negociar.
Nick se inclinou sobre o respaldo de nosso assento de seu lugar na parte de atrás.
– Então esse vira-lata no aeroporto tentava seqüestrar Elena?
– Não – disse –. Tentava me matar.
– Um vira-lata não faria isso, Elena – começou a dizer Jeremy –. É muito valiosa viva. Pode ter parecido...
– Não estava ali. Havia uma mulher caminhando apressada pelo estacionamento. Ele acreditou que era
eu e lhe fez um buraco na cabeça. Não foi um tiro para dominá-la Foi uma execução.
A mão de Clay apertou a minha. Jeremy se recostou no assento, Ninguém falou ao menos por cinco
minutos.
– Por que faria isso? – perguntou –. Se Daniel quer você viva, por que tentaria matar você?
– Porque Blanc não se importa um caralho com o que quer Daniel – disse –. Possivelmente seja porque é
novo ou porque matou por sua conta tanto tempo, a coisa é que não parece que tenha o instinto de
obedecer a um lobo mais forte.
– Mas por que matar você? – disse Nick –. Como diz Jeremy, a esses vira-latas novos não interessam esta
briga, fora do que lhes prometeu Daniel. Se Daniel não quiser você morta, por que teria o trabalho de tentar
matar você?
– Thomas Le Blanc persegue as mulheres. Tortura elas e as viola e as mata. Os homens assim odeiam às
mulheres e se sentem ameaçados facilmente. Eu esqueci disso. Depois de tudo o que disse de que não lidaria
com homens assim iguais a outros vira-latas, fiz exatamente isso. Humilhei-o na delegacia de polícia, zombei
dele, insultei-o e lhe quebrei o pulso diante de Marsten. Agora quer me dominar. Tem que fazê-lo.
Clay esfregou seu polegar em meu pulso, mas não disse nada. E ninguém abriu a boca.

Quando chegamos a Stenehaven, fui para meu quarto. Ninguém tentou me deter. Enquanto subia as
escadas, escutei Clay detrás, mas não disse nada. Cheguei ao meu quarto e deixei a porta aberta. Fechou-a
ele ao entrar. Cheguei à metade do caminho a cama e me detive. Fiquei ali com Clay parado detrás de mim
em silêncio. Senti um verme frio percorrendo meu corpo e comecei a tremer. Aspirei o ar e fechei os olhos,
tentando controlar o medo. Estava bem, Estava em casa e a salvo. E quase tinham me matado. O medo
percorreu todo meu corpo, misturado com ira e ódio, tudo se fundiu em algo vermelho fogo. Queria me
jogar na cama e me esconder sob as mantas, Queria jogar algo contra a parede e vê-lo quebra-se. Queria
voltar para junto desse vira-lata e lhe gritar: “Como se atreve!”.
Quando olhei para Clay, vi minhas emoções refletidas em seu rosto, a ira e o ódio e algo tão estranho que
apenas o reconheci, um fantasma meio escondido detrás de seus olhos. Medo. Estendeu a mão e me
esmaguei contra ele. Virei meu rosto para o seu, encontrei seus lábios e o beijei. Seus lábios se abriram.
Beijei-o mais forte, fechando os olhos e me apertando contra ele. Ao beijá-lo, uma faísca de vida penetrou
em meu cérebro morto. Persegui-o, beijando-o mais forte, mais profundo, esmagando meu corpo contra o
seu. A faísca se converteu em chama e todos meus sentidos voltaram para a vida. O mundo se afastou e
tudo o que podia sentir, tudo o que queria sentir, era ele. Provei-o, cheirei-o, vi-o, escutei-o, senti-o e gozei
dessas sensações como quem sai de um coma.
Fomos para a cama. Nossos pés se enredaram e caímos no tapete. Uma vez no chão, peguei a camisa de
Clay e a puxei para cima, mas tinha seus braços ao meu redor e não podia suportar que me soltasse, como
se no segundo que se rompesse o contato pudesse me fazer cair de volta no medo e na comoção. Peguei
sua camisa por detrás e a rasguei. Quando o material se rasgava, deixei de puxar. Era muita moléstia, tempo
perdido. Levei minhas mãos a seus jeans, abri sua braguilha e deslizei as mãos sobre seus quadris. Sem deixar
de me beijar, se torceu e a tirou as patadas, logo tentou tirar os meus. Tirei suas mãos e tirei eu mesma as
calças. Quando estava empurrando isso para baixo, Clay me arrancou a roupa íntima e a jogou para um lado.
Sua mão passou de meu traseiro ao interior de minhas coxas. Colocou os dedos dentro de mim.
– Não – disse, tirando a mão dele.
Peguei e o fiz me penetrar. Seus olhos se abriram. Comecei a me mover contra ele. Quando se retirou para
tomar impulso e voltar, agarrei-o pelos quadris e o fiz ficar quieto.
– Não – ofeguei –. Deixe que eu faça isso.
Sustentou-se quieto sobre mim. Arqueei os quadris e me esfreguei contra ele. Senti quebras de onda de
pura sensação. Atirei a cabeça para trás e o puxei para baixo, Depois para cima. Em cima de mim, Clay tomou
ar. Senti-o tremer e o afastei para poder vê-lo. Enquanto eu me movia, ele tinha seus olhos fixos nos meus,
com a ponta da língua entre os dentes, lutando para manter-se quieto. Lancei-me contra ele e me sustentei
ali, gozando do controle, a sensação de tomar o controle logo depois de havê-lo perdido tão completamente
fazia poucas horas. Levei uma mão a seu peito e a sustentei contra seu coração. Podia sentir vida pulsando
sob meus dedos.
– Bom – sussurrei.
Clay se enterrou em mim e deu um gemido. Eu me arqueei para encontrar seu corpo. Movemo-nos juntos
alguns minutos. Quando senti que vinha o clímax, retirei-me. Não queria cedê-lo ainda.
– Espera – disse agitada –. Só espera.
Fechei os olhos e tomei ar. Seu aroma era angustiante, quase bastava para que eu chegasse a meu ponto
mais alto. Apertei meu rosto contra seu ombro e inalei com avareza. Quando o aspirava, o mundo pareceu
deter-se e a mescla de sensações se desfez até me permitir as experimentar uma por uma. Podia sentir tudo,
o movimento dos bíceps de Clay debaixo de minhas mãos enquanto se sustentava sobre mim, o suor que
caía de seu peito no meu. A pressão áspera de suas meias contra minha panturrilha, a leve pulsação dele
dentro de mim. Queria manter tudo assim até que o tivesse gravado na memória. Isso é o que sentir-se viva
significa.
Apertei-me mais, escutei seu gemido e minha própria resposta. A perfeição do momento se desvaneceu
em uma repentina necessidade de alcançar outro tipo de perfeição, outra imagem perfeita da vida.
– Agora – disse –. Por favor.
Clay inclinou seu rosto para o meu e me beijou com força enquanto se movia dentro de mim. Senti as
ondas do orgasmo que cresciam, saboreei-as em seu beijo. Enredei-me nele, minhas pernas com as suas, os
braços atraindo-o para mim. Justo quando me perdia nele, saiu do beijo e estendeu as mãos para enredá-
las em meus cabelos. Mas não retirou sua cabeça. Manteve seu rosto sobre o meu, os olhos tão perto que
não via mais que azul.
– Não volte a me assustar assim – disse rouco –. Se perdesse você... Não posso perder você.
Levei minhas mãos aos seus cabelos e o beijei. Voltou a me deter na metade do beijo.
– Prometa – disse –. Prometa-me que nunca correrá um risco assim.
Prometi e ele inclinou seu rosto para o meu para me beijar, enquanto deixávamos que todo vestígio de
controle desaparecesse.

Jeremy bateu na porta antes que a luz do amanhecer tivesse penetrado através das árvores fora de minha
janela. Clay abriu os olhos, mas não tentou mover-se nem responder.
– Necessito de ambos lá embaixo – disse Jeremy através da porta fechada.
Olhei para Clay e esperei que respondesse. Não o fez.
– Agora – disse Jeremy.
Clay ficou calado outros trinta segundos e logo grunhiu:
– Por quê?
Disse isso com um tom que nunca ouvi usar com Jeremy. Também desconcertou ao Jeremy e durante
vários longos segundos não respondeu.
– Desçam – disse finalmente –. Agora.
Os passos de Jeremy se afastaram pelo corredor.
– Estou cansado disto – disse Clay, tirando as mantas e as colocando a um lado –. Não estamos chegando
a nada. A única coisa que fizemos foi perseguirmos nossa cauda. Perseguir, fugir, perseguir, fugir. E o que
obtivemos? Logan morreu, mataram Peter e quase matam você. Agora está em perigo, e melhor que ele
esteja pensando no que fazer.
– Pensei – chegou-nos a voz do Jeremy da escada-. Por isso lhes peço que desçam.
As bochechas do Clay se tingiram de vermelho. Esqueceu que Jeremy podia escutá-lo tão bem do pé da
escada como da porta do quarto. Murmurou algo que soou a desculpa e saiu da cama.

Antônio e Nick já estavam no escritório, comendo de um prato de frios e queijos. Quando entramos,
Jeremy pôs café junto ao sofá para nós.
– Sei que está preocupado pela Elena, Clayton – disse Jeremy quando nos acomodamos. Todos nós
estamos. Por isso vou mandá-la para outro lugar.
– O quê? – endireitei-me –. Um momento. Só porque ontem à noite me assustei não significa...
– Não foi a única que se assustou ontem à noite, Elena, Daniel tem você em vista e agora parece que Le
Blanc também. Um quer capturar você. O outro quer matar. Realmente acredita que vou esperar para ver
qual dos dois tem êxito? Perdi Logan e Peter. Não quero perder a ninguém mais. Não vou correr nem o risco
mais remoto de perder alguém mais. Cometi um erro ontem ao deixar que fosse conosco sabendo que Daniel
quer apanhar você. Não vou cometer outro engano permitindo que fique um dia mais.
Olhei para Clay, esperando que ele também protestasse, mas sustentava o café a meio caminho de seus
lábios, olhando a xícara como um adivinho que procurasse respostas no fundo. Passado um tempo, deixou
a xícara, sem provar o café. Inclusive Jeremy o olhou e esperou uma discussão, mas não a houve.
–Extraordinário – disse –. Um ataque de pânico e já sou uma carga que têm que pôr resguardada. Saberei
aonde vais me esconder? Ou não pode me confiar essa informação?
Jeremy seguiu com o mesmo tom.
– Vai ao último lugar que ocorreria aos vira-latas. De volta a Toronto.
– E que caralho vou fazer ali? Esconde-me enquanto os homens batalham?
– Não estará só. Clay irá contigo.
– Um momento! Fiquei de pé de um salto. – É uma brincadeira, não é verdade? –Virei-me para Clay. Ele
não se moveu. – Não o escutou? Diga algo, caralho.
Clay ficou calado.
O que temos que fazer em Toronto? – perguntei –. Esconder-nos em um quarto de hotel?
– Não fará nem mais nem menos que o que habitualmente faz. Voltará para seu apartamento, retornará
ao seu trabalho se quiser, voltará para a velha rotina. Isso é o que deixará você a salvo. O conhecido. Conhece
seu edifício, as ruas pelas quais caminha, os restaurantes e os comércios que freqüenta. Estará em melhores
condicione de detectar perigos potenciais. E estará cômoda
Cômoda? – escapou saliva entre meus lábios. Não posso levar Clay para meu apartamento. Sabe.
Clay elevou a cabeça como se saísse de um sonho.
– Por quê?
Ao olhar para os dois, percebi que não sabia que estava vivendo com Philip. Abri a boca para dizer algo,
mas o olhar em seu rosto me impediu de falar.
– Terá que se desfazer dele – disse Jeremy – liga para ele e diga que vá embora.
– Desfazer-se de quem? Ligar...? – Clay se deteve. Um gesto decomposto passou por seu rosto. Olhou-me
durante um longo tempo. Depois ficou de pé e saiu do escritório.

Jeremy tem mais talentos que nenhuma outra pessoa que eu conheça e em maior medida que ninguém.
Podia falar e traduzir mais de uma dúzia de idiomas, podia pôr um osso em tipóia e fazê-lo sarar como novo,
podia pintar cenas que eu nem sequer poderia imaginar. E podia deter um lobo de cem quilogramas com
um olhar, mas não sabia uma merda das relações afetivas.
– Obrigado – disse quando Nicholas e Antônio se foram –. Muito obrigado
– Acreditei que ele sabia. – disse Jeremy
– E se não fosse assim? Decidiu humilhá-lo diante de Nick e tônio?
– Disse que acreditei que ele sabia.
– Bom, agora sabe, e terá que consertar as coisas com ele.
– Não irá a Toronto comigo, se é que vou.
– Irá e ele também. Quanto a esse homem, ele se mudou para sua casa, não é verdade? O apartamento é
seu.
Não perguntei como Jeremy sabia. E tampouco respondi.
– Então pode lhe pedir que se vá – disse Jeremy
– Pego o telefone ligo para ele e lhe digo que voltarei amanhã e que quero que então já não esteja lá?
– Não vejo por que não.
Respondi com uma risada áspera e disse:
– Não se termina por telefone com alguém com quem se está vivendo. Não se corta toda relação de um
momento para outro. Não se dão vinte e quatro horas para que ele saia de um apartamento, ao menos não
sem uma maldita boa razão.
– Você tem uma boa razão.
– Isso não é... – detive-me e neguei com a cabeça –. Deixe-me pô-lo em termos que possa entender. Se
eu ligar para ele e disser que acabou, ele não vai embora. Vai querer uma explicação, e ficará até receber
uma que o satisfaça. Em outras palavras, ele vai causar problemas. Essa é uma razão suficientemente boa?
– Então não termine com ele. Volte.
– Com Clay também? Jamais em minha vida Se tiver que me enviar com uma babá, envie Nick. Ele se
comportará adequadamente.
– Clay conhece Toronto. E nada o distrairá de sua proteção. Jeremy caminhou para a porta – Reservei uma
passagem no vôo da tarde.
– Não vou a...
Jeremy já tinha saído.

Clay foi o seguinte com quem Jeremy discutiu. Não os espiei, mas tive que sair da casa para não escutá-
los. E uma vez que a conversação tinha que ver com meu futuro, não via motivo para não escutar. Clay não
gostava do acerto mais que eu. Seu instinto mais forte era proteger a seu Alfa e não podia fazê-lo há algumas
centenas de quilômetros de distância. Desgraçadamente, o instinto de obedecer Jeremy era quase
igualmente forte. Enquanto os escutava discutir – com Clay protestando em voz suficientemente elevada
para abafar a tranqüila insistência de Jeremy – eu rezava para que Clay ganhasse e me permitisse ficar com
os outros. Jeremy se manteve firme. Eu ia e, e uma vez que Clay era o responsável por me haver introduzido
nesta vida, era o responsável por assegurar minha sobrevivência.

Fiquei no escritório matando o tempo. Então me decidi. Não voltaria para Toronto e não levaria Clay
comigo a nenhuma parte. Ninguém podia me obrigar a isso.
Saí ao corredor, peguei minhas chaves e minha carteira da mesa e saí pela porta da garagem. Ia dar a volta
a meu automóvel, mas me detive. Aonde iria? Aonde podia ir? Se fosse, não poderia voltar para Toronto
nem para Stonehaven. Em vez de escolher entre duas vidas, abandonaria ambas. Apertei as chaves e
machuquei as palmas das mãos com o metal. Tomei ar e fechei os olhos. Mas se ficasse, teria que obedecer
Jeremy. Ninguém podia ter semelhante poder sobre mim. Não ia permitir.
Ao dar a volta ao automóvel, escutei o esfregue da sola de borracha de um sapato sobre o cimento e
levantei os olhos para me encontrar com Jeremy parado junto à porta do acompanhante, que já tinha aberto.
– Aonde vamos? – perguntou com calma
– Eu vou.
– Estou vendo. E tal como perguntei, aonde vamos?
– Não vamos... – Parei e olhei ao redor da garagem.
– O automóvel de Clay está ali – disse Jeremy, com a voz ainda tranqüila e controlada –. Tem as chaves,
mas não o controle remoto do alarme. O Explorer está fora. Não tem que passar o alarme, mas está a quinze
metros, A Mercedes está mais perto, mas não tem as chaves. Corremos até o Explorer? Ou prefere correr
pela saída e ver se pode me deixar para trás?
– Não pode...
– Sim, posso. Não vai. A jaula continua aí embaixo. E não vacilarei em usá-la.
– Isto não é...
– Sim, é terrivelmente injusto. Sei. Ninguém faria isto no mundo humano, não é verdade? Entenderiam
que tem direito a se matar.
– Não vou me...
Se sair sozinha daqui, estará se suicidando. Não deixarei você fazer isso. Vai para Toronto com Clay ou lhe
prenderei aqui até que aceite.
Atirei as chaves no chão e dei as costas a Jeremy. Passado alguns minutos, disse:
– Não me obrigue a levá-lo. Sabe como tive que me esforçar para criar uma vida lá, Sempre disse que o
apoiaria, embora não esteja de acordo. Envie-me para outro lugar ou envia outro comigo. Não me faça ir
para lá com Clay. Ele vai destruir tudo.
– Não o farei.
A voz de Clay era tão suave como a de Jeremy, tanto que duvidei, pensando que confundi Jeremy com
Clay. Quando me virei lentamente, Jeremy já não estava e Clay se encontrava parado junto ao automóvel. A
porta da casa se fechou.
– Proteger você é o mais importante para mim agora – disse Clay –. Não importa o quanto esteja zangado,
isso não muda as coisas. Posso encaixar nesse mundo, Elena. Que não o faça não quer dizer que não possa.
Estudei e pratiquei para encaixar desde os oito anos. Durante quinze anos não fiz mais que estudar a conduta
humana. Quando a entendi e soube que podia encaixar, deixei de tentar. Por quê? Porque não era
necessário. Desde que possa modificar minha conduta em público o suficiente para não ter que me
preocupar de que me ataquem multidões com balas de prata, será suficiente para Jeremy e o resto da
Matilha. Se fizesse mais, estaria me traindo. E não vou fazer isso sem alguma razão. Mas proteger você é
razão suficiente. Esse homem poderá considerar que não sou a pessoa mais agradável do mundo, mas não
terá motivos para pensar nada pior. Não destruirei nada.
– Não quero você ali.
– E eu não quero estar ali. Mas nenhum dos dois pode decidir a respeito, não é verdade?
Novamente a porta se fechou. Quando me virei, Clay já não estava. Jeremy havia retornado e sustentava
a porta aberta. Olhei-o com ódio, logo desviei o olhar e voltei para casa sem dizer mais uma palavra.
À tarde, Clay e eu nos encontrávamos em um avião rumo a Toronto.

DESCIDA
Isto ia ser uma catástrofe.
Ao ganhar altura o avião, meu ânimo diminuiu a rivalidade. Por que permiti que Jeremy me fizesse isto?
Sabia que ia arruinar minha vida? Importava-se? Como poderia levar Clay ao apartamento que eu
compartilhava com Philip? Como podia fazer isso a Philip? Ia levar um homem com quem me deitei ao lar
do homem com quem me comprometi. Quando escutava que pessoas fizeram algo assim, colocar um
amante clandestinamente em seus lares como governanta, babá, jardineiro, sempre me provocou repulsão
e desprezo. Que fizesse isso era um lixo em bancarrota moral... o que era uma boa descrição de como via a
mim mesma nesse momento.
Leguei para Philip essa manhã e lhe disse que levava um convidado. Expliquei-lhe que Clay era meu primo,
irmão do que sofreu o acidente, e que queria mudar-se para Toronto, assim aceitei alojá-lo uma semana
enquanto ele procurava trabalho. É obvio que Philip aceitou maravilhosamente bem, embora quando disse
que gostaria de conhecer meus primos suspeitei que quisesse dizer convidá-los para jantar; não para
compartilhar nosso diminuto apartamento.
E Clay, por que aceitava isto? Jeremy devia saber o quanto isto machucaria Clay. Tampouco se importava?
Como devíamos nos comportar, Clay e eu, nestas circunstâncias? Tínhamos que conviver em um
apartamento muito pequeno sem ninguém da Matilha que agisse como intermediário. Não tínhamos falado
uma palavra desde que Clay saiu da garagem essa manhã. Estávamos a trinta minutos de Toronto e
seguíamos sentados cotovelo com cotovelo como completos estranhos.
– Onde vive? – perguntou Clay.
Sobressaltei-me. Olhei-o, mas ele olhava para frente, como se falasse com o encosto do assento da frente.
– Onde vive? -repetiu.
– Eh... perto do lago – disse –. Entre o lago e a estação de trem.
– E onde trabalha?
– Em Bay-Bloor.
Soava como uma conversa ociosa, mas eu sabia que não era assim. Detrás dos olhos de Clay, seu cérebro
estava em pleno funcionamento, fazendo cálculos da geografia e das distâncias.
– Segurança? – perguntou.
– Bastante boa. O edifício onde moro tem uma entrada com chave e porteiro eletrônico. Tenho ferrolho
e corrente em minha porta.
Clay bufou. Se um vira-lata quisesse entrar no edifício, nem todas as fechaduras do mundo poderiam detê-
lo. Sabia, mas pôr um sistema de segurança parecia excessivo. Uma vez mencionei isso ao Philip, mas a idéia
dele era que o único bom sistema de segurança consistia em uma apólice de seguro. Não podia lhe dizer que
temia que me atacassem. Isso dificilmente correspondia com a personalidade de uma mulher que se ia
caminhar às duas da madrugada.
– No trabalho há um guarda de segurança no térreo – disse –. E é necessário um cartão de identificação
para entrar em minha empresa. Além disso, é um lugar concorrido. Se me mover no horário de trabalho,
ninguém vai me atacar ali. Na realidade nem sequer preciso voltar a trabalhar, realmente...
– Sim, é melhor que o faça. Jeremy tem razão. Mantenha sua rotina normal. Clay olhou pela janela. –
Quem se supõe que sou?
– Meu segundo primo. Que está na cidade em busca de trabalho.
– É necessário?
– Soou bem. Se for meu primo, então estou obrigada a dar alojamento a você...
– Referia-me à parte de “procurar trabalho”. Não vou procurar trabalho, Elena, e não quero ter que andar
me justificando com nada complicado. Quero o mais parecido à realidade que seja possível. Estou na cidade
trabalhando na universidade, meu trabalho normal. Farei contato com algumas pessoas que conheço ali, irei
ao departamento de antropologia, possivelmente faça um pouco de pesquisa.
– Certo, mas seria mais fácil dizer...
– Não. Não estou atuando, Elena. Só o que seja imprescindível.
Virou-se para a janela e não disse mais nada pelo resto do vôo.
Por mais que ruminasse durante o vôo a respeito do que íamos fazer, só terminei de receber o impacto
quando chegamos ao aeroporto. Procuramos a bagagem e íamos em busca de um táxi quando me dei conta
de que estava por levar Clay ao apartamento que eu compartilhava com Philip. Meu peito se fechava, o
coração retumbava, e quando chegamos à porta, já me encontrava em meio a um ataque de pânico.
Clay estava um passo adiante. Estendi a mão e o puxei pelo braço
– Não tem que fazer isto – disse.
Não me olhou.
– Sim tenho que fazer, é o que Jeremy quer.
– Mas isso não significa que tem que fazê-lo. Ele me quer protegida, não é verdade? Tem que haver outra
maneira de fazê-lo,
Clay seguiu sem dar-se volta.
– Disse que ficaria contigo. E isso é o que vou fazer.
– Pode fazê-lo sem ir para meu apartamento.
Deteve-se e virou-se o suficiente para que pudesse ver um quarto do perfil de seu rosto.
– E como vou fazer isso? Dormir no beco do lado de fora do seu edifício?
– Não, quero dizer que nenhum dos dois tem que ir para meu apartamento. Eu não tenho que ir. Iremos
para outro lugar. A um hotel.
– E você irá comigo?
– É obvio.
– E ficará comigo?
– Exato. O que você quiser.
Podia sentir o desespero em minha voz e me produziu repugnância, mas não podia me conter. Minhas
mãos tremiam tanto que as pessoas começaram a me olhar.
– O que quiser – repeti –. Jeremy não saberá. Disse que não nos contataria por telefone, assim não vai
saber se estamos no apartamento. Estarei a salvo e você estará comigo. Isso é o que importa, não é verdade?
Por quase um minuto, Clay não se moveu. Então lentamente se virou para mim. Quando o fazia, consegui
ver um brilho de algo que parecia esperança em seu olhar, mas desapareceu assim que viu minha expressão.
Apertou os dentes e me olhou nos olhos.
– Bem – disse o que eu quisesse? – Caminhou para alguns telefones públicos e pegou o fone do mais
próximo. – Ligue para ele.
– Disse que não podíamos ligar para ele. Nada de contato telefônico.
– Ao Jeremy não. A esse homem. Liga para ele e lhe diga que acabou. Que pode ficar com o apartamento.
Que irá procurar suas coisas depois.
– Isso não é...
– Não é o que quis dizer, não é verdade? Pareceu-me que não. Então qual é o plano? Ir e voltar entre os
dois até que tenha decidido?
– Já me decidi. Tudo o que aconteceu em Stonehaven foi um engano, como sempre. Nunca enganei você.
Você sabia que tinha uma parelha nunca o ocultei. É a mesma maldita coisa que acontece cada vez que vou
a esse lugar. Fico presa. Perco-me.
– O que é que prende você? A casa? Um montão de tijolos?
– Esse lugar – disse, apertando os dentes. Esse mundo e tudo o que há ali, incluindo você. Não é o que
quero, mas quando chegou ali, não posso resistir. Domina-me.
Soltei uma gargalhada áspera.
– Não diga tolices. Não há nada neste mundo ou naquele mundo ou qualquer outro mundo que não possa
enfrentar, Elena. Sabe no que consiste o encantamento mágico desse lugar? E que faz você feliz. Mas não
admite porque não é o tipo de felicidade que quer se permitir. Para você a única felicidade aceitável é a do
mundo "normal", com amigos “normais” e um homem “normal”. Está decidida a ser feliz nesse tipo de vida,
embora morra no intento.
As pessoas nos olhavam, deixando de lado toda dissimulação. Teria que ter escutado sinos de alarme em
minha cabeça, que me advertissem que estávamos agindo de maneira inapropriada para o mundo humano.
Mas não era assim. Não me importava. Virei-me e olhei com raiva duas mulheres mais velhas que faziam
comentários a minhas costas. Retrocederam, com os olhos abertos. Comecei a me afastar.
– Quando foi a última vez que ligou para ele? – perguntou-me Clay.
Detive-me. Clay se aproximou e baixou a voz para que ninguém mais pudesse ouvir.
– Sem contar esta manhã quando ligou para lhe dizer que víamos – disse –. Quando ligou para ele?
Não respondi.
– No domingo – disse –. Faz três dias.
– Estive ocupada – disse.
– Não diga tolices. Esqueceu-se dele. Acredita que ele faz você feliz? Crê que esta vida faz você feliz? Bem,
então aqui tem sua oportunidade. Leve-me para lá. Mostre-me o quanto ele faz você feliz. Demonstra-o.
– Vai pra merda – grunhi-lhe e fui até a porta.
Clay me seguiu, mas chegou tarde. Saí do aeroporto e subi em um táxi antes que pudesse me alcançar.
Fechei a porta e quase lhe esmaguei os dedos. Dei ao chofer um endereço. Ao nos afastar, tive a pequena
satisfação de olhar pelo espelho do lado e ver Clay parado no caminho.
Pena que não disse com maior precisão onde vivia. “Perto do lago” era uma zona muito grande... com
um montão de edifícios de apartamentos.
Quando cheguei a meu edifício, toquei no porteiro eletrônico. Philip atendeu. Soou um pouco surpreso
quando me anunciei. Não perdi a chave. Não me perguntem por que toquei a campanhia para que me
deixasse passar. Esperava que Philip tampouco me perguntasse isso.
Quando cheguei à cima, Philip me esperava perto do elevador.
– Devia ter ligado do aeroporto – disse –. Esperava ir buscá-la. – Onde está nosso convidado? – perguntou.
– Demorará. Possivelmente para sempre.
– Não virá?
Encolhi meus ombros e dei um bocejo.
– Vôo complicado. Muita turbulência. Só pensava em chegar aqui e descansar. Não sabe o quanto estou
feliz por ter chegado a casa.
– Não tão feliz como eu estou de ter você em casa, doçura. – Philip me acompanhou ao interior do
departamento.
– Vá se sentar, doçura. Comprei frango assado. Vou esquentá-lo.
– Obrigado.
Nem sequer tinha tirado os sapatos quando alguém bateu na porta. Pensei em não lhe dar atenção, mas
não serviria de nada. Embora Philip não escutasse tão bem como eu, surdo não era.
Abri a porta com um puxão. Clay estava ali com nossa bagagem.
– Como encontrou... – comecei a lhe dizer.
Levantou minha bolsa. Da alça pendurava uma etiqueta com meu nome e endereço.
– Um rapaz que veio entregar pizza abriu a porta para mim. Uma segurança muito boa.
Entrou e deixou as bolsas junto ao cabide.
A porta da cozinha se abriu a minhas costas. Fiquei tensa e escutei os passos de Philip. A apresentação
ficou engasgada na garganta. O que aconteceria se Clay não seguisse o jogo? O que aconteceria se tivesse
se decidido a não apresentar-se como meu primo? Era muito tarde para mudar minha história? Era muito
tarde para expulsá-lo?
– Chegou – disse Philip, aproximando-se e estendendo sua mão –. Deve ser o primo de Elena.
– Clay – consegui dizer –. Clayton.
Philip sorriu.
– É um prazer. Qual prefere? Clayton ou Clay?
Clay não respondeu. Nem sequer olhou para Philip desde que entrou na sala. Em troca, seguiu com seus
olhos fixos nos meus. Vi a fúria que brilhava ali com a ira e a humilhação. Preparei-me para a explosão. Não
aconteceu. Em vez disso, conformou-se sendo incrivelmente mal educado, ignorando Philip, sua saudação,
sua pergunta e sua mão estendida, e passando diretamente ao living.
O sorriso de Philip se alterou só um segundo, logo se virou para onde estava parado Clay em frente à
janela, de costas a nós.
– O sofá cama está aqui – disse, mostrando onde tinha deixado uma pilha de roupa de cama recém lavada
–. Espero que não seja muito incômoda. Alguma vez o usamos, verdade, doçura?
Clay apertou os dentes, porém continuou olhando pela janela.
– Não – disse. Tentei pensar em algo para dizer, mudar de tema, mas não me ocorreu nada.
– Supõe-se que temos vista para o lago – disse Philip, com um pequeno sorriso –. Acredito que se você se
localizar a três passos à esquerda da janela, conseguirá ver uma diminuta faixa do Lago Ontário. Ao menos
em teoria.
Clay continuou sem dizer nada. Eu tampouco. O silêncio pôs a sala em surdina, como se Philip falasse com
o vazio. Suas palavras não deixavam eco nem impressão.
Philip continuou.
– O outro lado do edifício tem uma vista melhor de Toronto. É uma cidade maravilhosa, realmente. Posso
tirar umas horas livres amanhã a tarde se quiser que leve você para conhecê-la antes que Elena volte para
casa.
– Não é necessário – disse Clay. As palavras saíram tão tensas que seu sotaque se perdeu. Soava como um
estranho.
– Clay viveu em Toronto – disse –. Um tempo. Faz alguns anos.
– Sério? – disse Philip – Como Clay não respondeu, forçou-se a rir. – Voltou, assim suponho que não foi
uma experiência tão ruim.
Clay se virou e me olhou.
– Tenho boas lembranças – disse.
Continuou me olhando um tempo, depois rompeu o contato visual e foi para o banheiro. Em poucos
segundos escutei a ducha.
– Pode usar a ducha – murmurei, dirigindo um olhar de exasperação a Philip –. O campeão da amabilidade,
não é verdade?
Philip sorriu.
– Então não é cansaço pelo vôo?
– Por desgraça, não. Devia ter alertado você. Não tome como algo pessoal. Acredito que é uma desordem
anti-social de personalidade sem diagnostico. Não tem que suportá-lo. Ignora-o ou lhe diga que vá a merda.
Isso é o que eu faço.
Philip elevou as sobrancelhas. No princípio pensei que era devido a minha descrição de Clay, mas
enquanto Philip me olhava, pensei no que acabei de dizer e escutei o sarcasmo e a acidez. Não era a Elena
a quem Philip estava acostumado. Maldito Clay.
– Só estava brincando – disse –. Foi um longo vôo. Quando chegamos ao aeroporto perdi o controle e
brigamos.
– Perdeu o controle? – disse Philip com um leve sorriso –. Não pensei que isso fosse possível.
– Clayton me provoca. Se tivermos sorte, não ficará muito tempo aqui. Mas é da família, assim tenho que
suportá-lo – virei-me para a cozinha e fiz como se farejasse –. Parece que o frango está pronto.
– Não devemos esperar seu primo?
– Ele não nos esperaria –. Disse e me dirigi à cozinha.

A única coisa boa que posso dizer dessa noite é que foi curta. Clay saiu da ducha (por sorte vestido), veio
ao living e tirou um livro da estante. Nós estávamos comendo assim fui ao living e o disse. Grunhiu que
comeria mais tarde e eu não insisti.
Quando terminamos de comer e limpar a cozinha, já era suficientemente tarde para dizer que estava
cansada e ir para cama. Philip me seguiu e rapidamente percebi que tinha esquecido um pequeno detalhe
sobre o acordo. Sexo.
Estava vestindo a camisola quando Philip entrou. Não me interesso pela moda noturna, sempre dormi
com roupa íntima até os dezoito, mas quando Philip se mudou para morar comigo, vi que vestia a calça do
pijama para dormir e supus que eu também devia vestir algo. Provei todas essas coisas sensuais que se vêem
nas revistas femininas. Mas as condenadas das rendas me picavam em lugares onde nunca antes tive coceira
e os elásticos me furavam e os entremeios se retorciam, e decidi que tais coisas só se usavam quando uma
pessoa tinha relações sexuais. Como Philip não se excitava com rendas e cetim vermelho, joguei tudo e me
acostumei a usar camisetas grandes. No Natal, Philip me comprou uma camisola branca, bonita e comprida
até os joelhos. Era muito feminina e antiquada e muito virginal para meu gosto. Mas a ele parecia gostar
dela assim a usava
Philip esperou que eu começasse a escovar meus cabelos, então se aproximou, se insinuando e me beijou
no pescoço.
– Senti saudades – murmurou contra minha pele –. Não queria me queixar, mas foi uma separação mais
longa do que esperava. Se demorasse mais alguns dias, teria uma visita inesperada.
Ocultei um ataque de tosse com uma risada. Philip em Bear Valley. Esse era um quadro ainda pior que o
que estava suportando agora.
Os lábios de Philip foram para minha nuca. Apertou-se contra mim. Enfiou uma mão debaixo de minha
camisola e chegou até meu quadril. Fiquei rígida – Sem pensar, olhei a porta do quarto o olhar de Philip
seguiu o meu.
– Ah – disse, rindo – esqueci de nosso hóspede. Poderíamos não fazer ruídos, mas se prefere esperar um
momento mais privado...
Assenti. Philip voltou a me beijar o pescoço, suspirou, brincando, e se dirigiu à cama. Eu sabia que tinha
que me reunir a ele na cama, acariciá-lo, falar. Mas não podia.
Isto ia ser uma catástrofe.

ACOMODAR-SE
Na manhã seguinte despertei sentindo aroma de panquecas e bacon. Olhei o relógio. Quase nove horas.
Philip normalmente sai às sete. Devia ter decidido chegar tarde desta vez e preparar o café da manhã.
Sempre tão doce.
Saí do quarto e fui à cozinha. Clay estava em frente ao fogão, colocando uma espátula sob uma montanha
de bacon. Virou-se quando entrei. Seus olhos percorreram minha camisola.
– Que caralho é isso? – perguntou.
– Uma camisola.
– Dorme com isso?
– Se não dormisse seria um vestido, não é verdade? – ladrei-lhe, inexplicavelmente zangada por haver me
equivocado a respeito de quem preparava meu café da manhã.
Os lábios de Clay tremeram, como se contivesse a risada.
– É muito... doce, carinho. Parece algo que Jeremy compraria para você. – Ah, – disse passando ao meu
lado –. Mandou flores para você.
– Jeremy?
Clay negou com a cabeça.
– Estão junto à porta de entrada
Fui até a entrada e encontrei uma dúzia de rosas vermelhas em um vaso prateado. O cartão dizia: ”Deixei
você dormir. Bem-vinda a casa. Senti saudades. Philip”.
Vêem? Nada mudou. Philip continuava tão atento como sempre. Peguei o vaso com um sorriso e pensei
em onde pô-lo. A mesa do living? Não, as flores eram muito altas. Na mesinha do saguão? Muitas coisas. A
cozinha? Abri a porta. Não havia lugar.
– O dormitório – murmurei e retrocedi.
– Água – disse-me Clay.
– O quê?
– Necessitam de água.
– Sei.
– E sol – adicionou.
Não respondi. Teria recordado que necessitavam de água e sol... eventualmente. Devo reconhecer que
nunca entendi muito o costume de enviar flores. Com certeza, são lindas, mas não fazem nada. Não é que
eu não gostasse. Eu gosto. Jeremy sempre cortava flores do jardim e as punha em meu quarto e eu
desfrutava delas. Claro que se ele não as pusesse em um lugar ensolarado e não colocasse água, eu não
desfrutaria delas por muito tempo. Sou muito mais apta a matar coisas que as ter vivas. Que bom que nunca
pensei em ter filhos.
Logo depois de lhes pôr água e colocar as rosas no quarto, voltei para a cozinha. Clay pôs duas panquecas
em meu prato e estava para me servir a terceira.
– Já está bom – disse, retirando meu prato.
Arqueou ambas as sobrancelhas.
– Por agora – É obvio que comerei mais depois de terminar estas.
– É tudo o que come quando ele está aqui? Surpreende-me que possa chegar ao trabalho sem desmaiar.
Não pode comer assim, Elena. Seu metabolismo necessita...
Retirei minha cadeira. Clay se deteve e serviu bacon, depois serviu seu prato e se sentou.
– A que hora vai ao trabalho? – perguntou.
– Liguei ontem à noite e disse que estaria lá às dez.
– Então é melhor nos pomos em marcha. Quanto demora a caminhar até lá? Trinta, quarenta minutos?
– Vou de metro.
– De metro? Odeia o metro. Toda essa gente metida em um vagão, com estranhos que lhe empurram e o
aroma...
– Acostumei-me.
– Para que se incomodar? É uma linda caminhada pela Bloor.
– As pessoas não vão ao trabalho caminhando – disse –. Vai de bicicleta, de patins, corre. Não tenho uma
bicicleta nem patins e não posso correr com uma saia.
– Vai trabalhar de saia? Odeia as saias.
Afastei meu prato e me levantei da mesa.

Tentei convencer Clay de que ele podia caminhar até meu trabalho e que eu pegaria o metro sozinha. Mas
não aceitou. Por minha segurança e de acordo com a vontade expressa de seu líder, suportaria a tortura do
metro. Devo reconhecer que me deu muito prazer vê-lo sofrer os sete minutos que durou a viagem. Não é
que se retorcesse. Qualquer que o observasse veria um homem parado em um vagão lotado, vigiando com
impaciência o pôster onde se via o avanço do trem. Só o delatava seu olhar, e para isso teria que conhecê-
lo o suficiente. No fundo de seu olhar se via um animal enjaulado, claustrofobia com partes iguais de
indignação e pânico iminente. Cada vez que alguém o roçava, agarrava um pouco mais forte a barra.
Respirava pela boca e mantinha os olhos cravados no mapa; só desviava os olhos para verificar o nome de
cada estação quando o trem parava. Uma vez me olhou. Sorri para ele e lhe mostrei que estava relaxada.
Com ira, voltou a olhar o pôster e me ignorou o resto da viagem.

Fui almoçar com minhas colegas de trabalho. Ao voltar, vi uma figura familiar sentada em um banco em
frente ao edifício onde ficava meu escritório. Inventei uma desculpa para não voltar e fui até onde estava
Clay.
– O que aconteceu? – perguntei ao me aproximar por detrás. Virou-se e sorriu.
– Olá, carinho. Foi um bom almoço?
– O que faz aqui?
– Estou cuidando de você, lembra?
Detive-me.
– Por favor, não me diga que ficou sentado aqui toda a manhã.
– É obvio. Pensei que não me deixariam ficar em seu escritório.
– Não pode ficar sentado aqui.
– Por que não? Deixe-me adivinhar. As pessoas normais não ficam sentadas em bancos da rua o dia todo.
Não se preocupe, carinho. Se vierem me prender, mudarei de banco, ao outro lado da rua.
Olhei para o edifício, para me assegurar de que não saía ninguém.
– Não trabalho em meu escritório o dia todo, sabe. Tenho uma entrevista com um vereador esta tarde,
depois tenho que cobrir um evento em...
– Irei contigo. A prudente distancia, para me assegurar de que não tenha que suportar o horror de se
associar em público comigo.
– Quer dizer que vai me vigiar
Clay sorriu.
– Uma habilidade que sempre é bom praticar para melhorá-la.
– Não pode ficar aqui.
– E voltamos para o mesmo...
– Pelo menos faz algo. Lê um livro, um jornal, uma revista.
– Claro, e deixar que algum vira-lata passe por mim enquanto faço palavras cruzadas.
Elevei as mãos e voltei para o edifício. Cinco minutos mais tarde, saí até seu banco.
– Já estava sentindo saudades de mim? Perguntou sem se virar.
Deixei cair uma revista por sobre seu ombro em seu colo. Pegou, olhou a capa e franziu o sobrecenho.
Automóveis esportivos?
– É uma revista para tipos bons – disse –, ao menos faz de conta que a lê.
Olhou algumas páginas até deter-se na foto de uma ruiva de biquíni, jogada sobre a capota de um Corvefle
Stingray. Olhou o texto e examinou a foto.
– O que faz a mulher ali? – perguntou.
– Está tampando um raspão na capota. Era mais barato que arrumá-lo.
Passou mais algumas páginas de mulheres com pouca roupa e automóveis clássicos.
– Nick tinha revistas como estas quando éramos crianças. Mas sem automóveis. – Girou uma foto de lado.
– E sem trajes de banho.
– Faz de conta que a lê. Está bem? – disse, voltando para a porta –. Nunca se sabe. Possivelmente eu tenha
sorte e encontre algo que você goste.
– Acreditei que você gostava de meu automóvel.
Comecei a me afastar.
– Não referia aos automóveis.

Depois do jantar, Clay e eu ficamos no apartamento jogando cartas. Quando Philip chegou a casa, eu ia
ganhando trinta dólares e cinqüenta centavos. Acabava de ganhar meu quarto jogo seguido e estava me
gabando disso do modo mais imaturo quando Philip chegou. Assim que Philip pediu jogar Clay decidiu que
era hora de ir se banhar novamente. Nesse ritmo, ia ser o cara mais limpo de Toronto. Philip e eu jogamos
algumas rodadas, mas não era o mesmo. Philip não jogava por dinheiro. O que é pior, queria que eu jogasse
de acordo com as regras.

Essa noite Jeremy se contatou comigo para ver se estávamos bem. Embora tivesse proibido as ligações
telefônicas, não significava que não estivéssemos comunicados. Como já disse, Jeremy tinha seu próprio
modo de contatar-se conosco, através de uma espécie de conexão psíquica noturna. Todos os licántropos
tinham certo grau de poder psíquico. A maioria o ignorava. Porque era algo muito místico para criaturas
mais acostumadas a comunicar-se com os dentes e os punhos que com suas mentes.
Clay e eu compartilhávamos uma espécie de vinculo mental, possivelmente porque foi ele quem me
mordeu. Não era que pudéssemos ler nossas mentes nem nada tão impactante, Era algo mais parecido a
esse maior entendimento de que falam os gêmeos, coisas pequenas como sentir um beliscão quando ele se
fere ou saber quando está perto embora não possa vê-lo nem ouvi-lo nem cheirá-lo. Todo isso me deixava
incômoda, assim não era algo que cultivasse ou nem sequer aceitasse.
A capacidade de Jeremy era diferente. Podia comunicar-se conosco enquanto dormíamos. Não era como
escutar vozes em meu cérebro nem nada assim tão dramático. Ao dormir sonhava que falava com ele, mas
subconscientemente percebia que era mais que um sonho e podia escutar e responder racionalmente. Era
bastante bom, embora nunca fosse dizer isso ao Jeremy.

Despertei com o aroma das panquecas. Esta vez soube exatamente quem estava preparando o café da
manhã e não me incomodei. Comida era comida. Para mim não há nada melhor que um café da manhã
preparado para comer. Eu era incapaz de cozinhar pela manhã. Quando me levanto, estou muito faminta
para preparar algo. Às vezes até o fogão me parece muito lento. E melhor ainda que isso de que alguém me
prepare o café da manhã era poder sair da cama e ir direto à mesa, sem me preocupar com a ducha, a roupa,
o cabelo e a escova de dente, as coisas necessárias para ser uma companhia agradável na mesa. Clay não se
importa. Tinha visto coisas piores. Enterrei-me sob as mantas. Quando o café da manhã estivesse pronto,
Clay me traria um café. Só tinha que esperar.
– Isto é maravilhoso. Não comemos panquecas todos os dias. Elena não se interessa muito pelo café da
manhã. Geralmente se conforma com cereal frio e torradas. Não sei se ela vai comer isto, Mas eu sim.
Sentei-me de repente. Não era a voz de Clay.
– Como chamam a isto no sul? – continuou Philip –. Flapjacks? Johnny cakes? Nunca me lembro. Vem de
lá, não é verdade? Quero dizer, nasceu lá. Com esse sotaque. Suponho que é da Geórgia ou possivelmente
do Tennessee.
Clay grunhiu. Saltei da cama e corri até a porta Então vi que estava de camisola no espelho. Um robe.
Necessitava de um robe.
– Seu irmão Jeremy não tem sotaque – disse Philip –. Ao menos não o notei quando falei com ele por
telefone.
Merda! Procurei no guarda-roupa. Onde estava o robe? Tinha um robe?
– Meu meio-irmão – disse Clay.
– Ah é? Ah, claro, faz sentido.
Procurei roupa e me vesti a toda velocidade. Saí quase correndo do quarto e me detive entre Clay e Philip.
– Estar com fome? – perguntou Clay, ainda olhando para o fogão.
Philip se inclinou para me beijar na bochecha e tentou alisar meus cabelos enredados.
– Não deixe de ligar para mamãe esta manhã, doce. Não queria planejar a despedida de Betsy sem você.
– Olhou para Clay. – Minha família adora Elena. Se não me casar com ela logo, quererão adotá-la.
Seu olhar fixou-se em Clay. Clay pôs três panquecas em uma grande pilha, virou-se e as trouxe para a
mesa, sem nenhuma expressão no rosto. Philip franziu o sobrecenho. Provavelmente cansado de falar sem
que lhe respondesse
– A manteiga está na... – disse Philip, mas Clay já tinha aberto a porta da geladeira –. Ah, e o xarope de
arce está sobre o fogão no arma...
Clay tirou da geladeira um frasco de vidro de xarope de arce, do tipo que se compra nas lojas para turistas
a preço de ouro.
– Isso é novo – disse, sorrindo para Philip – Quando o comprou?
– Não, não fui eu.
Olhei para Clay.
– Comprei-o ontem – disse.
– Não estou seguro de que Elena goste... – Philip se deteve e seu olhar foi de mim ao Clay e vice-versa –.
Sim, bom, muito amável de sua parte.
O toque do telefone me resgatou do esforço inútil por encontrar algo que dizer.
– Eu atendo – disse Philip e foi ao living.
– Obrigado – disse ao Clay entre dentes. Tinha que fazê-lo, não é verdade? Primeiro o café da manhã,
agora o xarope. Demonstra-lhe que sabe o que eu gosto e o faz ficar mau.
– Mas eu não disse nada. Você mencionou o xarope.
– E não haveria dito nada?
– É obvio que não. Para que ia fazer isso? Eu não estou competindo, Elena. Vi quando fiz o café da manhã
ontem que não tinha xarope do bom. Sei como se queixa nesses casos, e então pensei que tinha acabado e
comprei.
– E o café da manhã? Diga-me que não significa nada que me prepare o café da manhã?
– Com certeza sim. Significa que estou preocupado porque não come bem e quis me assegurar de que ao
menos tivesse uma refeição decente. Com certeza ele pensa que estou tentando ajudar. Fiz o suficiente para
que houvesse para ele também.
– Fez suficiente para todo o Edif. ... – Detive-me notando que só havia comida suficiente para alimentar
três pessoas normais.
– O resto está no forno – disse Clay –. Escondi-as quando ouvi que ele despertava. Farei um pacote para
que as leve ao trabalho. Se alguém perguntar, pode dizer que não conseguiu tomar o café da manhã em
casa.
Tentei pensar o que dizer e me salvou outra interrupção. Era Philip que voltava para a cozinha
– Do trabalho – disse, fazendo uma careta –. Que outra coisa podia ser? Se uma manhã for mais tarde,
ligam. Não se preocupe, doce. Disse que estou tomando o café da manhã contigo e chegarei mais tarde. –
Pegou uma cadeira se sentou e se virou para Clay.
– E como vai sua busca por trabalho?

Esse dia combinei de me encontrar com Clay para almoçar na esquina. Trouxe um almoço de um
restaurante de refeições para viagem próximo e fomos ao terreno da universidade para comer. O lugar não
foi minha escolha. Eu nem sequer notei que íamos para lá até que chegamos. Embora trabalhasse a poucas
quadras da Universidade de Toronto, não visitei o lugar nos nove meses que estive trabalhando na revista.
Tampouco fui ali em nenhuma das minhas visitas a Toronto durante os últimos dez anos. Foi na universidade
onde conheci Clay onde me apaixonei por ele, onde passei o ano mais feliz de minha vida. Também foi o
lugar onde ele me enganou, mentiu para mim e me traiu. Quando percebi para aonde íamos, deu-me medo.
Pensei em uma dúzia de desculpas e em uma dúzia de lugares para ir comer que não fosse esse. Mas nenhum
chegou a minha boca. Com a lembrança fresca do que ele disse a respeito de Stonehaven, dava-me muita
vergonha reconhecer que não queria ir à universidade. Era só um lugar, um “montão de tijolos e cimento”.
Talvez fosse algo mais que vergonha. Talvez não quisesse admitir quanta ressonância emocional tinha essa
pilha de tijolos e cimento para mim. Talvez não quisesse que ele soubesse o quanto recordava isso e quanto
me importava. Assim não disse nada. Sentamo-nos em um banco perto da entrada principal. Era época de
provas e só um punhado de estudantes davam voltas por aí; a pressa de chegar às salas de aula era uma
lembrança que se desvanecia. Um grupo de jovens estava jogando futebol, suas jaquetas da primavera e
suas bolsas abandonadas em uma pilha ao lado. Enquanto comíamos, Clay falou do trabalho que escreveu
sobre o culto do jaguar no Sudamérica. Quanto mais falava, mais retrocedia minha mente, recordando
conversas do passado nesse lugar e apagando os anos transcorridos. Podia ver Clay tantos anos atrás,
sentado no banco, comendo o almoço e falando, tão centrado em nós que sobre sua cabeça voavam discos
e ele nem sequer os notava. Sempre se sentava na mesma posição, com as pernas estiradas e seus pés
enganchados nos meus, os braços sobre a mesa, as mãos em contínuo movimento, pondo ênfase, como se
alguma parte dele tivesse que estar sempre em movimento. Sua voz soava igual, tão familiar agora que eu
podia seguir suas inflexões, predizer cada mudança de tom, cada acentuação.
Inclusive naquele tempo, ele queria saber o que pensava e minha opinião a respeito de cada coisa.
Nenhum pensamento de minha mente jovem em muito corriqueiro ou aborrecido para ele. Com o tempo
lhe contei tudo, de meu passado, de minhas aspirações, meus temores, minhas esperanças e minha
insegurança, coisas que nunca pensei que poderia compartilhar com outra pessoa. Toda minha vida tinha
temido me abrir a alguém. Queria ser uma mulher forte e independente, não uma daminha danificada com
antecedentes dignos de um melodrama dickensiano. Tinha medo de dar pena de modo que mantinha aos
amigos e aos namorados a distância. Tudo isso mudou com Clay. Quis que soubesse tudo de mim, para que
estivesse seguro de saber quem eu era e que ainda assim me amava. Escutou e ficou. O que é mais, foi
recíproco. Falou-me de sua infância, de que perdeu seus pais em circunstâncias traumáticas que não
recordava, que foi adotado, que não se adaptou no colégio, que fazia continuamente o ridículo e ficava
marginalizado, metido em problemas, e o expulsaram tantas vezes que parecia passar pelos colégios como
eu trocava de famílias adotivas. Contou-me tanto que estava segura de que o conhecia, conhecia-o por
completo. Então descobri o quanto estava equivocada. Às vezes a decepção dói muito mais que uma
mordida.
TURBULÊNCIA
Quando Philip chegou a casa passava da meia-noite, Clay e eu estávamos assistindo a um filme. Eu,
estirada no sofá. Clay estava na poltrona, monopolizando a pipoca. Philip entrou, parou atrás do sofá e
olhou a tela alguns minutos.
– Um filme de terror? – disse –. Não vi um filme de terror desde que estava na universidade. – Deu a volta
na poltrona e se sentou ao meu lado. – Qual é esse?
– Os mortos vivos II – disse, estendendo a mão para pegar o controle remoto –. Estou segura de que
haverá outra coisa.
– Não, deixa-o – olhou para Clay –. Você gosta dos filmes de terror?
Clay ficou em silêncio um tempo, depois grunhiu algo pouco claro.
– Clay não gosta de terror – disse –. Muita violência. Incomoda-lhe. Tenho que mudar de canal se a coisa
ficar sanguinária.
Clay bufou.
– Este é bobo – disse a Philip. É o segundo de uma série. E como todos os segundos de terror, é ruim.
– O grito 2 – disse Clay.
– É uma exceção e só porque os roteiristas sabiam que as segundas partes sempre são ruins lhe
adicionaram coisas.
– Sim – disse Clay –. A idéia... – deteve-se e olhou para Philip que seguia a conversa como um torneio de
ping-pong e encheu a boca de pipocas.
– Dê para mim – disse.
– Fui eu que comprei.
– E a preparou em meu microondas. Dê-me.
– Há mais duas bolsas na cozinha.
– Eu quero essa, me dê.
Atirou o recipiente sobre a mesa e a aproximou com o pé.
– Está vazio! – disse.
Philip riu.
– Vejo que se conheciam desde a infância.
Fez-se silêncio. Então Clay ficou de pé.
– Vou tomar banho – disse.

O dia seguinte era sábado. Pela manhã Philip foi jogar golfe antes que eu despertasse. O golfe é um esporte
que não me interessa. Exige-me muito pouco fisicamente e muito quanto a comportamento. No outono
passado aceitei tentá-lo, então Philip me deu duas listas de regras de seu clube. Uma era de regras para
jogar. A outra tinha sobre a vestimenta e o comportamento enquanto se joga. Sou consciente de que certos
esportes requerem determinada vestimenta para proteger-se, porém não entendo por que uma blusa sem
mangas causa problemas de segurança. Deus não queira que ao ver meus ombros nus os golfistas fiquem
nervosos e lancem as bolas por toda parte. E tenho preocupações suficientes na vida sem ter que medir se
o comprimento de minha bermuda é adequado às normas da quadra de esportes. Além disso, logo depois
de um par de voltas com Philip, concluí que o golfe realmente não me interessa. Bater forte na bola servia
para descarregar tensões, mas aparentemente não era o objetivo do jogo. De modo que Philip jogava golfe.
Eu não.

Depois do golfe, fomos os três almoçar e resultou ser a primeira vez em dez anos que não desfrutei de
uma refeição. Durante vinte minutos Philip tentou fazer Clay falar. Teria mais sorte se tentasse falar com sua
salada. Para salvá-lo, comecei a monologar, e tive que continuar até que chegou a conta, depois de trinta e
oito minutos e vinte segundos. Nesse momento, Clay recuperou milagrosamente a voz, e sugeriu que
caminhássemos de retorno ao departamento, sabendo que tínhamos vindo no automóvel de Philip e que
este se veria obrigado a voltar sozinho. Antes que pudesse discutir, Philip de repente recordou que tinha
algo para fazer no escritório e se não nos importávamos de voltar caminhando se fosse com o automóvel.
Depois de concordar, os dois homens correram para porta como se tivessem fugindo do cárcere, com isso
fui eu que tive que deixar a gorjeta.
No domingo de manhã, enquanto Philip jogava golfe, Clay e eu fizemos as tarefas aborrecidas da semana,
como limpar a casa, lavar a roupa e comprar mantimentos. Quando voltamos das compras, havia uma
mensagem de Philip na secretária eletrônica. Liguei para ele.
– Que tal sua partida? – perguntei quando atendeu.
– Não foi muito boa. Liguei por causa do jantar.
– Não vai poder vir?
– Na realidade queria convidar você para jantar fora. Em algum lugar lindo. – Fez uma pausa – Somente
nós dois.
– Que bom!
– Não tem problema?
– Que nada. Clay pode se arrumar sozinho. Não gosta de comer em lugares finos. Além disso, não trouxe
roupa para vestir.
– E o que veste quando procura trabalho?
Bom, bom.
– É trabalho acadêmico – disse –. Não há problema com a roupa
– Bom – outra pausa –. Depois do jantar pensei que poderíamos ir ver algo. Talvez possamos encontrar
entradas pela metade do preço para algo.
– Possivelmente não seja tão fácil em um fim de semana prolongado com feriado, mas podemos procurar
algo.
– Ocorreu-me que podíamos – pigarreou – ir sozinhos. Somente nó dois.
– É o que pensei. Quer que consiga as entradas?
– Não, eu me arrumo. Estarei ai as seis. Diga a Clayton que chegaremos tarde. Iremos jantar e ver algo e
depois tomar algo.
– Parece-me bom!
Philip ficou em silêncio um momento, como se esperasse que dissesse algo mais. Como não o fiz, saudou-
me e cortamos a comunicação.

O jantar foi outro pesadelo. E não é que tenha acontecido nada ruim. Quase desejei que fosse assim. Se
não tivéssemos reservado a mesa ou a comida tivesse chegado fria, ao menos assim teria havido algo do
que falar. Mas em vez disso passamos uma hora agindo como duas pessoas que se encontrassem pela
primeira vez e tivessem claro que não iriam voltar a sair. Parecia que não sabíamos do que falar. E não é
que não falássemos. Philip me contou da campanha na qual trabalhava, para um condomínio junto ao lago.
Eu contei uma pequena anedota engraçada a respeito de um lapso do primeiro-ministro na última
conferência de imprensa. Falamos dos planos que havia para renovar o porto de Toronto. Queixamo-nos do
anúncio de aumento das tarifas de transporte. Falamos da possibilidade de que a equipe local de beisebol
pudesse ganhar o campeonato. Em síntese, falamos de tudo o que dois perfeitos estranhos poderiam falar
no jantar. E, pior ainda, falamos desses temas com o desespero de dois estranhos aterrorizados pelo silêncio.
Na sobremesa já tínhamos ficado sem tema. Detrás de nós três jovens apenas mais que adolescentes,
festejavam seu êxito com ações de empresas ponto.com com vozes suficientemente estridentes para que
as pessoas que passavam pela rua se inteirassem. Estive por fazer algum comentário crítico ao Philip, mas
me contive. Não estava segura de qual seria sua reação. Soaria muito negativa? Cínica? Era o tipo de
comentário que Clay faria. E Philip? Não estava segura, assim que fiquei calada.
Quando o moço voltou a encher nossas xícaras de café, Philip pigarreou.
– Bom – disse –. Quanto tempo mais seu primo vai ficar conosco?
– Provavelmente fique mais alguns dias. É muito? Sei que é um incômodo...
– Não, não. Não é isso. – conseguiu sorrir debilmente. – Devo dizer que não é muito agradável, mas vou
sobreviver. Mas foi... estranho.
– Estranho?
Philip deu de ombros.
– Suponho que se deve ao fato de vocês se conhecem há tanto tempo. É como se... não sei. Sinto... –
Sacudiu a cabeça.
– Sou eu, doçura. Sinto-me deslocado. Não é uma atitude amadura. Não sei. Tocou a xícara de café com
um dedo e logo me olhou.
– Houve algo...? Interrompeu-se.
– O quê?
– Não importa. – Um sorvo de café. – teve sorte com a busca de emprego?
– Conseguiu algo na Universidade de Toronto. Assim que se concretize, mudará-se.
– Assim vai fica em Toronto?
– Por um tempo.
Philip abriu a boca, vacilou, logo tomou outro sorvo de café.
– Bem – disse–. Escutou o último discurso do Major Mel?

Não pudemos conseguir entradas para nada bom, assim fomos ver um filme e depois tomamos alguns
drinques em um bar onde tocavam jazz. Eram quase duas horas quando chegamos ao departamento. Clay
não estava ali. Quando Philip ia ao quarto em busca de seu telefone celular para ver se tinha mensagens,
Clay entrou pela porta, agitado.
– Oi – disse, procurando Philip com o olhar.
– Está no quarto – foi correr?
– Sem você?
Clay foi à cozinha. Voltou com uma garrafa de água, destampou-a, engoliu a metade e me ofereceu o
resto. Sacudi a cabeça.
– Por favor, me diga que esteve fazendo exercício no ginásio.
Clay tomou outro gole de água.
– Caralho – murmurei, me deixando cair no sofá –. Prometeu não me seguir esta noite.
– Não, você me disse que não a seguisse. Eu não respondi. Meu trabalho é proteger você. E é o que vou
fazer carinho.
– Não necessito...
Philip reapareceu.
– Más notícias. – Olhou para Clay e depois para mim. – Interrompo algo?
– O que acontece? – perguntei.
– Há uma reunião de emergência amanhã – suspirou –. Sim, é o dia da Rainha Vitória. Sei. Sinto muito,
doçura. Mas liguei para Blake e combinamos de jogar golfe as oito, assim terei tempo de jogar e levar você
para almoçar antes da reunião. Realmente esperava poder passar mais tempo contigo este fim de semana.
Dei de ombros,
– Não importa. Clay e eu procuraremos algo para fazer.
Philip vacilou, parecia disposto a dizer algo, logo olhou para a cozinha e fechou a boca.

Na segunda-feira ao meio dia, quando esperava que Philip viesse me buscar, ligou para dizer que houve
um problema no clube de golfe e começou a jogar uma hora mais tarde. Acabavam de terminar. Assim não
poderíamos almoçar juntos.
Depois que Philip ligou, Clay e eu caminhamos até o bairro chinês para comer ali. Passamos o resto do dia
descansando, descobrindo novos bairros, descendo por ruas residenciais, logo correndo pela praia antes de
voltar para o apartamento com bifes para o jantar. Ao redor das sete horas alguém tocou na campanhia. Eu
estava no banheiro, assim que gritei ao Clay que atendesse. Quando saí, tinha outra floreira, esta de argila,
com faixas de cores diferentes.
– Lamenta não ter podido levar você para almoçar – disse Clay –. Quê-las no quarto com as outras?
Fiquei quieta, olhando-o com as flores. Fiquei esperando.
– Diga.
– Dizer o quê?
Peguei as flores de suas mãos.
– Sei o que está pensando. Se realmente se importasse comigo, teria deixado o golfe.
– Não ia dizer isso.
– Estava-o pensando.
– Não, você o estava pensando. Você o disse.
Fui rumo a meu quarto.
– Água – disse-me.
Grunhi e me desviei para o banheiro. Coloquei água na floreira e ao fazê-lo caíram umas bolinhas verdes
no lavabo e outras no chão. Peguei as que caíram no lavabo, olhei as que tinham caído no chão e decidi que
as recolheria quando fizesse limpeza.
– Diferente de algumas pessoas – disse, voltando para a sala – Philip não acha que um casal tenha que
estar grudado todo o tempo. E eu não tenho problemas com isso. Ao menos manda flores.
Silêncio do living. Deixei a floreira em minha mesinha do abajur, junto às rosas e voltei para perto de Clay.
Estava sentado no sofá, lendo o rascunho que eu trouxe para casa do trabalho na sexta-feira.
– Diga.
Levantou os olhos.
– O que quer que eu diga?
– Esperou toda a semana para me dizer o que pensa de Philip. Vamos. Diga.
– Quer conhecer minha opinião verdadeira? Apertei os dentes.
– Sim.
– Está segura? Apertei-os mais.
– Sim.
– Acredito que é um cara decente.
Meus dentes começavam a doer.
– E isso o que quer dizer?
– Exatamente o que disse, carinho. Acredito que é um cara decente. Não é perfeito, mas quem o é?
Obviamente ama você. Tenta ser considerado. É muito paciente. Se eu fosse ele, teria me expulsado daqui
faz tempo. Não fez outra coisa que mostrar-se amável. Um cara bom.
– Mas não vai funcionar – elevou a mão quando eu ia protestar –. Vamos Elena. Você sabe por que
escolheu a este cara, não é verdade? E não me refiro ao fato de que quer uma casa e uma família e tudo
isso. Crê que não sei que isso é o que quer? Sim sei. E diria que o tem debaixo de seu nariz, mas não quer
escutar. A pergunta é: por que escolheu a este cara em particular para realizar essas fantasias? Sabe, não é
verdade carinho?
– Porque é um cara bom. É...
– Bom, paciente e carinhoso. Não faz você recordar de alguém?
– Não de você.
Clay saiu do sofá, rindo.
– Decididamente não se parece comigo. – Deixou minha pasta na mesa e estudou meu rosto. – Realmente
não entende, não é verdade carinho? Bom, quando entender, saberá por que não vai dá certo. Pode gostar
deste cara, mas nunca será como o que há entre você e eu. Não pode ser. Por mais decente que seja,
escolheu-o por razões totalmente equivocadas.
– Está equivocado.
Deu de ombros.
-– Sempre há uma primeira vez. O que acha de fazermos os bifes? Passe-me eles e você pode preparar as
verduras.

Depois de comermos, fomos caminhar por um bom tempo. Quando voltamos para o apartamento, Philip
já tinha passado por ali e deixado um bilhete na mesa avisando que os sócios o convidaram para uma reunião
em Montreal na manhã seguinte. Tinha vindo pegar um pouco de roupa em uma bolsa e já estava viajando
para Québec.
– Assim não virá esta noite? – perguntou Clay, lendo o bilhete por sobre meu ombro.
– Assim parece.
– Que lástima. Suponho que teremos que encontrar algo com que nos entreter. – Foi até o calendário. –
Vejamos. Cinco dias desde que você Trocou. Toda uma semana em meu caso. Sabe o que isso significa.
Sabia. Era hora de sair a correr.

FOGUETES
Discutimos se era melhor ir de carro ou a pé até os barrancos – Embora fosse uma longa caminhada,
nenhum dos dois se incomodava de caminhar. Era a caminhada de volta logo depois de uma corrida
exaustiva o que não parecia tão atraente. Quase tínhamos combinado de ir de carro quando mencionei que
o automóvel era de Philip e Clay decidiu que era uma noite tão bela que seria um crime não caminhar. Não
discuti. O automóvel de Philip geralmente era um estorvo. Encontrar um lugar no estacionamento perto dos
barrancos não era fácil e sempre me preocupava com a possibilidade de me multarem ou se roubassem o
automóvel e tivesse que explicar a Philip o que estava fazendo nesse lugar no meio da noite.
Era meia-noite quando chegamos aos barrancos. Separamo-nos. Eu encontrei um bosquezinho e me despi.
Ao começar minha Mudança, de repente senti uma sensação que nunca havia sentido antes, ao menos em
Toronto. Estava me aprontando para minha Mudança com toda a preparação mental que necessitaria para
escovar meus dentes, Enquanto meu cérebro estava ocupado com outras idéias, meu corpo ficava em
posição, como se o que fazia fosse à coisa mais natural do mundo. Agora, passados dez anos, a rotina devia
torna-se bastante automática e assim era... quando estava com a Matilha ou em Stonehaven. Não é que
doesse menos, mas mentalmente a transição era mais tranqüila. Eu era humana e imediatamente em
seguida loba. Nada importante. A final de contas sou uma mulher loba. Mas Trocar em Toronto era algo
diferente. Em noventa e cinco por cento do tempo vivia como qualquer ser humano normal. Levantava-me,
ia para o trabalho, voltava de metro para casa, comia, passava a noite com meu namorado e ia para cama.
Uma rotina perfeitamente normal interrompida pela necessidade ocasional de me converter em loba, correr
pelo bosque, caçar um coelho e uivar à Lua. A justaposição era tão impactante que freqüentemente chegava
aos barrancos, tirava a roupa e ficava parada ali nua pensando:
O que é o que se supõe que estou fazendo? Quase pensava que ficaria de joelhos, tentaria me concentrar
em Trocar e não acontecia nada... exceto possivelmente que despertaria dentro de uma camisa de força
com um lindo doutor me dizendo pela milionésima vez que gente não pode se converter em lobo.
Quando comecei a me preparar essa noite, parecia perfeitamente natural. O que provavelmente tinha
muito que ver com que Clay estivesse ali. Ele era como uma ponte entre dois mundos. Se ele estava ali, eu
não podia esquecer o que era. Não é que fosse uma grande surpresa. O chocante é que não me importava,
inclusive eu gostava. Tentei reprimir esse aspecto de minha natureza por tanto tempo, convencida de que
tinha que me converter em outra coisa para caber no mundo humano. Agora começava a ver a possibilidade
de outra opção. Possivelmente Clay tivesse razão. Possivelmente estava complicando a vida mais do que o
necessário. Clay estando perto, era quase impossível manter a personalidade humana da Elena.
Comportava-me como de costume: agressiva, cheia de vontades e argumentos. Inclusive no trabalho e com
Philip, parte disso saiu à superfície essa semana. E ninguém parecia notar a diferença ou, se o notavam, não
se importavam. Possivelmente não tivesse que ser a “boa” Elena, amável, recatada e silenciosa. Não é que
devesse explodir de ira quando Philip deixasse o assento da privada levantado ou golpear aos estranhos que
me pisassem no metro, mas possivelmente não tivesse que retroceder cada vez que Philip se zangasse ou
sorrir docemente quando algum bêbado me pisasse pela décima vez. Se permitisse que mais aspectos de
minha personalidade normal se mesclassem em minha “personalidade humana", possivelmente viver no
mundo humano seria mais simples, até poderia parecer mais natural. Talvez essa fosse à chave.
Os arbustos se moveram, me trazendo de volta a realidade. Vi uma parte da pele de Clay. Fez um grunhido
impaciente. Ri e voltei a me pôr em posição para iniciar minha Mudança, pensando no quanto era estranho
que a pessoa que mais odiava o mundo humano pudesse ser a que mais me ajudava a viver dentro dele. Não
era exatamente o que Clay queria. Mas então por que me ofereceu seu conselho? Duvidei, pensando nisso
um tempo. Então Clay voltou a grunhir e colocou o focinho por entre os arbustos.
– Um momento – disse –. Espere um pouco.
Sacudi a cabeça para me avivar, logo me preparei para a Mudança.

Depois de correr, voltamos a Trocar e ficamos em uma clareira sobre o pasto, descansando e falando. Era
a parte mais escura e silenciosa da noite, já passado um longo tempo do anoitecer e ainda com muito pela
frente até a madrugada. Apesar do afresco, não nos vestimos. A corrida nos esquentou tanto o sangue que
provavelmente poderíamos ficar em uma montanha de neve até o amanhecer sem nos dar conta. Deitei-me
de costas, desfrutando da sensação do vento frio contra minha pele. As árvores nos ocultavam as estrelas e
a Lua. Passava só a luz suficiente para que a escuridão não fosse total.
– Tenho algo para você – disse Clay, quando já havíamos descansado um tempo. Procurou algo na
escuridão, pegou dois arames longos de seu blusão e os agitou sobre sua cabeça.
Levantei-me.
– Trouxe estrelinhas?
– É um fim de semana de foguetes, verdade? Acreditou que me esqueceria de suas estrelinhas?
Eu adorava as estrelinhas. Bom, provavelmente fosse à única mulher no mundo de trinta anos que ficava
feliz com arames cobertos de sulfureto, mas não me importava. Ao menos não me importava quando estava
com Clay. Ele não sabia que as pessoas adultas não brincavam normalmente com estrelinhas e eu não
pensava em lhe explicar. Uma de minhas poucas lembranças com meus pais era de uma festa no dia nacional
do Canadá. Sabia que era essa festividade porque recordava uma torta com a forma da bandeira. Também
vi foguetes, muitos. Escutava música e risadas. Cheirava a sulfureto e mantas de acampamento. Recordo de
meu pai me entregando uma estrelinha, a primeira de minha vida. Recordo de minha mãe dançando comigo
com os pés nus sobre a grama molhada, agitando as estrelinhas como varinhas mágicas, rindo e girando,
olhando a faixa de luz de fadas que deixávamos para trás.
Clay pegou fósforos de seu blusão e acendeu a primeira estrelinha. Fiquei de pé e peguei. Saltavam faíscas
alaranjadas. Elevei-a e risquei uma linha no ar. Muito devagar. Fi-lo mais rápido e a imagem se manteve uns
segundos, uma linha de fogo na escuridão. Girei e olhei o brilho das faíscas. Escrevi meu nome no céu, e o
primeiro “E”desapareceu antes que terminasse tentei novamente, mais rápido. Esta vez meu nome ficou ali
um instante.
– Está acabando-se – disse Clay –. Jogue-a e peça um desejo.
– Isso é com as velas de aniversário – disse –. Mas não as joga, apaga-as com sopros.
– Uma vez as jogou. Com torta e tudo.
– Joguei-a em você. E o desejo que pedi não pode repetir-se.
Clay riu.
– Bom, sempre se desfaz das estrelinhas, assim peça um desejo. Uma nova superstição de mulher loba. A
estrelinha se apagou quando movi o braço para trás. Clay acendeu outra e a entregou. Elevei-a sobre minha
cabeça e desenhei um oito, Jogo baixei o braço e dava voltas tão rápido que quase tropeço com Clay. Riu e
pôs uma mão na parte de atrás de minha panturrilha para me sustentar. Quando recuperei o equilíbrio não
retirou sua mão. Olhei-o, deitado de costas.
– Amo-te. – disse
Pisquei e fiquei rígida.
– Mau momento? – disse com um sorriso. Tirou a mão de minha perna. – Melhor assim?
– Eu... – ia dizer algo e me contive. Não sabia o que ia dizer, o que queria dizer.
– Não estou tentando seduzir você, Elena a corrida, as estrelinhas, não conduzem a nada. Nos últimos dias
tentei fazer as coisas fáceis para você. Nada de truques. Nada de pressão. Quero que possa ver as coisas
claramente. Quando o fizer, poderá escolher. Escolher o correto.
– E isso seria você.
Mostrou minha estrelinha.
– Melhor se apressar já está quase se apagando. É a última até no próximo dia de foguetes.
Olhei e vi que quase se extinguia. Olhei as árvores, movi o braço para trás e a joguei para cima. Saltou ao
céu, fez um arco, e logo caiu como uma estrelinha fugaz, Olhei para Clay. Ele olhava a estrelinha e sorria com
tanta felicidade infantil como eu senti enquanto dançava na clareira com minha varinha mágica. Voltei a
olhar a luz, fechei os olhos e pedi um desejo.
Meu desejo foi saber o que queria.
POSSIBILIDADES
Dormimos no bosque até o amanhecer, depois nos vestimos e fomos antes que os caminhantes e
corredores da manhã se metessem em nossos domínios. Encontramos um café aberto e tomamos o café da
manhã no pátio dianteiro. Havia bastante clientela, mas todos levavam seu café da manhã. Eram pessoas de
passagem que queria um café com leite e uma bolacha antes de ir trabalhar. Era um dia de trabalho.
Ninguém tem tempo de parar ou se sentar. Tínhamos o pátio para nós e o pessoal não nos incomodou ainda
quando já tinha passado uma hora. Estava inclinada para trás em minha cadeira, com os olhos fechados,
tocando minha xícara de café quente com os dentes, escutando o contínuo comentário de Clay sobre o
tráfico matutino e as pessoas que passavam correndo.
– Parece feliz – disse de repente.
– Estou – disse sem abrir os olhos. Inclinei a cabeça para trás e senti o calor do sol em meu rosto. Sabe,
não imagino viver em um lugar sem mudança de estações.
– Não?
– Estações de verdade. Sinto saudades da mudança, da variedade. Esquiar no inverno, caminhar no
outono, nadar no verão. E especialmente a primavera. Não poderia viver sem a primavera. Os dias como
hoje valem por todas as tormentas de neve e os atoleiros de barro. Em março já parece que o inverno não
se acabará nunca. Essa neve e esse gelo que pareciam tão maravilhosos em dezembro, deixam-me louca.
Mas sabe que vem a primavera. Cada ano espero esse primeiro dia quente, logo o seguinte e o seguinte,
cada um melhor que o anterior Não posso deixar de ser feliz. Se esquecer do inverno e tem a oportunidade
de começar de novo. O mundo está cheio de novas possibilidades.
– Um novo começo.
– Exatamente.
Clay duvidou, logo se inclinou para frente, mas se deteve e voltou a recostar-se na cadeira.

Chegamos ao apartamento depois das nove. Já era tarde para ir ao trabalho, mas estava de muito bom
humor para que me importasse. Podia passar trabalhando à hora do almoço ou ficar até mais tarde. Não
era importante.
Quando íamos rumo ao elevador, Clay me falava de um par de valentões que tinham tentado lhe roubar
o automóvel quando foi para Nova Iorque no inverno passado. Quando chegamos ao apartamento, ria tão
forte que quase caio ao abrir a porta.
– Sério? – disse ao fechar a porta.
Clay não respondeu. Quando o olhei, não ria. Nem sequer me olhava. Olhava por cima de meu ombro.
Girei e me encontrei com Philip na poltrona, de braços cruzados, com o aspecto de um pai que ficou
acordado toda a noite à espera de um menino travesso. Abri a boca, mas não saiu nada dali. Meu cérebro
andava a toda velocidade, me perguntando desde quando havia voltado e que desculpa seria apropriada.
Havia voltado pela manhã? Se fosse assim, podia lhe dizer que sai para tomar o café da manhã logo cedo.
Quando entramos, parou.
– Quero falar com Elena.
Clay foi para o banheiro. Philip se interpôs em seu caminho. Clay parou, seus ombros se retesaram de
modo instintivo. Começou a olhar para Philip, logo se deteve, olhando mais à frente. Tentou esquivá-lo,
como se não visse ninguém.
– Disse que quero falar com Elena – disse Philip, com a voz baixa, mas firme –. Quero que saia.
Clay se virou e foi para o sofá. Novamente Philip parou diante dele e novamente Clay se retesou. Fechou
os punhos uma vez e depois se relaxou. Philip estava desafiando-o e lhe custava um enorme esforço ignorá-
lo. Estava por intervir quando Clay se virou e me olhou pedindo uma resposta.
– Por favor – disse.
Assentiu e foi para a porta murmurando «estarei lá embaixo» ao passar junto a mi. Quando a porta se
fechou, virei-me para Philip.
– Quando voltou? – perguntei.
– Não fui.
– Assim...
– Estive aqui toda a noite.
Tentei ganhar tempo, enquanto pensava em uma desculpa.
– Então cancelaram a reunião,
Levantei os olhos.
–Menti para você, Elena – disse –. Mas queria comprovar se minhas suspeitas eram equivocadas.
– Você acredita que Clay e eu...
– Não. Perguntei-me isso, mas se vocês estavam... fazendo algo, não precisariam deixar o apartamento
ontem à noite. Isso não me faz sentir muito melhor. Algo está acontecendo, mas não é o óbvio. – Philip se
deteve. – Sabe que está apaixonado por você, não é verdade?
Quando abri a boca, elevou sua mão.
– Não – continuei –. Não importa se sabe ou se estar de acordo ou não. É assim. Qualquer um se daria
conta, cada vez que lhe olha, como fala com você. Não sei o que sente por ele. Não posso me dar conta.
Quando entro em uma sala os dois estão rindo ou discutindo ou ambas as coisas de uma vez. Não o entendo.
Não entendo muitas coisas que fez desde que voltou.
– Irá embora logo.
– Logo não. Hoje
Virou-se e foi para o quarto. Enquanto pensava se devia segui-lo voltou com um montão de papéis.
Entregou-me eles. Olhei o primeiro. Era uma folha de uma imobiliária que apresentava as características de
uma casa em Mississauga. Folheei os papéis e encontrei três avisos mais de casas nos subúrbios.
– Não fui jogar golfe no domingo, Elena. Estive procurando uma casa para nós.
– Quer que mudemos para uma casa?
– Não, eu... Sim, quero que mudemos para uma casa, mas... – Fez uma pausa, cruzou os braços e os
descruzou. Quero dizer que desejo que nos casemos. Isso é o que quer dizer uma casa para mim. Um
compromisso, nos casar, ter filhos. Tudo. Isso é o que quero.
Olhei-o fixamente. Philip deu um passo para mim, depois se deteve, cruzando e descruzando os braços
outra vez, como se não pudesse decidir o que fazer com eles.
– Surpreende-te tanto? – disse brandamente.
Sacudi a cabeça.
– É... tão de repente. Clay e eu bebemos e estou um pouco... Não estou segura de que possa…
– Não responda, então. Dê-me tempo de comprar um anel e fazer as coisas certas.
Colocou as mãos nos bolsos e ficou ali, apesar do que disse, como se esperasse resposta. Eu não disse
nada.
– Vá trabalhar – disse –, pensa-o.
Ficamos ali, incômodos, então me afastei. Fui para a porta, vacilei, voltei e abracei Philip. Abraçou-me e
me reteve um ou dois segundos depois que o soltei. Beijei-o, murmurei algo a respeito de que voltaria as
sete e fugi.

Fui para trabalho tão enjoada que estava surpresa de poder descer na parada correta. Estava sentada em
meu escritório quando me lembrei de Clay. Não estava na entrada do edifício quando saí e não o procurei.
Não demoraria a descobrir que tinha ido ao trabalho e me segui-la. O que fazer quando ele aparecesse? O
que podia lhe dizer? Tirei as perguntas da cabeça. Não queria pensar em Clay agora.
Philip me propôs casamento.
A idéia ressuscitou esperanças e sonhos que pensei que tivessem morrido dez anos antes. Sabia que não
podia me casar, mas a questão se manteve tão longe de minhas possibilidades por tanto tempo que esqueci
o quanto desejei isso. Ainda o desejava? A dor em meu peito respondia minha pergunta. Disse-me que
estava sendo tola, antiquada, débil. O casamento era para as mulheres que queriam que alguém cuidasse
delas. Não necessitava disso. Não queria. Mas havia coisas que sim queria. Estabilidade. Normalidade. Um
lugar permanente no mundo humano. O casamento me daria isso. Philip podia me dar isso. Mas eu não
posso me casar. Ou posso? Vivemos juntos bastante tempo. Podia-se manter isso para sempre? Uma voz
em minha cabeça me perguntou se queria estar com Philip para sempre, mas a fiz calar. Neste momento a
pergunta não era se queria me casar com Philip, mas sim se era possível.
Era?
Possivelmente.
Poderia me adaptar melhor se tivéssemos uma casa. Poderia me assegurar de que comprássemos algo
perto de um bosque. Podia começar a trabalhar em casa e Trocar no bosque durante o dia para não ter que
desaparecer da cama no meio da noite. Reapareceu a voz, perguntando esta vez se podia me imaginar
Trocando à luz do dia, escapando e fazendo isso precisamente, sem me atrever a correr ou a caçar nem
nenhuma outra coisa que pudesse ser muito perigoso de dia. Novamente fiz calar essa voz. Estava avaliando
as opções, não tomando decisões.
Talvez pudesse continuar ocultando meu segredo de Philip, mas queria fazê-lo? Embora nunca tivesse
sentido a necessidade de lhe dizer a verdade, isso podia mudar com o tempo. Talvez algum dia me pesasse
tanto enganá-lo que já não pudesse suportar. Lembrei de Clay quando éramos noivos e era óbvio que havia
se sentido terrivelmente incômodo. Como eu reagiria se Clay tivesse me dito a verdade? Teria aceito ele.
Amava-o tanto que não me importaria. Philip dizia que me queria, mas me amava tanto? Por mais que me
quisesse, talvez não conseguisse dirigir o assunto. Embora aceitasse o que sou, Sentiria-se ressentido por
tantas mentiras? Defendi-me, insistindo em que não houve alternativa. Por mais que quisesse ao Philip, teria
sido impossível lhe dizer a verdade. Então por que continuava zangada com Clay por ter mentido para mim?
Deixei de lado essa pergunta. Tratava-se de Philip, não de Clay. Não era o mesmo. Eu não morderia Philip. A
idéia era impensável. E o que aconteceria se ele quisesse, se quisesse unir-se a mim? Senti um calafrio. Não.
Nunca. Nem que ele quisesse. Essa era uma parte de minha vida da qual não queria que Philip fosse parte.
O telefone soou em meu escritório. Antes de atender, já sabia em estava ligando. Sabia e atendi.
– Onde está? – Disse Clay a modo de saudação.
– No trabalho.
Ficou calado um momento.
– É uma pergunta estúpida Se ligo para seu trabalho e atende, deveria estar claro onde está. Surpreende-
me que não zombe de mim por isso.
Não disse nada.
– O que aconteceu? – perguntou.
– Nada.
– Carinho, cada vez que deixou passar a oportunidade de zombar de mim foi porque aconteceu algo ruim.
– Não é nada.
Outra pausa.
– É por esses papéis. Os das casas. Vi-os na mesa quando fui procurar você. Esperava… É isso verdade?
Não respondi. Clay afastou o telefone da boca e amaldiçoou. A linha chiou e fez ruídos como se ele
sacudisse o fone. Escutei uma batida e chiados. Depois silêncio. Ia desligar quando voltou a voz de Clay,
abafada e depois clara.
– Bem – disse –. Bem. Aspirei profundamente e o som chegou até mim pela linha. Temos que conversar.
Em para ai em seguida e falaremos.
Outra vez não respondi.
–Temos que conversar – repetiu –. Nada de truques. Prometo e vou manter isso, Elena. Nada de truques.
Já não quero ganhar dessa maneira. Vamos para um lugar público, onde se sinta cômoda, e conversaremos.
Escute-me e depois pode ir quando quiser.
– Bem.
– Quero dizer eu sei... deteve-se –. Está bem?
– É o que disse.
Vacilou, depois continuou.
– Bom. Dê-me dez minutos, quinze no máximo. Pegarei o metro e vejo você na porta do edifício.
Desligou sem esperar resposta.

Nem bem desliguei, desci as escadas. Ao sair me perguntei o que fazia ali. Por que aceitei me encontrar
com Clay? O que esperava que me dissesse? Philip propôs matrimônio? Que bom querida, me alegro tanto
por você. Mas não voltei a entrar. Não serviria de nada. Não podia me esconder. Não queria me esconder.
Não tinha que ter necessidade de me esconder.
O estômago começou a me incomodar. Ansiedade. Fechei os olhos e tentei me tranqüilizar, mas senti mais
nauseias. O chão começou a mover-se. Tropecei para um lado, logo me endireitei rapidamente, tentando
ver se alguém o tinha notado. Meu corpo se endireitou de repente, tenso, alarmado. Olhei em redor; mas
não vi nada fora do comum. Quando estava me virando para olhar para trás, senti um enjôo. Tudo se
obscureceu.
Um homem maduro me sustentou quando caía. É o que suponho. Estava parada no caminho, enjoada, e
imediatamente estava reclinada para trás, olhando o rosto preocupado de um estranho. Meu salvador e sua
esposa me levaram a um banco e me fizeram sentar. Disse algo sobre não ter tomado o café da manhã.
Asseguraram-se de que estava bem, conseguiram que lhes prometesse que ia comer algo e que sairia do sol
e depois se foram.
Fui ao vestíbulo do edifício, fiquei parada e olhei o relógio. Tinham passado quinze minutos desde que
Clay me ligou. Tinha que estar por ligar em qualquer momento. O estômago ainda me incomodava.
Evidentemente era angústia, mas não podia encontrar a causa. Com certeza, minha cabeça dava voltas desde
que Philip me propôs casamento e não queria falar com Clay, mas por algum motivo a angústia não parecia
vinculada com nenhum desses fatores. Flutuava ali, estranhamente desconectada e distante,
Voltei a pensar em Clay. Prometeu-me que não ia vir com truques. Esse compromisso ia durar enquanto
ele obtivesse o que queria. Se eu decidisse me casar com Philip ou quisesse ficar com ele, Clay ficaria louco
e se esqueceria de todas suas promessas. Sabia mas, para minha surpresa, não tinha medo. Depois de tantos
anos, conhecia tão bem suas manobras que já não resultavam efetivas. Algo que ele tentasse, eu poderia
antecipar. Estaria preparada. Ele me disse ontem à noite que eu tinha que escolher. Era certo. Tinha que
tomar uma decisão e não ia lhe permitir que a tomasse por mim.
Em algum lugar um relógio bateu as onze. Olhei meu relógio. Eram as onze. Clay havia ligado as dez e
trinta e cinco. A angústia saiu à superfície. Vinte e cinco minutos era razoável. Possivelmente não pôde
suportar o metro e decidiu caminhar. Aconteceu algo ruim, sussurrou-me a voz interior de antes. “Não”. –
respondi-lhe. “Não”. Não aconteceu nada.
Esperei mais dez minutos. Pensei em voltar para o escritório e esperar, mas não pude. A angústia
aumentava e o meu estômago dava voltas. 'Tinha que ir ao apartamento.

DESCOBRIMENTO
Quanto tentei abrir a porta do apartamento, bati em algo e ricocheteei. Voltei a empurrar a porta. Abriu-
se alguns centímetros e se travou. Empurrei mais forte. O que estava ali era pesado, mas se movia,
esfregando-se contra o tapete. Olhando para baixo, vi uma perna estirada no chão. Coloquei-me pela
abertura estreita, quase tropeçando com a perna.
Era Philip. Estava atirado ao chão. Ao olhá-lo, meu cérebro se negou a registrar o que via. Fiquei ali,
olhando estupidamente, pensando perversamente, não "ai Deus... a não ser como chegou ali". Inclusive ao
ver o sangue que caía de sua boca, e a longa marca no tapete, meu cérebro só aceitava explicações simples
e ridículas. Desmaiou? Teve um ataque do coração? Um enfarte? Um ataque de outra coisa? Ainda confusa,
ajoelhei a seu lado e comecei a fazer o básico em primeiros socorros. Estava consciente? Não. Respirava?
Sim. Pulso? Nem forte nem fraco. Elevei seus braços, mas não sabia o que queria verificar. Ao subir a camisa,
meus dedos roçaram seu flanco e se afundaram em uma grande ferida. Retirei a mão e olhei meus dedos
ensangüentados.
Clay.
Arqueei-me; separei-me de Philip como se temesse manchá-lo e vomitei bílis no tapete. A comoção passou
em um segundo e comecei a tremer, alternando entre o temor e a ira. Clay fez isto. Não, não pode ter feito.
Sim, pode, mas não o fez. Não? Por que não? O que o deteria? Eu não estava aqui para impedi-lhe. Mas não
faria algo assim. Não a mim. Por que não? Porque se comportou bem alguns dias? Tinha me esquecido do
que ele era capaz? Não disto. Isto não. Clay não atacava aos humanos. A menos que representassem uma
ameaça. Mas Philip não sabia o que nós éramos, assim não era perigoso para a Matilha nem para nosso
modo de vida. Possivelmente não para o modo de vida da Matilha, mas sim para o de Clay...?
Philip se moveu. Fiquei de pé de um salto, recordando de repente que tinha esquecido o principal dos
primeiros socorros. Corri ao telefone, peguei-o e disquei o número de emergências, 911. Demorei alguns
segundos para notar que não escutava nada. Apertei o botão várias vezes e voltei a discar. Nada. Silêncio.
Olhei para baixo. O fio estava enroscado na pena da mesa, cortado, e os cabos coloridos do extremo soltos.
Alguém cortou o fio. Soube então que não foi Clay quem fez isto a Philip. Não é que não fosse capaz de fazer
isto a Philip, mas sim que não o deixaria sangrar lentamente. Esse sadismo não correspondia com a natureza
de Clay.
Corri ao guarda-roupa do corredor e o abri. A pasta de Philip estava no lugar habitual e seu celular dentro
dela. Disquei o 911 no celular. Disse a operadora que meu namorado estava ferido e inconsciente, que voltei
para casa e o encontrei assim e não tinha idéia se estava muito ferido ou como tinha acontecido. Não soube
se acreditou em mim e não me importava. Anotou o endereço e prometeu uma ambulância. Isso bastava
Fui até o guarda-roupa, peguei um lençol e o rasguei em tiras. Enquanto enfaixava o flanco de Philip,
aproximei-me o suficiente para cheirar quem lhe fez isto. O aroma que me chegou de sua roupa não foi o de
Clay, mas sim o de alguém que conhecia. E seu aroma me surpreendeu. Thomas Le Blanc. Perguntei-me
como me encontrou, onde estava, se voltaria, mas não passei muito tempo com perguntas nem com
respostas. A primeira prioridade era Philip. Então teria que encontrar Clay para dizer-lhe.
Verifiquei a respiração e o pulso de Philip novamente. Continuava igual. Inclinei-me sobre ele, embalei
seu pescoço em uma mão e comecei a elevá-lo para ver se tinha mais feridas nas costas. Ao me acocorar, vi
algo sob a mesa do corredor. Uma seringa. Senti alarme novamente. Le Blanc tinha injetado algo em Philip?
Tinha o envenenado? Corri até a mesa. Estava por me inclinar para pegar a agulha quando vi o anel sobre a
mesa. Um anel de ouro tão familiar que soube o que era sem me aproximar mais. A aliança de casamento
de Clay. Debaixo dela havia um pedaço de papel com uma nota escrita à mão. Por um instante, pensei que
Clay tinha tirado a aliança, que chegou antes que Le Blanc, tirou a aliança, escreveu a nota, depois me deixou.
Alguma emoção começou a brotar em mim, mas antes que pudesse analisá-la, percebi que essa não era a
caligrafia de Clay. Minhas mãos começaram a tremer. Peguei a nota. A aliança rodou. Consegui pega-la antes
que caísse no tapete e a senti fria. Li a nota.

Elena.
Motel Big Bean Citano 211. Quarteirão - A as 10h00min.
D.

Senti-me desfalecer. Ao me inclinar para pegar a seringa, já sabia o que ia cheirar. O aroma de Daniel no
êmbolo. E o de Clay na agulha
– Não – sussurrei.
Tirei o êmbolo e farejei. Um forte aroma de remédio, mas não soube de quê –. Veneno, não, disse-me.
Daniel não usaria veneno. Le Blanc talvez sim, mas Daniel não. Se fosse veneno, deixaria Clay e não só sua
aliança. A aliança e a nota era um sinal. Clay continuava com vida. Continuava vivo? A idéia me atravessou
como uma faca gelada, não que estivesse vivo, mas sim tivesse que pensar sequer nessa alternativa, que
tivesse jamais que pensar nessa alternativa.
– Ai Deus – sussurrei e vacilei, pegando na mesa para não cair.
Acalme-se, disse-me. Clay está bem. Daniel lhe deu algo para desacordá-lo. Por isso me senti enjoada mais
cedo, uma manifestação do vínculo empático entre nós. Daniel drogou Clay e o levou, mas está bem. Se não,
eu saberia. Ai Deus, como desejava saber que estava bem. Voltei a olhar a nota. Um encontro. Daniel tinha
Clay e queria que me encontrasse com ele as dez no Bear Valley. E se não aparecesse...
Deixei o papel cair e corri para a porta. O corpo de Philip continuava bloqueando a passagem.
– Sinto – sussurrei –. Sinto muito.
Inclinei-me para puxá-lo. Quando o toquei, seus olhos se abriram e sua mão segurou meu pulso.
– Elena? Disse, olhando confuso, sem poder me focalizar com os olhos.
– Ficará bom – disse –. Chamei uma ambulância.
– Havia um homem... Dois homens...
– Sei. Feriram-lhe, mas ficará bom. Uma ambulância está vindo.
– Perguntavam por você... Não disse a eles. Depois Clayton... Lutou com eles...
– Sei – começava a haver pânico em minha voz. Tinha que ir. Já. – Vou descer para esperar a ambulância.
– Não... Podem estar aqui ainda... procurando você...
– Tomarei cuidado. – Tentei tirar os dedos de Philip de meu pulso, mas ele apertou. Usando a menor força
possível me liberei, depois fiquei de pé. Ele se levantou alguns centímetros e voltou a cair; bloqueando a
porta. Pôs uma mão em mim perna
– Não – disse novamente – Não pode ir.
– Tenho que fazê-lo,
– Não!
Seus olhos ardiam de febre e dor. Senti angústia, Eu tinha feito isto a ele. Tinha que ficar e ajudá-lo. Se
ficasse zangado comigo, a coisa ia ficar pior. Alguns minutos não mudariam nada. Apertei as mãos. Com a
aliança apertada na palma direita me endireitei. Às dez. Tinha que chegar às dez. Tinha que ir agora, Philip
disse algo, mas não o escutei. Dominei meu pânico.
Tinha que ir. Tinha que ir já.
Tentei raciocinar, me acalmar, mas era muito tarde. Meu corpo já respondia ao medo. Uma sacudida de
dor me dobrou ao meio. Fui consciente de que a aliança de Clay caía ao piso, de que Philip se inclinava sobre
mim, dizendo algo. Minha cabeça se afundou em meu peito. Fiz um alarido que me machucou a garganta.
Sufoquei-me. Tentava respirar enquanto caia para frente, meus braços se estenderam para amortecer a
queda. Philip me puxou pelos ombros. Tentei me afastar, com a cabeça encurvada, mas minhas pernas
tiveram um espasmo e minha cabeça se derrubou para trás. Através da bruma da dor vi o rosto de Philip
diante de mim, vi seus olhos, vi a repulsão e o horror. Soltou-me e cambaleei para trás. Fique de quatro, me
afundando em mim mesma. Minhas costas se elevaram. Minha camisa rasgou. Voltei a uivar, um uivo de
outro mundo. A Mudança acontecia tão rápida e com tanta força que não podia sequer pensar em detê-la.
Meu cérebro deixou de funcionar. Ficou em branco, cheio de temor e agonia, Meu corpo se convulsionou
uma e outra vez, com ataques tão fortes que temia me romper em duas e não me importei, consciente de
que terminaria com a dor. Então terminou.
Levantei a cabeça e soube que era loba. Houve um momento de cansaço total que desapareceu
rapidamente. Em seu lugar senti pânico e terror. Levantei os olhos. Philip jazia a alguns passos. Só podia ver
seus olhos me olhando com horror impotente.
Girei, atravessei correndo a sala, fechei os olhos e me lancei através das portas que davam ao balcão. O
vidro explodiu. Pedaços de vidro quebrado atravessaram minha pele, mas apenas os senti. Sem pensar nem
me deter, saltei o corrimão do balcão. Por um tempo estive no ar. Depois bati na grama três pisos mais
abaixo. Torci a pata esquerda. Senti dor na perna. Alguém gritou. Eu corri.
Dei a volta no edifício e entrei na garagem subterrânea. Escondida atrás do primeiro automóvel, detive-
me para escutar se me seguiam. Não vinha ninguém. Sacudi-me e tentei me tranqüilizar e me concentrar.
Embora ninguém me perseguisse, estava presa. Enquanto estivesse ansiosa e cheia de pânico, não estava
segura de poder Trocar. E se conseguisse estaria nua em uma garagem. Possivelmente pudesse conseguir
roupas. E então? Minha carteira com dinheiro, os cartões e a identificação estavam no apartamento. Sem
essas coisas não poderia sair de 'Toronto. Não só necessitaria de roupa, mas também de voltar ao
apartamento. Mas não podia fazê-lo. Philip tinha me visto e a ambulância chegaria a qualquer momento.
Possivelmente se esperasse... Quanto tempo? Quando poderia voltar? Quanto demoraria a encontrar
roupa? A nota de Daniel. 10 da manhã. A hora limite. A ansiedade voltou a surgir, desalojando todo
pensamento racional.
Vai.
Vai agora.
Vacilei só um momento e logo obedeci.

Andei pelos becos de Toronto quando podia e por caminhos laterais quando não podia. Viram-me. Sabia,
mas não importava. Continuei correndo. Quando saí de Toronto, corri por campos e bosques. É obvio que
minha corrida não tinha sentido. Melhor que tivesse ficado na garagem, para voltar ao apartamento logo
depois de uma hora ou algo assim e pegar um avião a Nova Iorque. Mas isso não me ocorreu. Cada fibra de
meu ser se rebelou ante a idéia de esperar. O instinto me dizia que devia agir e o fiz.
Meu cérebro se apagou enquanto corria, os instintos dominavam meus músculos. Horas mais tarde
cheguei a um obstáculo que não podia dirigir só por instinto: o cruzamento fronteiriço das cataratas do
Niágara. Passei quase uma hora dando voltas atrás de um depósito, com as idéias escorregando em minha
mente como um automóvel com rodas gasta que giram em vão sobre o gelo. Finalmente me controlei o
suficiente para analisar o problema e encontrar uma solução. Havia uma imensa fila de caminhões sobre a
ponte, cumprindo alguma nova norma de ingresso nos Estados Unidos. Graças à burocracia, tive tempo de
escolher um caminhão com uma carroceria coberta por uma lona e me escondi ali. Por sorte não verificaram
a carga na fronteira e o caminhão continuou sua viagem de Niágara em Ontário a Niágara em Nova Iorque.
Fiquei no caminhão até que saiu da cidade e se dirigiu ao sudeste. Minhas vísceras me gritavam que era a
direção errada e me encontrei saltando do caminhão antes que meu cérebro tivesse tempo de protestar.
Bati forte contra a corda e caí do lado da rua. Quando fiquei de pé, a pata que machuquei ao saltar do
balcão cedeu. O estômago me avisou com um grunhido que era noite e que tinha pulado duas refeições.
Pensei em ir um pouco mais lento, procurar um bosque e caçar meu jantar, mas o pânico seguia me
dominando e me impedia toda forma de raciocínio superior. Corre, dizia o pânico. E assim o fiz.
A noite só me empurravam o temor e a inércia. Por mais fome que tivesse, estava segura de que se
parasse, não voltaria a correr. “As dez", gritavam minhas vísceras cada vez que pensava em parar para
descansar ou comer “As dez”. “Se parar um segundo, não chegará. E se não chegar...", neguei-me a pensá-
lo. Era mais fácil continuar correndo.
Devia ser perto da meia-noite quando senti um terremoto em minha cabeça e caí na grama. Ao me
levantar voltei a sentir o rugido. Choraminguei, baixei a cabeça e a sacudi para me arranhar a orelha direita
com a pata dianteira. Tenho que correr. Não posso parar. Lancei-me para frente.
"Elena!", o ruído em minha cabeça se converteu em uma voz e em uma palavra. Jeremy. Sua voz rugiu
outra vez e me partiu o crânio com sua intensidade. "Elena! Onde está?”
Baixei a cabeça e choraminguei. Vai Jeremy. Vai. Faça com que eu pare, Não posso me deter.
– Onde está Elena? Não pude me conectar com Clay. Onde demônios está?
Tentei responder, ao menos para que se calasse, mas meu cérebro não podia formar palavras, só imagens.
Jeremy ficou calado e eu fiquei ali, aturdida e me perguntando se o tinha escutado. Estava alucinando?
Estava acordada, não é verdade? Jeremy não podia contatar-se conosco quando estávamos acordados.
Estava dormindo ou estava ficando louca? Não importava as dez, as dez, as dez. Não chegará. Corre.
Cambaleei e voltei a correm. Logo comecei a deixar de pensar. Continuava em movimento, mas tudo se
desvanecia. Tinha as pernas intumescidas. Podia cheirar o sangue que emanava de minhas patas. Um
instante o chão era como uma cama de pregos sob minhas patas, no seguinte era como algodão e eu
flutuava, correndo mais rápido que o vento. De repente era de dia e logo depois de noite novamente. Corria
por uma cidade. Não, corria por Toronto, com a torre da CNN à distância. Escutei vozes. Um grito. Uma
risada. A risada de Clay. Tentei ver na escuridão. A bruma vinha do lago Ontário, mas podia ouvi-lo rir. O
cimento se tornou pasto. A bruma não vinha do lago, mas sim da lagoa. Nossa lagoa. Estava em Stonehaven,
correndo pelos campos. Clay corria diante de mim. Podia ver sua pele dourada saltando entre as árvores.
Esforcei-me e corri mais rápido. De repente se acabou a terra. Estava correndo no ar. Logo caía. Continuei
caindo. Tentei me afirmar em algo, mas não havia nada mais que uma escuridão total. E logo nada.
ENJAULADA
Despertei com uma sensação de frio. Tremendo, senti a grama molhada sob minha pele nua. Árvores.
Pastos altos. Um prado. Tentei levantar a cabeça, mas não pude. Clay. Foi meu primeiro pensamento, mas
não sabia por que. Estive correndo com ele? Não podia cheirá-lo. Por que não podia levantar a cabeça? Não
havia nada que me impedisse isso. Meus músculos se negavam a responder. Estava morta? Morte. Clay.
Recordei e minha cabeça se levantou de repente. Senti uma dor cegadora em todo o crânio.
Algo quente e suave caiu de meus ombros. Levantei-me, gemendo de dor ao me mover. Tinha um blusão
sobre meu torso nu, com um aroma tão familiar, mas tão impossível. Sonhava? Alucinava? Senti mãos que
me puxavam de abaixo para me levantar, e eram tão familiares como o aroma do blusão.
– Elena?
Um rosto inclinado sobre o meu. Jeremy, com o cabelo escuro caindo sobre o rosto molhado os jogou
para trás com mão impaciente. Não era possível. Não aqui. Fechei os olhos.
– Elena? – voz mais forte agora, preocupada.
Tentei me mover, mas doía muito. Decidi me abandonar à alucinação e abri um olho.
C... – tentando lhe perguntar como ele chegou até aqui – C... – Não saía nada mais.
– Não tente falar – disse – E não tente se mover. Vou carregar você até o automóvel. Está ali.
C.. Cl...
– Têm-no, não é verdade? – Senti que seus braços me apertavam.
– D... dez..., às... – consegui dizer e perdi os sentidos novamente.

Esta vez despertei sentindo um calor artificial que soprava sobre meu rosto. Escutei o zumbido de um
motor, senti as vibrações e os pequenos saltos de um automóvel andando sobre um caminho plano. Cheirei
couro velho e me acomodei sob o blusão que me cobria. Estirei as pernas, mas a dor me fez soluçar e as
contrair.
– Muito calor? – a voz de Nick. Senti que seu braço passava sobre mim e sua mão acomodou o ralo de
ventilação para que não batesse em meu rosto.
– Está acordada? – Jeremy perto. Na frente. No assento dianteiro.
– Não estou seguro – disse Nick –. Provavelmente pode diminuir o calor para que recupere as cores.
O clique de um dial10. O sopro se reduziu a um zumbido grave. Abri um olho e logo o outro. Estava reclinada
em um dos assentos do meio do Explorer, com a janela a centímetros de meu rosto. A paisagem e os
automóveis passavam a toda velocidade. Se movesse os olhos, podia ver a cabeça de Antônio que conduzia
– Seus olhos me procuraram pelo espelho retrovisor.
– Está acordada – disse.
Soltou-se um cinto de segurança. O roçar de tecido jeans na capa de tecido dos assentos. Nick se inclinou
sobre mim.
– O calor está bom? – perguntou –. Necessita algo?
– Ho… Ho…
– Não fale Elena – disse Jeremy –. Pegue a garrafa de água da geladeira, Nick, Está desidratada. Deixa-a
sorver um pouco, mas não muito.

10
Dial = mostrador de um instrumento
Nick procurou na geladeira. Então senti uma fibra de plástico nos lábios. Recuei e apenas neguei com a
cabeça que se encheu de relâmpagos.
– Ho... ..... ......... ra – Qu... ho... ra.
– Que hora? – Nick aproximou seu rosto do meu, confuso.
– Que horas são? É isso o que perguntas?
Assenti e houve uma chuva de faíscas ardentes em meu crânio. Nick continuou confuso, mas olhou seu
relógio.
– Onze e vinte... quase onze e trinta.
– Não! – levantei-me de repente –. Não!
Nick se virou de repente. O Explorer se cruzou e Antônio amaldiçoou, logo voltou a endireitar o volante.
Lutei por sair de baixo do blusão de Jeremy.
– Elena – a voz de Jeremy e vinha do assento dianteiro, calma e firme –. Está bem, Elena. Acalma-a Nick,
antes que dê a seu pai um ataque de coração.
– Surpreendeu-me – disse Antonio –. Nick se assegure...
Não escutei o resto, Liberei-me do blusão e o joguei para um lado, depois abri com estupidez o cinto de
segurança, cada movimento produzia uma dor insuportável, mas não me importava. Chegava tarde. Tinha
que ir. Tinha que chegar. Agora.
Nick pegou o cinto de segurança, mas eu já o tinha aberto e o tirava de mim. Nick me puxou pelos ombros.
– Não! – gritei e tirei suas mãos de cima de mim.
Pegou novamente, mais forte desta vez. Lutei, lhe mostrando os dentes e arranhando-o onde pudesse.
– Parem o automóvel – Parem agora.
O Explorer desacelerou, como se Antônio tentasse decidir o que fazer.
– Não pare – disse Jeremy – Está delirando. Continue. Nick lutava por me manter no assento, com rosto
decidido. Senti um ruído adiante. Por cima do ombro de Nick vi Jeremy descer de seu assento. Juntei força
e controle e golpeei Jeremy no estômago. Abriu os cotovelos e se dobrou. Horrorizei-me de mim mesma,
mas não me importava, a febre em meu cérebro incinerava qualquer sentimento consciente. Tinha que
escapar. Chegava tarde. Nada mais importava.
Afastei Nick e me lancei para a porta do outro lado. Peguei o trinco, abri-a e olhei para baixo. Via passar o
asfalto como um borrão cinza. Nick gritou. Os freios chiaram. O Explorer virou à direita. Eu ia saltar. Dois
pares de mãos me pegaram, um pelas costas, o outro pelos ombros, e me arrastaram ao interior. Senti as
mãos de Jeremy que foram a meu pescoço, logo a pressão no lado de minha garganta e novamente a
escuridão.

Despertei com uma lembrança. Doía-me cada parte de meu corpo. Tinha Trocado ontem à noite. A
lembrança era vaga, um montão de imagens: dor, temor, ira, descrença. Mas não estive correndo através
do estado de Nova Iorque. Tinha Trocado em uma cela de três por dois, minhas mãos e pés amarrados.
Minha sétima Mudança. Por volta de sete semanas que estava neste lugar. Não tinha idéia de que dia era,
mas sabia quantas vezes tinha acontecido essa tortura e me servia para determinar o tempo. Quando
despertei, seguia na jaula. Estive ali cinco semanas, cinco Mudanças desde que o homem deixou de tentar
me manter na casa. Sabia seu nome: Jeremy; mas não o usava, nem com ele, nem quando pensava nele.
Negava-me a falar com ele. Em minha mente simplesmente era “ele” ou “o homem”, uma designação livre
de idéia e emoção.
Despertei sentindo o tecido rugoso do colchão. Tive lençóis, lençóis suaves e um cobertor. Então ele me
encontrou fazendo tiras deles e pensou que eu ia me enforcar. Não era assim. Não lhe daria o prazer de me
ver morta e livrar-se de mim. Rasguei os lençóis pelo mesmo motivo que destruí os livros e revistas que me
trouxe, a roupa que trouxe para que me vestisse, os lindos quadros que pôs nas paredes de pedra. Não
queria nada dele. Não queria aceitar nada que fizesse parecer com esta jaula era algo distinto do buraco
imundo que era. Quão único aceitava era a comida e comia só porque tinha que ter força para escapar. Isso
era o que me mantinha viva, a idéia de escapar. Logo voltaria para a cidade, às pessoas que poderia me
ajudar, me curar.
Abri os olhos e vi uma figura na cadeira fora da jaula. No princípio pensei que era ele. Ficou sentado ali a
maior parte do dia, me olhando e falando comigo, tentando lavar meu cérebro com a loucura que saltava
de seus lábios. Quando pude ver, a figura se esclareceu, um homem inclinado com os cotovelos sobre os
joelhos, seus cachos dourados brilhando sob a luz artificial. A única pessoa a quem odiava mais que ao
homem. Rapidamente Fechei os olhos e fingi dormir, mas era muito tarde. Tinha me visto. Ficou de pé e
começou a falar. Quis tampar os ouvidos, mas não servia de nada. Agora escutava muito. Embora pudesse
bloquear as palavras, sabia o que estava me dizendo. Dizia o mesmo cada vez que vinha, às escondidas
quando sabia que o homem não estava. Tentou explicar o que fez e por quê. Pedia desculpas. Pedia-me que
me acalmasse e obedecesse ao homem para poder sair da jaula. Queria que falasse com o homem, que lhe
pedisse que revogasse seu exílio para que pudesse voltar para me ajudar. Mas havia uma só maneira que
ele podia me ajudar. Cada vez que vinha, cada vez que jurava que faria algo para compensar o que tinha
feito, dizia-lhe o mesmo. A única coisa que lhe dizia. Cure-me. Desfaça o que fez.
– Clay.
O som de minha voz me despertou. Estava nua, olhando um abajur em um teto de cimento caiado. Girei
a cabeça e vi paredes de pedra. Nenhuma janela. Nenhum ornamento. Senti o colchão que me sustentava.
Jaula?
– Não – sussurrei –. Não.
Girei a cabeça e vi as barras. Havia alguém sentado em uma cadeira do outro lado. Meu coração deu um
salto. Então a figura ficou de pé, seus olhos negros fixos nos meus.
– Não – voltei a sussurrar enquanto me sentava. Caralho, não.
– Tive que fazê-lo, Elena – disse Jeremy –. Temia que fizesse mal a si mesma. Agora, se estiver sentindo-
se melhor...
Lancei-me contra as barras. Jeremy se afastou, precavido, mas não surpreso.
– Deixe-me sair! – gritei
– Elena, se...
– Não entende!
– Sim entendo. Daniel tem ao Clay. Apanhou-o em Toronto. Queria que estivesse no hotel hoje às dez.
Falou em sonhos no caminho de volta.
– Você... – parei e engoli a saliva –. Sabe?
– Sim, eu...
– Sabe e me mantém presa aqui? Como pôde fazer isso comigo? – Puxei as barras com força. – Como pôde
fazê-lo? Sabia que tinha que ir. Sabia que a vida de Clay estava em perigo me deixou aqui. Como pôde me
fazer isso?
– O que acredita que Daniel pensava fazer, Elena? Pegar você e soltar Clay? É obvio que não. Se for para
lá, perdemos aos dois.
– Não me importo!
Jeremy esfregou o rosto com uma mão.
– Sim se importa, Elena. Está muito emocionada para pensar com lógica...
– Lógica? Lógica? Realmente é frio assim? Você o criou. É tudo para ele. Passou a vida protegendo você.
Arrisca sua vida para proteger você, arrisca-a continuamente por você. E você fica tranqüilo, avalia com
lógica a situação e decide que não vale a pena arriscar-se para salvá-lo.
– Elena...
– Se estiver morto, é sua culpa.
– Elena!
– É minha culpa. Se estiver morto será porque não cheguei a tempo...
Jeremy pegou meu braço passando suas mãos entre as barras, seus dedos pareciam chegar até meus
ossos.
– Basta, Elena. Não está morto. Sei que está preocupada, mas se acalme...
– O quê, me acalmar? Diz que estou histérica?
– Acalme-se e pense e saberá que Clay não está morto. Pense. Daniel sabe o quanto Clayton é importante
para a Matilha. Para você. Para mim. É um refém muito valioso para matá-lo.
– Mas Daniel não sabe por que não apareci. Possivelmente pensa que não nos importamos, que
abandonamos Clay, que o demos por morto.
– Daniel sabe que não é assim. Mas para me assegurar, enviei-lhe uma nota. Deu-me uma caixa postal
para que contatasse com ele na semana passada quando me exigiu que entregasse você. Tônio e Nick
deixaram uma carta dizendo que não permitíamos que você fosse nessa hora, mas que estou disposto a
negociar desde que não machuquem Clay. Estou seguro de que Daniel já sabe, mas queria deixar-lhe bem
claro. Não vou correr nenhum risco com a vida de Clay, Elena.
Em algum nível sabia que Jeremy tinha razão. Mas não me tranqüilizava. Continuei pensando, E se
estivesse equivocado? E se algo saiu errado e Clay nem sequer chegou a Nova Iorque? E se despertou e
lutaram e estava jogado em um lixeiro em alguma parte? E se Daniel não pudesse resistir à oportunidade de
destruir a seu inimigo de toda a vida enquanto o tinha drogado e impotente? E embora Daniel conseguisse
controlar-se, o que acontecia com Lhe Blanc? Já tinha demonstrado que não se importava com o que
pensava Daniel. Se Clay provocasse Le Blanc, este o mataria. Embora Clay não fizesse nada Le Blanc, podia
matá-lo sim. Enquanto me passavam tantas possibilidades pela cabeça, minhas pernas doloridas cederam e
cai sobre o chão, ainda agarrada as barras.
– Não me alertou – disse –.
Jeremy se agachou e pôs uma mão sobre a minha.
– Não alertei você de que, coração? – perguntou suavemente –.
– Não pensei. Teria que saber.
– Saber o quê?
– Que ele também estava em perigo. Ele cuidava de mim. Mas eu não cuidei dele.
Abaixei a cabeça, apoiei-a nos joelhos e senti as lágrimas que se formavam em meus olhos.

Jeremy me deixou na jaula toda a noite. Por mais que eu queira pensar o contrário, sabia que ele não
estava sendo insensível. Uma vez que eu comecei a chorar, era possível pensar que já renunciava à briga e
aceitaria a vontade de Jeremy. Alguém que não me conhecesse poderia pensar isso. Mas Jeremy me
conhecia. Inclusive quando estava chorando no chão, não me deixou sair e nem sequer entrou na jaula.
Acariciou-me, passando os braços entre as barras, e me entregou lenços de Papel, mas não abriu a porta.
Quando terminei de chorar e limpei as lágrimas, explodi novamente. Quebrei a cama, quão único podia
romper dentro da cela. Chutei o vaso sanitário, mas a única coisa que se quebrou foram alguns de meus
dedos. Joguei o jantar no chão e o lamentei assim que o aroma da carne fez meu estômago grunhir.
Amaldiçoei ao Jeremy com todas minhas forças. Não o lamentei, embora soubesse que não era justa. E
quando acabei, teria que ter me sentido melhor, não é verdade? Não foi assim. Senti-me estúpida. Senti que
tive um ataque de histeria e fiquei como uma idiota. Tinha que me controlar. Não fazia nenhum bem ao Clay
com minhas cenas.

É obvio que por mais que estivesse pronta para sair da jaula, isso não significava que Jeremy ia me deixar
sair. Deixou-me ali toda a manhã, aproximando-se de vez em quando para assegurar-se de que não tinha
retomado minha imitação do exorcista. Quando voltou com meu almoço, trouxe um envelope do tamanho
de uma carta de cor amarela. Antes de me dar a comida, passou-me o envelope.
Dentro havia uma foto instantânea de Clay. Estava sentado no chão, com os joelhos dobrados e os braços
para trás. Ambas as mãos e pés estavam fora do quadro, mas a julgar por sua posição, deviam estar
amarradas. Seus olhos estavam meio fechados e tão nublados pelas drogas que pareciam cinza e não azuis.
Embora não se vissem barras, sabia que estava em uma jaula. Nenhum licántropo matéria Clay cativo sem
assegurar-se de que não pudesse Trocar e escapar. Só poderiam o ter com segurança usado drogas,
amarrações e/ou uma jaula. Daniel utilizaria as três coisas. Já tinha lutado com Clay e não ia correr o risco
de ter que enfrentá-lo outra vez.
Voltei a olhar a foto. Tinha contusões nos braços e o torso nu, um corte grande que partia em duas a
bochecha esquerda, tinha os lábios inchados e partidos e um olho inchado. A pesar disso, olhava à câmara
ou à pessoa que tirou a foto, com um olhar aborrecido e de irritação, como um supermodelo a quem tiraram
fotos demais esse dia. Mostrar-se desafiante os provocaria. Clay sabia que não devia fazê-lo.
Coloquei a mão dentro do envelope e estava vazio. Olhei para Jeremy pela primeira vez desde que me
encerrou na jaula o olhei realmente. Tinha olheiras e seu cabelo caía sobre a testa, como se não tivesse
dormido nem se banhado por vários dias. Tinha rugas em torno dos olhos e da boca. Quase parecia de sua
idade.
– Onde está a carta? – perguntei, com mais suavidade do que queria –. Sei que Daniel deve ter mandado
uma carta. Posso vê-la?
– Diz que têm Clay, o que é óbvio, e que não está bem, mas sim vivo, coisas óbvias. Se olhar a foto de seu
perfil esquerdo verá que há alguém com um jornal. É o New York Times de hoje, presumivelmente para
demonstrar que as fotos foram tiradas hoje
– O que Daniel quer?
– Clay não está em perigo imediato.
– Vai responder diretamente a alguma pergunta que faça a você?
– Enviei uma nota. Exigi fotos diárias enquanto negociamos.
Pus cara de irritação e fui até o outro lado da cela, recordando a mim mesma que tinha que me comportar
bem. Se explodisse de novo, não ia sair rápido da jaula.
– Olhe, sei que me descontrolei ontem – disse –. Mas agora estou bem. Quero ajudar. Posso sair?
– Coma seu almoço. Voltarei em um momento para ver se continua com fome.
Jeremy passou a bandeja através da abertura perto do piso e subiu. Mordi minha língua para não dizer
nada insultante da qual pudesse me arrepender... ao menos até que já não pudesse me escutar.
PLANOS
Jeremy me deixou sair essa tarde. Antes que chegássemos acima lhe perguntei por seus planos. Fez-me
esperar até depois do jantar, provavelmente para provar até onde resistia minha paciência. Devo reconhecer
que na hora do jantar já estava perto de explodir; mas consegui evitá-lo. Enquanto Antônio e Nick lavavam
os pratos do jantar, Jeremy me levou ao escritório para falar. A versão condensada ao estilo de Seleções do
Reader´s Digest de nossa conversação é que Jeremy me disse que tinha um plano para libertar Clay e eu
não devia saber nada a respeito, nem me permitiria ajudar a concretizá-lo. Como se podem imaginar, aceitei-
o com graça e uma atitude pormenorizada.
– É a idéia mais estúpida que jamais ouvi – grunhi pela décima vez em uma hora –. Não vou ficar aqui sem
fazer nada.
– Prefere ficar na jaula sem fazer nada?
– Não me ameace.
– Então não me ameace você.
Houve algo na voz de Jeremy que me fez decidir calar a boca e a me conformar caminhando de um lado a
outro.
– Não posso evitar – disse, mantendo a voz baixa e supostamente calma –. Por favor, Jer, não me deixe
de fora. Possivelmente me culpe pelo que aconteceu em Toronto, mas não me castigue assim.
– Não fez nada errado em Toronto. Se alguém tiver culpa, sou eu. Pensei que Toronto era seguro. Não me
dei conta até na terça-feira pela manhã de que Daniel se foi quando já estava lá, Não vou dizer para você
como penso recuperar ao Clay porque então quererá ajudar e, se não deixar, fá-lo-á de todos os modos.
– Mas…
Inclinou-se para frente.
– Estou sendo honesto Elena. A ninguém diria o que digo a você. Tudo está caído em pedaços. Não estava
preparado para isto. Fui um bom Alfa todo este tempo porque nunca me puseram a prova. Não assim.
Comecei a me mover lentamente, medindo, juntando informação. Mataram Peter e Logan. Troquei de
orientação e fui atrás de Jimmy Koenig. Quase matam você. Mandei-os a um lugar onde acreditei que
estariam a salvo. Passada menos de uma semana Daniel os encontrou. Agora tem ao Clay
– Mas...
Jeremy me sorriu com um meio sorriso e tirou os cabelos que caíam sobre meu rosto.
– Sinto muito, coração. É sério. Mas é assim que tem que ser.
Antes que pudesse lhe responder, foi-se.

Em face às ordens de Jeremy, eu não tinha intenção de ficar sentada sem fazer nada. Afinal de contas, ele
não me proibiu nada em particular. Assim comecei a traçar um plano.

Primeiro passo: conseguir um aliado. Isso era fácil. Não havia muitas opções, mas embora as houvesse,
Nick seria a opção óbvia. Não só era o melhor amigo de Clay, mas também o deixaram fora do plano de
resgate e estava tão descontente quanto eu em relação a isso. Jeremy sustentou que necessitava que Nick
não se metesse no plano para que pudesse cuidar de mim, mas era suficientemente inteligente para saber
que Jeremy não lhe contava nada por medo que me contasse isso. Persuadi-o de que só queria juntar mais
informação para demonstrar ao Jeremy que podíamos ajudar sem nos colocar em problemas. Não que fosse
mentira. Pensava passar ao Jeremy qualquer informação que descobrisse. E se ainda assim se negasse a me
deixar ajudá-lo? Não me preocuparia com isso. Sempre podia renegociar meu acerto com Nick mais adiante.
Segundo passo: planejar o curso de ação. Jeremy tentaria averiguar onde os vira-latas mantinham Clay.
Não teria que ser um gênio para saber. Negociar com Daniel só seria uma cortina de fumaça para mantê-lo
ocupado enquanto Jeremy descobria onde estavam. Nick confirmou. Ontem, antes que o tirassem do plano,
Jeremy os enviou a ele e ao Antônio ao hotel Big Bear: Todos menos Daniel saíram do hotel na segunda-
feira. Daniel ficou até ao redor do meio-dia da quarta-feira. A empregada se lembrava bem porque foi três
vezes a seu quarto para limpar e teve que ficar mais tarde por culpa dele. De modo que a conclusão que eu
tirei, e provavelmente Jeremy também, era que os vira-latas encontraram outro lugar onde esconderem-se
e levaram Clay para lá imediatamente depois de retornar de Toronto. Nada disto era surpreendente. Seriam
idiotas se mantiveram Clay cativo em um hotel público. Clay podia não gostar da idéia de que humanos o
resgatassem, mas seu instinto de sobrevivência era suficientemente forte para não ignorar a oportunidade
de fazer ruído e chamar a atenção. Calculei que o movimento seguinte de Jeremy seria deixar outra nota no
correio, esperar que aparecesse um vira-lata e tentar segui-lo até o Daniel. É o que eu faria. Dado que não
queria interferir nos planos de Jeremy – ou, para dizer do modo mais realista, não queria que me fisgassem
interferindo – teria que o deixar seguir o vira-lata e encontrar outra maneira de descobrir onde escondiam
Clay.
Terceiro passo: Distrair a atenção de minhas atividades. Caso se tratasse de qualquer outra pessoa que
não fosse Jeremy, eu representaria o papel de subordinada amedrontada. Mas para Jeremy isso seria um
sinal seguro de que estava metida em algo. Assim armei confusão e me queixei e lhe fiz a vida impossível.
Ele não esperava outra coisa. Cada vez que podia, eu lhe exigia, rogava-lhe ou negociava que me incluísse
em seus planos. Fiz sugestões. Ofereci conselhos. Quando isso falhava, esperneava e batia nas portas de
Stonehaven. Finalmente, logo depois de uma noite e uma manhã de me colocar em seu caminho em quantas
oportunidades tive, dei-lhe um ultimato. A não ser que encontrasse Clay em três dias, iria atrás dele com
ou sem sua permissão. Jeremy me recordou a jaula no porão e prometeu me pôr ali se saísse dos terrenos
da casa embora fosse só um passeio. Reiterei minha ameaça, mas deixei de incomodá-lo para que permitisse
ajudá-lo na procurar de Clay. Supôs, portanto que tinha três dias antes que voltasse a incomodá-lo, assim
que relaxou. Direi que foi um truque engenhoso, se me permite.
Embora Nick tivesse aceitado me ajudar, negou-se a desobedecer a ordem de Jeremy quanto a detenção
domiciliária, de modo que na realidade não podia ir a nenhuma parte. Bom podia desacordar Nick com um
golpe e fugir, mas não faria isso a ele. Além disso, Jeremy me encontraria e me traria de volta e Nick não se
sentiria muito disposto a me ajudar de novo se o golpe ainda lhe doesse.
A primeira coisa que fiz foi ligar para o hospital. Não, não liguei para o hospital local com a premonição de
que poderiam ter ao Clay ou saber onde estava. Liguei para o hospital Saint Michael de Toronto. Não esqueci
que deixei Philip sangrando no piso de nosso apartamento, Reconheço que não dediquei à questão todo o
tempo que pude, mas sabia que suas feridas não significavam um perigo de morte, ao menos não quando
contive a hemorragia e pedi ajuda, e a situação de Clay era muito pior; assim acredito poder me perdoar por
minha preocupação não se dividi igualmente entre os dois. Philip não estava nesse hospital. A sala de
emergências não recebeu novos pacientes na tarde da terça-feira, coisa que acontecia freqüentemente
devido à redução das contas. Philip foi levado ao Toronto East General e continuava ali. Falei com a
enfermeira encarregada de seu andar, dizendo que era irmã dele, e assim me inteirei de que ele sofreu
ferimentos internos e teve que ser operado, mas estava se recuperando e esperava que lhe dessem alta na
segunda-feira, o que significava que na realidade se sentiria melhor na quarta-feira ou na quinta-feira:
novamente os cortes orçamentários. Ofereceu me comunicar com seu quarto para que falasse com ele, mas
me neguei, dizendo que não queria interromper seu descanso. A verdade é que fui muito covarde para falar
com ele. Embora me perdoasse por abandoná-lo, havia a pequena questão de que me viu Trocar a loba. De
modo que me conformei lhe enviando flores junto com uma nota que dizia que o veria logo e que esperava
que isso não o assustasse tanto para voltá-lo para a sala de cuidados intensivos.
A segunda coisa que fiz foi ligar para a imobiliária local. Não é que pensasse em me mudar e necessitasse
de um lugar. Idéia tentadora, mas sabia que não chegaria longe. Se Jeremy me rastreou até um campo no
norte de Nova Iorque – e ainda não queria me dizer como tinha conseguido –, então sem dúvida poderia me
encontrar em Bear ValIey, fosse antes ou depois de que me encontrassem os vira-latas. Como é, não sou
suicida. Ligue para a imobiliária para averiguar as casas alugadas ou compradas nas últimas semanas, em
particular casas na área rural. Venderam apenas três casas no distrito recentemente. Duas foram compradas
por novas famílias e a terceiro para um casal de pessoas de fora. Havia mais aluguéis, mas todos eram
residentes de longa data na área, que passavam um imóvel a outro.
Quando não deu resultado o da casa, comecei a averiguar a possibilidade do aluguel de cabanas. O mau
era que vivíamos em uma área de cabanas. O bom é que logo começaria a temporada de aluguéis e a área
de Bear Valley em si mesma não era das mais procuradas, porque havia muitas árvores e muito poucos lagos
e vias aquáticas. Liguei para a Associação de Cabanas de Bear Valley. Com um pouco de ingenuidade, muitas
mentiras e muito mais cortesia, Jeremy me educou muito bem, descobri que só havia quatro alugadas nesse
momento e que três dos quatro inquilinos eram casais em lua de mel e no quarto caso se tratava de um
montão de homens maduros de Nova Iorque que vinham sempre em maio para algum tipo de estreitamento
de relações entre homens, no bosque e por motivos terapêuticos. Outro beco sem saída. Estava
respondendo tudo o que eu perguntava, mas nada interessante. Teria que comprovar por outra via. Mas
não sabia bem qual.

Ter um objetivo fez que as horas passassem rápido, com o que tive pouco tempo para lamentar a situação
em que se encontrava Clay. Finalmente mesmo esse prazer se esgotou e fiquei a sós com meus
pensamentos. Estava cuidando do fogo na lareira do escritório, que não necessitava de meus cuidados. Nem
sequer havia necessidade de acendê-la, quando a temperatura exterior se localizava ao redor dos vinte graus
ao anoitecer. Mas me reconfortava estar sentada ali, atiçando os troncos e vendo como o fogo saltava e
lançava faíscas. Uma ação desnecessária era melhor que nenhuma ação. Além disso, olhar fixamente as
chamas me subjugava, para me concentrar em algo fora dos pensamentos e dos temores que superavam
continuamente as barreiras mentais que erigi cuidadosamente nas últimas vinte e quatro horas.
Não estava sozinha no escritório. Nick estava ali, cochilando no sofá. De vez em quando abria os olhos e
dizia algo. Falávamos alguns minutos, então a conversa se aproximava perigosamente do tema Clay e
ficávamos em silêncio. Quando o relógio bateu meia-noite, Nick voltou a despertar. Inclinou a cabeça para
trás por sobre os braços do sofá e olhou para a janela.
– Será lua cheia – disse – dois, três dias?
– Dois.
– Precisarei correr. E você?
Consegui sorrir.
– Sabe perfeitamente bem que não preciso correr, porque fiz mais que o necessário em matéria de corrida
faz três dias. O que quer saber é se correrei contigo e se salvarei você da horrorosa idéia de ter que correr
sozinho.
– Não sei como fez em Toronto todos esses meses – disse com um tremor –. Eu tive que fazê-lo algumas
vezes no inverno. Tônio saiu por assuntos de negócios, Logan estava ocupado com um caso e Clay... como
seja, tive que Trocar sozinho.
– Pobre bebê.
– Foi horrível. Foi como sair ao bosque, me despir, Trocar, ficar ali parado o tempo suficiente, voltar a
Trocar, me vestir, voltar para dentro. Nem sequer me incomodei em correr. Era tão divertido como defecar.
– linda analogia.
– Digo-o a sério. Vamos Elena Reconhece-o. É assim se estiver sozinho. Como se diz... uma função corporal.
Lembro-me de quando eu era menino, antes de minha primeira Mudança, e Clay costumava a...
Deteve-se. Esta vez não voltou a conversar. Houve silêncio e me virei para o fogo, atiçando-o e observando
cair as faíscas em cascata. A porta se abriu. Escutei Jeremy entrar, mas não me virei. Um momento mais
tarde soou as molas do sofá quando Nick se levantou. Atravessou o escritório e fechou a porta. Jeremy veio
por detrás. Sua mão tocou minha nuca, vacilou, logo acariciou meus cabelos.
– Sei o quanto é difícil para você, Elena. O quanto está assustada, quão assustada está de perdê-lo.
– Não é isso. É obvio que tenho medo de perdê-lo. Mas se crê que se deve ao fato de que de repente
compreendi o quanto o amo e que quando e no caso de que o recuperemos, voltarei para casa e tudo estará
bem, então está equivocado. Sinto muito. Sei que isso é o que quer, que seria mais fácil para você e para
todos outros, mas não vai acontecer. Sim, preocupo-me com ele. Muito. E sim, quero que volte. Quero que
volte por você, pelo Nick e pela Matilha. Estou transtornada porque me considero responsável.
Jeremy não respondeu.
Olhei-o por sobre o ombro.
Assim você também me considera responsável?
– Não, não é nada disso. Não respondi por que pensei que era melhor me calar em relação ao resto. Se
pensa que este é o motivo pelo qual está mau...
– É.
Ficou calado um momento, logo me tocou as costas, com os dedos movendo-se para a bola dura entre
meus ombros.
– Qualquer que seja o motivo de sua preocupação, não considero você responsável pelo que aconteceu.
Já falamos disso. Eu devia ter mandado vocês para outro lugar. Acreditei que estava agindo com inteligência,
mas nem sequer me dei conta que acontecia algo até que tentei me contatar com Clay naquela noite.
– Tem-no feito após? – perguntei, me endireitando e girando para olhá-lo no rosto –. Contataste com Clay
desde que o capturaram? Tentou-o verdade? O que disse? Esta...?
Jeremy pôs seus dedos sobre meus lábios.
– Sim, tentei. Uma e outra vez. Mas não posso chegar a ele. São as drogas.
Havia outro motivo possível para que Jeremy não pudesse contatar-se com Clay, mas não me atrevi a
mencioná-lo. Jeremy pareceu lê-lo em meu rosto e sacudiu a cabeça.
– Não pense nisso. Está bem. Viu as fotos de hoje. Pode ler a data do jornal. Não parece muito bem, mas
está vivo.

Parecia cansado. A Matilha estava sitiada e os vira-latas atiravam abaixo as defesas tão rápido como
Jeremy conseguia as levantar. Isso estava desgastando-o. Eu desejava não haver notado. Desejava poder
acreditar, igual a Antônio e Nick, que o Alfa da Matilha era indestrutível. Assim se educa aos licántropos da
Matilha, com a convicção de que, aconteça o que acontecer, seu Alfa os protegerá. Isso era um engano.
Totalmente errôneo. Funcionava bem em circunstâncias normais, quando a Matilha não enfrentava mais
que a um vira-lata por vez e a tarefa do Alfa se concentrava em resolver disputas internas e apresentar uma
frente11 unida contra os vira-latas. Mas enfrentado a problemas destas dimensões, o Alfa necessitava de
ajuda, não só para combater a ameaça, mas também para decidir como combatê-la. Tal colaboração era
impensável. Jeremy podia comprovar suas idéias com Antônio, mas não pensaria em lhe pedir conselho,
nem nenhum membro da Matilha sonharia em oferecer-lhe. Eu sim. Queria dizer ao Jeremy o que pensava
e tentar ajudá-lo, mas sabia que não podia. Se ele se sentia sobrecarregado agora, que eu andasse
adivinhando seus planos pioraria as coisas. Igual a Antônio e Nick, Jeremy tinha a mesma concepção
equivocada da liderança. A responsabilidade de salvar à Matilha descansava sobre seus ombros. A única
maneira em que eu podia ajudá-lo era elaborando minha estratégia sozinha.

DESPERTAR
Na manhã seguinte, Jeremy e Antônio saíram outra vez. Eu voltei para o trabalho. Ou, ao menos, preparei-
me para voltar ao trabalho. Liguei para o hospital para saber a respeito de Philip, depois me sentei em frente
à escrivaninha no escritório, liguei o laptop de Clay e fiquei ali, olhando do telefone ao laptop e vice-versa.
Eram minhas únicas ferramentas para encontrar Clay e não tinha idéia do que fazer agora com nenhuma das
duas. De modo que tirei um bloco de notas e comecei a fazer uma síntese do que sabia, esperando que me
ocorresse assim outra via de exploração.
Restavam dois vira-latas com experiência, a metade do número original. Isso era tranqüilizador, até que
recordei que eliminamos aos dois vira-latas menos importantes e deixamos vivos aos mais perigosos. Não
era tão bom. Também tínhamos dois vira-latas novos. Ao Blanc eu conhecia bem e entendia como
funcionava. Voltei a sentir certa complacência momentânea antes de recordar que nem sequer havia visto
o protegido de Cain, Victor Olson. Assim restava o seguinte passo: averiguar mais a respeito de Olson. É
obvio que decidir o que ia fazer não era o mesmo que determinar como fazê-lo. Das duas ferramentas que
tinha disponíveis, Internet parecia a melhor, porque com o telefone nem sequer sabia por onde começar.
Cain disse que o nome de seu protegido era Victor Olson e que o tirou de um cárcere do Arizona, onde
estava preso por crimes sexuais. Dado que Daniel encontrou Olson, seus crimes deviam ter sido
suficientemente importantes para aparecer nos meios de comunicação. Só esperava que Victor Olson fosse
seu nome real. Era. Uma simples busca com o nome e a cidade obtive sete mensagens completas. Três se
referiam ao Victor “Cão Louco” Olson, o que soava prometedor, até que cliquei no primeiro lugar e me
encontrei com uma publicidade de uma extinção de julgamentos por danos. O quarto se referia a um ilustre
cidadão, morto a muitos anos, de nome Victor Olson. Com os últimos três tive sorte. Victor Olson escapou
do cárcere fazia quatro meses, interrompendo assim sua condenação à prisão perpétua por violar e matar a
uma menina de dez anos. Voltei a ler várias vezes a idade de sua vítima. Cain disse que esteve preso por
“foder” com algumas de suas garotas supus que com «garotas» queria dizer mulheres. Obviamente não era
assim. Contendo o asco, li todo o artigo. Olson era um assassino de meninas por toda a vida que foi
denunciado várias vezes por atos indecentes, mas as imputações sempre foram rechaçadas porque o juiz

11
Frente = neste contesto é o lugar de batalha, primeira fila.
considerava que os testemunhos das vítimas “não eram confiáveis”. Com a última vítima, o juiz teve que
admitir que o testemunho que dava seu cadáver era razoavelmente confiável. Passei ao artigo no segundo
lugar e descobri por que Daniel escolheu Olson. Era dos que espreitam a sua presa. Escolhia suas vítimas
cuidadosamente e as seguia durante semanas antes de agir. Um detetive disse que nunca havia visto
ninguém tão bom para a "caça”, esse era seu comentário.
Passei outra hora revisando o que sabia. Quando não cheguei a nada fui procurar Nick, que estava no
ginásio, e lhe repeti tudo, esperando que a ele ocorresse algo ou que ao verbalizar a coisa me ocorresse algo.
Nick escutou, mas não contribuiu com nada. Nick não estava acostumado a ter idéias. Isso soou pior do que
devia. O que quis dizer é que estava acostumado a seguir os planos de outros fossem do Jeremy, de seu pai,
do Clay ou meus. Era um subalterno entusiasta, mas não era exatamente – como dizer o de um modo
benévolo – um pensador profundo. Falar com ele tampouco me ajudou. Assim deixei os papéis, desliguei o
laptop e fiz a tarefa mais aborrecida e embotadora que me ocorreu. Lavei a roupa.

Ninguém tinha lavado roupas desde que fomos a Toronto, provavelmente porque era a ultima coisa que
alguém pensaria. Não entendi todas as implicâncias disso até que estava dobrando a primeira carga da
máquina de lavar roupas e encontrei uma camisa de Clay. Fiquei ali, no tanque, sustentando a camisa. Clay
a vestiu no dia anterior a nossa partida. Não sei por que o recordei. Era uma camisa de golfe a listras de cor
verde escuro, uma das escassas exceções no vestuário de Clay onde abundava camisetas brancas e pretas
lisas. Devia ter sido um presente de Logan, que considerava sua responsabilidade pôr um toque de moda no
vestuário de Clay. Olhando a camisa, pensei em Logan e ressurgiu a dor. Depois pensei em Peter, lembrei
como tirava o sarro de Clay pelo monocromático guarda-roupa e o ameaçava dizendo que lhe daria um
montão de camisetas das mais chamativas que pudesse encontrar. Pestanejei com força, coloquei a camisa
debaixo de um montão de calças de Nick e segui adiante.
Logo depois de dobrar a primeira carga de roupa, levei-a para cima para guardá-la. Deixei para o final a
pilha de Clay. Durante vários minutos fiquei parada em frente à porta fechada de seu quarto e vacilei ante a
idéia de pôr suas coisas em outro lugar antes de reunir coragem suficiente para entrar. Fiz a tarefa
apressadamente, apertando as camisas, a roupa íntima e as meias em suas gavetas. Seus jeans foram para
o guarda-roupa. Sim, ele pendurava seus jeans, provavelmente porque se não o fizesse, não haveria outra
coisa no guarda-roupa. Estava pondo os jeans nos cabides quando vi uma pilha de presentes embrulhados
no piso do guarda-roupa. Sem sequer olhar as etiquetas soube o que eram. Uma parte de mim queria fechar
a porta do guarda-roupa com uma batida e fugir. Não queria vê-los. Mas não pude resistir. Estirei a mão e
peguei o presente de acima. Estava envolto em papel natalino, com bengalas e arcos de caramelo. Na
etiqueta havia um nome: Elena, que cruzava as palavras DE e k.
Nick disse que Clay esperava que eu voltasse. Eu mesma quase esperava voltar no Natal passado, não por
vontade própria, a não ser magicamente, como se pudesse dormir em Toronto na Noite de Natal e despertar
em Stonehaven na manhã seguinte. A Páscoa, o dia de Ação de Graças, os aniversários, passavam sem que
eu os notasse, sem nenhuma urgência por voltar. O Natal era diferente. O Natal pertencia ao Clay.
Desde criança eu odiava o Natal, de todas as festas, era a que mais glorificava a família, todos esses filmes
e especiais para a televisão e avisos e capas de revistas que mostravam famílias felizes e sorridentes, que
levavam a cabo os ritos correspondentes à ocasião. Não é que me faltasse as coisas típicas do Natal, minhas
famílias adotivas não eram totalmente formada por ogros. Davam-me presentes e comia peru. Ia a festas e
missas do galo. Sentava-me no colo de Papai NoeI e aprendia a cantar para a festa do colégio. Mas sem os
vínculos “normais" que desejava, os rituais pareciam tão falsos como a neve artificial. Assim quando fui viver
sozinha aos dezoito, deixei de celebrar. Então conheci Clay. Esse primeiro ano que estivemos juntos senti
por fim que era possível um verdadeiro Natal, Não tinha pais, avós, tios e tias a meu redor, mas tinha alguém.
Tinha o primeiro vínculo com todo o resto que tanto desejava.
Devo dizer que Clay não tinha idéia de como celebrar o Natal. Não era uma festa oficial dos licántropos.
Na realidade não há festividades oficiais dos licántropos, mas não é essa a questão. A Matilha só reconhecia
o Natal como um momento para reunir-se, como tantas outras vezes ao ano. Intercambiavam presentes,
igual à em seus aniversários, mas a celebração só chegava até ali. Então o que fez Clay quando sugeri que
queria um Natal com todas as letras? Ele me deu um.
Embora não soubesse então, passou semanas estudando a festividade para saber o que se esperava. Então
me deu um Natal com tudo. Saímos e cortamos uma árvore, logo percebemos que era impossível levá-la a
seu apartamento de moto. Fizemos que nos levasse ela e a decoramos. Preparamos bolachas e descobrimos
como era difícil fazer figurinhas com massa de bolacha sem um molde. Fizemos um pão doce, que
provavelmente ainda estava no balcão de seu velho apartamento, onde finalmente o usamos para manter
a porta aberta. Compramos luzes para balcão e logo tivemos que buscar uma extensão, depois uma tesoura
de cortar arame para fazer um buraco na malha da porta para passar o fio. Escutamos música de Natal,
vimos “O Grinch” e alugamos “É uma vida maravilhosa”, embora Clay tivesse dormido, bom, na realidade
dormimos os dois. Bebemos licor de ovo junto ao fogo, melhor dizendo junto a uma foto de uma lareira de
uma revista, que Clay colou na porta. Cumprimos com todas as tradições. Então, na Noite de Natal, fizemos
amor pela primeira vez. Eu mesma fui meu presente para ele. Seu presente para mim foi sua paciência
inesgotável nos meses prévios, até que superei meu medo da intimidade. Foi o Natal perfeito. Não chegamos
às Páscoas.
Não houve Natal no ano seguinte. Suponho que o Natal ainda ocorria no mundo exterior, mas em
Stonehaven passou sem que se notasse. Apenas no inverno fiquei fora da jaula. Clay continuava banido.
Logan vinha me ver, mas o expulsei, como fiz a outra meia dúzia de vozes que tentaram me visitar. Nick
enviou um presente. Joguei-o sem abrir. Antes que Clay me mordesse, eu conheci Logan e Nick, inclusive
comecei a considerá-los amigos. Depois os culpei de não me alertar. De modo que veio e se foi o Natal e eu
mal o notei. No ano seguinte, Clay continuava banido. Eu já estava bem avançada em minha recuperação.
Havia perdoado Logan e Nick e inclusive ao Jeremy. Estava conhecendo ao Antônio e ao Peter. Começava a
aceitar a vida como mulher loba. Chegou o Natal novamente e eu pensei que passaria um Natal sem
solenidades, igual ao ano anterior. Em troca, tivemos um Natal com todas as suas característica, com
presentes debaixo da árvore, luzes coloridas refletidas sobre a neve e peru na mesa. Toda a Matilha veio
para Stonehaven por uma semana e, pela primeira vez, soube a enlouquecido, esgotante, ruidoso e
maravilhoso que pode ser um Natal em família. Pensei que assim era como celebrava a Matilha todos os
anos quando não tinha que lidar com uma nova mulher loba raivosa, Só em janeiro soube a verdade. Clay se
comunicou com Jeremy e lhe pediu que fizesse isso por mim. Foi o presente que me deu. Meu presente para
ele foi pedir ao Jeremy que pusesse fim a seu desterro,
Depois disso, todos os anos tiveram grandes celebrações de Natal em Stonehaven. A Matilha me permitia
viver minha fantasia por completo, sem me fazer sentir jamais que o faziam para me dar o gosto. Não posso
dizer que todos os Natais foram felizes. Às vezes Clay e eu estávamos bem, a maior parte das vezes não, mas
estávamos sempre juntos. Se esse último Natal sem Clay foi difícil, houve uma coisa que o fez tolerável:
saber que ele estava em algum lugar. Ao olhar a pilha de presentes em seu guarda-roupa, percebi que isso
também valia para cada dia de minha vida, não só para o Natal. De algum modo, saber que Clay estava ali,
me esperando se decidisse voltar, dava-me um consolo na vida. A nossa podia ser a relação mais volátil que
se pudesse imaginar e Clay mesmo podia ser a pessoa mais irritável que eu conhecia, mas, de um modo
perverso, ele era a coisa mais estável de minha vida. Fizesse eu o que fizesse, ele estaria ali, acontecesse o
que acontecesse sempre podia voltar para Stonehaven. E se ele não estivesse? A idéia me encheu de algo
tão gelado que meu fôlego pareceu congelar-se em meus pulmões e tive que me esforçar para poder
respirar. Não menti para Jeremy na noite anterior. Este não era um desses contos de fadas em que a heroína
reconhece seu amor imperecível pelo herói quando ele está em perigo de morte. Nesta história não havia
heróis nem heroínas e não haveria um final feliz para sempre, embora recuperássemos Clay. Ainda não
podia me imaginar vivendo com ele, nem podia pensar em meu mundo sem ele. Necessitava-o. Talvez isso
fosse incrivelmente egoísta. Quase com certeza era. Mas era honesto. Necessitava de Clay e tinha que
recuperá-lo. Voltei a olhar os presentes e soube que não estava fazendo o suficiente.

– Vou para Bear Valley – disse.


Era o dia seguinte. Nick e eu estávamos no pátio de atrás, almoçando. Jeremy e Antônio tinham saído fazia
uma hora. Após, tentar pensar em como dizer a Nick o que planejava. Logo depois de meia dúzia de intentos
falhos, decidi-me dizê-lo sem voltas.
– Disse ao Daniel que queria vê-lo.
– Era isso que dizia aquele bilhete? - Quando Antônio e Nick foram enviar a última carta de Jeremy para
Daniel dei a Nick um bilhete para adicionar ao de Jeremy. Nick não me fez nenhuma pergunta,
provavelmente porque ele queria ignorar a resposta.
– Sim. Vou me encontrar com eles as duas.
– Como conseguiu comunicar-se contigo?
– Não o fez. Disse-lhe que o veria as duas. E ele vai estar ali.
– E Jeremy está de acordo?
Dei-me conta pelo tom de Nick que ele sabia perfeitamente que eu não o tinha mencionado ao Jeremy.
Perguntar era sua maneira prudente de referir-se ao assunto. Ou possivelmente tivesse a esperança
impossível de que isto fosse algo que eu planejei com Jeremy e tínhamos esquecido mencionar-lhe.
– Já não me vou ficar quieta – disse –. Não posso fazê-lo. Tentei, mas não posso.
Nick baixou as pernas e se sentou na beira de sua poltrona.
– Sei o quanto é difícil para você, Elena. Sei quanto o ama...
– Não é isso. Olhe, já falei tudo isto com Jeremy. Precisamos recuperar ao Clay. A Matilha o necessita – Eu
vou fazer que volte. Que queira ajudar é seu assunto.
– A fazer que ele volte sim, mas não vou ajudar você a fazer que te matem.
– E isso o que quer dizer?
– O que parece. Vi como você estava. Faz alguns dias...
– É disso que se trata? Por que perdi o controle faz três dias? Olhe agora. Parece que estou fora de
controle?
– Não e isso provavelmente me assusta mais que se o estivesse.
– Vou. – disse
– Não sem mim
– Bom.
– Mas eu não vou. Assim você tampouco.
Parei e fui para a porta traseira. Nick ficou de pé de um salto e fechou minha passagem.
– O que vai fazer? – perguntei –. Vai me desfalecer com um golpe e me encerrar na jaula?
Desviou o olhar, mas não se moveu. Sabia que não faria nada. Próximo a isso, não usaria a força física para
me deter. Não era parte de sua natureza
– Onde é o encontro? – perguntou por fim–. Em um lugar público? Porque se não...
– É no Donut Hole. O mais público que pude obter. Não importa o que pense, não estou fazendo nada que
pudesse me pôr em perigo. Não faria nada que pusesse você em perigo tampouco. O único risco é que
desobedeço as ordens de Jeremy. E só o faço porque se equivoca ao me excluir.
– De modo que você se encontrará com Daniel no café e eu estarei ali. Estacionaremos o carro na frente.
Não iremos a nenhuma parte com ele, nem sequer caminhar pela rua.
– Exato.
Nick se virou e entrou na casa. Não o fazia feliz, mas ia me acompanhar. Algum dia o compensaria.

Quando estacionei diante do café, pude ver Daniel através da janela. Estava sentado em um reservado.
O cabelo castanho chegava até os ombros e o usava por trás de sua orelha esquerda, sua única orelha, na
realidade, por causa dessa pequena mordida fazia alguns anos. Seu perfil era duro, maçãs do rosto altas,
queixo bicudo e nariz fino, de aparência agradável, mas se assemelhava mais a uma raposa que a um lobo,
o que combinava melhor com sua personalidade.
Ao descer do carro, seus olhos verdes me seguiram, mas não registrou minha presença com nenhum
gesto, já que descobriu tempo atrás que eu não respondia bem à adulação. Seu corpo era magro e
compacto. Medíamos o mesmo, ao redor de um e oitenta. Uma vez que tive que me encontrar com Daniel
para lhe transmitir uma advertência de Jeremy, eu coloquei saltos de cinco centímetros e desfrutei da
sensação de lhe falar de acima, até que me disse o quanto ficava sexual de saltos. Após isso nunca me viu
de outro modo que não com meus tênis mais velhos e maltratados.
Nesse dia Daniel vestia uma camiseta preta e jeans, que era o que vestia quase sempre. Copiava o
vestuário monocromático de Clay, no estilo operário da construção, como se isso lhe desse certa classe. Não
era assim.
Marsten estava em frente a Daniel. Como de costume, vestido como se tivesse saído de uma revista de
modas, o que fazia Daniel parecer descuidado. Bom, Karl Marsten faria qualquer pessoa parecer descuidada,
mas não é essa a questão.
Quando Nick e eu entramos, Marsten ficou de pé e se aproximou da porta para nos saudar.
– Veio – disse –. Surpreende-me que Danvers lhe permita isso. Ou acaso não sabe?
Chutei-me mentalmente. Até então não tinha pensado no que pensariam os vira-latas se eu estivesse
violando as ordens de Jeremy. Divisões na Matilha. Maravilhoso. Com certeza Marsten se ia dar conta em
cinco segundos.
– Parece bem, Elena – continuou Marsten, sem esperar minha resposta –. Um pouco cansada, mas isso
era de se esperar. Com sorte isto se acabará logo.
– Isso dependerá de vocês – disse.
– Em parte. Virou-se para o homem que atendia no balcão. – Dois cafés. Sem nada para a dama e... – olhou
para Nick – Um com creme e duas colheres de açúcar, não é verdade?
Nick só o olhou com ódio.
– Um sem nada. O outro com uma colher de nata e duas de açúcar – repetiu Marsten ao homem –.
Ponha em minha conta. Deteve-se e depois se virou para mim sorrindo. –Não posso acreditar que acabei
de dizer isso em um café. Tenho que sair deste povoado.
Eu desviei o olhar.
– Fazia muito tempo que não via você, Nicholas – continuou Marsten –. Como está seu pai? Investi em uma
de suas empresas o ano passado. Lucros de trinta por cento. Por certo ainda dirige bem as coisas.
Ignorando-o, Nick se sentou em um tamborete em frente ao balcão e estudou a oferta de massas. Marsten
se sentou a seu lado em outro tamborete e me indicou que fosse até o Daniel.
– Você vá fazer o seu. Eu fico com Nicholas. Daniel não levantou o olhar quando me aproximei. Mexeu o
café e só me saudou com um movimento de sua cabeça. O homem do balcão trouxe meu café. Coloquei-o
de um lado e me sentei em frente a Daniel, do outro lado da mesa. Continuou mexendo o café. Fiquei
sentada ali alguns segundos. Em outras circunstâncias, eu teria esperado mais para ver quanto ele podia
alongar essa indiferença fingida de mexer o café antes de sentir-se obrigado a me olhar. Mas o tempo de
jogar tinha acabado.
– O que quer? – perguntei.
Ainda mexia, com os olhos na xícara, como se pudesse escapar se deixasse de olhá-la.
– O que quero habitualmente?
– Vingança?
Levantou os olhos e me olhou nos olhos, depois me percorreu lentamente com o olhar como de costume.
Apertei os dentes e esperei. Logo depois de alguns segundos, senti-me tentada de estalar os dedos diante
de seu rosto e lhe dizer que não havia tanto que olhar.
– Quer vingança – repeti, para fazer que seu cérebro voltasse a funcionar.
Daniel se reclinou no assento, elevando uma perna para mostrar-se muito tranqüilo e relaxado.
– Não. Nunca quis isso. Não importa o que me fez a Matilha, já o superei. Não merecem meu tempo. Mas
você sim.
– Outra vez a mesma história – murmurei.
Daniel me ignorou.
– Sei por que está com eles, Elena. Porque tem medo de sair, teme o que lhe farão e teme o que acontecerá
a você sem seu amparo. Estou tentando mostrar a você que não podem machucá-la e não podem protegê-
la. Se quiser um companheiro, um verdadeiro companheiro, merece algo mais que um monstro que tem
que dar três voltas antes de deitar-se. Eu posso dar algo melhor a você.
– Assim que isto é para me ganhar? Não diga tolices.
– Não crê que vale? Acreditei que se valorizava mais.
–Minha inteligência está por cima disso. Não é por mim. Nunca foi. É por você e Clay. Crê que me tem,
assim me quer. Sua motivação é tão complexa como a de um menino de dois anos que vê outro com um
brinquedo. Quê-lo para você.
– Subestima-se.
– Não, não subestimo o quanto o odeia. O que aconteceu? Sempre lhe deram a porção maior de torta
quando eram crianças?
– Minha vida foi um inferno graças a eles. Ele e o índio aquele touro – Daniel olhou com ódio em direção
de Nick –. Pobre Clay. Tem problemas. Teve uma vida dura. Deve tratá-lo bem. Deve ser seu amigo. É tudo
o que sempre escutei. Quão único viam era um filhotinho de lobo. Se mostrava os dentes, parecia-lhes
simpático. Mandava em nos como se fosse um Napoleão em miniatura e eles o consideravam bonito. Para
mim não era nem bonito nem simpático. Era...
Levantei a mão.
– Está delirando.
– O quê?
– Queria que soubesse. Está delirando. É um pouco feio. Se continuar assim terminará me informando de
seus planos para dominar o mundo. Isso é o que fazem todos os vilãos depois de delirar a respeito de sua
motivação. Esperava que você fosse diferente.
Daniel tomou um grande gole de café, depois sacudiu a cabeça e riu.
– Bom, já me deu a bofetada para me localizar. Sempre foi boa nisso. Você diz que ladre e eu pergunto se
alto ou baixo.
– Digo que solte Clay...
Daniel fez uma careta
– E eu digo: por que teria que me incomodar? Bom, há um limite para minha obediência. Não o soltarei
só porque você quer, Elena. Poderia fazer caras e bocas e me rogar e, embora isso me resultasse muito
excitante, não me faria soltá-lo. Farei a você a mesma oferta que fiz ao Jeremy. Você pelo Clay
– Por quê?
– Já disse.
– Porque me deseja tanto que está disposto a arriscar sua vida para me ter? Dê uma explicação melhor
ou irei embora.
Daniel ficou em silêncio um momento e depois se inclinou para frente.
– Pensaste alguma vez em ter sua própria Matilha? Não recrutar vira-latas meio idiotas, a não ser criar
uma dinastia. Não somos imortais, Elena, mas há uma maneira de conseguirmos a imortalidade.
– Realmente espero que não esteja insinuando o que penso.
– Filhos, Elena. Uma nova raça de licántropos. Não meio licántropos, meio humanos, a não ser licántropos
plenos, que herdem os genes de ambos os pais. Licántropos perfeitos.
– Céus. Realmente quer dominar o mundo.
– Falo sério.
– Seriamente louco. Sinto muito, mas este útero não se vende nem se aluga.
– Nem sequer pelo preço de uma vida? A vida de Clay?
Recostei-me para trás e fiz de conta que estava pensando. Era o momento de redobrar a aposta.
– De modo que se aceitar, deixa-o em liberdade?
– Correto. Só que não vou confiar só em que venha comigo e fique, de modo que esclareçamos isso desde
o início. Tenho um lugar para você, romântico e adequadamente remoto e seguro. Estaria confinada. Algo
assim como a jaula de Stonehaven, mas muito mais luxuosa. Se me der o que quero, tudo o que quero, não
ficará ali muito tempo. Quando você se convencer de que sou sua melhor opção, deixo você sair. Se pegar
você tentando escapar lhe prendo novamente.
– Caralho, que tentador.
– Estou sendo honesto contigo, Elena. É um intercâmbio. O cativeiro dele pelo seu.
Fiz de conta que pensava, olhando pela janela. Então voltei a olhar ao Daniel.
– Esta é minha condição. Quero vê-lo livre. Fá-lo-á à luz do dia em um lugar público. Estarei ali para vê-lo.
Quando ele estiver livre, serei sua.
– Não funciona assim. Quando for minha, ele fica livre.
– Não tem intenção de soltá-lo – disse, me virando para olhar Daniel nos olhos –. É o que pensei.
Fiquei de pé, – e saí do café. Tanto Nick como Daniel me seguiu rápido. Quando cheguei ao automóvel,
Daniel me impediu de abrir a porta.
– Viu as fotos, não é verdade? – perguntou. Detive-me, mas sem olhá-lo.
– Sei que viu as fotos – continuou Daniel –. Viu em que estado está. Viu que a coisa fica pior. Quanto mais
pensa que pode resistir?
Virei-me lentamente. Virei-me vi o rosto de Daniel e a satisfação em seus olhos e perdi o controle. Durante
a última meia hora, me esforcei para não pensar em Clay. Enquanto falava com Daniel, esforcei-me para não
recordar que era ele quem mantinha Clay cativo, que o drogou e golpeou até que apenas restassem alguns
centímetros de pele sem marcas. Concentrei-me em falar com Daniel como fiz centenas de vezes, como se
tratasse-se de lhe transmitir outra mensagem de Jeremy lhe dizendo que se emendasse ou teria um castigo.
Realmente tentei esquecer o que acontecia. Mas quando ficou parado ali e ameaçou matar Clay, já não pude
fingir. Minha ira transbordou antes que pudesse controlá-la.
Puxei-o pela camisa e o lancei contra o automóvel com tanta força que a janela do lado do condutor se
partiu em pedacinhos.
– Hiena repugnante me aproximei dele até que nossos rostos estavam a poucos centímetros. – Seqüestra-
o com uma injeção. Prende-o à parede para poder golpeá-lo. Mas isso não basta. Tem que drogá-lo. Tem
que estar absolutamente seguro de que não possa juntar forças suficientes para cuspir em sua cara. Então
o golpeia. Faz você se sentir bem? Fez você se sentir muito homem espancar o seu inimigo quando não
podia defender-se? Não é homem e não é lobo, É uma hiena, um covarde carniceiro. Se voltar a tocar nele,
se vê uma só marca a mais, vou fazer algo a você que fará que essa orelha arrancada pareça um beliscão. E
se o matar, juro por Deus e o Diabo e qualquer que escute, se o matar, caçarei você. Caçarei você e o
amarrarei e o torturarei de todas as maneiras que me ocorram. Deixarei você cego, o castrarei e o queimarei.
Mas não matarei você. Não deixarei você morrer. Porei você no inferno e ali viverá pelo resto de sua vida.
Joguei Daniel para um lado. Cambaleou, recuperou o controle e se virou para me enfrentar. Sua boca se
abriu, voltou a fechar, voltou a abrir-se, mas ele não parecia poder pensar em uma resposta adequada, assim
se virou e foi para o café. Escutei um assobio e me virei para ver Marsten apoiado contra a parte de atrás do
automóvel.
– A bruxa voltou – disse Marsten –. Bom, bom. Isto pode ficar interessante.
– Vai ao caralho – rugi para ele.
Abri a porta do automóvel, subi e o pus em marcha quando Nick se sentou do lado do acompanhante. O
Camaro saiu rugindo do estacionamento, com um chiado de borrachas. Não olhei o velocímetro em todo o
caminho de volta a Stonehaven.
Em uma eu coisa tinha razão. Acabou-se o tempo dos jogos.

REGRESSÃO
Saí de Stonehaven quando todos dormiam. Vesti-me na escuridão, saltei pela janela e empurrei meu
automóvel quase um quilômetro pelo caminho antes de ligar o motor. Não falei ao Nick meus planos. Era
melhor que não soubesse nada.
Tinha ido cedo para meu quarto e passei umas horas pensando na cama. Meu encontro com Daniel foi um
erro. Ao rechaçar sua oferta, piorei as coisas. Jeremy esteve tentando ganhar tempo para Clay. Eu o tinha
tirado. Para arrumar as coisas, tinha que agir agora.
Durante várias horas tentei essa noite me contatar mentalmente com Clay. É obvio que não funcionou.
Nem sequer sabia como fazê-lo, mas tive a esperança de que nossa relação fosse suficiente. Possivelmente
tivesse sido, mas era como exigir um esforço extra a um músculo que eu ignorei muito tempo. Nada
aconteceu. Quando não pude entrar na mente de Clay, decidi tentar me introduzir nas mentes dos vira-latas
que o mantinham cativo. Introduzir-me em suas mentes em sentido figurado, quero dizer. Se me colocasse
em sua situação e tentasse imaginar o que sentiam ou pensavam, possivelmente pudesse encontrar um
ponto fraco. Daniel e Marsten eram fáceis de entender. Sabia o que queriam e sabia como operavam.
Marsten não deixaria nenhum lado desguarnecido. A debilidade de Daniel era sua obsessão por mim e por
Clay. Podia aproveitar isso, fazer contato com ele novamente e tentar enredá-lo com mentiras e sorrisos,
mas isso exigiria tempo e eu não o tinha. Além disso, tal como me sentia, ao invés de lhe sorrir era mais fácil
que lhe abrisse a garganta à dentadas. Restavam os guias de ruas novos. Era um território desconhecido.
Não eram licántropos, recordei-me disso. Eles não eram licántropos de verdade. Então, como podia me
colocar em suas cabeças?
Fiquei a maior parte do tempo jogada na cama, olhando o teto, afligida pela impossibilidade de entender
a esses dois. Então me dei conta. Não eram licántropos, mas eram humanos. Eu fui humana. Continuava
tentando ser humana. Por que não podia me pôr em seu lugar? Tudo o que tinha que fazer era eliminar meu
lado de loba, coisa que levava anos tentando fazer. Mas necessitava algo mais para entender a esses
assassinos. Não podia ser o tipo de humana que desejava: controlada, passiva, carinhosa. Tinha que ser o
que fui antes.
Todos os mecanismos de defesa de meu cérebro montaram barreiras ou fizeram soar alarmes. Ser o que
era antes de Clay me morder? Mas eu fui, passiva, carinhosa. Clay mudou isso. Antes dele eu era diferente.
Não era assim. Isso é o que queria acreditar, mas sabia que não era verdade. Sempre tive a capacidade de
ser violenta. Clay percebeu no instante em que nos conhecemos. O menino licántropo olhou à menina vítima
e viu uma companheira de alma, alguém que entendia o que significava criar-se alienado, com adultos que
analisavam nossa estranha conduta e crianças que zombavam. Aos oito anos, Clay já era um licántropo com
uma grande capacidade de violência e um temperamento correspondente. Quando eu tinha essa mesma
idade, minhas famílias adotivas me ensinaram a odiar, desenvolvendo minha própria capacidade de
violência, embora tenha conseguido ocultar melhor que ele, guardando-a em meu interior e me esforçando
para mostrar ao mundo a garotinha passiva que esperavam ver. Era hora de encarar isso. Clay não me
converteu no que eu era. Só me deu uma saída para descarregar a ira e o ódio. Agora, para salvá-lo, tinha
que voltar ali, de volta à desconfiança, ao ódio, a impotência e a fúria, acima de tudo a fúria, contra todos
os que me fizeram mal. Ali encontraria a mente de um assassino, um assassino humano.
Le Blanc odiava às mulheres. Possivelmente foi maltratado por sua mãe ou as garotas riam dele no colégio
ou possivelmente tivesse tão baixa auto-estima que precisava sentir-se superior a algum grupo de pessoas
e escolheu às mulheres em vez dos negros ou dos judeus. Se fosse a auto-estima, podia usá-lo. Mas para
encontrar a verdade, precisava investigar sua vida, procurando algum sinal de sua psicopatologia. E não
tinha tempo para isso tampouco.
E Victor Olson? Comecei a deixar de lado a idéia sem mais. Afinal de contas, nem sequer conhecia esse
homem. Mas era necessário? Tirei os dois artigos que havia imprimido da gaveta de meu guarda-roupa e os
estudei. Além do óbvio, que era um assassino e violador de meninas, o que me diziam de Olson? Sabia que
acostumava espreitar suas vítimas, compulsivamente. Em um artigo admitia ter saído toda noite para ver
suas vítimas dormirem, disse que ver seus rostos pacíficos quando estavam dormindo o relaxava e o ajudava
a superar sua insônia crônica. Converter-se em licántropo lhe curaria essa compulsão ou essa insônia? É
obvio que não. O que indicava que havia uma boa possibilidade de que Olson não houvesse abandonado
seus velhos padrões de conduta, que continuasse vigiando a meninas que dormiam, aqui em Bear Valley.
Sai de Stonehaven para encontrar Olson. Os artigos diziam que seu alvo eram meninas de lares de classe
média. Supus que procuraria casas de um só andar, para poder espiar através de uma janela. Havia só dois
bairros deste tipo em Bear Valley. Tudo o que tinha que fazer era percorrer as ruas e cheirá-lo.
Logo depois de dar voltas por Bear Valley mais de uma hora, comecei a perceber as dimensões da tarefa.
Efetivamente, só havia dois bairros, mas cada um constava de uma dúzia ou mais de ruas com ao menos
cem casas. Tinha poucas horas antes do amanhecer. Para cobrir a maior quantidade de terreno possível, tive
que dirigir lentamente com todas as janelas baixadas... exceto a janela do condutor destroçada, que agora
estava baixa de forma permanente. Por alguns momentos o vento me favoreceu. Mas na maior parte do
tempo não, e o único que podia cheirar era o interior um pouco úmido de meu automóvel pouco usado.
Terminei o primeiro bairro e passei ao segundo. Uma hora mais tarde, também tinha terminado com esse.
Não havia sinais de Olson. Talvez nem sequer tivesse saído.
Estava dando uma última volta no bairro quando vi um automóvel solitário no estacionamento de uma
loja fechada. Ao passar notei que o automóvel tinha uma identificação de veículo alugado. É obvio. Se os
vira-latas não se escondiam na cidade, como suspeitava, Olson necessitaria de um veículo para chegar a Bear
Valley. Deixei meu automóvel em uma rua lateral e desci. Não cheguei nem ao meio do caminho para a loja
fechada quando senti o aroma de um novo licántropo desconhecido.
Virava à esquina e me detive. Um homem maduro, gordo, com um blusão cinza de esquiar, caminhava
pelo caminho, a menos de dez metros da esquina. Por sorte Olson estava de costas para mim. Ia para seu
automóvel. Corri de retorno ao meu. Seu veículo alugado passou quando eu virava em uma entrada de
garagem. Com as luzes apagadas o segui.
Quando saímos de Bear Valley, meu coração começou a pulsar às pressas. Tinha razão. Estavam no campo.
Olson me levava a eles. Tínhamos avançado para o noroeste quase vinte minutos quando Olson entrou em
um caminho coberto de vegetação que conduzia ao interior do bosque. Parou o automóvel logo que
penetrou no bosque. Estava por cumprir à segunda parte de meu plano quando percebi que Olson não
descia. Fiquei bem longe e desliguei o motor para esperar. Passaram-se dez minutos. Ainda podia ver a
silhueta de sua cabeça no automóvel. Inclinei-me de lado, cuidadosamente abri a porta do lado do
acompanhante e deslizei para a banqueta.
Arrastei-me até o caminho. O bosque estava escuro. Inclusive quando meus olhos se acostumaram à
escuridão, não vi sinais de nenhuma casa. Ao me virar para o automóvel de Olson, vi que o caminho não
levava a lugar nenhum. Era um ponto de retorno ou um lugar de estacionamento para um automóvel, onde
faltava um caminho natural. Meti-me no bosque e mais perto do automóvel. Quando cheguei à altura da
porta do lado do condutor parei e tentei ver na escuridão, A cabeça de Olson descansava contra o encosto
da cadeira. Tinha os olhos fechados. Dormia. Perguntei-me brevemente por que, mas a pergunta era
irrelevante. Possivelmente não pudesse dormir perto dos outros. Ou possivelmente gostasse de estar só
depois de espiar. Não importava. O fato era que Victor Olson não me conduzia de volta a Clay. Ao menos
não essa noite, Mas não podia esperar até a manhã. Pela manhã Jeremy saberia que sai. A Matilha me
procuraria. Embora conseguisse evitá-los outro dia, isso significaria dar ao Daniel outras vinte e quatro horas
para decidir que qualquer acerto que pudesse fazer com a Matilha não justificava perder a oportunidade de
matar a seu velho inimigo. E o que aconteceria se Olson não estivesse simplesmente fazendo uma pausa? O
que aconteceria não voltasse para onde estavam os vira-latas? Ele sabia onde Clay estava. E eu tinha que
saber: essa noite.
Em minha cabeça se formou um plano enquanto olhava Olson dormir. Inclusive enquanto o pensava, uma
parte de mim rechaçou a idéia. Vacilei, logo me obriguei a avançar através das árvores antes que pudesse
mudar de idéia. Aproximei-me do lado do automóvel, logo passei a mão pela janela do condutor. No
momento em que Olson começou a despertar, eu já passava a mão através da janela. Puxei o cinto de
segurança. Deslizou-se por meus dedos enquanto o ajustava ao redor dele. Afastou a cabeça para trás para
retirar a minha mão, mas eu já procurava além dele. Inclinando-me para dentro do automóvel, agarrei o
fecho de metal do cinturão e o retorci até quebrá-lo e deixá-lo travado. Então tirei a cabeça do automóvel.
Olson se virou, seguindo minha mão quando eu a retirei. Por um momento só teve a expressão de um
covarde que se prepara para receber o primeiro golpe. No momento em que me afastei, estremeceu.
Quando percebeu que eu retrocedia, franziu o cenho, depois seus olhos se acenderam com um relâmpago
malévolo de astúcia e sorriu. Com o olhar baixou a mão direita ao fecho do cinto. Então parou. Voltou a
apertar o botão para soltar-se, mas nada aconteceu. Ao perceber o que fiz, pegou o cinto e puxou, mas
estava fortemente ajustado a seu peito.
Eu sabia o que tinha que fazer, mas vacilei novamente. Podia fazê-lo? Em minha mente surgiu a imagem
de José Carter. Disse-me que isto era diferente. Este não era um humano enganador, e sim um assassino.
Ainda assim, o que eu estava por fazer era o que fiz ao Carter. E muito mais. Esse era o território de Clay. Eu
poderia fazê-lo? Deixar de lada meus sentimentos e fazê-lo? Olson é um assassino, disse-me. Mais que um
assassino. Um doente pervertido que espreita meninas pequenas, meninas como a que era eu faz tanto
tempo. Fechei os olhos e me concentrei, até sentir a serpente da ira que me percorria o corpo. Olson lutava
com o cinto, mas era de um material que não ia se quebrar facilmente. Ignorei-o e concentrei toda minha
energia em minha mão esquerda. Começou a pulsar, logo a retorcer-se, e a dor percorreu meu braço. Abri
os olhos e olhei. Quando minha mão tinha Trocado pela metade, parei. Com a mão direita peguei a mão
direita de Olson. Rasguei-a com as garras de minha mão esquerda. Grunhiu, como um coelho. Abriu-se um
corte no dorso de sua mão. Começou a brotar sangue. Peguei sua mão esquerda e fiz o mesmo. Grunhiu de
novo e começou a debater-se enlouquecido. O sangue salpicou o volante e o painel.
– Se você se mexer, será pior – disse, mantendo a voz calma e Trocando minha mão a humana –. Se quer
reduzir a hemorragia levante as mãos.
– Por que…?
– Por quê? Por que faço isto? Ou por que digo a você que diminua a hemorragia? Não terei que responder
a primeira. Obviamente sabe quem sou. Com isso basta. Quanto à segunda, não estou tentando matar você.
Só quero informação. Se me der isso, desamarrarei você. Poderá enfaixar seus pulsos e chegar a tempo ao
hospital. Se não me disser o que quero saber, estará se suicidando.
– Qu... – Olson engoliu –. O que quer saber?
– Tampouco necessita resposta. Mas como pode estar entrando em uma comoção, sem poder pensar
claramente, direi-lhe isso: Onde está Clayton?
Não vou contar o resto da conversação. Olson não estava em condições de negociar ou discutir e sabia.
Tal como eu acreditava, importavam-lhe um caralho outros. Só sua vida lhe importava. Disse-me tudo o que
precisava saber e mais, falou enlouquecido, como se cada palavra que dissesse pudesse aumentar suas
possibilidades de sobreviver. Quando terminou, deixei-o em seu automóvel. Pensei em soltar o cinto e lhe
dar a oportunidade de escapar. Afinal de contas tinha prometido. Nunca reneguei um trato, Então pensei
nas meninas que violou e matou e imaginei todas as vezes que lhes fez promessas de não as machucar, de
não fazê-lo mais. Ele não tinha cumprido. Por que eu teria que fazê-lo?
Fui embora deixando Victor Olson morrer sangrado no bosque.
CONFRONTAÇÃO
Parei em um posto de gasolina e liguei para Stonehaven. As primeiras duas vezes me atendeu a secretária
eletrônica. A terceira vez Nick. Estava meio dormido e tive que lhe repetir as coisas três vezes antes que
entendesse que não estava na casa. Ninguém tinha notado meu desaparecimento ainda. Dei-lhe instruções
e lhe fiz escrevê-las e depois lê-las para mim. Então começou a entender o que lhe dizia e o que eu pensava
fazer. Desliguei quando começou a gritar.

Dez minutos mais tarde batia na porta do lugar onde se escondiam os vira-latas. Era uma cabana em ruína,
localizada tão profundamente no bosque que a luz da lua e as estrelas não podiam penetrar através das
copas das árvores. Parada no degrau da porta, tentei escutar o sussurro do vento ou o canto de grilos, mas
nada. O silêncio e a escuridão eram completos.
Passaram vários minutos sem resposta. Voltei a bater e esperei. Passaram-se mais alguns minutos, mas
não duvidei do que me disse Olson. Era o lugar indicado. Podia sentir Clay aqui.
Golpeei a porta. Finalmente se quebrou a escuridão com um mínimo raio de luz detrás das cortinas da
frente. Escutei passos em um piso de madeira. Olhei o trinco da porta e vi que estava quebrado. Acima do
trinco havia um buraco e lascas recentes, onde antes havia um ferrolho. Realmente esperava que os vira-
latas comprassem ou alugassem uma cabana quando podiam forçar a entrada? Que estúpida. Quanto tempo
desperdiçado.
A porta se abriu. Levantei os olhos. Levei alguns segundos para reconhecer que o homem parado ali era
Karl Marsten, em parte devido à falta de luz e em parte por sua vestimenta. Vestia só a calça do pijama e
seu peito nu mostrava músculos e cicatrizes normalmente ocultas sob suas camisas de cem dólares. Piscou
e forçou a vista, depois amaldiçoou e saiu, fechando a porta.
– Que caralho faz aqui? – disse com um grunhido sussurrado.
Olhei a porta fechada.
– Teme que desperte a sua esposa?
– Mi...? – Olhou por sobre o ombro para a porta, depois se virou para mim, com sua expressão tranqüila
de sempre. – Estou seguro de que este é um plano maravilhoso, Elena, mas realmente tenho que aconselhar
você de que não o leve a cabo. Se entrar ali, será presa ou morta. Nada disso convém a você.
– Assim saiu para me alertar? Caralho, ainda restam cavalheiros.
– Conhece-me. Se vir uma oportunidade, aproveito-a.
– Assim me deixará ir em troca de...?
– Aquilo pelo que vim. – Seus olhos brilharam, e algo duro atravessou o sangue-frio. – Território. Se me
prometer isso, deixarei você ir. E irei. Um vira-lata a menos para preocupar a Matilha.
– A merda com outros?
– Daniel me faria o mesmo. Não escutei meu nome no acordo que propôs a você no café.
Sacudi a cabeça.
– Não importa. Não vou.
Estendi a mão para pegar a porta. Marsten me agarrou o pulso, apertando o suficiente para me deixar
marcas.
– Não seja estúpida, Elena. Não o tirará assim.
– Assim como? – a voz de Daniel se escutava tranqüila, calma, ao abrir a porta. Olhou Marsten nos olhos.
– Assim como, Karl?
– Estava dormindo bem, Danny? Por Deus, toda a Matilha poderia estar uivando em sua porta antes que
despertasse. – Marsten dirigiu um olhar de desprezo a Daniel e me enfiou na cabana.
– É uma emboscada, idiota. Elena não viria sozinha. Coloque seus criados para procurar no bosque. Que
sirvam para algo.
Não sei se Daniel discutiu com ele. Estava muito ocupada em me levantar do chão, depois que o empurrão
de Marsten me jogou ao outro lado do quarto. Antes que pudesse ver o que acontecia detrás de mim,
Marsten pôs um joelho em minhas costas e me aprisionou contra o chão. Pensei que me amarraria. Não foi
assim. Possivelmente Marsten não considerou que eu representasse muita ameaça. Em poucos instantes
senti passos detrás de mim. Cheirei ao Blanc que se unia a Daniel e a Marsten.
– Foi Olson – disse Daniel.
– Suponho que se foi de tudo – disse Marsten –. Como ela poderia nos encontrar se não fosse assim?
Grande perda para a causa. Nunca se sabe quando alguém necessitará de um violador de meninas.
– Tinha outras... – disse Daniel, mas se interrompeu –. Thomas, fora. Procura os outros.
Le Blanc fechou a porta com uma batida ao sair.
– Esse sim é um cachorrinho leal – disse, levantando a boca do chão –. Sabe que tentou me matar no
aeroporto, antes que fosse para Toronto.
Um momento de silêncio. E então Daniel riu.
– Boa tentativa, L. Tenta nos dividir?
– Não parece necessário.
– Vamos, vamos, Elena, – disse Marsten, me esmagando mais contra o piso –. Por mais que admiremos
essa língua que tem, não é o momento de usá-la.
– Não se esqueça de quem está lá embaixo – disse Daniel –. Agora não está em condições de defendê-lo.
Fechei a boca e calculei quanto tempo demorariam Jeremy, Antônio e Nick para chegar. Ao menos quinze
minutos para despertarem, vestirem-se e entrarem no automóvel, outros trinta para chegarem. Quando
Blanc voltou em dez minutos, soube que não encontrou ninguém. A Matilha demoraria ao menos dez
minutos mais.
– Não há ninguém – disse Blanc, sacudindo o barro das botas.
– Pegue o automóvel disse Daniel –. Dê uma volta e se assegure de que é assim. Verifique se há algum
veículo ao lado caminho. Teriam que vir de carro.
Por um momento Le Blanc não se moveu. Pensei que ia dizer a Daniel que fosse a merda. Em troca, pegou
um blusão e algumas chaves e saiu. Esta vez demorou ao menos vinte minutos, tempo no qual nem Daniel
nem Marsten disseram uma palavra. Quando Le Blanc finalmente voltou, Consegui virar a cabeça e o vi
sorridente.
– O que aconteceu? – disse Daniel.
– Isto vai encantar você a cavalaria foi detida. – Dirigiu seu sorriso de tubarão para mim. – Estão em
Pinecrest, Mal saíram estrada, desfrutando da hospitalidade do departamento de polícia local. A polícia os
fisgou. Não sei por que, mas estão desarmando o automóvel peça por peça. O que você acha?
– Parece-me que fala tolices – disse. Seu sorriso ficou mais largo.
– Ford Explorer verde, não é verdade? Três caras? Os três de cabelos escuros. Dois de mais de um metro
oitenta, magros. O mais velho mais baixo que eu, de ombros largos. Quando passei, o mais jovem tentava
fugir para o bosque. Os policiais o agarraram e o jogaram no chão.
– Tolices – disse.
Le Blanc riu.
– Não tem o mesmo ar altivo de recentemente.
– Basta – desse Marsten, me pondo de pé de um puxão. – Não vai detê-los para sempre. – Dobrou meus
braços para detrás das costas e levou as duas mãos prendendo-as em uma mão. – Tommy, traz para nosso
outro convidado para cima. É hora de ir.
Le Blanc se virou para olhá-lo.
– Ir? Não era isto o que queriam? Acabar com esta «Matilha»? Aqui temos dois. Os últimos três vêm a
caminho. Três contra três e já sabemos que vêm. Temos a vantagem.
– Traz Clayton para cima – disse Daniel.
– Que caralho está acontecendo? – Le Blanc olhou para Marsten e para Daniel.
– É o grande momento. O enfrentamento decisivo. Hora de matar. Não me digam que não têm culhões.
–Temos mais cérebro que testículos – disse Marsten –. Por isso continuamos com vida. Agora vá buscar
Clayton. Temos a ele e a Elena. Isso garante que logo poderá brigar, com a vantagem de nossa parte.
Le Blanc olhou com desprezo para Marsten e desapareceu por um corredor lateral.
Eu apertei os dentes e me concentrei em meu plano. Estavam os outros realmente nas mãos da polícia?
Não acreditava. Não podia acreditar. Mas vi a polícia por aí – Se vinham pela estrada a toda velocidade com
o mesmo veículo que tanto interessou à polícia no outro dia...? Por que não alertei Nick?
Bom. Tranqüila. Hora de passar ao plano B. Se tão somente tivesse um plano B.
Enquanto pensava, Marsten me fez girar Daniel estava sentado no braço de uma poltrona que cheirava a
umidade. Saíram duas figuras de outro quarto. Alguém cambaleou. Vi um brilho de cachos loiros quando
caía.
– Clay!
Sem pensar, lancei-me para ele. Marsten, que ainda me prendia pelos pulsos, puxou-me para trás, tão
forte que me deixou sem ar. Clay estava de joelhos, com as mãos amarradas para trás. Com esforço levantou
a cabeça e me olhou nos olhos. Por um segundo seus olhos tentaram me ver. Então me reconheceu em meio
à bruma das drogas.
– Não – sussurrou, sua voz apenas audível –. Não.
Apenas se moveu. O pé de Blanc se levantou por detrás e o chutou nas costas, fazendo-o cair de cara ao
chão.
– Não! Gritei.
Lancei-me contra Le Blanc. Novamente Marsten me atirou para trás e quase me deslocou os braços. Não
me importei. Continuei puxando. Le Blanc pegou Clay pelas algemas e o levantou.
– Deixa-o ali. – disse Marsten. Quando Le Blanc passou junto a ele, Marsten lhe tirou algo da cintura com
sua mão livre. Era a arma.
– Alguma vez vai deixar a chupeta?
Le Blanc tentou pegar a pistola. Marsten a sustentou fora de seu alcance.
– Um homem lobo com uma arma de fogo? – disse Marsten. Que dia triste. Que idéia brilhante, Daniel.
Converter um montão de humanos assassinos em licántropos. Por que não me ocorreu?Possivelmente
porque é... estúpido. Nunca vai conseguir que deixem as armas, Danny.
A minha esquerda podia ouvir a respiração de Clay. Obriguei-me a não olhá-lo.
Só mais alguns minutos. Enquanto Marsten e Daniel discutiam o que fazer, olhei meu relógio furtivamente.
Dez para as seis. Se a polícia deteu Jeremy, quanto tempo o reteriam? Quanto mais teríamos que esperar?
Era tudo o que me ocorria como plano alternativo? Aguardar que viessem em nossa ajuda? Não servia.
Podiam levá-los a delegacia de polícia e os manter ali por horas. Jeremy estaria enlouquecido, mas a única
alternativa seria matar aos policiais e não o faria a menos que fosse absolutamente necessário. Saberia que
Daniel manteria eu e Clay como reféns. Não nos mataria, ao menos por agora. Dado que o perigo não era
imediato, Jeremy esperaria que terminassem os trâmites policiais. Mas para quando chegasse,
possivelmente não estaríamos aqui. Melhor dizendo, não íamos estar. Daniel já estava pegando sua carteira
e as chaves de seu automóvel.
Olhei para Clay. Continuava jogado, com o rosto para o chão. Suas costas era uma colcha de retalhos de
contusões violetas, amarelas e negras, com áreas vermelhas inchadas e corte. Sua perna esquerda estava
torcida para um lado, como se estivesse quebrada e o tivessem obrigado a caminhar. Suas costas subiam e
desciam com movimentos leves. Olhei-o e soube o que tinha que fazer.
– Tínhamos um trato – disse, me dirigindo a Daniel –. Estou aqui. Solta-o.
Ninguém respondeu. Marsten e Daniel me olharam como se houvesse ficado louca. Faz uma hora, esta
era exatamente a reação que eu esperava. Pensava em aparecer na porta e me entregar a Daniel. É obvio
que se sentiriam confuso. Em algum momento, entre a surpresa e a eventual celebração, chegaria a Matilha.
Minha versão do velho truque do Cavalo de Troya só que não havia guerreiros à vista. O presente estava no
campo inimigo e não havia modo de tirá-lo dali agora.
– Não... se... atreva. – O sussurro de Clay chegou do chão.
Levantou a cabeça o suficiente para me olhar com ódio. Eu desviei o olhar. Todos os outros o ignoraram.
Pela primeira vez em sua vida, Clay estava com um grupo de vira-latas que não lhe prestavam atenção. Não
só lhe tiraram as forças, mas também a dignidade. Era minha culpa. Supunha-se que em Toronto eu devia
permanecer perto dele, mas não o fiz. O que foi que me distraiu tanto que deixei Clay? Uma proposta de
casamento de outro homem. Meu estômago se retesou ao recordar.
Virei-me para Daniel.
– Queria-me, me tem. Queria Clay de joelhos. Tem-no. Agora cumpra sua parte do acordo. Deixa-o ir e
irei contigo agora mesmo. – Esforcei-me para ver Marsten. Faça que ele deixe Clay aqui e terá seu território.
Clay dirá a Jeremy que fiz o acordo. Ele cumprirá.
Mais silencio. Marsten e Daniel pensavam. Tinham o que queriam. Bastava-lhes? Não queriam um
enfrentamento cara a cara. Passava o tempo e com cada segundo aumentava a probabilidade de que
aparecessem Jeremy, Antônio e Nick. Eu resistiria a que me tirassem daqui. Sabiam. Teriam que me dominar
e me amarrar e então levar ao Clay e a mim ao automóvel.
– Não há acordo.
Levantei a cabeça. A resposta veio do lado de Daniel, mas não soava como se fosse sua voz. Detrás de
Daniel, Le Blanc se adiantou, com as mãos nos bolsos.
– Não há acordo – repetiu. Sua voz era suave, mas cortava o silêncio como uma navalha.
Marsten riu baixo.
– Ah, a revolta dos camponeses. Suponho...
Antes que pudesse terminar; a mão de Le Blanc saiu de seu bolso. Houve um brilho prateado. Sua mão
apareceu de repente diante da garganta de Daniel e cortou horizontalmente. Por um milisegundo pareceu
que nada tinha acontecido, Daniel ficou ali, parecia um pouco confuso. Então sua garganta se abriu em um
talho vermelho. Brotou sangue. Daniel levou as mãos a seu pescoço. Seus olhos saíam das órbitas, sem poder
acreditar no que acontecia. O sangue se derramou entre seus dedos e desceu por seus braços. Abriu a boca.
Lançou uma bola rosa, como uma macabra borracha de chicletes. E então se caiu no chão.
Fiquei piscando com os olhos em Daniel, tão incapaz de acreditar que estava morrendo como ele. Daniel
morria. O vira-lata que foi o maior perigo para a Matilha por toda uma década, que soube esquivar-se das
manobras de Clay e das minhas para que cometesse um erro que justificasse executá-lo. Morto. E não logo
depois de uma briga longa e perigosa. Não morto pelo Clay. Nem sequer por mim, mas sim por um vira-lata
com uma faca. Morto em um instante. Com um truque tão covarde e tão completamente humano que
Marsten e eu não pudemos fazer outra coisa que ficar olhando.
Enquanto Daniel jazia ali, tentando respirar, agonizando no chão, Le Blanc passou sobre ele como se fosse
um tronco caído. Levantou a lâmina. Estava quase limpa, só havia algumas gotas vermelhas na borda.
– Não há acordo – disse, avançando para Marsten.
Marsten pegou a arma da mesa e apontou para Le Blanc.
– Sim, já sei. Disse que os verdadeiros licántropos não usam armas. Mas vai descobrir que sei me adaptar
quando se trata de salvar meu couro –. Marsten sorriu, os olhos frios. Este é seu duelo? Faca versus pistola?
Quer apostar quem vence?
Le Blanc brincou com a faca, como se pensasse na possibilidade de atirá-la. Então parou.
– Homem inteligente – disse Marsten. Que tal economizamos um pouco de sangue e fazermos um novo
acordo? Partes iguais. Eu fico com Clayton. Você com a Elena. Daqui iremos por caminhos separados.
Como Le Blanc não respondeu, Marsten continuou.
– É o que quer, não é verdade? Por isso matou Daniel, porque Elena humilhou você e ainda quer vingança.
Pelo olhar na cara de Le Blanc soube que não matou Daniel para me ter. Não o tinha matado para
conseguir nada. Le Blanc se juntou a esta batalha porque gostava de matar. Agora que se aproximava o fogo
alto, Voltou-se contra seus companheiros, não por ira ou avareza, a não ser simplesmente porque estavam
ali, mais vidas para liquidar antes que se acabasse a diversão. Agora analisava as coisas. Tinha que dar-se
por satisfeito se ficava comigo? Ou podia também acabar com Marsten e com Clay?
– Não a desejas? – perguntou Le Blanc –. Acreditei que todos vocês a desejavam.
– Nunca fui dos que seguem a corrente – disse Marsten –. Embora Elena tenha seus encantos, não se
enterneceria com meu estilo de vida Eu quero território. Clayton é uma peça melhor para negociar. E estou
seguro de que vai se divertir mais com Elena
– Filho da puta – rugi.
Virei-me, me soltando de Marsten. Apontei um golpe a seu estômago, mas se moveu no último instante
e meus nódulos lhe roçaram o flanco. Seu pé enganchou-se no meu e me jogou ao chão. Minha cabeça bateu
em uma quina de um armário para rifles vazio, Desfaleci por um tempo. Quando me recuperei, os olhos
cinza de Marsten perfuravam os meus. Pisquei e tentei me deter, mas me tinha contra o chão. Trocou de
posição e empurrou meu queixo para que ficasse olhando à parede.
– Está inconsciente – disse, ficando de joelhos –. Muito melhor. Já não restam muitos sedativos.
– Inconsciente? Voltei a piscar, lentamente, sentindo que meus olhos se fechavam e voltavam a abrir-se.
Olhava uma fila de dejetos de camundongo ao longo da parede. Estava claramente acordada Marsten não
me viu abrir os olhos? Comecei a elevar a cabeça, depois pensei melhor e fiquei quieta. Que pensassem que
estava inconsciente. Necessitava de todas as vantagens que pudesse ter.
Marsten parou. Ouvi-o afastar-se alguns passos.
– O que está fazendo? – perguntou Le Blanc em tom agudo.
– Levo minha parte do despojo e parto, que é o que sugiro que você faça também. Se Elena não for
prêmio suficiente, pode ficar com todo dinheiro de Daniel e Vic que houver.
– Não o desamarre – disse Le Blanc.
Marsten sussurrou.
– Não me diga que Daniel tornou você paranóico também. Clayton mal respira. Não poderia machucar a
um Chihuahua. Estou apressado. Se puder caminhar quero que o faça.
– Não acordamos nada ainda.
Com os olhos fechados, movi lentamente o queixo, depois os espiei. Marsten estava inclinado sobre Clay.
Tinha-o de joelhos. Clay oscilava. Via-se apenas o azul de seus olhos semicerrados. A pistola estava a apenas
três metros, abandonada. Duvidava que Marsten soubesse usá-la.
– Disse que deixasse de desamarrá-lo – disse Blanc.
– Por Deus – murmurou Marsten –. Bom.
Endireitou-se. Mas então, ainda antes estar bem parado, lançou-se contra Le Blanc. Marsten e Le Blanc
caíram no chão. Enquanto os dois brigavam, coloquei-me em quatro patas e fui para junto de Clay. Quando
peguei as algemas, levantou sua cabeça. Olhou-me por sobre o ombro.
–Vai – grasnou.
Peguei os dois extremos da corrente e puxei com força. Os elos se estiraram, mas não se quebraram.
– Não há tempo – disse tentando virar-se para mim –. Vai.
Ao olhar seus olhos soube o quanto estive equivocada. Não vim para levá-lo de volta ao Jeremy ou à
Matilha. Vim buscá-lo para mim. Porque o amava, amava-o tanto que estava disposta a arriscar tudo ante a
menor esperança de salvá-lo. Inclusive nesse momento, ao me dar conta que ele tinha razão, que não tinha
tempo de tirá-lo, sabia que não ia deixá-lo ali. Preferia morrer.

Olhei em redor enlouquecida em busca de uma arma, então me detive. Arma? Estava procurando uma
arma? Havia ficado louca? Já tinha a melhor arma possível. Se só tivesse tempo para me preparar. Coloquei-
me em quatro patas e me concentrei. Vagamente escutei Clay grunhir meu nome. Afastei-me. A Mudança
se iniciou em seu ritmo normal. Não bastava. Não havia tempo suficiente! Meus pensamentos se
converteram em pânico por um momento. Tentei controlá-los, então percebi que a Mudança se acelerava.
Deixando de lado todo controle, deixei que meus temores me dominassem. Se fracassasse, morreria. Se
fracassasse, Clay morreria. Havia feito tantas coisas erradas. O temor e a dor se retorceram dentro de mim.
Dobrei-me e me rendi a eles. Houve um relâmpago agônico. E logo a vitória.
Parei. Vi Le Blanc inclinado sobre o corpo caído de Marsten. Levantava a mão. A lâmina da navalha cintilou.
Le Blanc se deteve e me olhou. Lancei-me contra ele. Deixou a faca cair e rodou para um lado. Saltei com
muita força e caí torcida, dando uma cambalhota, bati contra a parede e quando me recuperei, Le Blanc já
não estava.
Escutei uma voz e virei-me em sua direção. Marsten se levantava, tentando respirar. Apontou a porta de
trás aberta e tossiu sangue. Saiu mais sangue dos cortes em seus braços e do seu peito. Olhei a porta traseira.
Não podia deixar Le Blanc escapar. Uma mulher o fez correr. Não descansaria até obter sua vingança.
Marsten disse algo, mas não pude entendê-lo. O sangue golpeava meus ouvidos, me urgindo a seguir Le
Blanc. Ia para a porta. Detrás de mim, Clay se queixou ao tentar equilibra-se. Virei-me para Marsten. Não ia
machucar Clay. Abaixando a cabeça grunhi. Marsten ficou petrificado. Moveu os lábios. Só um montão de
sons incompreensíveis. Agachei-me mais.
– Elena! – disse Clay
A ele sim podia entender. Detive-me. Clay estava de pé agora.
– Não... perca... tempo – disse.
Olhei para Marsten. Disse uma palavra. Ainda não podia entendê-lo, mas podia ler seus lábios. Território.
Era tudo o que queria. Tudo o que lhe importava.. Soube que eu estava consciente no chão. Eu tinha servido
a seus planos. Era um filho da puta traiçoeiro, mas não faria mal a Clay. Matar Clay não daria a Marsten o
território que queria. Tê-lo vivo e a salvo sim.
Grunhi uma vez mais para Marsten, depois saí correndo atrás de Le Blanc.
Foi fácil encontrar seu rastro. Nem sequer tive que procurar seu aroma. Podia escutá-lo correr no meio da
vegetação. Idiota, lancei-me ao bosque e comecei a correr. Senti os galhos que se enganchavam em minha
pele e golpeavam minha cara. Fechei os olhos quase por completo para protegê-los e continuei correndo.
Le Blanc havia aberto um caminho na vegetação. Segui-o. Poucos minutos mais tarde o bosque ficou
silencioso. Le Blanc havia parado. Teria percebido que sua única esperança era Trocar – Construí a armadilha
e verifiquei a brisa. O vento do leste trazia leves rastros de seu aroma, mas quando me chegou o vento do
sudeste, vinha carregado dele. Levantei uma pata dianteira e a deixei cair sobre folhas mortas. O chão estava
molhado do orvalho matinal e meus passos mal se escutava. Bom. Virei para sudeste e avancei para os
rastros.
A noite já tinha passado. O amanhecer iluminava as copas das árvores e chegavam raios dispersos de sol
ao chão do bosque. Ao passar por um buraco de luz, senti o sol nas costas e a promessa de um dia caloroso
de final da primavera. A vegetação alta e os arbustos lançavam sua sombra úmida ao ar, a terra fresca da
noite se elevava para encontrar-se com a cálida manhã. Inalei a umidade, fechando os olhos para desfrutar
do limpo aroma de nada. Um pássaro começou a cantar a minha esquerda. Uma manhã bonita. Voltei a
inalar, bebendo o ar, sentindo que o medo da noite cedia à excitação da caça. Aqui terminaria. Tudo
terminaria nesta bonita manhã.
Quando senti a respiração de Le Blanc, detive-me. Inclinou a cabeça para escutar. Estava agachado detrás
de alguns arbustos, respirando com dificuldade enquanto Trocava. Avancei lentamente até me encontrar no
limite da clareira e olhei através da vegetação. Tal como supus pela altura do som de sua respiração, estava
agachado. Mas me equivoquei em relação a uma coisa. Não estava Trocando. Nem sequer tinha se despido.
Senti um tremor de excitação. Ele estava com medo, mas em vez de entregar-se ao medo, lutava com a
Mudança. Coloquei o focinho entre a vegetação e bebi o sabor de seu medo. Isso me elevou a temperatura,
convertendo o entusiasmo em algo um pouco parecido com a luxúria. Le Blanc podia ter me assustado no
estacionamento do aeroporto, mas este era meu terreno.
Le Blanc se acomodou e se inclinou para frente para olhar de seu lugar “Usa o olfato”, pensei. "Fareja e
saberá a verdade". Mas não o fez. Levou uma perna para trás. O joelho se dobrou e ficou congelado,
respirando agitado. Movia a cabeça de um lado a outro, escutando e olhando. Levantou a navalha, abriu-a
e logo esperei que o som me levasse a ele. Algo mais à frente um gato ou uma raposa ou algo igualmente
pequeno e silencioso. Le Blanc se retesou, levantando a faca. Idiota. Estava me cansando disto. Queria
correr. Queria caçar. Retrocedi uma dúzia de passos. Logo levantei o focinho e uivei. Le Blanc saltou do
matagal e correu. Eu o persegui.
Le Blanc levava a dianteira. Deixei-o mantê-la. Andamos entre os arbustos e as árvores, saltando troncos,
pisoteando flores silvestres e fazendo que dois faisões se lançassem ao céu. Continuou avançando se
aprofundando no bosque. Finalmente deixou de correr. Quando percebi que já não podia ouvi-lo,
desemboquei em uma clareira. Algo cortou minha perna traseira e caí para frente no pasto. Ao cair me virei
e vi Le Blanc parado atrás, com as pernas separadas, em pose de lutador que espera o ataque seguinte. Fez
uma careta e disse algo. Não precisava ouvi-lo para saber o que dizia. Vem me pegar. Senti um enorme
prazer. Realmente era um idiota.
Sem vacilar, agachei-me e saltei sobre ele. Não me incomodei em tentar evitar a navalha. Não importava.
Senti que a lâmina me cortava levemente o lado do pescoço e se deslizava sobre meu ombro. O sangue se
derramou quente sobre minha pele. Mas não era um jorro e a dor não era mais que um pequeno incômodo.
Minha pele era muito grossa. A faca só me arranhou. O braço de Le Blanc retrocedeu para lançar outro
ataque, mas já era muito tarde. Já estava sobre ele. Caiu para trás, e a lâmina saltou de sua mão para ir
desaparecer entre as árvores. Quando minha cara ficou frente à sua, seus olhos se abriram. Sobressalto.
Incredulidade. Temor. Permiti-me beber em sua derrota um longo tempo. Então lhe abri a garganta com
uma dentada.

PREPARADA
Jeremy, Antônio e Nick apareceram finalmente na cabana. Entraram quando eu utilizava as amarras de
Clay para prender Marsten. Naturalmente Jeremy estava incrivelmente impressionado por quão bem dirigi
as coisas por minha conta e jurou nunca me deixar fora de nada. Sim, claro. Na realidade suas primeiras
palavras eu não posso repetir. Então disse que se alguma vez eu voltasse a fazer algo tão estúpido, ele...
bom, essa parte tampouco, posso repetir embora Clay, Antônio e Nick a repetiram rapidamente,
adicionando cada um suas próprias ameaças. Assim, a alma valente que salvou o dia teve que ir-se com o
rabo entre as pernas, sentada no banco traseiro de seu próprio automóvel. Poderia ser pior poderiam ter
me colocado na mala. Na realidade, Nick sugeriu isso, mas só estava brincando... acredito.

Jeremy deu a Marsten seu território. Wyoming para ser precisos. Quando Marsten se queixou, Jeremy
ofereceu trocar por Idaho. Marsten se foi murmurando algo a respeito de chapéus de dez galões e calças de
vaqueiro. É obvio que não se conformaria retirando-se a um rancho. Voltaria em busca de um território mais
adequado a seu estilo de vida, mas no momento sabia que devia fechar a boca e pegar o que lhe oferecia.

Clay demorou um tempo para curar-se. Muito tempo na realidade. Tinha uma perna e quatro costelas
quebradas e um ombro deslocado. Tinham batido tanto nele que sentia dor deitado, sentado, parado... em
todo momento. Estava exausto, esfomeado, desidratado e cheio de drogas em quantidade suficiente para
ter a um rinoceronte deitado durante um mês. Passei uma semana em uma cadeira junto a sua cama antes
de me sentir tranqüila de que ia sobreviver. Inclusive então, só saia de seu quarto para preparar a comida e
só porque decidi que o que Jeremy cozinhava estava fazendo mais mal que bem a Clay.
Eu tinha que voltar para Toronto. Na realidade soube disso desde o primeiro dia, mas estive pospondo,
me dizendo que Clay estava muito doente, Jeremy necessitava de minha ajuda na casa, o Camaro não tinha
combustível, qualquer desculpa que pudesse encontrar, mas tinha que voltar. Philip me esperava. Tinha que
averiguar como pensava dirigir-se ele frente ao que viu. Terminado isso, voltaria para Stonehaven. Não havia
dúvida de qual ia ser meu lar. Possivelmente nunca houve. Stonehaven era meu lar. A idéia ainda me
incomodava. Suponho que nunca fosse me sentir tranqüila com esta vida, porque não a escolhi e eu era
muito obcecada para nunca aceitar algo que me foi imposto. Mas Clay tinha razão Aqui eu era feliz. Sempre
haveria uma parte humana de mim que veria mal esta forma de vida, uma moralidade humana que se
sentiria afligida pela violência, vestígios de puritanismo que se rebelaria contra a total imersão na satisfação
de necessidades e urgências primitivas. Mas inclusive quando Stonehaven não me fazia feliz, quando eu
estalava furiosa com Jeremy ou com Clay ou contra mim mesma, de um modo perverso continuava me
sentindo contente e satisfeita.
Tudo o que procurava no mundo humano encontrava aqui. Queria estabilidade? Tinha-a em um lugar e
com pessoas que sempre me receberiam com os braços abertos, fizesse o que fizesse. Queria uma família?
Tinha-a em minha Matilha, com uma lealdade e um amor que iam além da simples etiqueta de mãe, pai,
irmã, irmão. Portanto, ao perceber que tudo o que queria estava aqui me senti preparada para deixar de
lado minhas aspirações humanas e me enterrar para sempre em Stonehaven? É obvio que não. Sempre
precisaria encaixar no mundo. Não havia terapia ou auto-análise que fosse mudar isso. Ainda tentaria ter
um trabalho no mundo humano, talvez escapar por um tempo quando a vida isolada da Matilha me afligisse.
Mas Stonehaven era meu lar. Já não fugiria.
E tampouco podia continuar fugindo de mim mesma. Não me refiro à parte de licántropo que há em mim.
Acredito que aceitei isso muitos anos antes, possivelmente inclusive o desfrutei porque me dava a desculpa
para tantas coisas na vida. Se me mostrasse beligerante e cortante, era pelo sangue de loba que fala em
minhas veias. Se atacasse outras pessoas, novamente o sangue de loba.
E o mesmo a respeito de toda tendência violenta. Das mudanças de humor? Zangada? Propensa a
explodir? Caralho, tinha motivos para isso, não é verdade? Eu era um monstro. E isso não é exatamente uma
condição que fomente a paz e a harmonia interior. Mas tinha que admitir a verdade. Não foi me converter
em licántropo o que me fez assim. Bastava pensar em Jeremy, Antônio, Nick, Logan, Peter. Cada um deles
podia compartilhar alguma de minhas características menos atrativas, mas o mesmo aconteceria com
qualquer estranho que pudesse encontrar na rua. Sim, ser licántropo me fazia mais capaz de agir em função
da ira e viver neste mundo fazia que tal conduta fosse mais aceitável, mas tudo o que eu sou, já o era antes
que Clay me mordesse. É obvio que sabê-lo e aceitá-lo eram duas coisas diferentes. Ainda tenho que
trabalhar nisso.

Demorei quase um mês desde aquele dia em Toronto para entender o que Clay quis dizer quando
assegurou que sabia por que escolhi Philip e por que a minha relação com ele não daria certo. As primeiras
duas semanas depois de que recuperamos Clay foram um inferno, alguns dias nem sequer estava segura de
que fosse sobreviver. Pelo menos assim me parecia. Olhava-o inconsciente na cama e de repente me parecia
que seu peito tinha deixado de se mover. Chamava Jeremy. Não, apaguem isso. Gritava por Jeremy e ele
vinha correndo. É obvio que Clay estava respirando perfeitamente, mas Jeremy nunca me fez sentir que
estava exagerando. Murmurava algo a respeito de que ficava brevemente sem fôlego, possivelmente uma
pequena apnea, e examinava Clay exaustivamente antes de sentar-se na cadeira ao lado da cama para vigiá-
lo se por acaso houvesse uma "recaída". Na terceira semana, Clay já recuperava a consciência por períodos
mais prolongados e até eu tinha que reconhecer que o perigo por fim parecia ter passado. O que não quer
dizer que eu deixasse de acampar ao lado de sua cama. Não o fiz. Não podia. E enquanto eu insistia em estar
ali, Jeremy insistiu em me substituir em meu posto enquanto eu dormia ou ia correr, embora nós dois
soubéssemos que essa vigilância constante só era necessária para que eu ficasse tranqüila.
Perto do fim da terceira semana, voltei depois de tomar banho e me encontrei com Jeremy em meu lugar
junto à cama de Clay na mesma pose vigilante em que o deixei vinte minutos atrás. Fiquei junto à porta
observando-o, as olheiras, seu rosto magro. Soube então que tinha que parar, me controlar e admitir que
Clay estava bem e continuaria assim – ou inclusive melhoraria – sem necessidade de vigilância permanente.
Se eu não deixasse de fazê-lo, terminaria destruída e Jeremy me seguiria sem protestar.
– Sente-se melhor? – perguntou sem virar-se.
– Muito melhor.
Estendeu a mão para trás e pegou a minha quando me aproximei.
– Logo vai despertar. Seu estômago grunhe.
– Deus queira que não perca o jantar.
– Falando disso, você e eu vamos sair esta noite. A algum lugar aonde terei que ir de terno e gravata e
barbeado, ao menos eu. Antônio e Nick vêm. Eles ficarão com Clay.
– Não é nece...
– É muito necessário. Precisa sair. Deixar de pensar nisto. Clay ficará bem. Levaremos seu telefone celular
para o caso de que algo aconteça.
Enquanto assentia e me sentava na cadeira junto a Jeremy, a resposta à incógnita de Clay me assaltou de
repente com tanta força que tive que me sustentar. E me deu um golpe em castigo por não ter percebido
antes. Por que escolhi Philip? A resposta esteve me olhando à cara desde meu retomo a Stonehaven, de
quem Philip me lembrava? De Jeremy, é obvio.
Devo dizer em minha defesa que Jeremy e Philip, ao menos em seu aspecto exterior, não tinham muito
em comum. Não se pareciam fisicamente, Não tinham os mesmos gestos. Nem sequer agiam do mesmo
modo. Philip não tinha o mesmo controle de suas emoções que Jeremy, nem seu autoritarismo, nem sua
calada reserva. Mas essas não eram as qualidades que eu mais admirava em Jeremy. O que vi em Philip foi
um reflexo mais superficial do que valorizava em Jeremy: sua paciência sem limites, sua consideração, sua
bondade inata. Por que subconscientemente procurei alguém que recordasse ao Jeremy? Porque em Jeremy
eu via uma versão infantil do Príncipe Encantado, alguém que me levasse flores e cuidasse de mim além de
qualquer cagada eu fizesse. O problema era que não me sentia atraída sexualmente por Jeremy. Amava-o
como amigo, como líder e como figura paterna. Nada mais. De modo que ao encontrar uma versão humana
de meu ideal, encontrei a um homem por quem estava segura de que ia amar, mas nunca com a paixão que
podia chegar a sentir por um amante.
Isso me fez sentir melhor? É obvio que não. Ao me desculpar por não poder sentir amor sexual pelo Philip,
queria poder dizer que se devia a algum problema dele, algo que lhe faltava. A verdade é que tudo se devia
a mim. Tinha me equivocado e, por melhor e decente que fosse Philip, ele ia sofrer por isso.

Depois de cinco semanas de adiar o retorno a Toronto, decidi fazê-lo de uma vez. Clay dormia a sesta. Eu
estava na cama junto a ele, cochilando, quando me dei conta que tinha que partir nesse mesmo momento,
antes que mudasse de idéia. Levantei-me e escrevi um bilhete para Clay. Jeremy estava no fundo arrumando
o muro de pedra. Não lhe disse aonde ia. Temia que ele quisesse primeiro me fazer jantar ou que o esperasse
para que ele pudesse me levar ao aeroporto ou alguma outra demora que me desse tempo de perder o
impulso.

Não liguei para Philip para lhe dizer que iria. Escutar sua voz era uma coisa mais que podia me fazer mudar
de idéia. Fui direto ao apartamento e entrei. Ele não estava. Sentei-me no sofá para esperá-lo. Voltou uma
hora mais tarde, ofegando por ter caminhado sob o calor de junho. Abriu a porta, viu-me e se deteve.
– Olá – disse, conseguindo produzir um débil sorriso.
Vi o temor em seus olhos e então soube que a coisa nunca poderia da certo. Por mais que conseguisse se
íntima com um ser humano, se soubesse da verdade a respeito de mim, sempre haveria medo. Não havia
modo de superá-lo.
– Olá – disse por fim –. Vacilou, depois fechou a porta e secou o suor do rosto. Depois de tomar o tempo
necessário para recuperar o fôlego, deixou a toalha na mesa do corredor e veio para sala.
– Quando chegou?
– Acabo de chegar. Como está?
– Bem. Recebi suas flores. Obrigado. – Respirei fundo. Por Deus, que incômodo isto era. Sempre foi assim?
Tinham passado somente cinco semanas e já não podia recordar como falávamos. Já não havia nenhuma
sensação de familiaridade.
– Seu ferimento... ah... deve estar melhor – disse –. Se foi correr.
– Fui caminhar. Correr não. Ainda não.
Deu de ombros e se sentou na poltrona em frente a mim. Voltei a tomar ar. Isto não estava funcionando.
Não havia maneira de fazê-lo.
– O que viu o outro dia... – comecei. Não disse nada.
– O que me viu fazer...
– Não vi nada – sua voz era suave, apenas audível.
– Sei que sim e temos que falar disso. Olhei-o nos olhos.

– Não vi nada
– Philip, sei...
– Não. – Cuspiu a palavra, depois se conteve e sacudiu a cabeça – Não lembro de nada desse dia, Elena.
Você foi trabalhar. Seu primo veio a sua procura. Outros dois homens vieram atrás de você. Alguém me
apunhalou. Não recordo de nada depois disso.
Eu sabia que ele estava mentindo para mim. Pela segurança da Matilha, tinha que continuar, Conseguir
que ele reconhecesse o que viu e encontrar a maneira de explicar-lhe. Mas algo me dizia que isto era melhor
para Philip. Deixar que ele explicasse de sua maneira. Devia-lhe isso.
– Vou embora – disse.
Fiquei de pé. Não disse nada. Viu minhas valises empilhadas no corredor, junto a algumas caixas que
continham suas coisas.
– Vou me mudar quando o contrato de aluguel terminar – disse.
– Eu... – esfregou o nariz. – Teria ligado para seu celular. Estava... me preparando para fazê-lo.
– Sinto muito.
– Sei. – Olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que cheguei e conseguiu esboçar um sorriso. – Ainda
assim foi bom. Um engano, mas um engano bom. Se voltar para Toronto algum dia quem sabe possa me
procurar. Poderíamos tomar alguns drinques.
Assenti. Ao pegar minhas malas, meu olhar se dirigiu à mesa do corredor.
– Está na gaveta – disse Philip brandamente.
Virei-me para dizer algo, mas ele já ia para o dormitório, me dando as costas. Fechou a porta.
– sinto muito – sussurrei.

Abri as portas que davam à rua e saí com duas malas pequenas. Disse a Philip que podia dar o resto a obras
de caridade ou jogar no lixo ou o que quisesse. Não havia nada ali que eu necessitasse. Só peguei as malas
para que não pensasse que abandonava minhas coisas por estar zangada. Havia apenas uma coisa que eu
queria no apartamento. O que tirei da gaveta da mesa do corredor. Ainda a tinha em minha mão. Ao sair do
edifício, parei, deixei as malas no chão e abri a mão. A aliança de casamento de Clay cintilou sob as luzes da
rua.
Clay.
O que ia fazer a respeito de Clay?
Em que pese tudo o que passamos ainda não podia dar o que ele queria. Não podia lhe prometer minha
vida, jurar que estaria a seu lado a cada momento, acordando ou dormindo, até que a morte nos separasse
Mas o amava. Completamente. Já não haveria outros homens em minha vida, outros amantes. Podia lhe
prometer isso. Quanto ao resto, bom, teria que oferecer o que podia e esperar que fosse suficiente.
– Está aqui.
Levantei os olhos bruscamente. Clay estava parado sob a inquieta luz amarelada de um farol. Por um
momento acreditei que era uma alucinação minha. Então ele avançou, arrastando a perna esquerda, ainda
não recuperada de tudo.
– Não leu meu bilhete? – perguntei
– Bilhete?
Sacudi a cabeça.
– Não deveria estar aqui. Supõe-se que tem que estar de cama.
– Não podia deixar você ir embora. Não até que falasse contigo.
Olhei a bagagem aos meus pés e percebi que ele pensava que eu estava entrando no apartamento em vez
de saindo dele. Humm. Que não se diga que deixo passar a oportunidade de tirar todo o suco das coisas. Se,
posso ser cruel, inclusive sádica às vezes.
– E o que queria me dizer? – perguntei.
Deu um passo para frente, segurou-me pelo cotovelo e se aproximou tanto de mim que pude sentir os
batimentos de seu coração. Pulsava às pressas, mas isso podia ser pelo esforço, pela viagem.
– Amo você. Sim, já ouviu isso um milhão de vezes, mas não sei o que mais dizer – Elevou a mão e tocou
minha bochecha. – Preciso de você, carinho. Este ano que não esteve comigo foi um martírio. Decidi que
quando voltasse faria algo para reter você comigo. Sem truques. Sem cenas. Sei que não o fiz muito bem.
Caralho, provavelmente nem sequer notou a mudança. Mas tentei. E seguirei tentando. Volta para casa
comigo. Por favor.
Olhei-o nos olhos.
– Por que voltou para o apartamento?
Piscou.
– Como?
– No dia que lhe atacaram. Viu Daniel e Le Blanc subirem ao apartamento, não é verdade?
– Sim.
– Sabia que eu não estava lá. Acabava de falar comigo por telefone.
– Sim...
– Assim sabia que a única pessoa que estava no apartamento era Philip. Mas subiu para tentar protegê-
lo. Por quê?
Clay vacilou e depois disse:
– Porque sabia que era o que você queria que eu fizesse. – Acariciou minha bochecha com o polegar. – Sei
que não é a reposta que desejas. Sei que quer que diga que tive um ataque de consciência e subi para salvar
Philip. Mas não posso mentir. Não posso sentir o que você quer que eu sinta. Há coisas que não posso mudar.
Não me importava que Philip morresse. Salvei-o porquê sabia que se lhe acontecesse algo, você iria se sentir
muito mal.
– Obrigado – disse, beijando-o.
– Foi uma boa resposta? – apareceu um esboço de seu velho sorriso sardônico em sua voz e em seus olhos.
– É o melhor que posso esperar. Agora sei.
– Ficará comigo?
Sorri-lhe
– Não pensei em deixar você, coisa que saberia se tivesse se incomodado de ler meu bilhete antes de vir
correndo até aqui para me deter.
– Você... – deteve-se, lançou a cabeça para trás e riu. Então me deu um abraço e um beijo que quase me
matam. – Suponho que merecia isso.
– Isso e mais. – Sorri e o beijei, depois me afastei para olhá-lo um tempo.
– O que acontece? – perguntou.
– Quando lhe seqüestraram pensei que esta história não teria um final do tipo "viveram felizes para
sempre". Talvez tenha me enganado.
– Felizes para sempre? – sorriu –. Para sempre?
– Bom, possivelmente não para sempre. Possivelmente, felizes para sempre por um tempinho.
– Poderia aceitar isso.
– Felizes para sempre por um dia ou dois. No mínimo.
– Um dia ou dois? – Fez uma careta. – Eu pensava em um pouco mais. É obvio que não para sempre.
Possivelmente só oito ou talvez nove décadas.
– Não force a coisa.
Riu e me levantou em outro abraço.
– Vamos trabalhar no assunto.
– Sim – disse, sorrindo-lhe –. Estou preparada para trabalhar nisso.

Fim
Kelley Armstrong

SEQUESTRADA
(Stolen)
Mulheres de outro mundo – 02

Tradução do Inglês: Ania


Correção: Sylvapen
Disponibilização/Tradução: Yuna
Revisão Inicial: Lori ley
Revisão Final: Danyela
Projeto Revisoras Traduções
Formatação e Conversão: Baixelivros.org
PRÓLOGO
Odiava o bosque. Odiava seus poços eternos de umidade e escuridão. Odiava o enredo
interminável de árvores e arbustos. Odiava seu aroma de vegetação morta e decadente, animais
mortos, tudo morto, inclusive as criaturas vivas que sem cessar perseguiam sua próxima comida, um
fracasso antes de deslizar-se pelo lento pendente da morte. Logo seu corpo seria um mais empesteando
no fedorento ar, talvez sepultado, talvez abandonado pelos que comem carniça, sua morte pospondo
a deles por outro dia. Morreria. Sabia que, não com a intenção decidida do suicida ou o desespero sem
esperanças do condenado, mas sim com a aceitação simples de um homem que sabe que está sozinho
a horas do passo deste mundo ao seguinte. Aqui neste pestilento, escuro e úmido inferno, morreria.
Na realidade, não procurava a morte. Se pudesse, evitá-la-ia. Mas não podia. Tinha-o tentado,
planejado sua fuga durante dias, conservando sua energia, obrigando-se a comer, a dormir. Então
escapara, realmente, surpreendendo-se a si mesmo. Nunca acreditou que na verdade funcionasse. É
óbvio, realmente não funcionou, só parecera fazê-lo, como uma miragem que brilha no deserto, só que
o oásis não se tornou areia e sol, a não ser umidade e escuridão. Evitou a prisão para encontrar-se no
bosque. Ainda com esperança, deslocara. E deslocado. E ido a nenhuma parte. Eles vinham agora.
Caçando-o.
Podia ouvir o uivo de um cão de caça, rápido sobre seu rastro. Devia haver um modo de enganá-
lo, mas ele não tinha a menor idéia de como. Nascido e criado na cidade, sabia evitar que o detectassem
ali, como fazer-se invisível a vista de todos, como efetuar uma aparição tão medíocre que a gente podia
olhá-lo fixamente e não ver ninguém. Sabia como saudar os vizinhos em seu edifício de apartamentos,
os olhos baixos, um breve assentimento, nenhuma palavra, e se alguém perguntava a respeito dos
inquilinos do 412, ninguém saberia realmente quem vivia ali. Era um casal mais velho? Uma família
jovem? Uma moça cega? Nunca grosseiro ou o bastante amistoso para chamar a atenção,
desaparecendo ao meio das pessoas que muito absortas em suas próprias vidas para notar a sua. Ali
ele era um professor da invisibilidade. Mas aqui, no bosque? Não tinha posto o pé em um desde que
tinha dez anos, quando seus pais finalmente perderam as esperanças de alguma vez fazer dele um
amante da natureza e o deixaram ficar com sua avó enquanto seus irmãos foram de excursão e
acampavam. Estava perdido aqui. Completamente perdido. O sabujo o encontraria e os caçadores o
matariam.
— Não me ajudará, verdade? — disse, dizendo as palavras em sua mente.
Durante um comprido momento, Qiona não respondeu. Ele podia senti-la, o espírito que o guiava,
na esquina traseira de sua mente, o lugar mais afastado em que alguma vez esteve desde que ela se
deu a conhecer pela primeira vez quando ele era um menino muito jovem para falar.
— Quer que eu faça? — perguntou ela finalmente.
— Você não quer. Inclusive se eu o desejo. Isto é o que você quer. Para que me una a ti. Não
deterá isto.
O cão de caça começou a uivar, alegria supurando de sua voz na melodia à medida que se
aproximava de seu objetivo. Alguém gritou.
Qiona suspirou, o som revoou como uma brisa por sua mente. — O que quer que faça?
— Que caminho vai para a saída? — perguntou ele.
Mais silêncio. Mais gritos.
— Esse caminho — disse ela.
Ele sabia que caminho queria dizer ela, embora não pudesse vê-la. Um ayami tinha presença e
substância, mas não forma, uma idéia impossível de explicar a alguém que não era um xamã e tão fácil
para um xamã como entender o conceito água ou céu.
Girando à esquerda, pôs-se a correr. Os ramos açoitavam seu rosto, seu peito nu e seus braços,
deixando vergões como as marcas de um látego. E igualmente auto-infligido, pensou. Parte dele queria
deter-se. Render-se. Aceitar. Mas não podia. Não estava preparado para render sua vida ainda. Os
simples prazeres humanos ainda tinham muito encanto: panquecas inglesas com manteiga e geléia de
morango no Café Talbot, no balcão do segundo piso, na mesa mais apartada à esquerda, o sol em seus
antebraços, uma andrajosa novela de mistério em uma mão, uma taça de café na outro, gente gritando,
rindo na atarefada rua de abaixo. Coisas tolas, Qiona podia cheirá-lo. Ela estava ciumenta, é obvio,
quando era algo que ela não podia compartilhar, nada que o mantivera ligado a seu corpo. Ele queria
unir-se a ela, mas não ainda. Não justo agora. De modo que correu.
— Deixa de correr — disse Qiona.
Ele a ignorou.
— Reduz a velocidade — disse ela. —Simplesmente passeia.
Ele a ignorou.
Ela se retirou, sua cólera um fogo que lhe cintilava no cérebro, brilhante e ardente, então se
reduziu, esperando a flamejar outra vez. Ele deixou de ouvir o cão de caça, mas só porque o sangue lhe
palpitava com muita força. Seus pulmões ardiam. Cada fôlego o atravessava como um jorro de lava,
como tragando fogo. Ignorou-o. Era fácil. Ignorava a maior parte das necessidades de seu corpo, da
fome até o sexo passando pela dor. Seu corpo era só um veículo, um meio para transmitir coisas como
geléia de morango, risada, e luz do sol a sua alma. Agora, logo depois de uma vida de ignorar seu corpo,
pedia-lhe que o salvasse e este não sabia como fazê-lo. De detrás lhe chegou o latido do sabujo. Ouvia-
se mais alto agora? Mais perto?
— Sobe a uma árvore — disse Qiona.
— Não é ao cão ao que tenho medo. É aos homens.
— Reduz a velocidade então. Dá a volta. Confunde-os. Está deixando um rastro direto. Reduz a
velocidade.
Não podia. O final do bosque estava perto. Tinha que está-lo. Sua única possibilidade era chegar
ali antes que o cão o apanhasse. Ignorando a dor, convocou cada vestígio restante da força e saiu
disparado.
— Reduz a velocidade! - gritou Qiona. —Observa.
Seu pé esquerdo golpeou um pequeno montículo, mas se adaptou, elevando seu pé direito para
manter o equilíbrio. Ainda assim, seu pé direito desceu no ar vazio. Enquanto se lançava para frente,
viu o terreno baixo que se encontrava mais abaixo, no fundo de uma pequena ravina corroído por
décadas de correr da água. Lançou-se pelo bordo, convulsionando-se no ar, tratando de imaginar como
aterrissar sem ferir-se, mas novamente não sabia como fazê-lo. Quando golpeou contra o cascalho do
fundo, ouviu o cão. Ouviu sua canção triunfal tão forte que seus tímpanos ameaçaram partindo-se em
dois. Encolhendo-se com grande esforço para conseguir levantar-se, viu três cabeças caninas por sobre
o bordo da ravina, um sabujo, dois enormes cães guardiães. O cão de caça levantou sua cabeça e ladrou.
Os outros dois fizeram uma pausa por só um segundo, logo saltaram.
— Sai! - gritou Qiona. —Sai agora!
Não! Não estava preparado para partir. Resistiu o impulso de lançar sua alma fora de seu corpo,
abraçando-se a si mesmo como se isso o protegesse de fazê-lo. Viu as partes privadas dos cães quando
se lançaram voando por sobre o escarpado. Aterrissaram em cima dele, lhe tirando o último e pasmado
fio de fôlego. Os dentes se afundaram em seu antebraço. Sentiu como o deslocava com força tremendo.
Então ele se elevou. Qiona o arrastava de seu corpo, longe do sofrimento que a morte causava.
— Não olhe atrás - disse ela.
É obvio, fez-o. Tinha que saber. Quando olhou para baixo, viu os cães. O sabujo estava ainda no
alto da ravina, uivando e esperando aos homens. Os outros dois cães não esperavam. Rasgavam seu
corpo em uma explosão de sangue e carne.
— Não - gemeu. —Não.
Qiona o consolou com sussurros e beijos, tentando com eles apartar seu olhar do que ocorria.
Tivesse querido lhe economizar a dor, mas não podia. Ele o sentia quando olhava para baixo, aos cães
que destruíam seu corpo, não sentindo exatamente a dor de seus dentes perfurando-o, mas sim a
agonia da perda incrível e a pena. Tudo tinha terminado. Absolutamente.
— Se não me tivesse posto a passear - disse ele. —Se tivesse deslocado mais rápido...
Qiona o girou então, de modo que pudesse olhar através do bosque. As árvores se estendiam ao
longe, terminando em um caminho que se via tão longe que os carros pareciam insetos avançando
lentamente pela terra. Jogou uma olhada novamente a seu corpo, uma destroçada confusão de sangue
e ossos. Os homens caminhavam pelo bosque. Ele os ignorou. Já não tinham a menor importância. Nada
tinha. Deu a volta para a Qiona e a permitiu levar-lhe.

***

— Morto — disse Tucker ao Matasumi enquanto caminhava para o bloco de celas da estação de
guarda. Sacudiu o barro do bosque de suas botas. — Os cães o apanharam antes que nós o fizéssemos.
— Disse-te que o queria vivo.
— E eu te disse que necessitávamos mais cães de caça. Os Rottweilers são para cuidar, não para
caçar. Um cão de caça esperaria ao caçador. Um rottie assassino. Não sabem fazer outra coisa - Tucker
tirou as botas e as pôs na esteira, perfeitamente alinhadas com a parede, com os cordões colocados
dentro. Logo tomou um par idêntico, mas limpo e as pôs. —Não pode ver que isto realmente importa.
O tipo estava meio morto de todos os modos. Débil. Inútil.
— Era um xamã — disse Matasumi. —Os xamãs não têm que ser atletas olímpicos. Toda sua
energia está em sua mente.
Tucker soprou. —E isso não foi de muita utilidade contra aqueles cães, me deixe te dizer. Não
deixaram nem um pedaço dele maior que meu punho.
Enquanto Matasumi se voltava, alguém abriu de repente a porta e o golpeou no queixo.
— Gritos - disse Winsloe com um amplo sorriso. —O lamento, meninos. Estas malditas coisas
necessitam janelas.
Bauer passou por diante dele. —Onde está o xamã?
— Ele não pôde... sobreviver — disse Matasumi.
— Os cães - acrescentou Tucker.
Bauer sacudiu sua cabeça e seguiu andando. Um guarda agarrou a porta, sustentando-a aberta
enquanto ela a transpassava. Winsloe e o guarda passaram depois dela. Matasumi fechava a marcha.
Tucker ficou na estação de guarda, provavelmente para procurar e disciplinar a quem quer que fosse
que tivesse permitido a fuga do xamã, embora outros não se incomodassem em perguntá-lo. Tais
detalhes estavam por debaixo deles. Por isso tinham contratado ao Tucker.
A porta seguinte era de aço grosso com um cabo alargado. Bauer fez uma pausa diante de uma
pequena câmara. Uma câmara escaneou sua retina. Uma das duas luzes em cima da porta cintilou
verde. Outro vermelho permaneceu em vermelho até que ela agarrou o cabo e o sensor comprovou
suas digitais. Quando a segunda luz trocou a verde, ela abriu a porta e entrou em pernadas. O guarda
a seguiu. Enquanto Winsloe avançava, Matasumi estendeu a mão para alcançar seu braço, mas falhou.
Os alarmes chiaram. As luzes cintilaram. O som de meia dúzia de botas com pregos de aço ressonou do
distante corredor. Matasumi tomou a toda pressa o rádio receptador da mesa.
— Por favor chame-os de volta - disse Matasumi. —É só o Sr. Winsloe. Outra vez.
— Sim, senhor - a voz do Tucker chispou pela rádio. — Talvez pudesse recordar ao Sr. Winsloe
que cada escaneio de retina e de digitais autorizará o passo de só um empregado e um segundo atrás
dele.
Ambos sabiam que Winsloe não necessitava que lhe recordassem nada, já que ele tinha
desenhado o sistema. Matasumi apertou o botão de desconexão da rádio. Winsloe só sorriu
amplamente.
— Lamento-o, moço - disse Winsloe. —Só provava os sensores.
Deu um passo atrás para o exploratório de retina. Depois de que o computador o reconheceu, a
primeira luz girou verde. Logo agarrou o cabo, a segunda luz cintilou verde, e a porta se abriu. Matasumi
poderia ter passado sem o escaneio, tal como o guarda o tinha feito, mas deixou que a porta se fechasse
e seguiu o procedimento apropriado. A entrada de um segundo se pensou para permitir o passo de
cativos de uma seção do edifício a outra, a uma taxa de só um cativo por membro do pessoal. Não
estava programada para permitir que dois membros do pessoal entrassem juntos. Matasumi recordaria
ao Tucker que falasse com seus guardas a respeito disto. Todos eles estavam todos autorizados para
passar por estas portas e deveriam fazê-lo corretamente, não tomando atalhos.
Uma vez passada a porta de segurança, o corredor interior se parecia com um corredor de hotel,
cada lado ladeado de quartos mobiliados com uma cama de matrimônio, uma pequena mesa, duas
cadeiras, e uma porta que conduzia a um banheiro. Não eram alojamentos de luxo em qualquer caso,
mas simples e limpos, como a melhor opção do espectro para um viajante consciente de seu
pressuposto, mesmo que os inquilinos destes quartos não fizessem muitas viagens. Estas portas só se
abriam do exterior.
A parede entre os quartos e o corredor era de um vidro transparente especialmente desenhado
mais duradouro que barras de aço - e muito mais agradável para olhar. Do vestíbulo, um observador
podia estudar aos inquilinos como ratos de laboratório, e nessa realidade era a idéia. A porta a cada
quarto era também de vidro transparente pelo que a vista do observador não se obstruía. Inclusive a
parede de cada banheiro era do Plexiglas claro. As transparentes paredes do banheiro eram uma
renovação recente, não porque os observadores tinham decidido que queriam estudar as práticas de
eliminação de seus sujeitos, mas sim porque tinham encontrado que quando as quatro paredes dos
quartos de banho eram opacas, alguns sujeitos passavam dias inteiros ali para evitar o constante
escrutínio.
A parede de vidro transparente exterior era atualmente vidro transparente em um só sentido.
Tinham debatido isto, vidro transparente em um sentido contra em dois sentidos. Bauer tinha
permitido que Matasumi tomasse a decisão final, e ele tinha enviado a seus ajudantes de investigação
a que se apressam depois de cada tratado de psicologia que encontraram a respeito dos efeitos da
observação continuada. Logo depois de reunir provas, tinha decidido que o vidro transparente em um
só sentido seria menos intrusivo. Ao lhes tirar aos observadores seu visual, agitariam os sujeitos com
menor probabilidade. Equivocou-se. Ao menos com o vidro transparente em dobro sentido os sujeitos
sabiam quando estavam sendo observados. Com o de um só sentido, sabiam que estavam sendo
olhados - nenhum era o bastante ingênuo para confundir o espelho da parede com decoração - mas
não sabiam quando, por isso se encontravam em alarme perpétuo, o qual tinha um efeito
desgraçadamente indiscutível em seu estado físico e mental.
O grupo passou as quatro celas ocupadas. Um sujeito fazia girar sua cadeira para a parede
traseira e se sentou imóvel, não fazendo caso das revistas, os livros, a televisão, a rádio, tudo o que
tinha sido proporcionado para sua diversão. Sentava-se lhe dando as costas ao vidro em um sentido e
não fazia nada. O sujeito em questão levava no edifício quase um mês. Outro inquilino tinha chegado
só esta manhã. Ela também se sentava em sua cadeira, mas lhe dando a cara ao vidro transparente,
fulminando-o com o olhar. Desafiante... Por agora. Isso não duraria.
Tess, um ajudante de investigação Matasumi havia trazido para o projeto, estava de pé frente à
cela do inquilino desafiante, realizando notas em sua caderneta. Ela elevou a vista e saudou com a
cabeça quando eles passaram.
— Algo? - perguntou Bauer.
Tess jogou uma olhada ao Matasumi, desviando sua resposta para ele. — Não ainda.
— Por que ela não pode ou não quer? - perguntou Bauer.
Outra olhada para o Matasumi. — Parece... Eu diria...
— Bem?
Tess inalou. — Sua atitude sugere que se ela pudesse fazer mais, fá-lo-ia.
— Não pode, então - disse Winsloe. —Necessitamos uma bruxa do Aquelarre. Por que nos
incomodamos com esta.
Bauer interrompeu — Nos incomodamos porque se supõe que é muito poderosa.
— Segundo Katzen - disse Winsloe — Se você o acredita. Eu não o faço. Feiticeiro ou não, o tipo
está cheio de merda. Supõe-se que ele nos ajuda a agarrar a estes monstros. Em vez disso, tudo o que
faz e dizer-nos onde olhar, logo toma assento enquanto nossos companheiros aceitam todos os riscos.
Para que? Isto? - Ele enterrou um dedo na cativa. — Nossa segunda bruxa inútil. Se seguirmos
escutando ao Katzen, vamos deixar acontecer alguns verdadeiros achados.
— Como vampiros e lobisomens??? - Os lábios de Bauer se torceram em um pequeno sorriso. —
Ainda está aborrecido porque Katzen diz que não existem.
— Vampiros e lobisomem - resmungou Matasumi. — Estamos em meio de tirar seguramente
uma energia mental inimaginável, a verdadeira magia. Temos o potencial de acesso a feiticeiros,
nigromantes, xamãs, bruxas, cada classe concebível de portadores e acumuladores de magia... E ele
quer criaturas que chupam sangue e uivam para à lua. Conduzimos uma investigação científica séria
aqui, não perseguimos loucos.
Winsloe deu um passo até ficar em frente do Matasumi, seis muito altos polegadas sobre ele .
— Não, menino, você conduz uma investigação científica séria aqui. Sondra procura seu santo graal. E
com respeito a mim, estou nisso por diversão. Mas também financio este pequeno projeto, de modo
que se disser que quero caçar um lobisomem, faria melhor em me encontrar um para caçar.
— Se quer caçar a um lobisomem, então sugeriria que pusesse um daqueles teus videogames,
porque não podemos proporcionar o que não existe.
— Ah, encontraremos algo para que Ty cace - disse Bauer. — Se não pudermos encontrar um de
seus monstros, faremos que Katzen convoque algo apropriadamente demoníaco.
— Um demônio? - disse Winsloe. — Agora isto se está pondo ainda melhor.
— Estou seguro que poderia sê-lo - murmurou Bauer e empurrou a porta da antiga cela do xamã.

DEMONÍACO
— Por favor, me diga que não acredita neste lixo - disse uma voz ao lado de meu ombro.
Olhei a meu companheiro de assento. Na metade dos quarenta anos, traje formal, laptop, uma
pálida linha ao redor de seu dedo anelar de onde tinha removido sua aliança de casamento. Toque
agradável. Muito discreto.
— Não deveria ler uma merda assim - disse ele, mostrando um brilho do bolo com café que
comia. — Isso apodrecerá seu cérebro.
Assenti com a cabeça, sorri cortesmente, e esperei que partisse, ao menos tão longe como
pudesse em um avião voando a vários milhares de pés. Então voltei para a leitura das páginas que havia
imprimido da Web believe.com.
— Realmente diz lobisomem? - disse meu companheiro de assento. — Algo assim como presas
e pele? Michael Landon? Eu fui ao Teenage Werewolf1?
— Michael...?
— Uh, um velho filme. Antes de minha época. Vídeo, você sabe.
Outro assentimento politicamente correto. Outro não tão politicamente correto intento de
voltar para meu trabalho.
— É verdadeira? - perguntou meu companheiro de assento. — Alguém está vendendo
informação a respeito de lobisomem? lobisomem? Que tipo de gente compraria uma merda assim?
— Eu o faria.
Ele se deteve, seu dedo apontando a meus papéis, lutando para convencer-se de que alguém poderia
acreditar em lobisomem e não ser um completo louco, ao menos não se esse alguém era jovem,
feminina, e estaria no assento contínuo durante outra hora. Decidi ajudar.

1
Filme de 1957, iniciador dos filmes de terror para os jovens.
— Por certo - falei, pondo meu melhor acento de loira sem fôlego. — Os lobisomem estão perto.
Os vampiros atracaram cinco minutos antes. Gótico, puf. Eu e meus amigos tentamo-lo uma vez, mas
quando tingi meu cabelo de negro, ficou verde.
— Isso, uh.
— Verde! Pode acreditá-lo? E a roupa que queriam que nos puséssemos? Totalmente incrível.
Assim, Chase disse, e o que há a respeito dos lobisomem? Ele ouviu a respeito deste grupo em Miami,
então lhes falamos e eles disseram que os vampiros já não estavam. Os lobisomem eram a nova
sensação. Chase e eu fomos ver os, e tinham estes trajes, pele e dentes e esse lixo, e nos pusemos essas
coisas, fizemos arrebentar as pílulas e rapidamente fomos lobisomem.
— Uh, realmente? - disse ele, seus olhos lançando-se a procurar uma rota de escape. — Bem,
estou seguro.
— Podíamos correr e saltar e uivar, e saímos a caçar, e um dos tipos agarrou um coelho, e, bom,
sei que isto parece estranho, mas tínhamos tanta fome e o aroma do sangue.
— Poderia me perdoar - interrompeu o homem. — Tenho que usar os serviços.
— Seguro. Você esta um pouco verde. Provavelmente enjoado. Meu amigo Tabby tem esse mau.
Espero que se sinta melhor, porque eu ia te perguntar se queria vir comigo esta noite. O grupo de
homens lobos estará em Pittsburgh. Haverá um Grande Uivo esta noite. Encontrar-me-ei com Chase
ali. Ele é algo assim como meu noivo, você sabe, e é realmente adorável. Acredito que você gostaria.
O homem resmungou algo e se moveu no corredor mais rápido do que alguém pensaria possível
para um tipo que parecia não ter excedido a velocidade de passeio da escola secundária.
— Espere até que te conte sobre o Grande Uivo - o chamei. — São tão espetaculares.
Dez minutos mais tarde, ainda não voltava. Maldita vergonha. Esse enjôo podia ser um
verdadeiro filho de puta.
Voltei para minha leitura; believe.com era um local da web que vendia informação sobre o
paranormal, um eBay 2 sobrenatural. Era atemorizante que tais coisas existissem. Inclusive mais
atemorizante era que eles pudessem obter lucros; believe.com dedicava uma categoria inteira a leiloar
pedaços de ruínas de uma espaçonave que, na última conta, tinha 320 artigos à venda. Os homens-lobo
não tinham sua própria classificação. Estavam incluídos nos “Zumbis, lobisomem e outros Fenômenos
Demoníacos Diversos”. Fenômenos demoníacos diversos? Os Demônios não tinham nada a ver com o
tipo. Eu não era Demônio. Bem talvez expulsar a um desventurado tipo de seu assento no avião não
era exatamente agradável, mas certamente não era demoníaco. Um fenômeno demoníaco diverso o
teria empurrado pela escotilha. Eu logo tinha estado tentada a fazê-lo.
Sim, eu era uma mulher loba, tinha-o sido desde que tinha vinte anos, faz quase doze. A diferença
de mim, a maior parte dos lobisomem nascem lobisomem, embora não possam mudar forma até que
alcançam a idade adulta. O gen que passa de pai a filhas não serve para as mulheres. O único caminho
para que uma mulher se converta em mulher loba é ser mordida por um homem lobo e sobreviver. Isso
é estranho, não a parte da mordida, a não ser a parte da sobrevivência. Eu tinha vivido principalmente
porque fui recolhida pela Manada - que é exatamente o que sonha: uma estrutura social apoiada em
2
eBay é o nome de uma empresa de comércio eletrônico fundada nos Estados Unidos, em Setembro de 1995, por Pierre Omydiar.
Atualmente é o maior site do mundo para a venda e compra de bens, é o mais popular shopping da internet, e possivelmente foi a
pioneira neste tipo de trabalho.
uma manada de lobos, com um Alfa, que protegia o território, e claramente definia regras, cuja regra
número um era que não matamos humanos a menos que seja absolutamente necessário.
Se quisermos conseguir vitaminas, vamos à loja de comida rápida mais próxima – como qualquer
pessoa corrente. Os que não são parte de uma manada de lobisomem, a quem chamo cães mestiços,
comem humanos porque não se incomodam em lutar contra o impulso de caçar e matar, e os humanos
são o objetivo mais abundante. As Manadas de lobos caçam cervos e coelhos. Sim, eu tinha matado e
comido ao Bambi e Thumper. Às vezes me perguntava se a gente não consideraria isso nem sequer
muito espantoso, em um mundo onde um cão arrojado de um carro atrai mais atenção dos meios de
comunicação que meninos assassinados. Mas me desvio.
Como parte da Manada, vivia com o Alfa, Jeremy Danvers, e Clayton Danvers, seu filho adotivo o
segundo no comando, que era também meu sócio e a amargura de minha existência. Mas isto se está
complicando. De volta ao ponto. Como todos outros na Manada, eu tinha responsabilidades. Um de
meus trabalhos era fiscalizar a Internet em busca de sinais de algum cão mestiço que estivesse
chamando a atenção. O lugar que vigiava era believe.com, embora raramente encontrasse algo que
merecesse mais que uma desdenhosa leitura. Em fevereiro passado tinha açoitado algo na Geórgia,
nem tanto porque o problema merecesse alarmes maiores, mas sim porque o Estado de Nova Iorque
tinha estado em meio de uma tormenta de neve de uma semana e qualquer lugar ao sul das Carolinas
soava a céu.
A mensagem que lia agora era diferente. Tinha alarmes ressonando com tanta força que depois de
que o li na terça-feira, tinha deixado uma mensagem para o vendedor imediatamente, e tinha marcado
uma reunião com ele em Pittsburgh para na sexta-feira, esperando três dias unicamente porque não
queria parecer muito impaciente.
A mensagem dizia: “lobisomem. Informação valiosa para vender. Só verdadeiros crentes. Duas
pessoas sem lar assassinadas no Phoenix em 1993-94. Ao princípio cria-se em matanças de cães.
Gargantas rasgadas. Corpos parcialmente comidos. Um rastro canino de grande tamanho encontrado
perto do segundo corpo. Todas as demais pistas apagadas (cães muito prolixos?). Um zoólogo
identificou o rastro como a de um lobo muito grande. A polícia investigou os zoológicos locais e concluiu
que o zoólogo estava equivocado. A terceira vítima foi uma prostituta. Sua companheira de habitação
disse que ela teve um convite para toda a noite. Encontrada morta três dias mais tarde. O mesmo
padrão das matanças anteriores.
A companheira de habitação conduziu à polícia ao hotel usado pela vítima. Encontraram-se
provas de sangue limpa na habitação. Polícia pouco disposta a mudar foco a assassino humano.
Decididamente a terceira vítima foi assassinada por um tipo que seguiu o padrão das matanças
anteriores (Um cão plagiador?). O caso permanece aberto. Todos os detalhes em registro público.
Revisar o Arizona Republic 3 . Uma história fascinante. E completamente verdadeira. Jeremy era
responsável por verificar o periódico procurando matanças e outras atividades potencialmente
lobisomem. No Arizona Republic ele tinha encontrado o artigo que descrevia a segunda matança. A
primeira não tinha saído nos periódicos porque uma pessoa sem lar morta não era notícia. Eu tinha ido
investigar, chegando muito tarde para ajudar à terceira vítima, mas a tempo para assegurar que não
haveria uma quarta. O cão mestiço culpado estava sepultado embaixo de seis pés de areia de deserto.

3
Arizona Republic , um jornal norte-americano para verificar. Tem sido o mais vendido. Os meios de comunicação são bem-vindos.
A Manada não era amável com assassinos de homens.
Não tínhamos estado preocupados com a investigação da polícia. Em minha experiência, os
detetives de homicídios são um grupo brilhante, bastante preparado para saber que não há tal coisa
como lobisomem. Se encontrassem corpos com evidências caninas, veriam uma matança ocasionada
por cães. Se encontrassem corpos com evidências humanas, veriam a matança de um psicopata. Se
encontrassem corpos tanto com evidências humanas como com caninas, veriam um psicopata com um
cão ou um assassinato terminado por um cão. Nunca, nenhuma vez, tinham visto um corpo
parcialmente comido, com rastros de patas, e pele de cão e dito, "Meu Deus, temos um lobisomem!"
Inclusive os tipos estranhos que acreditavam em lobisomem não viam tais assassinatos como
matanças de homens lobos. Estavam muito ocupados procurando bestas enlouquecidas, meio
humanas que uivavam para à lua cheia, bebês roubados de seus berços, e rastros deixados ao azar que
misteriosamente trocam de patas a pés. De modo que quando li algo como isto, tive que me preocupar
do resto da informação que o tipo vendia.
A parte dos “ meios de comunicação são bem-vindos” me preocupou também. Quase todas as
mensagens em believe.com terminavam com “os meios de comunicação não precisam informar-se".
Embora os vendedores fingissem que a advertência era supostamente para desalentar aos jornalistas
dos periódicos populares que destroçariam suas histórias, realmente estavam preocupados de que um
repórter legítimo os pudesse tirar a luz e humilhá-los. Quando ia investigar tais reclamações, usava o
aspecto de ser um membro de uma sociedade paranormal.
Esta vez, já que o vendedor não tinha nenhum problema com os meios, pretendi ser uma
jornalista, o que não era em sua maior parte um exagero, já que era minha profissão, embora meu
trabalho típico fossem artigos ao meio tempo a respeito dos políticos canadenses, o qual
evidentemente nunca incluía nenhuma menção de fenômenos demoníacos, embora isso pudesse
explicar a ascensão dos neoconservadores.

***

Uma vez em Pittsburgh, peguei um táxi, registrei-me em um hotel, deixei minhas malas e me
dirigi à reunião. Supunha-se que me encontraria com a vendedora, Sra. Winterbourne, - num lugar
chamado Chá para Dois. Era exatamente o que parecia, uma loja brega que se vendia chá passado o
meio-dia e almoços ligeiros. O exterior era de tijolos esbranquiçados adornados com rosa pálido e azul.
Filas de antigos bules se alinhavam nos batentes. Dentro havia diminutas mesas bistrô com tecidos de
linho brancos e cadeiras do ferro forjado. Então, depois de todo este trabalho para fazer o lugar tão
repugnantemente doce como era possível, alguém tinha pego um pedaço de cartão marcado a mão na
janela dianteira informando aos transeuntes que a loja também vendia café, café expresso, chocolate,
cappuccino, e “outras bebidas a base de café."
A Sra. Winterbourne tinha prometido me encontrar diante da loja às três e trinta. Cheguei às
três e trinta e cinco, joguei uma olhada dentro, e não encontrei ninguém esperando, então saí outra
vez. Perder o tempo diante de um salão de chá não é como fazê-lo em uma cafeteria. Depois de uns
cinco minutos, as pessoas de dentro começaram a me olhar fixamente. Um garçom saiu e perguntou
se podia "me ajudar." Assegurei-a que esperava a alguém, em caso de que me confundisse com um
vagabundo solicitando pães-doces de sobras.
Às quatro, uma moça se aproximou. Quando dei a volta, ela sorriu. Não era muito alta, meio pé
menor que eu. Provavelmente no princípio de seus vinte anos. Cabelo castanho encaracolado, feições
regulares, e olhos verdes, o tipo de moça mais frequentemente descrita como “agradável”, aquela
cômoda descrição significava que não era uma beleza mas não havia nada que a conduzisse ao reino
da feiúra. Levava posto óculos de sol, um chapéu de asa larga, e um vestido que deixava entrever a
classe de figura que os homens amavam e as mulheres odiavam, as curvas cheias tão caluniadas no
mundo do Jenny Craig4 e Slim-Fast.
— Elena? - perguntou, sua voz um contralto profundo. — Elena... Andrews?
— Uh sim - respondi. — Sra. Winterbourne?
Ela sorriu. —Uma delas. Sou Paige. Minha tia chegará daqui a pouco. Chegou cedo.
— Não - disse, devolvendo um sorriso de alta voltagem. — Você chegou tarde.
Ela piscou, assombrada por minha descortesia. — Não se supunha que encontraríamos às quatro
e trinta?
— Três e trinta.
— Estava segura.
Tirei a impressão de nossa correspondência por e-mail de meu bolso.
— Ah - disse, depois de uma olhada rápida. — Três e trinta. Sinto-o tanto. Devo ter entendido
incorretamente. Me alegro de ter chegado brevemente mais cedo então. Deveria chamar minha tia e
lhe dizer.
Quando tomou um telefone celular de sua bolsa, dava um passo longe para lhe permitir
intimidade, embora com meus sentidos auditivos aumentados poderia ter ouvido a conversa
murmurada a cem pés de distância. Através do telefone, ouviu uma mulher velha suspirar. Prometeu
reunir-se conosco quanto antes e logo lhe fez uma advertência? A sua sobrinha para que não
começasse sem ela.
— Bem - disse Paige, desligando o telefone. — Minhas desculpas outra vez, Sra. Andrews. Posso
lhe chamar Elena?
— Por favor. Deveríamos esperar dentro?
— Realmente, este é um mau lugar para algo como isto. A tia Ruth e eu tomamos café aqui esta
manhã. A comida é grandiosa, mas é muito tranquilo. Podem-se ouvir conversas desde através da sala.
Suponho que deveríamos havê-lo imaginado, mas não somos muito experimentadas nesta classe de
coisas.
— Não?
Ela riu, um sorrisinho rouco. — Suponho que ouve muito disto. As pessoas não querem confessar
que estão imersas nesta classe de situações. Estamos nisso. Não a negarei. Mas este é nossa primeira...
Como o chamaria? Venda? De todos os modos, já que o salão de chá resultou ser uma má opção,
tínhamos um cardápio pedido e tomaremos em nosso hotel. Manteremos a reunião ali.
— Hotel? - Eu tinha pensado que ela vivia em Pittsburgh. Os vendedores geralmente arrumavam
reuniões em sua cidade natal.
— São uns blocos mais à frente. Um passeio fácil. Intimidade garantida.

4
Famosa treinadora muito conhecida em Hollywood, se conseguiu que Kirstie Alley perdesse tanto peso é maravilhosa. Onde poderíamos achá-la?
Grandes sinos de advertência se ouviam. Qualquer mulher, até uma tão desafiada em sua
feminilidade como eu, sabia que não era a melhor opção ir ao quarto de hotel de um estranho. Parecia
um filme de horror onde a heroína vai sozinha à casa abandonada depois de que todos seus amigos
fenecem de mortes horríveis e a audiência sentada grita, “Não vá, cadela estúpida! Bem, eu era a única
gritando, “Continua, mas apanha ao Uzi!" Caminhar de cabeça ao perigo era uma coisa; caminhar
desarmada era outra. Felizmente para mim, estava armada com a força de Super garota.
E se isso não servisse como truque, meu ato do Clark Kent vinha com presas e garras. Uma olhada
a esta mulher, de apenas cinco pés com dois, quase uma década menor que eu, disse-me que não tinha
nada por que me preocupar. É obvio, tinha que simular preocupação. Era o esperado.
— Um, de acordo - respondi, jogando uma olhada por sobre meu ombro. — Eu preferiria um
lugar público. Não queria ofender...
— Não tem importância - disse ela. — Mas todo meu material está no hotel. Detemo-nos
brevemente ali, e se ainda não se sente cômoda, podemos agarrar minhas coisas, nos encontrar com
minha tia, e ir a outra parte. Está bem?
— Suponho - respondi, e a segui rua abaixo.
CHÁ
O hotel era um desses velhos lugares com um enorme vestíbulo classificado como sala de baile,
aranhas de vidro transparente como abajures, e operadores de elevadores vestidos como tocadores de
órgãos. A habitação de Paige estava no quarto andar, a segunda à esquerda do elevador. Abriu a porta
e a manteve aberta para mim. Vacilei.
— Poderia pegar algo sob a porta para mantê-la aberta - disse ela.
Sua cara era toda inocência, mas não me escapou o tom zombador de sua voz, talvez porque eu
era muito mais alta e em melhor estado físico. Inclusive sem a força lobisomem, poderia vencê-la em
uma luta. De todos os modos, isso não queria dizer que não houvesse algum tipo com uma pistola semi-
automática detrás da porta. Todos os músculos do mundo não poderiam deter uma bala à cabeça.
Joguei uma olhada ao redor e dava um passo dentro. Ela tomou uma caderneta de papel da mesa
e a sustentou, fazendo gestos para a porta que se fechava.
— Não será necessário - respondi.
— O telefone está aqui mesmo - Ela levantou o receptor de modo que eu pudesse ouvir o tom
marcado. — Quer que te aproxime isso? Estou bastante segura de que no Pittsburg funciona o serviço
novecentos e onze.
Perfeito. Agora se estava burlando de mim. Pequena e estúpida imbecil. Provavelmente uma
dessas cabeças cheias de ar que estacionavam em subterrâneos desertos de noite e se gabavam de sua
coragem. A impulsividade da juventude, pensei, com a maturidade de alguém quase dois anos passados
em sua trintena.
Quando não respondi, Paige disse algo sobre fazer chá e desapareceu na habitação contigua à
suíte. Eu estava na sala de estar, que tinha uma pequena mesa, duas cadeiras, um sofá, uma poltrona
reclinável e uma televisão. Uma porta parcialmente aberta conduzia ao dormitório. Através dela, pude
ver malas apoiadas contra a parede lateral e vários vestidos pendurados em uma prateleira.
Frente à porta principal havia três pares de sapatos, todos femininos. Nenhum sinal de um
ocupante masculino. Até agora as Winterbournes pareciam ser honestas. Não era que eu realmente
esperasse que algum tipo com uma semi-automática saltasse desde detrás da porta. Eu era suspicaz
por natureza. Ser um lobisomem te faz isso.
Quando me sentei à mesa, vi os pratos do salão de chá. Sanduíches, bolachas, e massas. Poderia
ter devorado três pratos como esses de um bocado. Outra coisa de lobisomem. Como a maioria dos
animais, passamos uma grande parte de nossas vidas apanhados nas três forças da sobrevivência
básica: comer, lutar, e... reproduzir-se.
A parte de alimento era uma necessidade. Queimamos calorias como lenha em um incêndio,
sem um abastecimento constante, nossa energia ficava em nada. Tinha que tomar cuidado quando
comia diante de humanos. Não era justo. Os tipos podem tragar-se três Big Macs e ninguém
pestanejaria. Eu obtinha olhadas estranhas se terminava dois.
— Então, respeito a essa informação que vende - respondi quando Paige voltou. — É tão boa
como a do caso do Phoenix, verdade?
— Melhor - disse ela, pondo a bandeja do chá sobre a mesa. — É a prova de que os lobisomem
existem.
— Você acredita em lobisomem?
— Você não?
— Acredito em tudo o que permita vender revistas.
— Então não acredita em lobisomem? - Seus lábios se torceram num desagradável meio sorriso.
— Não quero ofender, mas esse não é meu tema. Escrevo histórias. Vendo-as revistas. A gente
como você as compra. Noventa por cento dos leitores não acredita. É uma fantasia inócua.
— Melhor mantê-lo nesse âmbito, verdade? Fantasia inócua. Se a gente começar a acreditar em
lobisomem, então tem que admitir a possibilidade de outras coisas, como bruxas e feiticeiros e xamãs.
Para não mencionar vampiros e fantasmas. Então haveria demônios, e esse é um ninho de vermes que
não quer abrir.
Mais perfeito ainda. Agora definitivamente se estava burlando de mim. Acaso alguém pegou um
grande pôster em minhas costas que diz “Burlem-se de mim”? Talvez estivesse tomando tudo isto de
maneira mais pessoal do necessário. Olhem-no desde seu ponto de vista. Como uma crente, ela
provavelmente considerava os incrédulos da mesma forma em que estes a consideravam a ela, como
uma patética ignorante. E aqui estava eu, pronta para comprar informação para perpetrar um mito no
que não acreditava, vendendo minha integridade pelo aluguel do próximo mês. Uma puta jornalística.
Não merecia umas poucas brincadeiras por isso?
— Onde está a informação? - perguntei tão cortesmente como pude.
Ela estendeu a mão para a mesa de lado, onde havia uma pasta. Durante um momento, ela a
folheou, com os lábios apertados. Então tomou uma folha e a pôs entre nós. Era uma fotografia da
cabeça e os ombros de um homem de meia idade, asiático, um nariz chato e uma boca áspera suavizada
por uns olhos parecidos com os de um gamo.
— Reconhece-o?
— Não acredito - respondi. —Mas é uma cara bastante ordinária.
— E este? Não é tão ordinário.
A seguinte foto era de um homem de uns trinta anos. Levava seu cabelo vermelho escuro preso
num longo rabo-de-cavalo, uma classe de moda que não usaria ninguém com mais de vinte e cinco
anos. Como a maior parte dos tipos que continuavam com seu estilo de penteado do passado, parecia
ser compensado por uma frente cuja linha de cabelo já tinha retrocedido mais que a Baía de Fundy5
com a maré baixa. Sua cara era branda, alguma vez de rasgos quase formosos que se desvaneceram
tão rápido como seu cabelo.
— Agora, o reconheço - respondi.
— Sim?
— É obvio. Vamos. Teria que viver no Tíbet para não reconhecê-lo. Infernos, até os jornalistas
no Tíbet lêem Teme e Newsweek 6 . Ele foi mencionado pela imprensa, o que, cinco vezes no ano
passado? Ty Winsloe. Milionário e um extraordinário viciado nos computadores.
— Então alguma vez o conheceu pessoalmente?
— Eu? Eu gostaria. Não importa quantas entrevistas outorgue, um Ty Winsloe exclusivo poderia

5
Localizada em Canadá, Nova Inglaterra, é famosa pela migração de baleias e a pesca de lagostas.

6
Jornais de grande circulação.
ser um salto enorme na carreira de uma repórter sem nome como eu.
Ela franziu o cenho, como se eu tivesse respondido a pergunta incorreta. Em vez de dizer algo,
ela fez bater ambas as fotografias diante de mim e esperou.
— De acordo, rendo-me - respondi. —O que tem que ver isto com as prova dos lobisomem? Por
favor, por favor, por favor, não me diga que este tipo é lobisomem. Esse é seu jogo? Ponho uma história
decente na Web, atraio a algum jornalista estúpido aqui, e armo uma história enorme sobre milionários
lobisomem?
— Ty Winsloe não é um lobisomem, Elena. Se ele o fosse, você saberia.
— Como...? - Sacudi a cabeça. —Talvez haja alguma confusão aqui. Como te disse em meu e-
mail, esta é minha primeira história de lobisomem. Se houver peritos no campo, é um pensamento
atemorizante, mas não sou um deles.
— Você não está aqui para escrever uma história, Elena. É uma jornalista, mas não essa classe.
— Ah - respondi. —Então, me diga por que estou eu aqui?
— Para proteger a sua manada.
Pisquei. As palavras se entupiram em minha garganta. Enquanto o silêncio se estendia durante
três pesados segundos, lutei para enchê-lo. —Meu… meu o que?
— Sua manada. Outros. Outros lobisomem.
— Ah, então eu sou um - forcei um sorriso amável — um lobisomem.
Meu coração pulsava com um ruído surdo tão forte que eu podia ouvi-lo. Isto nunca me tinha
passado antes. Tinha gerado suspeitas, mas só pergunta gerais sobre meu comportamento do estilo,
“O que fazia no bosque depois do anoitecer?”, nunca algo que me acusava de ser um lobisomem. No
mundo normal, a gente normal não ia por aí acusando a outra gente de ser lobisomem. Houve uma
pessoa, uma só pessoa de tinha estado muito perto, que realmente me viu mudar de forma, convenceu-
se de que tinha estado alucinando.
— Elena Antonov Michaels - disse Paige, —Antonov que é o sobrenome de solteira de sua mãe.
Nascida em 22 de setembro de 1968. Ambos os pais mortos em um acidente de carro em 1974. Criada
em numerosas famílias adotivas em Ontario. Assistiu à Universidade de Toronto. Abandonou em seu
terceiro ano. Voltou vários anos mais tarde para completar uma licenciatura em jornalismo. Razão do
abandono? Uma mordida. De um amante. Clayton Danvers. Sem segundo nome. Nascido em 15 de
janeiro de 1962.
Não ouvi o resto. O sangue palpitava em meus ouvidos. O chão se balançou baixo de mim.
Agarrei o bordo da mesa para me estabilizar e lutei para me manter em cima de meus pés. Os lábios do
Paige se moviam. Não ouvia o que dizia. Não me importava.
Algo me lançou de costas para trás, sobre a cadeira. Havia uma cadeia de pressão ao redor
minhas pernas como se alguém as atasse. Sacudi-me, mas não podia me manter de pé. Olhei para baixo,
e não vi nada que me retivera.
Paige estava de pé. Afirmava-me contra a cadeira. Minhas pernas não se deslocavam. O pânico
se filtrou em meu peito. Empurrei-a para trás. Isto era uma brincadeira. Uma simples brincadeira.
— O que seja que esteja fazendo - disse. —Eu sugeriria que o detivera. Vou contar até três.
— Não trate de ameaçar...
— Um.
— … me, Elena. Posso fazer…
— Dois.
— …. muito mais que afirmar…
— Três.
—… você a essa cadeira.
Estrelei ambos os punhos até o final da mesa e a enviei voando pelo ar. Quando a pressão em
minhas pernas desapareceu, saltei através do espaço agora vazio entre nós e fechei de repente ao Paige
contra a parede. Ela começou a dizer algo. Agarrei-a pelo pescoço, detendo as palavras em sua
garganta.
— Bom, parece que cheguei bem a tempo - disse uma voz atrás de nós.
Olhei por sobre meu ombro para ver uma mulher caminhar em volta do quarto. Tinha ao menos
setenta anos, pequena e rechonchuda, com cabelo branco, um vestido de flores, e um colar de pérolas
a jogo, e um par de pendentes, a imagem perfeita de uma avó de TV da década de 1950.
— Sou Ruth, a tia avó do Paige - disse ela, com tanta serenidade como se eu estivesse desfrutando
de do chá com sua sobrinha em vez de estrangulá-la. —Tratando de dirigir os assuntos por sua própria
conta outra vez, Paige? Agora olhe o que tem feito. Essas contusões demorarão semanas em
desvanecer-se e não trouxemos nenhum pulôver de pescoço de cisne.
Soltei meu apertão ao redor do pescoço do Paige e lutei para dar uma resposta conveniente.
Não me ocorreu nada. O que poderia dizer? Exigir uma explicação? Muito perigoso, implicava que eu
tinha algo que esconder. Melhor era atuar como se a acusação do Paige fora uma loucura e eu tivesse
que sair correndo deste inferno. Uma vez longe da situação, poderia calcular meu seguinte movimento.
Lancei a Paige um olhar cauteloso de uma pessoa que está tratando com alguém de prudência limitada
e dava um passo para a porta.
— Por favor, não o faça - Ruth pôs uma mão em meu braço, firme mas não retendo. —Devemos
falar contigo, Elena. Possivelmente posso me dirigir melhor com isto.
Para ouvir isso, Paige avermelhou e olhou longe. Soltei meu braço do apertão de Ruth e dava
outro passo para a porta.
— Por favor, não o faça, Elena. Posso te reter, mas prefiro não recorrer a isso.
Investi a porta e agarrei o cabo com ambas as mãos. Ruth disse algo. Minhas mãos se
congelaram. Tirei-as do cabo, mas não ficavam livres. Tratei de girar o cabo. Meus dedos não
respondiam.
— Este é o modo em que o conjuro deveria trabalhar - disse Ruth, sua voz e cara irradiando a
calma de um professor ensinando a um menino recalcitrante. —Não se romperá até que eu dê a ordem.
Disse umas palavras. Minhas mãos ficaram livres, me deixando desequilibrada. Quando tropecei
para trás, Ruth pôs uma mão para me estabilizar. Recuperei-me e me afastei com rapidez.
— Por favor, fica - disse ela. — Os conjuros para imobilizar têm sua utilidade, mas não são muito
civilizados.
— Conjuros imobilizadores? - respondi, flexionando minhas mãos ainda intumescidas.
— Bruxaria - disse Ruth. —Mas estou segura que já te tinha imaginado isso. Se quer acreditar é
um assunto totalmente distinto. Comecemos pelo princípio, De acordo? Sou Ruth Winterbourne. Essa
impetuosa moça atrás de você é minha sobrinha Paige. Temos que te falar.
HOCUS-POCUS 7

Quis correr. Lançar-me através da porta, aberta, correr e não parar até que Ruth e Paige
Winterbourne ficassem atrás, não só fora de minha vista, mas também fora de minha cabeça também.
Quis correr até que minhas pernas doessem e meus pulmões estalassem e não pudesse pensar somente
em nada mais que me deter, incapaz de gastar a energia de um momento tentando entender o que
tinha passado. Não era a resposta mais amadurecida. Reconheço-o. Mas era o tipo de resposta em que
sou boa. Correr. Tinha-o estado fazendo toda minha vida. Inclusive quando não corria, quando cravava
os calcanhares e encarava meus medos, sempre havia uma parte de mim correndo tão rápido como
podia.
Sabia o que tinha que fazer. Ficar e resolver isto, negar os ditos de Paige e descobrir quanto
sabiam estas mulheres. Se Paige simplesmente houvesse dito que sabia que eu era um homem lobo,
como tentando me incomodar com isso, poderia havê-lo dirigido. Mas quando ela recitou minha
biografia, mesmo que esta fora acessível através dos arquivos públicos, a violação que isso significava
era algo mais pessoal. Então, tirar a luz minha história com o Clay tão normalmente como se estivesse
recitando minha data de nascimento, bom, cada fibra de meu ser gritou para que corresse, saísse dali,
pusesse um pouco de distância, que tratasse com isto mais tarde. Só a demonstração de poder da Ruth
me impediu de correr. Isto também me deu um momento para me deter e pensar.
Queria voltar com o Jeremy e dizer que duas estranhas me tinham acusado de ser um homem
lobo e eu me tinha escapado? Oh, ele não estaria zangado. Ele entenderia. Isso era muito pior. Não
queria que ele entendesse por que eu tinha escapado.
Queria que ele estivesse orgulhoso de mim. Sim, sei, sou muito velha para procurar a aprovação
de uma figura paterna substituta, mas assim é a coisa. Depois de que Clay me mordeu, Jeremy tinha
cuidado de mim, pondo sua vida em suspense para manter-se a meu lado. Cada vez que empreendia
uma destas investigações, eu estava demonstrando a Jeremy que ele não tinha cometido um engano,
que provava meu valor para a Manada, devolvendo seus esforços multiplicados por dez. Agora,
enfrentando pela primeira vez com a exposição iminente, ia voltar para Nova Iorque e dizer, "Lamento-
o, Jer, mas não pude tratar com isso"? Não nesta vida.
Se eu corresse, seguiria correndo. Tudo pelo que tinha trabalhado tão duramente durante o
último ano, me obrigando a aceitar minha vida no Stonehaven, com a Manada, com o Clay, veria-se
arrojado a qualquer parte, e eu voltaria a ser tão miserável e medrosa como o tinha sido faz dezoito
meses.
De modo que fiquei. Ruth e eu convimos um acordo. Eu a escutaria até o final, não admitindo
nada. Se eu quisesse, poderia tratar sua história como as divagações de uma anciã senil e fingir que
ficava ali só para ser cortês.
Sentamo-nos à mesa, Paige no lado oposto, com a cadeira retirada. Não havia dito uma palavra
desde que sua tia chegou.
—Acredita em bruxas? - perguntou Ruth quando me serve uma taça de chá.

7
Hocus-Pocus, Abracadabra. Jogo de Mãos, Feitiço.
—Wicca8? - respondi com cuidado.
—Não. Bruxas. Bruxas hereditárias. Como lobisomens hereditários.
Ela levantou uma mão quando comecei a protestar.
—Não estou pedindo que admita nada, recorda? Está sendo indulgente com uma velha dama.
Bom, se não acredita, ou não o fazia, em bruxas, então tenho que assumir que não acredita em nada
mais fantástico. De acordo, sigamos. Vou começar desde o começo. Finjamos que existem as bruxas e...
outras coisas. Finjamos, também, que estes seres, chamam-lhes raças, sabem uma sobre a outra e se
reúnem periodicamente para distribuir informação e trabalhar com a exposição potencial. Agora, em
certa ocasião, os lobisomens foram parte desta colaboração…
Abri a boca, mas Ruth outra vez levantou sua mão.
—De acordo - disse Ruth. —Não necessita uma lição de história. Não viemos aqui para isto. Tal
como Paige deveria haver dito, viemos para te advertir. Alcançou a chegar a essa parte?
—Mostrei-lhe as fotos - disse Paige. —Não chegamos à explicação.
—Me permita então. Estes homens estiveram nos dando alguns problemas. Muitos problemas.
Confrontações, acusações, sequestros. Pareceria que sabem mais do que deveriam.
— Esses dois? - respondi, assinalando a pasta. — Ty Winsloe? Sequestro de bruxas? Está-me
tirando o sarro. Isto não tem sentido.
—Que outra coisa poderia ser? - disse Ruth com um ligeiro sorriso. —Houve um tempo em que
todos tivemos que nos preocupar com as fogueiras e os Grandes Inquisidores. Agora temos a malvados
magnatas da computação. Não entrarei em detalhes, em parte porque suspeito que não fique muito
tempo para escutar e em parte porque espero que uma pequena curiosidade possa trazer para sua
manada a nossa reunião.
—Eu realmente…
— Eles sabem sobre os lobisomem e os buscam, tal como procuram o resto de nós.
Inclinei-me para trás em minha cadeira e olhei de Ruth a Paige. Ruth me olhou, seus olhos verdes
brilhantes e agudos. Paige pretendia me olhar, mas esses mesmos olhos verdes, nela estavam
distantes, me olhando, mas não me vendo.
— Sabe como isto sonha, verdade? - respondi. —Finjamos que sou uma lobisomem. Vocês dois
me atraem aqui com alguma história de merda e me dizem que são bruxas. Não só bruxas, mas também
parte de alguma classe de Nações Unidas sobrenaturais. Como delegadas destas Nações Unidas, vocês
decidiram ficar em contato comigo com esta história a respeito de imbecis e demoníacos viciados na
computação…
—Não são demoníacos - disse Ruth. —Como respondi, são humanos.
—Vocês realmente levam este assunto a sério, verdade?
—É sério - disse Paige, seu olhar congelado. —Talvez cometemos um engano te escolhendo…
—E a respeito disto. Por que me escolheram? Ou puseram essa historia em Internet e assumiram
que só um lobisomem responderia? Digamos que esta conspiração existe e há tipos por aí procurando

8
Diz Wilkipedia: Wicca é uma religião neopagã. Pretende ser, ao igual que outras tradições (como o Ásatrú e o druidismo), uma recuperação de
antigas tradições pagãs de Europa existentes antes da chegada e imposição do cristianismo. No entanto, a diferença destas, que são reconstruções
de religiões pagãs antigas adaptadas aos tempos atuais, Wicca é uma nova religião que se baseia mais na tradição esotérica e mágica ocidental do
que nas religiões da Antigüidade.
lobisomem. O que deve detê-los de responder a seu anúncio?
—Realmente recebemos muitas respostas - disse Ruth. —Mas esperávamos a tua.
— A minha?
— Faz alguns anos, nosso conselho teve uma disputa com um homem lobo. Não um de sua
manada. Um guia de ruas. Guardamos informação dele, se por acaso alguma vez tivéssemos que nos
pôr em contato com os lobisomem. Quando este problema começou, encontramo-lo e... o persuadi
para que compartilhasse um pouco de informação conosco. Ele sabia sobre seu pacote, quem o
conduzia, quem pertencia ao grupo, onde viviam. Além disso, ele sabia tudo sobre ti e sua história.
Sendo a única lobisomem feminina, parece que obteve um status legendário entre os de sua raça.
Ela sorriu. Devolvi-lhe um olhar completamente em branco.
Ruth continuou, — Ele sabia que procurava informação de lobisomens reais, observando e
procurando seu mau comportamento. Que interessante. Nós fazemos o mesmo, fiscalizamos as bruxas
que deixaram o Aquelarre. Então, decidimos tratar de nos pôr em contato contigo antes que tentar o
contato direto.
— Por que eu?
—Você é a parte da manada. Também, sendo a única fêmea, parecia uma... melhor opção de
contato. Possivelmente mais fácil para falar que seus homólogos machos.
Em outras palavras, mais crédula? Ou uma menor probabilidade de responder à ameaça com
violência? Se realmente tivessem querido isso, deveriam ter ido diretamente ao topo. Jeremy era o
mais equilibrado entre nós. Era, também, o de mente mais aberta. Ele teria sido a melhor opção para
esta reunião. Não teria tido mais sentido, de todos os modos, levarem suas preocupações diretamente
ao Alfa? A menos que, pela razão que fosse, não queriam fazer isso.
—Ainda é estranho como sonha tudo isto - respondi. —Esquece como e por que me escolheram.
Trazem-me aqui, dizem algumas linhas de Filme classe B do estilo, “sabemos quem é você”. O lamento,
mas estou procurando a câmara escondida. Digamos, acredito em todo este jogo. Por que, se estas
Nações Unidas não incluírem os lobisomem, quereriam, de repente, ficar em contato com eles agora?
Se vocês forem bruxas, devem ter escapado dos meninos maus antes.
—Arriscamos a exposição ao mundo tão frequentemente como o faz você - disse Ruth. —Mas
sempre era uma raça de uma vez. Isto é diferente. Isto implica a todos, que é pelo que devemos nos
unir.
—Um por todos e todos por um - resmunguei.
— Isto não é uma brincadeira - disse Paige.
—Ainda não acredita em nós, verdade? - perguntou Ruth. —Nem sequer na parte de bruxas,
apesar de nossa pequena demonstração.
—Poderíamos fazer uma maior - disse Paige. —Digamos algo assim como fechar sua boca.
Permanentemente.
—Paige - advertiu Ruth. —Perdoa a exuberância juvenil de minha sobrinha. Se quisesse,
entretanto, eu poderia, certamente, fazer uma melhor demonstração. Nada tão pouco civilizado como
une um feitiço para reter, é obvio.
—Não, obrigada - respondi.
— Por quê? - perguntou Paige. —Por que não acredita? Ou porque não quer fazê-lo?
—Fiz o que respondi que faria. Fiquei. Escutei. Agora parto.
Quando me coloquei em pé, Ruth tocou meu braço — Ao menos diga a seu líder o que havemos
dito. Reunimo-nos em dois dias. Os delegados das raças principais deverão falar ali do problema. Nós
gostaríamos que sua manada se unisse a nós. Aqui está meu cartão.
Deu-me um cartão de visita. Quase esperei ver “Ruth Winterbourne, Feitiços e Poções.” Em troca,
era um cartão para “Desenhos Winterbourne, Indumentária de Encargo para Mulheres.” A direção
anexa estava em Massachusetts, decepcionante que não fosse Salem.
— Sim - disse Ruth com um sorriso. —É um verdadeiro cartão de visita para um verdadeiro
negócio. Não deixam muito dinheiro os malefícios nestes dias.
—Não…
— Ponha em seu bolso e fingiremos que vais atirar uma vez que esteja fora de vista. Se chamar,
use meu número de telefone celular. Dirigimo-nos diretamente daqui à reunião em Vermont. Não seria
muito longe para conduzir de Nova Iorque se decide ir. Espero que o faça.
Resmunguei algo evasivo, meti no bolso o cartão, e parti.

***

Mais tarde, passei um pouco de tempo pensando em bruxas com teorias de conspiração
multimilionárias. O pensamento de outros seres “sobrenaturais” me intrigava, embora eu achasse difícil
de acreditar.
De acordo, ceticismo de alguém que cotidianamente se transformava em um lobo pode parecer
algo hipócrita, mas não podia evitá-lo. Tinha sido um lobisomem durante quase seis meses antes
acreditar que efetivamente existiam. Tinha mudado de forma, tinha visto o Jeremy mudar, e ainda
assim não conseguia me convencer de que era verdadeiro.
Mecanismos severos de negação. Talvez fosse mais fácil acreditar que os lobisomem fossem uma
aberração antiga da natureza, da forma em que algumas pessoas, eu mesma incluída, acreditam que
o universo contém só um planeta povoado. O pensamento de zumbis e vampiros vagando pela terra
era muito estranho. Mas Ruth não tinha mencionado zumbis ou vampiros. Só havia dito bruxas e...
outras coisas.
Eu poderia acreditar em bruxas. A idéia de que algumas pessoas poderiam controlar as energias
da terra era muito mais fácil de aceitar que a idéia que, suponhamos, algumas pessoas pudessem
transformar-se em lobos.

***

Quando cheguei a meu quarto do hotel, o telefone soava. Fiquei parada na entrada,
contemplando a possibilidade de uma meia volta rápida, logo me resignei a responder. Além disso,
podia não ser quem esperava.
— Que demônios faz em Pittsburgh?! — rugiu antes que eu alcançasse a pôr o receptor em meu
ouvido. Procurei o botão de volume do telefone, mas não pude encontrá-lo, e considerei
“acidentalmente” golpear o aparelho.
—É agradável ter notícias suas, também, Clayton. Meu vôo esteve bom, obrigada. Como está
Detroit?
—Mais quente que o Hades - resmungou ele, sua voz lenta do Sul ressuscitou quando sua voz
deixou cair os decibéis até um nível de “não-romper-tímpanos”. — Cheira pior, também. Por que não
me chamou e disse que ia a Pittsburgh?
—Porque teria insistido em me encontrar aqui. Não necessito…
—Muito tarde. Já estou fazendo as malas.
—Não necessito sua ajuda, e não necessito seu amparo.
—E minha companhia, querida? Suponho que não necessita isso tampouco.
—Dê-me um descanso. Só partiu ontem, e me reunirei contigo na segunda-feira.
—Então posso te economizar dois vôos. Conduzirei esta noite, e quando tiver terminado ali,
posso te trazer de volta a Detroit.
—Não.
—Só trato de ser…
—Controlador, possessivo, super protetor.
—Senti falta de você.
— Bom intento. A resposta ainda é não. Posso dirigir isto.
— Que exatamente está dirigindo?
—Amanhã lhe conto - disse. —Depois que fale com o Jeremy.
— Algo bom?
—Talvez.
— Divertido? - perguntou.
—Definitivamente, possibilidades de caos.
—Vamos. Conte-me.
—Mais tarde.
—Brincalhão - grunhiu.
— Quer ouvir a brincadeira? - perguntei.
—Seguro, se me quiser em Pittsburgh em uma hora.
—É uma viagem de seis horas.
— Quer apostar?
Continuamos assim por um momento, quarenta e cinco minutos, realmente. Antes de que
terminássemos a conversa, Clay tinha concordado, a contra gosto, a não me seguir a Pittsburgh. Tenho
que confessar que desde tínhamos estado juntos de novo, ele realmente tinha estado trabalhando em
ser menos controlador, possessivo, e super protetor. Não era que ele se fora e me deixasse conduzir
uma vida semi-autônoma.
Tínhamos dormitórios separados, mas para o que servia. Ele ainda esperava que eu estivesse
com ele às vinte e quatro horas do dia. Inclusive ter dormitórios separados era uma brincadeira. Ter
meu próprio quarto só significava que tinha um lugar para armazenar minhas coisas. Em qualquer lugar
que eu dormisse, Clay dormia.
Como parte de meus próprios esforços para salvar a relação, tinha que admitir que este costume
de andar juntos era a parte da natureza de Clay. Mordido sendo um menino, tinha esquecido alguma
vez ter sido humano, e nada em suas experiências posteriores o tinha convencido de estar perdendo
algo. Era mais lobo que humano. A respeito da coisa de ter que estar juntos a toda hora, Clay sustentaria
que nunca veria um lobo dizer a seu companheiro que tinha que “afastar-se por um tempo” ou que
necessitava de “um pouco de espaço pessoal.” Eles formam uniões por vida que pareciam funcionar
bem só depois de uma penosa terapia de casais.
Clay e eu tínhamos estado juntos quase doze anos. Bom, “juntos” era um leve exagero. Tínhamos
começado a sair fazia doze anos, logo ocorreu a mordida. Depois de dez anos de ricochetear daqui para
lá, tinha-me quebrado e me tinha confessado que o amava e não podia viver sem ele, toda essa coisa
romântica dos Harlequins9. De todos os modos, nossa relação era dificilmente da classe que algum
Harlequim permitiria. Clay e eu fomos juntos como o fogo e calor intenso da gasolina, incríveis foguetes,
e, de vez em quando, destruição devastadora. Havia-me sido difícil compreender que assim era como
fomos.
Não era uma relação tranquila, estável, nunca o seria, e, francamente, nenhum de nós queria
isso. A domesticidade ditosa era para outra gente. Que nos dêem foguetes e explosões, tanto da
variedade positiva como da negativa, e fomos tão ditosos como podíamos sê-lo.

***

Não pude dormir essa noite.


Jazia na cama, contemplando o teto, rechaçando a inquietação que me impedia de fechar os
olhos.
Primeiro, vinha a questão das bruxas. Eram bruxas ou não? De uma ou outra maneira, não confiava
em seus motivos. Muito do que haviam dito não tinha sentido. Deveria ter chamado ao Jeremy logo
que tinha deixado o hotel. Ele não ia estar feliz quando averiguasse que eu tinha esperado um dia
inteiro para lhe contar. Ao menos duas pessoas sabiam que eu era um lobisomem e eu não o havia dito
nem ao Clay nem ao Jeremy. Onde infernos estava minha cabeça? Deveria chamar Jeremy agora? Eram
2 horas e 45 da manhã. Meu vôo saía às 8 horas. Isto podia esperar. Ou não? Devia?
Fui dar uma volta para esclarecer minhas idéias. Trotar, quero dizer. Mudar para lobo e correr
por Pittsburgh podia ser divertido, mas não era, definitivamente, a classe de excitação que necessitava.
Pus shorts e uma camiseta, deixei meu quarto do hotel, e segui um labirinto de becos para uma zona
industrial deserta. As cidades grandes não eram o lugar para trotar de noite. Qualquer que visse uma
moça correndo por Pittsburgh às 3 da manhã procuraria o tipo que a perseguia.
Tinha trotado aproximadamente um quarto milha quando compreendi que alguém me seguia.
Não era uma grande surpresa. Como respondi, as mulheres jovens que fazem footing de noite chamam
a atenção, geralmente a tipos da classe incorreta. Certamente se algum tipo saltasse sobre mim,
poderia fechá-lo de repente contra a parede de tijolo mais próxima e haveria um violador potencial
menos no mundo. Mas isso significava um corpo que limpar em uma cidade estranha. Não só isso, mas
não podia fazê-lo.
Posso falar sobre fazê-lo, mas não sou do tipo que o faça. Inclusive se algum assaltante me
disparasse uma arma e tivesse que matá-lo, lamentá-lo-ia. Perguntar-me-ia se acaso tinha reagido de

9
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AMÉRICA LATINA, FUNDARAM A HARLEQUIM BOOKS, PRIMEIRA EDITORA BRASILEIRA ESPECIALIZADA EM LITERATURA FEMININA.
maneira exagerada, se talvez este fora a primeira ofensa do tipo e um bom susto o teria posto em
vereda, se acaso ele tinha uma esposa e meninos em casa e só queria uns dólares para comida. Melhor
evitar entrar em uma situação onde tal ação poderia ser necessária. Os lobos selvagens sobreviviam
evitando a confrontação com os humanos. Os lobisomens preparados faziam o mesmo.
Quando ouvi passos suaves correndo perto, primeiro me assegurei que não era uma
coincidência. Girei nas três ruas seguintes e dava voltas ao redor de onde tinha estado. Os passos
seguiram. Depois pus a favor do vento e comprovei o aroma, se por acaso fosse outro lobisomem. Como
a única lobisomem feminina em um país com dúzias de machos, era considerada um troféu.
O fato de que meu amante era o lobisomem mais temido e odiado pelos arredores só se
acrescentava a meu valor. Se os cães de ruas não queriam transar, queriam foder Clay e a possibilidade
para fazer ambas as coisas ao mesmo tempo era mais do que alguns podiam resistir. Embora não sabia
de nenhum guia de ruas na área de Pittsburgh, eles eram um grupo nômade e meus expedientes
estavam sempre atrasados.
Meu perseguidor não era um guia de ruas. Os lobisomens têm um aroma subjacente distinto e
este tipo não o tinha. Era um homem. Além disso, seu aroma não me entregava muito para seguir. Não
usava loção pós barbear.
Um pouco de aroma de corpo, como se seu desodorante tivesse alcançado seu limite de tempo.
Por outra parte, era limpo. Muito limpo. Não esperava isto de um violador ou assaltante. Sim, sei que
não todos os degenerados são vagabundos desalinhados, sem barbear. A maioria não o é. Mas
tampouco são, geralmente, fanáticos da higiene. Minha curiosidade despertou, e decidi conseguir um
olhar em meu caçador.
Ainda impaciente por evitar a confrontação, tentei obter um olhar de longe. Para encontrá-lo,
detive-me no meio da rua vazia, inclinei-me, e atei de novo meus sapatos. Então resmunguei sob meu
fôlego, amaldiçoando-os por haver-se desfeito, e os refiz. Para o terceiro nó, o tipo-caçador se deteve,
provavelmente me amaldiçoando por me deter no meio da rua em vez de em alguma esquina
sombreada e agradável. Inclinou-se em sua esquina, ocultando-se longe do aspecto impreciso de
movimento que ainda havia na outra rua. Escondia-se no nicho de um edifício a minha esquerda.
Endireitando-me, lancei-me a fazer flexões com o tendão da curva. A metade de caminho de
fazer o segundo grupo de flexões, pus-me a correr. Correndo a tudo o que podia, meti-me no beco
junto ao edifício onde meu caçador se escondia. Quando ele correu depois de mim, eu estava atrás do
edifício adjacente. Parei em uma entrada traseira e esquadrinhei os arredores. Uns metros a minha
esquerda, vi o que queria. Algo escuro e parecido a um míssil.
Meia dúzia de garrafas de cerveja estava dispersa ao redor da porta. Agarrando a mais próxima,
lancei-a pelo beco traseiro. Estrelou-se em algum lugar atrás do seguinte edifício. Por sorte, meu
caçador não era surdo. Quando alcanço o final do beco do lado, deu volta para ruído e se dirigiu naquela
direção, afastando-se de mim.
Mantendo-me nas sombras, olhei ao homem quando se afastou. 1.80 ou 1.85 de altura. Peso
médio. Vestido com calças escuras e jaqueta. Uma espécie de chapéu. Boina de beisebol? Ele reduziu a
marcha, fez uma pausa, observando o entorno. Então ele ficou de barriga para baixo sobre o chão e se
arrastou lentamente, com a cabeça movendo-se de um lado ao outro, como um franco-atirador que se
arrasta pela selva. Algo pendia de sua mão. Uma arma. Uma arma grande. Bem, Elena.
Está sendo espreitada através de Pittsburgh por um veterano do Vietnam armado. Isto é o que
consegui por olhar o pelotão com o Clay a semana passada. O tipo provavelmente levava uma garrafa
da Turquia Selvagem.
Me colocando perto da parede, eu deslizei para meu caçador. A luz de uma ampulheta nua cintilava
sobre o que ele sustentava na mão. Definitivamente uma arma. Entrecerrou os olhos para conseguir
uma melhor vista de sua equipe. Tinha posto uma calça militar negro. De acordo, já basta de flashbacks
de pelotão. As calças militares não vinham em negro, ao menos não acreditava que o fizessem. O tipo
levava colocado calças folgadas negras, uma jaqueta igualmente folgada, uma boina escura, e botas
escuras e grossas.
Deteve-se. Esmaguei-me contra a parede e esperei. Atirando de sua boina com uma mão, arranhou
sua cabeça com a outra. No silêncio da noite, suas unhas rasparam seu cabelo curto. Cabelo muito
curto. Como corte militar. Mantendo sua boina longe, tomou algo de seu bolso, estalou sua boneca, e
o levantou seu ouvido.
— Ela saiu do caminho? - murmurou pelo rádio. Assumi que era um rádio porque não o vi apertar
nenhum número de telefone. Sim... não. Ela deve ter me visto. Assustou-se e correu. Apanhou-me com
a guarda baixa... sim... não, não. Não notei isso. Não é difícil perder um lobo aqui fora.
Lobo? Disse ele lobo?
Realmente, este não era meu dia.

HOUDINI 10

— Não - disse meu caçador por seu rádio — O que?... Sim. Provavelmente. Vai controlar a
Tucker?... Não, caminharei. Diga ao Pierce que os devolva... Sim? Bem, não é tão longe... Manda-os em
casal.
10
Harry Houdini, nome artístico de Ehrich Weiss, (Budapeste, 24 de Março de 1874 — Detroit, 31 de Outubro de 1926) foi um dos mais
famosos mágicos dos Estados Unidos, para onde sua família emigrou quando ele tinha quatro anos, em 3 de julho de 1878, a bordo do SS
Fresia. Teve uma infância muito pobre, o que o obrigou a trabalhar desde cedo. Foi perfurador de poços, fotógrafo, contorcionista, trapezista.
Foi também ferreiro e nesse ofício ele aprendeu os truques que mais tarde o transformariam no maior mágico ilusionista do mundo. Certa
vez, seu chefe encarregou-lhe de abrir um par de algemas cuja chave um policial perdera. Após inúmeras tentativas usando serras, Houdini
teve a idéia de pinçar a fechadura para abri-la. Ele conseguiu e a maneira como o fez serviu de base para abrir todas as algemas que empregava
em seus truques. Desde então passou a se apresentar como mágico, fazendo números nos quais se libertava não só de algemas, mas também
de correntes e cadeados, dentro de caixas, dentro de tanques fechados; dentro e fora d'água, de todo o jeito. Fez um sucesso enorme e
ninguém até hoje conseguiu desvendar seus truques por completo, mesmo depois dele ter escrito boa parte dos segredos em livro. Houdini
tinha habilidades impressionantes. Era capaz, por exemplo, de ficar vários minutos dentro d'água sem respirar. E foi numa destas
demonstrações de suas habilidades - a "incrível resistência torácica" - que ele morreu. Após apresentar o número para uma platéia de
estudantes em Montreal, no Canadá, enquanto ele ainda exibia o "super" tórax, um dos estudantes, boxeador amador, invadiu os bastidores
e sem dar tempo para que Houdini preparasse os músculos, golpeou-lhe o abdômem com dois socos. Os violentos golpes romperam-lhe o
apêndice, e quase uma semana depois ele morreu, num hospital de Detroit. Era o fim de Harry Houdini, considerado até hoje o maior mágico
que já existiu. Houdini também atuou como um desenganador, ou seja, desmascarando pessoas que alegavam possuir poderes sobrenaturais
tais como médiuns.
Guardou o rádio em seu bolso. Logo levantou sua arma e fez algo para voltá-la menor, dobrou o
barril ou desparafusou algo. Hei, sou canadense. Não conheço as armas da rua. De algum jeito fez que
a arma ficasse da metade de seu tamanho, levantou a jaqueta, e a pôs em uma pistoleira.
Segui o tipo-caçador pela rua. Ali se encontrou com um segundo homem, também vestido com
um traje inteiro uso ladrão gótico. Ambos tiraram suas boinas e as meteram em uma mochila dobradiça.
Logo desabotoaram as jaquetas, tentando ver-se tão normal como era possível sem revelar as armas.
Dirigiram-se para o leste. Segui-os.
Pela terceira volta, já sabia onde foram. Estávamos ainda a uma meia milha de distância, mas já
sabia. Tal como esperava, caminharam três blocos, dobraram à esquerda, caminharam uma rua reta,
avançaram frente a três blocos mais, e terminaram diante do hotel onde eu me tinha reunido com as
Winterbournes essa tarde. De modo que minha preocupação por homens armados escondidos no
quarto de hotel das Winterbournes não tinha sido tão paranóico depois de tudo. Só que em vez de ter
suas cortes lançando-se sobre mim ali, tinham esperado a ir atrás de mim sob a calada da noite.
Esperei a que os homens se metessem diretamente no vestíbulo dianteiro. Quando não o fizeram
me surpreendi, e logo compreendi que dois tipos vestidos de negro caminhando pelo vestíbulo de um
hotel caro às 4 da manhã fariam arquear umas quantas sobrancelhas... e alguns alarmes. Convidados
ou não, tomavam a rota traseira. Rodearam até chegar a uma porta lateral. Meu caçador se apoiou
contra a parede, bloqueando minha visão, enquanto seu amigo tocava a aldrava. Passaram dois
minutos. Então a porta se abriu e se deslizaram dentro. Contei até vinte e fui atrás deles.
Os dois homens tomaram a escada. Subiram ao quarto piso, abriram a porta de saída, e olharam
atentamente. Depois de uns momentos de discussão, o companheiro de meu caçador se deslizou para
o corredor, abandonando ao tipo-caçador no oco da escada.
Agora, tinha um dilema. Desde minha vantajosa posição debaixo do caçador, não podia ver nada,
não a ele e certamente não a seu companheiro, embora a porta estivesse aberta. Tinha só uma opção.
Quando eu tinha entrado com Paige, tinha notado um segundo jogo de escadas ao lado oposto do
vestíbulo. Poderia sair ao terceiro piso, encontrar a escada alternativa, subir ao quinto, e dar a volta
por atrás da escada. Dos degraus de cima, seria capaz de ver. Ainda mais, o caçador provavelmente
esperaria algum perigo de baixo, alguém subindo do nível inferior. Por outra parte, o plano também
significava que eu seria incapaz de ouvir e cheirar durante ao menos uns minutos. Era melhor ficar onde
podia usar esses dois sentidos? Quanto mais esperava, mais arriscado seria ao partir. Arrastei-me pela
escada para o terceiro piso.
Rodear não era um problema. As saídas estavam marcadas a cada final do corredor. Voltei para
primeiro oco da escada, tirei os sapatos, deslizei pela porta do quinto piso, e desci a escada até que
estive meia dúzia de passos de aterrissar sobre o quarto andar, onde o tipo-caçador esperava.
Deslizando meus sapatos de volta, pus-me de coque para olhar atentamente através do corrimão.
Perfeito. Agora tinha o som, o aroma, e a vista. O companheiro de meu caçador estava frente ao quarto
406. As Winterbournes. Estava de coque em frente à porta, escolhendo alguns instrumentos de abrir
fechaduras. De modo que não tinham sido convidados. Talvez as Winterbournes tinha estado dizendo
a verdade sobre estar em perigo.
Ao menos, dizendo à verdade sobre elas estando em perigo. E eu? Bem, eu não teria estado em
Pittsburgh se não fosse por elas, verdade? De algum jeito duvidava que estes milicianos tivessem estado
me espreitando esta noite se eu me tivesse ficado em casa. Se as Winterbournes eram cúmplices nisto,
ainda poderia culpá-las disso. Questão afortunada, porque definitivamente queria culpá-las de algo.
O tipo-caçador se balançou desde seus calcanhares aos dedos do pé, resmungando baixo. No
corredor, seu companheiro limpava sua cara suarenta em seu ombro. Parou, esticou-se, e ficou de
joelhos outra vez. Várias vezes tentou mover o trinco da porta, logo virava para seu companheiro e
sacudia a cabeça. Finalmente meu caçador o chamou que voltasse. Eu subi rapidamente três degraus,
ficando fora de visão. Entraram no oco da escada e fecharam a porta.
—Não dá - disse o tipo da fechadura. —Não consigo. Estou seguro que arrebentei a fechadura,
mas mesmo assim não abre.
— Ferrolho quebrado?
O tipo da fechadura sacudiu a cabeça. —Comprovei o lugar esta manhã. Fechaduras e chaves
passadas de moda.
— Chama o Tucker. Vi um telefone público fora. Linha de terra. Esperarei aqui.
O tipo da fechadura trotou para baixo pela escada. Quando a porta do primeiro andar se balançou
e fechou detrás dele, ouvi outra porta que se abria, no quarto piso. O tipo-caçador abriu a saída para
olhar o corredor. De repente fez um ruído profundo com a garganta, um sorrisinho sufocado. Desci uns
poucos degraus, pus-me de coque outra vez, e olhei a fresta da porta.
Paige Winterbourne estava de pé no corredor, com os braços cruzados através do peito, vestida
com uma blusa de seda verde e um casaco combinando. Franzindo o cenho, contemplou o corredor.
Então se deteve e contemplou a saída onde nos escondíamos. Embora a porta estivesse aberta só um
par de polegadas, devia ter visto a luz ou a sombra através dela. Quando olhou, o tipo-caçador vacilou,
sustentando o trinco, pronta apara fechá-lo. Se ela tivesse voltado para seu quarto para chamar
segurança, ele se teria escapado. Mas não o fez. Estreitou os olhos e avançou para nós. Outro clichê de
filme de horror. Quando a estúpida e ingênua garota ouve um golpe na noite, retira-se a um lugar
seguro e telefona por ajuda? É obvio que não. Tem que ver o que há atrás dessa porta aberta. Tudo o
que Paige necessitava agora era perder o negligé, então poderia correr nua e gritar para o corredor
quando abrisse todas as portas e encontrasse o assassino que estava à espreita atrás.
O tipo-caçador rompeu o roteiro. Em vez de esperar que Paige abrisse a porta, tirou sua arma.
Logo empurrou e abriu a porta outro pouco e levantou a arma até a fresta da porta. O ano passado, eu
tinha visto uma mulher inocente assassinada a tiros por minha culpa. Se Paige era inocente ou não era
uma matéria de debate, mas duvidava que merecesse ser assassinada em um vestíbulo de hotel. Saltei
sobre o corrimão e aterrissei atrás do homem. Ele caiu para frente. Agarrei sua cabeça e girei seu
pescoço. A mais simples, suave, forma de matar.
Enquanto o deixava cair com o rosto para o chão, elevei a vista para ver Paige sustentar a porta
aberta e olhar fixamente.
—Monta guarda - disse. —Está aberto seu quarto?
— Meu…? Umm, sim.
Levantei o morto sobre meu ombro e passei pela frente dela no corredor. —Disse que montasse
guarda. Ele não estava sozinho.
—Onde está ah, espera. Meu quarto? Não pode pô-lo… - Ela se deteve. Leva-o a suíte ao lado da
nossa. Está vazia.
—Tanto melhor.
—Posso abrir a porta com um feitiço - disse ela.
Apressou-se pelo vestíbulo, passando junto a mim, murmurando palavras em um idioma
estrangeiro. Enquanto ela falava, cobri minha mão com minha camiseta, elevei-a, e rompi o trinco do
quarto vazio.
— Volta correndo e traz uma arma - disse. — Logo acorda a sua tia e traga-a aqui.
Paige vacilou, como uma reação contra aceitar ordens. Pareceu pensar melhor a respeito de
discutir e fez uma pausa só um segundo antes de trotar ligeiramente para o oco da escada. Arrastei ao
morto ao banheiro, fechei a porta, e comprovei em seus bolsos procurando uma pista. Nada. Ver o
rádio em seu bolso me recordou que havia um segundo homem armado, e Paige e sua tia levavam seu
tempo evacuando seu quarto.
Abri a porta do banheiro quando elas entravam no quarto vago. Paige ainda levava colocada sua
blusa e o casaco. A bata larga da Ruth cobria sua roupa de dormir. Ambas levavam uma muda de roupa
e suas bolsas, e Paige tinha a arma.
—Boa idéia - disse. —Estão todas suas coisas ali?
—Não tem sentido abandonar qualquer pista se conseguem forçar a entrada - disse Paige. —Se
tivermos que fazê-lo, podemos deixar o resto das coisas atrás.
—Paige me disse o que passou - disse Ruth. —Estamos muito agradecidas. Também muito
impressionadas. Tem uns reflexos excelentes.
—Aulas de defesa pessoal - disse.
— Ainda não admite a coisa de lobisomem? - perguntou Paige.
Caminhei rumo ao banheiro e sustentei a porta aberta. —Alguma de vocês havia visto este tipo
antes? Não toquem nada. Os policiais tirarão o pó procurando pistas.
— Policiais? - repetiu Paige.
—Sim, policiais. Quem acredita que dirigirá a investigação do assassinato? A segurança do hotel?
— Assassinato? Quer dizer que ele está morto?
—Não. Descansa comodamente - disse. —As pessoas sempre dormem melhor com suas cabeças
em um ângulo de noventa graus. Parece cômodo, verdade?
—Não há necessidade do sarcasmo - disse Paige fortemente. —Talvez você esteja acostumada a
transportar cadáveres, mas eu não.
— Uma vida segura. Supõe-se que é uma bruxa e nenhuma vez teve que matar a ninguém?
A voz de Paige se apertou ainda mais. —Usamos métodos alternativos de defesa.
— Como o que? Fazer feitiços para que seus atacantes tenham pensamentos felizes? Converter
suas armas em flores? Paz e amor por todos?
—Eu teria usado um feitiço para apanhá-lo - disse Paige. —Manter o tipo vivo para logo
interrogá-lo. Oh. Essa é uma idéia nova. Se não o tivesse matado, talvez pudéssemos ter falado com
ele.
— Oh, isso é certo. Os feitiços para apanhar ultra-eficientes da Paige. Dir-lhe-ei algo. A próxima vez
que eu veja um tipo te apontar uma arma, deixarei que faça as coisas a sua maneira. Começa sua
invocação e vê se pode terminar antes que ele lhe mate a tiros. É um trato?
Paige levantou a arma, abriu-a, tirou um dardo de tranquilizador, e o sustentou — Ninguém
queria me matar.
— Está segura disso? - perguntou uma voz masculina.
Paige e eu saltamos. Inclusive Ruth elevou a vista, assustada. Na esquina do dormitório havia um
homem vestido com o mesmo traje negro que o morto no chão. Era de altura e peso médios, com
cabelo castanho, mas não curto ao estilo militar. Só um traço a vista, uma cicatriz fina que percorria da
frente até o nariz me assegurava que nunca tinha visto este homem antes. Joguei uma olhada para a
porta do corredor. Ainda estava fechada e com chave. A muda de roupa do Paige estava pendurada
dela. Então, como tinha entrado este tipo?
—Alegra-me ouvir que não teria matado ao pobre Mark - disse o homem, sentando-se no bordo
da cama, estirando as pernas e cruzando os tornozelos. —Muito esportivo de sua parte. Suponho que
o que se diz das bruxas é verdadeiro. Tão desinteressadas, tão preocupadas com outros, tão
incrivelmente ingênuas.
Caminhei para ele.
— Não o faça! - assobiou Paige.
— Esta é a lobisomem fêmea? - O homem girou seus sujos olhos marrons para mim, em uma
olhada cheia de satisfação. —Melhor do que esperei. Assim, vem, garota-lobo? Ou tem coisas físicas
que fazer? - seu sorriso satisfeito se alargou.
Joguei uma olhada a Paige e Ruth.
— Oh, elas vêm também - disse o homem. —Mas não estou preocupado por elas. Só bruxas, você
sabe. Farão o que lhes digam que façam.
Paige fez ruído com sua garganta, mas Ruth pôs uma mão refreando-a em seu braço.
— De modo que, sequestra-nos? -Perguntei.
O homem bocejou. —Isso parece, verdade?
— O que significa isto para você? - perguntou Paige.
—Vejamos? -O homem me olhou. —Estas são bruxas para ti. Fazem-me sentir culpado. Apelam a
meu lado mais amável, mais suave. O qual poderia funcionar, se eu tivesse um, claro.
— Então trabalha para o Ty Winsloe? - respondi.
— Oh, vamos, senhoras. E tanto como eu gostaria de conversar a respeito de minhas motivações
e as possibilidades dos Yanquees na Série Mundial…
Investi contra ele, saltando os cinco pés entre nós. Minhas mãos se sobressaíram, prontas para
agarrá-lo pelo peito e derrubá-lo para trás. Mas não o fizeram. Em troca, golpeei o ar vazio e caí na
cama, me enroscando rapidamente e me girando antes do contra-ataque. Mas não veio. Girei para ver
o homem apoiar-se na porta do dormitório, com a mesma expressão aborrecida em sua cara.
— É o melhor que pode fazer? - suspirou. —Grande desilusão.
Avancei para ele, lentamente, com os olhos fixos nele. Quando estive o bastante perto para ouvir
o batimento do coração de seu coração, detive-me. Ele sorriu abertamente outra vez e seus olhos
faiscaram com antecipação infantil, como um menino impaciente por começar um jogo. Sua garganta
palpitou, palavras movendo-se para sua boca. Antes que ele pudesse dizer algo, balancei meu pé
direito, enganchei suas pernas, e atirei. Ele caiu para trás. Então desapareceu, por um segundo caindo
para trás como um tijolo, e ao seguinte - não estava ali. Simplesmente não estava.
— Inteligente — disse ele desde algum lugar detrás de mim.
Girei para vê-lo de pé no banheiro junto ao cadáver.
— É boa nisto - disse ele, um sorriso iluminando seus olhos. —Eu adoraria te dar outra
oportunidade, mas meus compatriotas já estão a caminho. Não posso lhes deixar me encontrar jogando
com o inimigo. Não o entenderiam. Humanos.
Ele se inclinou para agarrar a arma com o tranquilizador que Paige tinha deixado cair. Os lábios da
Ruth se moveram. O homem se deteve metade de alcançá-la, seus braços poderiam haver-se flexionado
e meio doido o metal. Mas sua mão não se moveu.
— Avancem! - disse Ruth, tomando seu moedeiro do chão. —Isto não durará.
Paige correu através do quarto, agarrou meu braço, e me arrastou para a porta. Sacudi-me e me
voltei para o homem. Ele estava imobilizado. Não importava se não durasse. Não necessitava muito
tempo. Avancei para ele. Paige agarrou meu braço outra vez.
— Não há tempo! - disse. —Ele poderia rompê-lo em qualquer segundo.
—Vai!! - respondi.
— Não - disse Ruth.
Juntas me empurraram para porta. Resisti, mas estavam claro que não iriam a nenhuma parte
sem mim, e eu não tinha nenhum interesse em arriscar a vida de ninguém, incluída a minha. De modo
que corri fazia a escada. Elas me seguiram.
Tínhamos baixado quase dois lances de escadas quando ouvi som de passos subindo ao fundo.
Girei e empurrei a Paige para trás. Enquanto corríamos à saída do terceiro piso, alguém gritou de baixo.
O som de passos se voltou um rápido batimento do coração quando se dirigiram para cima atrás de
nós.
Passei a frente de Ruth e Paige e as conduzi pelo corredor para a escada da frente. Nossos
perseguidores estavam já no terceiro piso quando nós escapamos pela outra porta. Para baixo pelas
escadas. A saída de emergência do primeiro andar. Os alarmes soaram.
Paige deu a volta para o norte. Agarrei seu braço e a atirei para trás.
— Essa é a rua - vaiei, empurrando-a diante de mim quando nos dirigimos ao sul.
— Eles não matarão a tiros diante das pessoas - disse detrás de mim.
— Quer apostar? Quanta gente acredita que haverá aí às quatro e trinta da manhã?
— Só corre - disse Ruth. —Por favor.
Os alarmes pareceram respirar aos homens. Talvez alguém os deteve. Eu não sabia e não me
preocupava. Tudo o que importava era que corremos até o final sul do beco, giramos ao oeste, e
estávamos a metade de caminho esse beco antes que pudesse ouvir nossos perseguidores saindo do
hotel, ladrando ordens. O beco oeste se acabou.
Nossas opções eram: o sul a um beco sem saída ou o norte para a rua. Com a Ruth e Paige
vestidas com camisolas de noite, não estava segura de que correr em direção a possível segurança da
rua era uma boa idéia. Mas “o beco sem saída” tinha uma aparência realmente sinistra. Então girei ao
norte e segui correndo. Realmente, “correr” era um exagero. Chamem-no um trote rápido. Enquanto
Paige conseguia manter-se a meu lado, obrigar a sua tia já entrada em anos a correr a meu passo normal
teria sido tanto uma sentença de morte como abandoná-la ali.
Ao sair à rua, topamos com um beco estreito que ia para o Oeste e virei por ele. Os homens
estavam rodeando agora a esquina norte, sua respiração pesada como o uivo de sabujos atrás de nossos
calcanhares. Alegrei-me de que Ruth e Paige não pudessem ouvi-lo. Diante, um contêiner de lixo
bloqueava a rota Oeste. Podia ver uma volta ao sul e supus que havia uma volta para o norte também.
Não havia. Pior ainda, a bifurcação para o sul terminava em uma parede de 3 metros.
— Sobre o contêiner - sussurrei. —Saltarei e as levantarei.
Ruth sacudiu a cabeça —Ali abaixo - respirou com dificuldade, assinalando ao sul.
—Mas não há…
—Esconder-se - disse.
Entortei os olhos para o beco escuro. Não havia nenhuma coberta ali, além de sombras. Dava-
me volta para a Ruth para lhe dizer, mas vi sua cara. Estava carmesim, seu peito elevando-se, cada
respiração a fazia estremecer-se. Não podia ir mais longe.
Assentindo com a cabeça, conduzi-as para o beco do sul e fiz gestos para que ficássemos de pé
contra a parede oeste, onde as sombras eram mais profundas. Pus a Ruth, com sua camisola de noite
amarela pálida, no lugar mais afastado, coberta pelo Paige e por mim. Isso não ajudaria. Eles nos veriam.
Uma olhada por este beco e estaríamos apanhadas. Todo que eu podia fazer agora era me preparar
para confrontá-los.
Apenas nos tínhamos colocado nas sombras quando três homens fizeram um alto diante do
contêiner. Um era o tipo da fechadura, o outro era o Houdini do quarto do hotel, e o terceiro era outro
clone de estilo militar.
— Não se mova - sussurrou Paige, tocando meu braço.
Não acreditei que isso ajudasse, mas se as fazia sentir-se melhor, ficaria quieta até fôssemos
descobertas. Os homens olharam o contêiner, logo jogaram uma olhada para o beco do sul, muito
rápido para nos ver. O tipo da fechadura caminhou de um lado do contêiner ao outro.
— Bloqueado - disse. —Não há outro caminho além de saltar.
— Com uma senhora velha? - disse o tipo novo. —De maneira nenhuma.
O Houdini se apoiou contra a parede de tijolo do norte, tomou um cigarro de seu bolso, e prendeu
um fósforo A chama iluminou seu rosto durante um segundo, logo chispou na escuridão. Prendeu o
fôlego enquanto os dois tipos militares discutiam sobre a probabilidade de que tivéssemos escalado o
contêiner.
Olá! Estávamos a seis metros de distância, a quase plena vista. Mas ninguém disse que os
militares eram recrutados por seus cérebros. Além disso, quanto mais olhava a estes tipos, mais
duvidava de que atuassem sob os auspícios de qualquer asa da tropa americana. Então, o que eram
eles? Militares aposentados talvez? Mais provavelmente militares descartados. Ou esses grupos de
tropa que aparecem com frequência alarmante nos noticiários americanos. Não importava. Brilhantes,
não eram.
Quando me voltava para o Houdini, ele me olhou diretamente. Sabia exatamente onde estávamos.
Por que não dizia a seus companheiros? Porque queria que suássemos. A extensão do jogo do gato e o
camundongo. Levantou o cigarro e inalou. A brasa vermelha brilhou na noite, logo caiu, piscando na
escuridão antes de tocar a terra em uma cascata de faíscas. Quando caminhou para o beco do sul,
estiquei-me e contive o fôlego. Seus olhos exploraram o beco, sobre nós mas não em nós. Terno. Fingia
não poder nos ver. Nos tranquilizar com um sentido falso de segurança. Bastardo sádico. Contive meu
fôlego e me preparei para o ataque.

REUNIÃO
Houdini caminhou até ficar a menos de um pé de mim, olhou a parede de frente, logo virou seu
olhar para onde eu estava. Aqui estávamos. Tomava seu agradável tempo, pretendendo não me ver.
Então, de repente, encontraria meus olhos e bingo, desfrutaria com o medo que esperava ver ali.
Apertei os dentes enquanto sua cabeça se girava para a minha. Mas seu olhar se seguiu
movendo, diretamente sobre minha cara, seus olhos não piscavam. Grunhiu. Um músculo sob sua
cicatriz fez um espasmo. Deu a volta para a parede ao final do beco e elevou a vista. Então desapareceu.
Um rangido de papel fez erupção ao outro lado da parede. Uma maldição. Então esteve de volta,
caminhando a pernadas para os imbecis militares.
—Lixo quieto ao outro lado da parede - disse. —Não tomaram esse caminho. Sobre o contêiner ou
vocês, menino, deram uma volta incorreta. Comprovarei no outro lado do contêiner, mas arrumado
por isso último. Humanos.
Seus companheiros começaram a resmungar, mas Houdini tinha desaparecido já. Um minuto
mais tarde voltou.
—Atoleiros - disse. —Sem pistas molhadas que conduzam a elas. Estamos ferrados.
O tipo da fechadura o fulminou com o olhar. —Se fosse tão grande rastreador, por que não tomou
a dianteira?
—Não é meu trabalho - disse Houdini, caminhando ao este pelo beco. —Sou das Operações
Especiais.
—Assim é - disse o tipo da fechadura atrás dele. —Têm super poderes. Então deveria ter sido
capaz de te lançar em um brilho para a saída de hotel antes que escapassem. Oh, lamento. Esqueci.
Não tem esse poder, verdade?
Houdini não deu a volta, só estendeu seu dedo do meio no ar e seguiu andando. O tipo da
fechadura jogou uma olhada ao contêiner outra vez, logo olhou atentamente o beco do sul. A menos
que fosse cego de noite, deveria nos haver visto. Mas não o fez. Bufou algo ao terceiro homem e saíram
depois do Houdini.
Quando estavam fora do alcance do ouvido, Ruth se inclinou para mim e sussurrou — Feitiço de
Cobertura. O teria mencionado, mas não havia tempo.
Escutei os passos retirando-se, esperando até que se foram, logo me girei para ela — Funcionou,
mas não acredito que tenha algo um pouco mais hábil nessa bolsa de brincadeiras, se por acaso voltam.
Ruth riu entre dentes — O lamento. Nossa magia está desenhada para a defesa, não a ofensiva.
—Temos alguns encantamentos agressivos - disse Paige. —Mas levam tempo para preparar-se.
A boca da Ruth se apertou.—Não os usamos. Não é nossa forma de fazer as coisas.
Recordei o que Houdini disse sobre as bruxas. Pessoalmente, prefiro deter meus atacantes
permanentemente, mas as bruxas pareciam ter uma filosofia diferente.
Pensando no Houdini, tive que perguntar, — O que era esse tipo?
—Meio demônio com capacidades de tele transportação - disse Paige. —Em uma fila limitada,
provavelmente não mais de 2 a 5 metros. Descendente de um demônio menor, daí a energia diluída.
Minha conjectura é que é o melhor que Winsloe e seu rebanho tem. É por isso que querem espécimes
melhores.
— Espécimes? - respondi.
—Explicaremos na reunião - disse Ruth. —Agora mesmo temos que encontrar algum lugar
seguro.
—Posso nos colocar no contêiner - disse. —É sujo, mas mais seguro que voltar para hotel.
Ruth assentiu com a cabeça e nos apressamos pelo beco. Saltar ao contêiner não era a rota mais
agradável, mas era bastante fácil. Um salto de três metros não era nada para um lobisomem. Tampouco
o subir a duas mulheres de tamanho médio. O fedor era o pior de tudo, o suficiente para me fazer
perder o apetite, o qual era uma façanha em si mesmo. Descemos pelo outro lado sem ouvir nenhum
som do outro beco. Nossos perseguidores se foram.
Uma vez fora do contêiner, segui meu nariz por volta de uma loja de rosquinhas aberta durante
toda a noite. Conseguimos nos mover sigilosamente pelo estacionamento e nos escapulir nos serviços
sem chamar a atenção. Comprei café e rosquinhas e os levei aos serviços onde Paige e Ruth se
limpavam. Enquanto elas comeram, movi-me sigilosamente pela porta com o pôster “só empregados”
e assaltei os armários de roupa do pessoal. Não estava segura do que encontraria, mas algo tinha que
ser melhor que as camisolas de noite, de modo que agarrei o que encontrei e o levei a banheiro.
Estivemos de acordo em que era o momento para nos separar.
—Tome cuidado - disse Ruth quando me dispus a partir. —Olhe sobre suas costas e vá
diretamente ao aeroporto. Ver-lhe-emos na reunião.
Vacilei, não querendo dar a impressão de que por me juntar com elas essa tarde, eu estava
pronta para me unir a sua reunião, mas Ruth tinha dado volta já e tinha começado a dirigir-se a Paige.
Então murmurei meus adeus e me parti.

***

Voltei para meu hotel e respondi ao recepcionista que tinha ido fazer um pouco de jogging
matinal e tinha deixado minha chave cartão no quarto. Escoltou-me até meu quarto, abriu-o, e esperou
enquanto pretendia procurar a chave de cartão, embora, realmente, estava comprovando se tinha
convidados escondidos. Uma vez que partiu, agarrei minhas coisas, saí, tomei um táxi ao aeroporto, e
chamei o Jeremy.

***

Quando falei com o Jeremy, meu cérebro estava esgotado. Enquanto tinha estado correndo e
me preocupando com a fuga, não tinha tido tempo de pensar a respeito do que via. Agora tinha muito
tempo, e minha mente tomou plena vantagem disso. Bruxas e feitiços para reter. Demônios que se
teletransportavam e homens de tropa armados.
Pistolas com tranquilizadores e projetos de sequestro. Onde tinham ficado os velhos e bons dia
quando tudo do que tinha que me preocupar era alguns guias de ruas enlouquecidos? lobisomem, esses
sim podia dirigi-los. Mas isto? Que demônios era isto?
Contei entrecortadamente toda a história ao Jeremy em uma inundação precipitada e
semicoerente de palavras, agradecida de que tinha encontrado uma cabine telefônica privada e não
tinha que me preocupar a respeito do que dizia. Jeremy esperou até que tive terminado, fez uma pausa
para assegurar-se de que não diria mais, e então disse — Isso não soa bem.
Tive que rir. Quando o fiz, senti que a tensão de meu pescoço e ombros se liberava, e me relaxei
pela primeira vez esse dia. Típico do Jeremy. Professor das declarações incompletas. Eu poderia lhe
haver dito que uma cabeça nuclear escapou da Rússia e se dirigia para Nova Iorque e ele haveria dito a
mesma coisa, com o mesmo tom tranquilo e sereno.
—E não - disse— não estive bebendo ou ingerindo narcóticos ilegais.
Ele riu entre dentes — Acredito em você. Onde está agora?
— No aeroporto.
—Bom. Não voe a Syracuse. Compre um bilhete para Buffalo e tome cuidado com espectadores
curiosos. Encontrar-te-ei no aeroporto.

***

Quando meu avião aterrissou, tinha-me acalmado o suficiente para me sentir bastante parva a
respeito de chamar Jeremy ao bordo do pânico e fazê-lo conduzir quase três horas a Buffalo. Devia
haver uma explicação lógica, não sobrenatural, para o que tinha visto a noite anterior. Não sabia qual
poderia ser, mas estava segura que isto existia.
Quando a multidão de passageiros que desembarcavam me conduziu à área de espera, observei
as cabeças procurando o Jeremy e o descobri imediatamente. Com 1 metro e 87 centímetros de altura,
Jeremy podia não ser o tipo mais alto no lugar, mas, em geral, tinha uns quantos centímetros mais que
seus vizinhos, o bastante altos para mim para vislumbrar uns olhos negros emoldurados por um par de
sobrancelhas negras e arqueadas e umas mechas às que os fazia falta um bom corte.
Quando ele se dignou me deixar cortar seu cabelo por última vez, tinha notado os primeiros fios
de branco. Não era surpreendente, considerando que Jeremy tinha cinquenta e dois anos.
Envelhecíamos lento, Jeremy parecia, como muito, com uns quarenta e, provavelmente, menos ainda,
se não fosse pela pouca cor cinza, mas o gracejava sem piedade. Com o Jeremy, valia a pena aproveitar-
se de qualquer defeito. Não tinha suficientes deles.
Quando finalmente ele me viu, seus lábios se curvaram no mais nu dos sorrisos, então saudou
com a cabeça e esperou que me aproximasse. Típico.
—De acordo - respondi quando cheguei a seu lado. —Diga-me que reagi de maneira exagerada.
Ele tomou minha bolsa. —Certamente que não. Muito melhor que não fazer caso disso e,
digamos, não me chamar logo que encontrou a essas mulheres.
—Lamento-o.
Ele desprezou a desculpa. —Estamos neles agora. Vamos diretamente a Vermont. Empacotei
nossas bolsas. Não parece sábio voltar para o Stonehaven até que saibamos mais sobre esta ameaça.
— Então vamos à reunião?
—Não temos muitas opções. Estas mulheres-bruxas parecem ter todas as respostas.
— Então conseguiremos informação delas, não uniremos a elas?
Jeremy riu entredentes. —Parece aliviada. Não se preocupe, Elena. A Manada não necessita
nenhuma ajuda externa.
—Tratei de chamar o Clay do aeroporto, mas não estava. Deixei uma mensagem lhe dizendo que
precisávamos falar com ele. Deveria tratar de contatá-lo agora?
—Ele viu sua mensagem e chamou casa. Expliquei-lhe o que aconteceu. Acredito que é melhor
se não nos una para esta reunião. Em certa medida, duvido que tivesse seu melhor comportamento.
—Posso até vê-lo. Meter-se à força na reunião, exigir respostas, e ameaçar lançando alguém pela
janela mais próxima se as respostas não vierem o suficientemente rápido. E seria seu melhor
comportamento.
—Exatamente. Não é o tipo de entrada que tinha em mente. De modo que minimizei o perigo e
lhe disse que você e eu poderíamos dirigi-lo. Manterei o informado, e se as coisas ficam difíceis, ele
pode unir-se a nós.
— E que passa com o Nick e Antonio? Estarão na Europa durante outras duas semanas.
— Três - disse. —Telefonei e disse ao Tonio que estivesse alerta. Se os necessitarmos, chamaremo-
los. Por outra parte, ainda se esta ameaça é verdadeira, Europa pode ser o melhor lugar para eles. Fora
de perigo.
—Então só somos nós dois.
Outro sorrisinho. —Estou seguro de que sobreviveremos.

***

Passamos a noite em uma casinha de campo que Jeremy tinha alugado em Vermont. Apesar da
temporada repleta, tinha conseguido encontrar um lugar onde os convidados originais tinham anulado
sua reserva no último momento. Não só era em uma região isolada, arborizada, mas também superava
o “conveniente” e os arredores eram perfeitos, um chalé à beira de um lago longe do tráfego dos
veranistas.
Eu teria tido sorte de nos conseguir reservas em um motel de estrada de pouca qualidade.
Confiava no Jeremy para encontrar o Éden em menos de um dia.
A reunião seria realizada na Sparta, Vermont. Já na estrada, Jeremy tinha chamado o número de
celular da Ruth e lhe havia dito que chegaríamos na segunda-feira, embora a reunião começasse no
domingo. Realmente, planejamos chegar no domingo, mas ele imaginou que a mentira poderia nos
ajudar. Se estivéssemos nos colocando em uma armadilha, chegando antes, tomaríamos com a guarda
baixa.
À medida que as horas empurravam Pittsburgh longe em minha memória, meu ceticismo ia
voltando. O que tinha visto realmente? Nada que uma boa companhia teatral de magos ou ilusionistas
não pudesse montar. Feitiços de Cobertura e demônios teletransportando-se? De acordo. À luz do dia,
tais coisas pareciam ridículas. Fantasmas de noite e nervos. Era muito mais provável que, em efeito,
estivéssemo-nos metendo em uma armadilha, uma armadilha inteligente, mas muito humana. Ao
menos, estávamos a ponto de encontrar algumas pessoas seriamente enganadas.

***

A manhã seguinte, quando conduzimos pela estrada da montanha, podia ver Sparta diante,
recostado no vale, uma igreja branca solitária na ladeira, sua cruz envolta em nuvens ou névoa da tarde.
Casas de madeira aos flancos, todas as cores do arco íris, sobressaíam-se da vegetação de agosto.
Galinheiros e celeiros vermelhos alegravam os espaços esculpidos pelo páramo. Casinhas de campo
rosadas rodeavam um lago ao sul. Era um quadro perfeito... a distância. Quanto mais perto conduzia,
mais se notavam os sinais de decaimento. As casas alegremente coloridas pediam a gritos uma mão de
pintura ou uma recoberta de verniz. As fundações do celeiro se derrubavam em pilhas de pedras que
logo que sustentavam a estrutura em cima. As cercas oxidadas e os postes podres permitiam fugir às
vacas aos pastos vizinhos. As casinhas de campo da beira do lago não pareciam bastante grandes para
conter uma cama de casal, muito menos um banheiro. Na orla da cidade passamos por uma placa assim
“Bem-vindos a Sparta, população, 600 habitantes”. O cemitério, cruzando o caminho, tinha mais
pessoas que a cidade por si mesma. Uma cidade agonizante, sustentada por uma fonte decadente de
turismo, um lugar de acampamento maciço fora dos limites de povo, lotado por reboques e casas
rodantes e nenhuma loja de campanha à vista.
O centro da cidade estava cheio de turistas, uns de camping, outros provavelmente de casinhas
de campo próximas. Não era que o centro da Sparta fosse alguma classe de Meca para os compradores.
Havia um posto de gasolina Exxon, um restaurante chinês, A Casa Chinesa do Wang, Corte e Cachos do
Lynn, a loja geral para Comerciantes do Yankee, com a vaidade de ter jogos de videogame e sorvetes
de nata, e a cafeteria sempre presente, chamada, neste caso, simplesmente Joe. Por isso podia ver,
havia só três ruas na Sparta, a estrada que cruzava de lado a lado, a Rua Baker para o Oeste e New
Moon para o este. As duas ruas laterais estavam cheias de casas que se diferenciavam só por suas cores,
que iam do azul bebê à violeta profundo para terminar em verde lima. Apesar da abundância de terra
aberta além da cidade, as gramas eram apenas o bastante grandes para permitir o uso de um cortador.
As flores estavam em duas variedades: Calêndula e begônia. Coroas penduravam das portas principais,
e letreiros que proclamavam “Os Millers: John, Beth, Arenosa, Lori, e Duke. Bem-vindos Todos!”
—Estranho que tenham escolhido uma cidade tão pequena para sua reunião -disse.
— Possivelmente - disse Jeremy, —mas quantas dessas pessoas que andam dando voltas por
aqui acredita que vivem aqui atualmente?
Vi seu ponto. Ambos os lados da estrada estavam lotados com caminhonetes e mini
caminhonetes. Famílias passeavam pela rua, lambendo cartuchos de sorvete e bebendo a sorvos sodas
diet. Os forasteiros provavelmente superavam em número dez a um aos residentes. Uns quantos mais
não seriam notados.
— Ooops, passamos - respondi. —O sinal para o Centro Comunitário está justo atrás. Sinto muito.
Jeremy entrou em um estacionamento, esperou que uma brigada de carrinhos de bebê passassem,
e logo girou a caminhonete e voltou. O Centro Comunitário estava ao final da Baker, uma boa meia
milha além da última casa da rua. Jeremy reduziu a marcha para olhar para a Casa, logo seguiu uns
metros mais e dobrou por uma rua sem saída. Encontramos um caminho que conduzia para ao Centro
Comunitário através dos bosques. Discutimos a respeito de tomá-lo, mas nos decidimos em contra.
Enquanto isso poderia nos haver dado uma possibilidade para nos mover sigilosamente e olhar ao
redor, corríamos também o risco de que alguém da reunião escolhesse esse momento para caminhar
ao ar livre e nos pescasse bisbilhotando entre as árvores. Não era exatamente uma entrada solene.
Tomando o caminho, aproximamo-nos com cuidado. Quando nós chegamos ao final, contemplei
o estacionamento e contei quatro veículos: dois carros de aluguel médios, um Jipe com placa de
Califórnia, e um Accord com placa de Massachusetts.
—Vejo que as bruxas conduziram - respondi, gesticulando para o Accord. —Um tanto para os
feitiços de teletransporte e as vassouras mágicas. E olhe a este lugar. É o Centro Comunitário. Vamos a
uma reunião de raças sobrenaturais em um Centro Comunitário. Em um formoso dia do verão, e nem
sequer um trovão de fundo. Não podiam ter encontrado uma grande casa Vitoriana em algum lugar?
—O mausoléu do cemitério estava reservado. Se ergue os olhos à esquina esquerda sob o beiral,
acredito que vejo uma teia de aranha.
—Isso é uma fita. Uma fita rosada. De uma recepção de bodas.
—Bom, estou seguro que encontrará algumas teias de aranhas dentro.
—Seguramente, justo ao lado da mesa de sanduíches das Damas de Companhia.
Jeremy se inclinou para ler a pronta posta em uma nota detrás de uma vitrine trizada.
— Sob que nome estamos reservados? - Perguntei. — Conferência de estilo de vida alternativo
New Age?
—Não, a Oficina de Tecnologia Corporativa.
— Grandioso. Bruxas sem vassouras, teletransporte, feitiços, ou imaginações. O que é o
seguinte? Se houver vampiros ali, provavelmente bebem o substituto de plasma sanguíneo artificial.
Esterilizado, é obvio.
—Se houver vampiros, estariam em suas criptas agora mesmo. Estamos a plena luz do dia.
—Então, nesse caso, posso concluir logicamente que os vampiros não existem, verdade? Se o
fizessem, estariam na reunião. E se viessem à reunião, esta se teria realizado de noite. Ergo, uma
reunião de dia significa que não há vampiros. Bônus.
— Não é uma admiradora dos vampiros?
—Não é isso. Pensa nisso. Bruxas, feiticeiros, magos, o que seja... são a liga menor. Se tais coisas
existissem, não seriam mais que humanos dotados. Os lobisomem são a liga principal. Nenhum jogo de
mãos mágicas pode exceder nossa grande brincadeira. Adiciona força sobre-humana, sentidos
preternaturais11, e uma atitude realmente repugnante…
—Fala por ti.
—Excetuando a presente companhia. O ponto é que as bruxas não têm nada de nós. Mas
vampiros? Os vampiros poderiam ser mais poderosos. Eles certamente conseguem a melhor imprensa.
Eu poderia ir a essa reunião e averiguar que não sou a coisa mais malote na sala.
—Talvez não, mas ainda será a coisa mais má viva na sala.
Sorri abertamente — A parte do não morto. Não tinha pensado nisso.
—A classificação apropriada é a chave. Agora, entremos.
Jeremy empurrou a porta. Esta não se deslocou.
—Fechado com chave - disse.
Fez uma pausa um momento, como se considera se terei que chamar, mas eu sabia que não o
faria. O Alfa dos lobisomem não esperava confessar ser admitido em nenhuma reunião de seres
sobrenaturais. Jeremy golpeou a porta, mas esta não se rompeu, nem sequer tremeu.
— Suponho que os poderes estão obrigados a falhar uma vez que chega a certa idade - disse. —
Me Permita.
Jeremy se apartou com uma careta zombadora. Agarrei o trinco, subi-o e baixei com força
suficiente como para que a porta tivesse pirado de suas dobradiças. Não se moveu.
— Oh - disse.
— Oh, em efeito. Possivelmente poderia resfolegar e soprar e derrubar a porta.
Uma imagem de Pittsburgh me veio à memória. O tipo da fechadura que se queixava de não

11
Que estão fora do estado natural de ser de uma coisa.
poder abrir a porta de habitação de hotel das Winterbournes.
—Um feitiço - disse. —Puseram um feitiço. Suponho que teremos que chamar.
—Sei minha convidada.
Era embaraçoso. Um lobisomem golpeando a porta. Aonde estava indo o mundo? De todos os
modos, não tínhamos nenhuma opção. Chamei e uns momentos mais tarde, Paige respondeu.
Seus olhos se alargaram quando abriu a porta. —Chegaram antes.
— É um problema? - perguntou Jeremy, sua voz pura seda.
Paige lhe jogou uma olhada, vacilou, logo sacudiu a cabeça — Não, é obvio não. Entrem e
conheçam todos.

APRESENTAÇÕES
Quando Paige nos conduziu pelo corredor, pudemos ver a sala principal diante. Havia quatro
pessoas em cadeiras dobradiças ao redor de uma mesa de madeira dobradiça, o tipo do mobiliário que
se pode encontrar em porões de igreja por todos os lados.
Ao olhar aos quatro, senti-me aliviada, ou possivelmente ligeiramente decepcionado, ao notar
uma completa ausência de cascos fendidos e apêndices de corpo antiestéticos. Os quatro se viam como
se realmente pudessem ter estado em uma conferência, uma conferência casual em pleno verão em
uma casinha de campo.
Ruth estava sentada ao lado de uma cadeira vazia. Como Paige, tinha posto um vestido. Frente
a ela, havia uma mulher na metade da quarentena, magra com o cabelo castanho avermelhado curto.
Ao lado dela, havia um homem jovem de amplos ombros, de rosto infantil, e cabelo marrom claro com
reflexos loiros. A sua esquerda, um homem a fins dos cinquenta, corpulento e cinzento. Parecia
aborígine, provavelmente esquimó, seu rosto liso, uma máscara de calma meditativa. De modo que,
Esta era uma reunião dos seres sobrenaturais mais capitalistas da América do Norte? Oh, por favor. Um
diretor de casting poderia ter encontrado um rebanho de personagens mais provável no domingo de
noite na televisão.
Ao outro lado do quarto estava a mesa de sanduíches das Damas de Companhia. Bom, não
exatamente, mas bastante perto. Quão única faltava era a matrona de cabelo azul que repartia
guloseimas e protegia a caixa de arrecadações. Havia uma mesa com uma caixa de café, um pote de
margarina com pó branco que, provavelmente, era leite em pó mais que cocaína, uma pirâmide de
taças Styrofoam5, uma delas cheia de cubos de açúcar, e um prato de rosquinhas polvilhadas.
Na parede de atrás, um letreiro escrito à mão recordava aos presentes que o café e as rosquinhas
valiam um quarto cada uma, seguido de uma linha vermelha que esclarecia que isso significava
cinquenta centavos tanto por uma rosquinha como por um café, não um quarto pelos dois juntos.
Realmente esperava que a gente do Centro Comunitário fora a responsável pelas guloseimas e o
letreiro. De outra maneira... bom, não queria considerar a alternativa. Só digamos se alguém passava
pela habitação com o prato para pôr o dinheiro das cotas de membresia, eu ia dali.
Ao lado da mesa havia uma caderneta e, na página superior, a agenda do dia. Não os engano.
Tinham uma agenda do dia, não só uma pronta de temas, mas também uma lista cheia que começava
com saudações e refrigério às 10h00min, discussão às 10h30min, mesa redonda às 11h45min, seguido
do almoço de 12h15min as 01h15min. Joguei uma olhada por cima de meu ombro para ver o Jeremy
ler a lista, meus lábios movendo-se nervosamente.
— Ao menos são organizados - murmurou ele, muito baixo como para que Paige pudesse ouvir.
Todos se viraram quando entramos. Ruth ficou de pé, todas as expressões reajustando-se em
um sorriso de bem-vinda quando tentou esconder sua surpresa.
— Olá - disse. —Acreditei que não vinham até na segunda-feira.
— Nossos projetos para o fim de semana fracassaram.
— Oh? Oh, bom, sim. Entrem então. Todos, Este é Jeremy... Jeremy Danvers, o... líder... espero
que esteja bem, líder?... da…
—Jeremy está bem - terminou ele. — Esta é Elena.
O homem jovem com cabelo loiro sorriu abertamente. —Os infames lobisomens? Gracioso, não
parecem lobisomem. Nada de sobrancelhas conectadas, nada de palmas peludas. Maldição. Outro mito
que se vai ao diabo. E pensei que todos os lobisomem eram machos. Essa definitivamente não é um
menino.
—Movimento de liberação feminina - disse. —Estamos em todas as partes agora.
O sorriso do homem jovem se alargou — Nada é sagrado?
—Elena é a única lobisomem feminina - disse Paige quando caminhou para a cadeira vazia. —Os
lobisomem se fazem de duas formas, herdando os gens ou sendo mordido. A maior parte dos
lobisomem são hereditários, já que poucas pessoas mordidas por um lobisomem sobrevivem. Como os
gens passam só se herdam por linha masculina, as lobisomem femininas são muito estranhas.
O homem jovem pôs os olhos em branco — O que segue no Discovery Channel, um exame a
fundo dos lobisomens e o feminismo pelo Paige Winterbourne.
—Vai ao diabo, Adam.
—Não me apresse.
—Ignorem-nos, por favor - disse Ruth. —Adam e Paige se conhecem desde meninos. Às vezes
suspeito que não cresceram muito nos anos intermediários. Agora, apresentações. Esta ao meu lado é
Paige e o homem jovem é Adam, em caso de que não tenha sido perfeitamente óbvio. Nossa geração
mais jovem. O pobre homem apanhado entre os dois é Kenneth.
O homem de meia idade piscou, como se voltasse para a terra. Olhou-nos e dirigiu um sorriso
confuso.
—Ao outro lado do Adam está Cassandra.
O sorriso da mulher de cabelo castanho avermelhado não alcançou seus olhos, que nos estudavam
com interesse, mas pouca emoção.
—Isto não é o que vocês realmente querem saber, verdade? - disse Adam. —Ao menos, essa não
é a parte boa, não os quais somos, a não ser o que somos, verdade? Embora provavelmente seja melhor
explicar as duas partes por separado ou isto terminará por soar como uma apresentação de AA12 com
o maldito. “Olá, meu nome é Adam e sou um meio demônio.”
— Meio...? - respondi.
—Exatamente o que sonha. O humano de Mamãe. A encarnação viva do mal absoluto de Papai.
Por sorte, obtive minha aparência do lado de Mamãe. Meu pai não exatamente material para GQ13.
Não me perguntem o que minha mãe pensava. Obviamente muita tequila essa noite.
—Os demônios tomam forma humana para violar ou seduzir mulheres humanas - disse Paige. —
Os meios demônios sempre têm aspecto humano. Herdam outras qualidades de seus pais. Cada um
tem poderes diferentes, segundo o tipo de demônio que os engendrou.
—Os X-Men do sub mundo - disse Adam. —Agora que Paige resumiu com tanto esmero minha
biografia, aqui está a história do resto. Paige e Ruth, bruxas, mas vocês já sabiam. Cass, vampiro. Ken,
xamã. Sabem o que é um xamã?
—Sim - disse Jeremy.
— Então isso é tudo. As raças sobrenaturais principais, todas em um lugar, como um Refúgio de
Satã.
—Adam, por favor - disse Ruth. Voltou-se para nós. —Ao Adam gosta de brincar, mas posso lhes
assegurar, não somos maus, nem Discípulos de Satã, nem nada pelo estilo.
— Só gente normal - disse Adam.— Com algumas sutilezas.
Joguei uma olhada ao Adam. Então, este era um meio demônio. Uh-huh. Nunca tinha ouvido do
meio demônios antes de Pittsburgh, mas estava segura de que se tais coisas existissem não se deveriam
parecer com este tipo. Qualquer representação de demônios que eu tinha visto alguma vez, tinha
absolutamente claros vários pontos: tinham cascos fendidos, cascos, chifres, e caudas.
Logicamente, então, um meio demônio deveria ter ao menos a pele má. Não deveria ser um
moço com cara de menino, tão americano que parecia como os tipos que saúdam os visitantes no
Disney World. Talvez essa era a idéia. Talvez se supusesse que os meios demônios deviam parecer
encantadores e inofensivos. Seria muito mais fácil tentar a mortais para o mal sem cascos e chifres
arruinando a muito importante primeira impressão. Possivelmente baixo aquele exterior de olhos
muito abertos estava à espreita uma alma de pura maldade.
— Cadeiras - disse Adam, ficando de pé. —Vocês, meninos, necessitam cadeiras. Esperem.
Estarei de volta de um salto.
Talvez, profundamente escondida, estava a fonte do mal. Muito profundamente escondida.
Logo, estava Cassandra. Um vampiro? A quem enganava? Parecia-se tanto a uma sanguessuga
não morta como eu a um monstro meio lobo. Está bem, má analogia. O ponto era que Cassandra não
podia ser um vampiro. Não era só seu aspecto.
Vamos, ela se parecia menos a um demônio que dorme em uma cripta que a uma executiva da
Wall Street, a classe de mulher cujos vestidos de desenhista, manicure perfeita, e maquiagem quase
impecável eram uma armadilha à espera de saltar sobre alguém que confundisse o pacote com um sinal
de brandura interior.

12
AA: alcoólicos anônimos.

13
GQ: revista de moda para homens.
Mas o problema era mais profundo que isto. Muito mais profundo. Primeiro, não havia presas,
nada de presas de grande tamanho. Segundo, estava sentada em um quarto com luz do sol entrando
pelas janelas. Terceiro, não havia forma no inferno de que pudessem me convencer de que qualquer
mulher pudesse pentear seu cabelo e aplicar sua maquiagem tão bem se não podia ver seu reflexo em
um espelho. Nem sequer com um espelho de três caras, posso pôr meu cabelo em um coque sem deixar
mechas que me escapam em todas direções.
Jeremy deve ter estado pensando a mesma coisa porque começou dizendo, — Antes de que
comecemos, temos que esclarecer uma coisa. Não quero soar suspicaz mas…
—Não peça desculpas - disse Cassandra. —Deve ser suspicaz.
Jeremy assentiu com a cabeça —Embora Adam com tanto esmero os classificasse a cada um,
verão, poderíamos necessitar mais... provas concretas.
Disse — Para pô-lo sem rodeios, como sabemos que vocês são o que dizem ser? Diz que é um
vampiro, mas...
—Todos sabem que os vampiros não existem - disse Cassandra.
—É um pouco difícil de tragar - respondi. —Vampiros, bruxas, xamãs, demônios.
— Escuta a ti mesma? - disse Paige. —Não acredita no sobrenatural? É um lobisomem!
— Um presumido lobisomem.
Paige pôs os olhos em branco — Aqui vamos outra vez. Ainda não acredita que sejamos bruxas,
verdade? Inclusive depois que fizemos múltiplos feitiços para salvar sua vida…
— Salvar minha vida? - Chispei. —Você era quem passeava pelo vestíbulo do hotel em camisola de
noite, muito impaciente por ver o menino mau que bisbilhotava desde detrás da porta número um.
Adam riu. Paige lhe lançou um olhar cintilante.
—Bom - respondi, —Vou fingir que acredito em vampiros e bruxas. Como sei que realmente o
são? Sabem quantos malucos andam por aí acreditando que são vampiros? Confiem em mim, não quer
sabê-lo. Mantê-los-ia acordados toda a noite.
—Vi-os - disse Cassandra. —Grandes lábios pintados de negros, unhas com esmalte negro,
absolutamente, zero sentido de estética. De onde tiraram a idéia de que os vampiros são daltônicos? -
Ela levantou sua lapiseira e me ofereceu. —Pode isso me apunhalar com isto. Só que não no coração,
por favor.
—Muito sujo - respondi.
Ela se tornou para trás na cadeira, seus olhos sobre mim como se ninguém mais estivesse no
quarto. Eu podia sentir a curiosidade em seu olhar fixo enquanto se movia através de meu rosto, me
estudando. Seus lábios se curvaram em um sorriso, ainda mais fria, mas agora tinta de um interesse
amistoso.
— Poderia te morder - disse ela.
—Eu poderia te morder de volta.
O sorriso tocou seus olhos cor de avelã — Interessante pensamento. O que acredita que
aconteceria? Um híbrido de vampiro/lobisomem? Ou não teria nenhum efeito? Intrigante idéia, mas
pouco prática neste momento. Poderíamos comparar presas.
—Definitivamente, uma coisa de meninos.
Ela riu —Exatamente.
—Talvez poderia me explicar então - disse. —Se for um vampiro.—Olhei a luz do sol que entrava
pela janela.
— Por que não explodo em uma nuvem de pó? Frequentemente me perguntei isso. Como Adam
diria, “Maldição, outro mito que se foi ao diabo”. Estou completamente feliz de que este em particular
não seja verdadeiro. Uma eternidade sem férias nas praias do Caribe seria mais do que poderia dirigir.
Foi muito mais desalentador quando descobri que não podia voar. Mas quanto a uma demonstração,
talvez esta sirva.
Cassandra pôs sua mão esquerda na mesa, levantou a lapiseira, e o enterrou em sua palma
estendida, mais ou menos 2 centímetros em sua mão. Ruth estremeceu e olhou longe. Cassandra
examinou o dano com frio detalhe, como se tivesse apunhalado o tabuleiro.
—Um pobre trabalho - disse ela. —A diferença dos lobisomens, não temos uma super força. Isto
é o melhor que eu possa fazer, mas deveria demonstrar meu ponto.
Atirou a lapiseira, logo levantou sua palma para me deixar examinar. A espetada estava tão limpa
como um buraco feito com uma unha em um pedaço de cera. Quando olhei, as bordas da ferida se
estavam juntando, a carne reconstituindo-se. Dentro de um minuto, sua pele estaria lisa e
irrepreensível.
—Nada dor, nada sangue, nenhum alvoroço - disse ela. —O suficientemente bom?
—Sim - disse Jeremy. —Obrigado.
— Meu turno? -disse Paige. —O que posso fazer para te convencer, Elena? Conjurar um
demônio?
— Paige! -Os olhos da Ruth se alargaram alarmados. Rapidamente se girou para nós. —Me
deixem lhes assegurar que não conjuramos demônios. Além de encantamentos de autodefesa simples,
as bruxas praticam só magia benévola.
—E que não faz nenhum dano, é o que quer dizer - murmurou Cassandra.
Ruth sussurrou algo ao Paige, que assentiu com a cabeça, encolheu os ombros, pôs os olhos em
branco, claramente adotando a defesa popular dos jovens: “Estúpidos, só estava brincando.” Teria
estado brincado? Não a respeito de conjurar um demônio, a não ser a respeito de ser capaz de fazê-lo?
Ruth disse que só praticavam a chamada magia branca. Era isso tudo o que poderiam fazer? Ou tudo o
que deviam fazer? Ou, talvez certa aprendiz de bruxa, não era muito feliz com seu papel predefinido
como descendente direta da Boa Bruxa do Norte? Hmmm.
—É suficiente de demonstrações - disse Jeremy. —Agora mesmo, eu gostaria de saber mais
sobre esses homens que espreitaram a Elena.
—Ouvi sobre isso - disse Adam, sorrindo abertamente para mim. —A primeira baixa de guerra.
Bom trabalho. Sinto-me invejoso.
—Deveria está-lo - disse Paige.
Ruth lhes jogou uma olhada aos dois com um olhar 90 por cento de afeto exasperado e o outros
10 por cento de suave advertência. Calaram-se tão rapidamente como se tivessem recebido um açoite
na língua. Ruth fez uma pausa, como se assegurando de que foram estar tranquilos, logo começou sua
história.

AGENDA
Cinco semanas atrás, um xamã tinha sido sequestrado e se pôs em contato com Kenneth via
projeção astral, fosse isso o que fosse. Quando ficou em contato com Kenneth, ele estava ferido
gravemente. Um xamã nunca era fisicamente o bastante forte para começar, por isso não custava muito
machucar a um, ou um pouco parecido, segundo Ruth explicou. Devido a sua débil condição, sua
comunicação foi entrecortada e às vezes incoerente. Pelo que Kenneth pôde distinguir, o xamã tinha
sido sequestrado por dois homens e levado a um recinto há dois dias conduzindo desde seu lar na
Virgínia. Ali, outros dois homens o tinham interrogado a respeito de seus poderes e habilidades. Nos
primeiros dias de seu cativeiro, o xamã tinha tido a força suficiente para projetar-se astralmente através
do recinto de noite, procurando pistas sobre quem o tinha capturado e por que. Tinha aprendido os
nomes dos dois homens que o tinham interrogado, Lawrence Matasumi e Tyrone Winsloe. O nome do
Winsloe não significava nada para o xamã ou para Kenneth. Pelo visto os acontecimentos atuais não
estavam muito acima na escala de prioridades do xamã.
Enquanto este xamã se projetou astralmente, tinha descoberto que não era o único ser
sobrenatural que estava no recinto. Seus captores tinham um meio demônio capaz de teletransportar-
se, que provavelmente era Houdini, entre seu pessoal. Também tinha ouvido que um feiticeiro lhes
assistia, embora nunca viu o homem. Quanto aos outros cativos, quando se projetou astralmente pela
primeira vez, encontrou uma bruxa, dois meio demônios, e um sacerdote Vodu. Então a bruxa
desapareceu e se deu conta de que outra, uma bruxa mais forte tinha sido assinalada como branco para
que tomasse seu lugar.
Era tudo o que xamã sabia. Tinha prometido entrar em contato com Kenneth novamente ao dia
seguinte, mas nunca o fez. Quando Kenneth comunicou a informação a Ruth, Paige reconheceu o nome
do Winsloe e usou Internet para detectar ao Lawrence Matasumi, um renomado investigador de
parapsicologia.
— Tiveram um pouco de sorte encontrando a esses homens? - perguntou Jeremy quando Ruth
terminou.
— Encontrá-los? - disse Adam. —Infernos, não. Imaginamos que nos esconderíamos e
rezaríamos para que eles não nos encontrassem.
—Realmente, estivemos debatendo a respeito desse assunto. - disse Ruth, não fazendo caso ou
não ouvindo o sarcasmo do Adam.
— Temos feito? - disse Adam. —Pensei que estava decidido. Reativos, não proativos. Essa é
nossa forma de ser. Bom, é a forma das bruxas, e desde que elas conduzem estas reuniões…
—Por que, Adam - disse Paige, —está expressando interesse em um papel de maior comando?
Mais responsabilidades?
Ele só sorriu abertamente. Descarte o pensamento. Eu só dizia que, como nossas estimadas
líderes, as bruxas geralmente tomam tais decisões estratégicas, e decidiram que procuremos forma de
nos esconder.
—Temos que discutir o assunto mais adiante- disse Cassandra — É uma situação nova para nós.
Nunca tivemos que nos preocupar de descobrir aqueles que nos ameaçam. Se alguém pensar que eles
têm prova de vampiros, não estarão interessados em explorar as complexidades de nossas vidas.
Calculam quanto dinheiro obterão escrevendo um livro. Descobri-los não é um problema. Agitam
enormes bandeiras vermelhas dizendo, “Me encontrem, por favor,” me encontrem e me façam rico.
—Mas com estes tipos é diferente - respondi. —Então, ameaça diferente, resposta diferente,
verdade? Eles se escondem então vocês têm que encontrá-los.
— E o que? - perguntou Paige. —Pedir-lhes que deixem de nos caçar?
Jeremy olhou a Ruth. —Se encontrarmos a ameaça, eliminamos. Essa é nossa forma de fazer as
coisas.
—Aponto-me - disse Adam.
— Vamos tomar medidas - disse Ruth. —Já sabe Adam, embora nossa idéia de ação pode não
ser igual à tua. Esta é uma ameaça séria, e não me sinto tranquila, nem sequer reunidos aqui para
discuti-lo. Não importa quão cuidadoso tenhamos sido em preparar esta reunião, temos sete seres
sobrenaturais em um só lugar, cada um dos quais esses homens estariam felizes de colecionar.
— Isso é o que fazem? - perguntou Jeremy. —Colecionar?
— Não temos claros seus motivos - disse Ruth. —Não era algo que Roger, o xamã sequestrado,
foi capaz de determinar. Por isso observou, sabemos que nos estudam, tratando de encontrar a raiz de
nossos poderes.
— Então poderiam encontrar um modo de usá-los para si mesmos - disse Paige.
Ruth franziu o cenho. —Não estamos seguros disso. Eu não gosto de tirar conclusões apressadas,
mas sim, que parece ser uma motivação viável. A presença do Lawrence Matasumi em sua equipe
sugeriria fortes interesses científicos.
—E a presença do Ty Winsloe significa que alguém espera cobrar em efetivo - disse Paige. —
Winsloe não é nenhum filantropo. O tipo não cruzaria a rua para salvar a uma senhora velha a menos
que lhe deixasse sua herança por sua moléstia.
Um pequeno cenho franzido por parte da Ruth. —Possivelmente. O ponto é, entretanto, que eles
parecem querer controlar nossos poderes. Para ganho pessoal ou em nome da ciência, não importa.
—Não podem conseguir meus poderes - disse Adam. —São estritamente hereditários.
— Está seguro disso? - disse Paige. —Talvez se eles lhe despedaçarem, órgão por órgão, poderiam
encontrar em sua estrutura física, exatamente o que te dá esses poderes. É obvio, se o encontrarem ou
não, não lhe importariam muito, já que estaria em um montão de pequenas bolsas de autópsia.
—Uma agradável perspectiva, Paige - disse Adam.
—O ponto é - disse Ruth, —que não sabemos o que podem conseguir de nós. Alguns costumes
como encantamentos menores, podem ser aprendidos. Quanto a converter-se em um lobisomem ou
em um vampiro, é um assunto friamente simples. E se estes homens começavam a vender a capacidade
de converter-se em lobisomem?
—Não acredito que consigam muito - resmunguei.
—Estou segura de que muita gente veria as vantagens de possuir uma força sobre-humana -
disse Ruth.
—Por não mencionar a prolongada juventude - acrescentou Paige. —Teria centenas de idiotas
alinhados por isso. A última alternativa a cirurgia plástica: Converta-se em um lobisomem.
—O ponto é - disse Ruth, outra vez, — que tendo a capacidade para fazer essas coisas,
livremente, ou não tão livremente, distribuem esses poderes, estes homens poderiam transtornar o
equilíbrio ecológico. A gente morreria. A espécie humana estaria em perigo, ameaçada pela pior classe
de excessos, ditadores imortais, tiranos que lancem feitiços, assassinos múltiplos que poderiam tomar
a forma de lobos…
—Está ali, faz isso - murmurei bastante baixo para que só Jeremy pudesse ouvir. Um sorriso
faiscou em seus olhos, mas manteve sua cara impassível.
—Temos que pensar além de nós - disse Ruth.
— Nós? - perguntou Cassandra. —Sei que assim é como se sente, Ruth, mas eu não estou tão
terrivelmente preocupada em proteger à espécie humana da autodestruição. Preocupa-me o que esta
ameaça significa para mim. Se me disser que esses homens querem me sequestrar, essa é uma razão
bastante boa para mim para tomar isto a sério. A pergunta é, o que vamos fazer sobre isso?
Certamente, essa era a pergunta. E passamos as sete horas seguintes falando disso, enviando ao
Adam e a Paige a procurar o almoço às 13h00min e logo que detivemos o debate o tempo suficiente
para comer.
Assim, qual era o plano da Ruth? Bem, o passo um era que cada delegado notificasse a seus
companheiros monstros. Parece simples e lógico, verdade? É obvio, Jeremy notificaria ao resto da
Manada. Ele nunca sonharia fazendo outra coisa. Agora que ele compreendia o grau do perigo, diria ao
Clay que se reunisse conosco em seguida. Feito isso, só teria que fazer outra chamada telefônica. Duas
mortes em uma escaramuça o ano passado com os guias de ruas, tinham-nos reduzido a uma manada
de cinco. Além de Clay, Jeremy, e eu, estavam só Antonio Sorrentino e seu filho, Nick. Sempre havia
uma meia dúzia e algo mais de guias de ruas tratando de ser admitidos na Manada, e com nosso número
diminuído, Jeremy estava considerando a dois ou três, mas não tinha nenhuma pressa em tomar uma
decisão, de modo que, no momento, só éramos cinco. Duas simples chamadas telefônicas. Mas isso
não era o que as bruxas queriam. Queriam que nós notificássemos aos cães de ruas. Dizer-lhes o que?
Como Jeremy explicou, os guias de ruas eram nômades. O território era para a Manada. Só um guia de
ruas tinha território, e era um acerto especial. Então Ruth queria que nós notificássemos a esse guia de
ruas em particular e lhe deixássemos ficar em contato com outros. Bom. Seguro. Podia vê-lo agora. Eu
chamaria Karl Marsten, pedir-lhe-ia que lhe dissesse uma mensagem a seus “companheiros guias de
ruas” e ele riria até que lhe arrebentasse a tripa. Ainda riria quando desligasse o telefone em minha
cara.
Ruth não entendia a forma em que as coisas funcionavam. Como nós, as bruxas tinham um
pequeno grupo central, que chamavam o Aquelarre. Mais bruxas viviam fora do Aquelarre que dentro
dele, tal como a Manada e os guias de ruas. As bruxas exteriores eram consideradas uma classe inferior,
tal como os guias de ruas. Mas, a diferença de nós, as bruxas não admitiam que as outras eram
inferiores. Oh, não. Segundo Ruth, as bruxas exteriores eram pobres almas perdidas necessitadas de
amparo e conversão. Recordava-me um dos primeiros missionários cristão falando a respeito dos Índios
Americanos, e notei que Paige se retorcia enquanto sua tia falava. Em todo caso, a diferença dos
missionários, Ruth não queria que estas bruxas exteriores se unissem a seu, digamo-lo assim, “igreja”,
quer dizer, seu Aquelarre. Oh, não. Só queriam que vivessem boas e apropriadas vistas elas sozinhas.
O Aquelarre era especial.
Se pensássemos em que a possibilidade de notificar aos lobisomem existia, informar aos vampiros
e aos meio demônios eram quase impossível. Cassandra sabia onde encontrar a uma dúzia de casais
vivos de (deveria dizer existentes?) vampiros, mas não tinha nenhum interesse zero em lhe avisar a
ninguém e deixou claro que ela não perderia seu tempo em uma tarefa tão ridícula. Deixemos que
outros cuidem de si mesmos. Em relação aos meio demônios, havia, aparentemente, mais de cem só
na América do Norte, perto de 50 por cento deles, e se os notificava, inclusive poderiam solicitar
emprego ao inimigo.
Agora, é obvio Ruth não queria que nos puséssemos em contato cada um dos membros de nossa
raça, mas esperava que notificássemos ao menos a uns quantos e lhes puséssemos em alerta. Era algo
que ninguém, exceto Kenneth, queria fazer. Jeremy, Cassandra, e Adam reconheciam que era uma
perda de tempo. Depois de umas horas argumentando o ponto, abandonaram-no e passaram ao ponto
dois.
Todos convieram no ponto dois: Aprender mais sobre o inimigo. Como fazê-lo era outro assunto,
mas todos convieram no princípio. Tínhamos que saber mais. E o ponto três? Não perguntem pelo
ponto três. O grupo se dividiu entre bruxas e xamãs que queriam encontrar um modo de desalentar ou
desacreditar a nossos antagonistas, e os lobisomem e os meios demônios que queriam eliminá-los.
Cassandra não se interessava muito nem em uma nem em outra forma, enquanto esta gente partisse
e a deixasse em paz.
Às 7 horas da noite ainda falávamos. Todos estávamos cansados e um pouco fartos. Quando
Ruth sugeriu que pedíssemos a comida, a resposta foi um ressonante Não! Necessitávamos um
descanso. Conduziríamos até o Kingston para comer, logo voltaríamos para a reunião. Tal como Ruth
havia dito com antecedência, nossa reunião era perigosa por si mesmo. Todos queríamos decidir um
curso de ação esse dia e sair o mais rápido possível da Sparta.
Quando a reunião se dissolveu para comer, todos, exceto Paige, caminharam em massa para o
estacionamento. Talvez tivesse que arrumar seus apontamentos. Ou possivelmente ela era a equipe de
limpeza. Quando saímos, Kenneth e Cassandra se dirigiam separados aos carros alugados. Jeremy e eu
íamos para a caminhonete quando Ruth o chamou. Jeremy me fez gestos para ir a caminhonete e voltou
rapidamente até a Ruth.
— Rebanho de assustadiços, né!? - disse uma voz a minha esquerda.
Girei-me para ver o Adam trotando a meu lado.
Sorriu abertamente — Então qual era a parte mais atemorizante? A agenda do dia? As
rosquinhas polvilhadas?
—Por favor me diga que as bruxas não cobram um quarto de dólar pelo café e as rosquinhas.
—Não, não, não. Não viu o letreiro. São cinquenta centavos por um café e por uma rosquinha.
Um quarto cada um. Seriamente, entretanto, isso é parte dos misteres do Centro Comunitário. Mas a
agenda e a pronta de pontos eram definitivamente coisa da Ruth. Um tipo que estava acostumado a
ser delegado me disse, faz anos, que as bruxas tinham uma declaração de sua missão e um código de
conduta para estas reuniões. Acreditava que estava brincando, mas nunca tinha estado seguro.
—Então elas sempre são tão... formais?
Adam riu — Formais. É uma boa palavra para descrever às bruxas. Bom, talvez não a Paige, mas
certamente sim a Ruth e ao resto delas. Terrivelmente formais. Este é um assunto importante,
maldição! - Pôs os olhos em branco. —Todo mundo tem que ter uma afeição, e a das bruxas, é organizar
estas reuniões. Ouça, é certo que deixou a Paige essas contusões ao redor do pescoço?
—Foi um mal-entendido.
Ele sorriu abertamente — Apostaria. Também apostaria a que o merecia. Paige pode ser uma
enorme moléstia, mas também pode ser muita diversão. Tem que tomar cuidado em que lado dela
aterrissa - Jogou uma olhada para trás até Jeremy e Ruth. —Acredita que seu líder pode levar a estes
tipos a tomar medidas?
—Se ele não puder, faremo-lo nós mesmos. Não estamos acostumados a aceitar ordens de
outros.
—Minha gente tampouco. É por isso que os necessitamos nestas reuniões. Um líder forte, não
passivo.
— Um líder macho?
Adam levantou ambas as mãos para me rechaçar — Não disse isto. Não é uma coisa de gênero.
É uma coisa de raça. As bruxas e os xamãs não se parecem conosco. E os vampiros? Bom, eles não
parecem com ninguém, que é exatamente como gostam de ser. Cass pode chutar um traseiro se o
desejar. Não é super forte ou algo assim, mas como ela disse, a questão de regenerar-se é realmente
prática em uma luta. O tipo te pega um tiro, só segue andando e lhe tira a arma. Muito agradável.
— São imortais?
—Nah. Não exatamente, de todos os modos. Podem regenerar-se, vivem centenas de anos, e
são malditamente difíceis de matar. O bastante perto da imortalidade para mim.
Antes que pudesse perguntar algo mais, Paige se uniu a nós.
—Vou contigo - disse a Adam. —Kenneth se ofereceu para levar a Ruth. Eu iria, mas à velocidade
que ele conduz, deprimir-me-ia de fome antes que chegássemos ao restaurante - Me jogou uma olhada.
—Quer vir conosco?
Estive a ponto de declinar quando Jeremy me chamou, me economizando o problema de lhes
dar uma desculpa cortês. Respondi que os veria no restaurante e trotei para o Jeremy.

QUEIMADA
Tínhamos decidido comer em um restaurante italiano. Má escolha. Embora fossem quase as oito,
o lugar estava lotado. Esta parte de Vermont não tinha muitas ofertas em boa comida, ou ao menos,
isso parecia se a alguém, dentro de um raio de cinquenta milhas, não gostava dos hambúrgueres. Não
havia nenhuma esperança de conseguir uma mesa para sete, por isso consentimos em nos separar.
Quando o garçom nos encontrou uma mesa para seis e uma mesa para dois, Cassandra ofereceu ficar
na mesa pequena. Ao princípio, pensei que queria comer sozinha, o qual não me teria surpreso, mas
em vez disso, ela me convidou a me unir a ela. Não fui a única sobressaltada por isso. Paige me
contemplou como se tentasse imaginar o que poderia estar possuindo a Cassandra para me escolher
como sua companheira de mesa. Acredito que ela teria estado menos surpreendida se Cassandra me
tivesse convidado a ser a comida. Inclusive Kenneth piscou, o qual parecia um sinal seguro de que um
convite a comer da Cassandra não era um acontecimento comum. Confesso que me senti adulada.
Cassandra não parecia o tipo que necessitasse, muito menos quisesse, companhia.
Cassandra e eu nos sentamos separadas dos outros, no pátio. Perguntei-me se comeria a comida.
Pediu o frango parmegiana e vinho branco. Enquanto bebia o vinho, só deu umas poucas mordidas ao
frango, logo moveu o alimento ao redor de seu prato para fazê-lo ver como se tivesse comido mais.
Talvez comeria mais tarde. Realmente não queria pensar neles. A delicadeza culinária pode parecer
absurda a alguém que come coelho cru, mas havia uma diferença entre o que me parecia como lobo e
o que me parecia como humano. Tão bom como o sabor os cervos recentemente assassinados depois
caçá-los, eu não gostava de pensá-la comendo frutos do mar.
— Tem curiosidade - disse Cassandra depois de que nossas comidas chegaram. —Mas não faz
perguntas. Estranho por ser jornalista.
— Quanto haviam dito Ruth e Paige a outros a respeito de mim?
—Depende do tipo de jornalista - disse. —Trabalho em política e questões sociais. Assuntos
estritamente da vida pública. Tenho que escavar pouca sujeira de natureza pessoal.
—De modo que evita as perguntas pessoais. Provavelmente porque não quer a ninguém te
devolvendo tais perguntas. Se tiver curiosidade, pode perguntar. Não me oponho.
—De acordo - respondi... e não perguntei nada.
Depois de uns minutos de silêncio, decidi que realmente deveria perguntar algo. Não só algo,
mas também uma grande pergunta. Depois de tudo, estava-me saltando a pergunta à cara, da comida
logo que tocada da Cassandra.
Gesticulei para seu prato. —Suponho que o frango não é de seu agrado.
—Sólidos em geral. Posso comer algumas dentadas, mas mais que isso me provoca um caso
repugnante de indigestão.
Ela esperou, com seu rosto inexpressivo, mas um sorriso brilhando em seus olhos.
— Não tem sentido perguntá-lo, verdade? - Respondi, bebendo a sorvos meu vinho. —Perguntar
se os vampiros, já sabe, seria como perguntar se lobisomem trocam em lobos. É o selo da espécie.
—Realmente, em meu caso, estaria confundida. Já sei, já sei, tem lido tantas histórias. Mas não
são exatamente verdadeiras. É mais, enfatizo energicamente que não durmo em um ataúde - fez uma
pausa, logo arqueou as sobrancelhas. — Oh, não era isso o que queria dizer?
—Queria dizer, obviamente se bebia… - gesticulei para minha taça.
—Borgonha? Prefiro o branco. Sim, posso beber vinho. Graças ao céu pelos pequenos favores
concedidos. São só os sólidos os que me provocam problemas. Deixe-me te dar uma mão, Elena.
Acredito que a palavra que busca é “sangue”.
—Isso. Ia da mente.
Ela riu, uma risada rouca que assustou ao garçom que saía pela porta ao pátio. Pedimos mais
vinho, logo esperamos até que se partiu.
— Então, o que faz por estes dias? - disse. —Entregas a domicílio do banco de sangue?
—Que lhe atemorizem, não.
— Um trato especial com o açougueiro?
—A FDA o desaprovaria provavelmente. Tristemente, estamos apanhados, temos que conseguir
nossa comida da forma antiga.
—Ah.
—Ah, em efeito - disse ela com outra gargalhada. —Sim, bebo-o diretamente da fonte. Com
algumas regra, entretanto. Nada de meninos. Ninguém abaixo de trinta. Fá-lo mais esportivo.
— Mencionei que tenho vinte e oito anos?
—Isso não é o que ouvi - Sorriu abertamente. —Não tem necessidade de preocupar-se. Os
ditados de cortesia dizem que nunca chupamos o sangue vital de alguém a quem fomos formalmente
apresentados.
Cortou uns pedaços do frango e os moveu ao redor de seu prato. —Para ser sincera, tentei-o
com sangue animal e bancos de sangue. Mas não funciona. Viver com isso é como subsistir a pão e
água. Existimos, mas apenas. Alguns ainda o fazem. Sou muito egoísta. Se estiver viva, quero estar
completamente viva. A única desculpa que posso dar consiste em que trato de escolher a aqueles que
dão a boas-vindas à morte, os velhos, os doentes, os suicidas. Engano-me, é obvio. Posso dizer que um
homem quer morrer, mas não tenho nenhum modo de saber se estiver a ponto de subir um edifício
vinte pisos ou está temporariamente deprimido por um coração quebrado. A vida seria tão mais simples
se perdêssemos nossas almas quando nascemos de novo, se perdêssemos a capacidade de sentir,
discernir o bom do mau. Mas suponho por isso é que eles o chamam uma maldição. Ainda sabemos.
—Mas não tem escolha.
—Oh, sempre há uma opção. Suicídio. Alguns o fazem. A maioria o considera, mas a vontade
para sobreviver é, ao final, muito forte. Se isso significar a escolha entre a morte deles e a minha,
maldito seja o altruísmo. É o lema do realmente forte. Ou do incrivelmente egoísta.
Ficamos queiram um momento, logo ela disse — Suponho então, que os lobisomem não são
canibais?
— Quer dizer se comemos humanos, ou a outros lobisomens, o qual seria, em sentido estrito,
canibalismo.
— Você não se considera humana?
—Em grau relativo. Eu mesma, ainda penso meio-humano, meio-lobo. Cla…, outros não o fazem.
Consideram os lobisomens como uma espécie à parte. Não estou evitando a pergunta. Os lobos da
Manada estão proibidos de comer humanos. Não o faríamos, de todos os modos. Não tem sentido.
Comer humanos não serviria a nenhum outro objetivo além de saciar uma fome que pode ser
facilmente satisfeita por um cervo.
— É fácil então?
— Desejá-lo-ia. Infelizmente, não é só a fome. Está o instinto de caçar, e, tenho que admiti-lo,
os humanos o satisfazem muito melhor que qualquer animal.
Os olhos da Cassandra brilharam. —O Jogo mais Perigoso.
O pensamento me golpeou então, quão estranho devia ser falar disto com outra mulher. Sacudi-
me isso e continuei, — O problema é, que é difícil caçar sem matar. É possível, mas perigoso, arriscando
a possibilidade que não será capaz de te deter antes de matar. Os lobisomens que não pertencem a
emanadas caçam, assassinam, e comem humanos. A tentação é muito grande, e a maioria não está
interessada em controlar seus impulsos.
O garçom saiu para tomar nossa ordem de sobremesa. Estive a ponto de passar, tal como
geralmente fazia quando jantava com outras mulheres, logo compreendi que não importava. Cassandra
não se preocuparia se comia três pedaços do bolo. Então pedi tiramisu e um café. Cassandra secundou
o café. Quando o garçom deu a volta para partir, Cassandra estendeu a mão e agarrou sua boneca.
—Descafeinado - disse ela.
Enquanto falava, manteve sua mão na boneca dele, o polegar pressionado sobre seu pulso. O
garçom era jovem de jeito latino, grandes olhos escuros e suave pele verde oliva. Dava-se conta de que
ela sustentava seu braço muito tempo? Não tinha possibilidade. Enquanto ela o chamava de volta e
trocava sua ordem, manteve seus olhos nele, como ele fosse a coisa mais fascinante no lugar. E parecia
um camundongo encantado por uma cobra. Se lhe tivesse pedido que fosse ao beco traseiro com ela,
teria tropeçado com seus pés para obedecer. Quando finalmente liberou seu braço, ele piscou, então
algo como desilusão cruzou sua cara. Prometeu apressar-se com o café e voltou para a cozinha.
—Às vezes quase não posso resistir - disse Cassandra depois de que se foi. —Inclusive quando
não tenho fome. A intoxicação do poder. Um vício repugnante, não acredita?
—É... tentador.
Cassandra riu. —Não tem que fingir comigo, Elena. O poder é uma coisa gloriosa, sobretudo para
mulheres. Passei quarenta e seis anos como uma mulher humana no século dezessete na Europa. Teria
matado por uma possibilidade de ter poder - Seus lábios se torceram em um sorriso perverso. —Mas
suponho que a tive, verdade? As opções um as cria -Se inclinou para trás e me estudou, logo sorriu
outra vez. —Acredito que você e eu poderíamos nos levar perfeitamente bem, algo estranho para mim,
encontrar uma guerreira que não é outro vampiro ensimesmado.
Nossos cafés e minha sobremesa chegaram então. Perguntei a Cassandra o que era viver por
tanto tempo como ela o tinha feito, e ela me deu de presente histórias durante o resto do jantar.
Depois do jantar, Adam repetiu a oferta do Paige de nos unir a eles no caminho de volta ao
Centro Comunitário. Novamente, estive a ponto de declinar, mas esta vez Jeremy o ouviu por acaso e
insistiu em ir, provavelmente esperando que os dois delegados mais jovens falassem mais livremente
sem seus mais velhos ao redor. Por sua parte, prometeu nos seguir na caminhonete Explorer.

***

A diferença de Jeremy, Adam não tinha encontrado estacionamento na pequena parte atrás do
restaurante, de modo que nós três nos afastamos de outros e dirigimos a uma rua lateral. Diante, ao
outro lado do caminho, vi o velho Jipe que estava no estacionamento do Centro Comunitário, e com a
matrícula de Califórnia.
— Teu? - perguntei ao Adam.
—Infelizmente.
—Está um pouco usado.
—Bastante usado. Em um Jipe, muito, muito utilizado. Acredito que sacudi dois amortecedores
esta vez. Superar o limite de velocidade é quase impossível. E adiantar? Esquece-o. É mais fácil conduzir
sob o limite inferior do tráfego. A próxima vez, economizarei meus penes para poder viajar de avião.
—Diz isso toda vez - disse Paige. —Robert te compraria um ingresso de avião qualquer dia, mas
sempre te nega. Ama conduzir esse pedaço de merda.
— O calor se está levando o romance. Uma vez mais - merda!
Elevei a vista para ver um Yukon estacionado um ponto adiante do Jipe do Adam. O espaço era
apenas grande para encaixar um compacto. A enorme caminhonete andou marcha atrás até que esteve
a centímetros do pára-choque dianteiro do Jipe. Outro carro estava estacionado a menos de um pé da
parte traseira do Jipe.
— Hey! - chamou Adam enquanto trotava para o Yukon. —Espere!
Uma mulher de quarenta e alguma coisa no assento do passageiro deu a volta e olhou ao Adam
com rosto inexpressivo.
—Estou bem atrás de vocês - disse ele, lhe dirigindo um amplo sorriso. —Poderia avançar um
segundo? Sairei dali e terá montões de espaço.
A janela de passageiros estava abaixo, mas a mulher não respondeu. Olhou o assento do
condutor. Não trocaram palavras. A porta do condutor se abriu e um homem com camisa de golfe saiu.
Sua esposa fez o mesmo.
— Hey! - chamou Adam. —Me ouviram? Encaixotaram-me. Se puder avançar um pouco, estarei
fora dali em um salto.
O homem fez clique em seu controle remoto. O alarme piou. Sua esposa ficou a seu lado e se
dirigiram para o restaurante.
—Asnos - resmungou Paige. —Possuem um gasoduto de cinquenta mil dólares e acreditam
possuir toda a maldita estrada.
—Falarei com eles - disse. —Talvez ele escute a uma mulher.
—Não o faça. Ela agarrou meu braço. —Alcançaremos aos outros e voltaremos pegar o Jipe mais
tarde.
—Só vou falar com eles.
Ela jogou uma olhada ao Adam, que olhava ao casal. —Não é por ti que estou preocupada.
O homem se virou agora, seus lábios curvando-se quando lhe lançou um insulto Adam.
— O que disse? - gritou Adam.
—Oh, merda - murmurou Paige.
O homem voltou as costas ao Adam.
— O que disse? - gritou Adam.
Enquanto Adam gritava ao homem, tomei a decisão, em uma fração de segundo, de interferir.
Tratávamos de manter um sob perfil e não podíamos nos permitir chamar a atenção com uma briga
que poderia implicar à polícia. Adam deveria ter sabido isto, mas suponho que inclusive os homens
jovens mais tranquilos podem estar sujeitos a quebras de onda de testosterona.
Quando dava volta para ir detrás o Adam, Paige agarrou meu braço.
—Espera - disse. —Não faça…
Puxei meu braço e comecei a correr, não fazendo caso de seus gritos de advertência e de seus
passos me seguindo. Quando me aproximei do Adam, cheirei fogo. Não de fumaça de charuto ou um
tição ou enxofre, a não ser o aroma subjacente ao fogo mesmo. Não fazendo caso disso, agarrei ao
pulso de Adam e o fiz virar.
—Esquece-o - disse quando ele se girou. —Jeremy pode nos levar…
Adam me confrontou agora, e soube de onde vinha o aroma de fogo. Seus olhos brilhavam
carmesins. O branco era um vermelho luminescente, cintilando com uma raiva sem fim.
—Afasta suas mãos de mim - retumbou ele.
Não havia rastro da voz do Adam nas palavras, nenhum sinal dele em sua cara. O calor emanava
de seu corpo em feitas ondas. Era como estar muito perto de uma fogueira. O suor saltou de meus
poros. Afastei meu rosto do calor, ainda sustentando seu pulso. Ele me agarrou, uma mão em cada
antebraço. Algo chispou. Ouvi-o primeiro, e tive um segundo para me perguntar o que era, logo estive
cega pela dor que atravessava meus braços. Ele me soltou e tropecei para trás. Vergões vermelhos se
elevaram imediatamente em meus antebraços.
Paige me agarrou, me estabilizando. Empurrei-a longe e me voltei para o Adam. Caminhava a
pernadas para um beco vazio.
—Ele está bem - disse Paige. —Ficará sob controle agora.
A caminhonete Explorer dobrou a esquina. Agitei meus braços para o Jeremy para que se
detivesse e abri a porta de passageiros antes de que os da outra caminhonete chegassem. Quando
saltei dentro, o olhar fixo do Jeremy foi a meus braços queimados e sua boca se apertou, mas não disse
nada. Esperou até estive dentro, logo apertou o acelerador.
DISSECAÇÃO
Enquanto Jeremy conduzia, expliquei-lhe o que tinha passado. Uma vez fora da cidade, Jeremy
se deteve em um posto de gasolina, estacionou diante da cabine telefônica, e saiu. Uns minutos mais
tarde voltou e tomou a estrada de volta.
— Ruth? - perguntei.
—Disse-lhe que não voltaríamos para a reunião esta noite. Ouviu o que aconteceu. Estava muito
compungida. Perguntou se viríamos se reunissem outra vez amanhã. Disse-lhe que não sabia por isso
ela quer que a volte a chamar esta noite e nos inteiremos do que eles decidam.
— Fá-lo-á?
—Provavelmente. Minha primeira prioridade é proteger à Manada. Para fazer isso, teríamos que
unir a esta gente temporariamente, enquanto investigam esta ameaça. Têm recursos que nós não.
Durante o jantar falamos dessa projeção astral que realizam os xamãs, e sonha como um instrumento
inestimável para aprender mais a respeito destes homens que encontrou em Pittsburgh. Além disso,
não tenho nenhuma intenção de ficar para lhes ajudar. Nós lutamos nossas próprias batalhas.
No silêncio que seguiu, refleti sobre nosso dia, nas coisas esmagadoras que tínhamos descoberto.
Esmagadoras para mim, ao menos. Jeremy não só não parecia desconcertado, mas também tampouco
surpreso por tudo isto. Eu poderia atribuí-lo a seu equilíbrio habitual, mas sua resposta a tudo parecia
demasiado calma, inclusive para ele.
—Você sabia - respondi. —Sabia que havia outras... coisas aí fora. Além de nós.
—Tinha ouvido rumores. Quando era um menino. Largas noites, depois de uma Reunião, de vez
em quando, falava-se da possibilidade de que existissem outras criaturas, vampiros, feiticeiros, e outros
pelo estilo. Alguém recordava a um tio que uma vez tinha conhecido a um ser com estranhos poderes,
essa classe de coisas. Muitos humanos discutem sobre a existência de aliens e fantasmas. Alguns
acreditavam. A maioria não.
— Você o fazia?
—Parecia improvável que fôssemos as únicas criaturas legendárias com base real - Conduziu em
silencio durante um momento, logo continuou. —Uma vez, pouco antes de sua morte, meu avô me
disse que seu avô dizia haver-se sentado em um conselho do que Ruth chamaria “seres sobrenaturais”.
Meu avô suspeitava que a história poderia ter sido simplesmente a imaginação confusas de um ancião,
mas acreditou que me devia contar isso se fosse certo, se outras criaturas existissem, então alguém na
Manada devia ser consciente da possibilidade.
— Não deveriam todos os membros da Manada ter sido conscientes da possibilidade? -disse. —
Sem ofender, Jer, mas eu realmente teria apreciado uma advertência.
—Para ser sincero, o pensamento nunca cruzou por minha mente. Nunca tratei de descobrir se
a história de meu avô era verdadeira ou não. O ponto parecia discutível. Não tenho nenhum interesse
em outros seres, e estaremos seguros se eles se interessarem por nós. Sim, suponho que algum de
vocês poderia cruzar-se com um deles por acaso, mas, considerando, os poucos de nós que existem, e
quão poucos são eles, as possibilidades de não só encontrá-los mas também reconhecê-los também
pareciam difíceis. Certamente, isto nunca tinha passado antes, não em minha vida ou a de meu avô.
Agora parece que estas bruxas foram conscientes de nós durante muito tempo. Nunca considerei essa
possibilidade.
— Admite que cometeu um engano?
Seus lábios se moveram nervosamente ao elevar-se em um sorriso cru —Admito ter cometido
um descuido. Só seria um engano se tivesse considerado a possibilidade e tivesse decidido ignorá-la.
—Mas se os lobisomem fossem parte realmente deste conselho em algum tempo, por que não
está no Legado? - respondi, em relação ao livro da história da Manada.
—Não sei. Se, tal como Ruth disse, os lobisomem se afastaram do conselho, poderiam ter decidido
apagar essa parte de sua história para o Legado.
—Possivelmente por uma boa razão - disse, roçando as gemas de meus dedos sobre meus braços
queimados.
Jeremy me jogou uma olhada e assentiu com a cabeça — Possivelmente.

***

Na cabana, Jeremy lavou e enfaixou minhas queimaduras, logo perguntou se estava pronta para
ir para cama ou se queria ficar mais tempo acordada.
— Ficará acordado? - perguntei.
—Se você o fizer.
—Se fica levantado, fá-lo-ia, mas se está cansado...
— Está cans…? - Jeremy se deteve. Um pequeno sorriso revoou por seus lábios e soube o que
pensava. Podíamos continuar assim toda a noite, nenhum de nós desejava expressar uma opinião que
pudesse incomodar ao outro. Com o Clay ou Nick ou Antonio, dizia meus desejos e opiniões sem vacilar.
A sobrevivência do mais forte. Com o Jeremy, sua cortesia inefável ressuscitava minha educação, e uma
simples escolha podia evoluir em um interminável “depois de ti”, “Não, insisto, depois de que ti”. Se
Clay estivesse aqui, ele decidiria por nós antes da segunda ronda do baile. Sem ele, estávamos sozinhos
nisto.
— Vou ficar um momento acordada disse.
—Te farei companhia.
—Não tem que fazê-lo.
—Sei. Sentaremo-nos à mesa. Sairei, e conseguirei um bocado.
Saí. Minutos depois, Jeremy me seguiu com dois copos do leite e uma bolsa de bolachas.
—Nada melhor para embotar a dor - disse, me dando o leite. —Terá que te conformar com a
comodidade simples.
Jeremy se sentou a meu lado. Olhamos fixamente a água uns minutos, o rangido das bolachas
ressonava no silêncio. A fumaça de uma fogueira se deslizava por sobre o lago.
—Deveríamos acender um fogo - disse.
—Não há fósforos.
—Maldição. Onde está Adam quando o necessita?
Jeremy esboçou um meio sorriso. —Teremos uma fogueira para ti no Stonehaven. Haverá
guloseimas de merengue brando também. Se só consigo recordar como esculpir um espeto de assar.
— Sabe como?
Ele riu entre dentes — Difícil de acreditar, verdade? Sim, fui a um par de acampamentos de
escoteiros. Dominic estava acostumado a alugar uma casinha de campo cada verão, tirava o Tonio e
seus irmãos da cidade, e os levava de volta à natureza. Levavam-me com eles.
Quando Jeremy ficou em silêncio, lutei por pensar em um modo de mantê-lo falando. Jeremy
não falava de sua infância. Nunca. Tinha ouvido alguns rumores de outros, a respeito de não tinha sido
a juventude mais idílica, mas Jeremy se mantinha completamente mudo a respeito. Agora que havia
cruzado essa janela, não queria lhe deixar que a fecha-se outra vez tão facilmente.
— Onde foi? - perguntei.
—Não muito longe. Vermont, New Hampshire.
— Era divertido?
Outro meio sorriso. Muito. —Não me interessava a parte de retornar à natureza. Stonehaven
tem tudo isso. Mas isso me permitia e ao Tonio jogar como meninos verdadeiros, jogar com outros
meninos. É obvio, conhecíamos outros meninos na escola. Mas sempre fomos a uma escola particular.
Como Alfa, Dominic obrigava a fazê-lo aos filhos da Manada. Se seus pais não podiam economicamente
permitir o lhes enviar, ele o pagava. Estrito controle ambiental. A casa durante os fins de semana e as
férias, interação mínima com humanos. Durante as férias, entretanto, podíamos nos soltar, sempre que
usássemos nomes falsos e todo isso.
— Tinham que usar nomes falsos? Que idade tinha?
—Jovem. Tonio era o mais velho, é obvio. Mas eu era o que inventava nossas histórias. Era
divertido, realmente, inventar uma nova identidade cada verão. Um ano fomos da nobreza em visita
da Inglaterra. Nossos acentos eram atrozes. Outro ano fomos integrantes da Máfia. Ao Tonio adorava.
Dava-lhe uma possibilidade de praticar seu italiano e fazer tremer aos valentões locais.
—Posso imaginá-lo.
—Muita diversão, até que os meninos começassem a nos oferecer seu dinheiro de sorvetes.
Tonio desenhou a linha ali. A integridade sobretudo, até se isso significasse perder o alimento
suplementar. Discutíamos se teria que confessar que a toda a questão era uma fraude quando Malcolm
chegou e me levou de volta ao Stonehaven. Cedo como sempre.
Malcolm tinha sido o pai do Jeremy, embora eu nunca tinha ouvido o Jeremy chamá-lo por outra
coisa que não fora seu nome.
— Ele sentia saudades? — perguntei.
Jeremy riu. Não seu sorriso habitual ou seu meio sorriso, a não ser uma gargalhada que me
assustou tanto que quase deixei cair minha bolacha.
—Não - disse, recompondo-se. —Malcolm certamente não sentia falta de mim. Ele o fazia cada
verão, detinha-se brevemente para ver o que eu fazia. Se me divertia, o qual sempre fazia, ele decidia
que era o momento para retornar a casa.
Não soube que dizer a isto, de modo que não disse nada.
Jeremy continuou. —Depois de uns anos, comecei a manipulá-lo. Logo que Malcolm chegava,
tinha um ataque maciço de nostalgia. Tornava-me desesperadamente miserável. Morria por partir.
Então, é obvio, ele me fazia ficar o resto do verão. Sorrentinos também ajudavam com a representação.
Sabiam o que significava para mim estar em casa -Esboçou um meio sorriso sardônico. —Você, Clayton,
e eu. Três companheiros de moradia, todos com uma infância putrefata. Quais são as possibilidades?
—Clay teve uma boa infância.
—Excluindo a pequena parte de ser convertido em um homem lobo à idade de cinco anos e
passar os seguintes anos escondendo-se nos pântanos, comendo ratos e bebendo.
—Quis dizer depois disso. Depois de que o resgatasse. Ele sempre disse que teve uma boa infância
no Stonehaven.
— Quando não estava sendo expulso da escola por dissecar o coelhinho de índias da classe?
—Já estava morto.
Jeremy riu entre dentes — Ainda posso ouvi-lo dizendo isso. Mais de trinta anos depois e ainda
posso ouvi-lo perfeitamente. A primeira reunião de Manada do Clay. Tratei de fingir que tudo estava
bem, não avisei a ninguém sobre a expulsão. E de repente, Daniel rugiu e o anunciou a toda a Manada.
“Expulsaram ao Clayton da escola por dissecar um coelhinho de índias”. Clay chorou na sala, caminhou
para o Daniel, com os olhos flamejando, tinham a mesma idade, mas Clay era pelo menos uma cabeça
menor, e gritou, “Já estava morto!”
—O que explicava tudo.
—Absolutamente - Jeremy sorriu e sacudiu a cabeça. —Entre o animal doméstico partido em
dois e o fiasco do animal de brinquedo, tive que me perguntar se estava feito para a paternidade
substituta.
— Animais de brinquedo?
— Clay não te contou isso? - Jeremy esvaziou seu vidro transparente, tomou o meu, e ficou de
pé.
Agarrei sua perna — Me conte.
— Quando voltar.
Gemi e esperei. E esperei. Tomava muito, muito tempo ver esse leite. O jogo de todo o assunto
era o efeito.
— Animais de brinquedo - disse, quando finalmente voltou.
— Bom. Clay tinha problemas com os outros meninos na escola. Suponho que sabia isso.
Assenti com a cabeça — Ele não se integrava e não o tentou. Pequeno para sua idade. Antissocial.
O acento só o fazia pior. Perguntei-lhe sobre isso quando o conheci. Disse-me que tinha vivido em Nova
York durante vinte anos, mas soava como se acabasse de baixar do trem da Luisiana. Dizia que quando
era um menino, outros meninos zombavam de seu acento. Então o manteve. A lógica perversa do Clay.
— Algo que o pusesse à parte. Então, depois do desastre com o coelhinho de índias, lhe dei aulas
em casa até setembro seguinte, logo o enviei a uma escola diferente e lhe pedi ao principal que me
notificasse de qualquer problema de conduta. Juro que passei três tardes por semana em reuniões com
o professor. A maior parte eram pequenas coisas, mas um dia o professor disse que Clay tinha
problemas nos recreios. Os outros meninos se queixavam que ele os seguia, olhava-os, essa classe de
coisas.
—Espreitava-os - respondi. —Procurando debilidades.
—Exatamente. Agora, não me preocupava que fizesse algo. Eu era muito estrito naquele ponto.
Não devorar companheiros de classe - Jeremy pôs os olhos em branco. —Outros pais advertem a seus
meninos que não falem com estranhos. Eu tinha que advertir ao meu que não os comesse. De todos os
modos, este professor disse que Clay não mostrava interesse em jogos de recreio normais, como jogar
com brinquedos. Brinquedos. Sabia que me esquecia algo. Clay era o menino mais pouco infantil que
eu tinha encontrado alguma vez, então tendia a esquecer que deveria fazer coisas infantis. Depois da
reunião, conduzi diretamente à loja de brinquedos e comprei bolsas de brinquedos. Ele os ignorou
todos... todos exceto um jogo de animais plásticos, vacas, cavalos, ovelhas, cervos, camelos, etc.
Levava-os a seu quarto e permanecia ali durante horas. Elogiei a mim mesmo por minha grande
perspicácia, caso que gostava dos animais porque sentia algum parentesco com eles. Então encontrei
o livro.
Jeremy fez uma pausa.
— Que livro? - perguntei, porque sabia que era o que se supunha que devia fazer.
—A Guia de Gibson de Anatomia Animal. Tinha-o roubado da biblioteca escolar e sovado um
montão de páginas. Logo joguei um olhar mais de perto aos brinquedos plásticos. Estavam todos
marcados com X vermelhos estrategicamente colocadas.
—Identificando os órgãos vitais - disse. —Para caçar.
—Exatamente.
— Então o que fez?
—Dei-lhe uma larga conferência a respeito de roubar e lhe fiz devolver o livro imediatamente.
Joguei minha cabeça para trás e ri. Jeremy descansou sua mão ao redor de minha cintura, um
gesto estranho de proximidade da qual desfrutei enquanto era possível.
— O que opina de uma corrida? - perguntou depois de um momento. —Poderíamos correr para
descarregar um pouco de tensão.
Eu estava cansada, mas nunca o haveria dito. Os lobisomens preferiam correr com outros,
instinto de manada. Como em tantas outras coisas, Jeremy era diferente. Preferia a solidão quando
trocava. Às vezes se unia a nós em uma corrida de caça, mas raramente ia por uma corrida com um
companheiro. Assim, quando o ofereceu, eu poderia ter estado pronta para me deprimir de
esgotamento e não me teria negado.
Caminhamos para os bosques, tomando o caminho até que estivemos bastante dentro para
encontrar lugares para nossa mudança. Tínhamos avançado aproximadamente um metro quando
Jeremy se voltou para olhar fixamente por sobre meu ombro.
— O que? - Perguntei.
—Faróis de carro reduzindo a marcha no alto da rua - murmurou.
O meio-fio se inclinava abruptamente da estrada a casinha de campo, deixando os carros no
topo, de modo que podíamos ver o brilho das luzes com binóculos. Enquanto esperávamos, as luzes
desligaram e o barulho do motor morreu. Uma porta de carro se abriu e fechou. Os passos caminharam
pelo bordo da colina. Uma pedra soou debaixo de um sapato, tamborilando. Uma pausa. Alguém
escutando uma resposta ao ruído. Então o sussurro do mato contra as pernas de alguém. Uma luz tênue
em cima de nós, um movimento sem forma. Então se moveu para o sul, com o vento a favor.
Intencionadamente. Uma árvore rangeu a nossa direita. Saltei. Só o vento.
Jeremy olhava, escutava, cheirava, só o endurecimento de seu queixo traía sua tensão. Olhei-o,
mas ele não me olhou de volta. Olhava demasiado ocupado. E esperando. O som de raminhos
quebrados debaixo dos pés. Silêncio outra vez. Alguém gritou através do lago. Saltei outra vez. Então,
uma rocha caiu pela ladeira a minha direita. Quando dava volta, vislumbrei uma mancha imprecisa de
movimento a minha esquerda. Má direção. Merda. Muito tarde. A mancha imprecisa estava sobre mim,
golpeando minhas pernas. As mãos me agarraram enquanto caía, me lançando de costas e fixando
meus braços a meus flancos. Golpeei a terra com meu atacante sobre mim.
VISITAS
— Sentiu saudades? — perguntou Clay, sorrindo abertamente.
Levantei-me, lançando-o por sobre minha cabeça, para uma pilha de lenha. A madeira caiu sobre
ele, deixando-o sem fôlego.
—Acredito que não - respirou com dificuldade, e, de alguma forma, ainda sorrindo abertamente.
— Posso matá-lo? - perguntei ao Jeremy. —Por favor.
—Mutila, mas não mate. Ainda poderíamos necessitá-lo - Jeremy ofereceu ao Clay uma mão e o
pôs de pé com um pouco mais de força da necessária. —Me alegro de ver que recebeu minha
mensagem, mas não acreditei que estaria aqui tão rápido. Teve algum problema por ter que te afastar
de seu curso?
Não, Clay não era um estudante na Universidade de Michigan. Era professor. Bom, não
realmente professor. Quero dizer, não permanentemente. Era um antropólogo investigador, que de
vez em quando fazia alguma série de conferências curtas, não porque gostasse, já que ao Clay não
gostava de fazer nada que implicasse contato com humanos, mas, devido ao estranho roubo de idéias
no mundo dos acadêmicos, as relações interpessoais eram um mal necessário para manter sua rede de
contatos e, por onde, sua carreira. A maior parte das pessoas que tinham conhecido ao Clay, assistido
suas aulas, diziam algo a assim como “Pensava que se necessitava um PhD para fazer isto”. Claramente
a visão do Clay e um grau de doutorado não andavam juntos. Sim, ele tinha um, posso testemunhá-lo,
tendo visto o diploma no fundo de sua gaveta de meias três - quartos. Qualquer um que conhecesse o
Clay, entretanto, podia ser perdoado pelo engano. Ele não falava como alguém que tivesse um grau tão
avançado. E certamente não se via como um PhD. Clay era uma dessas pessoas detestáveis, dotadas
tanto com inteligência ao nível de um gênio e por uma aparência magnífica. Olhos azuis, cachos loiros
escuros, e um rosto severo tirado diretamente de uma revista. Combina-o com um corpo poderoso e
tem um pacote que não passa despercebido em meio de uma convenção do Chippendales 14. Ele o
odiava. Clay teria estado feliz de despertar uma manhã e encontrar-se transformado na classe de tipo
que chamava a atenção de maneira persistente só quando sua braguilha estava abaixada. Eu, por outra
parte, criatura superficial que sou, não estaria tão contente.
Clay disse ao Jeremy que sua série de conferências tinha sido parte de um curso interino, então
não tinha tido nenhum problema em devolver-lhe ao professor regular e renegociar sua parte para o
final da sessão. Enquanto explicava isto, pratiquei minha terceira classe de habilidades matemática.
—Deixou uma mensagem ao Clay de meu telefone celular, e que, supostamente o recebeu em
Detroit, verdade? - perguntei.
Jeremy assentiu com a cabeça.
— E quando deixou essa mensagem?
—Antes do jantar. Depois de que foi se sentar com a Cassandra usei o telefone público no
vestíbulo.

14
Boate em que homens fazem danças eróticas. A primeira foi aberta em Los Angeles, Califórnia.
—Uh-huh. Faz aproximadamente quatro horas, então. Assim, assumindo que Clay tomou a rota
mais curta de Detroit, através de Ontario, para Quebec e logo para cá, seriam mais de seiscentas milhas.
Um Porsche que viaja a, suponhamos, noventa milhas por hora, sem paradas ou retardos, tomaria ao
menos sete horas para fazer a viagem. Alguém vê um problema com estas contas?
—Eu não estava realmente em Detroit quando Jer chamou - disse Clay.
—Uh-huh.
—Eu estava um pouco... mais perto.
—Quanto perto?
—Ummm, digamos... Vermont.
—Você, seu dissimulado filho da puta! Esteve todo o tempo aqui, verdade? O que fez, nos seguir
todo o tempo?
—Estava te protegendo.
Resisti o impulso de bater meu pé com força na terra. Não era o modo mais amadurecido de
lançar um argumento, mas às vezes a frustração fazia voar a maturidade a qualquer parte. Clay me fazia
isto. Conformei-me com uma sacudida de terra.
— Não necessito amparo - disse. —Em quantas brigas estive? Muitas para contar, e não me
mataram ainda, verdade?
—Oh, uma muito boa lógica. Tenho que esperar até que alguém o faça, querida? Então me
permitirá te proteger? Proteger sua tumba talvez?
—Ordenei-te que ficasse em Detroit, Clayton - disse Jeremy.
—Você disse que não precisava vir - disse Clay. —Não que não podia.
—Sabia o que queria dizer - disse Jeremy. —Falaremos disto mais tarde. Voltemos para a casinha
de campo agora e lhe preencheremos com algo que não saiba ainda.
Dirigimo-nos para a cabana. Quando estivemos a ponto de sair dos bosques, Jeremy se deteve e
levantou uma mão, nos fazendo calar.
— Alugou uma caminhonete? - sussurrou ao Clay.
—Nah, uma pequena caixa de merda. Imaginei que o Boxster podia ser um pouco visível por
estes lados. Por quê? - seguiu o olhar fixo do Jeremy. —Esse não é o meu.
Olhei para o topo da colina para ver uma caminhonete estacionada ao final do caminho.
— Que horas são? - perguntou Clay.
—Muito tarde para passear - respondi. —Muito cedo para caçar ou pescar.
—Eu diria que temos companhia - disse Jeremy. —Eu vigiarei. Vocês dois rodeiem a casinha de
campo e saúdem nossos convidados.
Clay e eu nos arrastamos para sair do bosque. O lado sul da cabana estava escuro e tranquilo.
Enquanto escutava, captei o rangido de folhas secas do lado norte. Agitei a mão para o Clay para que
tomasse o lado do lago enquanto me deslizava através do caminho.
No lado do norte da casinha de campo encontrei minha mina, um homem só vigiando. Arrastei-
me pelas árvores até que estive ao lado do homem. Tinha, provavelmente, cinquenta anos, mas com o
físico e o porte de um homem da metade dessa idade. Sua postura era muito erguida, olhos treinados
olhando o meio-fio, não oscilavam. Um profissional. Militar aposentado, possivelmente, considerando
o corte e a roupa tão engomada que suspeitava levava ele como roupa interior. Sustentava sua arma a
sua direita, inclinada mas tensa, preparado para tirar a trava e fazer fogo como um brinquedo de ação.
De onde tirava Winsloe seus recrutas? Soldados Mercenários! Com a forma em que os tipos se viam,
pareceu que se comprou um maldito exército inteiro.
Clay saiu do bosque, por detrás do pistoleiro. Captou meu olhar através das árvores. Assenti com
a cabeça e me coloquei de coque. Enquanto ele avançava, algum vândalo bêbado gritou através do
lago. O vigilante girou ao redor, mas Clay já estava em metade do vôo. Saltei e golpeei a arma da mão
do homem enquanto Clay o agarrava ao redor do pescoço. Um estalo. Logo, silêncio.
Clay baixou o morto a terra. Abri a câmara da arma. As balas em seu interior brilhavam muito
alegremente para ser chumbo. Os mostrei ao Clay enquanto ele arrastava o corpo para os bosques.
—Balas de prata - sussurrei. —Não é a equipe padrão para um empregado de escritório.
Clay assentiu.
— Adiante ou atrás? - perguntei.
—Escolhe você.
Dirigi-me para a porta principal. Tinha uma fresta aberta. Enquanto me deslizava ao longo da
parede, ouvia-se música pop silenciada, quando atrás da cabana Clay rompeu a fechadura traseira.
Quando estive o suficientemente perto para ver pela greta da porta principal, fiz uma pausa. Nada de
luz, som, ou movimento vinham de dentro. Com o dedo do pé, abri um pouco mais a porta. Ainda nada.
Coloquei-me de bruços e me arrastei, ficando abaixo para não chamar a atenção de ninguém- ou
apanhar uma bala disparada cegamente a nível de peito.
As portas da frente e traseira estavam a uma frente à outra, conectadas por um corredor comum,
por isso, tão logo quando me movi sigilosamente para dentro, vi o Clay. Ele levantou suas sobrancelhas.
Ouve algo? Neguei com a cabeça. Caminhamos pelo quarto principal, e ele assinalou para cima e
articulou “luz”. Olhei para a escada. Vamos, uma luz vacilava, como uma lanterna móvel. Clay gesticulou
desde mim para ele, logo assinalou para cima outra vez. Ambos íamos. Ele encabeçava.
Três quartos de caminho para cima, um rangido. Era inevitável, verdade? Acredito que os
carpinteiros o fazem a propósito, fazer ao menos um degrau que rangia, assim ninguém pode passar
para cima ou para baixo sem ser detectado. Congelamo-nos e escutamos. Silêncio. Clay avançou ao
seguinte degrau, deteve-se, e se inclinou para frente, jogando uma olhada ao corredor superior.
Sacudiu a cabeça. Nada. Depois de um momento de pausa, subiu os três últimos degraus. Dirigiu-se
para o dormitório traseiro, de onde vinha a luz. Fiquei de pé no alto da escada, pega à parede mais
longínqua, vigiando o dormitório dianteiro, os degraus, e ao Clay sobre tudo.
—Merda - sussurrou.
Dava a volta. Jeremy tinha estado usando o dormitório traseiro. Ele ou um dos intrusos se
partiram deixando a luz de noite acesa. Diante disso, um leque de pedestal girava a baixa velocidade,
lâminas que bloqueavam intermitentemente a ampulheta, dando a impressão de uma luz vacilante.
Enquanto sacudia minha cabeça, ouviram-se passos no nível principal. A escotilha ao porão se fechou.
—Isso é - disse a voz de um homem. —Eles não estão aqui.
—Então esperaremos - disse o outro. — Traz o Brant e vamos daqui.
Passos no pórtico dianteiro. —Brant se foi.
—Provavelmente a urinar. Que maldita maravilhosa vigilância. Vá ligar a caminhonete, então.
Ele o calculará.
Clay sussurrou — Os pegarei pelas costas. Toma a frente. Leva-os aos bosques. Longe de sua
caminhonete e do Jeremy.
Apressei-me para a escada, esperando que Clay me seguisse. Deveria havê-lo sabido melhor. Por
que descer a escada quando havia uma saída mais dramática à mão? De todos os modos, não era puro
teatro. A saída do Clay realmente impediu aos dois homens de me ouvir sair correndo da casa. Estava
saindo pela porta dianteira quando a janela do banheiro do segundo piso se rompeu. Uma chuva de
cristais caiu em cima dos homens. Quando elevaram a vista, Clay caiu à terra diante deles.
— Vão a algum lado? - disse ele.
Antes de que os homens pudessem reagir, Clay deu uma patada à pistola do homem da
esquerda. O homem da direita se girou, viu-me, levantou sua arma, e disparou. Escapuli-me, mas algo
cravou minha coxa. Um dardo de tranquilizador. Clay se tinha dado conta de que homem tinha a arma
mais perigosa e o desarmou, deixando ao tipo da arma de tranquilizador para o segundo round.
O primeiro homem esquivou a seguinte patada do Clay e se lançou para o bosque. Clay o seguiu.
O outro homem ficou me olhando, com a arma de tranquilizador pronta. Arranquei o dardo de minha
perna e corri. Seus olhos se alargaram como se tivesse esperado que eu me cambaleasse e caísse a
terra. Obviamente alguém que acreditava que necessitava balas de prata para matar a um lobisomem
tampouco sabia que necessitaria quantidade para o tamanho de um elefante de sedativo para
conseguir derrubar a um. Quando apontou outra vez, lancei a suas pernas, agarrei-o e o empurrei,
derrubando-o comigo. A arma caiu a um lado. Sua mão voou, não para mim, a não ser para a esquerda,
estendendo a mão através da terra. Merda. A outra arma. A verdadeira.
Rodei de lado e golpeei a arma fora de seu alcance. Ele ficou de joelhos, levantou o punho, logo
fez uma pausa. Os tipos faziam isto. Parecia uma regra de pátio de recreio arraigada. Os moços não
golpeavam às garotas. Nunca. Geralmente só vacilavam um momento antes de compreender que havia
exceções a toda regra. De todos os modos, deu-me o tempo para esquivá-lo, o qual fiz. Lancei meu
punho para seu estômago. Ele se dobrou, ainda de joelhos. Agarrei seu cabelo e golpeei seu rosto no
chão. Ele se recuperou rápido, entretanto. Muito rápido para me deixar romper seu pescoço. Seu olhar
foi diretamente para a arma. Quando ele investia para frente, tomei, balancei meu braço para trás e a
impulsionei para seu coração. Seus olhos se ampliaram, e olhou para baixo, à arma que me sobressaía
de seu peito, tocou o joro de sangue que se filtrava da ferida, franziu o cenho confuso, cambaleou uma
vez sobre seus pés, logo caiu para trás.
Clay saiu do bosque, olhou ao homem e inclinou sua cabeça.
—Hey, querida - disse. —Isso é fazer armadilha. Os lobisomem não usam armas.
—Sei. Estou tão envergonhada.
Ele riu. —Como se sentiu depois desse dardo?
—Nem sequer bocejo.
—Muito bem, porque nos escapou um. O tipo se meteu na névoa. Imaginou que eu voltaria e
veria se você necessitava ajuda antes de lhe dar caça. Não estará longe.
—Troquemos, então - disse Jeremy, aproximando-se desde detrás de nós. —É seguro. Estão bem
seus braços, Elena?
Tirei as ataduras, fazendo uma careta enquanto o fazia. Curamo-nos rápido, mas o processo de
todas as maneiras levava mais que umas horas.
—Estarei bem - respondi.
—Bom. Vão, então. Cuidarei destes dois.
Clay e eu nos movemos para encontrar lugares onde mudar.
***

Depois de doze anos, eu tinha uma espécie de fórmula para a mudança, um simples jogo de
passos que seguia para me impedir pensar na dor que viria. Primeiro passo: Encontrar uma clareira no
bosque, preferentemente bem longe de todos outros, já que nenhuma mulher, frívola ou não, queria
ser vista em meio de uma mudança. Segundo passo: Tirar a roupa e dobrá-la com esmero - este era o
plano, embora de algum jeito minhas roupas sempre terminavam pendurando do avesso e penduradas
nos ramos de uma árvore. Terceiro passo: Ficar em posição, a gatas, a cabeça entre os ombros,
músculos relaxados. Quarto passo: Concentrar-se. Quinto passo: Tentar não gritar.
Quando tive terminado minha mudança, descansei, logo me pus de pé e me estirei. Adorava me
estirar como lobo, explorando as diferenças em minha estrutura, a nova forma em que meus músculos
interatuavam. Comecei nas patas, enterrando minhas unhas no chão e empurrando contra a terra com
as quatro patas. Logo arqueei minhas costas, ouvindo uma ou duas vértebras fazer um som estranho,
desfrutando da ausência total de qualquer rigidez de costas ou de pescoço, das pequenas dores e
contraturas que a gente bípede aprende a aceitar. Movi o espinhaço, levantando minha cauda sobre as
costas, logo deixando-a cair e balançando a de um lado a outro, sentindo como sussurravam os cabelos
contra a cara interna de minhas pernas. Finalmente, a cabeça. Fiz virar minhas orelhas e procurei, ao
menos, um novo som, talvez um pássaro a uma milha de distância ou um escaravelho fazendo sua toca
na terra a meu lado. Joguei mesmo jogo com meu nariz, cheirando e encontrando algo novo, estrume
de vaca a uma distância de cinco milhas longe ou rosas que florescem no jardim de uma casinha de
campo. Não podia fazer o mesmo com meus olhos. Se algo acontecia a respeito, era que minha vista
era pior como lobo, mas pisquei e olhei ao redor, orientando minha visão noturna. Não via em branco
e negro, como a maior parte dos animais, a não ser em uma paleta desbotada de cores. Finalmente,
joguei atrás meus lábios em um grunhido fingido e sacudi a cabeça. Ali. Extensões prontas. Tempo de
trabalhar.

DIVERSÕES
Desde que Clay o tinha deixado, o homem tinha percorrido um bom trecho. Tinha deslocado ao
menos três quilômetros, todos no mesmo rádio do meio quilômetro, dando voltas e ziguezagueando
sem parar. Algumas pessoas não têm nenhum sentido de orientação. Trágico, a verdade.
Clay o tinha conduzido a uma área pantanosa onde nenhum dos visitantes da vila tinha razão de
aventurar-se e desse modo, nenhum deles poderia seguir seus passos. À medida que nos
aproximávamos, podíamos ouvir o homem, suas botas chapinhando construíam um mapa auditivo de
seus movimentos. Uns metros ao leste, virando um pouco para o sul com cada passo, logo girou
repentinamente ao sudoeste, avançando vinte passos para o norte, outra volta, uns passos mais e…
esteve mais ou menos de volta onde tinha começado. O suspiro do Clay estremeceu seus flancos. Não
havia desafio. Nada de diversão.
Neste ponto, deveríamos ter terminado com o tipo, havê-lo cercado, um pela frente, as outras
pelas costas, saltado sobre ele, arrancado sua garganta, e preparado o trabalho. Teria sido o que
responsavelmente haveria que ter feito, acabar a ameaça sem risco ou alvoroço. Depois de tudo, este
era um trabalho, maldição, não se supunha que fora diversão. Ainda assim, havia um problema. Barro.
O barro gotejava entre os dedos de minhas patas, e a água fria avançava pouco a pouco por minhas
patas dianteiras. Levantei a pata. Havia um espesso e negro barro, cobrindo cada cabelo. À medida que
baixava a pata, o barro ia deslizando-se para a terra. Eu não podia trabalhar assim. Não era seguro.
Havia só uma opção. Tínhamos que conseguir que o tipo saísse de seu entupo. O que significava que
tínhamos que persegui-lo. E, maldição, sentia-me mal por isso.
Nos separamos, dando voltas em sentidos contrários ao redor do homem atirado no barro.
Tomei a direção sul e encontrei a terra ainda estava pantanosa. Quando nos encontramos no lado
oposto, Clay moveu sua cabeça para o norte, me dizendo que a terra ali estava seca. Fiz uma pausa
então e mediante a audição localizei ao homem outra vez. Para o sudoeste, talvez a quinze metros de
distância. Clay roçou meu flanco e grunhiu brandamente. Rodeou-me, roçando ao longo de meu flanco,
sua cauda fazendo cócegas através de meu focinho, logo caminhou para o outro lado. Aproximei-me
mais, empurrei meu focinho sob sua garganta e pressionei ali. A antecipação tremeu por seu corpo,
uma vibração evidente contra minha bochecha. Acariciou com o focinho meu ouvido e mordiscou o
bordo. Dava-lhe uma cotovelada, logo retrocedi — Preparado? - perguntei com um olhar. Sua boca se
abriu em um sorriso e se foi.
Trabalhei em excesso pelo barro detrás o Clay. Fomos para o sul-sudoeste. Aproximadamente a
dez metros ao sul de nosso objetivo, detivemo-nos. Logo nos encaminhamos para o norte. Diante, o
homem ainda chapinhava através do pântano, pontuando cada um de seus passos com um juramento
murmurado. Ao ter acreditado perder ao Clay vários quilômetros atrás, o homem se encontrava
absorto em sair do que devia ter parecido o maior dos pântanos da América do Norte. Quando nos
aproximamos mais, reduzimos a marcha, tratando de acalmar o som de nossa aproximação. Não era
que isto realmente importasse. Este tipo estava tão absorvido em escapar do interminável pântano que
provavelmente poderíamos ter saltado levando castanholas e ele não nos teria ouvido. Detivemo-nos
uns metros dele. Embora a brisa estava a nossas costas, estávamos o suficientemente perto para cheirá-
lo no vento. Clay roçou meu flanco para chamar minha atenção. Quando o olhei, ele levantou seu
focinho ao céu imitando um uivo. Inspirei e sacudi minha cabeça. Advertir a nossa presa tinha seu
atrativo, mas queria tentar algo diferente.
Avancei pouco a pouco me arrastando sobre meu estômago. Quando o aroma do homem
aumentou sua intensidade, fiz uma pausa e comprovei sua direção. Movia-se para o norte, direto para
mim. Perfeito. Sacudi minha cabeça, descansei meu ventre contra o barro e me arrastei até que pude
ver o homem empurrando através do pântano. Poderia ter avançado facilmente ao redor da árvore
putrefata em frente dele, mas estava na escuridão, parecia ter perdido sua lanterna ou talvez a deixou
com seu sócio morto. Além da árvore podre, a área que o rodeava estava clara. Saltei para trás, algo
muito mais fácil de coordenar como lobo que como humano. Clay se avançou para me encontrar.
Quando chegou junto a mim, deixei cair meus quartos traseiros a terra e meneei minha cauda ao ar.
Ele grunhiu e inclinou a cabeça para um lado, um claro “Que demônios está fazendo?” Soprei, pus-me
de pé, e repeti o movimento, esta vez ricocheteando daqui para lá. Tomou um segundo, mas ele
finalmente o entendeu. Ele se roçou contra mim uma última vez, afundando seu focinho em meu
pescoço. Então se deu volta e avançou para o noroeste.
Fui ao norte outra vez, me arrastando só uns pés mais antes de ver o homem. Avançava através
de água que lhe chegava à altura do tornozelo, duas maldições por cada passo que dava. Elevei meus
ouvidos e apanhei o som das patas da Clay chapinhando pelo barro. Quando esteve em paralelo a mim,
deteve-se, seus olhos azuis cintilando na escuridão. Não tive que lhe comunicar minha posição. Minha
pele pálida brilhava sob os céus mais escuros. Me girando para o homem, verifiquei duas vezes sua
posição. Tinha conseguido dar talvez dois passos no intermédio. Acrescentei aqueles dois passos
suplementares a minha posição. Então me agachei, meus quartos traseiros abaixo, a cauda ao ar,
meneando-a quando troquei a posição e provei minhas patas traseiras. Vamos, abaixo, lado, lado,
abaixo outra vez, esticar, soltar... perfeito. Enfoquei minha concentração a minhas patas dianteiras,
apertando os músculos. Uma última verificação ao objetivo. Não houve mudança de posição. Perfeito.
Agora a caçar.
Saltei através do ar. O mato chispou na decolagem. O homem o ouviu, girou-se e levantou suas
mãos para me rechaçar, não dando-se conta de que minha trajetória não me levaria a não ser a uns
metros dele. Aterrissei a sua direita. Deixei cair minha cabeça entre meus ombros e grunhi. Seus olhos
cintilaram da surpresa à compreensão. Era o que desejava, o por que eu não tinha deixado ao Clay
adverti-lo. Queria ver sua expressão quando compreendesse exatamente o que confrontava, que por
uma vez não se confundia com um lobo ou cão selvagem. Queria ver o entendimento, o horror, e,
finalmente, o pânico que soltava bexigas. Ofegou durante um comprido momento, suas mandíbulas
abertas, nenhuma parte dele em movimento, nem sequer respirava. Então, o golpe de pânico. Deu a
volta e quase tropeçou com o Clay. Chiou então, um chiado de terror. Clay jogou seus lábios para trás,
suas presas cintilando à luz da lua. Ele grunhiu, e o homem se lançou para o lugar mais aberto, o norte,
para a terra seca.
Isto não era tanto uma perseguição em um pântano, era mas bem dois lutadores de barro
perseguindo um terceiro, os três mais deslizando-se que correndo. Uma vez que alcançamos a terra
seca, o homem se lançou em uma precipitada corrida. Corremos atrás dele. Era uma corrida injusta.
Correndo em plenitude, um lobo é mais rápido que a maioria dos atletas profissionais. Este tipo estava
em excelente forma, mas não era profissional, e tinha a desvantagem adicional de estar perto do
esgotamento, cheio de pânico, e uma péssima visão noturna. Poderíamos havê-lo alcançado com um
estalo de velocidade. Em vez disso, reduzimos a marcha. Tínhamos que dar ao tipo uma possibilidade,
verdade? Certamente, a imparcialidade era nossa única motivação. Sério, não tratávamos de prolongar
a perseguição.
Trotamos atrás dele algo mais de um quilômetro a campo travessa. O aroma pestilento de seu
pânico se precipitou para nós, enchendo meu nariz e saturando meu cérebro. A terra voava sob meus
pés, meus músculos se contraíam e expandiam em uma síncope tão absoluta que a sensação era quase
tão embriagadora como o aroma de seu medo. Seus laboriosos ofegos raspavam como o papel de lixa
contra o silêncio da noite. Bloqueei-o, escutando em troca a respiração estável do Clay ofegando
enquanto corria a meu lado. Um par de vezes Clay se aproximou o suficiente para roçar-se contra mim.
A intoxicação da perseguição era completa. Então, com um novo aroma na brisa, a realidade tomou seu
lugar. Vapores de diesel. Havia um caminhão a frente. O alarme se elevou dentro de mim, logo se foi
em uma onda de sentido comum. Eram aproximadamente 3 horas da manhã de uma segunda-feira no
meio do terreno das casinhas de campo. As possibilidades de topar-se com tráfego a frente eram nulas.
As possibilidades de encontrar-se sequer com um carro eram quase tão baixas. Tudo o que tínhamos
que fazer era seguir a este tipo através do caminho e nos manter atrás dele.
Embora ainda pudesse cheirar o óleo diesel, não se misturava com o aroma do asfalto. Um
caminho de terra. Melhor ainda. Subimos uma pequena colina e vimos o caminho diante, uma linha
vazia de malha marrom através das colinas. O homem subiu a sarjeta na perto do lado. Quando
saltamos do montículo, um brilho de luz iluminou o caminho durante um segundo, logo desapareceu.
Fiz uma pausa. Durante um momento, tudo esteve escuro. Então a luz cintilou outra vez. Duas luzes
redondas a distância, piscando sobre as colinas. O homem as viu também. Encontrou um último estalo
da velocidade e correu para o veículo que vinha, agitando os braços. Clay saltou por trás de mim.
Quando o carro desceu ao último vale, Clay saltou através do caminho, alcançou ao homem, e o lançou
voando à sarjeta. Uma caminhonete vinha na última colina, um barco a motor retumbando detrás.
Passou junto a nós e continuou seu caminho.
Corri através do caminho. Clay e o homem estavam no fundo da sarjeta e caíram juntos, Clay
esperneava, tratando ficar de pé enquanto o homem se retorcia para escapar. Ambos estavam cobertos
de barro, fazendo o trabalho do Clay muito mais difícil e o do homem mais fácil. O homem se retorceu
de lado e alcançou o final de sua perna com um ofego. Em um brilho compreendi o que ele faria depois.
Gritei uma advertência ao Clay. A mão do homem sujeitava algo fortemente em seu punho. Enquanto
ele tentava alcançá-lo, Clay se lançou para sua mão. Um brilho de luz. O som de um trovão. Uma ducha
de sangue. O sangue do Clay.
Lancei-me para baixo à sarjeta, golpeei a arma da mão do homem, e dei a volta. Seus olhos se
alargaram. Saltei para ele, agarrei sua garganta, e a rasguei. O sangue borbulhou. O homem
convulsionou. Balancei-o de um lado a outro até que sua garganta se separou e seu corpo caiu aos
arbustos. Algo cravou meu flanco e girei para ver o Clay ali. O sangue corria pela parte traseira de sua
pata dianteira. Eu o coloquei de lado, lambi a ferida até deixá-la limpa, e o examinei. A bala tinha
passado através da pele e o músculo que conecta sua pata dianteira com o peito. Cheirava a pólvora e
carne queimada, e logo que limpei a ferida, encheu-se do sangue outra vez. Limpei-o outra vez,
calibrando o fluxo de sangue. Já não se derramava, reduziu-se a uma fluxo estável. Feio, mas não
ameaçava sua vida. Quando me jogava atrás para olhar outra vez, Clay lambeu a comissura de meu
focinho e afundou seu nariz contra minha bochecha. Um estrondo baixo, como um ronrono, vibrou
através dele. Ia revisar sua ferida outra vez, mas ele bloqueou minha visão e me deu uma cotovelada
me obrigando a olhar para os bosques. Missão cumprida. Sem feridas mortais. Tempo para mudar de
volta.

***

Depois de mudar, voltei onde estava o cadáver. Clay saltou atrás de mim, esmagando meu
traseiro, e me agarrando pela cintura antes que pudesse responder. Enquanto se inclinava para me
beijar, esquivei seus lábios para verificar sua ferida. A ferida de bala passava agora através da parte de
trás de seu braço, a vários centímetros de seu torso, já que um ponto em nós quando somos lobos não
sempre corresponde ao mesmo ponto sendo humano. O sangue se filtrava do buraco. Inclinei-me para
um olhar mais próximo, mas ele agarrou meu queixo, levantou-me, e me beijou.
—Necessita que revise isso - resmunguei no meio do beijo.
Ele enganchou meu pé esquerdo e caí para trás, contra seu braço bom.
—Realmente necessita...
Ele me baixou à terra. Afundei meus calcanhares em terra e apertei meus joelhos.
—Jeremy deveria olhar…
Ele sufocou o resto me beijando com mais força. Soltei-me de seu abraço e dancei para trás. Ele
sorriu abertamente e começou a avançar.
—O braço está bem, então? - perguntei.
—Não se preocupe se não o está.
—Bem. Então não te oporá a trabalhar nisso.
Girei e me escapei. Não fui longe. Este lado do caminho era bosque, e os bosques espessos não
eram amáveis com a gente, particularmente, com gente nua correndo. Rodeei um grupo de árvores.
Clay me seguiu uma vez, logo trocou a direção e tratou de me agarrar pelo outro lado. Ri e corri de volta
e através da clareira. Quando me lancei ao redor outra vez, ele se mergulhou para meus pés e me
apanhou. Tropecei, mas recuperei o equilíbrio quando ele golpeou a terra, sua mão ainda ao redor de
meu tornozelo. Retorcendo-me de seu afeto, liberei-me e corri longe. Uma risada rouca ressonou pelas
árvores, seguida por um grunhido quando ele ficou de pé. Escondi-me detrás de um grupo de árvores
e esperei a ver que direção o escolheria. Ouvi-o correndo para mim. Então silêncio. Esperei. Mais
silêncio.
Pondo-me de coque debaixo do nível de olho, avancei pouco a pouco desde atrás das árvores.
Nada. Girei-me, esperando-o por detrás. Não estava ali. Fiz uma pausa, logo me arrastei até que estive
de volta no lado do claro entre as árvores. Nenhum sinal dele. Escutei, cheirei, olhei... Nada. Quando
dava um passo para trás no claro, vislumbrei uma mancha impreciso de movimento a minha esquerda,
desde detrás de um enorme carvalho. Girei longe, mas muito devagar. Clay me agarrou pela cintura e
lançou a ambos a terra com um forte golpe.
Sua boca voltou para a minha, sua língua escorregando entre meus dentes. Sacudi-o das costas.
Enquanto lutava para me separar, ele me atirou outra vez, suas mãos fixaram as minhas à terra. Lutei,
mais pela sensação, de seu corpo movendo-se sobre o meu, seu peso, o arranhão áspero dos cabelos
de suas pernas e peito contra minha pele, as contrações de seus músculos quando trabalhavam para
me conter. O sangue de sua ferida correu através de nós, mesclando-se com o sangue seco do homem
sobre mim. Havia sangue em seus lábios e em sua boca. Fechando os olhos, provei o sabor forte e agudo
e explorei mais profundo com minha língua.
A terra debaixo de nós estava coberta com folhas úmidas postas em capas com barro fresco e
sangue. Escorregamos e nos deslizamos através de todo isso, lutando corpo a corpo e nos rindo e nos
beijando e andando a provas, então Clay agarrou meus quadris e se inundou em mim. Ofeguei, e ele
jogou sua cabeça para trás, rindo-se. Lutamos um pouco mais, rodando e empurrando juntos, não nos
incomodando em encontrar um ritmo. A terra irritava e alguns raminhos empurravam lugares de
condenadamente incômodos, mas seguimos fazendo-o, nos beijando até que estivemos sem fôlego,
logo rindo e brigando. Fechei os olhos e o bebi tudo, o passo ligeiro de meu coração, o aroma de folhas
úmidas e sangue, o som da risada gloriosa do Clay.
Quando abri os olhos, ele sorria abertamente. Ele nunca fechava seus olhos quando fazíamos o
amor, nunca olhava longe, sempre olhava meu rosto, me deixando ver tudo em seus olhos. Via o
primeiro estremecimento do clímax, a dilatação de seus olhos, o movimento lento de seus lábios
pronunciando meu nome. Ofegando, senti meu corpo esticar-se em ondas de perfeita sensação quando
uni a ele.
***

—Sentiu saudades? - disse uns poucos minutos depois, ainda estando dentro em mim, saindo
lentamente.
Inclinei minha cabeça para trás para elevar a vista para ele e sorri abertamente - Em certo modo.
—Ouch. Cruel. Muito cruel.
—Ao menos te aprecio por uma coisa.
—Só uma coisa?
Sua mão se moveu a meu peito, acariciando o mamilo entre seus dedos, logo baixando seus
lábios para fazer o mesmo. Fechei os olhos e gemi.
—Ou talvez várias coisas - murmurei. —Esta é uma delas. Quer fazer uma lista?
Ele riu entre dentes, a vibração zumbindo através de meu peito.
—Nada de listas, por favor - disse uma voz profunda desde algum lugar a nossa direita. —Estive
esperando aqui toda a noite. Já tive que esperar que terminasse o primeiro round.
Girei minha cabeça para ver o Jeremy caminhar através das árvores.
—Lamento-o - respondi.
—Não o faça. Mas eu gostaria de limpar isto antes da alvorada.
Clay gemeu e se levantou sobre seus cotovelos, ainda estando dentro de mim.
—Sim - continuou Jeremy. —Terrivelmente desconsiderado de minha parte, esperar que
eliminem os cadáveres que deixam antes que comecem com sua brincadeira de reencontro. Peço-lhes
perdão sinceramente. Agora, tira seu traseiro, Clayton, e te ponha a trabalhar.
Clay suspirou, deu-me um último beijo, e ficou de pé. Pus-me de pé também e atropelei o
cadáver. Sim, ainda estava nua, e, sim, Jeremy estava de pé aí mesmo, e, não, não tratei de me cobrir
ou algo tão ridiculamente afetado. Jeremy me havia visto nua, tinha-me desenhado nua, tinha
tropeçado comigo deitada nua. Somos lobisomem, recordam? Isso significava que depois de que
mudamos, sempre estávamos nus e, muito frequentemente, bastante longe de nossa roupa.
Acostumamo-nos a estar nus e, depois de um momento, estar vestido ou não vestido, era mais ou
menos o mesmo.
—Não devo supor que trouxe nossa roupa? - Respondi. —Não deveria importar, enquanto que
não encontremos a nenhum pescador madrugador no caminho de volta.
—Realmente, sim as trouxe, mas considerando a quantidade de barro e sangue sobre vocês,
acredito que deveríamos ater-nos à nudez um momento mais. Estarão limpos bastante logo.
Não perguntei o que queria dizer com isso. Deixei-me cair sobre meus joelhos ao lado do morto
e procurei uma carteira ou uma identificação. Jeremy caminhou de volta à sarjeta e voltou com uma
pá, que lançou ao Clay.
—Enterramo-lo aqui? - perguntou Clay.
—Não. Abra um buraco à altura seu pescoço, dá a volta, e lhe drene o sangue. Levaremo-lo de
volta a casinha de campo. É aproximadamente a meio quilômetro de volta. Eu esperava que o
matassem mais perto.
—Não houve opção - disse. —O encontramos no pântano, perseguimo-lo para aproximá-lo da
terra seca, então tirou uma arma. Disparou ao Clay no braço.
Jeremy franziu o cenho, voltou-se para o Clay e examinou a ferida.
—Um disparo limpo - disse ele. —Doeu?
Clay levantou seu braço por cima do nível do ombro. —Só se fizer isto.
—Então não o faça.
—Não o pôde resistir, verdade? - perguntei.
Clay sorriu abertamente. Os lábios do Jeremy se torceram em um sorriso nu, então golpeou ao
Clay nas costas.
—Ponha a isso, então. Drena o corpo e então poderemos movê-lo.
—Não há nenhuma identificação - respondi.
Jeremy assentiu com a cabeça. Quando Clay levantou a pá para cavar, Jeremy e eu saltamos ao
mesmo tempo, ambos compreendemos que não era algo que ele deveria fazer com um braço mau.
Depois de uma breve argumentação (eu discuti, Jeremy lhe tirou a pá e não a soltou) deixamos que
Jeremy cavasse o buraco, então eu lancei o corpo dentro. Uma vez que o sangue se drenou,
preenchemos o buraco com as folhas empapadas de sangue, logo o cobrimos com terra e levamos o
cadáver de volta a casinha de campo.

***

Era noite ainda profunda quando voltamos para a cabana. Jeremy e eu levamos os dois cadáveres
a um mole de madeira no lago. Clay ficou atrás com o terceiro, dizendo que tinha que “fazer algo” com
ele. Nem Jeremy nem eu pedimos detalhes. Com o Clay, era melhor não saber.
Parei no aterro, ainda nua. Tínhamos atado uma corda grossa ao redor do pescoço e as pernas
de cada um dos cadáveres e lhes atamos blocos de concreto de uma casinha de campo que estava
sendo demolida rua acima.
—Wow - disse ao Jeremy quando sentei e banhei minhas pernas na água gelada. —Estou fazendo
que alguém “nade com os peixes”. Isto é magnífico. Minha primeira tarefa ao Estilo da Máfia.
Compreende o que isto significa. Se me apanharem, vou ter que ser testemunha do estado contra todos
vocês, meninos. Então venderei minha história por um milhão de dólares. Mas nunca conseguirei
desfrutar disso, porque viverei o resto de minha miserável existência em um barraco nas Apalaches 15,
comendo guisado de almíscar, saltando cada vez que ouça um ruído, esperando o dia em que algum de
vocês me persiga como a cadela traidora que sou - Fiz uma pausa. —Espera. Talvez isto não seja tão
magnífico depois de tudo. Não podemos simplesmente sepultá-lo?
—Entra na água, Elena.
Suspirei —Ser um gângster não é o que estava acostumado a ser. O Capone, onde foi?
Jeremy me empurrou do mole. Golpeei a água com um chapinho.
—E trata de fazê-lo em silêncio - disse ele.

15
Os Apalaches são uma cordilheira da América do Norte estendendo-se da Terra Nova e Labrador, no Canadá, ao estado do Alabama,
no sudeste dos Estados Unidos da América, apesar de a sua parte mais setentrional acabar na península de Gaspé, do Quebec. A cadeia
é dividida em uma série de picos, com as montanhas tendo uma altitude média de aproximadamente 900 m. O ponto culminante é o
Monte Mitchell, com 2040 m, sendo também o ponto mais elevado dos Estados Unidos a leste do rio Mississíppi, e de todo o leste da
América do Norte. As Montanhas Verdes fazem parte desta cordilheira.
—Não fiz…
Ele me lançou o homem, me afundando sob a água com o peso. Quando emergi de novo, Jeremy
se tinha ido. Nadei para o meio do lago, arrastando o cadáver detrás de mim. Então me mergulhei para
verificar a profundidade. Era do menos quinze metros. Este tipo sairia logo à superfície. Para estar
segura, enredei-o em um montão de novelo submarino. Logo voltei pelo segundo corpo.
Clay ainda não estava de volta quando alcancei à borda. Jeremy me passou o cadáver número
dois, e nadei de volta para repetir o procedimento, deixando cair este trinta metros para o oeste mais
longe, com a esperança de que seu um saísse a superfície, o outro não seria encontrado. Às vezes me
assustava tanto que pensava em tais considerações. Tinha muita experiência com estas coisas. Muita.
Quando emergi de novo depois de soltar o corpo, uns braços me agarraram ao redor da cintura
e me tiraram do lago. Ao cair de novo golpeei a água com um chapinho gigante. Agarrei ao Clay pelo
pescoço e o arrastei abaixo, sustentando-o ali por um segundo, talvez mais, antes de liberá-lo.
—Disse-te Jeremy a parte a respeito de ser silencioso? - Vaiei quando ele subiu a respirar ar.
Ele sorriu abertamente — Estou calado. Você é a que anda chapinhando.
Investi contra ele. Apanhou-me, atirou-me contra ele e me beijou. Seus lábios estavam gelados,
seu fôlego soltava volutas de vapor quente. Beijei-o mais profundo, enroscando meus braços e pernas
ao redor dele, logo o afundando sob a água outra vez.
—Realmente senti falta de você - respondi quando ele emergiu.
Ele inclinou sua cabeça e golpeou seu ouvido com a palma de sua mão aberta —O lamento,
querida. Água nos ouvidos, acredito. Juraria que confessou haver sentido falta de mim.
Fiz-lhe uma careta, logo me virei e comecei a nadar, me dirigindo para a borda. Clay agarrou
minha perna e me arrastou de volta.
—Eu também senti falta de você - disse ele, me atirando contra ele. Passeou seus dedos pró a
cara interna de minha coxa. —Deveríamos entrar. Acredita que podemos enganar ao Jeremy se
ficarmos um momento mais longe abaixo?
—Por uns poucos minutos.
—O suficiente?
—O suficiente por agora.
Ele sorriu abertamente —Bom. Quer correr?
—Qual é o prêmio?
—A escolha do ganhador.
Lancei-me para frente. Ele agarrou meu tornozelo outra vez, atirou-me para trás, logo tomou a
dianteira.

***

Quando chegamos à cabana, Jeremy já tinha metido tudo na caminhonete Explorer. Não
ficaríamos na casinha de campo mais tempo, por óbvias razões. Antes de partir, Jeremy desinfetou a
ferida do Clay e meus braços queimados, logo nos enfaixou. Logo partimos para encontrar um lugar
onde passar a noite. Enquanto tínhamos estado eliminando os corpos, Jeremy tinha chamado a Ruth e,
sem mencionar os nossos convidados, descobriu que o grupo se reunia outra vez pela manhã. Alguém
havia dito a estes homens onde nos encontrar. Só as outras cinco pessoas sabiam que estávamos em
Vermont. Os cinco estariam na reunião em umas horas. Assim aí estaríamos.

CONFRONTAÇÃO
A reunião estava programada para começar às oito. Despertamos às sete, mas estávamos
atrasados. Uma hora não era tempo suficiente para que três pessoas em nosso diminuto quarto de
motel tomassem banho, barbeassem (não, sendo uma lobisomem não me sai pelo estranho; os
meninos se barbearam, não eu), vestir-se, sair, tomar algo para levar, comer, e conduzir a Sparta. Para
economizar tempo, Clay e eu até compartilhamos uma ducha, que por alguma razão não conseguiu
economizar nada de tempo no absoluto. Imaginem.
Antes que submergíssemos os corpos, Jeremy tinha esvaziado seus bolsos. Inclusive se não
tínhamos curiosidade sobre sua identidade, esse era o procedimento de operações padrão para
destruir sua identificação antes de submergir um corpo. Como respondi, tínhamos muita experiência
nesta matéria. Tal como o tipo que eu tinha revisado, um dos outros dois não tinha carteira,
identificação, ou dinheiro em efetivo com ele. O terceiro tipo tinha vinte centavos e uma carteira de
motorista em seu bolso traseiro. Dinheiro para uma emergência e uma licença se por acaso tivesse que
atirar. O mais nu possível. Estes tipos sabiam o que faziam. Jeremy tinha encontrado a carteira de
motorista e descoberto que era uma falsificação. Uma falsificação impressionante, mas uma
falsificação. Jeremy sabia. Ele fabricou todas nossas identificações falsas, algo mais no que tínhamos
muita experiência.

***

Chegamos ao Centro Comunitário às nove e trinta. Quatro carros estavam no estacionamento.


Outra vez as bruxas usavam um feitiço para fechar com chave a porta, mas esta vez não chamamos.
Clay tirou a porta das dobradiças e entramos. Quando entrei no quarto, Ruth deixou de falar. Todos
elevaram a vista.
—Onde estiveram? - perguntou Ruth.
Sorri abertamente, ensinando os dentes. —Caçando.
—Quer ver o que agarramos? - perguntou Clay atrás de mim.
Caminhou a pernadas para a mesa e sacudiu uma bolsa de lixo sobre ela. Cassandra foi a única
o olhou, perguntando-se quem era. Todos outros contemplaram a bolsa. Ninguém se moveu para tomá-
la. Então Cassandra estendeu a mão, levantou um lado da bolsa, e olhou dentro. Um segundo depois,
deixou cair a bolsa plástica de sua mão e se recostou sobre sua cadeira. Seus olhos se moveram do Clay
a mim e de volta ao Clay, o rosto em branco, sem assombro, repugnância, nada. Paige jogou atrás o
plástico e retrocedeu rapidamente.
A cabeça do terceiro homem estava de lado, seus olhos abertos e embotados. Paige saltou sobre
seus pés e tentou ao lançar o plástico de novo sobre a cabeça. A cabeça rodou com o repentino
movimento. Ela soltou um grito.
—Interessante forma de apresentar-se - disse Cassandra, olhando ao Clay. —Posso perguntar
quem poderia ser?
—Clayton Danvers - resmungou Paige entre dentes. —O cão guardião da Manada de lobisomem.
—A pergunta não é quem é Clay - disse, —a não ser quem é o tipo da bolsa? Alguém tem
informação que oferecer?
—Encontramos este homem em nossa casinha de campo ontem à noite - disse Jeremy. —Estava
com outros dois que, posso lhes assegurar, estão igualmente mortos. Vinham armados com balas de
prata.
—Prata... - começou Adam. —Merda, não se supunha que… - Ele se deteve e olhou ao redor, a
outros. —Pensam que enviamos a estes tipos?
—Olha-o - disse Paige, girando-se para mim. —Bem barbeado, corte militar. Exatamente como
os tipos em Pittsburgh. Obviamente…
—Obviamente nada - disse Clay. —Talvez toda a coisa de Pittsburgh foi só uma montagem ou
vocês vestiram estes tipos para que se parecessem com o caçador da Elena, depois de tudo, se falhava,
nós tiraríamos a conclusão óbvia. Se estes homens fossem parte deste esquema de sequestro, por que
viriam detrás o Jeremy e Elena quando vocês estavam todos escondidos aqui, em uma reunião noturna?
Vocês seriam a escolha óbvia.
—Talvez queriam um lobisomem - disse Paige. —Além disso, sempre pomos feitiços de amparo
ao redor de nossas reuniões. Eles não teriam sido capazes nos aproximar de nós.
—Então esperava o problema? - Disse. —Obrigado por nos advertir. Mas isso não explica como
eles chegaram aqui. Primeiro, eles se mostram em Pittsburgh, logo aqui. Como?
—Eles devem ter seguido… - Paige se deteve, logo murmurou— a alguém.
—Eles lhe seguiram - disse Cassandra, girando-se para a Ruth. —Vocês os conduziram
diretamente a nós.
—Possivelmente vocês não estiveram por trás do ataque da noite passada - disse Jeremy— mas
logo que podem ser exoneradas da culpa. Assegurar-se de que não ser seguidas de Pittsburgh é uma
medida de segurança elementar. Se assim for como este grupo opera, então não tenho nenhum
interesse em alinhar minha Manada com vocês, nem sequer temporariamente. Tal como podem ver -
ele gesticulou para a bolsa — podemos cuidar de nós. Seguiremos fazendo-o assim com nossa própria
ajuda. Qualquer que venha atrás de nós ou interfira conosco outra vez será tratado do mesmo que os
três homens de ontem à noite. Qualquer. Por qualquer razão.
Partimo-nos. Ninguém veio atrás de nós.

***

Conduzi a Explorer de volta ao motel. Estava tudo empacotamento e preparado para partir. Tudo
o que tínhamos vimos que fazer era recolher o carro de aluguel do Clay.
—Aonde vamos depois? - perguntei quando estivemos no estacionamento do motel.
—Montreal - disse Clay. —Temos que devolver o carro.
Dava volta ao redor do carro econômico de aluguel, notando as matrículas do Quebec. —Por que
diabos deixou seu carro em Montreal?
—Acredita que ia a circular por Vermont procurando uma agência de aluguel quando conduzia
por uma cidade grande?
—E se conduzir diretamente a casa e vocês me encontram lá?
—Você vem a Montreal, Elena - disse Jeremy.
Jeremy se dirigiu ao carro e se dobrou no diminuto assento de passageiro. Sim, teria estado mais
cômodo em seu Explorer, mas isso significaria escutar ao Clay amaldiçoar a aborrecível caminhonete
SUV durante umas centenas de quilômetros. Considerando a escolha entre cãibras de perna e uma
enxaqueca, Jeremy escolheria o primeiro. Ir na SUV comigo e deixar ao Clay só no carro de aluguel não
era uma opção. Até que o perigo tivesse passado, Clay se pegaria ao Jeremy, protegendo a seu Alfa tal
como o instinto mandava.
Uma vez que Jeremy esteve no carro, Clay se aproximou, pôs suas mãos ao redor de minha
cintura, e me aproximou dele.
—Faremo-lo - murmurou contra meu ouvido. —Esta noite. Iremos dar uma corrida.
—Na cidade?
Ele sorriu abertamente. —Discute?
—Jeremy o fará.
—O passaremos por cima. Falar-lhe-ei enquanto conduzo. E falando disso, quer animar um
pouco o passeio?
—Uma corrida?
—Lê minha mente, querida.
—Um carro de quatro cilindros contra um V6?
—É o condutor, não o carro.
—Tem-no. O primeiro em chegar a Montreal escolhe onde corremos esta noite.
—Uma regra - disse Clay. —Temos que jogar sobre seguro e ficar à vista. Se não poder ver-te em
meu retrovisor, reduzo a velocidade.
—Retrovisor? Bebê, não me verá por nenhuma outra coisa que não seja o pára-brisa.
Ele sorriu abertamente — Já o veremos.

***

A corrida de automóveis pelos caminhos vicinais de Vermont foi uma grande diversão. Uma vez
que chegamos à Estrada 87, as coisas se voltariam decididamente aborrecidas, mas nos caminhos
vicinais de duas veredas tínhamos que competir com montanhas, vales, cidades, curvas cegas, meninos
de mochila nas esquinas, e turistas minúsculos. Muitas fugas pelos cabelos. Muita excitação. Os tipos
maus não tinham que nos matar. Se esperavam o tempo suficiente, faríamo-lo nós mesmos.
Depois de aproximadamente uma meia hora, estava colada atrás do Clay. Minha culpa. Tínhamo-
nos estado adiantando por quilômetros. Eu tinha tido a vantagem, mas fiquei atrás de um jipe com um
campista na parte de trás e cometi o engano de deixar um espaço seguro entre eles e eu, no qual Clay,
é obvio, meteu-se. Agora estávamos colados em um caminho tortuoso atrás deste estúpido aborrecido
que insistia em conduzir no limite da velocidade. Finalmente, notei um espaço o bastante aberto para
passar. Mas Clay não avançou. Depois de pensar por um momento, compreendi por que. Ele não podia
ver a frente jipe. Eu podia. A vantagem de conduzir uma SUV- a melhor visual. Hah! De modo que no
próximo espaço conveniente, enquanto Clay se movia tentando sem êxito ver a frente do jipe,
arranquei e passei. Uma vez diante do jipe, passei na frente de um carro e um trator de reboque. Então
os adiantei. Clay desapareceu em uma corrente interminável de tráfego turístico. Estaria zangado
porque tinha quebrado sua regra de “permanecer à vista”, mas isso lhe ensinaria, pensando que
poderia me deixar fora de competência com qualquer carro que conduzisse. A permanente segurança
em si mesmo do Clay logo que podia sacudir-se. Ele me alcançaria bastante logo.
Conduzi ao redor de dez quilômetros sem sinal do Clay no retrovisor, por isso reduzi a marcha.
Não tinha sentido empurrar minha sorte ou teria ao Jeremy em minhas costas também. Jeremy nos
deixava jogar nossos jogos, mas se eu ia muito longe, ele faria um pedaço de tira humorística de mim.
Além disso, mantive-me perto da estrada e queria estar segura de que Clay estivesse atrás de mim.
Então conduzi sob o limite de velocidade, girei a esquina no caminho de cascalho que conduzia à
estrada, acendi a rádio, e me relaxei.
Um quilômetro ou dois mais tarde, quando eu passeava com o passar da contente paisagem,
algo apareceu diante de mim. Algo grande. Diretamente diante de mim. Tão perto que não tive tempo
de ver se era um alce da América ou um cervo ou uma pessoa. Tampouco tive tempo para pensar.
Reagi. Sacudi o volante e golpeei os freios. Muito forte ambas as coisas. Vi o brilho de uma cara na
estrada. Então a Explorer girou à esquerda, e durante um segundo, pensei que poderia voltar-se. Não
o fez. Em troca caiu de repente na sarjeta. A bolsa de ar explodiu, me golpeando a cara. Antes que
pudesse me recuperar, a porta do condutor se abriu.
—Está você bem? - perguntou a voz de uma mulher. Tirou a bolsa de ar de minha cara e franziu
o cenho. pegada Está bem? Esse homem correu diretamente em frente de você. Não podia acreditá-lo.
Senti que minha cabeça dava uma sacudida, aturdida, soava. —Um homem? Golpeei-o?
—Não. Bem que lhe teria servido se o tivesse feito - A mulher sacudiu sua cabeça. — Suponho
que não deveria dizer isto. Vamos tirá-la dali.
Enquanto ela me ajudava a sair, obtive um melhor olhar dela. No meio ou final dos quarenta.
Cabelo loiro escuro cortado à altura do queixo. Vestido de linho. Uma corrente de ouro. Cara franzida
pela preocupação.
—Sente-se no assento traseiro de meu carro - disse ela. —Chamei uma ambulância.
Vacilei, me balançando sobre meus pés — Meus amigos vêm atrás.
—Bem - Ela dirigiu a seu carro, uma Mercedes Benz negro, abriu a porta traseira, e me ajudou a
entrar. —Os esperaremos aqui. Como se sente?
—Como se alguém me houvesse nocauteado no primeiro round.
Ela riu. —Não posso dizer que sei o que se sente, mas posso imaginá-lo. Está pálida, mas já está
voltando a cor. O pulso se sente bem.
Senti seus dedos contra minha boneca. Então senti algo mais ali. Uma espetada. Um golpe de
frio sorvete. Enquanto jogava minha mão para trás, a porta do condutor se abriu. Um homem entrou.
Deu a volta para me sorrir abertamente.
—Logo que podia esperar por outra concorrência, né!?
Sua cara cintilou em minha memória, mas meu cérebro estava nublando-se rapidamente e não
podia pô-lo em seu lugar. Então, quando meus músculos estavam frouxos, recordei.
O meio demônio de Pittsburgh. Houdini.
Minha cabeça golpeou o assento. Tudo ficou negro.

PRISÃO
Durante horas, lutei por recuperar o conhecimento, despertando o suficiente para saber que
algo estava mau, mas era incapaz de ficar acordada, como um nadador que vê a superfície da água em
cima, mas não pode alcançá-la. Cada vez que avançava para a consciência, a corrente submarina do
tranquilizador me arrastava de volta. Uma vez senti o motor de uma caminhonete. Então ouvi vozes. A
terceira vez tudo estava tranquilo e silencioso.
A quarta vez, consegui abrir meus olhos e os mantive abertos segura de que se os fechava estaria
perdida. Durante ao menos uma hora, estive ali, ganhando contra o impulso de dormir, mas sem a força
para fazer nada mais que contemplar uma parede bege. Era bege? Ou anil? Talvez areia.
Definitivamente látex. Látex de casca de ovo. Assusta o que saiba tanto sobre pintura. Ainda assustava
mais o jazer ali, paralisada das pálpebras para baixo e tratando de entender com que cor meus captores
tinham pintado minha prisão. Meu conhecimento enciclopédico da pintura era culpa do Jeremy. Ele
redecorava de uma forma obsessiva. Quero dizer obsessivamente. Tinha seus motivos, que não eram
assunto de ninguém, só dele. Se empapelando a cozinha a cada dois anos reprimia qualquer dos
fantasmas que o acossavam, eu mordia minha língua e pegava. E com respeito a por que eu pensava
na pintura em um momento tão ridiculamente inoportuno, pois porque não havia muito mais no qual
poder pensar ali. Poderia me preocupar e me preocupar e me levar a pânico me perguntando onde
estava e o que meus captores planejavam fazer comigo, mas isso não trocaria nada. Não podia levantar
minha cabeça. Não podia abrir a boca. Não podia fazer nada além de olhar fixamente a estúpida parede,
e se a obsessão pela cor de pintura mantinha meus nervos acalmados, pois, assim fora.
Malva. Sim, estava bastante segura de que isto era malva. Meu lábio superior zumbiu, como a
anestesia dental quando se vai. Enruguei o nariz. Um leve movimento. Um aroma. Pintura fresca.
Maravilhoso. De volta à decoração outra vez. Inalei mais profundo. Só pintura, o aroma era tão forte
que afogava qualquer outra coisa. Não, esperem. Algo mais se mesclava com a pintura. Algo familiar.
Algo... Sangue. Meu? Cheirei outra vez. Não era meu, o qual não era terrivelmente tranquilizador.
Enquanto elevava os olhos, pude ver manchas escuras sob uma capa aplicada depressa de pintura.
Paredes orvalhadas por sangue. Nunca era um bom sinal.
Movi a cara. Todos os músculos funcionavam. Grandioso. Agora se alguém me atacava, poderia
mordê-lo, a condição de que fora o bastante amável para pôr alguma parte vital de seu corpo em minha
boca. O formigamento avançou para baixo por meu pescoço. Elevei a vista. Teto branco. Ruído distante.
Vozes. Não, uma voz. Alguém falando? Escutei mais perto e ouvi o murmúrio de um DJ. Depois de uma
façanha que teria quebrado um Record do Guinness de prolixidade, ele se deteve. Um violão ressonou
de uma rádio remota. Música Country. Malditos. Tinham começado já a me torturar.
Movimento de mão e braço. Aleluia. Afundando meus cotovelos na cama, elevei meu torso e
olhei ao redor. Quatro paredes. Três cores malva. A quarta refletia. Vidro transparente de direção única.
Encantador. A meus pés, um banheiro. Eu podia dizer que isso era um banheiro e não um armário
porque podia ver os serviços, não através da porta, a não ser através da parede dianteira, que era de
vidro transparente claro. Olhar furtivamente o banheiro, a escola primária tinha deixado a alguém com
um tipo de fetichismo muito inquietante.
Mais aromas. Uma mulher. O quarto estava impregnado com seu aroma. A cama na qual jazia
tinha lençóis limpos, perfumados de limão, mas o aroma da outra mulher tinha atravessado o colchão.
Uma nota de familiaridade. Alguém que conhecia? A mulher que me tinha drogado? Não, alguém mais.
Molestamente familiar... A associação fez clique. Reconheci seu aroma porque isto se assemelhava ao
aroma do sangue nas paredes. Não era uma boa forma de fazer um conhecido, e de acordo com a
quantidade de manchas escuras sob a pintura, uma reunião cara a cara não se via próxima. Não nesta
vida ao menos.
Um momento. Tinha quadris. Bem, não realmente - meus jeans ficavam sempre folgados. Quero
dizer que meus quadris anatômicos, sem curva, tinham movimento e sensação. Logo as pernas. Sim!
Balancei minhas pernas sobre a borda da cama e me lancei ao chão. Bem, as pernas não estavam
completamente de volta ainda. Um tapete agradável, entretanto. Industrial, tecido com tear. Uma
mescla agradável de cinzas e marrom, perfeita para esconder rastros de sangue que salpiquem.
Depois de uns poucos minutos, fui capaz de apoiar meus pés. Olhei ao redor. Agora o que?
Assumindo que estes eram a mesma gente que tinha capturado a esse xamã, deveria haver outros
detentos nas celas contiguas. Talvez poderia me comunicar com eles.
—Olá? - Respondi. Então mais alto. —Olá?
Sem resposta. Indubitavelmente as paredes eram muito grossas para o cochicho de cárcere.
Inclusive o ar que atravessava a abertura quadrada do teto tinha sido filtrado e processado. De todos
os modos, se podia ouvir um jogo de rádio... Olhei ao redor procurando um alto-falante. Havia um
intercomunicador na porta, mas a música não parecia metálica, por isso duvidei que tivessem uns tubos
para isso. Enquanto escutava, capturei o som de alguém que gritava, uma voz crua, maldições gritadas
apenas inteligíveis. Calibrei a distância do ruído. Muito devagar, provavelmente a mais de dez metros
pés de distância. De modo que a isolação era boa, mas não a prova de lobisomem.
Quando o que gritava se tomou um muito necessário descanso, ouvi arranhar. Ratos? Ratos?
Não, cheirá-los-ia. Além disso, minha cela não era nada além de poda, tão esterilizada como a cozinha
do McDonald durante o dia de inspeção de saúde. Fiz virar minha cabeça para recolher o som. Vinha
do corredor. Arranhão, arranhão, pausa, arranhão, arranhão, arranhão, sussurro. O sussurro do papel.
Alguém passando uma página, revolvendo-a, logo arranhão, uma pluma improvisada no papel. Alguém
escrevendo fora de minha cela. Pus-me de pé, girei longe do vestíbulo, caminhei três passos, logo me
girei para confrontar a porta. O ruído se deteve. Mostrei os dentes, grunhi, logo inclinei minha boca
aberta mais perto da parede refletida e me tirei um pedaço de alimento imaginário de entre meus
dentes. Os ganchos de ferro frenéticos seguiram. Bem, agora sabia o que tipo que anotava olhava. E
não recordava ter assinado nenhum contrato de consentimento.
Caminhei a pernadas para a porta e golpeei o vidro transparente. Embora este não se deslocasse
com o impacto, meus punhos prosperavam com cada golpe. Não gritei. Se eles não podiam ouvir meus
golpes, certamente não ouviriam meus gritos. Um minuto comprido passou. Então o intercomunicador
em cima de minha cabeça soou.
—Sim? - a voz de uma mulher. Jovem. Estudadamente neutro.
—Quero falar com alguém responsável - respondi.
—Temo que não será possível - disse ela, rabiscando com a pluma.
Golpeei mais forte.
—Por favor, não faça isso - Calma, aborrecimento próximo. Pluma que ainda arranhava.
Retirei meu punho e o fechei de repente no vidro transparente. O golpe estremeceu o vidro
transparente e meu braço. A pluma se deteve.
—Entendo que está desgostada, mas isto não a ajudará. A violência nunca soluciona nada.
Di-lo a quem?
Dava a volta longe, como se me jogasse para trás, então lancei uma patada contra a parede
lateral. Um pedaço de gesso voou, revelando uma fita de seda de metal sólido. Enganchei meus dedos
atrás do metal e dava um puxão experimental. Não passou nada. Mas eu realmente não estava
tentando-o. Agora se tirava bastante deste gesso, poderia conseguir pôr meus dedos atrás do metal e
dar um verdadeiro puxão...
Passos pesados ressonaram fora de minha cela. Ah, progredíamos.
O intercomunicador fez clique.
—Por favor, afaste-se da parede - disse uma voz masculina.
Ele soava como a um desses alarmes de carro '905, onde se a gente cometia o horroroso engano
de avançar a menos de um metro do Beemer16 de algum yuppie, uma voz mecânica advertia que te
afastasse, como se pudesse roçá-lo com um dedo e deixar impressões digitais. A última vez que
tínhamos encontrado um desses, Clay tinha saltado à capota do carro, deixando muito mais que
impressões digitais. O dono do carro tinha estado perto para nos ouvir. Nunca viram a um tipo de
quarenta e mais anos gordinho mover-se tão rápido. Então tinha visto o Clay e tinha decidido que o
dano não era tão mau depois de tudo. Seguindo o exemplo do Clay, não me afastei da parede. Golpeei
meu punho no gesso entre os suportes metálicos, deixando um agradável buraco para a cela contígua.
A porta se abriu. A cara do homem cintilou no quarto, logo se retirou. A porta se fechou de
repente. Uma rádio grasnou.
—Base um, esta é Alfa. Solicite a cópia de segurança imediata ao bloco de celas um unidade oito.
—Está tendo confusões com minha moça? - uma voz lenta e preguiçosa do Meio Oeste
perguntou, uma voz que vaiava com a estática. Houdini. — Parece um ácaro diminuto cheio de pânico
ali, pequeno soldado. Quer que baixe e sustente sua mão?
—Reese? Que demônios está fazendo no… Não importa.
Clique. Final da estática.
—Maldito bastardo presunçoso.
—Não brinque - respondi.
Silêncio. Então “Merda”, e um estalo quando o intercomunicador morreu.
—Me traga alguém responsável - respondi. —Agora.
Um intercâmbio murmurado, indecifrável através do vidro transparente. Logo botas afastando-
se com passo majestoso. Decidi não aumentar o buraco na parede de adiante. Não ainda ao menos. Em
troca me pus nas pontas dos pés e olhei atentamente ao lado. Poderia ter estado contemplando um
espelho, uma imagem inversa de minha própria cela. Só que esta estava vazia. Ou isso parecia. Pensei
chamar pela abertura, mas não tinha ouvido que o tipo que tomava notas se foi, e não tinha nenhum

16
Forma do Slang: faz referência aos automóveis marca BNW .
sentido dirigir-se a um potencial companheiro de cela enquanto tinha audiência. De modo que esperei.
Passaram vinte minutos. Então o intercomunicador fez clique.
—Meu nome é Doutor Lawrence Matasumi - disse um homem americano absolutamente
inacentuado, tons que não pertenciam a nenhuma região, geralmente ouvidos só de jornalistas leitores
de notícias nacionais. —Eu gostaria de lhe falar agora, Sra. Michaels - Como se tivesse sido idéia sua. —
Por favor, vá ao banheiro, baixe o assento, sente-se escarranchado sobre os serviços em frente do
tanque, coloque suas mãos estendidas detrás de você, e não gire a cabeça até que não lhe dê a ordem.
De algum jeito ele fez que as absurdas instruções parecessem absolutamente racionais. Pensei
em me sentar efetivamente no banheiro, mas desprezei a idéia. Não soou a um homem que apreciaria
o humor em um banheiro.
Enquanto eu me sentava, a porta exterior foi aberta, como abrindo um selo de esvaziamento.
Os passos entraram. Um par de tipos, um par de saltos baixos, e dois, não, três pares de botas.
—Por favor, não vire sua cabeça - disse Matasumi, embora eu não me tivesse movido. —Mantenha
suas mãos estendidas. Um guarda entrará no banheiro e segurará suas mãos atrás de suas costas. Por
favor, não resista.
Se ele era tão cortês sobre isso, como poderia eu desobedecer? Sobretudo considerando os
seguros de arma que foram soltos e que acompanhavam suas instruções. Alguém entrou no banheiro
e agarrou minhas mãos, seu toque firme e impessoal, “só negócios senhora”. Juntou meus braços e os
apertou com cintas metálicas e frias ao redor de meus pulsos.
—O guarda a conduzirá agora ao quarto principal. Pode tomar um assento na cadeira
proporcionada. Quando estiver sentada comodamente, o guarda assegurará seus pés.
Bem, isto ficava aborrecido.
—Está seguro que não quer que ele assegure primeiro meus pés? - Perguntei. —Ou que me
ponha sobre seu ombro e me leve a cadeira?
—Por favor, saia dos serviços e proceda por volta do quarto principal.
—Posso olhar agora? - Perguntei. —Talvez deveria enfaixar meus olhos.
—Por favor, proceda ao quarto principal.
Ora, este tipo era atemorizante. Quando saí do banheiro, vi o homem da fotografia do Paige,
baixo, rosto redondo, olhos parecidos com os de uma gama me olhando sem alterar-se. A sua esquerda
estava uma moça com o cabelo cor borgonha e um nariz arrebitado embelezado por um aro de
diamante. Mantinha seu olhar fixo em meu queixo como se não queria ver-se mais alta. Ambos estavam
sentados em cadeiras que não tinham estado no quarto fazia cinco minutos. Flanqueando-os havia dois
guardas, mais tipos militares. Como o tipo que me acompanhava, levavam colocada roupa negra, corte
militar, carregavam armas, e se viam o bastante grandes para ser campeões da WWF. Contemplavam-
me com expressões tão em branco que poderia pensar-se que protegiam às cadeiras em vez da gente
viva. Capturei o olhar de um e lhe dirigi um sorriso tímido. Ele nem sequer piscou. Um tanto para a
sedução dos guardas. Maldição. E se viam tão bonitos... Em um estilo GI Joe, moldado em plástico, e de
tipo autômato.
Uma vez que me sentei, minha escolta me assegurou à cadeira com bandas nos braços e ferros
nas pernas.
Matasumi me estudou ao menos três minutos inteiros, logo disse, — Por favor, não use esta
oportunidade de tentar a fuga.
—Realmente? - Olhei as cintas metálicas que atavam meus pulsos e tornozelos à cadeira, logo
ao trio de guardas armados atrás de mim. —Era um bom plano.
—Bom. Agora, Sra. Michaels, saltaremos a fase de negação e começaremos nossa discussão nos
apoiando na premissa de que você é um lobisomem.
—E se rechaço essa premissa? - Perguntei.
Matasumi abriu uma caixa de isopor cheia de garrafas e seringas de injeção e instrumentos, cujos
usos preferia não averiguar.
—Você me apanhou - respondi. —Sou um lobisomem.
Matasumi vacilou. A moça levantou sua pluma do papel, e me jogou uma olhada pela primeira
vez. Talvez tinham esperado que eu resistisse. Ou talvez esperavam só uma possibilidade para usar seus
brinquedos. Matasumi fez algumas pergunta para detectar mentiras, a classe de coisas que alguém que
tivesse realizado a investigação mais básica de todas saberia: meu nome, idade, lugar de nascimento,
ocupação corrente. Eu não estava o bastante aborrecida para mentir. Economizaria isso para coisas
mais importantes.
—Me deixe começar lhe dizendo que já temos a um lobisomem em custódia. Suas respostas
serão comparadas com a informação que ele proporcionou já. Então eu sugeriria que diga a verdade.
Maldito. Bem, isto mudava as coisas, verdade? Tanta evasiva para nada. Por outra parte, era
possível que Matasumi mentisse sobre ter um guia de ruas. Inclusive se o fazia, eu poderia salpicar
minhas mentiras com bastante verdade para mantê-los adivinhando qual de nós não era
completamente honesto.
—Quantos lobisomem há nesta... manada? - perguntou Matasumi.
Encolhi os ombros. —Isso depende. Não é estático ou algo assim. Eles vêm e vão. Não é um grupo
unido. A classe dos arbitrários, realmente, a quem o Alfa deixa entrar e sair, segundo seu humor. É um
tipo muito temperamental.
—O Alfa - interpôs seu ajudante. —Como o Alfa em uma manada de lobos. Você usa a mesma
terminologia.
—Suponho.
—Interessante - disse Matasumi, assentindo com a cabeça como um antropólogo que acaba de
descobrir uma tribo perdida faz muito. —Meu conhecimento da zoologia não é o que deveria ser.
Atrás de mim, a porta fez clique e entrou ar. Dava volta para ver a mulher que me tinha tirado
do carro.
—Tucker me disse que tinham começado cedo - disse ela. Lançou um sorriso agradável para
mim, como se fôssemos novos conhecidos que se encontram em um coquetel. —Me alegro de ver que
se levanta tão rapidamente. Não houve efeitos duráveis com os tranquilizadores, espero.
—Sinto-me fresca como uma alface - disse, tratando com força de sorrir sem mostrar os dentes.
Ela se voltou para o Matasumi — Eu gostaria que a Doutora Carmichael a revisasse.
Matasumi assentiu com a cabeça — Tess, por favor, chame à Doutora Carmichael do telefone do
corredor. Diga-lhe que traga sua equipe para uma verificação às sete. Isso deveria nos dar o tempo
suficiente com o sujeito.
—O sujeito? - a mulher mais velha riu e me jogou uma olhada. —Por favor, nos perdoe. Nossa
terminologia não é a mais civil, temo-me. Sou Sondra Bauer.
—Muito contente de lhe conhecer - disse.
Bauer riu outra vez. —Estou segura que o está. Espera Tess - disse ela quando a ajudante se
dirigia para a porta. —Não há necessidade de telefonar à Doutora Carmichael. Ela estará nos esperando
no hospital.
—Hospital? - Matasumi franziu o cenho. —Não acredito que este sujeito…
—Seu nome é Elena - disse Bauer.
—Prefiro Sra. Michaels - disse.
—Eu gostaria que Elena fosse verificada pela Doutora Carmichael imediatamente - seguiu Bauer.
—Estou segura que ela apreciaria a possibilidade para estirar suas pernas e jogar uma olhada ao redor.
Podemos seguir nossa discussão com ela no quarto acima. Estará cansada destas quatro paredes
bastante logo.
—Posso lhe falar em privado? - perguntou Matasumi.
—Sim, sim. Está preocupado pela segurança. Posso ver isso - disse ela, seus lábios estirando-se
quando olhou de minhas cadeias aos guardas. Ela me fechou um olho, como se compartilhasse uma
brincadeira. —Não se preocupe Lawrence. Asseguraremo-nos que Elena esteja corretamente retida,
mas não vejo a necessidade do excesso. As algemas e os guardas armados deveriam ser suficientes.
—Não estou seguro…
—Eu o estou.
Bauer se dirigiu para a porta. Minha imagem da estrutura de poder aqui se desenvolvia
rapidamente. Ajudante investigador, guardas, um meio demônio. Um cientista por cima deles, uma
mulher misteriosa por cima do cientista. E Ty Winsloe? Onde entrava ele? Estava sequer
comprometido?
Meu guarda me desatou da correia da cadeira e tirou as restrições de meus braços e pernas, logo
me conduziu ao corredor. Minha cela era a última, atravessando uma porta metálica em cuja parte
superior havia duas luzes vermelhas. No final oposto do corredor havia outra porta idêntica, com as
luzes vermelhas correspondentes. Filas de vidro transparente de direção única rodeavam o corredor.
Contei cabos. Três mais em meu lado, quatro na parte de em frente.
—Por este caminho Elena - disse Bauer, caminhando.
Matasumi gesticulou para a porta mais próxima. —Esta rota seria mais rápida.
—Sei - Bauer me fez gesto para que avançasse, sorrindo tranquilizadoramente como se eu fora
um menino que dá seus primeiros passos. —Por este caminho, por favor, Elena. Eu gostaria de te
mostrar os arredores.
Realmente? Uma visita com guia por minha prisão? Bem, eu não podia discutir contra isso,
verdade? Segui ae Bauer.

EXIBIÇÃO
Quando avancei para e Bauer, passei ao lado de uma cadeira em frente de minha cela,
provavelmente onde Tess tinha estado tomando notas. Quando joguei uma olhada à cadeira, começou
a tremer. Eu gostaria de pensar que estava assustada comigo, mas eu raramente invocava essa resposta
em algumas criaturas, sem mencionar em objetos inanimados.
—Zona de terremotos? - Perguntei.
—Shhh! - Matasumi disse, sustentando sua mão acima.
Matasumi ficou de coque ao lado da cadeira e a estudou. A cadeira se balançou de uma diagonal
à outra, daqui para lá, mais rápido, logo se abrandou, logo recuperou a velocidade, inclinando-se quase
ao ponto de dar-se volta, logo pondo marcha atrás.
Matasumi me fez gestos para que avançasse. Quando não me movi o bastante rápido, ele se
agitou com impaciência. Caminhei para a cadeira. Seguiu-se balançando. Matasumi empurrou seu palm
para mim, me dizendo que me afastasse. Fiz-o. Nenhuma mudança. Ele torceu seu dedo para me fazer
gestos que voltasse, seus olhos nunca abandonaram a cadeira. Caminhei até seu lado. A cadeira se
seguiu balançando, a velocidade não diminuía. De repente se deteve. Bauer me dirigiu um amplo
sorriso, quase orgulhosa.
—O que pensa disso? - perguntou ela.
—Realmente espero que isso não signifique que este lugar está construído em uma linha de
enguiço.
—Oh, não. Escolhemos o lugar com muito cuidado. Não sentiu um tremor?
Sacudi minha cabeça.
—Verá que esta classe de coisas acontece frequentemente aqui embaixo - disse ela. —Não se
alarme se desperta pela manhã para encontrar suas revistas na ducha ou sua mesa de patas acima.
—O que o causa?
Ela sorriu — Vocês.
—A Sra. Bauer quer dizer todos vocês - disse Matasumi. —Nossos sujeitos. Duvido que você
pessoalmente tivesse muito impacto. Os lobisomens são conhecidos por seus poderes físicos, não
mentais. Estes acontecimentos começaram faz várias semanas, quando nossa coleção de sujeitos
cresceu. Minha hipótese é que resulta da alta concentração de energia diversa. Golpes arbitrários de
energia ocasionam acontecimentos igualmente arbitrários.
—Então só acontece? Ninguém o faz?
—Não há nenhum padrão perceptível ou sentido nos acontecimentos. São também
completamente inócuos. Ninguém foi ferido. Monitoramo-los estreitamente, já que sempre está a
possibilidade de que a energia possa chegar a níveis perigosos, mas neste ponto, podemos dizer sem
perigo que não tem nenhuma razão para preocupar-se.
—Se os objetos começarem a voar, pato - disse Bauer. —Agora, reatemos a viagem antes que
tenhamos alguma outra interrupção - assinalou o teto. —Estamos clandestinamente. As paredes
externas estão construídas de vários pés de concreto armado. Possivelmente não seja impossível as
romper - se tivesse uma bola de destruição, além de uma escavadora para cavar a saída. O primeiro
piso também está clandestinamente, por isso este nível está a mais de quinze quilômetros de
profundidade. O teto é de aço sólido, ao igual ao chão. O vidro transparente de direção única é um
desenho experimental especial. É capaz de resistir… Quantas toneladas de pressão, Lawrence?
—Não conheço as especificações precisas.
—Então só diremos que “muito”, - disse Bauer. —As portas ao final dos corredores estão
reforçadas com aço, ao menos tão forte como o vidro transparente. O sistema de segurança requer
tanto comprovações de digitais como de retina. Tal como o tem descoberto por ti mesma já, as paredes
entre as celas não são tão completamente impenetráveis. De todos os modos, não ganha muito fazendo
miras a golpes para a seguinte cela, já que, tal como pôde ver, está vazia atualmente.
Ela gesticulou para a cela contígua. Estava vazia, tal como a que estava junto à minha.
—Nosso seguinte convidado poderia ser familiar - disse Bauer, me conduzindo mais longe e
movendo-se para a esquerda.
O homem estava olhando a televisão. Altura média, cabelo loiro sujo com algumas sombras mais
sujas devidas a um comprido intervalo entre duchas, uma sombra de cabelo convertendo-se em uma
barba de bom tamanho. Familiar? Só vagamente. Pela introdução de Bauer, supus que era um guia de
ruas, mas não podia estar segura sem cheirá-lo. Das poucas dúzias de guias de ruas na América do
Norte, eu poderia reconhecer aproximadamente na metade só de vê-los. Para outros, necessitava um
aroma para empurrar ligeiramente minha memória.
—Lobisomem? - perguntei.
—Não o conhece?
—Deveria?
—Pensei que poderia. Ele te conhece muito bem. Pela reputação, suponho. Você tem algum
contato com os lobisomem fora de sua Manada?
—Tão pouco como é possível.
Era certo. Não era nossa forma de ser os nos associar com guias de ruas. Infelizmente, isso não
significava que carecíamos de contato com eles. Provavelmente eu tinha tido alguma escaramuça com
este antes, mas eu tinha tido tantas escaramuças com tantos guias de ruas que logo que podia separar
uma da seguinte.
Bauer avançou. Matasumi estava justo detrás de nós agora. Tess tinha reatado seu tira de notas,
apontando cada minha palavra. Teria que começar a ser mais eloquente. Se eles me registravam para
a posteridade, queria parecer com o menos moderadamente inteligente. “engenhosa” estaria bem.
—Justo à direita temos um sacerdote Vodu.
—Vodu é o nome comum - disse Matasumi. A terminologia correta é “Vudoun”.
Bauer agitou a mão com indiferença, logo apontou para a cela à direita. Eu sabia que teria
pesadelos sobre isto, sonhando que estava sentada em minha jaula arranhando minha cabeça
enquanto Vanna White conduz excursões guiadas pelo exterior- “e à esquerda temos um exemplo
estranho de fêmea Canis lupis homo sapiens, cujo nome comum é “lobisomem”.
O homem na jaula tinha a pele escura, com rastas 17 e uma barba rapada. Fulminou com o olhar ao
vidro transparente de direção única como se pudesse ver através dele, mas seus olhos estavam
enfocados a uns metros de nosso grupo. Seus lábios se separaram e murmurou algo. Não pude
distinguir seu idioma, mas reconheci a voz desafinada como a do homem que tinha estado gritando
antes.
—Amaldiçoa-nos - disse Bauer.
Matasumi fez um estranho som de risada. Tess sufocou uma risada tola. Bauer pôs um de seus
olhos em branco, e todos riram.
—Os sacerdotes de vodu só têm poderes dos mais insignificantes - disse Bauer. —É uma raça
menor. É-te familiar esse termo?
Sacudi minha cabeça.
Matasumi falou — Temos a sorte de ter a alguém do pessoal que é capaz de nos subministrar

17
São tranças grossas e compridas usadas pelos rastafáris.
detalhes de classificação. Maior e menor se referem ao grau de poder que uma raça possui. As raças
principais incluem bruxas, meio-demônios, xamãs, feiticeiros, nigromantes, vampiros, e lobisomem.
Estes grupos são relativamente pequenos. As raças menores são muito maiores. De fato, seria um nome
pouco apropriado chamá-los sequer “raças” porque frequentemente não têm laços de sangue entre
eles. Tipicamente, são gente normal que mostra certa aptidão e pode ser treinada para aguçar esses
talentos. Estas raças menores incluem os sacerdotes Vodu, druidas, médiuns, e muitos outros. A um
leigo esta gente pode parecer que têm um grande poder, mas em comparação com uma bruxa ou um
lobisomem…
—Não há nenhuma comparação - cortou Bauer. —Não para nossos objetivos. Este “sacerdote”
não tem nenhuma habilidade que a bruxa ou o xamã mais fraco não pudesse ultrapassar. Nossa
primeira e última incursão no mundo das raças menores.
—E no momento vocês o mantêm aqui...? - perguntei.
—Até que necessitemos a cela - disse Bauer.
Supus que seria muito esperar que liberassem sujeitos que demonstravam ser inúteis.
—Ensaio e engano - continuou Bauer. —Apesar disso, com maior frequência temos feito
excelentes escolhas. Por exemplo, olhe ao convidado do quarto seguinte.
O seguinte preso era outro homem, no final dos trinta, pequeno, com uma constituição
compacta, pele café clara, e rasgos sutilmente desenhados. Levantou seu olhar de uma revista, estirou
as pernas, e reatou sua leitura. Quando ele elevou a vista, emendei minha estimativa de sua idade,
estava a metade da quarentena, inclusive talvez mais perto dos cinquenta.
—Pode adivinhar o que é ele? - perguntou Bauer.
—Nem idéia.
—Maldição. Esperava que pudesse nos dizer.
Matasumi forçou um sorriso afligido. Tess soltou uma risada obrigada. Evidentemente uma velha
brincadeira.
—Não sabem o que é ele? - perguntei.
—Nem idéia - disse Bauer. —Quando o recolhemos, críamos que era um meio demônio, mas sua
fisiologia está completamente mal. Como a maior parte das raças principais, os meios demônios têm
rasgos físicos comuns, tal como aprendemos que exame dos três espécimes que adquirimos até agora.
Armem não compartilha nada com nenhum deles. Sua anatomia é sua própria. Seus poderes tampouco
são do meio demônio.
—O que pode fazer?
—É um camaleão humano - Ela sossegou os protestos do Matasumi. —Sim, sim, o Doutor
Matasumi lhe dirá que isso não é uma descrição exata, mas eu gosto. Muito mais fácil de recordar que
“espécie desconhecida com capacidades de contorção facial” - me piscou os olhos um olho, outra vez
como se compartilhasse comigo uma brincadeira privada. —Vendê-lo é tudo.
—Capacidades de contorção facial? - repeti.
—O Sr. Haig pode mudar a vontade sua estrutura facial - disse Matasumi. —Mudanças menores
unicamente. Não pode converter-se, por exemplo, em você ou em mim, mas poderia mudar sua cara o
suficiente como para já não parecer-se com sua foto de passaporte.
—Uh-huh.
—Não parece muito útil para a vida diária, mas é incrivelmente significativo no esquema maior
de coisas. Este poder particular está completamente não documentado nos anais de parapsicologia.
Estou postulando uma nova mudança evolutiva.
Ele sorriu então, o primeiro sorriso que eu tinha visto dele. Tirava-lhe décadas da cara, iluminando
seus olhos com um entusiasmo infantil. Olhou-me e esperou, seus lábios se moviam nervosamente
como se logo que pudesse conter o impulso de seguir.
—Mudança evolutiva? - repeti.
—Minha hipótese é que todas as raças sobrenaturais -as raças verdadeiras, as raças principais-
são o resultado de anomalias evolutivas. Por exemplo, com os lobisomens, em algum lugar no passado
muito distante um homem de algum jeito desenvolveu a capacidade de transformar-se em lobo. Um
completo capricho da natureza. Também foi capricho o que melhorasse sua capacidade de
sobrevivência e por esta se visse refletida em seu DNA, que aconteceu seus filhos. Os poderes menores
de um lobisomem, longevidade, força, maior alcance em seus sentidos, podem ter sido parte desta
mudança inicial ou podem ter evoluído mais tarde, para deixar aos lobisomens melhor preparados para
levar suas vidas. Anomalias similares explicariam os inícios de todas as raças principais.
—Exceto dos meios-demônios - disse Bauer.
—Isso falta por dizer. Os meios demônios são um híbrido por reprodução. Raramente
transmitem seus poderes a sua descendência. Agora, de volta ao Sr. Haig. Se minha teoria for correta,
estas mudanças evolutivas arbitrárias devem passar com alguma frequência, não usualmente, mas mais
frequentemente, o que explicaria as poucas raças principais existentes. Possivelmente algumas destas
separações são tão recentes que não há ainda muitos membros para classificá-los dentro de uma raça.
Se for certo, então o Sr. Haig pode ser o antepassado de uma nova espécie. Em umas quantas gerações,
seu poder poderia desenvolver-se exponencialmente. Onde o Sr. Haig só é capaz de enganar a um oficial
de tráfico, seu tataraneto poderia ser capaz de mudar sua estrutura física o suficiente para transformar-
se no oficial.
—Uh-huh.
Matasumi girou e fez gestos para ao último par de celas através do corredor - Aí estão há dois
espécimes mais interessantes. Observe primeiro a sua esquerda, por favor.
Na cela ao lado do guia de ruas, uma mulher jazia na cama, seus olhos abertos, contemplando o
teto. Teria aproximadamente minha idade, talvez 1,65 metros de altura, 55 quilos. Cabelo vermelho
escuro, olhos verdes, e pele invejavelmente clara que parecia nunca ter tido um defeito. Ela irradiava
vibrações de boa saúde, a classe de mulher que eu poderia imaginar alegremente conduzindo um grupo
de expedicionários no Parque Nacional.
—Bruxa? - perguntei.
—Meio demônio - disse Bauer.
Então os meios demônios podiam ser mulheres? Ninguém havia dito isso por outra parte, mas
eu tinha assumido que todos seriam homens, talvez porque os únicos dois que eu tinha conhecido eram
homens ou talvez porque quando pensava em “demônio” pensava “homem”.
—Qual é seu poder? - perguntei.
—Telecinese - disse Bauer. —Pode mover coisas com sua mente. Leah é a filha de um demônio
Agito. Possui familiaridade com a demonologia?
—Uh-não. Os defeitos de uma educação moderna.
Bauer sorriu. —Não há muita demanda por isso nestes dias, mas é um sujeito fascinante. Há dois
tipos de demônios: Eudemonios e Cacodemonios. Eudemonios, os bons, cacodemonios, os maus.
—Demônios bons?
—Surpreendente verdade? Embora seja uma crença religiosa comum, a verdade. Só na mitologia
cristã é possível encontrar demônios tão pouco... Demonizados. É certo que ambas as classes existem,
embora só os cacodemonios procriam. Dentro de cada um dos dois tipos há uma hierarquia apoiada no
grau relativo de poder do demônio. Um Agito está muito acima na escala.
—Então suponho que a telecinese é mais que uma brincadeira de salão, depois de tudo.
—Muito mais - disse Matasumi. —As implicações e aplicações de tal poder são infinitas.
—O que pode fazer ela?
—Pode mover coisas com sua mente - disse Matasumi, parafraseando a descrição anterior de
Bauer.
Em outras palavras, não tinham nem idéia o que eram “as implicações e aplicações”. Certamente
a telecinese soava bem, mas o que poderia realmente fazer-se com ela? Além de tomar o sal da cozinha
sem deixar a mesa.
—Há muitos meio demônios mulheres? - perguntei.
—Os homens são mais comuns, mas as mulheres não são desconhecidas - disse Matasumi. —
Realmente selecionamos a Leah por seu gênero. Tivemos algumas dificuldades com nossos sujeitos
homens, então pensei que as mulheres poderiam ser mais fáceis de dirigir. Mais passivas.
—Olhem-no - disse Bauer. —Está rodeado por mulheres aqui, Lawrence. Sim, as mulheres
parecem se sujeitar melhor mas isso não tem nada que ver com a passividade. As mulheres são mais
capazes de ponderar a situação e ver a inutilidade da resistência. Os homens parecem sentir a obrigação
de aguentar, aconteça o que acontecer. Tome por exemplo o nosso sacerdote de Vodu. Discursos
enfáticos e maldições todo o dia, cada dia. Isso ajuda? Não mas ele segue fazendo-o. Como reage Leah
à mesma situação? Fica tranquila e coopera - Ela se girou para mim. —Viu alguma vez telecinese?
—Uh, não - disse. —Não acredito.
Ela sorriu — Tempo de ver uma atuação então.

SAVANNAH
Bauer elevou a mão para o botão do intercomunicador da jaula do meio demônio. Algo em meu
estômago se apertou, e abri a boca para detê-lo, logo sosseguei o protesto. Por que me preocupava se
Bauer se dirigia a essa mulher? Talvez simplesmente eu não gostava da idéia de que meus
companheiros cativos soubessem que estavam sendo observados e comentados como animais de
zoológico.
—Leah? - disse Bauer, inclinando-se para o alto-falante.
—Hey Sondra - disse Leah, elevando-se da cama. —Necessita minha aprovação outra vez?
—Não, só passava por aqui. Mostrando a uma nova hóspede os arredores. Ela está muito
interessada em seus poderes. Faria uma demonstração?"
—Seguro - Leah deu volta à pequena mesa. Depois de um segundo, uma taça de café se elevou
da superfície e girou. —Algo assim?
—Perfeito. Obrigada, Leah.
A mulher sorriu e saudou com a cabeça. Se ela tivesse alguma objeção a ser tratada como um
macaco treinado, não dava nenhum sinal disso, só ficava de pé e aguardava ordens.
—Ver-te-ei logo, Leah - disse Bauer.
—Não irei a nenhuma parte. Saúda o Xavier de minha parte. Diga-lhe que passe por aqui em
algum momento. Que traga um maço de naipes.
—Farei-o.
Bauer apagou o intercomunicador.
—Xavier é nosso outro meio demônio - me disse ela. —Já o conhece.
—Houdini.
Bauer sorriu. —Sim, suponho-o. Nenhuma cadeia pode mantê-lo amarrado, muito em breve o
descobrimos. Felizmente para nós, ele esteve feliz de cooperar com nossas perguntas e experimentos
graças a um correto incentivo financeiro. Tão mercenário, nosso Xavier. Um ativo valioso para equipe,
entretanto.
—Como o feiticeiro - disse.
Bauer me lançou um olhar estudadamente em branco.
—Ouvi que tinham contratado a um feiticeiro também - disse.
Bauer vacilou, como se refletisse se teria que mentir, logo disse —Sim, temos a um feiticeiro.
Ajuda-nos a encontrar a nossos sobrenaturais. Não terá que conhecer Sr. Katzen, se isso te incomodar.
—Deveria?
—Os feiticeiros têm uma... Reputação desagradável entre algumas raças sobrenaturais. Não de
todo injustificada.
Matasumi tossiu discretamente, mas Bauer não fez caso dele e golpeou suas unhas contra a
parede da cela do sacerdote vodun. Ele olhou, talvez sentindo a alguém ali, e lançou um olhar
deslumbrante para o vidro transparente refletor.
—A maior parte deles são egomaníacos e pouco confiáveis - continuou Bauer. — Nosso Sr.
Katzen, temo-me, não é nenhuma exceção. Tal como respondi, entretanto, não tem que preocupar-se
por ele. Ele não se associa com o que considera as raças “inferiores”. Agora Xavier é muito mais sociável.
—Ele mantém a Leah entretida, segundo o que vejo.
—Realmente não. Provavelmente ele não tomará em conta em sua oferta. Triste, realmente.
Quando Leah averiguou que tínhamos a outro meio demônio aqui se comoveu. Não acredito que ela
nunca tivesse conhecido a outro de sua classe. Mas Xavier não terá nada que ver com ela. Ele a viu uma
vez e rechaçou após aproximar-se dela. Tentamos até subornos. Manter a nossas hóspedes felizes é
muito importante para nós. Leah é uma moça muito gregária. Necessita estimulação social. Por sorte
encontramos outros modos de acomodá-la. Ela tomou um verdadeiro interesse por dois de nossos
outros hóspedes.
—Curtis e Savannah - disse Tess.
Bauer assentiu com a cabeça — Os que são também nossas dois hóspedes mais necessitados de
companhia. Acredito que Leah tem uma aguda sensibilidade para isto. Um sentido inato de altruísmo.
Curtis e Savannah desfrutam de sua companhia enormemente. O que só faz que a animosidade do
Xavier seja mais profunda. Ele não se dirigirá a ela. Isso nos ocasiona alguma preocupação. Nós
gostaríamos de ter a Leah na equipe, mas não podemos nos permitir a tensão que isso causaria.
—Têm muitos hóspedes dentro “da equipe”?
Os olhos de Bauer faiscaram como se eu tivesse feito a pergunta do milhão de dólares. —Não
muitos, mas é possível. Em particular para nossas hóspedes mais honradas, como você. Uma vez que
estamos seguros da cooperação de um hóspede, estamos realmente felizes de poder lhe fazer uma
oferta. É algo pelo qual esforçar-se.
Em outras palavras, se eu era uma moça muito, muito boa, também poderia sequestrar e torturar
os meus companheiros sobrenaturais. Oh, que felicidade.
—Alguma idéia de por que Xavier não gosta de Leah? - perguntei.
—Ciúmes - disse Matasumi. —Dentro da hierarquia dos meios demônios Leah tem a posição
mais alta.
—Eles são conscientes dessa hierarquia? - perguntei. —Acreditei que os meios demônios não
tinham muito contato os uns com os outros. Não têm algum grupo central ou dirigente, verdade? Então,
como sabe qual é seu status?
Silêncio.
Depois de um momento Matasumi disse — Em algum nível, estou seguro de que eles são
conscientes de seu status.
—Um demônio Agito está por sobre um Evanidus, o pai do Xavier - disse Bauer. —E um Exustio
está sobre ambos. Isso é o pai do Adam Vasic, verdade? Um Exustio?
—Surpreendentemente, isso nunca saiu na conversa.
A desilusão cruzou sua cara, logo desapareceu em outro sorriso falsamente cordial —Faremos
que a Doutora Carmichael revise essas queimaduras. Suponho que Adam lhe fez isso.
Ela fez uma pausa. Não disse nada.
—Um meio demônio Exustio é muito capitalista - continuou ela. —Justo no topo da escala. Ele
seria um de primeira classe para apanhar. Talvez poderia nos ajudar com isso. Estou segura de que
essas queimaduras não fazem cócegas.
—Curam-se - respondi.
—De todos os modos, estaríamos muito agradecidos…
Matasumi interrompeu — Não sabemos se o pai do Adam Vasic é um Exustio, Sondra. Só temos
uma informação de segunda mão.
—Mas era uma boa informação - Bauer se virou para mim. —Um de nossos primeiros cativos foi
um xamã que serve no conselho da Ruth Winterbourne quando o padrasto do Adam começou a levá-
lo às reuniões. Ele é um meio demônio Tempestras. O padrasto, quero dizer. Ele é também,
supostamente, um perito em demonologia, e estava convencido de que o pai do Adam era um Exustio.
—Embora ele nunca deu nenhuma indicação de ter um grau tão alto de poder - disse Matasumi.
—As queimaduras de pele são, mais provavelmente, um sinal de um Igneus. Um Exustio teria incinerado
à Sra. Michaels.
—De qualquer forma, até um meio demônio Igneus seria um verdadeiro golpe. E eu adoraria
apanhar a seu padrasto. Temos muito poucos dados sobre demônios Tempestras.
—Eu gostaria de encontrar à mãe - disse Tess. —Qual é a possibilidade que uma mulher seja
escolhida para levar a descendente de um demônio e logo termine por casar-se com um meio demônio?
Deve haver algo nela que os atrai. Isso poderia ser uma investigação muito útil. E interessante.
Isto me estava assustando. Quanto sabia esta gente sobre nós? Era bastante mau que soubessem
que existíamos, mas ter afundado em nossas vidas pessoais como o tinham feito era absolutamente
inquietante. Fariam isto muito frequentemente, discutir a respeito de nós como se fôssemos
personagens da telenovela Dark Shadow 18?
—Por que não apanharam ao Adam em vez de mim? - perguntei.
—Não subestimemos sua própria importância, Elena - disse Bauer. —Estamos muito
emocionados de te ter conosco.
—E não pudemos encontrar ao Adam - acrescentou Tess.
Caramba, obrigada.
Bauer continuou —E, ao lado de Leah, a que, certamente não será a última de nossas hóspedes.
Dava a volta. Na cela atrás de mim havia uma moça. Não, não refiro a uma moça. Refiro a uma
menina, de não mais de doze ou treze anos. Assumi que seu aspecto juvenil era a manifestação de
alguma raça sobrenatural desconhecida.
—O que é ela? - perguntei.
—Uma bruxa - disse Bauer.
—Faz feitiços? Faz-se ver mais jovem? Um bom truque, mas se eu fosse ela, de seguro não
quereria voltar para essa idade. Antes ou muito depois da puberdade para mim, muito obrigada.
Bauer riu — Não, não faz feitiços. Savannah tem doze anos.
Detive-me. Se eu tivesse estado tremendo antes, estaria congelada agora, havia um bloco de
gelo agasalhado em meu estômago.
—Doze? - repeti, esperando que ter ouvido mal. — Capturaram a uma bruxa de doze anos?
—Absolutamente a melhor idade - disse Matasumi. —As bruxas obtêm seu poder pleno com o
início de suas primeiras menstruações. Estando ao bordo da puberdade, Savannah nos apresenta a
oportunidade perfeita para estudar as mudanças mentais e fisiológicas que poderiam explicar a
capacidade de uma bruxa de enfeitiçar. Tivemos um notável golpe de sorte ao encontrá-la. Um
acidente, a verdade. Savannah é a filha de uma antiga bruxa do Aquelarre que tínhamos como branco
faz várias semanas. Quando nossos homens capturaram à mãe, a filha chegou de improviso da escola,
então se viram obrigados a trazê-la também.
Observei a cela — Não a têm com sua mãe?
—Tivemos alguns problemas com sua mãe - disse Bauer. —Seus poderes eram mais fortes que
o que nosso feiticeiro nos levou a acreditar. Magia escura, poderia chamá-lo, o que explicaria
provavelmente seu afastamento do Aquelarre. Eva era... Bom, tivemos que…
—Apagamo-la do programa - cortou Matasumi. —A melhor coisa, realmente. Ela demonstrou
ser muito difícil como sujeito útil, e sua presença distraía à menina.
O gelo se estendeu para encher meu estômago. Esta gente mantinha a uma menina em uma cela
subterrânea, felicitando-se por havê-la encontrado, e elogiavam as vantagens de matar a sua mãe?
Olhei à moça. Era alta para sua idade, magra, com um rosto que era todos planos e ângulos agudos. O
cabelo lhe chegava à cintura, negro. Um par de enormes olhos azuis escuros dominava sua magra cara.
Uma menina estranha que levava a promessa de uma grande beleza. Olhava atentamente um livro de

18
Sombras escuras, ou Sombras tenebrosas. Creio que faz referência a uma série britânica que misturava viagens no tempo e
vampiros.
palavras cruzadas, com o lápis equilibrado em cima da página. Depois de um momento ela saudou com
a cabeça e rabiscou algo. Sustentou o livro a distância, estudou o quebra-cabeças completo, logo o
abandonou, deixando-o em cima da mesa, passeou um par de voltas, e finalmente se conformou
inspecionando o conteúdo de uma prateleira para livros atrás do televisor.
—Ela deve aborrecer-se - disse.
—Oh, não - disse Bauer. —Isto não é fácil para o Savannah. Sabemos. Mas fazemos todo o
possível para reconfortá-la. Tudo o que queira. Pastilhas de chocolate, revistas... Inclusive trouxemos
alguns vídeos jogos na semana passada. Ela está completamente... Bauer fez uma pausa, fazendo rodar
uma palavra em sua língua, logo a desprezou e disse tranquilamente — Ela está cômoda.
De modo que ela sabia quão mau tudo isto soava. “Lamentamos ter executado a sua mamãe,
pequena, mas aqui há uma coleção de palavras cruzadas e um Game Boy para compensá-lo”. Bauer
deu um toque de suas unhas manicuradas contra a parede, logo forçou um sorriso.
—Bem, isso é - disse ela. —Provavelmente se perguntará para que é tudo isto.
—Possivelmente mais tarde - murmurou Matasumi. —A doutora Carmichael espera e este não
é realmente o lugar...
—Mostramos a Elena os arredores. Agora acredito que é justo que ofereçamos alguma
explicação.
Os lábios do Matasumi se apertaram. Então isto não era geralmente parte do passeio? Por que
agora? Uma necessidade repentina de justificar-se depois de me mostrar a Savannah? Por que a Bauer
importaria o que eu pensava? Ou se defendia a si mesma?
Antes que Bauer continuasse, conduziu-me fora do bloco de celas. Estudei os procedimentos de
segurança. Uma vez que passamos através da porta, encontramos a dois guardas armados colocados
em um cubículo além da porta assegurada. Seus olhos dançaram sobre mim como se eu fora a senhora
da limpeza. Uma das vantagens de aluguel de guardas com alguma experiência militar: a curiosidade
tinha sido extraída deles. Seguir ordens e não faz perguntas.
—Alguma classe de conexão militar? - perguntei. Enquanto Bauer estivesse de humor para
responder perguntas, eu deveria as fazer.
—Militares? - Ela seguiu meu olhar fixo aos guardas. —Usar seres sobrenaturais para construir a
arma perfeita? Intrigante idéia.
—Não realmente - disse. —O fizeram no Buffy, a Caça-vampiros. A temporada anterior. Dormia
pela metade dos episódios.
Bauer riu, embora podia dizer que ela não tinha nem idéia do que eu falava. Eu não podia
imaginar a vadiando diante de um televisor, e até se o fizesse, estava segura de que a única coisa que
olharia seria CNN.
—Não se preocupe - disse ela. —Esta é uma empresa completamente privada. Nossa escolha de
guardas foi simplesmente prática. Nenhuma alusão governamental.
Transpassamos outro jogo de portas em um comprido corredor.
—Em nossa sociedade pós-industrial, a ciência empurra constantemente os limites da
tecnologia - disse Bauer, ainda andando. Joguei uma olhada para cima aos alto-falantes, quase segura
de que ouvia a voz de Bauer em alguma fita pré-gravada. —A raça humana deu grandes passos no
campo da tecnologia. Passos maciços. Nossas vidas se fazem mais fáceis com cada dia que passa. Mas
somos felizes?
Ela fez uma pausa, mas não olhou para trás, como se não esperasse uma resposta. Pergunta
retórica, pausa dramática. Bauer se sabia um par de recursos para falar em público.
—Não o somos – disse. — Todos a quem conheço têm um terapeuta e uma prateleira de livros
de auto-ajuda. Seguem tratamentos espirituais. Contratam yoghis e meditação. Serve isso? Não. São
miseráveis. E por quê?
Outra pausa. Eu mordi meu lábio para me impedir de responder. Não teria sido a classe de
resposta que ela queria.
Bauer continuou, — Porque eles se sentem impotentes. A ciência faz todo o trabalho. A gente
se vê reduzida a escravos tecnológicos, introduzir diligentemente dados em computadores e esperar a
que o grande deus da tecnologia lhes honre com resultados. Quando pela primeira vez chegaram os
computadores, a gente se emocionou. Sonharam com semanas de trabalho mais curtas, mais tempo
para o aperfeiçoamento pessoal. Não aconteceu. A gente hoje trabalha tão duro, se não mais duro, que
o que faziam faz trinta anos. A única diferença é a qualidade do trabalho que realizam. Já não levam a
cabo um pouco de valor. Só atendem as máquinas.
Pausa número três.
—O que propomos fazer aqui é devolver um sentido de poder à humanidade. Uma nova
melhora. Não uma melhora tecnológica. Melhora do interior. Melhorar a mente e o corpo. Através do
estudo dos seres sobrenaturais, podemos realizar essas mudanças. Xamãs, nigromantes, bruxas,
feiticeiros, eles podem nos ajudar a aumentar nossas capacidades mentais. Outras raças podem nos
ensinar como fazer melhoras imensas em nossas vidas físicas. A força e acuidade sensorial dos
lobisomens. A regeneração e longevidade dos vampiros. Outros avanços inumeráveis dos meios
demônios. Um novo mundo para a humanidade.
Esperei a música para aplaudir. Quando isso não passou, consegui dizer com a cara rígida, —
Parece muito... nobre.
—É-o - disse Matasumi.
Bauer apertou um botão e as portas do elevador se abriram. Entramos.

MUTRETA
O hospital era exatamente o que alguém esperaria de um centro de operações de tão alta
tecnologia: anti-séptico, branco, e frio. Cheio de instrumentos de aço inoxidável reluzente e máquinas
digitais. Bom, nunca tanto, dado que um pôster descolorido na parede anunciava os “sintomas de um
ataque cardíaco”. Todo o assunto, assim como sua doutora, uma mulher de meia idade e bastante
corpulenta. Carmichael cobriu todas as cortesias de apresentação com um brusco olá. Logo seguiu
diretamente com um “abra isto, aproxime isso, isto levante, gire isso”. Nada de conversação. Apreciava
isto. Mais fácil de tragar que a injustificada sociabilidade de Bauer.
O exame foi menos intrusivo que o médio. Nada de agulhas ou amostras de urina. Carmichael
tomou minha temperatura, peso, altura, e tensão arterial. Comprovou meus olhos, ouvidos, e garganta.
Perguntou por possíveis náuseas ou outros efeitos secundários do tranquilizador. Quando escutou a
meu coração, esperei as perguntas inevitáveis. Meu batimento do coração de coração estava bastante
acima do normal. Uma típica “anomalia fisiológica”, lobisomem como diria Matasumi. Jeremy dizia que
se devia a nosso metabolismo aumentado ou ao fluxo de adrenalina ou algo assim. Não recordava a
razão exata. Jeremy era o médico perito. Logo que estudei biologia na escola secundária. Carmichael
não comentou sobre minha frequência cardíaca, entretanto. Só assentiu com a cabeça e o anotou em
minha ficha. Suponho que eles já esperavam isto logo depois de examinar ao guia de ruas.
Depois de que Carmichael terminou comigo, reincorporei a minha festa na sala de espera. Só um
dos três guardas me tinha acompanhado ao hospital. Ele nem sequer tinha arrojado um olhar enquanto
eu me punha e tirava a roupa. Um sério golpe para meu ego. Não que eu o culpasse. Não havia muito
que ver.
Matasumi, Bauer, Tess, e os três guardas me conduziram pelo corredor longe da sala de espera
de hospital. Antes que puséssemos rumo a nosso lugar do destino, a rádio de um guarda emitiu um
sinal sonoro. Havia uma espécie de “incidente menor” no bloco de celas, e alguém chamado Tucker
queria saber se Matasumi ainda necessitava os guardas. Era a hora de comida e a maior parte dos
guardas fora de serviço se foram à cidade. Poderia Matasumi enviar aos três acompanhantes que foram
conosco? Matasumi disse ao Tucker que os enviaria em cinco minutos. Então fomos a turba a uma área
a qual Bauer se referiu como “sala de descanso”.
A sala de descanso era uma câmara de interrogatórios. Alguém que tivesse visto um só polícia
não poderia ser enganado pelo espetáculo das cadeiras cômodas e quadros do Artigo nas paredes.
Quatro cadeiras estavam ordenadas ao redor de uma mesa de madeira. Uma janela de vidro
transparente de uma direção dominava a parede longínqua. Videocâmaras e microfones penduravam
de duas esquinas do teto. Bauer podia chamá-lo um maldito salão formal se quisesse. Isto era um
quarto de interrogatórios.
Minha escolta me conduziu ao flanco mais próximo do quarto, confrontando o vidro
transparente de direção única. Uma vez que estive sentada, abriu umas tampas a um e outro lado da
cadeira e tirou correias reforçadas, que sujeitou ao redor de minha cintura. Embora meus pulsos ainda
estavam danificadas, ele usou outro jogo de correias para atar meus cotovelos aos braços da cadeira.
Logo, do chão, tirou uma fivela pesada com cadeias encostadas que se retraíram debaixo do tapete.
Com isto afirmou meus pés. As quatro patas da cadeira estavam soldadas ao chão. Maldição,
necessitamos um destes em nossa sala no Stonehaven. Nada como uma cadeira cheia de ataduras de
aço para te fazer sentir como um hóspede gostoso em casa.
Uma vez que estive segura, Matasumi deixou que os guardas se fossem. Wow, estava deixando
uma grande possibilidade ali. Nada de guardas armados? Quem sabia que estrago poderia causar eu.
Eu poderia... bom, poderia cuspir em sua cara e chamá-lo com nomes realmente repugnantes.
Quanto ao interrogatório, foi bastante aborrecido. Mais da mesma classe de perguntas
Matasumi me tinha arrojado na cela. Segui mesclando verdades e mentiras, e ninguém me chamou a
atenção por eles. Aproximadamente vinte minutos de começada a sessão, alguém bateu na porta. Um
guarda entrou e disse ao Matasumi e Bauer que este tipo Tucker solicitava sua presença no bloco de
celas para que lhe aconselhassem em uma “questão”. Bauer o impediu, insistindo em que Matasumi
podia dirigi-lo, mas isto implicava algum projeto especial dela, e depois de discutir um momento, ela
consentiu em ir. Tess seguiu ao Matasumi, embora ninguém a houvesse convidado. Suponho que ela
tinha medo de que a fora a cuspir. Bauer prometeu que estariam de volta quanto antes, e se foram.
Deixando-me sozinha. Hmmm.
Meu otimismo decaiu rapidamente. Não havia nenhum modo de que escapasse desta cadeira.
Nenhum broto de adrenalina me daria a força suficiente para romper estas cadeias. Da forma em que
estava amarrada, alguém poderia me realizar uma cirurgia a coração aberto e eu não poderia fazer
nada mais que gritar. Nem sequer podia mudar em lobo e esperar escapar. As correias e as cadeias
estavam atadas com um dispositivo que trabalhava como um cinto de segurança. Se mudava, só
arriscaria a possibilidade de me fazer danifico.
Enquanto examinava minhas ataduras, a porta detrás de mim se abriu. Um homem entrou em
tropeções no quarto, tropeçando sobre as cadeiras. Antes que pudesse ver sua cara, um aroma me
golpeou e os cabelos de meus braços se pararam. Um guia de ruas. Girei meu pescoço para ver o guia
de ruas da jaula de abaixo. Patrick Lake. O nome saltou a minha consciência ao primeiro espiono de seu
aroma. Eu só o tinha visto uma vez, e não tinha sido uma reunião memorável, mas o cérebro de um
lobisomem classifica aromas com a eficiência de um empregado de escritório de primeira categoria que
arquiva dados. Com umas moléculas do aroma, a informação que o acompanha chega imediatamente
a nossa mente.
Patrick Lake era nômade e um canibal. Não um assassino muito prolífico 19, só um corpo por aqui,
um corpo por lá, como a maior parte dos guias de ruas, com o bastante sentido comum para saber que
cada matança lhe levava mais perto da exposição, mas incapaz ou sem o desejo de deixá-lo. A Manada
não se incomodava muito com guias de ruas como Lake. Possivelmente isto soe feio, como se nós
devêssemos deter cada guia de ruas que assassine humanos, mas se fizéssemos isso, teríamos que
exterminar a três quartas partes de nossa raça, e realmente, esse não era nosso trabalho. Se os
humanos estavam sendo assassinados, deixemos que os outros humanos se ocupem disso. Duro mas
prático. Envolvíamo-nos só quando um guia de ruas atraía a atenção para ele, pondo assim em perigo
ao resto de nós. Lake fez isso faz aproximadamente quatro anos matando à filha de um funcionário da
cidade do Galveston, Texas. Clay e eu tínhamos pirado para levar a cabo nossos respectivos empregos.
Eu tinha investigado o estado do caso de assassinato. Se Lake terminava como suspeito, tinha que
morrer. Já que nunca conseguia manter-se longe, Clay se conformava derrubando na merda ao Lake
como advertência, logo se assegurava que tomasse o seguinte avião fora do Texas. Patrick Lake não nos
tinha dado nenhum problema após.
Quando Lake se cambaleou no quarto, sacudi-me em meu assento, rompendo as cadeias.
Houdini-Xavier-caminhou atrás dele. Vendo-me, deteve-se e piscou, logo olhou ao redor do quarto.
—Completamente sozinha? - perguntou.
Não respondi. A menos que houvesse guardas meio demônio com poderes de invisibilidade,
aparente eu estava completamente sozinha. De todos os modos, Xavier apareceu à porta para verificar
o corredor. Então, empurrou ao Lake diante dele, cruzou até chegar ao vidro transparente de direção
única, olhou atentamente através dele, franziu o cenho, observando o quarto contiguo, e voltou.
—Só - disse, sacudindo sua cabeça. —Deve amar este lugar. Eficiência militar, segurança de alta
tecnologia, os últimos aparelhos de comunicação. E no final, tudo tão desorganizado como os armários
de cozinha de minha mãe. Não posso acreditar que lhe deixassem sozinha. São as oito, verdade?
—Me deixe verificar meu relógio - disse.

19
Produtivo.
Ele riu entre dentes — O sinto. Certamente lhe ataram, verdade? Alguém não está dando
possibilidades. Mas estou seguro que são oito horas, e se supunha que eu devia trazer aqui ao Lake às
oito. Agora nem sequer podem manter o programa corretamente. Alguém necessita um secretário.
Lake me contemplou. Ele nunca me tinha visto antes, não oficialmente de todos os modos. No
Galveston, eu tinha estado bastante perto para cheirá-lo, mas me tinha ficado fora do vento e fora de
vista. Era uma complicação que Clay não necessitava. Os guias de ruas ficavam um tanto... excitados a
primeira vez que me viam. Uma coisa hormonal. Haviam-me dito que cheirava como uma fêmea
acalorada, não era a descrição mais lisonjeira, mas explicava bastante do problema. Depois de que um
guia de ruas me chegava a conhecer, seu cérebro humano geralmente dava patadas e anulava os sinais,
mas as primeiras reuniões eram sempre arriscadas. Às vezes eu podia usar essa reação em minha
vantagem. Geralmente só era uma dor no traseiro.
—Como ela? - perguntou Xavier.
Lake murmurou algo e tratou de arrancar seu olhar de mim, mas não teve êxito em romper o
contato visual. Caminhou para minha cadeira, as cadeias de suas pernas faiscavam criando estática
contra o tapete. Olhei-o diretamente. Termina-o, asno. Lake rodeou a mesa duas vezes. Quando Xavier
riu dissimuladamente, Lake fez uma pausa só um segundo antes que o instinto o obrigasse a avançar
outra vez, rodear, seus olhos de volta em mim.
—Confesso-o, é uma moça aposta - disse Xavier. —Mas não acha que exagera, companheiro?
—Se cale - grunhiu Lake e seguiu dando voltas.
—Não se preocupe - disse Xavier, virando-se para mim. —Se tratar de cheirar sua entreperna,
romper-lhe-ei o focinho.
Lake se voltou para o Xavier, tenso como se fosse investir contra ele, logo pareceu pensar melhor
e se conformou em grunhir uma fileira de maldições. O feitiço se rompeu, entretanto, e quando se virou
para me confrontar, seus olhos ainda ardiam, mas com fúria, não com luxúria.
—Estava ali, verdade? - disse. —No Galveston. Com ele. Quando me fez isto - Ele levantou suas
mãos voltas de reverso e me mostrou isso. Sua palma esquerda estava fixa permanentemente na
posição inicial, o resto do antebraço nodoso e gasto, como resultado de muitas rupturas e insuficiente
ajuste.
—Quem é “ele”? - perguntou Xavier.
—Clayton - cuspiu Lake, seu olhar fixo ainda sobre mim.
—Oh, o noivo - Xavier soltou um suspiro fingido. —Tinha que mencionar ao noivo? Vi-o em
Vermont, e ainda me sinto um tanto inferior quanto a beleza por todo o assunto. Por favor me diga que
o tipo tem algum hábito repugnante. Aroma de corpo. Arranha-se o nariz. Dê-me algo.
—Ele é um ferrado psicopata - grunhiu Lake.
—Perfeito! Isso é exatamente o que queria. Obrigado, Pat. Sinto-me muito melhor agora.
Independente de meu estado mental questionável, ninguém me acusou nunca de ser um psicopata.
Lake se aproximou e observou minhas cadeias.
—Que não lhe ocorram idéias pouco civilizadas - disse Xavier—. —Você a toca e terei que deixar
que ela toque de volta. Não quer isso. Ela é uma moça forte.
Lake soprou.
—Não acredita? - disse Xavier. —Ela esteve aqui umas horas e já deixou um buraco em sua
parede de cela. Você esteve aqui duas semanas e nem sequer amolgaste a tua. Poderia ser mais forte
que você.
—Provavelmente não.
—Não, talvez não. Você é maior. Mais massa musculosa. Vantagem masculina. Mas ela é
definitivamente mais preparada. Ocorreu-lhe a forma de me derrubar em seu segundo intento. Você e
eu tivemos dez rondas e nunca me puseste um dedo em cima. A fêmea da espécie é mais mortal que o
macho. Quem disse isso?
—Foi Kipling - disse.
—Vê? Ela é mais pronta que nós.
—Melhor educada - disse Lake. —Não mais preparada.
—Fazemos uma aposta então? Um round. Se ela te apanhar, obtenho seu anel de diamantes.
—Vai ao diabo - resmungou Lake.
—Um tipo sociável, verdade? Um brilhante conversador. Não sente saudades que não o deixasse
entrar em sua Manada.
—Vai ao diabo - articulou Lake mais lentamente agora, girando seu olhar para o Xavier.
—Toquei um ponto doloroso, verdade? Oh, vamos. Joga meu jogo. Me mostre que grande lobo
mal é. Quer alguma vingança por esse braço, verdade? E você, Elena? O que lhe parecem umas rondas
com o Senhor Personalidade?
—Não luto sob ordens - disse.
Xavier suspirou e pôs os olhos em branco. Então me aproximou e desfez todas as cadeias que
me sustentavam ao assento, deixando só as algemas.
—Hey! - disse Lake, avançando a pernadas para nós.
Xavier o deteve com uma mão estendida, ajoelhou-se para desfazer as ataduras das pernas do
Lake, logo abriu suas algemas. Lake tirou as algemas e lançou seu braço para o Xavier. Mas seu punho
conectou com o espaço vazio. Xavier se tinha ido.
Eu me tinha ficado em meu assento. Não havia nenhuma razão para brigar com este guia de
ruas. Melhor sentar-se aqui, rechaçar o jogo e esperar a que Matasumi e Bauer voltassem logo.
Lake retrocedeu e me contemplou. Um sorriso fez cócegas nas comissuras de sua boca.
—Não se incomode - respondi. —O tentaram antes em circunstâncias muito mais vantajosas.
Sabe o que acontecerá sequer o tenta. Clay se assegurará de que não o possa voltar a tentar nunca
mais.
—Na verdade? —Os olhos do Lake se alargaram e olhou ao redor. —Não o vejo aqui. Talvez
queira tomar a oportunidade.
—De acordo - respondi. —Se golpeie a si mesmo.
Não me movi. As lutas entre lobisomem eram puro alarde em 70 por cento. Nestes dias, Clay
ganhava a maior parte de suas batalhas simplesmente mostrando-se. Sua reputação era suficiente. Ao
menos isto servia para os lobisomem machos. Eu não era tão afortunada. Não importa quantos
combates ganhasse, os guias de ruas ainda me imaginavam indefesa sem o Clay para me proteger.
Lake rodeou a cadeira. Não me movi. Ele agarrou meu cabelo, enredando largas mechas ao redor
de seu punho. Apertei os dentes e ainda assim não me movi. Ele atirou minha cabeça para trás. Só o
fulminei com o olhar. Com um grunhido, ele liberou meu cabelo, agarrou meus ombros e me tirou da
cadeira. Joguei-me atrás, tratando de me empurrar contra a mesa, mas, a diferença de minha cadeira,
não a tinham deixado pega ao chão. Quando golpeei o bordo da mesa, esta patinou fora de alcance e
caí sobre meus joelhos, minhas mãos algemadas adiante para evitar minha queda. Lake me deu uma
patada no traseiro e me lançou longe, me fazendo estrelar contra minha cara. Fiquei quieta, com a cara
contra o tapete.
—Uf! - disse —Isso Lake doeu.
—Minhas mãos estão algemadas - resmunguei contra o tapete.
—Sim? Bom, minha mão esquerda não trabalha muito bem, graças a seu amante moço. Talvez
eu deveria te fazer o mesmo. Nah. Não no braço. Na cara. Talvez então ele não te encontrará tão
atrativa.
—Cara ou braço, não importa. Toque-me e está morto.
—Já estou morto, doçura. Contigo aqui, estes bastardos já não me necessitam mais. Poderia
conseguir minha vingança enquanto possa.
Enquanto trocávamos impressões, mantive meus braços colocados embaixo de mim e me
concentrei. O suor saltou de minha frente. Lake se ajoelhou diante de mim e sorriu abertamente.
—Está um pouco pálida, doçura. Não é tão resistente como pretende.
Movi-me, tirando meu peso de meus braços. Lake saltou sobre seus pés e pisou com força no
centro de minhas costas. Algo soou. A dor formou um arco através de mim. Sufocando um grito, fechei
os olhos e me concentrei em minhas mãos. Relaxei meu ventre contra o tapete e enrosquei minha
palma. Senti o peso do pé do Lake em minhas costas, descansando ali. Sem advertência, ele empurrou,
me esmagando contra o tapete. Cinco agulhas transpassaram minha blusa e meu estômago. Ofeguei e
cheirei o sangue.
—Doeu? - disse Lake. —Ora, sinto-me tãããão mau. Sabe quanto me dói este braço? Tem alguma
idéia? Incapaz de ir ao hospital, a um doutor? Detectar algum problema que tivesse feito revogar sua
licença…
Lancei-me sobre o Lake rapidamente, apanhando-o com o guarda baixo. Ele tropeçou para trás.
Em um segundo, ele recuperou seu equilíbrio e retirou seu pé, que apontou a meu peito quando girei.
Balancei minha mão direita e agarrei sua perna. Minhas unhas rasgaram seu jeans e se afundaram na
carne. Quando lhe tive dado um bom apertão, atirei para trás, rasgando sua perna. Lake gritou e
tropeçou para trás.
—Merda! Que merda…?
Ele olhou minha mão. Só que não era uma mão. Era uma garra, o apertão e os dedos de uma
mão humana, a pele de um lobo, largas unhas, muito afiadas, e duras como rocha. As algemas
penduravam de minha outra mão. A mudança parcial tinha estreitado minha mão o suficiente para
deixá-las sem as algemas.
—Que merda!? - repetiu Lake apoiando-se contra a parede.
—Mutreta de Manada - disse. —Leva um pouco de concentração. Muito para um guia de ruas.
Avancei para ele. Vacilou, logo se lançou contra mim. Caímos. Agarrei suas costas. Ele grunhiu e
tratou de lutar. Agarrei as costas de sua camisa com minha mão esquerda e o arrojei longe. Quando me
pus de pé, a porta se abriu de repente. Bauer entrou apressadamente no quarto com o Matasumi, Tess,
e dois guardas a seus calcanhares. Os cinco ficaram parados na entrada e olharam fixamente. Então
Bauer avançou a pernadas através do quarto, observando ao Lake.
—Que demônios passa aqui? - disse Bauer.
—Ela começou - disse ele.
—Oh, por favor - disse, me pondo de pé.
Minha mão estava normal agora. Eu a tinha metido de novo na algema. Xavier passou pela
entrada.
—Ele começou - disse Lake.
—Só seguia ordens - Xavier se apoiou contra o marco da porta, as mãos em bolsos. —O anel é
meu, Pat. Ela chutou seu traseiro.
—Está gravado em fita? - perguntou Matasumi.
Xavier bocejou — É obvio.
Bauer se girou para ambos — Ordens? Fita? O que passou aqui?
Eu sabia o que tinha passado. Tinha sido estupidamente utilizada, e estava furiosa por não havê-
lo visto antes. Acaso não deveria me haver perguntado por que Matasumi, o paranóico da segurança
deixava livres a meus guardas? Por que logo me deixava sozinha no quarto? Por que Xavier entrava
sozinho com outro lobisomem logo depois de que Matasumi tinha discutido sobre deixar minha cela
sem guardas armados? Matasumi deve ter arrumado tudo enquanto eu estava no hospital. Enquanto
estava fora de minha cela, por que não tentar um pequeno de experimento? Averiguar o que acontece
quando põe a um lobisomem da Manada no mesmo quarto que um guia de ruas.
Bauer começou a gritar ao Matasumi, logo se deteve. Despediu-se do Xavier e Tess para a noite,
logo pediu aos dois guardas que me escoltassem de volta a minha cela. Uma vez que estivemos fora da
distância normal de ouvir, ela se lançou contra Matasumi outra vez.

CONTATO
Tinha estado de volta em minha cela em aproximadamente vinte minutos quando Bauer trouxe
minha comida. Presunto, batatas fritas, cenouras de bebê, couve-flor, salada, leite, café, e bolo de
chocolate. Alimento suficientemente decente para lançar longe qualquer idéia de greve de fome, não
era que eu estivesse disposta a fazer uma de todos os modos. Não protestar era bastante bom para
garantir a conservação.
Antes que eu comesse, Bauer me mostrou os arredores da cela, indicando os artigos de
penteadeira, mostrando como funcionava a ducha, e explicando a carta de comidas. Uma camisola de
noite e um traje de dia estavam guardados em uma gaveta sob a cama. Por que só uma mudança de
roupa? Bauer não o disse. Talvez temiam que se tivéssemos muita tecido, encontraríamos um modo de
nos pendurar das inexistentes vigas. Ou pensavam que não tinha nenhum sentido nos proporcionar
mais quando não poderíamos viver o tempo suficiente para necessitá-la? Agradável pensamento.
Bauer não partiu depois de terminar meu passeio pela cela. Talvez esperava um agradecimento.
—Peço-te perdão - disse depois de que me sentei a comer. —O que aconteceu acima... eu não
sabia que planejavam isso. Não acredito em enganar a nossas hóspedes. Todo este acerto já é bastante
difícil para ti sem necessidade de preocupar-se por brincadeiras desse estilo.
—Está bem - disse entre meio de um bocado de presunto.
—Não, não o está. Por favor, me diga se algo assim passar quando não estou perto. Quer que a
Doutora Carmichael olhe suas feridas no estômago?
—Estou bem.
—Há roupa limpa se quer te mudar essa blusa.
—Estou bem - respondi, logo acrescentei um conciliatório. —Talvez mais tarde - Ela tratava de
ser agradável. Eu sabia que devia corresponder. Saber e fazer são duas coisas diferentes. O que se
supunha que devia dizer? Obrigada por preocupar-se? Se ela se preocupasse, não me teria sequestrado
em primeiro lugar, verdade? Mas enquanto me olhava comer, seu olhar de preocupação parecia
genuíno. Talvez ela não visse a contradição, entre me sequestrar e logo preocupar-se de como era
tratada. Ela estava parada ali como se esperasse que eu dissesse algo. Dizer o que? Eu tinha pouca
experiência com outras mulheres. Fofocar com alguém que me tinha drogado e tinha sequestrado
estava além de meu espectro de habilidades sociais.
Antes que eu pudesse pensar no bate-papo conveniente, Bauer se foi. O alívio se mesclou com
a culpa. Assim como sabia que devia tratar de ser amistosa, realmente não estava de humor para
conversar. Meu traseiro estava ferido. Meu estômago doía. Tinha fome. E queria me deitar, o que não
significava que estivesse cansada, mas sim queria falar com o Jeremy. Jeremy podia comunicar-se
conosco mentalmente. O problema era que só podia fazê-lo enquanto dormíamos. Depois do incidente
com o Lake, a ansiedade tinha começado a filtrar-se de minhas barricadas cuidadosamente eretas.
Queria falar com o Jeremy antes que minha tensão saísse de controle. Ele devia já estar trabalhando
em um plano de resgate. Eu tinha que ouvi-lo, saber que tomavam medidas. Inclusive mais que isso,
necessitava sua tranquilidade. Estava assustada, e necessitava consolo, alguém que me dissesse que
tudo estaria bem, mesmo que eu soubesse que era uma promessa vazia. Seria amistosa e cortês com e
Bauer amanhã. Esta noite queria ao Jeremy.
Uma vez que tive terminado minha comida, tomei uma ducha. Definitivamente a intimidade não
era um tema para o que pôs a ducha. As paredes eram transparentes. A porta de vidro transparente no
cubículo da ducha era só ligeiramente opaca, rabiscando contornos, mas deixando muito pouco à
imaginação de um observador. Fiz uma cortina estirando a toalha de banho dos serviços frente ao
espelho sobre a pia. Dançar a valsa ao redor Stonehaven nua era uma coisa. Eu não o fazia diante de
estranhos. Quando usava os serviços, punha a toalha sobre meu regaço. Alguns costumes exigem
intimidade.
Depois da ducha, pus-me roupa. Eles podiam me proporcionar uma camisola de noite, mas eu
não o usaria. Tampouco usaria sua roupa limpa amanhã. Tomaria outra ducha pela manhã e esperaria
que nada começasse a cheirar. Minha roupa era a única coisa pessoal que tinha. Ninguém as levaria
longe de mim. Ao menos, não enquanto o aroma fora suportável.

***

Jeremy não entrou em contato comigo essa noite. Não sei o que esteve mau. O único momento
em que eu sabia que Jeremy era incapaz de ficar em contato conosco era quando estávamos
inconscientes ou sedados. Estava segura de que os sedativos estavam fora de meu sistema, mas agarrei
a essa desculpa. Também era possível que Jeremy fosse incapaz de ficar em contato comigo aqui,
clandestinamente, mas preferia não considerar que isto significava não só que não teria a ajuda do
Jeremy para planejar minha fuga, mas também ele poderia assumir que eu estava morta e nem sequer
tentar efetuar o resgate. Profundamente em meu interior, eu sabia que esta última parte era uma
merda. Clay viria por mim. Ele não daria por terminado o assunto até que visse um cadáver. De todos
os modos, sempre estava a insegurança, a voz fastidiosa que sempre trata de destruir minha fé, me
dizendo que me equivocava, que ele não arriscaria sua vida para me salvar, que ninguém poderia sentir
tanto carinho por mim. Deste modo, apesar de tudo sabia o contrário, despertava banhada em suor
frio, segura de que tinha sido abandonada. Nem a maior quantidade de tempo dedicada a bate-papos
de autoconversação comigo mesma me ajudaria. Eu estava sozinha e temia permanecer sozinha,
obrigada a confiar em minhas próprias habilidades para escapar. Não confiava tanto em minhas
habilidades.
Nas últimas horas da noite, já aproximando a alvorada, alguém entrou em contato comigo. Mas
não era Jeremy. Ao menos, não acreditei que o fora. Sonhava que estava uma loja uso mongol com o
Clay, discutindo sobre quem se levaria o último M&M vermelho. Só quando tinha começado a
considerar a possibilidade de deixar-lhe Clay tomava suas peles e saía ao vento uivador, jurando não
voltar nunca. O sonho me assustou tanto que me fez despertar, fazendo pulsar meu coração com um
ruído surdo. Quando tratei voltar a dormir, alguém me chamou por meu nome, a voz de uma mulher.
Estava segura que era uma mulher, mas estava nesse estado confuso entre dormir e despertar, incapaz
de dizer se era alguém em minha cela ou uma voz que me chamava de volta ao sonho. Lutei para
levantar minha cabeça do travesseiro, mas me inundei em um novo pesadelo antes que pudesse
despertar.
A manhã seguinte, fiquei na cama enquanto pude, estirando o sonho frente à improvável
possibilidade de que Jeremy ainda tentasse ficar em contato comigo e só necessitasse um minuto mais.
Às oito e trinta, admiti o fracasso. Não dormia, só mantinha meus olhos fechados e simulava.
Tirei as pernas fora da cama, dobrei-as, e quase caí contra o chão. Meu estômago parecia ter
sido talhado, músculo por músculo, enquanto dormia. Quem pensaria que cinco pequenas feridas de
garras poderiam doer tanto? O fato que tinham sido auto-infligida não ajudava. Um dia em cativeiro e
eu me fazia já estava mais machucada que meus inimigos. Talvez Patrick Lake estivesse mais dolorido
que eu. Provavelmente não. Minhas costas se havia duro a 24 horas da pisada do Lake, e quando lutei
para me pôr de pé direita, meu corpo se rebelou de ambos os lados, estômago e espinhaço. Caminhei
coxeando até a ducha. O vapor a água ajudou a minhas costas, mas pôs meu estômago em chamas. A
água fria acalmou meu estômago, mas emperrou minhas costas outra vez. Nos dia dois tinha longe um
princípio maravilhoso.

***

Meu humor se afundou quande Bauer trouxe meu café da manhã. Nenhuma queixa sobre a
comida, é obvio, e tampouco tinha queixa de que Bauer o trouxesse, mas dar um olhar a ela fazia que
meu espírito caísse em picada. Bauer se passeava vestida com cômodas calças bege, uma camisa de
linho branco ondeante, expulsa até os joelhos, e seu cabelo artisticamente tomado com uma forquilha,
suas bochechas com um toque rosado que não provinha exatamente de uma garrafa, cheirando
ligeiramente a urze, como se viesse de um passeio matinal. Eu estava vestida com uma camisa rasgada
e manchada de sangue, meu cabelo, muito fino, enredado devido ao áspero xampu, e meus olhos
inchados devido a uma noite espantosa. Quando ela me deu o bom dia, eu sapateava meu caminho
para a mesa, incapaz de estar de pé totalmente erguida ou dizer mais que um grunhido monossilábico
como saudação. Inclusive inclinada, eu era dez ou quinze centímetros mais alta que Bauer. Sentia-me
como uma mulher Neanderthal muito grande, feia, e não muito brilhante.
Quande Bauer tratou de me integrar na conversa, senti-me tentada de frustrar seus esforços
outra vez, mas um café da manhã pacífico não era um luxo que eu pudesse me permitir. Se tinha que
planejar minha própria fuga, tinha que sair desta cela. O melhor modo de sair desta célula seria “unir-
se” a meus captores. E o melhor modo de unir-se a eles seria assegurar o favor de Bauer. Então tinha
que jogar a ser agradável. Era mais difícil do que soava. Por estranho que pareça, eu tinha um problema
com o de conversar sobre o tempo com a mulher que me tinha levado a cativeiro.
—Então vive perto do Syracuse - disse ela quando comia meu pão-doce.
Assenti com a boca enche.
—Minha família é de Chicago - disse ela. —Produtos de Papel Bauer. Ouviste sobre eles?
—Parece familiar - menti.
—Dinheiro antigo. Muito antigo.
Devia estar impressionada? Fingi-o com um assentimento com os olhos muito abertos.
—É estranho, sabe - disse ela, sentando-se em uma cadeira. —Crescer com essa classe de nome,
essa classe do dinheiro. Bem, não estranho para mim. É todo que conheço. Mas te vê ti mesma refletida
nos olhos de outras pessoas e te dá conta que é considerado como muito afortunado. Nascido com a
proverbial colher de prata. Supõe-se que é feliz, e Deus te ajude se não o é.
—O dinheiro não pode comprar a felicidade - disse, clichê se sentiu amargo em minha língua. Do
que se tratava tudo isto? Pobre e pequena menina rica? Sou rica e infeliz, então sequestro a estranhos
inocentes, bom talvez não tão inocentes, mas à força depois de tudo.
—Mas você é feliz - disse Bauer. Uma declaração, não uma pergunta.
Consegui esboçar um meio sorriso genuíno. —Bom, neste preciso momento, sendo mantida
como cativa em uma cela, eu não diria isso exatamente…
—Mas de outra maneira. Antes disto. Foi feliz com sua vida.
—Sem queixa. Não é perfeito. Está ainda a repugnante maldição de lobisomem…
—Não o vê desse modo, entretanto. Como uma maldição. Você o diz, mas não o quer dizer.
Ela me contemplava agora. Não, não a mim. Dentro de mim. Seus olhos ardendo, inclinando-se
para frente. Faminta. Joguei-me atrás.
—Alguns dias, quero dizer. Confia em mim - Despachei meu pão-doce —Estes são grandes.
Verdadeiros pães-doces de Nova Iorque. Suponho que não há possibilidade de repetir.
Ela se inclinou para trás, as chamas em seus olhos extintos, um sorriso cortês em seu lugar. —
Estou segura de que podemos arrumar algo - comprovou seu relógio. —Deveria te conseguir uma
entrevista com a Doutora Carmichael para seu exame físico.
—É algo cotidiano?
—Oh, não. O de ontem foi só uma verificação. Hoje é o exame físico completo.
Bauer levantou sua mão. A porta se abriu e dois guardas entraram. De modo que aí é onde
tinham estado escondendo-se. Me tinha perguntado isso, esperando talvez que Bauer se sentisse o
bastante cômoda para renunciar ao séquito armado. Má hipótese. Aparência de confiança, mas
carência de substância. Ou possivelmente só carência de estupidez. Maldição.

***
Já tinha um vizinho. Quando saí de minha cela, vi alguém no quarto cruzando o meu. Uma mulher
sentada frente à mesa, de costas a mim. Via-se como... Não, não podia ser. Alguém me haveria isso
dito. Eu o teria sabido. A mulher se virou do meio perfil. Ruth Winterbourne.
—Quando...? - perguntei.
Bauer seguiu meu olhar fixo e sorriu como se eu tivesse destampado um presente escondido. —
Ela chegou contigo. Estávamos em Vermont perto do lugar da reunião essa manhã. Quando lhe vimos
partir com os Danverses, Xavier e eu decidimos segui-los. O resto da equipe ficou perto de outros.
Sabíamos que alguém ficaria sozinho eventualmente. Por sorte foi Ruth. Uma muito boa aquisição. É
obvio, qualquer deles teria estado bem. Bem, exceto sua sobrinha. Não serve muito uma bruxa aprendiz
dessa idade. Savannah é outro assunto, considerando sua juventude e o que sabemos dos poderes de
sua mãe.
—Como é que não vi a Ruth ontem?
—A viagem foi excepcionalmente... difícil para ela. Sua idade. A mesma coisa que a faz ter valor
é algo que requer responsabilidade. Superestimamos a dose calmante. Mas está completamente bem
agora, assim como a pode ver.
Ela não parecia bem. Talvez alguém que nunca tivesse visto a Ruth confundiria os olhos
embotados, a pele amarela, e os movimentos letárgicos por sinais normais de envelhecimento, mas eu
a conhecia melhor. Fisicamente, ela parecia estar bastante bem. Não havia sinais de enfermidade ou
ossos quebrados. O dano era mais profundo que isso.
—Ela parece cabisbaixa - respondi. —Deprimida.
—Acontece —Declaração de fato. Nada de emoção.
—Talvez eu pudesse lhe falar - disse. —Animá-la.
Bauer deu um toque com suas unhas largas contra seu flanco, considerando-o. Se ela visse uma
segunda intenção em meu altruísmo, não deu nenhum sinal disso.
—Possivelmente poderíamos arrumar algo - disse. —Foi muito cooperadora, Elena. Outros
estavam preocupados, mas além da perfuração da parede, tiveste um surpreendente bom
comportamento. Acredito em recompensar o bom comportamento.
Sem outra palavra, ela deu a volta e me deixou que a seguisse. Interiormente me arrepiei, mas na
aparência me arrastei atrás de seus calcanhares como um cachorrinho bem treinado. Cachorrinho
treinado, em efeito. Me perdoem, mas “bem comportada” não é um termo que terei que aplicar a uma
mulher grande, ainda quando Bauer o tenha feito sem malícia ou insinuações, se um bom cachorrinho,
Elena, e te darei um caramelo. A tentação por mostrar ae Bauer o que pensava exatamente de seu
sistema de recompensas era quase esmagadora. Quase. Mas queria realmente falar com a Ruth. Ela era
meu único contato neste lugar, e eu não estava por cima das petições de ajuda. Um feitiço nos tinha
tirado dessa maldita situação no beco de Pittsburgh. Com seus feitiços e minha força, deveríamos ser
capazes de idealizar uma saída daqui.
De modo que seria um bom cachorrinho. Sofri o exame físico sem protestar. Esta vez minha visita
ao hospital foi bastante intrusiva. Tomaram raios X, amostras de sangue, amostras de urina, amostras
de saliva, e amostras de fluidos corporais que eu não sabia que tinha. Logo me puseram arames e
tomaram leituras de meu coração e cérebro. Carmichael empurrou e cravou e fez perguntas que eu me
ruborizaria de responder a meu ginecologista. Mas me recordei que este era o preço de falar com a
Ruth, então não fiz caso das intrusões e respondi as perguntas.
O exame físico durou várias horas. Ao meio dia, alguém golpeou, logo abriu a porta sem esperar
uma resposta. Dois guardas entraram. Poderiam ter sido até estes quem havia me trazido para cá, mas
não podia estar segura. Neste ponto, os cortes de cabelo ao corte de barba se mesclaram com uma
gota sem rosto, e sem nome. Ver um, significava que os tinha visto todos. Um dos guardas -
possivelmente um destes dois, possivelmente não- ficou-se no hospital comigo antes, mas depois de
uma hora mais ou menos, tinha murmurado algo sobre uma mudança de turno e havia dito à doutora
Carmichael que chamasse segurança. Ela não podia. Quando estes dois chegaram, pensei que vinham
para tomar o lugar desse guarda ausente. Em vez disso, escoltavam ao “camaleão humano”, Armem
Haig.
—Estou trabalhando aqui atrás - disse Carmichael, sem virar-se de uma série de raios X presos a
uma parede iluminada.
—Deveríamos esperar lá fora? - perguntou um guarda.
—Não é necessário. Por favor, toma a segunda mesa, senhor Haig. Já estarei com você.
Haig assentiu com a cabeça e caminhou para a mesa. Seus guardas prometeram voltar em uma
hora, logo se foram. A diferença de mim, Haig não estava algemado. Suponho que seus poderes não
eram nenhum grande risco para a segurança. Inclusive assim ele se fazia ver diferente, os guardas
estavam obrigados a notar um aparente estranho rondando pelo lugar. A fuga não era provável.
Pelos seguintes vinte minutos, Carmichael andou ocupada ao redor do hospital, comprovando
raios X, olhando atentamente através de microscópios, apontando notas em uma caderneta de notas.
Finalmente se deteve, contemplou o quarto e logo tomou uma bandeja de frascos cheios de fluídos de
um carro metálico.
—Tenho que realizar uma prova no laboratório antes que terminemos aqui, Sra. Michaels.
Déjà vu ou o que? Trazer outro cativo a um quarto comigo, encontrar uma desculpa para deixar
o quarto, e ver que diversão e caos emocionante segue. Podiam estes tipos não idealizar algo de mais
astúcia?
Carmichael se dirigiu para a saída, logo se deteve e nos olhou para mim e ao Haig. Depois de uma
pausa, pôs a bandeja no contador e recolheu o fone do intercomunicador. Embora ela voltasse às costas
e baixasse sua voz, suas palavras eram impossíveis de perder no quarto silencioso. Perguntou a alguém
em segurança se havia alguma “situação” deixando ao Haig e a mim juntos por uns minutos, se eu
estava algemada. Não havia.
—Não esqueça ligar a câmera - murmurou Haig quando ela pendurou. Sua voz era rica e suave,
com rastros de um acento.
Carmichael soprou. —Não posso programar meu maldito gravador de vídeo. Acredita que posso
operar essa coisa? - agitou uma mão para a videocâmara montada acima. —Uma palavra de
advertência, entretanto. Não pensem em partir. Fecharei com chave a porta atrás de mim. Há uma
câmara que funciona perfeitamente na sala de espera e protege o corredor. Não serão amáveis com
um intento de fuga.
Ela tomou sua bandeja de frascos e deixou o quarto.
FESTA
Depois de que Carmichael partiu, estudei a videocâmara procurando sinais de atividade, mas
estava silenciosa e quieta.
—Então - disse Haig. —Por que está aqui?
—Violação e pilhagem.
As comissuras de sua boca se elevaram — Teria sido minha primeira conjetura. Encontra os
alojamentos de seu gosto?
—Minha residência, quer dizer?
Outro sorriso inclinado — Oh, então você é lobisomem. Eu não sabia se era cortês perguntar.
Emily Post não cobre circunstâncias como esta. — Hmmm. Eu tive um paciente com licantropismo uma
vez. Sentia-se obrigado a virar três vezes antes de sentar-se no canapé. Três intentos. Mas sempre tinha
que inclinar-se para fazê-lo.
Recordei como Carmichael se dirigiu a ele —Doutor Haig - disse. —Então é um loque-psiquiatra?
—Loquero, sim. Minhas capacidades especiais não são muito proveitosas na vida diária. Suponho
que poderiam ajudar se eu fosse um assassino internacional, mas sou terrível. E por favor, me chame
Armem. A formalidade parece bastante desconjurado aqui.
—Sou Elena. Psiquiatria, né? Então conhecia o Matasumi? Antes de vir aqui?
—Eu tinha ouvido dele - Seus lábios escuros se torceram em uma careta de repugnância. —
Parapsicologia. Com reputação de rodear o código de ética de investigação.
—Realmente? Imaginemo-lo. Não deve ter nenhuma escassez de gente para analisar aqui, entre
os cativos e os captores.
—De maneira bastante alarmante, as pessoas nas jaulas com maior probabilidade usariam
minhas recomendações para liberar-se.
—Matasumi tem alguns problemas definidos - respondi. —E Bauer?
—Um dos sãos, realmente. Só triste. Muito triste.
Não era a impressão que eu tinha, mas antes que pudesse exigir detalhes, Armem continuou. —
O que me mais gostaria de subir ao canapé é ao Tyrone Winsloe. Embora uma vez que o tivesse ali,
estaria profundamente tentado de atá-lo e correr como o diabo.
—O que está mal com ele?
—Por onde começo? Tyrone Winsloe é - Armem moveu sua cabeça para a porta; passos
entravam na sala de espera, logo se detiveram fora da sala nesse momento. Ele baixou sua voz. —Se
necessitar ajuda... para te adaptar, por favor, pergunta. Este não é um lugar muito agradável. Quanto
mais logo possamos estar fora disto, mais logo nos sentiremos todos muito melhor.
Enquanto ele me observava com olhar conhecedor, eu soube que não se oferecia a me ajudar
com meu ajuste psicológico.
—Como ia dizendo, minha habilidade especial não é muito útil - murmurou. —Mas sou muito
observador... como psiquiatra. E como todos, sempre posso usar o companheirismo. Como suporte
moral. Recursos adicionais e força. Isso acredito, é sua especialidade. Força.
O trinco deu volta. Carmichael a abriu de repente com seu caderno de notas e entrou, enquanto
folheava páginas.
—Está preparada, então, Sra. Michaels - disse. —Sua escolta está na sala de espera.
—Um prazer te conhecer, Elena —disse Armem enquanto ia. —Desfruta de sua estadia.

***

Bauer e os guardas me levaram de volta à sala de descanso. Um guarda sujeitou às cadeias de


sujeição de pernas e torso, e tirou as cadeias de meu braço, o qual me agradou até que compreendi
que só me tinham deixado as mãos livres para que pudesse comer o almoço. Uma vez que terminei,
voltaram as algemas. Então Matasumi e Tess se uniram a nós, e aguentei dois rounds de interrogatórios.
Um par de horas mais tarde, quando Bauer voltou, observei através do corredor. A cela de em
frente estava vazia.
—Onde está Ruth? - perguntei.
—Um leve problema. Está no hospital.
—Está bem?
—Não há nenhum perigo imediato. Reagimos de maneira exagerada provavelmente, mas a
saúde de nossas hóspedes é muito importante.
—Posso vê-la quando volte?
—Temo que não será possível - disse ela, estendendo a mão para a porta de minha cela. —Mas
tenho feito acertos para que tenha companhia de uma classe diferente.
—Eu gostaria de falar com a Ruth.
Deixando aberta minha porta, Bauer entrou como se eu não houvesse dito nada. Os guardas me
empurraram para que avançasse. Dava um passo em minha cela, logo me detive. As ninharias de minha
nuca se elevaram, e algum antigo instinto me advertiu que minha guarida tinha sido invadida.
—Recorda a Leah, verdade? - disse Bauer.
A meio demônio ruiva estava sentada a minha mesa, servindo uma taça de vinho. Jogou-me uma
olhada e sorriu.
—Hey - disse ela. —Elena, verdade?
Assenti com a cabeça.
—Bem-vinda à festa - disse ela, levantando sua taça. —Pode acreditar isto? Veio, queijo,
biscoitinhos salgados. Não como tão bem nem sequer em casa. Unirá a nós, Sondra?
—Se não se opuserem.
—Um delicioso merrier - Leah emitiu um sorriso cem por cento livre de sarcasmo. —Posso lhes
servir um copo senhoras?
—Por favor - disse Bauer.
Não respondi, mas Leah encheu dois copos mais. Enquante Bauer avançava para tomar a sua, eu
só podia bocejar. Uma festa de queijo e vinho? Por favor, me digam que estão brincando.
—Você gosta de branco? - perguntou Bauer, me estendendo um copo. —É uma muito boa
colheita.
—Uh-obrigada - Tomei o vinho e consegui me sentar em uma cadeira, uma tarefa que parecia
muito mais difícil do que devesse.
—Elena é jornalista - disse Bauer.
—De verdade? TV ou rádio? - perguntou Leah.
—Escrita - murmurei, embora saísse como um murmúrio gutural, perigosamente perto de um
grunhido.
—Faz o trabalhos free-lance - disse Bauer. —Cobre a política canadense. É canadense.
—Oh? Interessante. Vocês têm um primeiro-ministro, verdade? Não um presidente.
Assenti com a cabeça.
Leah soltou uma risada humilde.— Bem, essa é a extensão de meu conhecimento de política
internacional. Lamentável.
Bebemos a sorvos nosso vinho.
—Leah é ajudante do xerife em Wisconsin - disse Bauer.
Assenti com a cabeça, lutando para pensar em algum comentário pertinente para fazer e ficando
em branco. Oh, por favor, Elena. Pode fazer algo melhor que isto. Diga algo. Diga algo. Não se sente ali
como uma resmungona, uma idiota que assente com a cabeça. Depois de que tivemos mencionado
minha carreira, eu deveria ter perguntado ao Leah sobre a sua. Assim era como funcionavam os bate-
papos. Minha experiência socializando com outras mulheres era desconcertantemente breve, mas
certas regras se tinham como certas não importando a quem te dirigia.
—Então é uma policial - disse, logo me estremeci interiormente. Duh. Se não podia sair com um
pouco mais inteligente que isso, deveria manter minha boca fechada.
—Não é tão excitante como sonha - disse Leah. —Sobretudo não em Wisconsin. Alguém quer
queijo?
Ela cortou partes de um redondo queijo Gouda e ofereceu a tabela de queijo. Cada um de nós
tomou um, junto com um biscoitinho salgado que se desmanchou impropriamente quando a mordi.
Enquanto mastigávamos, Bauer preencheu nossas taças meio vazias. Derrubei a minha, rezando para
que isto pudesse ajudar, logo notei que ambas as mulheres me olhavam.
—Mais forte do que acreditei - respondi. —Talvez devesse ater-me à água.
Bauer sorriu. —Bebe tudo o que queira. Há mais de onde este veio.
—Assim, vive no Canadá? - perguntou Leah.
Vacilei, mas compreendi que se não respondia, faria-e Bauer. Minha vida não era exatamente
um segredo por aqui. —No Estado de Nova Iorque.
—Seu marido é americano - disse Bauer. —Clayton é seu marido, verdade? Não pudemos
encontrar um registro de matrimônio, mas quando os seguíamos, notei que ele tinha posta uma aliança
de casamento - Ela jogou uma olhada a minha mão esquerda. —Oh, mas você não o leva. Era um anel
de compromisso o que levava, entretanto, verdade?
—Longa história - disse.
Leah se inclinou para frente. —Essas são sempre as melhores.
Joguei-me pouco a pouco para trás em minha cadeira. —E o que há a respeito de vocês duas?
Casadas? Noivas?
—Superei ao material casadoiro em minha pequena cidade - disse Leah. —Pus meu nome para
que me transfiram antes que os viúvos de setenta anos comecem a parecer bem.
—Estive casada - disse Bauer. —Rebelião juvenil. Casei-me com ele porque meu pai o proibiu e
logo compreendi que às vezes os pais sabem realmente o melhor para nós.
—O que faz seu marido? - Leah me perguntou.
—Clayton é antropólogo - respondeu Bauer antes que eu pudesse desviar a pergunta.
—Oh? Parece... Fascinante.
Bebendo a sorvos seu vinho, Bauer soltou uma risada tola. —Admite-o, Leah. Parece
absolutamente horrível.
—Não disse isso - disse Leah.
Bauer esvaziou sua taça e a preencheu — Não, mas o pensou. Confia em mim, esse tipo não é
nenhum acadêmico aristocrático. Deveria vê-lo. Cachos loiros, olhos azuis, e um corpo... Material de
deus grego.
—Tem uma foto? - perguntou-me Leah.
—Uh, não. Então, você gosta…
—Temos algumas imagens de vigilância acima - disse Bauer. — Mostrar-lhe-ei isso mais tarde.
Elena é uma moça muito afortunada.
—A beleza não é tudo - disse Leah, soltando um sorriso perverso. —É o rendimento o que conta.
Estudei as borbulhas de minha taça. Oh, por favor, por favor, por favor, que não perguntem.
Leah derrubou seu vinho - Tenho uma pergunta. Se não for muito pessoal.
—E até se o é - disse Bauer com uma risada tola.
Oh, por favor, por favor, por favor…
—Vocês mudam para lobos, verdade? - disse Leah. Então, quando você e seu marido são lobos,
ainda são... já sabe. São ainda amantes?
Bauer inspirou tão forte que o vinho orvalhou seu nariz. Bem, era uma pergunta ainda pior que
perguntar como era Clay na cama. Isto era um pesadelo. Meu pior pesadelo. Não só lançada a uma
festa de queijo e vinho com duas mulheres que logo que conhecia, a não ser com duas mulheres que
sabiam tudo sobre mim e estavam um pouquinho bêbadas. Que o chão se abra e me trague agora. Por
favor.
—O queijo está realmente bom - respondi.
Bauer riu com tanta força que começou a ter soluço.
A porta se abriu de repente. Um guarda colocou sua cabeça dentro.
—Sra. Bauer?
Em uma piscada de olho, Bauer esteve sóbria. Ela tossiu uma vez em sua mão, logo se endireitou,
seu rosto tão régio como sempre.
—Sim? - disse.
—Temos uma situação - disse ele. —Com o prisioneiro três.
—Não são prisioneiros - soltou ela, ficando de pé. —Qual é o problema com o Sr. Zaid?
—Sua roupa não está.
Leah inspirou uma risada e cobriu sua boca com o guardanapo de linho.
—O que tem feito ele com elas? - perguntou Bauer.
—Ele não tem feito, uh, nada, senhora. Terminou sua ducha e eles, uh, não estavam. Então
começou o inf.., digo, animação. Maldições, vociferações. Toda essa coisa de vodu. A necessita.
Imediatamente.
A moléstia revoou através da cara de Bauer —Diga ao Sr. Zaid... - deteve-se. Vacilou. —De
acordo. Falar-lhe-ei. Entre. Já voltarei.

FANTASMAS
Bauer realmente não esteve muito tempo fora para que Leah e eu pudéssemos mudar mais que
umas frases. Quando voltou, passou por diante do guarda que tinha deixado na cela conosco. Ela não
parecia contente.
—Como está Curtis? - perguntou Leah.
Bauer piscou, como se estivesse distraída com seus próprios pensamentos. —Bem - disse depois
de uma pausa. —Ele está bem. Só... nervoso por tudo isto.
—Onde estava sua roupa? - perguntou Leah.
Outra piscada. Outra pausa. —Oh, em sua prateleira para livros - Ela se sentou em sua cadeira e
preencheu sua taça. —Esmeradamente dobrada na prateleira superior.
—Os espíritos estão trabalhando - entoou Leah, Sorrindo misteriosamente.
—Não comece com isso - disse Bauer.
—Pode mover… - comecei. —Quero dizer, pode fazer coisas assim?
Leah agitou um biscoitinho coberto de queijo, dispersando miolos. —Nah. Não seria divertido,
entretanto. A telecinese está limitada à fila de visão do meio demônio. Se não puder vê-lo, não posso
movê-lo. Meus poderes não são muito precisos tampouco. Se tratasse de levantar um montão de
roupa… - Ela deu volta e olhou minha cama. A manta dobrada aos pés levitou, flutuou sobre o lado, e
caiu em um montão sobre o tapete. —A gravidade a apanha. Eu poderia lançá-la contra a parede ou
sacudi-la no ar, mas quando a deixei ir, nunca cairia amavelmente dobrado.
—Então é coisa de energia psíquica arbitrária? - Perguntei a Bauer.
—Eles estão de volta - disse Leah com a voz de um menino agudo.
Bauer riu, cobrindo sua boca cheia de biscoitinhos com uma mão e meneando seu indicador livre
para Leah. —Para isso - se virou para mim. —Isto é o que quero dizer. A teoria favorita do Leah. Ela
pensa que temos um duende.
—Duende? - Repeti. —Não me diga que construiu este lugar sobre um cemitério indígena.
Depois de três filmes, a gente realmente pensaria que a gente aprenderia.
Leah riu. —Viu? Obrigada, Elena. Sondra não viu nem sequer o primeiro Poltergeist. Todas
minhas referências à cultura pop estão perdidas para ela.
—Então brinca - respondi. —Sobre o duende.
—Uh-uh.
—Não a deixe começar - disse Bauer.
—Realmente não acredita em fantasmas - disse.
—Seguro - disse Leah, Sorrindo abertamente. —Mas faço a linha de separação nos lobisomem.
Seriamente, entretanto, quanto se sabe sobre duendes?
—Aborreci-me no segundo filme e saltei o terceiro. Isso é tudo.
—Bem, sou algo assim como uma perita autodidata. Quando estava na escola secundária, li tudo
o que pude encontrar sobre duendes. Devido às semelhanças com minha “condição”. Queria saber mais
sobre mim e minha classe e imaginei que os chamados duendes talvez realmente eram manifestações
do meio demônio telecinéticos.
—Parece plausível - respondi.
—É-o, até que aprende mais sobre isso. Os duendes típicos parecem meninos próximos à
puberdade. Os meios demônios não entram em seus poderes plenos até estar, bem perto da fase
adulta. Os duendes também se associam com ruídos e vozes, que não são parte de meu repertório. Não
tem nada que ver comigo o acerto do mobiliário novo ou mover com esmero os objetos de um lugar a
outro, o que são outras marcas de um duende.
—Não ouvimos nenhum ruído estranho - disse Bauer.
—Mas não todas as manifestações de duendes implicam som. Todo o resto sobre estes
acontecimentos indicam a um duende.
—Um duende que justo foi aparecer aqui? - respondi. —De todos os lugares?
—Não é Savannah - disse Bauer, enviando um olhar de advertência a Leah.
—A bruxa jovem? - respondi.
—Só é outra teoria - disse Leah. —Savannah está na idade perfeita, e com seus poderes, seria
um conduto ideal, sobre tudo nestas estranhas circunstâncias.
—Acredita que ela conjurou…
—Oh, não, não - disse Leah. —Savannah é um amor. Totalmente inocente, estou segura. Agora,
sua mãe era um verdadeiro problema, e eu não teria posto nada diante dela, mas estou segura de que
Savannah não herdou nenhum de seus poderes mais escuros.
—Se - disse Bauer. —E repito, se Savannah tiver feito que uma espécie de duende se materialize,
o qual duvido, estou segura de que ela não é consciente do fato.
—Certamente - disse Leah. —Provavelmente não pode controlá-lo. Não há nenhuma prova do
contrário... bem, exceto...
Bauer suspirou. —Algumas das perturbações mais alarmantes giraram em torno de Savannah.
Quando está desgostada, a atividade aumenta.
—Se esse pobre guarda não tivesse esquivado- disse Leah. —Mas não, ainda digo que está mais
à frente do controle do Savannah. Provavelmente, sua cólera esporeia ao duende a reagir. Uma união
emocional involuntária, embora potencialmente, poderia ser absolutamente perigoso se alguém se
cruzar…
—Isso é energia psíquica arbitrária - disse Bauer firmemente. —Até que o Doutor Matasumi ou
eu vejamos algo que demonstre o contrário, isso é o que assumimos.
A porta se abriu.
—Sim - cuspiu Bauer, logo se girou para ver o ajudante do Matasumi pendurar-se na entrada. —
O sinto, Tess. O que acontece?
—São quase quatro e trinta. O doutor Matasumi acreditou que eu devia lhe recordar…
—Ah, sim. A teleconferência. Sinto muito. Estarei contigo. Poderia por favor, enviar os guardas
a escoltar a Leah de volta a seu quarto?
—A festa terminou - disse Leah e tragou o resto de seu vinho.

***

Depois da comida, a voz que eu tinha ouvido a noite anterior não chamou outra vez. Esta vez
estava segura que estava acordada. Bem, razoavelmente segura, ao menos. Ainda tinha a esperança
que a festa de queijo e vinho tivesse sido um pesadelo.
—Quem está ali? - disse em voz alta.
—Sou eu, querida. Ruth.
Apressei-me para o buraco que tinha perfurado entre minha cela e a seguinte, pus-me de coque,
e olhei atentamente através dele. Não havia ninguém ali.
—Onde está? - perguntei.
—Cruzando o corredor. Este é um feitiço de comunicação. Pode me falar normalmente e te
ouvirei como se estivesse ali no quarto. Graças a Deus finalmente pus-me em contato contigo. Estive
tendo uma temporada de todos os diabos. Primeiro os sedativos. Logo o campo obstrutor. Justo quando
imaginei um caminho para rodeá-lo, tiraram-me daqui porque minha conta de leucócitos era baixa. O
que esperam eles a minha idade?
—Bloquear o campo? - Repeti.
—Explicar-lhe-ei isso. Sente-se e te ponha cômoda, querida.

***

Para assegurar nossa intimidade, Ruth lançou um feitiço de detecção que poderia descobrir a
qualquer no corredor. Uma coisa útil, a magia. Não como minha taça de chá, mas muito mais prática
do que eu teria imaginado.
Nossos captores tinham tomado a Ruth mais ou menos ao mesmo tempo que Bauer e Xavier me
tinham apanhado, por isso ela não sabia que eu tinha sido sequestrada, o que significava que não sabia
se Jeremy e Clay haviam retornado com outros ou se já sabiam o que me tinha passado. Quando lhe
disse que não tinha sido capaz de me pôr em contato com o Jeremy, surpreendeu-se até um ponto
vizinho no choque, não de que não pudéssemos entrar em contato, mas sim de que algum lobisomem
tivesse capacidades telepáticas. Temos nossos estereótipos, suponho. As bruxas tinham o poder
mental, os lobisomem tinham o poder físico, e nunca se encontraria uma união.
—O que aconteceu quando tratou de te pôr em contato com ele? - perguntou.
—Não posso fazê-lo - disse. —Ele é o único com o poder. Tenho que esperar que ele entre em
contato.
—Tentou-o? - perguntou.
—Eu não saberia como.
—Deveria tentá-lo. É muito simples. Relaxe-te e finge — Não importa. Não funcionará de todos os
modos.
—Por que não funcionará?
—Eles puseram um campo obstrutor. Conheceu a seu homem dos feitiços?
Sacudi minha cabeça, e, compreendendo que ela não podia ver o movimento, respondi — Não.
Ouvi que ele, entretanto. Katzen, acredito que o chamaram.
—Isaac Katzen?
—Conhece-o?
—Sei dele. Ele estava com um dos Conspiradores, acredito. Oh querida, espero que eles não
estejam implicados. Seria um problema espantoso. Os Feiticeiros Conspiradores são... - Ela se deteve.
—O lamento, querida. Negócios de feitiçaria. Não precisa saber sobre isto.
—E este tipo Katzen? Tenho que saber algo sobre ele? Bauer diz que provavelmente não
precisarei conhecê-lo. Por que o disse? Ele não se associa com “raças inferiores”?
Um sorrisinho curto —Ele é definitivamente um feiticeiro. Não, querida, eu acredito que tenha
que preocupar-se com Isaac Katzen. Os feiticeiros têm pouca de facilidade para feitiços sem palavras.
Pouca facilidade para as bruxas, também. Os feiticeiros não são bruxos homens. São uma raça
completamente diferente. Um rebanho repugnante, lamento dizê-lo. Não têm o sentido de que são
parte de algo maior. Uma ausência absoluta de altruísmo. Nunca sonhariam usando seus poderes para
ajudar… - um suspiro e um sorrisinho. —Deixa de te desviar, Ruth. A idade, já sabe. Não é que a mente
comece a vagar; é só que está tão cheia de informação que salta sempre fora da pista e se desliza por
tangentes.
—Não me importa.
—Tempo, minha querida. Tempo.
Virei-me para a porta — Vem alguém?
—Não ainda. Se eles tiverem ao Isaac Katzen na “equipe”, então certamente, ele é quem lançou
um feitiço para bloquear a telepatia, entre outras coisas.
—E que outras coisas?
—Bem, ele poderia fiscalizar as comunicações, proporcionar segurança adicional…
—Monitorar as comunicações? Quer dizer que ele poderia nos escutar agora mesmo?
—Não, querida. Ele teria que estar perto para fazê-lo, e averiguei já que não há ninguém aqui,
além de nossos companheiros cativos. Tome cuidado, entretanto. Se ele realmente visitar as celas,
poderia escutar sem usar o sistema intercomunicador. Para a maior parte dos feitiços, ele precisa estar
perto, mas pode bloquear a telepatia de longe.
—Mas você conseguiu realizar um caminho ao redor do feitiço. Pode te pôr em contato com
alguém fora daqui?
—Acredito que posso, embora não tive uma oportunidade. Vou tentar o mais tarde. Por-me-ei
em contato com Paige e lhe direi que você está aqui, assim ela poderá comunicar-se contigo. Ela
recebeu o treinamento apropriado. Nunca teve a necessidade de usá-lo, mas deveria sair bem. Ela será
uma bruxa letrada muito poderosa um dia. Tem o potencial e mais que suficiente ambição. Com um
pouco de dificuldade para aceitar seus limites agora mesmo, de modo que isto pode não ir tão
facilmente como gostaria. Seja paciente com ela, Elena. Não deixe que se sinta frustrada.
—Por que tenho que me comunicar com Paige? Você pode fazê-lo, verdade? Posso falar com
ela, eu falarei contigo...
—Tenho outra coisa que preciso fazer. Não quero ser grosseira, querida. Não te estou
abandonando. Com a ajuda do Paige, poderá organizar tudo muito bem sem mim. Há alguém que me
necessita mais. Têm outra bruxa aqui. Uma menina.
—Savannah.
—Conheceu-a?
—Vi-a.
—Horrível, verdade? - A voz da Ruth se obstruiu com a emoção. —Definitivamente horrível. Uma
menina. Como alguém pode ser tão insensível… mas não posso falar extensamente sobre isso. Tenho
que lhe ajudar.
—Pode tirá-la daqui?
Silêncio. Quando este durou mais de dez segundos, perguntei-me se alguém tenha entrado o
corredor. De repente Ruth continuou — Não. Infelizmente, isso está além de minhas capacidades ou
eu o faria com ambas, junto com todas as demais pobres almas deste lugar. O melhor que posso fazer
é dar à menina as ferramentas que necessitará para sobreviver. A sua idade, ela tem só o conhecimento
mais rudimentar e pode lançar feitiços só muito benignos. Tenho que lhe ensinar mais. Acelerar seu
desenvolvimento. Não é o caminho que eu escolheria em qualquer outra circunstância. Poderia ser...
Bem, poderia não ser a melhor coisa, mas dada a opção entre isso e a morte... sinto muito, querida.
Não tenho que te incomodar com os detalhes. Baste dizer que estarei ocupada com a menina, embora
me ponha em contato contigo sempre que puder. Agora, aqui está o que precisa fazer para ajudar a
Paige a comunicar-se contigo.
Ruth me disse como me preparar para os conjuros telepáticos do Paige —Seja receptiva - era a
versão condensada. Nada terrivelmente complicado. Eu poderia sentir algo como o início de uma dor
de cabeça devido à tensão. Em vez de não fazer caso disso, tinha que me relaxar e me concentrar em
limpar minha mente. Paige faria o resto. Ruth ficaria em contato com ela esta noite, avisá-la-ia que
estávamos a salvo, dar-lhe-ia alguns conselhos a respeito de como trabalhar conjuro para conseguir
vencer o campo obstrutor. Uma vez que me comunicasse com Paige, eu poderia lhe dizer como ficar
em contato com o Jeremy.
—Agora - disse Ruth quando teve terminado. —Uma precaução. Não deve permitir que Paige
saiba sobre a menina da Eva. Savannah, quero dizer.
—Conhecia-a? - perguntei.
—A Savannah? Não. Eva partiu quando estava grávida. Paige provavelmente nem sequer a
recorda. Era só uma menina por então. Ninguém estava perto da Eva. Não importa. Se Paige souber
que há uma bruxa jovem aqui, insistirá em resgatá-la imediatamente. Se ela viesse a resgatá-la e algo
acontecesse... - Ruth inalou bruscamente. —Paige nunca se perdoaria.
—Isso não importará. Quando sairmos, levaremo-nos a Savannah.
Ruth fez uma pausa. Quando falou, havia uma dor em sua voz tão profundo pude senti-lo — Não,
não pode preocupar-se pela menina. Não agora. Darei a Savannah todo o poder que possa. Deve te
concentrar em sair daqui.
—E você?
—Não tem importância.
—Não tem importância? Não irei…
—Fará o que deve fazer, Elena. Você é a que importa agora. Conheceu a esta gente. Viu este
lugar. Esse conhecimento será inestimável para ajudar a outros para que possam lutar contra esta
ameaça. Do mesmo modo, sua fuga assegurará a ajuda de sua Manada. Se não sair… mas o fará. Sairá,
e sua Manada ajudará outros a deter esta gente antes que capturem a mais de nós. Então, quando
voltar, pode preocupar-se pela menina. Se…, digo, quando voltar e a tire daqui, leva-a diretamente a
Paige. Isto é importante. Depois do que vou fazer pela Savannah, só Paige será capaz de controlar o
dano. Ao menos, espero… - Sua voz se acalmou. —Não posso me preocupar com isso. Não agora. O
importante…
Ela se deteve e se calou. Logo, — Alguém vem, querida. Falar-te-ei quando puder. Deve estar
pronta para Paige.
—Espero ao segundo fantasma quando o relógio das duas.
Ruth riu entre dentes. —Pobre Elena. Isto deve ser absolutamente inquietante para você. Fá-lo-
á bem, querida. Muito bem. Agora vá dormir. Boa noite.

RECHAÇO
Bauer trouxe meu café da manhã na manhã seguinte, junto com um café para ela. Colocamo-lo
sobre a mesa e, depois de lhe dizer as formalidades esperadas do tipo como esteve seu café da manhã?
Como dormiu? Respondi, — Realmente eu gostaria de ver a Ruth. Se for possível - Mantive meus olhos
baixos, voz tão próxima ao ponto de rogo como pude. Incomodava-me como o inferno, mas havia coisas
mais importantes que a dignidade ferida para considerar.
Bauer esteve silenciosa um momento, logo pôs sua mão em cima da minha. Lutei contra o
impulso de arrancar e mantive meu olhar baixo de modo que ela não visse minha reação.
—Não é possível, Elena. Sinto muito. O doutor Matasumi e o Coronel Tucker pensam que isso
seria arriscado para a segurança. Só posso empurrar coisas até o ponto onde eles começam a empurrar
de volta.
—Como está Ruth? - Perguntei. —Ainda deprimida?
Bauer fez uma pausa, logo assentiu com a cabeça — um pouco. Mais problemas de ajuste que
de costume.
—Talvez se ela me visse. Uma cara familiar.
—Não, Elena. Realmente, não posso. Por favor, não pergunte outra vez.
Tomei uma fatia de maçã e a, logo respondi, — Bem, talvez ela poderia ter outro visitante, então.
E Savannah? Isso poderia reanimá-la.
Bauer golpeou com suas unhas a taça — Sabe, poderia não ser uma idéia tão má. Mas, outra vez,
está a questão da segurança.
—Ali? Pensei que Savannah não tinha obtido seus poderes ainda. Comigo, existe o perigo de que
Ruth e eu pudéssemos armar um plano juntas. Entendo isso. Mas que tipo de feitiços poderia lançar
Savannah que Ruth não pudesse lançar já?
—É um bom ponto. Mencioná-lo-ei ao Lawrence. A doutora Carmichael e eu estamos
preocupadas com a Ruth. Uma visita do Savannah poderia ser justo o que ela necessita. Muito atento
de sua parte, Elena, pensar nisso.
Hey, sou garota atenta. Nada de segundas intenções aqui —Poderia estar bem para o Savannah,
também - disse. —Uma bruxa mais velha com quem falar, agora que sua mãe morreu.
Bauer estremeceu ao ouvir isso. Bom tiro, Elena. Tenro e baixo. Decidi arrancar a lingueta antes
que tivesse tempo de ulcerar-se. Continuar com minhas formas atentas... E seguir entrando na graça
de Bauer.
—Desfrutei conhecendo Leah ontem - disse. —Obrigada por arrumá-lo.
—Faço o que posso, Elena. Sei que estas não são... as melhores de circunstâncias.
—Não são tão malotes como poderia ser. Embora vá perder a data limite de publicação se não
voltar antes de na próxima semana. Embora não suponho que haja alguma possibilidade...
Bauer esboçou um sorriso diminuto — O lamento, Elena. Nada de promessas.
—Esperarei - Terminei meu suco de laranja. —De qualquer modo, quando falávamos de carreiras
ontem, esquecemos te perguntar sobre a tua. Trabalha para o negócio da família? Polpa e papel,
verdade?
—Assim é. Meu pai se retirou uns anos atrás, por isso encabeço o negócio agora.
—Wow.
Um sorriso pálido — Há pouco “wow” nisso. Estou ali só porque meu pai teve a desgraça de
engendrar só dois meninos. Meu irmão mais jovem assumiu a companhia depois de que meu pai se
retirou. Realmente, “assumiu” é um exagero menor. Meu pai lhe deu a companhia. Resultou ser muito
para meu irmão. Matou-se no ano noventa e oito.
—Sinto muito.
—Depois disso, eu fui herdeira em ausência, para desgosto de meu pai. Se ele não tivesse sofrido
um golpe depois da morte de meu irmão, provavelmente teria tomado as rédeas de novo antes que
dar-lhe a uma mulher. Como respondi, velha companhia, velha família. O lugar de uma filha é casar-se
bem e trazer sangue fresca à junta diretiva. Tecnicamente, encabeço a companhia, mas em realidade
sou só um disfarce a frente, uma mulher ainda razoavelmente jovem e atrativa para tirar reluzir em
funções principais, mostrar ao mundo quão progressiva é a família Bauer. Presidentes, gerentes, eles
fazem todo o trabalho. Pensam que não posso dirigi-lo. Não importa se for duas vezes mais pronta que
meu irmão. Duas vezes ambiciosa. Duas vezes capaz. Mas deve saber o que é isso.
—Eu? Não realmente…
—A única lobisomem fêmea? Uma moça, brilhante e tenaz invadindo o último baluarte de
exclusividade masculina? Vamos. Esta tua Manada. Tratam-lhe como uma espécie de animal
doméstico, verdade?
—Jer-eles não fazem nada disso.
Ela estava tranquila. Joguei uma olhada a tomo o café da manhã para vê-la me olhar com um
sorriso de satisfação, como se eu houvesse dito exatamente o que ela queria ouvir.
—Consegue respeito? - perguntou.
Encolhi os ombros, esperando que isto tirasse a satisfação de seu sorriso. Não o fez. Em vez disso,
aproximou-se pouco a pouco em sua cadeira. Seus olhos queimavam com a mesma intensidade que eu
tinha visto ontem quando me tinha perguntado sobre minha vida.
—Desfruta de seu status especial, verdade? A única fêmea.
—Eu não diria isso.
Ela riu. Triunfo. —Falei com esse outro lobisomem, Elena. Patrick Lake. Ele sabia tudo sobre ti.
Você fala pelo líder da Manada. Intercede com os lobisomens de fora em seu lugar. Inclusive pode
tomar decisões em seu lugar.
—Sou só uma mediadora - disse. —Quando se trata de guias de ruas, faço mais limpeza que
política.
—Mas se sente confiante com o poder de falar pelo Alfa. Um poder imenso em seu mundo. A
mão direita do lobisomem mais importante e a amante do segundo mais importante. Tudo porque é a
única fêmea.
Ela sorriu como se inconscientemente ela acabasse de me insultar. Quis lhe dizer que Clay e eu
não tínhamos apaixonado antes que eu me convertesse na única lobisomem fêmea” e que eu tinha
ganho qualquer status que tivesse na Manada. Mas não cairia na armadilha. Não o necessitava. Ela só
fez uma pausa para recuperar o fôlego antes de continuar.
—Sabe qual é a pior coisa em minha vida, Elena?
Pensei em lhe dar uma resposta, mas duvidava que ela apreciasse o esforço.
—O aborrecimento - disse. —Estou atada a um trabalho que ninguém me deixará fazer, pega a
uma vida que ninguém me deixará conduzir. Tratei que aproveitá-la, o tempo livre, o dinheiro.
Alpinismo, esqui alpino, mergulho em alta mar. Dava o que queira. Tenho-o feito. Quanto mais
arriscado e mais caro, melhor. Mas sabe o que? Não sou feliz. Não me sinto realizada.
—Huh - Uma dor de cabeça golpeou detrás de meus olhos.
Bauer se inclinou para frente. —Quero mais.
—Deve ser difícil…
—Mereço mais - disse ela.
Antes que eu pudesse tentar outra resposta, ela ficou de pé e dançou pela cela como uma prima
Donna depois de sua melhor função.
—Que demônios passa? - Resmunguei depois de que ela partiu.
A dor de cabeça ficou pior. Maldição, parecia uma confusão. A coluna pisoteada, o estômago
cravado, e agora uma dor de cabeça. Pensei em Bauer. Suficiente de seus problemas, senhora, agora
vamos falar de meus. Ri-me entre dentes, logo ofeguei quando a risada enviou espetadas de dor através
de meu crânio. Esfreguei meu pescoço. A dor só piorou. Quando estive na cama, a luz chamuscou meus
olhos. Maldita seja. Não tinha tempo para uma dor de cabeça. Tinha tanto que fazer. Terminar o café
da manhã, tomar banho, esfregar as manchas de sangue de minha blusa, planejar como sair desta fossa
infernal, e frustrar os maus projetos dos bandidos. Um horário muito ocupado para alguém encaixotado
em uma jaula subterrânea.
Obriguei-me a subir à cama. O movimento repentino fez que aparecessem agulhas atrás de meus
olhos. Dor de cabeça devido à tensão? Considerando todas as coisas, tinha direito a um. Esfregando
meu pescoço outra vez, dirigi-me para a ducha.
—Elena?
Dava-me volta e olhei ao redor. Não havia ninguém ali.
—Ruth? - Respondi, embora a voz não soasse como a seu. Este não era o modo em que Ruth se
teria comunicado comigo tampouco. A voz da Ruth teria sido audível. Esta era mais algo que sentia mas
bem que ouvia.
—Elena? Vamos!
Esta vez, sorri. Embora a voz fora ainda um sussurro, muito fraco para reconhecer, a exasperação
era notavelmente identificável. Paige.
Fechei os olhos, dispus-me a responder, e compreendi que não tinha nem idéia do que fazia.
Não era como falar com o Jeremy. Com o Jeremy, a comunicação ocorria em um estado de sonho, onde
imaginava que podia vê-lo e ouvi-lo. Soava e se sentia como uma conversação natural. Isto não. As
frases de Paige eram proverbiais “vozes em sua cabeça”, e ilusões auditivas não eram parte de meu
psicopatologia normal. Como respondia? Tratei mentalmente de formar uma resposta e esperei.
—Vamos... Responde...!
Bem, ela não podia me ouvir e eu a perdia. Concentrei-me com mais força, imaginando dizendo as
palavras. O silêncio voltou.
—Paige? —Respondi, provando as palavras em voz alta. —Está aqui?
Nenhuma resposta. Chamei-a outra vez, mentalmente esta vez. De todos os modos nada. O nó
em minha cabeça se soltou e comecei a sentir pânico. Tinha-a perdido? E se eu não podia fazer isto?
Maldição, te concentre. O que me havia dito Ruth? Relaxe-te. Limpa sua cabeça. Minha cabeça estava
clara... Bom, exceto pela frustração de comprimir por meu cérebro. Concentre-te, te concentre. Nada
bom. Enquanto com mais força tentava, mais temia não poder fazê-lo. Agora estava tensa. E Paige se
foi. Respirei fundo. Esquece isto. Vá tomar banho te. Vestir-te. Relaxar-te. Ela tentaria outra vez...
Esperava.

***

A segunda tentativa do Paige ocorreu duas horas mais tarde. Esta vez eu estava na cama, lendo
um aborrecido artigo de revista e quase adormecida. Esse deve ter sido o ambiente de telepatia
perfeito. Quando ouvi sua chamada, respondi sem pensar, respondendo em minha cabeça.
—Bom - disse ela — Aqui.
—Posso te ouvir - disse.
—Isso... Você não... Experiência.
Embora não podia ouvir a oração completa, podia conjeturar o conteúdo ausente. Não podia
ouvi-la porque eu era nova nisto. O problema não tinha nada que ver com sua inexperiência.
Naturalmente.
—... Ruth?
—Ela está bem.
—Bem - Mais alto, mais claro, como se a tranquilidade se acrescentou ao sinal. —E você? Está
bem?
—Sobrevivendo.
—Bom. Mantém nisso.
—Mantenho…?
Muito tarde. O sinal se desconectou. Estava sozinha. Outra vez. Condenada.

***

Vinte minutos mais tarde que acordo, estou de volta.


Paige. Outro contato fácil, provavelmente porque, outra vez, eu não o esperava.
—Está preparada? - perguntou.
—Para que?
O chão se deslizou embaixo de mim. Virei-me para evitar minha queda, mas não havia nada ali.
Nada de chão. Nada “eu”. A ordem de mover-se veio de meu cérebro e se foi... A nenhuma parte. Vi-
me lançada à escuridão completa, mas não perdi o conhecimento. Meu cérebro lançava ordens
selvagens, move isto, faz isto, olhe, cheira, escuta, grita. Nada. Não havia nada para responder. Não
podia ver, ouvir, falar, me mover, nem cheirar. Cada sinapsis em meu cérebro explorava em pânico.
Pânico animal absoluto.
—Elena?
Ouvi algo! Minha mente se cambaleou de volta à prudência, agarrando-se a uma palavra como a
um salva-vidas. Quem disse isso? Paige? Não, não era Paige. A voz de um homem. Meu coração saltou
ao reconhecê-lo antes que meu cérebro até imaginasse.
—Jeremy?
Respondi a palavra, não a pensei, mas a respondi e a ouvi. Mesmo que meus lábios não se
moveram e a voz que ouvia não a minha. Era Paige.
Vi a luz. Uma figura velada diante de mim. Então um pop mental e todo se voltou claro. Estava
sentava em um quarto. Jeremy estava de pé diante de mim.
—Jer?
Minhas palavras. A voz de Paige. Tratei de me pôr de pé. Nada aconteceu. Olhei para baixo e vi
minhas mãos descansar sobre os braços de uma cadeira, mas não eram minhas mãos. Os dedos eram
mais curtos, suaves, embelezados por anéis de prata. Segui a linha de meu braço. Cachos marrons se
transbordavam sobre meu ombro, em cima de um vestido com motivos de “lilás no vale” sobre um
fundo verde escuro. Um vestido? Definitivamente, este não era meu corpo.
—Elena? - Jeremy ficou de coque diante de mim - ou meu não - eu. Ele franziu o cenho. —
Funciona? Está ai, carinho?
—Jer? - Respondi outra vez.
No fundo de meu campo visual, vi o movimento por meus lábios, mas não senti nada. Inclusive
meu campo visual estava enviesado, o ângulo estava todo mal, como se estivesse olhando a cena
através de uma câmara colocada de uma maneira estranha. Tratei de me mover para cima, acrescentar
alguma altura a minha posição, mas não passou nada. A sensação era inquietante ao ponto do pânico.
Era isto o que se sentia ao estar paralisada? Meu coração revoou em meu peito. Não sentia que este
palpitasse, só o percebia em minha mente, alguma conscientiza a nível visceral das respostas normais
de meu corpo, sabendo que meu coração devia revoar, mesmo que não estivesse.
—O que… - comecei. A voz era tão alheia a meus ouvidos que tive que me deter. Tragar. Tragar
mentalmente, quero dizer. Se minha garganta se movia, não era consciente disso. —Onde estou? Quem
sou eu? Não posso me mover.
A cara do Jeremy estava nublada. —Ela não…? - Ele murmurou algo pelo baixo, logo começou
outra vez, com calma. —Paige não te explicou?
—Explicar o que? Que demônios passa?
—Ela transportou a seu corpo. Pode ver, ouvir, falar, mas não terá nenhuma aula de mobilidade.
Ela não te explicou…?
—Não, ela me lançou ao limbo e despertei aqui. Idiota.
—Escuto isto - disse uma voz distante em minha cabeça. Paige.
—Ela está ainda aqui - disse. —Ali. Em algum lugar. Escutando às escondidas.
—Não escuto às escondidas - disse Paige. —Você tem meu corpo. Onde se supõe que vou estar?
Não foi idiotice. Sabia que quereria falar com o Jeremy, então quis te surpreender. Deveria ter sido uma
transição tranquila, mas suponho que sua falta de experiência…
—Minha falta de experiência? - Respondi.
—Não lhe faça caso - disse Jeremy.
—Ouvi isso - disse Paige, mais tranquila.
—Como está? - perguntou Jeremy. Pôs sua mão sobre a minha. Eu o vi, mas não podia senti-lo e
senti uma pontada de perda.
—Só - respondi, me surpreendendo. Subi meu tom. —Não por falta de companhia, entretanto.
Parece que sou “a hóspede” mais popular deste lugar. Mas é — estou… - inalei. —Vamos, Elena. A
última coisa que Jeremy necessitava, era me ouvir o bordo de um desastre emocional. De onde veio
isso?
—Estou cansada - respondi. —Não durmo bem, não como bem, nada de exercício. Então estou
delicada. Febre, suponho. Fisicamente, estou bem. Eles não me torturam, me golpeando, me privando
de comida. Nada assim. Estarei bem.
—Sei que o estará - disse ele brandamente. Sentou-se em uma cadeira. —Se sente bem para
falar disso?
Contei-lhe sobre Bauer, Matasumi, recitei a toda pressa alguns detalhes sobre os guardas e o
resto do pessoal como Xavier, Tess, e Carmichael, lhe dando uma imagem áspera da situação. Expliquei
tanto como pude sobre a organização do lugar, logo sobre os outros cativos, recordando a presença
silenciosa do Paige e me detendo antes de falar do Savannah.
—Só estou interessado em te tirar - disse Jeremy quando tive terminado. —Não podemos nos
preocupar com outros.
—Sei.
—Como te mantém?
—Be...
—Não diga “bem”, Elena.
Fiz uma pausa — Está Clay... por aí? Talvez poderia falar com ele.... Só uns minutos. Sei que temos
que fazer isto curto. Não há tempo para socializar. Mas eu gostaria - se pudesse...
Jeremy estava tranquilo. Dentro de minha cabeça, Paige murmurou algo. O alarme me
percorreu.
—Ele está bem, verdade? - Perguntei. —Não passou...
—Clay está bem - disse Jeremy. —Sei que você gostaria de lhe falar, mas este poderia não ser...
Um bom momento. Ele está... dormindo.
—Dormindo...? - Comecei.
—Não estou dormindo - grunhiu uma voz desde mais à frente do quarto. —Não voluntariamente,
ao menos.
Elevei a vista para ver o Clay na entrada, o cabelo enredado, os olhos atenuados por sedativos.
Ele se moveu pesadamente pelo quarto como um urso que acordada da hibernação.
—Clay - disse, meu coração pulsando ligeiro logo que pude dizer seu nome.
Ele se deteve e me fixou com o cenho franzido. Minhas seguintes palavras se entupiram em
minha garganta. Traguei-as e tentei outra vez.
—Causando problemas outra vez? - Perguntei, forçando um sorriso em minha voz. —O que fez
para fazer que Jeremy te drogasse?
Seu cenho se endureceu com algo que eu tinha visto em sua cara um milhão de vezes, mas nunca
quando me olhava. Desprezo. Seus lábios se enroscaram, e abriu a boca para dizer algo, logo decidiu
que não valia o esforço e girou sua atenção ao Jeremy.
—Cl… - comecei. Minha tripa era rocha sólida. Não podia respirar, logo que poderia falar. —Clay?
—Sente-se, Clayton - disse Jeremy. —Estou falando com…
—Posso ver com quem fala - Outra torcedura de lábios. Seus olhos fulminaram em minha
direção. —E não sei por que perde seu tempo.
—Ele pensa que você é eu - sussurrou Paige.
Eu sabia isso. Profundamente, sabia, mas isso não ajudava. Vi o modo em que me olhou, e não
importava quem acreditava Clay que estava ali, ele me olhava. A mim.
—Não é Paige - disse Jeremy. —É Elena. Ela se comunica através de Paige.
A expressão do Clay não mudou. Não se abrandou. Nem sequer por um segundo. Ele virou seu
olhar e vi o desdém ali, mais forte agora, duro e agudo.
—É isso o que ela te disse? - disse. —Sei que quer atenção, Paige, mas isto é baixo. Inclusive para
você.
—Sou eu, Clay - disse. —Não é Paige.
Ele se mofou, e vi ali tudo o que nunca tinha querido ver na cara do Clay quando me olhasse,
cada gota do desprezo que sentia pelos humanos. Eu tinha tido pesadelos disto, vendo-o dar-se volta e
me olhar dessa maneira. Tinha despertado suando, o sangue palpitando em minhas veias,
absolutamente aterrorizada, de um modo que nenhum pesadelo de infância me tinha assustado
alguma vez. Agora o olhei e algo se rompeu. O mundo se voltou negro.

RENASCIMENTO
Despertei no chão de minha cela. Não me levantei. Tinha estado sonhando? Queria acreditar,
logo me repreendi para um desejo tão tolo. É obvio, não queria que tivesse sido um sonho. Queria
acreditar que tinha falado com o Jeremy, comunicado todas minhas observações, pondo as rodas do
resgate em movimento. Quem se preocupava com o Clay? Bem, eu me preocupava. Preocupada mais
do que queria a maior parte das vezes, mas tinha que pôr esta coisa em perspectiva. Clay não me havia
olhado dessa forma. Ao menos, ele não tinha acreditado me olhar a mim. Obviamente ele não
suportava Paige, e francamente, não me surpreendia. Ali onde os humanos conversavam, Clay não era
o Senhor Simpatia no melhor dos casos e certamente não quando o dito humano era uma bruxa
presumida, o bastante jovem para ser uma de seus estudantes. Jazia no chão e me dizia tudo isto, e
não ajudava nem sequer um pouco. Sentia-me... Minha mente a sujeitou com braçadeiras antes que a
última palavra saísse, mas a abri. Admito-o. Tinha que admiti-lo, ao menos frente a mim mesma. Sentia-
me rechaçada.
Isso era tudo, verdade? Sentia-me rechaçada. Grande coisa. Mas era uma grande coisa. Uma
coisa muito grande. No segundo em que permiti que a emoção me tocasse, esta me engoliu. Era uma
menina outra vez, tomando a mão de um novo padrasto, abraçando-o forte e rezando para não ter que
deixá-lo ir nunca. Tinha seis, sete, oito anos, rostos que apareciam ante mim como páginas em um
álbum de fotos, nome que tinha esquecido, mas rostos que reconheceria se os visse mesmo que
passassem por uma fração de segundo em um trem afastando-se. Ouvi vozes, o zumbido de uma
televisão, meu pequeno corpo estava apertado contra a parede, apenas capaz de respirar por medo a
ser ouvido por acaso, lhes escutando falar, esperando ouvir “A Conversa”. A Conversa. Confessando-se
ambos os culpados de que isto não funcionasse, que eu era “mais do que podiam tratar”. Convencendo-
se de que tinham sido enganados pela agência, enganados quando o que queriam era adotar uma
menina loira, uma boneca de olhos azuis, uma boneca rota. Não tinham sido enganados. Não tinham
escutado. As agências sempre tratavam de adverti-los sobre mim, sobre meu passado. Quando tinha
cinco anos, tinha visto meus pais mortos em um acidente de carro. Tinha-me sentado no caminho rural
toda a noite, tratando desesperadamente de despertá-los, gritando para pedir ajuda na escuridão.
Ninguém me encontrou até a manhã, e depois disto, bom, nunca estive bem depois disto. Retirei a
minha mente, surgindo só para lançar fora minha raiva. Sabia que danificava as coisas para mim. Cada
vez que uma nova família adotiva me recolhia, jurava que os faria apaixonar-se por mim; que seria o
pequeno anjo perfeito que eles esperavam. Mas não podia fazê-lo. Tudo o que podia fazer era me
manter em minha cabeça, ver a mim mesma gritar de raiva, esperando o rechaço final, e ter a certeza
que era minha culpa.
Nunca contei essa história. Tenho ódio. Tenho ódio, ódio, ódio. Não permito que meu passado
explique meu presente. Cresci, pus-me mais forte, venci-o. Fim da história. Para o tempo em que fui o
bastante grande para compreender que meus problemas não eram minha culpa, tinha decidido não
lançar toda essa culpa a todas essas famílias adotivas, a não ser me desfazer dela. Lançá-la. Movê-la.
Não podia imaginar nenhum destino pior que me converter em alguém que conta a história de sua
infância disfuncional a cada estranho que conhece no metro. Se eu fizesse as coisas bem na vida, queria
que a gente dissesse que o fazia bem, não que fazia bem “todas as coisas considerando a questão”.
Meu passado era um obstáculo privado, não uma desculpa pública.
Clay era a única pessoa a que eu lhe tinha contado alguma vez sobre minha infância. Jeremy
conhecia pedaços, as partes que Clay sentia necessário compartilhar naqueles primeiros dias quando
Jeremy teve que tratar comigo como uma lobisomem recém transformada. Eu tinha conhecido ao Clay
na Universidade de Toronto, onde eu era um estudante com interesse na antropologia e ele dava uma
série de conferências curtas. Apaixonei-me por ele. Com força e rápido, não impressionada por sua
aparência ou sua atitude de menino mau, mas sim por algo que não posso explicar, algo nele me fazia
ter fome de possuí-lo, algo que tinha que tocar. Quando ele me favoreceu com sua atenção, soube que
era algo especial, que ele não se abria às pessoas mais que eu. Quando nos aproximamos, ele me contou
sobre sua própria infância, encobrindo detalhes que não podia contar sem revelar seu segredo. Contou-
me sobre seu passado, então lhe contei sobre o meu. Tão simples como isso. Estava apaixonada e
confiava nele. E ele traiu essa confiança de um modo do que nunca me repus completamente, como
nunca me repus dessa noite interminável no caminho rural. Não perdoei ao Clay. Tínhamos deixado a
conversa do perdão para depois. Não era possível. E ele nunca o tinha pedido. Não acredito que ele o
esperasse. Com o tempo, eu tinha aprendido a deixar de esperar que ser capaz de dá-lo.
O motivo do Clay para me morder era inexplicável. Oh, ele tinha tratado de explicá-lo. Muitas
vezes. Ele me tinha levado ao Stonehaven para conhecer o Jeremy, e Jeremy tinha estado planejando
nos separar, e Clay tinha entrado em pânico e me tinha mordido. Talvez fosse certo. Jeremy confessou
que tinha tido a intenção de terminar a relação do Clay comigo. Mas não acredito que a mordida do
Clay tivesse sido inesperada. Possivelmente o momento foi, mas acredito que em alguma parte de sua
psique, ele sempre tinha estado preparado para fazê-lo se a necessidade alguma vez surgisse, se eu
alguma vez ameaçasse deixando-o. Então o que passou depois de que ele me mordeu? Passamos por
cima e seguimos nossas vidas? Não em sua vida. Fiz-o pagar e pagar e pagar. Clay fazia um inferno de
minha vida, e eu lhe devolvi o favor duplicado. Ficaria em Stonehaven durante meses, inclusive anos,
logo me partiria sem avisar, rechaçando todo contato, tirando-o de minha vida completamente. Tinha
procurado outros homens para o sexo e, uma vez, para um pouco mais permanente. Como reagiu Clay
a isto? Ele me esperou. Nunca procurou a vingança, nunca tentou me fazer dano, nunca ameaçou
procurando a alguém mais. Eu poderia haver ido durante um ano, voltar para o Stonehaven, e ele me
teria estado esperando como se eu nunca me tivesse partido. Inclusive quando tinha tratado de
começar uma nova vida em Toronto, sempre soube que, se o necessitasse, Clay estaria ali para mim.
Não importa quão mal o tivesse feito tudo, ele nunca me deixaria. Nunca me daria as costas. Nunca me
rechaçaria. E agora, depois de mais de uma década de ter aprendido essa lição, tudo o que precisou foi
um olhar dele, um olhar sozinho, e estava enroscado no chão, dobrada de dor. Toda a lógica e o
raciocínio no mundo não trocavam como me sentia. Tanto como queria acreditar que tinha vencido
minha infância, e não o tinha feito. Provavelmente nunca o faria.

***

O almoço veio e passou. Não o trouxe Bauer, pelo qual estava agradecida. Não a vi de novo até
quase as seis. Quando abriu a porta de minha cela, verifiquei duas vezes a hora, calculando que a
comida chegava cedo ou meu relógio se parou. Mas ela não trazia comida. E quando ela transpassou a
porta, soube que nenhuma comida estava próxima. Algo andava mau.
Bauer entrou sem nada de sua graça assertiva habitual. Meio tropeçou com uma ruga imaginária
no tapete. Sua cara estava limpa com água, em suas bochechas havia pontos brilhantes de carmesim,
seus olhos estavam estranhamente brilhantes, como se tivesse uma febre. Dois guardas a seguiam. Ela
lhes fez gestos para mim, e eles me ataram à cadeira onde tinha estado lendo uma revista. Todo o
tempo enquanto me amarraram, Bauer rechaçou encontrar meus olhos. Não era bom. Realmente não
era bom.
—Fora - disse quando eles terminaram.
—Deveríamos esperar fora - começou um.
—Disse fora. Nos deixem. Voltem para seus lugares.
Uma vez que se que foram, ela começou a passear. Passos pequenos e rápidos. Detrás e adiante,
daqui para lá. Dedos golpeando seu lado, o maneirismo trocou agora, não um toque com lentidão
pensativa, a não ser rápido. Maníaco. Uma obsessão de passear-se. Seus olhos. Tudo.
—Sabe o que é isto?
Ela tirou algo de seu bolso e o sustentou. Uma seringa de injeção. Cheio até um quarto com um
líquido claro. Oh, merda. O que ia fazer me?
—Olhe - respondi. —Se eu fiz algo para transtornar…
Ela agitou a seringa de injeção —Perguntei se sabia o que era isto.
A seringa de injeção escorregou de suas mãos. Ela gesticulou para recuperá-la, como se o plástico
fosse romper-se ao golpear o tapete. Quando ela se moveu, apanhei um odor familiar. Medo. Ela tinha
medo. O que parecia uma obsessão era uma luta pelo controle, ela desesperadamente tratava adaptar-
se a uma emoção que não estava acostumada a sentir.
—Sabe o que é isto, Elena? - Sua voz se elevou uma oitava. Chiava.
Ela tinha medo de mim? Por que agora? O que tinha feito eu?
—O que é? - Respondi.
—Isto é uma solução salina mesclada com sua saliva.
—Meu o que?
—Saliva, saliva, baba - Voz subiu outra escala. Uma risada tola e nervosa, como uma menina
apanhada dizendo uma má palavra. —Sabe o que isto pode fazer?
—Não…
—O que fará se me injeto isso?
—Injetar…?
—Pensa, Elena! Vamos. Não é estúpida. Sua saliva. Remói a alguém. Seus dentes perfuram sua
pele, como esta agulha perfura a minha. Sua saliva entra em sua corrente sanguínea. Minha corrente
sanguínea. O que acontece?
—Mudaria - poderia mudar…
—Em lobisomem - Ela deixou de andar e ficou quieta. Completamente quieta. Um pequeno
sorriso entreabriu seus lábios — Isso é exatamente o que vou fazer.
Tomou um momento registrar isso. Quando o fiz, pisquei e abri minha boca, mas nada saiu.
Traguei, lutado me acalmar. Não infundir pânico. Não fazê-lo pior. Tratá-lo como uma brincadeira.
Suavizar a situação.
—Oh, vamos - respondi. —É a resposta a seus problemas? Não consegue respeito no trabalho
então te converterá em lobisomem? Conseguir um bom trabalho na Manada, golpear algumas cabeças,
encontrar um formoso amante? Porque se isso é o que está pensando, confia em mim, não funciona
dessa maneira.
—Não sou idiota, Elena.
Ela me cuspiu as palavras, arrojando baba de seus lábios. Ooops, tática incorreta.
—O que quero é mudar - continuou ela. —Para me inventar de novo.
—Fazer-se lobisomem não é a resposta - disse brandamente. —Sei que não é feliz…
—Não sabe nada sobre mim.
—Então conta…
—Fiz-me parte deste projeto por uma razão. Pela possibilidade de experimentar algo novo, um
pouco mais perigoso, mais estimulante, que alterasse mais minha vida que escalar o Monte Everest.
Experiências que todo meu dinheiro e influência não podiam comprar. Feitiços, imortalidade,
percepção extra-sensorial, não sabia o que queria. Talvez um pouco de tudo. Mas agora sei exatamente
o que quero, o que procurava. Poder. Não mais saudar humildemente aos homens, fingindo que sou
mais parva que eles, mais débil, menos importante. Quero ser tudo para o qual tenho potencial. Quero
isto.
Meu cérebro ainda vacilava, incapaz de encontrar a coerência ao que Bauer dizia. A brutalidade
de tudo isto me afligia, quase me convenci de que devia estar sonhando ou tendo alucinações. Como
tinha acontecido isto? Incrível, da minha perspectiva, mas e da sua? Faz quanto tempo tinha ela seu
olhar posto no desfile de presidiários, esperando ver o que poderia lhe dar o poder que ansiava. Agora,
tendo encontrado o que acreditava desejar, possivelmente tinha medo de vacilar, medo de mudar de
opinião. Tinha que trocá-lo por ela. Mas como?
Bauer sustentava no alto a seringa de injeção. Enquanto a contemplava, piscou, e empalideceu.
Um medo tão espesso que obstruiu minhas fossas nasais, inconscientemente minha adrenalina
começou a bombear. Quando ela me olhou, a cólera se foi. O que vi nesses olhos me deixou fria. Súplica.
Medo e súplica.
—Quero que entenda, Elena. Me ajude. Não me faça usar esta coisa.
—Não tem que usá-lo - disse tranquilamente. —Ninguém pode te obrigar a fazê-lo.
—Faz-o por mim então. Por favor.
—Fazer o que?
—Remói meu braço.
—Não posso…
—Tenho uma faca. Cortarei a pele. Só tem que…
O pânico se instalou em meu peito. —Não, não posso.
—Me ajude a fazê-lo bem, Elena. Não sei como funcionará a solução salina. Eu só posso
conjeturar a quantidade, a proporção. Necessito que você…
—Não.
—Estou-te pedindo…
Atirei minhas cadeias, mantendo meus olhos sobre ela — Me escute, Sondra. Dê-me um minuto e
me deixe te explicar o que acontecerá se usar isso. Não é da forma em que acredita que é. Não quer
fazer isto.
Seus olhos brilharam então. Toda a obsessão se foi. Congelou-se — Não quero?
Levantou a seringa de injeção.
—Não! - Gritei, pulando de minha cadeira.
Enterrou a agulha em seu braço, empurrou o êmbolo. E pareceu. Um segundo. Uma fração de
segundo. Tanto tempo como lhe tinha tomado ao Clay me morder.
—Maldita seja! - Gritei. —Você maldita cadela estúpida —Chama o hospital. Agora!
Sua cara estava preternaturalmente tranquila, lábios curvados em um pouco parecido à
felicidade. Alívio ditoso por havê-lo feito — Por que, Elena? Por que deveria chamar o hospital? Então
podem investi-lo? Tirar o presente de minhas veias como se fosse o veneno de uma serpente? Oh, não.
Não farão nada disso.
—Chame o hospital! Guardas! Onde infernos estão os guardas?
—Ouviu que os despedi.
—Não sabe o que tem feito - grunhi. —Acredita que isto é algum grande presente. Uma espetada
de agulha e é um lobisomem? Fez suas investigações, verdade? Sabe o que passará agora, verdade?
Bauer girou seu sorriso sonhador para mim — Posso senti-lo correndo por meu sangue. A
mudança. É quente. Formiga. O princípio da metamorfose.
—Oh, isso não é tudo o que vai sentir.
Ela fechou os olhos, estremeceu, voltou-os a abrir, e sorriu — Parece que ganhei algo esta noite
e você perdeu algo. Já não é a única lobisomem fêmea, Elena.
Seus olhos se abriram então. Inchados. As veias em seu pescoço e frente apareceram. Ofegou,
afogada. Suas mãos foram a sua garganta. Seu corpo se sacudia. Se coluna se enrijeceu. Olhos em
branco. Elevou-se sobre os dedos dos pés, movendo-se para frente e para trás, como um presidiário
pendendo do final da corda do carrasco. Então sofreu um colapso, caindo ao piso. Gritei por ajuda.

WINSLOE
—O que fez à Sra. Bauer? - perguntou Matasumi.
Os guardas tinham tirade Bauer rapidamente logo depois de que comecei a gritar. Vinte minutos
mais tarde, haviam retornado com o Matasumi. Ele agora esta ali de pé, me acusando sem um rastro
de acusação em sua voz.
—Disse aos guardas - Sentei no bordo de minha cama, tratando de me relaxar, como se esta
classe de coisas passasse cada dia. —Ela se injetou com minha saliva.
—E por que faria isso? - perguntou Matasumi.
—A mordida de um lobisomem é um modo de converter-se em lobisomem.
—Compreendo isso. Mas por que… - Ele se deteve. —Oh, já vejo.
Ele? Realmente o via? Duvidava-o. Nenhum deles poderia entender o que vinha. Eu podia, e
estava tentando com todas minhas forças não pensar nisso.
Matasumi esclareceu sua garganta — Você afirma que a Sra. Bauer se injetou…
—A seringa de injeção está no chão.
Seus olhos vacilaram para a agulha, mas não fez nenhum movimento para recolhê-la — Você
afirma que ela usou esta seringa de injeção…
—Não afirmo nada. Digo-lhe o que aconteceu. Ela se injetou no braço. Procure a marca de
agulha. Prove os conteúdos da seringa de injeção.
A porta se abriu. Carmichael se apressou a entrar, sua bata de laboratório ondeando detrás dela.
—Não temos o tempo para isto - disse. —Tenho que saber o que fazer por ela.
Matasumi fez ao Carmichael à parte — Primeiro, devemos estabelecer a natureza exata da
doença da Sra. Bauer. É muito fácil para a Sra. Michaels afirmar…
—Ela diz a verdade - disse Carmichael. —Vi a marca de agulha.
Teria sido difícil falhar. Inclusive enquanto os guardas se levaram a Bauer da cela, eu tinha visto
o ponto de injeção, aumentado ao tamanho de uma bola do ping-pong. Uma lembrança de minha
própria mordida se abriu passo a minha mente, mas o empurrei atrás. Observação fria, clínica. Era o
único modo em que poderia tratar com isto. Tomar notas do Matasumi.
Carmichael se voltou para mim — Tenho que saber tratar com isto. Sondra está inconsciente.
Sua pressão baixa. Sua temperatura sobe. Suas pupilas não reagem aos estímulos. Seu pulso corre e se
volta errático.
—Não há nada que eu possa fazer.
—Você passou por isso, Elena. Sobreviveu.
Não disse nada. Carmichael avançou para mim. Joguei-me atrás na cama, mas ela se aproximou
mais, empurrando sua cara contra a minha até que pude cheirar sua frustração. Girei minha cabeça.
Agarrou meu queixo e atirou minha cara para a sua — Ela está morrendo, Elena. Morrendo
horrivelmente.
—Isso só piorará.
Seus dedos se apertaram, afundando-se nos músculos de minha mandíbula — Vai ajudá-la. Se
fosse você a que estivesse lá encima, eu não ficaria parada e te olharia morrer. Diga-me como ajudá-la.
—Quer ajudá-la? Ponha uma bala em sua cabeça. Não é necessário que seja de prata. O chumbo
regular servirá.
Carmichael empurrou meu queixo e retrocedeu para me contemplar — Meu Deus, é fria.
Não disse nada.
—Isto não ajuda - disse Matasumi. —Trate os sintomas à medida que os veja, Doutora
Carmichael. Isso é o melhor que podemos fazer. Se a Sra. Bauer se infligiu esta desgraça a si mesma,
então tudo o que podemos fazer tratar os sintomas e deixar o resto ao destino.
—Isso não é o melhor que podemos fazer - disse Carmichael, seus olhos perfurando os meus.
Não quis me defender. Realmente não queria. Mas o peso desse olhar deslumbrante era muito.
—O que, exatamente, acredita que posso fazer? - Perguntei. —Não corro ao redor dos humanos
mordendo-os e cuidando-os quando se adoecem. Sabe quantos lobisomem recém mordidos encontrei?
Nenhum. Zero. Não acontece. Nunca estive perto de um lobisomem hereditário de maior de idade. Não
sei o que fazer.
—Passou por isso.
—Acredita que tomei notas? Sabe o que lembro? Lembro o Inferno. Completo, com fogo e
enxofre, demônios e fantasias de diabo, lanças candentes e fossas sem fundo, cheios de lava. Recordo
o que vi aqui - Golpeei minha palma contra minha frente. —Recordo o que imaginei, o que sonhei.
Pesadelos, delírios, isso é tudo o que havia. Não sei uma merda a respeito da temperatura e a pressão
sanguínea e a resposta das pupilas. Alguém mais tratou com isso. E quando tudo terminou, não quis
saber o que ele tinha feito. Tudo o que queria era esquecer.
—Essas visões do Inferno - disse Matasumi. —Possivelmente poderia as descrever para mim mais
tarde. A união entre o sobrenatural e o ritual Satânico…
—Por Deus, deixa-a em paz - disse Carmichael. —Por uma vez. Deixa-a em paz.
Saiu a pernadas do quarto. Matasumi se inclinou para agarrar a seringa de injeção, logo se deteve,
fez gestos a um guarda para que a recolhesse, e seguiu ao Carmichael.

***

Teria ajudado eu a Bauer se pudesse? Não sei. Por que deveria? Ela me sequestrou e me lançou
em uma jaula. Devia-lhe algo? Infernos, não. Se a mulher foi o bastante estúpida para converter-se em
um lobisomem, não era meu problema. Fiz ou respondi algo que a fizesse desejar essa loucura incrível?
Contei-lhe histórias da vida maravilhosa e cheia de diversão de um lobisomem? Claro que não. Procurei
a vingança animando-a a afundar essa agulha em seu braço? Absolutamente não. Sim, ela era minha
inimiga, mas ela fez isto a si mesma. Então, por que me sentia responsável? Não o era. Inclusive uma
parte de mim lamentava que não pudesse ajudar, ao menos aliviar seu sofrimento. Por quê? Porque
entendia esse sofrimento. Esta era outra mulher que se converteu em lobisomem, e tão diferente como
nossas circunstâncias eram, não queria que sofresse. O resultado seria certamente a morte. Esperava
que ocorresse rapidamente.

***

Pela meia-noite, Winsloe entrou em minha cela. Através das sombras de um pesadelo iminente,
ouvi a porta que a porta se abria, subconscientemente compreendi que o som provinha do mundo
verdadeiro, e me obriguei a despertar, agradecida pela diversão. Rodei da cama para ver o Tyrone
Winsloe parado na entrada da cela, rodeado pela luz do vestíbulo, apresentando-se, esperando meu
consentimento. Uma quebra de onda de desconcertante de temor me transpassou. Era como ter ao Bill
Gates na porta de minha casa - não importava quanto desejava não me sentir impressionada, não podia
evitá-lo.
—De modo que você é a lobisomem fêmea - deu um passo dentro, ladeado por dois guardas. —
Um prazer te conhecer - disse com uma vênia20 fingida. —Sou Ty Winsloe.
Apresentou-se a si mesmo, não com modéstia, como se eu não pudesse reconhecê-lo, a não ser
com uma presunção lisonjeadora, uma apresentação tão falsa como sua vênia. Dado que não respondi
rápido, um tremor de moléstia perturbou suas facções.
—O Fogo do Prometeo - disse, me dando o nome de sua companhia de fama mundial.
—Sim, sei.
Sua cara se reajustou em um sorriso satisfeito. Fazendo gestos aos guardas para que ficassem
quietos, entrou mais na cela. Seu olhar se passeou lentamente sobre mim, pelos arredores, dando a
minhas costas uma lenta olhada, me esquadrinhando sem vergonha, como se eu fosse um potencial
escravo em um mercado romano. Quando deu a volta até ficar em frente de mim, seu olhar fez uma
pausa sobre meu peito, seus lábios curvando-se para baixo em um cenho franzido e decepcionado.
—Nada mal – disse. — Nada que um par de implante não podem arrumar.
Entrecerrei meus olhos. Ele pareceu não notá-lo.
—Alguma vez o pensou? - perguntou seu olhar fixo sobre meu peito.
—Não planejo ter meninos, mas, se alguma vez o fizer, estou segura que eles encontrarão este
equipamento completamente adequado.
Ele jogou sua cabeça atrás e riu como se esta fosse a coisa mais graciosa que tinha ouvido nunca.
Logo se inclinou para trás de mim e posou seu olhar sobre meu traseiro outra vez.
—Grande traseiro, entretanto.
Sentei-me. Ele só sorriu e continuou estudando minha metade inferior. Logo tirou um vulto de
roupa de cima da mesa.
—Pode deixar os jeans em cima - disse. —Traga uma saia, mas eu gosto dos jeans. Esse traseiro
foi feito para os jeans. Eu não gosto dos traseiros grandes e frouxos.
Gostava das mulheres com traseiros pequenos e tetas grandes? Parece que alguém tinha jogado
com muitas bonecas Barbie sendo um menino. Joguei uma olhada ao montão de roupa, mas não fiz

20
Inclinação que se faz com a cabeça em sinal de cortesia; mesura, reverência.
nenhum movimento para tomá-lo.
—As botas - disse. —Há uma bolsa ali. Tire o soutien.
Contemplei-o, incapaz de acreditar o que ouvia. Era uma brincadeira, verdade? Supunha-se que
os milionários eram excêntricos, de modo que esta devia ser a estranha idéia do Winsloe de uma
brincadeira pesada. Enquanto o olhava fixamente, seus lábios se apertaram, não em um sorriso, mas
sim de ressentimento.
—Toma a roupa, Elena - disse, toda a jovialidade fora de sua voz.
Atrás dele, os dois guardas avançaram, apertando suas armas como se quisessem me recordar
sua presença. Bem, talvez não fosse uma brincadeira. O que acontecia com a gente neste lugar? Em
poucas horas eu tinha visto uma mulher inteligente converter-se em um lobisomem e encontrava a um
milionário com a maturidade e modo de pensar de um moço adolescente. Comparado com este
rebanho, eu era completamente normal.
De todos os modos, recordei a mim mesma, Tyrone Winsloe era o responsável aqui, e era um
homem acostumado a obter o que queria quando o queria. Mas, se ele acreditava que eu ia pôr um top
para que ele pudesse olhar com lascívia meus peitos de qualidade inferior, pois uma moça tem que pôr
limites, verdade? Eu tinham tratado de fazê-lo com os guias de ruas, embora sabia como dirigi-los. Se
eles falavam assim, arreganhava-os. Se me tocavam, rompia seus dedos. Eles não o quereriam de
nenhuma outra forma. Tal como Logan sempre dizia, aos guias de ruas gosta que suas mulheres tenham
bolas. Ty Winsloe não era um guia de ruas, mas era um tipo com seus hormônios afligindo-o. O
suficientemente perto.
—Meus braços ainda estão queimados - respondi, me dando volta longe da roupa. —Se vêem
como merda.
—Não me importa.
—A mim sim.
Um comprido momento de silêncio.
—Pedi-te que pusesse o top, Elena - disse. Olhou-me, seus lábios curvados em um sorriso sem
senso de humor, expondo os dentes de uma maneira que qualquer lobo teria reconhecido.
Passeei meu olhar desde ele aos guardas, arrebatei o top do montão, desprezando o impulso de
devolver um grunhido de advertência ao Winsloe, e me conformando com a idéia de entrar no
banheiro.

***

Entrar no banheiro para trocar-me era uma perda de tempo, considerando a parede
transparente, mas ainda assim, poderia lhe voltar as costas enquanto me trocava de camisetas. O top
era adequado para uma moça pre-púbere, mas bem dito, para uma moça pré-púbere mas pequena.
Deixava ao ar meu tórax e marcava sulcos em meus ombros. Olhando para baixo, vi que não deixava
absolutamente nada à imaginação. Primeiro, era muito apertado. Segundo, era branco. Círculos escuros
pressionavam contra o tecido. Se pescava sequer a mais leve brisa, não seria só isso o que se
pressionaria contra o tecido. Uma onda de fúria humilhada me alagou. Depois de que tudo o que tinha
passado nas últimas doze horas, isto era o clímax. A palha proverbial. Eu não levaria isto, eu não...
Detive-me. Eu não faria o que? Recordei o olhar nos olhos do Winsloe quando eu tinha desafiado sua
ordem de me mudar. Recordei os comentários de Armem Haig sobre o estado mental do Winsloe. O
que faria Winsloe se eu me negasse? Queria realmente tomar esse risco sobre um pouco tão corriqueiro
como não desejar levar colocada uma camiseta que revelava tudo? Esfreguei minhas mãos sobre minha
cara, resisti ao impulso de cruzar de braços sobre meu peito, e parti de volta à cela.
Winsloe estudou meu peito durante dois minutos inteiros. Sei porque contei os segundos,
lutando para não passar esse mesmo tempo fantasiando sobre uma vingança. Isto não era nada, disse-
me. Nada. Mas o era. De algum jeito, ser obrigada a alardear minhas tetas diante deste homem era pior
que qualquer tortura que Matasumi poderia ter idealizado com sua caixa de brinquedos. Compreendi
então que esta farsa juvenil não tinha nada que ver me fazendo pôr uma determinada camiseta. Era
sobre o poder. Winsloe podia me fazer pôr esta camiseta e não havia uma maldita coisa que eu pudesse
fazer sobre isso. Ele queria assegurar-se de que eu sabia.
—Ao menos são firmes - disse Winsloe. —Não estão mau, realmente, se você gostar de
pequenos. Acredito que os implantes fariam um bom contribuição, entretanto.
Mordi meu lábio. Mordi-o com força suficiente para provar o sangue e desejar o seu.
—Um tom assombroso - disse ele, me rodeando. —Magra e apertada, mas nada de vultos. Estava
preocupado sobre os vultos. Os músculos em uma moça são absolutamente arrepiantes.
—Oh, tenho músculos - disse. —Quer vê-los?
Ele só riu - Esse buraco na parede me diz tudo o que tenho que saber. Além disso, vi o vídeo de
você e Lake, embora suponha que não foi tanto força como astúcia. Engenho rápido. Muito rápido.
—Como está a Sra. Bauer? - Perguntei, esperando mudar o tema.
—Sabe sobre isso? - Ele moveu uma cadeira para minha mesa de comilão e se senti ali. —
Suponho que o faz. Estranho, né? Ninguém o viu vir. Sondra sempre foi tão apurada. Nervosa, inclusive.
Suponho que é dessas pessoas rígidas que exploram de pior maneira, né? A respeito desse vídeo…
—Como está ela? - Repeti. —Qual é o prognóstico?
—De merda, segundo o último que ouvi. Provavelmente não passará a noite. Agora, falando
desse vídeo, tenho algumas notícias que você gostará de ouvir - sorriu, a morte iminente de sua sócia
já esquecida. —Quer adivinhar qual é?
—Eu não poderia nem sequer começar a imaginar.
—Esta noite envio a seu companheiro a sua recompensa final. O grande osso de cachorro no céu
- ou na outra direção. Vamos ter uma caça.
—Uma... caça?
Ele saltou da mesa. —Uma caça. Uma grande caça de lobinho. Esta noite. Larry pagou por seu
“guia de ruas” e vamos lhe dar uma apropriada despedida - Winsloe estalou seus dedos por volta dos
dois guardas, de cuja presença nesta derrota eu tinha estado tentando com força não fazer caso. —
Vamos, vamos, moços. Subam e digam a seus companheiros que se prepararem para a convidada de
honra. Encontraremo-los em vigilância.
Eu tinha passado a maior parte da meia hora passada bocejando para o Winsloe. Agora minha
incredulidade se mesclou com algo mais. Um horror crescente. Quis dizer o que acreditei que queria
dizer? Ia caçar ao Patrick Lake? Liberá-lo e persegui-lo como um prêmio em uma reserva de caça? Não,
devo estar confundida. Tinha que estar confundida.
—Bem? - disse ele, dando-se a volta. —Toma essa jaqueta da mesa. Faz frio aí. Não quereria que
pegasse uma pneumonia.
—Vou fora? - Respondi lentamente.
Winsloe riu. —É seguro como o inferno que não poderíamos caçá-lo aqui.
Jogou sua cabeça para trás, ladrando de risada, me dando palmadas nas costas, e dançando uma
valsa pela cela.

JOGO
A noite era fria para finais do verão. Era ainda agosto, verdade? Calculei. Sim, ainda era agosto.
Só parecia que tinha estado dentro mais tempo.
Se eu tinha esperado recolher alguma pista de nossa posição por ir fora, fiquei decepcionada.
Tomamos um elevador dois pisos para cima, até o nível da terra, saímos por uma porta assegurada, e
aparecemos a uma dúzia de pés de um bosque que poderia ter existido em todas as partes desde Cabo
Bretão até a parte norte de Califórnia. Talvez se eu conhecesse minha fauna regional melhor, poderia
ter diminuído as possibilidades, mas examinar árvores estava bastante longe de minha mente.
Minhas mãos estavam algemadas. Winsloe caminhava diante de mim. Os dois guardas, suas
armas agora escondidas, seguiam-nos detrás. Um caminho se via através do espesso bosque até um
claro onde um posto de vigilância se elevava a cem pés no ar. Patrick Lake estava de pé junto a um pilar
de madeira, com os pés estampados contra o frio, ambas as mãos cavadas ao redor de um cigarro
aceso.
—Hey- disse quando nos aproximamos. —O que está passando? Está de ferrar o frio aqui fora.
—Termina seu charuto - disse Winsloe. —Estará quente bastante logo.
—Perguntei…
Um dos guardas do Lake o cravou com um extremo de seu rifle.
Lake grunhiu, levantou uma mão para esmagar ao guarda, logo se deteve. —Eu só perguntava…
—É uma surpresa - disse Winsloe, agarrando o corrimão da escala. —Termina seu charuto.
—O que faz ela aqui? - Lake agitou seu cigarro para mim.
Winsloe estava cinco degraus acima. Inclinou-se sobre o corrimão.
—É uma surpresa - repetiu. —Começaremos logo que esteja preparado.
Lake lançou seu cigarro a terra e o pisou com força - Estou preparado agora.
—Então começaremos.
—Ponto dois de liberação? - perguntou um guarda.
—Tal como está planejado - disse Winsloe. —Tudo como está planejado.
Winsloe seguiu sua ascensão. Segui-o, com nossos dois guardas detrás. Quando alcançamos a
cúpula, Winsloe soprava. Contemplei o bosque para baixo. Lake e seus dois guardas tinham
desaparecido na escuridão.
—Aí - Winsloe ofegou, agitando a mão para ao leste. —Ponto dois de liberação. Ponto de
liberação um, justo abaixo. Ponto de liberação três pelo rio.
Não só havia um ponto de liberação pré designado, mas também havia mais de um. Por quê?
Abri minha boca para perguntar, logo compreendi que poderia não querer sabê-lo.
—A escolha do ponto de liberação depende da espécie - continuou Winsloe. —Até agora soltei
a uma bruxa e a um meio demônio.
—Você... caçou-os?
Ele fez uma careta. —Não foi exatamente uma caça. Sobretudo com a bruxa. A gente pensaria
que ela teria sido mais desafio, enfeitiçando e tudo isso. Nos RPG10, as raças mágicas podem ser os
jogadores mais fortes uma vez que ganham bastante experiência. Mas na vida real? Ela se desfez. Não
podia tomá-lo. Lançou uns pequenos feitiços ao princípio e o deixou. Encontramo-la enroscada sob um
arbusto. Nada de instinto de sobrevivência. Como essa velha senhora que recolheram contigo. Primeiro
sinal de problemas e se afundou na depressão. Não pôde aguentar a pressão.
Observei o terreno abaixo. Perguntei-me se seria o bastante alto para matar ao Winsloe se desse
um tropeção e caísse.
—O meio demônio foi apenas uma melhora menor. Ao menos o tentou. Logo esteve o xamã.
Não o cacei, entretanto. Foi uma fuga. Solucionamos o problema bastante logo, de modo que é melhor
que isso não te dê idéias. Não chegou longe de todos os modos. Os cães se ocuparam dele. Por isso
ouvi, ele era ainda pior que a bruxa. Correu a todo pulmão até que sofreu um colapso.
—Assim agora. - limpei minha garganta, me forçando à tranquilidade. —De modo que agora vai
caçar ao Lake.
—Um lobisomem - Winsloe baixou seus gêmeos para me sorrir abertamente—. Esplêndido, né?
O caçador se converte na presa. Isto vale a pena, o desafio. Tudo o que a merda do “Jogo Mais Perigoso”
promete, é fantasia. Ponha um tipo moderno em meio dos bosques e se aterra. Tirem-lhe seus
instrumentos e suas armas e poderia ir também à caça de cervos. Ao menos os cervos têm um pouco
de experiência evitando caçadores. Os humanos, nada. Mas os lobos? Eles são os caçadores. Têm seus
próprios instrumentos, suas próprias armas. Conhecem o bosque. Combina isso com a inteligência
humana e bingo: tem o jogo mais perfeito - sustentou os gêmeos. —Quer jogar uma olhada?
Sacudi minha cabeça.
—Vamos. Têm visão noturna. Não é que você a necessite, suponho. Ouvi dizer que vocês podem
ver na escuridão. Por isso faço isto de noite. Mais desafio. É obvio, tenho todo o último em brinquedos,
como este. Não quereria que fora muito desafio.
Levantei os gêmeos a meus olhos. Olhei, e tudo o que vi foi bosque. Bosque interminável. Logo,
um brilho de luz laranja.
—Chama-a - disse Winsloe, voz que elevando-se devido ao entusiasmo. —Atordoaram ao Lake.
Agora sairão. Em dez, talvez quinze minutos ele despertará absolutamente só nos bosques. Se tiver
meio cérebro, compreenderá que isto é uma brincadeira, mas correrá de todos os modos. Minha
conjetura é que cheirará o rio e se dirigirá ao oeste. Melhor que tome cuidado, entretanto. Se tomar a
rota fácil, encontrar-se-á na cova de um urso - Winsloe riu, um som inarmônico. Armadilhas por toda
parte. Aqui, aqui e lá.
Dava-me a volta para vê-lo assinalar lugares em um mapa laminado. Quando me aproximei, ele
o tirou de minha vista e meneou um dedo para mim.
—Uh-uh. Não pode deixar que aprenda todos meus segredos. Você gosta desses binoculares?
—Estes... funcionam bem.
—É obvio que o fazem. Não os compraria de outra maneira. Espera até que veja o resto de meus
aparelhos. E as armas - pôs os olhos em branco, em algo próximo à luxúria. —As armas. Incrível o que
podem fazer nestes dias. Faço pôr armários delas por toda parte do campo de treinamento, de modo
que tenho uma variedade. A única coisa que falta é uma broca. Dá-me raiva. Sempre as brocas foram
minhas armas favoritas.
—Caça com uma broca?
—Não aqui fora. Nos jogos, é obvio. As brocas são absolutamente as melhores. O fator de
trituração pode exceder às granadas.
—Jogos - repeti. —Quer dizer jogos de videogame.
—Que outra classe?
Olhei para o bosque mais à frente. Campo de treinamento, tinha-o chamado. Um campo de
treinamento gigantesco, desenhado com aparelhos de alta tecnologia, armadilhas explosivas, e um
arsenal de armas.
—Isso é o que é - respondi devagar. —Um jogo de videogame. Um jogo de videogame real.
—A um passo da realidade virtual. Realidade real. Que conceito - sorriu abertamente e me deu
umas palmadas nas costas outra vez. —Nos movamos. O jogo é a pé.

***

Encontramos aos dois guardas do Lake antes que alcançássemos o caminho principal. Eles
confirmaram que a liberação tinha ido correta e então tomaram posições diante do Winsloe, armas
fora, rodeando-o para protegê-lo. Caminhei detrás do Winsloe. Os outros dois guardas nos seguiram,
lado a lado, a minhas costas. Todos exceto eu levavam postos óculos de visão noturna. Inclusive eu
poderia ter usado um par. A escuridão era quase completa, uma meia lua débil que se elevava entre
nuvens e taças de árvores, nenhuma estrela à vista. Minha visão aumentava e diminuía como a lua. Não
era que houvesse muito que ver. Somente árvores, árvores, e mais árvores.
Apesar da bola de temor alojada em minha tripa, meu coração começou a aliviar-se na antecipação
enquanto entrávamos nos bosques. Inclusive enquanto meu cérebro sabia o que eu fazia aqui, meu
corpo rechaçava acreditá-lo. Estava nos estímulos - o rangente ar da noite, o aroma de folhas podres e
terra úmida, os sons de esquilos e ratos brincando de correr a nosso passo - e se formava sua própria
interpretação, apoiada em anos de experiência. Ia caminhando pelo bosque na noite, ergo devia ir a
uma corrida. Ignorando todas as ordens ao contrário, meu corpo reagiu como um cachorrinho excitado
atirando de sua corda. Minha pele formigava. Meu sangue galopava. Minha respiração se acelerou.
Além disso, meus sentidos se afiaram, me deixando ouvir e cheirar duas vezes mais. Por outra parte,
estava a preocupação constante sobre meu corpo retorcendo-se e o crescimento de cabelo
antiestético.
Antes de sufocar a reação de meu corpo, usei minha consciência aumentada para conseguir uma
melhor perspectiva de meus arredores. Apesar do aumento visual, não serve de muito. Não importava
quão bem pudesse ver, não tinha visão de raios X, por isso não podia ver através das malditas árvores.
Meus outros sentidos eram muito mais proveitosos. Uns minutos de escutar me convenceram não
havia nada que ouvir. Bem, havia abundância de ramos que rangiam, as urzes sussurrando, predadores
e presas ululando, chiados, e mergulhadas- mas não era o que desejava. Esperava algum som distante
de civilização, e o único que descobri eram os bufos e fôlegos da maquinaria que havia no recinto onde
nos encontrávamos. Movi-me para cheirar, meu melhor sentido. Novamente, procurei vida humana e
encontrei só o aroma pestilento do edifício principal e o caminho de cascalho que conduzia a ele. O
aroma do caminho era débil, indicando que ia pelo sul do recinto. Infelizmente, o bosque ia ao norte, a
que seria a direção em que teria que correr se me escapasse do recinto. Claro que poderia haver uma
saída fácil no sul, mas era mais seguro apegar-se ao que já conhecia, e agora mesmo, tudo o que tinha
visto era este bosque.
Mais à frente do recinto, o páramo emitia só seus próprios aromas. A natureza reinava ali. Nem
sequer o mais mínimo rastro de aroma humano, como se a natureza o limpasse ferozmente uma vez
que quão humanos por ali passavam se foram. Novamente, meu cérebro e corpo competiram pela
interpretação do lugar e situação. Meu corpo acreditava que isto era o céu, um paraíso natural tão
antigo como o era Stonehaven e inclusive melhor, um paraíso fresco e novo para explorar. Meu cérebro
decidiu que isto era o inferno, um bosque interminável sem civilização à vista. Se escapasse, teria que
ir a algum lugar. A algum lugar parecido a uma casa, uma cidade, um lugar público onde meus
perseguidores pudessem temer o me seguir.
Escapar agora era inadmissível. Inclusive se pudesse passar por diante dos guardas armados, só
me teria convertido em uma atração acrescentada na caça do Ty Winsloe. Teria que esperar, mas ainda
esperava me evadir do recinto em algum momento, preferentemente antes que meus captores se
aborrecessem comigo tal como o tinham feito com o Patrick Lake. Se eu… não, quando escapasse,
aonde iria? Não havia nada aqui fora, além de bosque. Bosques intermináveis. Poderia correr e correr
durante horas e… espera um segundo. Que demônios estava dizendo? Eu era um lobo. Um meio lobo,
ao menos. Caramba, o que faria um lobo no páramo? Ora. Sobreviver, é obvio. Ali poderia evitar a meus
perseguidores muito melhor que em qualquer selva de concreto. Este era meu elemento. Inclusive
agora, em forma humana, estava em casa aqui, capaz de ver quase na completa escuridão, capaz de
cheirar a água e o alimento, capaz de ouvir o descida em picada de um tranquilo mocho de acima. Não
necessitava a rede de amparo da civilização. Bem, eventualmente, teria que encontrar um caminho de
volta aos outros, mas poderia durar muito mais tempo que qualquer humano que tentasse de me
capturar com óculos de visão noturna, telescópios de alta potencializa, e toda classe de brinquedos.
Teria que tomar cuidado, mas o único perigo que confrontaria viria de meus perseguidores. Certamente
não tinha que me preocupar de morrer de fome, desidratação, ou exposição.
—Onde está sua roupa? - bufou Winsloe.
Patinei antes de me estampar nas costas do Winsloe. Emergindo de meu sonho, pisquei e olhei
ao redor. Estávamos de pé ao lado de uma árvore embelezada com pedaços de plástico laranja
fluorescente.
—Este é o ponto de liberação dois - disse Winsloe.
—Sim, senhor - disse um dos guardas dianteiros, tirado um mapa de seu bolso e estendendo-o.
Winsloe golpeou o mapa em terra. —Eu não estava perguntando. Eu estava dizendo-o. Sei que
este é o ponto de liberação dois. Quero saber se vocês, sou idiotas, sabem. É aqui onde liberaram o
Lake?
A mandíbula do guarda se apertou, mas sua voz permaneceu respeitosa — É obvio, senhor.
Winsloe se girou para mim — Tem que despir-se para transformar-se em lobo, verdade? Deve fazê-
lo ou rasgariam sua roupa, certo?
Assenti com a cabeça.
—De um modo ou outro, deveria haver roupa aqui. Onde está?
Fiz o movimento para olhar ao redor, embora eu podia dizer com uma simples inspiração que Lake
não tinha deixado nada —Se não estarem aqui, então ele não trocou de forma.
Winsloe girou por volta de um dos guardas de atam — Pendecki. Revisa os pontos de controle.
O guarda as minhas costas tinha posto um cinturão coberto de aparelhos, com arames que o
conectavam a uma bateria. Tranquilamente tirou um aparelho e estalou um interruptor. O dispositivo
faiscou, houve uma piscada de luzes vermelhas, como um desses jogos de videogame portáteis.
—O objetivo aconteceu os pontos de controle cinco e doze, senhor.
—Temos o objetivo às cinco - disse Winsloe.
—Sim, senhor. O ponto de controle cinco tem uma câmara com censor de movimento e…
—Não estou perguntando! Digo-o! - disse Winsloe. —Me Mostre a maldita fita!
Ainda tranquilo, Pendecki tirou outro aparelho, desatou o arame de conexão, e o ofereceu ao
Winsloe, que o arrebatou com uma maldição. A expressão do Pendecki não trocou. Estava acostumado
a tratar com o Winsloe ou tinha trabalhado com homens como ele antes. Os outros três guardas não
estavam tão tranquilos sob pressão. Um dos guardas de adiante tinha começado a suar. O outro
golpeava os dedos do pé contra a terra como se tentasse manter-se quente. O companheiro do
Pendecki estava de pé, imóvel, tenso pelo problema.
Winsloe sustentava uma pequena tela em branco e negro. Pela extremidade do olho, observei
enquanto ele esmurrava os diminutos botões. Uma fita se rebobinou e passeou de novo, mostrando
uns poucos segundos de vídeo infravermelho. Um braço e uma perna apareceram na tela, logo
desapareceram. Winsloe golpeou os botões e o olhou outra vez.
—Ele não é um lobo - disse, levantando a cabeça. —Pode alguém me dizer por que não é um
lobo?
É obvio, ninguém podia. Exceto eu. Esperei até que todos os olhos se giraram em minha direção,
logo respondi — Muitos dos lobisomens que não pertencem à Manada não pode mudar a vontade -
Incluso enquanto as palavras saíam de minha boca as lamentei. Conduziam a outra pergunta
dolorosamente óbvia.
—Que não pertencem à Manada - disse Winsloe. —Então Lake não pode mudar de forma
quando quer. Mas você pode.
—Isso depende de…
—É obvio que pode - disse Winsloe. —Vi a fita.
Compreendi então por que estava aqui eu. Tinha assumido que Winsloe me tinha convidado
para me impressionar com seu jogo, gabar-se de um caçador a outro. Talvez isso era parte disso. Mas
havia uma razão mais profunda pela que me tinha contado a respeito de seus aparelhos, armadilhas e
armas, mas não me tinha deixado me aproximar de seu mapa. Estava-me advertindo. Se eu me levava
mal, se o desgostasse, este seria meu destino. Matasumi poderia não ser capaz comigo, mas Winsloe
se ocuparia. Era jovem, rico e poderoso. A satisfação retardada não estava em seu vocabulário. Agora
mesmo, ele desejava uma caça. Se Lake não podia proporcioná-la, eu poderia.
Senti meus lábios moverem-se, as palavras saindo. Tratei de me persuadir de que o que respondi
depois nascia de minha vontade de sobreviver. Mas não se sentia dessa forma. Parecia covardia. Não,
pior ainda que covardia. Parecia uma traição.
—Ele mudará se ficar assustado.
Winsloe sorriu, mostrando todos os dentes — Então vão assustá-lo.
FRACASSO
—Ponto de controle oito faz quatro minutos - disse Pendecki.
Winsloe jogou uma olhada por sobre seu ombro para mim, o entusiasmo infantil voltava para
seus olhos —Assim já sabe, não uso o rastreamento dos pontos de controle quando caço. Não é muito
esportivo, camarada. O sistema de câmara nem sequer foi minha idéia. Tucker insistiu nisso. Conhece
o Tucker? O guarda principal?
Assenti com a cabeça, meus dentes tocavam castanholas. Disse-me que não fazia frio, mas não
podia deixar de tremer.
—Militares da velha escola. Tão rígidos que nem sequer se pode contar com cães. Depois de que
o xamã fugiu, ele supôs que necessitávamos estas câmaras no caminho. Mais tarde, quando apanhamos
ao Lake, decidi que as câmaras poderiam ser práticas em minhas caças. Como respondi, não as usamos
para rastrear, a não ser para me assegurar que ele se mantém dentro do perímetro do campo de
treinamento. Temos milhas para correr antes de alcançar o limite da propriedade, mas imagino que os
lobisomens são monstros que poderiam ser capazes de correr bastante longe.
—E se realmente consegue chegar tão longe? Deixar-lhe-á ir?
—Oh, seguro. Cem metros mais à frente do perímetro é liberdade. Essa é minha regra. É obvio
com estas câmaras, asseguramo-nos mais ou menos que nunca chegará tão longe.
—Ponto de controle doze, senhor. Lamento interromper, e estamos bastante perto para que não
haja nenhuma tardança no sinal.
—Ele só o passou?
—Afirmativo.
Winsloe sorriu abertamente. —Aperta o passo, então.
Como grupo, trotamos com o passar do caminho.
—Ponto de controle doze outra vez, senhor.
—Rodeando - festejou Winsloe. —Perfeito. Bom cachorro. Espera aí mesmo.
—Subimos a doze…
Winsloe levantou sua mão para que nos detivéssemos. Sua cabeça se balançava na escuridão.
Então assinalou ao nordeste, onde eu podia cheirar ao Lake a aproximadamente setenta pés de
distância. O mato chispou. O sorriso do Winsloe se alargou. Colocou a mão em sua jaqueta. Com sua
outra mão, fez uma complexa série de movimentos. Os guardas assentiram com a cabeça. Os dois de
adiante levantaram seus rifles. Os dois de atrás silenciosamente estiveram puseram os seus sobre a
terra e tiraram suas pistolas de debaixo de seus casacos. Winsloe tirou uma granada de sua jaqueta.
Deu-se volta para mim com um sorriso e uma piscada, como se não tivesse estado contemplando minha
morte só minutos antes.
Winsloe tirou o pino da granada e a lançou pelo ar. No momento em que a liberou, os guardas
da retaguarda correram, em sentidos contrários, ao redor do caminho da granada. Os guardas
dianteiros apontaram seus rifles mais longe. Quando a granada detonou, os guardas fizeram fogo. O
bosque explorou com a capacidade armamentícia.
—Corre, filho de puta, corre - riu Winsloe. Sorriu-me abertamente. —Acredita que isso o
assustará?
—Se não o matou...
Winsloe rechaçou meu pessimismo, logo fez uma pausa e sorriu abertamente — Ouve isso? Está-
se movendo. Silêncio, moços. Temos um corredor.
***
O caos seguiu a isto. Ao menos para mim isto era o caos. Seis humanos correndo meios cegos
através do espesso bosque depois de um lobisomem aterrorizado não era minha idéia de uma busca
elegante. Quanto mais corríamos, mais ruído levantávamos, mais assustávamos ao Lake, e mais corria
ele. Um círculo vicioso que se terminou só quando Winsloe se deteve, ofegando e apoiando-se contra
uma árvore.
—Tenho que lhe dar uma possibilidade para mudar de forma - respirou com dificuldade Winsloe.
—Boa idéia, senhor - disse Pendecki, a escuridão escondendo o brilho sarcástico em seus olhos
de todos exceto de mim.
Winsloe se dobrou pela cintura, ofegando. —Está o ar mais espesso aqui?
—Poderia ser, senhor.
Tínhamos subido uma colina? Hmmm, não posso dizer que o notei.
—Deste modo, ele mudaria de forma agora? - perguntou-me Winsloe.
—Deveria - respondi.
Se não estiver totalmente esgotado, pensei. Com sorte, depois da corrida inicial e esta perseguição,
Lake estaria muito esgotado para mudar. Por que esperava isto? Porque não queria que Winsloe
conseguisse sua caça. Queria que este jogo fora tão decepcionante como outros. Se Lake não dava ao
Winsloe a elevação de adrenalina que desejava, Winsloe abandonaria aos lobisomens como sua
teoricamente “última” presa e procuraria em outra parte, tal como o tinha tido que fazer depois de
caçar uma bruxa e um meio demônio. Se Lake enchesse as expectativas do Winsloe, ele registraria logo
as outras celas em busca de outra vítima e, sendo como era a única lobisomem restante, não era difícil
adivinhar em que lugar recairia sua atenção. Gostaria de me comer em um bolo e realizaria de um
puxão todas suas fantasias, embora eu suspeitava que Ty Winsloe punha mas variedade em suas
conquistas de caça que em sua vida sexual.
Um gemido atravessou as árvores. Winsloe deixou de ofegar e levantou a cabeça. Outro gemido,
profundo, dolorido. Os cabelos de meus braços se elevaram.
—Vento? - articulou Winsloe.
Pendecki sacudiu sua cabeça.
Winsloe sorriu abertamente e nos fez gestos para o ruído. Arrastamo-nos pelo bosque até que
um dos guardas de adiante levantou sua mão e assinalou. Através dos matagais, algo pálido piscava.
Inalei, logo afoguei um grito afogado. O aroma pestilento do medo e o pânico alagaram o claro, um
aroma tão forte que me perguntei se Lake tinha perdido o controle de suas vísceras.
Winsloe ficou de coque e avançou pouco a pouco.
—Não - vaiei, agarrando as costas da jaqueta do Winsloe. —Ele está mudando.
Winsloe só sorriu abertamente. —Sei.
—Não quer ver isto.
O sorriso se alargou. —Sim, quero.
Um dos guardas anônimos enterrou seu rifle em meu braço, golpeando minha mão colocada na
jaqueta do Winsloe. Dava-me volta para fulminá-lo com o olhar, mas ele já me tinha adiantado,
alcançando ao Winsloe. Pus-me de coque e esperei que detivesse o Winsloe. Em vez disso, o guarda
deu voltas ao redor dele e tirou um feixe de vegetação que ocultava ao Lake.
—Jesus Cristo! —gritou o guarda, saltando sobre seus pés. —Que merda...!
De uma vez que saltava, tinha tirado a samambaia de raiz, expondo o claro. Uma mancha
imprecisa de carne pálida cintilou de dentro, logo um chiado que fez meus dentes tocar castanholas.
Lake rodava sobre a terra, pernas em alto, protegendo seu sob ventre. Durante um momento, ele se
moveu muito rápido como para que alguém visse mais que a pele. Então ficou imóvel e todos viram
mais. Muito mais.
Um focinho sem cabelos nem lábios sobressaía do meio da cara do Lake, seu nariz ainda humano
grotescamente pego em cima, as fossas nasais flamejavam amplas. Seus olhos estavam aos lados de
sua cabeça no lugar em que seus ouvidos humanos deveriam ter estado. Seus ouvidos tinham crescido,
parecendo-se com os de um morcego, parados a metade de caminho na parte superior de seu crânio.
Uma débil pele aplaudia os dedos de suas mãos e seus pés. Um nu pedaço de cauda se movia entre
suas pernas. A fatia que eu tinha talhado de sua perna se via brilhante e rosada onde sua pele se estirou
até o limite de rasgar as crostas. Suas costas estavam encurvadas e enroscadas, seu pescoço fundo e
sua cabeça inclinada para seu peito.
—Que merda lhe passou? - gritou o guarda, ainda retrocedendo, sua mão indo a sua arma.
A fúria me encheu. Isto não era algo que ninguém deveria ver a parte mais privada da vida de
um lobisomem. Este era um lobisomem em seu momento mais vulnerável, nu e horrível, um verdadeiro
monstro, mas nu inclusive dos meios mais básicos de autodefesa. Guia de ruas ou não, naquele
momento, Lake era mais próximo a mim que estes humanos malfadados e pestilentos.
—Está mudando - grunhi. —Que demônios pensou que parecia?
—Não isto - disse Winsloe, olhando fixamente como um menino ante um espetáculo de
monstros de carnaval. —Merda Santa. Pode acreditar isto? É o mais asqueroso…
O focinho sem lábios do Lake se torceu em um bramido de dor. O guarda apontou seu rifle para
o claro e cravou ao Lake.
—Detenham isto! - Gritei, me voltando para o guarda. —Atrás e deixem-no terminar.
Lake se retorceu sobre suas costas, suas mãos cruzadas protegendo seus órgãos vitais. O guarda
empurrou sua arma para diante outra vez. Pendecki se equilibrou sobre ele e agarrou a arma.
—Ela tem razão - disse Pendecki. —Se quiser sua caça, senhor, eu sugeriria que fizéssemos o que
ela diz. Voltemos e deixemo-lo terminar... independente do que faça.
Winsloe suspirou —Suponho isso. Mas algum dia tenho que ver isso.
—Espere uns dias - disse. —Pode olhar a Sondra Bauer passar por isso.
—Se viver - Ele suspirou, não pela perspectiva da morte de seu colega, mas sim porque a idéia
de sua morte iminente arruinava sua possibilidade de ver uma mudança de lobisomem. — De acordo.
Deixemos de incomodar ao bruto, Bryce. Meia volta, moços. Retrocedamos.
Pendecki e os outros dois guardas voltaram para claro. Bryce não fez caso da ordem, mas Winsloe
não o notou, sua atenção absorvida no espetáculo ante nós. Enquanto Lake se mantinha imóvel curvado
em posição fetal, sua carne começou a retorcer-se, como se serpentes estivessem apanhadas sob sua
pele. O cabelo brotou, levantando-se em uma linha reta desde sua boneca até seu ombro.
—Jesus! - disse Winsloe.
O cabelo se retraiu e Lake convulsionou, gemendo.
—Retornem - vaiei. —Ele não pode…
Winsloe agitou uma mão pedindo silêncio e avançou pouco a pouco. A cabeça do Lake girou como
louca, tratando de olhar ao Winsloe desde ambos os olhos tão separados ao mesmo tempo. Suas costas
se arquearam e filas idênticas de músculos saltaram de seu pescoço, engrossando-o a duas vezes sua
largura. Os tendões pulsaram, cresceram, encolheram-se, cresceram, encolheram-se. A mudança se
deteve ali, só os músculos do pescoço movendo-se desde humano a lobo e de volta outra vez.
—O que vai mau? - perguntou Winsloe, não tirando o olho de Lake.
Lake estava pego entre formas. Não disse isto ao Winsloe. Não me atrevi a abrir minha boca por
medo de que, se me movesse no mais mínimo, teria que agarrar ao Winsloe pelos ombros e jogá-lo nos
arbustos, o qual ganharia uma bala dos guardas. Quando olhei ao Lake, rezei para que o afeto se
terminasse. Que lhe permitisse voltar-se lobo ou humano. Algo. Algo. Ele era um maldito, mas morrer
assim? Minhas tripas estavam congeladas de só pensá-lo. O pesadelo subconsciente de cada lobisomem
devia ser ficar pego entre formas, apanhado nesse corpo monstruoso, disforme, incapaz de mudar para
uma ou outra forma. O horror mais espantoso.
Lake rodou de um lado a outro, ofegando e suando e fazendo sons de dor horrorosos. Seus
músculos se sacudiam e faziam espasmos ao azar. Só seu pescoço trocava de formas, os tendões
crescendo e encolhendo-se. Teve uma enorme convulsão, e caiu sobre seu flanco. Olhando-me
diretamente. Dava a volta.
—Dê-lhe um tiro - disse tranquilamente.
—Que merda? - Winsloe subiu para me fulminar com o olhar. —Quem dá as ordens aqui? Você
não me diz o que devo fazer. Nunca.
—Ele está apanhado - respondi. —Não pode terminar e não pode voltar atrás.
—Esperaremos.
—Isso não vai a…
—Respondeu, esperaremos.
—Então retrocedamos - Me obriguei a acrescentar, — Por favor. Dê-lhe um pouco de privacidade.
Winsloe grunhiu e me lançou outro olhar letal, mas gesticulou para outros para que
retrocedessem, embora os outros três guardas já estavam a dez metros da espessura. Bryce não pôde
resistir um último golpezinho. Quando ele empurrou seu rifle para frente, as mãos do Lake voaram a
seus flancos.
—Olhe...! - Comecei.
Com um chiado desumano, Lake se levantou sobre seus braços e se jogou em si mesmo contra
Bryce. O guarda disparou. Lake chiou e caiu para trás, golpeou a terra, e passou roçando o mato,
deixando um rastro de sangue em seu caminho como uma lesma.
—Que demônios faz? - bramou Winsloe. Disparou-lhe!
—Ele atacou...
—Retorna! - gritou Winsloe, cuspindo saliva. —Todos vocês. Retornem. Agora!
O mato rangeu. Todos saltaram. Bryce e outro guarda levantaram suas armas.
—Armas abaixo! - disse Winsloe. —Deixem as malditas armas!
Congelamo-nos e escutamos o silêncio. O aroma do Lake estava em todas as partes. Girei minha
cabeça, me sentindo em casa ao cheirá-lo.
—Bem - disse Winsloe, inalando profundamente. —Bem, foi uma maldita coisa. Agora, isto é o
que vamos fazer, e se ouvir um maldito disparo mais, melhor para mim. É…
Os arbustos exploraram. Bryce levantou seu rifle.
—Não se atreva a fazê-lo! - gritou Winsloe.
O corpo disforme do Lake voou pelo ar. Dois tiros soaram. Caí-me. A terra se estremeceu uma
vez, logo duas vezes mais. Um gemido. Um gemido muito humano. Levantei minha cabeça para ver o
Bryce a meu lado no mato, sua cabeça de flanco, seus olhos fixos em meus. Sua boca se abriu. A espuma
sangrenta borbulhou. Tossiu uma vez. Então ficou quieto. Tirei meu olhar de seus olhos mortos e olhei
ao redor. Lake estava a meu outro lado, tinha um buraco sangrento em sua frente.
Lutei para me pôr de pé, tratando de entender como Lake poderia ter matado ao Bryce tão
rapidamente. Quando estive de pé, vi o buraco de bala no peito do Bryce. Atrás dele, Winsloe arrojou
sua pistola ao chão.
—Pode acreditá-lo? - gritou. —Pode acreditá-lo? Ordenei que não disparasse. Uma ordem
direta. Ele matou a meu lobisomem. Deu um tiro em meu lobisomem.
Só Pendecki se moveu, mas seus membros não coordenavam. Caiu torpemente, ajoelhou-se ao
lado do cadáver do Bryce, seus dedos tremiam quando sentiu seu pulso.
—Maldito estúpido! - gritou Winsloe ao céu. Apertou seus punhos a seus flancos, sua cara
purpúrea de raiva. Avançou e lhe deu uma patada ao corpo do Bryce. —Ordenei que não disparasse.
Ouviu alguém que eu ordenava que não fizessem fogo?
—S-im, senhor - disse Pendecki.
Winsloe girou para mim. Meu coração se deteve.
—Levem-se a daqui - disse. —Leva-a de volta a sua jaula de merda. Vão. Todos vocês. Saiam de
minha maldita vista antes que eu… - avançou a pernadas ao lugar onde estava sua pistola no mato.
Estávamos fora de sua vista antes que desse a volta.

ENFERMEIRA
Eu era a seguinte.
Quando os guardas me devolveram a minha cela, sentei-me no bordo da cama e não me movi
durante três horas. A caça do Winsloe tinha sido um desastre maior o que eu poderia ter sonhado. Era
o que eu tinha querido, verdade? No bosque me tinha parecido tudo tão claro. Se a caça falhasse, eu
estaria segura. Mas não estava segura. Era a seguinte.
Tinha raciocinado que se Winsloe não conseguisse o que queria do Lake, deixá-lo-ia. Tinha-me
equivocado. Esta noite não tinha sido uma desilusão menor para o Winsloe. Tinha sido um fracasso.
Um abjeto fracasso. Como reagiria ele a isto? Zangando-se, pisando em forte, assassinando um guarda,
e avançar a uma nova fonte de diversão? Seguro. Esse era justo o tipo de reação ao fracasso que teria
ajudado ao Winsloe a construir uma das corporações maiores no setor informático. Não, este “reverso”
não deteria o Winsloe. Para a gente como Tyrone Winsloe o fracasso não era um obstáculo a ser
vencido, mas sim era algo que destruir e fazer voar na estratosfera, destruir tão a fundo que não
deixasse nem sequer uma marca em seu orgulho. Tendo falhado -e falhado ante um público de seres
inferiores- ele retrocederia, analisaria a situação, a fonte de seu fracasso, arrumá-lo-ia, e começaria
desde o começo. Quando tivesse determinado o que tinha saído mal e se assegurou que não passasse
outra vez, viria por mim. Não podia esperar a ser resgatada. Tinha que atuar.
Agora, isto tinha perfeito sentido, isto de entrar em ação. Mas tinha perdido os últimos três dias
vadiando em minha cela ignorando absolutamente boas saídas de fuga. Se soubesse como sair, o teria
feito. Meu único plano tinha sido me congraçar com Bauer. Grande plano, realmente, excluindo o
pequeno probleminha dela convertendo-se em lobisomem e morrendo. De acordo, ela não estava
morta ainda, mas até se recuperasse, não estaria em condições de me ajudar. Ou sim? Eu não tinha
mentido ao Carmichael quando havia dito que não podia ajudar a Bauer. Mas Jeremy poderia. Se
pudesse me comunicar com ele, talvez poderia salvar a vida de Bauer, e se salvasse sua vida, talvez ela
se sentiria bastante endividada comigo para me ajudar. Muitos ses e possivelmente nesse plano, mas
era tudo o que tinha.
Formulei meu curso da ação com um detalhismo lógico que meio me impressionou e meio me
assustou. Me sentando na cama, olhando o relógio digital passar os minutos, logo horas, e não senti
nada. Absolutamente nada. Recordei o rechaço do Clay e não senti nada. Recordei Bauer afundando a
seringa de injeção no braço e não senti nada. Recordei ao Lake apanhado em sua mudança, o guarda
morto a meu lado, a raiva frustrada do Winsloe. De todos os modos não senti nada. Dois e trinta, três,
três e trinta. O passado do tempo absorvia cada partícula de minha atenção. Às quatro avancei com
meu plano. As quatro e trinta olhei o relógio e compreendi que uma meia hora tinha passado. Onde se
tinha ido? O que tinha feito eu? Não importava. Nada importava, realmente. Jeremy e Paige dormiriam.
Não devia incomodá-los. As cinco. Talvez deveria tratar de me pôr em contato com o Paige. Manter-lhe
preparada para o conselho do Jeremy enquanto os guardas traziam meu café da manhã. De todos os
modos, tomava esforço. Tanto esforço. Era muito mais fácil olhar o relógio e esperar. Todo o tempo do
mundo. Cinco e trinta. Possivelmente Jeremy se levantaria já. Não quereria despertá-lo. Não era
realmente importante. Poderia tentá-lo, entretanto. Poderia levar um momento conseguir que Paige
me agarrasse. Não tinha sentido atrasá-lo. Às seis. Seis…? Onde…? Não importa. Façamos um intento.
Tentei-o. Nada passou. É obvio nada passou. O que me fazia pensar que algo aconteceria? Não
era eu a que contava com capacidades telepáticas. Nunca me ocorreu este pensamento. Mentalmente
chamei Paige, e quando ela não respondeu, pensei, “Né!, que estranho”, e o segui tentando. Bem,
então meu cérebro não trabalhava com todos os cilindros. Nas últimas dezoito horas tinha sido
rechaçada por meu amante, vi minha única esperança de liberdade converter-se em um lobisomem, e
descobri que o investidor principal neste projeto era um psicopata com um fetiche pelas mulheres
atléticas e caça de monstros. Tinha direito a fazer voar alguns de meus circuitos mentais.
Finalmente aceitei que não podia me pôr em contato com Paige. Então esperei a que ela ficasse
em contato comigo. E esperei. E esperei. Veio café da manhã. Ignorei-o. O café da manhã se foi.
Às nove e trinta, Paige tratou de ficar em contato comigo. Ou acredito que o fez. Começou com
uma dor de cabeça, como no dia anterior. À primeira pontada de tensão, tinha saltado da cama, estirei-
me, fechei meus olhos, e esperei. Nada passou. A dor de cabeça diminuiu, desapareceu, logo voltou
uma meia hora mais tarde. Ainda estava na cama, com medo incluso de mudar de posição por medo a
bloquear a transmissão de Paige. Novamente, nada passou. Relaxei-me. Imaginei me abrir, imaginei me
dirigir a Paige, imaginou cada parte possível de imagens condizentes que pude. Não foi tão quando o
nu sussurro recompensou meus esforços.
E se Paige não pudesse entrar em contato comigo? E se não fosse bastante forte, se a vez passada
tivesse sido uma coisa de sorte? E se eu tivesse bloqueado coisas quando tinha talhado por descuido a
união? E se, agora mesmo, alguma parte profunda de minha psique resistisse ao contato, aterrorizada
pelo rechaço adicional? E se o dano fosse permanente? E se fosse sozinho... Para sempre?
Não, não era possível. Paige voltaria. Encontraria uma forma, e eu falaria com o Jeremy e tudo
estaria bem. Isto era temporário. Talvez ela não tinha estado tratando de ficar em contato comigo.
Talvez eu só tinha uma dor de cabeça, completamente compreensível dadas as circunstâncias.
Paige voltaria, mas eu não ficaria vadiando enquanto esperava. A ação era a única para o pânico.
Tinha um plano. Sim, seria mais fácil se tivesse o conselho do Jeremy, mas poderia começar sozinha.
Tudo o que tinha que fazer era recordar minha própria transformação colocando mão no mais
profundo, as gretas que com mais cuidado tinha suprimido de minha psique e tirar as lembranças do
Inferno. Nenhum problema.
Duas horas mais tarde, empapada de suor, saí sem minhas lembranças. Durante os vinte minutos
seguintes, sentei-me no bordo da cama, reunindo os pedaços de mim mesma. Então fui e tomei banho.
Estava preparada.

***

Durante o almoço disse aos guardas que queria ver Carmichael. Não responderam. Nunca me
falaram mais do necessário. Uma meia hora mais tarde, quando tinha começado a suspeitar que não
tinham feito caso de minha petição, voltaram com o Matasumi. Isto complicava meu plano. Enquanto
Matasumi parecia querer ajudar a Bauer, ele não estava inclinado a fazer algo assim a custa me tirar de
minha jaula. Se fizesse o que queria, não acredito que os cativos pudessem pôr um pé fora de suas celas
a partir do momento em que eram capturados até que alguém viesse para tirar a cabeça de gado morta.
Finalmente, persuadi Matasumi a me levar acima, a condição de que fora algemada, com cadeias
nas pernas, e fosse acompanhada por um grupo de guardas que me impedissem de me pôr a menos de
dez metros do Matasumi. No hospital Matasumi me deixou para que encontrasse Carmichael. Três
guardas me escoltaram dentro enquanto outros bloqueavam a saída pela sala de espera.
Bauer jazia na primeira cama. Ao lado dela, Tess lia uma novela de mistério em edição rústica e
cuidava suas cutículas. Quando Tess me viu, sacudiu-se alarmada, logo notou os guardas e se
conformou amassando-se no respaldo antes de reatar a leitura.
Na cama de hospital, Bauer pareceu inclusive mais régia e tranquila que em vida. Seu cabelo loiro
escuro se dispersava sobre um travesseiro branco antigo. As linhas finas ao redor de seus olhos e boca
tinham desaparecido, desaparecido no rosto de alguém da metade de sua idade. Seus olhos estavam
fechados, suas pestanas descansavam contra a branca pele impecável. Seus lábios plenos se torciam
no mais fraco dos sorrisos. Absolutamente quieta, tranquilo, e etereamente formosa. Em resumo, ela
parecia morta.
Só a elegante ascensão e queda de seu peito me dizia que não era muito tarde, que eles não
tinham posto a Bauer ali para uma autópsia. De todos os modos, o impulso de felicitar ao cosmetólogo
mortuário era quase esmagador. Quase. Guardei meus comentários para mim. De algum jeito duvidava
que meu auditório os apreciasse.
—Pacífica - a voz do Carmichael disse detrás de mim.
—Ela não está encadeada - respondi quando Carmichael caminhou ao redor da cama e agitou ao
Tess.
—Os flancos da cama são bastante altos para acautelar acidentes.
—Não do tipo que estou pensando. Ela necessita cadeias nas pernas e braços. Os melhores que
puder encontrar.
—Ela dorme profundamente. Não…
—Encadeie-a ou parto.
Carmichael deixou de verificar o pulso de Bauer e elevou a vista bruscamente —Não me ameace,
Elena. Admitiu frente ao Doutor Matasumi que pode ajudar a Sondra, e vai fazê-lo, sem condições. Ao
primeiro sinal de uma reação violenta, encadeá-la-ei.
—Não será capaz de fazê-lo.
—Então os guardas o farão. Quero que ela esteja cômoda. Se isto for tudo o que posso fazer,
então está bem.
—Nobres sentimentos. Alguma vez se perguntou quão cômodos estamos no bloco de celas? Ou
não contamos? Não sendo humano e tudo isso, suponho que não estamos cobertos pelo juramento
Hipocrático.
—Não comece isto - Carmichael reatou sua revisão dos sinais vitais de Bauer.
—Tem seus motivos para fazer isto, verdade? Motivos bons, morais. Como todos outros aqui.
Posso adivinhar o seu? Vejamos... descobrir brechas médicas inimagináveis que beneficiará a toda
espécie humana. Estou perto?
A boca do Carmichael se apertou, mas manteve seus olhos em Bauer.
—Wow - disse. —Boa conjectura. Então justifica o encarceramento, a tortura, e a matança de
seres inocentes com as esperanças de criar uma super raça humana? Onde conseguiu sua licença,
Doutora? Auschwitz?
Sua mão se apertou ao redor do estetoscópio, e pensei que ia me lançar isso. Em vez disso,
apertou-o até que seus nódulos se branquearam, então inalou e olhou por diante de mim aos guardas.
—Por favor devolvam à Sra. Michaels… - Ela se deteve e girou seu olhar para a minha. —Não,
isto é o que quer, verdade? Ser devolvida a sua cela, aliviada de suas obrigações. Bem, não o farei. Vai
dizer-me como tratá-la.
O corpo de Bauer estava rígido. Um tremor a percorreu. Então seus braços voaram, golpeando
com força. Suas costas se arquearam contra a cama, e começou a convulsionar.
—Agarra suas pernas - gritou Carmichael.
—Encadeiem-na.
As pernas de Bauer voaram, um joelho golpeou a Carmichael no peito quando ela se inclinou
para dominá-la. Carmichael voou para trás, o ar escapou de seus pulmões, mas ela ricocheteou em um
segundo e se lançou sobre o torso de Bauer. Os guardas trotaram através do quarto e se dispersaram
ao redor da cama. Um agarrou os tornozelos de Bauer. Suas pernas convulsionaram, e ele perdeu seu
agarre, caindo para trás e derrubando um carro ao chão. Os outros dois guardas se olharam um ao
outro. A gente tomou sua arma.
—Não! - disse Carmichael. —É só um movimento. Elena, agarre suas pernas!
Afastei-me da mesa —Encadeia-a.
A parte superior do corpo de Bauer se elevou, lançando a Carmichael ao chão. Bauer se sentou
direita, logo seus braços voaram, fazendo em um círculo perfeito. Quando passaram por sobre sua
cabeça, não viraram de curso para voltar para a normalidade de postura. Em vez disso, foram-se
diretamente para trás. Houve um dobro estalo de ombros deslocados.
Carmichael agarrou as correias magras que penduravam dos lados da cama. Estive a ponto de
lhe dizer que Bauer devia ser retida com algo dez vezes mais forte, mas eu sabia que tinha ido já muito
longe, convertendo isto em uma luta de vontades que a doutora não perderia. O guarda que tinha
agarrado as pernas de Bauer deu um passo tentativo para diante.
—Retorna! - Grunhi.
Caminhei para os pés da cama, ignorando os esforços frenéticos do Carmichael para atar as
restrições da cama, prestando atenção só aos movimentos das pernas de Bauer. Quando passei o carro
derrubado, recolhi dois cilindros de ataduras. Contei os segundos entre as convulsões, esperei a
próxima para me aproximar, logo agarrei os tornozelos Bauer com uma mão.
—Toma isto - respondi, lançando um cilindro de atadura ao guarda mais próximo. —Ata uma
ponta a seu tornozelo, a outra à cama. Não o faça apertado. Romperá suas pernas. Se mova rápido.
Tem vinte segundos.
Enquanto falava, atei a perna esquerda de Bauer ao pilar de cama, lhe deixando bastante espaço
para mover-se sem fazer-se dano a si mesma. Carmichael recolheu outro cilindro de atadura do chão e
agarrou os braços de Bauer, esquivando como um vôo torpemente.
—Conta… - comecei.
—Sei - cuspiu Carmichael.
Conseguimos atar os braços de Bauer, suas pernas, e torso soltos à cama, agora poderia
convulsionar sem fazer-se dano. O suor emanava dela em riachos almiscarados, pestilentos. A urina e
a diarréia acrescentavam seu próprio fedor ao conjunto. Bauer tinha náuseas, vomitava bílis
esverdeada, sob sua camisola de noite cheirava asqueroso. Então começou a mover-se outra vez, seu
torso se arqueava em um semicírculo impossivelmente perfeito fora da cama. Uivou, seus olhos
fechados inchando-se contra as pálpebras. Carmichael correu através do quarto para trazer uma
bandeja de seringas de injeção.
—Tranquilizadores? - Perguntei. —Não pode fazer isso.
Carmichael encheu uma seringa de injeção — Ela sofre.
—Seu corpo tem que trabalhar por isso. Os tranquilizadores só o farão mais difícil a próxima vez.
—Então, que espera que faça?
—Nada - respondi, me deixando cair em uma cadeira. —Recoste-se, relaxe-se, observe. Inclusive
tome notas. Estou segura de que Doutor Matasumi não quereria que ignorasse uma oportunidade
educativa tão única.

***

Os estremecimentos de Bauer terminaram uma hora mais tarde. Para então seu corpo estava
tão esgotado que nem sequer se estremeceu quando Carmichael fixou seus ombros deslocados. Ao
redor da hora de comer tivemos outra mini crise quando a temperatura de Bauer se elevou. Outra vez,
adverti a Carmichael contra tudo, além dos procedimentos de primeiros socorros mais benignos.
Compressas frescas, água entre seus lábios ressecados, e muita paciência. Tanto como fosse possível,
o corpo de Bauer devia ser deixado em paz para trabalhar na transformação. Uma vez que sua
temperatura caiu, Bauer dormiu, que era a melhor medicina e a mais humana de todas.
Quando nada mais passou até as dez, Carmichael deixou que os guardas me levassem de volta a
minha cela. Tomei banho, pus-me roupa, e deixei o banheiro para encontrar que não estava sozinha.
—Sai de minha cama - disse.
—Comprido dia? - perguntou Xavier.
Lancei-lhe minha toalha, mas ele só se teletransportou à cabeceira.
—Sensível, sensível. Esperava uma saudação mais hospitaleira. Não te aborreceu falar com
humanos ainda?
—A última vez que falamos, deixou-me “algemada” em um quarto com um guia de ruas
enfurecido.
—Não te levei. Estava ali.
Grunhi e agarrei um livro da prateleira. Xavier desapareceu. Esperei o brilho que pressagiava seu
reaparecimento, logo lancei o livro.
—Merda - grunhiu quando o livro golpeou seu peito. —Aprende rápido. E leva um bom rancor.
Não sei por que. Não parecia que não pudesse dirigir ao Lake. Eu estava aí. Se algo se descarrilou,
poderia havê-lo detido.
—Estou segura que poderia.
—É obvio. Estava sob ordens estritas de não deixar que nada te passasse.
Agarrei outro livro.
Xavier estendeu seus braços para rechaçá-lo. —Hey, vamos. Jogo agradável. Vim aqui para falar
contigo.
—Sobre o que?
—O que seja. Aborreço-me.
Resisti ao impulso de lançar o livro e o pus de volta na prateleira. —Bom, sempre pode se
converter em um lobisomem. Parece ser a saída comum para o tédio por estes lados.
Ele se aproximou mais à cama. —Não brinque. Pode acreditar isto? Sondra, de toda a gente. Não
é que eu não possa imaginar a um humano que queira ser algo mais, mas ela deve ter algum parafuso
solto para fazê-lo dessa maneira. Tem que passar, depois de tudo. Toda a exposição. Os complexos de
inferioridade são inevitáveis.
—Complexos de inferioridade?
—Seguro - Ele captou minha expressão e pôs os olhos em branco. —Oh, por favor. Não me diga
que é uma desses que pensa que os humanos e os sobrenaturais são iguais. Temos todas as vantagens
dos seres humanos e mais ainda. Isso nos faz superiores. Mas ainda, agora pensa nesses humanos que,
depois de uma vida de acreditar que estão no mais alto da escala evolutiva, dão-se conta que não o
estão. Pior ainda, descobrem que poderiam ser algo melhor. Não podem converter-se no meio
demônio, é obvio. Mas quando os humanos vejam o que as outras raças podem fazer, querê-lo-ão. É o
putrefato centro de todo este plano. Não importa quão altruísta sejam seus motivos, finalmente todos
quererão um pedaço. O outro dia…
Ele se deteve, jogou uma olhada ao vidro transparente de direção única como se verificasse que
não havia bisbilhoteiros, logo desapareceu durante um segundo e reapareceu. —O outro dia, fui ao
escritório do Larry, e sabe o que fazia? Praticava feitiços. Agora, ele diz que conduzia uma investigação
científica, mas sabe que isso é um montão de merda. Sondra é só o princípio.
—Então, o que vai fazer a respeito disto?
—Fazer? - Seus olhos se alargaram. —Se a raça humana está tentando destruir-se a si mesma, é
seu problema. Enquanto que me paguem em grandes dólares por ajudar, sou um tipo feliz.
—Simpática atitude.
—Honesta atitude. Então me diga…
A porta fez clique e ele se deteve. Uma vez aberta, dois guardas entraram, conduzidos por um
homem uniformizado mais velho com um corte de cabelo ao corte de barba e perfurantes olhos azuis.
—Reese - grunhiu ao Xavier. —O que faz aqui?
—Só mantendo a nossos presidiários felizes. Os femininos ao menos. Elena, este é Tucker. Ele
prefere que lhe digam Coronel Tucker, mas seu nível militar é um pouco truculento. Passar por conselho
de guerra e todo isso.
—Reese… - começou Tucker, logo se deteve, endireitou-se, e se girou para mim. —Você é
requerida acima, senhorita. A doutora Carmichael pediu por você.
—Está bem a Sra. Bauer? - Perguntei.
—A doutora Carmichael nos pediu lhe levar.
—Nunca espere uma resposta direta dos ex-militares - disse Xavier. Saltou da cama. —Te levarei
acima.
—Não necessitamos sua ajuda, Reese - disse Tucker, mas Xavier me tinha empurrado já para a
porta.
Quando passei frente à cela da Ruth, notei que estava vazia.
—Ruth está bem? - Perguntei.
—Ninguém te contou? - disse Xavier. —Ouvi que tinha feito uma sugestão a Sondra antes que
ela se lançasse à loucura.
—Sugestão? Oh, claro. Para que Ruth visitasse a Savannah. Eles a deixaram?
—Ainda melhor. Vêem olhar.
Xavier encabeçou a fila para as celas.

CRISE
—A doutora Carmichael a quer acima agora - disse Tucker.
Xavier seguiu andando, de modo que o segui. Joguei uma olhada em cada cela enquanto
passamos. Armem Haig estava sentado em sua mesa lendo uma National Geographic. Leah dormia a
sesta na cama. A cela do sacerdote Vodú estava vazia. Havê-lo-ia Matasumi “removido” do programa?
Tremi ao pensá-lo, outro aviso do que aconteceria quando os cativos sobrevivessem a sua utilidade.
Quando passamos diante da cela de Savannah, Xavier alcançou o trinco.
—Não te atreva - vaiou Tucker, avançando a pernadas para nós.
—Relaxe-se, ancião. Dará-lhe um ataque cardíaco.
—Estou em melhor forma de que você estará alguma vez, moço. Não leve a esta... senhorita a
essa cela.
—Por quê? Teme que o que vá passar? Quatro seres sobrenaturais em um lugar. Imagine a
concentração incrível de energia psíquica - disse Xavier em uma imitação passável do Matasumi.
Xavier abriu a porta. Savannah e Ruth estavam sentadas à mesa, suas cabeças juntas enquanto
Ruth desenhava linhas imaginárias sobre um tabuleiro. Quando a porta se abriu, elas se apartaram.
—Oh, só é você - disse Savannah quando Xavier entrou. —O que acontece? Já não pode
atravessar mais pelas paredes? Deve ser uma vergonha, perder seu solitário e único poder.
—Não é um amor? - disse Xavier, olhando para mim enquanto Ruth fazia calar ao Savannah.
Ignorando à mulher mais velha, Savannah se parou e estirou o pescoço para ver atrás do Xavier.
—Quem está contigo? - perguntou.
—Uma convidada - disse Xavier. —Mas se não ir for agradável…
Savannah o adiantou e olhou para mim. Ela sorriu. —Você é a nova, a lobisomem.
—Seu nome é Elena, querida - disse Ruth. —Não é cortês…
—Um lobisomem. Vamos isso é verdadeiro poder - disse Savannah, lançando um olhar ao Xavier.
—Entra, Elena - disse Ruth. Quando o fiz, ela me abraçou. —Como está, querida?
—Sobrevivendo.
—Ouvi a coisa mais horrível sobre essa pobre senhorita Bauer…
—Então, o que acontece muda a lobo? - perguntou Savannah. —Dói? É espetacular? Vi esse filme
uma vez, sobre lobisomem, e o focinho saía diretamente pela boca desse tipo e rasgava sua cabeça…
—Savannah! - disse Ruth.
—Está bem - respondi, sorrindo. —Mas não temos muito tempo. Eles me levam acima - Joguei
uma olhada a Ruth. —Vai tudo bem?
Ruth olhou a Savannah. Uma faísca de orgulho penetrou sua exasperação.
—Muito bem - disse Ruth.
—Tucker se está agitando - disse Xavier. —Deveríamos ir.
—Trá-la algum dia - disse Savannah, voltando para seu assento. —E traz barrinhas Mares
também.
—E me recorde, o que deveria me obrigar te fazer esses favores? - disse Xavier. —Seu encanto
ilimitado?
Savannah soltou um suspiro fingido, seus olhos cintilaram com uma astúcia que era meio de
menina, e meio de mulher. —Bem. Consiga-me algumas barras de caramelo e jogarei monopólio
contigo. Já que se põe tão aborrecido.
—Não acredito que seja uma idéia tão boa, querida - sussurrou Ruth.
—Está bem - disse Savannah. —Ele realmente é um jogador como a merda de mau. Podemos
ganhar entre nós duas.
Havia ainda algo que eu tinha que dizer a Ruth, mas não me ocorria como fazê-lo sem que Xavier
ouvisse por acaso. Não me atrevia a pedir falar com a Ruth em privado. Inclusive se eu pudesse, Onde
encontraríamos intimidade em um cubo de vidro transparente?
—Se tiver problemas te ponha em contato com Paige - disse Ruth.
Saltei e joguei uma olhada ao Xavier. Ele ainda brincava com a Savannah.
—Não pode me ouvir - disse Ruth. —Não responda em voz alta, entretanto. O conjuro só serve
para mim. Só concorde com a cabeça.
Assenti com a cabeça.
Ruth suspirou —Tenho um pouco de temor. Falei-lhe ontem, mas quando tentei fazê-lo esta
manhã, não pude me pôr em contato contigo ou com ela. Possivelmente é porque concentro muito de
meu poder na menina. Não tinha idéia de quão capitalista podia ser Savannah. Sua mãe tinha um
grande potencial, mas ela nunca cumpriu com ele. Muito indisciplinada. Muito inclinada para... coisas
mais escuras. Com a formação apropriada, esta poderia ser… - Se deteve. —Mas isto é assunto de
bruxas. Não te aborrecerei com isso. Unicamente e por favor te assegure que consegue contatar a
Paige. Depois do que estou fazendo, Savannah não deve ser deixada sozinha. Quanto a obter o contato
novamente, trata de te relaxar, querida. Já funcionará. Se meu poder voltar, comunicar-me-ei com
Paige eu mesma e te trarei uma mensagem.
—… pôker? - perguntava-me Savannah.
—Hmmm? - Respondi.
—Joga pôquer - disse ela. —Xavier diz que ele não jogará porque necessitamos uma quarta
pessoa, mas acredito temente que será vencido por uma garota.
—Boa noite, Savannah - disse Xavier, me empurrando fora da cela.
—Não das barras Mares escuros - gritou Savannah atrás dele. —Me fazem sair grãos.
Xavier riu entre dentes e fechou a porta. Tucker ainda estava de pé no corredor, com os braços
cruzados.
—E? - perguntou-lhe Xavier. —Vê algum tipo de objeto voador não identificado? Derrubaram-se
as paredes?
Tucker só fulminou com o olhar. Xavier sorriu abertamente e me conduziu para a saída.
—Não acredita nessa explicação da energia psíquica? - Perguntei enquanto caminhávamos. —O
que acredita que é? Um duende?
—Du…? - começou ele, então seu lábio se curvou. —Leah.
—Ela parece acreditar…
—Sei o que ela pensa - Xavier abriu a porta de segurança. —Sua teoria de duendes.
—Ali está! - chamou uma voz.
Olhei para ver Carmichael correr para nós.
—Você - disse ao Xavier. —Deveria havê-lo adivinhado. Pedi que Elena viesse faz mais de vinte
minutos.
—Se fosse uma emergência, teria ido você mesma - disse Xavier.
—É uma emergência agora - Ela a tirou de nosso meio. —Vá fazer algo útil por uma vez. Talvez
possa ajudar…
Xavier desapareceu. Carmichael suspirou e sacudiu sua cabeça, logo agarrou meu cotovelo e me
empurrou ao elevador. Quando avançamos pelo corredor para o hospital, agarrei uns pedaços de
conversa depois de uma porta fechada. A isolação amortecia as vozes quase até o ponto de escuridão,
inclusive para mim. Alguém parecia ser Matasumi. O outro era desconhecido, homem com matizes de
um acento melodioso.
—Vampiros? - disse a voz desconhecida. —Quem lhe deu permissão para capturar um vampiro?
—Ninguém tem que lhe dar a permissão - disse Matasumi, sua voz próxima a um sussurro,
embora ninguém exceto um lobisomem pudesse ouvir através das paredes tiradas o som. —Com a
Sondra incapacitada, ele começa a lançar seus dardos a outros lados. Quer que você nos diga onde
podemos encontrar um vampiro.
“Ele” tinha que ser Winsloe. E o segundo homem? Bauer disse que um feiticeiro lhes ajudava a
encontrar potenciais cativos. Este era o evasivo Isaac Katzen? Reduzi a marcha para escutar quando
passamos por diante da porta.
—Perde seu tempo com isto, Lawrence - disse o homem. —Sabe que o faz. Tem que dar marcha
atrás. Diga-lhe que não. Demos-lhe dois lobisomem. Isso é o bastante. Temos que apontar às raças mais
altas. Os lobisomens e os vampiros são brutos comuns, conduzidos completamente por necessidades
físicas. Não têm nenhum objetivo mais alto. Nenhum uso mais alto.
—Isso não é completamente certo - disse Matasumi. —Embora eu esteja de acordo em que
deveríamos nos concentrar nos feiticeiros, os lobisomens proporcionam perspectivas inestimáveis da
natureza do poder físico e sensorial. Um vampiro poderia ser útil para…
—Maldição! Não posso acreditar isto! Está tão louco como Sondra! Seduzido por...
Sua voz se acalmou quando Carmichael me empurrou pelo corredor. Pretendi tropeçar, me
dando tempo para ouvir mais, mas as vozes se silenciaram até que já não pude me deter mais tempo e
tive que seguir ao Carmichael ao hospital.

***

Não havia nenhuma emergência. Do ponto onde Bauer se injetou saía a fervuras um pus espesso,
pestilento, matizado com sangue e se inchou ao tamanho de uma bola de golfe, que ameaçava cortando
a circulação de seu braço. Bem, talvez isto seria normalmente uma causa de alarme, mas na
metamorfose de humano a lobisomem, isto era só uma de várias dúzias de barreiras que ameaçavam
potencialmente a vida. Outra vez, aconselhei ao Carmichael contra curas médicas de fantasia. A
transformação tinha que seguir seu curso. A medicina simples, quase primitiva era a única solução.
Neste caso, significava limpar a ferida, aplicar compressas para reduzir o inchaço e vigiar a temperatura.
Durante tudo isto, Bauer se manteve adormecida. Não tinha recuperado nem uma vez o conhecimento
do desmoronamento em minha cela. A natureza tinha assumido o controle, apagando o cérebro para
enviar todos os recursos ao corpo durante este período crucial.
Uma vez que a crise passou, Carmichael decidiu que eu deveria ficar permanentemente no
hospital. Hey, eu não o discutiria. Algo por estar fora de minha cela e um nível mais perto da liberdade.
Naturalmente, Matasumi não as tinha com a idéia. Discutiu com Carmichael e, como de costume,
perdeu. Deram-me uma cama no hospital e guardas as vinte e quatro horas, um no quarto e dois fora
de minha porta. Então exigi algo para mim mesma. Queria que me tirassem as algemas. Se Bauer
recuperasse o conhecimento, eu tinha que ser capaz de me defender. Três de nós discutiram sobre isto,
mas Matasumi e Carmichael finalmente se abrandaram, consentindo em tirar minhas algemas em troca
de pôr um segundo guarda dentro do quarto.
Ainda convencida de que teria notícias do Paige, mentalmente fiz uma lista de perguntas para
fazer ao Jeremy. Havia tantas coisas que não podia recordar de minha própria transformação. Recordei-
o explicando que não podia me dar nada para a dor, constantemente reiterando “a natureza deve
seguir seu curso”, mas em uma ocasião ele me tinha administrado sedativos. Por quê? Não podia
recordá-lo, mas isso significava que devia haver exceções à regra “nada de remédios”. Quais eram?
Como de mal tinham que ficá-las coisas antes que não drogar Bauer fora mais perigoso que drogá-la?
E as cadeias? Quão apertadas era muito apertadas? Quão soltas era muito soltas? A loucura outorgava
força, mas fazia isto a Bauer mais forte que um lobisomem com experiência, fisicamente preparado
como eu? E a transferência de saliva? Uma mordida injetava uma quantidade limitada de saliva. Bauer
se havia sobre medicado. Era um problema? O fato de que ela tinha injetado a saliva em vez de recebê-
lo através de uma mordida ocasionava problemas? Eu estava segura de que Jeremy saberia. Tudo o que
tinha que fazer falar com ele.
Não aconteceu. Estive sem dormir enquanto pude, mas depois de trinta e seis horas repletas de
tensão, e insônia, não pude deter o sonho muito tempo. Paige nunca entrou em contato comigo.

***

O dia seguinte começou com mais crises médicas. Primeiro, mais cadeias. Logo, antes que Bauer
se repusesse disto, deixou de respirar. Sua garganta se inchou e os músculos se incharam quando ela
começou a mudar de humano a lobo. Sua anatomia subjacente não estava pronta ainda para a
transformação, de modo que, enquanto seu pescoço mudava, o interior de sua garganta –traquéia,
esôfago, o que fora- permanecia humano. Não me peçam dados concretos. Não sou doutora. Inclusive
Carmichael parecia aturdida. O ponto era que Bauer deixou de respirar. Se nos tivéssemos ficado nos
perguntando por que, ela se teria asfixiado. Inclinei sua cabeça para trás, endireitando sua traquéia, e
massageei seu pescoço, pressionando-o de volta à forma humana. Isto funcionou, mas muito devagar.
Carmichael começou a preocupar-se com a privação de oxigênio, e tive que estar de acordo. Então
realizou uma traqueotomia de emergência. Muito entretenimento. Uma vez que Bauer respirou,
pudemos nos relaxar. Um momento.
Estar no hospital tinha mais vantagens do que tinha imaginado. Não só estava mais perto à
liberdade, mas também depois do primeiro dia as pessoas me trataram mais ou menos do mesmo modo
que a Tess. Não como a um presidiário, mas sim como a ajudante do Carmichael, tão pouco importante
na hierarquia total que minha presença era ignorada. Em outras palavras, a gente falava ao redor de
mim como se eu fosse parte do mobiliário. Matasumi falava com o Carmichael, os guardas falavam uns
com os outros, Tess falava com o bonito porteiro. Todos falavam. E eu escutava. Assombroso o que eu
podia recolher, não só informação sobre o complexo e sua estrutura organizativa, a não ser pequenas
coisas como que os guardas tinham uma reputação que guardar. Um assunto fascinante.
Mais tarde esse mesmo dia, inclusive consegui ver Armem Haig outra vez e ao sacerdote Vodu,
Curtis Zaid, que estava ainda muito vivo. Não tive muita sorte com o Zaid. Se, come Bauer tinha
comprometido, Leah tivesse devotado sua amizade ao sacerdote Vodú, ela tinha ainda melhores
habilidades sociais do que acreditei. Quando tratei de falar com o Zaid, ele bloqueou inclusive as
cortesias típicas como “bom dia” com olhadas funestas e silêncio. Definitivamente não era um aliado
potencial. Armem, por outra parte, era uma perspectiva muito prometedora. Não só queria escapar -e
queria ajuda- mas sim tinha estado fazendo suas tarefas. Conhecia o sistema de segurança, as
mudanças de guardas, e a disposição do complexo. Ainda melhor, ele conseguiu me comunicar esta
informação diretamente diante de Carmichael, inserindo-a em tal conversa banal que ela nunca o
notou. Observador, ardiloso, e muito brilhante. Minha classe de tipo... para um sócio de fuga, quero
dizer.
SAÍDA
A seguinte crise foi outro combate com suas cadeias. Depois de que pudemos submeter a Bauer,
não podia ficar quieta. Rondei pelo hospital, tocando isto, jogando com o outro, até que meu joelho
golpeou um carro de aço e Carmichael finalmente levantou a vista de sua papelada.
—Poder-te-ia sentar? - resmungou ela. —Antes que rompa algo.
Caminhei para a cadeira, olhei-a, logo avancei para a máquina de Bauer.
—Não... - começou Carmichael.
—O que há ali?
—É uma solução geral, sobre tudo água com… - o Carmichael se deteve, vendo que eu tinha
avançado já, minha atenção agora apanhada pelo monitor dos batimentos do coração do coração, que
emitia um sinal sonoro. —Está perto seu tempo para mudar?
Considerei-o. Minha última mudança tinha sido a manhã da segunda-feira, faz cinco dias. Como
a maior parte dos lobisomens, meu ciclo seguia uma ordem semanal. Isto significava que, embora eu
pudesse mudar tão frequentemente como quisesse, tinha que mudar ao menos uma vez por semana,
ou me arriscar a ter uma mudança à força. Já podia sentir a agitação de meu corpo. Logo meus músculos
começariam a ferroar e doer. No momento, entretanto, poderia controlá-lo. Tinha uns poucos dias
mais. Se tivesse que mudar neste lugar, eles provavelmente me poriam em uma cela segura com um
auditório cheio e uma câmara de vídeo. Suportaria o maior dos dores antes de deixar que acontecesse
isso.
—Não, ainda - respondi. —Só estou agitada. Não estou acostumada a estar em um espaço tão
pequeno.
Carmichael tampou sua pluma. —Eu provavelmente poderia pedir que tomasse um passeio pelo
complexo. Sob guarda suficiente. Deveria ter recomendado um pouco de exercício em seu programa.
—Exercício? - disse uma voz da porta. —Não falem assim em meu complexo.
—Olá, Tyrone - disse Carmichael sem dar a volta para confrontá-lo. —Necessita algo?
Winsloe entrou no quarto e me sorriu abertamente. —Só o que tem ali. Acredito que tomarei a
companhia da Elena por um momento, deixar-lhe-emos fazer seu trabalho.
—É muita... consideração de sua parte, Tyrone, mas temo que terá que esperar se tiver que falar
com a Sra. Michaels. Estive a ponto de pedir alguns guardas adicionais para que a levassem a passear.
Ela está agitada.
—Agitada? Ela está pronta para mudar?
—Não, não o está - Carmichael golpeou sua prancheta na mesinha e se dirigiu para o
intercomunicador.
—Deveria ser logo. Talvez ela necessite…
—Ela não necessita nada.
Carmichael golpeou o botão do intercomunicador. Winsloe avançou detrás dela e o apagou.
—Diz que ela tem que fazer exercício? - disse Winsloe. —E o quarto de pesos? Consiga alguns
guardas extras e a escoltarei eu mesmo.
Carmichael fez uma pausa, olhando do Winsloe a mim, e logo disse, — Não acredito que seja
uma idéia tão sábia. Um passeio…
—Não será bastante - disse Winsloe, Sorrindo abertamente, com seu sorriso de moço. —
Verdade, Elena?
Considerei-o. Enquanto eu preferia andar e explorar o complexo, também tinha que me congraçar
com o Winsloe, lhe dar uma razão para me manter viva. —O quarto de pesos seria melhor.
Os olhos de Carmichael encontraram meus, comunicando a mensagem de que não tinha que ir
com o Winsloe se não o desejasse. Quando olhei longe, ela disse, —Bem - e esmurrou o botão do
intercomunicador.
Deixamos meus dois guardas de quarto no hospital, recolhemos os dois da porta, e
acrescentamos três mais, o que queria dizer que era protegida por mais que o dobro da capacidade
armamentícia e músculos que tinham deixado com Bauer. Prioridades estranhas, mas ninguém
perguntou minha opinião, e eu só perderia o fôlego se o oferecesse. Surpreendeu-me que Carmichael
não enviasse a todos os guardas comigo e deixasse a Bauer sozinha.
O quarto de pesos não era maior, ou melhor, equipado que o do Stonehaven. Era de pouco mais
de dez metros quadrados com uma máquina de pesos multiuso, pesos livres, um puching bag, uma roda
de esquilo, uma máquina de esqui, e um StairMaster. Não tínhamos nenhuma equipe cardiovascular
no Stonehaven. Não importava como estivesse o tempo, preferíamos fazer footing fora que correr em
uma roda de hamster no interior. Assim que StairMaster… bom, os degraus de aço não estavam muito
acima na pronta de prioridades de nenhum lobisomem, e pela quantidade de pó nesta máquina, os
guardas não pensavam muito bem dela tampouco.
Três guardas estavam ali quando chegamos. Winsloe ordenou que partissem. Alguém o fez. Dois
ficaram para o espetáculo. Uma moça levantando pesos. Wow. Que novidade. Obviamente não tinham
ido a nenhum ginásio público em muito tempo.
Não levantava ferro desde fazia bastante tempo. Cada vez que me sentava, Winsloe estava ali,
verificando minha carga de peso, perguntando quanto podia levantar, geralmente muito molesto
comigo. Desde que deixei cair cinquenta libras sobre seu pé não parecia uma idéia sábia, abandonei os
pesos. Tentei-o com a roda de esquilo, mas não podia entender a programação. Winsloe se ofereceu a
ajudar e só conseguiu paralisar o computador. Obviamente seu conhecimento técnico não se estendeu
além dos computadores pessoais. Não importava. Não queria trotar de todos os modos. O que
realmente queria fazer era golpear algo - duro. O objeto perfeito para isso estava na esquina longínqua.
O puching bag.
Quando me atei com correia as manoplas, os espectadores se aproximaram mais. Talvez
esperavam que eu fosse esmurrar ao Winsloe. Avancei para o puching bag e lhe dava um golpe
experimental. Uma inalação coletiva saiu da multidão. Oooh, ela vai lutar. Wow. Se só fosse outra moça
a que estivesse de pé ali em vez de um puching bag. Mas não se pode ter tudo, verdade?
Golpeei a bolsa umas vezes, me acostumando a ela, recordando a postura, os movimentos. Uns
golpes lentos. Logo mais rápido. Mais lento. Um gancho de direita. Winsloe deu um passo bastante
perto de modo que podia vê-lo em meu campo visual, e se eu piscava os olhos, só meu olho direito,
podia conjurar sua imagem diante do puching bag. Bam-bam-bam. Três golpes ultra-rápidos. Pela
extremidade do olho, vi-o observar fixamente, seus lábios separados, os olhos brilhando. Suponho que
isto estava tão bem para ele como para mim. Tão melhor. Dancei para trás. Pausa. Inalar. Preparado.
Fechei de repente meu punho sobre a bolsa, uma vez, duas vezes, três vezes, até que perdi a conta.
Trinta minutos mais tarde, o suor esmagava meu cabelo sobre minha cabeça. Gotejava por meu
queixo, picava em meus olhos, o aroma era deslocado pelo ar mais forte do que o melhor desodorante
poderia esconder. Se Winsloe notava o fedor, não dava nenhum sinal disso. Seus olhos não me tinham
deixado desde que tinha começado. A cada poucos minutos meu olhar se dirigia ao vulto em seu jeans
e golpeava a bolsa mais forte. Finalmente, já não podia fazê-lo mais tempo. Girei e lancei uma patada
voadora à bolsa, estrelando-a contra a parede. Então dei a volta para o Winsloe, deixando que o suor
gotejasse de minha cara.
—Ducha - respondi.
Ele assinalou uma porta detrás da StairMaster —Ali.
Avancei a grandes pernada para lá. Ele me seguiu, junto com dois guardas aos que ele fez gestos.
Detive-me, virei sobre meus calcanhares, e os fulminei com o olhar. Winsloe só me olhou, lábios se
torceram nervosamente com a antecipação de um menino de nono grau metendo-se sigilosamente no
vestuário das garotas. Encontrei seu olhar e algo em mim se rompeu. Agarrando minha camiseta,
arranquei-a, logo a lancei à esquina. Meu prendedor seguiu o mesmo caminho. Logo meu jeans, as
meias três - quartos, e finalmente a roupa interior. Pondo-me muito direita, fulminei-o com o olhar.
Isto era o que queria ver? Bem. Te encha. Quando o fez -e todos os guardas o fizeram- meti-me no
quarto de duchas.
Agora, neste ponto, poderia pensar-se que até o olheiro mais imaturo repensaria suas ações,
talvez experimentaria uma pontada de vergonha. Se Winsloe sentisse tal pontada, provavelmente a
confundiria com indigestão. Ainda sorrindo abertamente, ele me seguiu no quarto de duchas comum,
gesticulando por volta dos dois guardas para que o seguissem, e procedeu a me olhar enquanto me
banhava. Quando ele se ofereceu lavar minhas costas, golpeei-lhe a mão. Winsloe perdeu o sorriso.
Avançou para os grifos e apagou minha água quente. Não fiz nenhum movimento para desafiá-lo lhe
voltando as costas e terminei minha ducha gelada. Isto o aplacou o suficiente para me dar uma toalha
quando terminei. Uma lição. Ao Winsloe gostava que eu resistisse, sempre e quando essa rudeza não
fora dirigida a ele. Como essas mulheres imaginárias de um certo tipo de fantasia –membros largos,
magros, musculosas, e cabelo selvagem... com jóias ao pescoço como pulseiras. Sua própria pulseira de
amor Amazona.
Quando saímos do quarto de ducha, um guarda disse ao Winsloe que Carmichael tinha estado
chamando. Ela me necessitava. Winsloe me conduziu ao hospital. Depois que partiu, descobri que não
havia nenhuma crise verdadeira, só um apuro com as restritivas cadeias de Bauer. Se Carmichael tivesse
usado essa desculpa para me resgatar do Winsloe, não dava nenhum sinal disso, seu comportamento
tão conciso como sempre, ordens molestas devido a minha inépcia médica. Apesar disso, depois de
dois dias juntas, tínhamos estabelecido uma rotina tolerância e cortesia. Respeitei-a. Não posso dizer
que ela sentisse o mesmo sobre mim -suspeito que ela via minha negativa a desafiar ao Winsloe como
um sinal de debilidade- mas ao menos me tratava como se fora uma pessoa real, não um espécime
científico.

***

Essa tarde houve uma perturbação nas celas. Um guarda veio ao hospital com feridas na cabeça,
e já que eu estava ali com Bauer, não perdi toda a excitação e discussão que seguiu.
O guarda tinha estado recuperando os pratos de comida de Savannah e Ruth. Quando tinha
aberto a porta, um prato tinha voado a sua cabeça. Tinha-o esquivado, mas golpeou o marco da porta
com tal força que os pedaços da louça se inseriram em seu couro cabeludo e um lado de sua cara, por
pouco tinha perdido seu olho. Carmichael passou uma meia hora tirando pedaços de sua cara.
Enquanto Carmichael costurava a ruptura mais larga, ela e Matasumi falavam da situação. Ou, mais
exatamente, Matasumi explicava suas teorias e Carmichael grunhia a intervalos apropriados,
parecendo desejar que ele levasse sua hipótese a outra parte e a deixasse fazer seu trabalho. Suponho
que com Bauer fora, Matasumi não tinha a ninguém mais para conversar. Bem, poderia ter falado com
o Winsloe, mas eu tinha tido a impressão de que ninguém falava de um pouco realmente importante
com o Winsloe -ele parecia existir em outro nível, o investidor que era agradado e obedecido, mas que
não era incluído nas operações do complexo.
Pelo visto o nível de atividade paranormal nas celas tinha aumentado recentemente. Leah, cuja
cela estava ao lado de Savannah, queixava-se de que as garrafas de xampu amanheciam derramadas,
as revistas rasgadas, e o mobiliário mudado de lugar. Os guardas eram outro objetivo favorecido. Vários
tinham problemas ao passar pela cela de Savannah, todos reportavam que algo lhes tinha golpeado nas
pernas. Acontecimentos molestos, mas relativamente benignos. Então, essa manhã, o guarda que havia
trazido a mudança diária de roupa de Savannah e Ruth tinha reprovado a Savannah por derramar o
catchup na camisa que tinha levado colocada no dia anterior. Quando tinha deixado a cela, a porta se
fechou de repente contra seu ombro, deixando uma contusão repugnante. Matasumi suspeitava que
esta erupção de atividade era causada por ter a Ruth e Savannah juntas. Ainda até depois do
potencialmente sério acidente com o prato volante, ele não pensou em as separar. E perder uma
oportunidade tão valiosa de estudar a interação entre bruxas? O que eram uns guardas com cicatrizes
ou entrevados comparados com isso? Enquanto ele expunha a respeito das situações “potenciais para
realizar descobrimentos científicos notáveis”, acreditei que Carmichael murmurava um par de epítetos,
mas posso me haver confundido.

***

Essa noite, enroscada sobre meu berço, tratei de me pôr em contato com a Ruth. De acordo,
talvez eu estava exagerando sobre minha carência de capacidades psíquicas. Suponho que se tentava
com força suficiente, poderia fazer algo. Supremacia da vontade. O incidente com o guarda me
preocupava. Se “os acontecimentos psíquicos” na cela estavam aumentando, suspeitava que estava
relacionado com o treinamento que Ruth fazia com a Savannah. Queria adverti-la: que atenuassem o
nível de poder ou se arriscavam a ser separadas. Depois de uma hora de tentá-lo, rendi-me. Este
fracasso só recordou minha incapacidade para pôr em contato com a Paige, e me recordou que estava
fora de contato com Jeremy, o que me recordou que estava sozinha. Não, repreendi-me, não estava
sozinha. Estava fora de contato temporariamente. Inclusive se estava sem o Jeremy, era
completamente capaz de inventar minhas próprias estratégias. O ano passado tinha planejado sem
ajuda e tinha executado o resgate do Clay. É obvio, houve alguns probleminhas... bom, mais que uns
quantos, realmente, e quase me tinham matado... mas, vamos, tinha-o salvado, verdade? Fá-lo-ia
melhor esta vez. Viver e aprender, verdade? Ou, neste caso, aprender e viver.

***
—Não essa não, a gaveta esquerda. Sua outra mão esquerda!
Movi-me enquanto dormia, sonhando com o Carmichael ladrando ordens.
—O carrinho quebrado. Maldição! Disse-te o carrinho quebrado, não esse.
Em meu sonho, uma dúzia de carrinhos idênticos me rodeava quando tropecei de um ao
seguinte.
—Me dê - Não, só te mova. Mova-te!
Outra voz respondeu, masculina, resmungando uma desculpa. Minhas pálpebras vacilaram. A
luz fluorescente torrou meus olhos. Fechei-os apertados, resmunguei, e o tentei de novo, entortando
os olhos esta vez. Carmichael estava efetivamente no hospital, mas por uma vez eu não era o objeto de
sua frustração. Dois guardas tropeçavam no quarto, agarrando isto e aquilo enquanto ela arrebatava
uma bandeja de instrumentos da mesinha. Meus dois guardas de quarto observavam, estupefatos,
como se tivessem estado meio adormecidos.
—Posso fazer algo? - disse um.
—Sim - disse Carmichael. —Se mova!
Ela o empurrou fora do caminho com o carrinho quebrado e o tirou pela porta. Saí da cama e a
segui, minha sonolência me voltando valente ou estúpida. De qualquer maneira, era o movimento
correto. Carmichael não notou que a seguia. Quando ela estava assim de preocupada, eu tinha que
apunhalá-la com um escalpelo para atrair sua atenção. Os guardas não disseram nada tampouco, talvez
assumindo que eu agora era a ajudante de Carmichael em todos os assuntos e, se ela não me
necessitasse, me teria detido ela mesma.
Quando os guardas e eu chegamos ao elevador, as portas se fechavam detrás do Carmichael.
Esperamos e subimos quando voltou. Esperava que nos dirigíssemos à superfície. Não houve essa sorte.
Baixamos. Às celas.
—O que passou? - Perguntei.
Os três guardas me ignoraram. O quarto me pagou a cortesia com um encolhimento de ombros e
murmurou — Já veremos. Quando o elevador se abriu no nível inferior, os guardas recordaram seu
trabalho e me rodearam enquanto avançávamos pelo corredor. Uma vez transpassada a porta de
segurança, ouvi a voz de Savannah.
—Faça algo! Apresse-se!
A porta da cela da Ruth e Savannah estava aberta, deixando que vozes se pulverizassem pelo
corredor.
—Se acalme, Savannah - disse Matasumi. —Necessito que os guardas me expliquem o que
aconteceu.
Estremeci-me. Outro acidente com os guardas? Tão logo? Agora Ruth e Savannah seriam
separadas definitivamente. Tratei de me apressar, mas os guardas me bloquearam o caminho e me
fizeram ir mais lento.
—Não fiz nada! - gritou Savannah.
—É obvio que não o fez - bufou Carmichael. —Agora fora do caminho. Todos vocês.
—Não há nenhuma necessidade de toda esta equipe - disse Matasumi. —Não havia nenhum
sinal de vida quando cheguei. É muito tarde.
—Eu direi quando for muito tarde - disse Carmichael.
Nenhum sinal de vida? Parecia mal. Quando entrei no quarto, Savannah se lançou sobre mim.
Reflexivamente, minhas mãos voaram para rechaçar um ataque, mas pôs seus braços ao redor de
minha cintura.
—Não fiz nada! - disse.
—Sei - murmurei. —Sei.
Toquei sua cabeça torpemente e a acariciei, esperando não estar acariciando-a como a um cão.
Consolar meninos afligidos não era uma de minhas qualidades. Realmente, podia dizer com um pouco
de certeza que era algo que nunca me havia feito antes em minha vida. Revisei o quarto procurando a
Ruth. A cela estava cheia até transbordar. Carmichael e três guardas se encurvavam sobre a cama
enquanto a doutora trabalhava em uma figura deitada. Os quatro guardas que me tinham
acompanhado se apinharam para uma melhor visual, empurrando a Savannah e a mim à esquina. Estirei
o pescoço para ver sobre suas cabeças.
—Onde está Ruth? - Perguntei.
Savannah ficou rígida, logo se tornou atrás. Meu estômago se apertou. Olhei a cama. Carmichael
e os três guardas ainda bloqueavam minha vista, mas podia ver uma mão pendendo pelo flanco da
cama. Uma mão pequena, rechonchuda, manchada.
—Oh não - sussurrei.
Savannah se afastou —Eu não o fiz.
—É obvio que não - disse, atraindo-a e rezando para que não tivesse visto minha reação inicial.
Matasumi se aproximou dos quatro guardas que tinham baixado comigo — Quero saber o que
aconteceu.
—Chegamos logo depois - disse um. Fez gestos para os guardas que rodeavam a cama. —Eles
chegaram à cena em primeiro lugar.
Matasumi vacilou, logo avançou para a cama e tocou o braço de um guarda. Quando o guarda se
voltou, armou-se um escândalo no vestíbulo. Dois guardas mais entraram, arma na mão.
—Por favor! - disse Matasumi. —Não pedimos reforços. Voltem para suas posições.
Antes que pudessem mover-se, outro guarda entrou, acompanhado pela Leah.
—Que - resmungou Matasumi. Deteve-se e recuperou a calma com um rápido fôlego. —Por que
está a Sra. Ou'Donnell aqui?
—Quando passei diante de sua cela, notei que estava completamente agitada - disse o jovem
guarda, rastros de cor aparecendo em suas bochechas. —Usei o intercomunicador para me informar e
isso e – perguntou se podia ver o que acontecia.
—Você não pode liberar a nenhum sujeito de uma cela. Nunca. Devolva-a imediatamente.
Leah empurrou e passou por diante Matasumi, ladeando ao grupo até que chegou ao lado da
cama. Quando viu a Ruth, ofegou e girou para confrontar a Savannah e a mim.
—Oh - disse ela, suas mãos voando a sua boca, seus olhos se fixaram no Savannah. —O sinto
tanto. — O que aconteceu?
—Estive-o perguntando durante os últimos dez minutos - disse Matasumi.
O guarda que ele tinha chamado da cama se aproximou. —Eu passava fazendo minhas rondas e
vi a velha, digo, a senhora Winterbourne em sua cama. A menina se inclinava sobre ela. Pensei que algo
estava mau, como essa vez que ela tinha tido um ataque cardíaco, então meu companheiro e eu
abrimos a porta. Encontramos o relógio no chão. Havia sangue salpicado nele. O crânio da senhorita
Winterbourne estava golpeado.
Savannah se esticou em meus braços, seu coração palpitando.
—Oh, pobrezinha - disse Leah, apressando-se para nós. —Que acidente tão horrível.
—Não... não fui eu - disse Savannah.
—O que fosse que aconteceu, não é sua culpa, carinho.
Leah estendeu sua mão para a Savannah. A moça vacilou, ainda agarrando-se a mim. Depois de
um momento, ela alcançou a mão de Leah e a sustentou apertada, seu braço livre ainda ao redor de
mim. Um brilho de desilusão cruzou a cara de Leah. Então ela assentiu com a cabeça, como se
compreendesse que isto não era uma competição de popularidade. Leah apertou a mão de Savannah
e lhe acariciou a cabeça.
Depois de um momento, Leah se virou para o grupo que rodeava a cama. Esclareceu sua garganta
e disse em voz alta, — Posso levar a Savannah a minha cela? Ela não deveria estar aqui.
Carmichael levantou a vista de seu trabalho, o suor derramando-se por sua ampla cara.
—O que faz ela aqui? - disse, agitando sua mão para Leah. —Levem-na a sua cela.
Os guardas saltaram para obedecer, tal como não tinham feito para ouvir o Matasumi. Dois
empurraram a Leah. Savannah a olhou ir com tal tristeza que quis implorar ao Carmichael para que
permitisse a Leah ficar, mas temi que se o fizesse, seria arremesso também. Savannah necessitava a
alguém. Enquanto Leah teria sido preferível, Savannah teria que arrumar-se com um lobisomem
feminino não muito empático. Quando Leah se foi, Savannah se desinflou e se apoiou contra mim.
Esteve tranquila durante vários minutos, logo ela jogou uma olhada ao redor aos outros. Todos estavam
ocupados com a Ruth.
—Acredito - sussurrou ela.
Ficou mais perto. Pus uma mão em seu ombro e ela se apertou contra mim. Acariciei-lhe as
costas e murmurei ruídos que esperava parecessem consoladores. Pareceu tranquilizar-se,
provavelmente não devido ao consolo que lhe oferecia, mas sim porque me via como sua única aliada
em um quarto cheio de inimigos. Depois de um minuto, elevou a vista para mim.
—Penso - sussurrou outra vez — penso que eu poderia havê-lo feito.
—Você não poderia… - comecei.
—Eu não dormia. Pensava em coisas, coisas que Ruth me disse. Minhas lições. Então o vi. O
relógio. Voou - como o prato com para o guarda. Acredito que o fiz. Não estou segura como, mas
acredito que o fiz.
O impulso de negar sua culpabilidade saltou a meus lábios, mas o joguei atrás. O olhar em sua
cara não era a de uma menina que pede ser consolada com mentiras bem intencionadas. Ela sabia a
verdade e confiava em mim com ela.
—Se o fez, não foi sua culpa - disse. —Sei isso.
Savannah assentiu com a cabeça, secou as lágrimas, e apoiou sua cabeça contra meu peito.
Estivemos de pé assim, sem falar, por ao menos cinco minutos. Então Carmichael se afastou da cama.
Todos detiveram o que faziam. O único som no quarto era o passo ligeiro do coração do Savannah.
—Hora de morte - começou Carmichael.
Levantou seu braço, mas não devia haver ficado o relógio quando saiu a toda pressa da cama.
Durante um comprido momento, contemplou sua boneca, como se esperasse que algum relógio
mágico aparecesse. Então deixou cair a mão, fechou os olhos, exalou, e saiu da cela.
Tinha terminado.

MUDANÇAS
Uma vez que tudo se acalmou, Matasumi se deu conta de que eu estava ali. É obvio, tinha-me
visto antes, mas não tinha compreendido o que isto significava, ou seja, que eu estava em um lugar no
que definitivamente não deveria ter estado. Mandou-me de volta ao hospital com quatro dos guardas
restantes.
Passei as poucas horas seguintes atirada em minha cama, contemplando as luzes piscando das
máquinas de Bauer. Ruth estava morta. Poderia ter feito algo para acautelar isto? Deveria ter feito
algo? Ela conhecia os riscos. Isso não me fazia sentir melhor. Agora estava morta e Savannah se culpava.
Deveria haver devotado mais consolo a Savannah. Deveria ter conhecido os gestos corretos, as palavras
corretas. A morte da Ruth seria um ponto decisivo em sua vida, e tudo o que eu tinha sido capaz de dar
era o mais torpe dos consolos. Não deveria ter sido capaz de encontrar algum instinto maternal
profundamente enraizado e ter sabido o que fazer?
É obvio, Savannah não tinha tido a intenção de matar a Ruth. Mas o tinha feito? Assim o temia.
Mais que isso, temia que não tivesse sido um acidente. Não, não acreditava que Savannah tivesse
arrojado esse relógio voando a propósito. Absolutamente não. Sua dor pela morte da Ruth tinha sido
muito cru, muito verdadeiro. Ainda assim, eu temia que alguma parte inconsciente do Savannah tivesse
matado a Ruth, que algo em sua natureza, em seus genes, algo que ela não podia entender, tivesse-a
feito atacar inconscientemente a esses guardas e matar a Ruth. Talvez tinha visto muitas filmes de
terror de “meninos demoníacos”. Esperava que fosse isso. Rezei para que o fosse. Eu gostava de
Savannah. Tinha espírito e inteligência, uma mescla simpática de inocência infantil e réplicas de pré-
adolescente. Era uma menina normal, parte anjo e parte demônio. Certamente não havia mais nisso
que isto. Mas os acontecimentos psíquicos giravam ao redor de Savannah. Quando Ruth tinha treinado
a Savannah, os acontecimentos se intensificaram rapidamente de ser inócuos a letais. O que havia dito
Ruth sobre Savannah? Grande poder, potencial incrível... e uma mãe que se inclinava para “o lado mais
escuro” da magia. Existia algo como uma predisposição genética ao mal? Tinha-o passado por cima
Ruth? Tinha rechaçado ver um pouco de maldade em alguém tão jovem? Dando mais poder a
Savannah, tinha assinado sua própria sentença de morte? Por favor, façam que me equivoque. Pelo
bem de Savannah, façam que me equivoque.

***

Com a manhã veio o café da manhã. Não o toquei. Carmichael chegou à hora habitual, pouco
antes das oito, com um brusco — Como está? - A única indicação de que algo tinha passado a noite
anterior. Quando disse que estava bem, estudou-me durante um segundo mais, grunhiu, e começou
seu trabalho de escrever.
Passei parte da manhã pensando extensamente na morte da Ruth, em como isto trocava as
coisas, como poderia havê-lo prevenido. Passei muito tempo nisto último. Talvez não pudesse havê-lo
feito. A vida e a morte estavam além de nosso controle. Em qualquer momento, Matasumi poderia ter
decidido que Ruth já não era um sujeito viável ou Winsloe poderia ter entrado em sua cela e havê-la
levado para uma de suas caças. De todos os modos, levava sobre meus ombros parte da culpa, talvez
porque isto me dava algum sentido de controle em uma situação incontrolável.
Ao redor de meio amanhã um gemido suave despertou de meus pensamentos. Joguei uma
olhada. Bauer gemeu outra vez. Enterrou a cabeça no travesseiro, retorcendo a cara de dor.
—Doutora? - respondi, me parando. —Está despertando.
Enquanto Carmichael avançava, inclinei-me sobre Bauer. Seus olhos se abriram.
—Olá, Sondra - disse. —Nós…
Sentou-se, rompendo algumas das finas cadeias, e golpeou meu ombro. Quando retrocedi,
capturei o olhar de Bauer, vendo algo duro e em branco ali. Antes que pudesse reagir, ela agarrou meus
ombros e me jogou pelo ar. Durante um momento, tudo se abrandou, e houve uma fração de segundo
em que fiquei suspensa antes que a gravidade assumisse seu lugar e me precipitasse através do quarto
e me chocasse contra a parede.
Carmichael me ajudou a parar e gritou, chamando os guardas. Bauer se sentou direita, lutando
para sair da cama, os lençóis enroscados ao redor de suas pernas. Sua cara estava torcida de raiva, seus
olhos estavam em branco, seus lábios se moviam silenciosamente. Quando os lençóis não a deixaram
sair, rugiu de frustração e sacudiu suas pernas, rasgando o tecido. Corri para a cama e me lancei sobre
e Bauer.
—Mantenha suas ferradas algemas longe de mim! - rugiu Bauer. —Todos vocês! Atrás! Não me
toquem!
—Delírio - ofegou Carmichael enquanto corria à cama com cadeias mais fortes. —Disse que este
era um dos passos.
—Correto - respondi, embora neste momento, estando em cima de Bauer com ela agitando-se
debaixo mim, um diagnóstico médico não era exatamente uma prioridade. —Onde infernos estavam
os guardas?
Os guardas estavam aí mesmo, fazendo o que faziam melhor, sustentar suas armas e esperar o
sinal para disparar. Carmichael lhes lançou as cadeias.
—Atem-na! - disse. —Agora!
Antes que pudessem mover-se, Bauer resistiu e me lançou voando de novo. Esta vez fiquei o
chão um momento mais para recuperar o fôlego. Deixei que os malditos guardas o dirigissem. Deixei
que Carmichael o dirigisse. Ela era a que tinha rechaçado reter corretamente a Bauer.
Bauer deixou de lutar e ficou quieta como uma estátua. Os quatro guardas rodearam a cama,
tensos, cadeias em mão, pareciam oficiais de controle de animais esperando para lançar uma rede a
um cão raivoso, sem que nenhum queria fazer o primeiro movimento. Suor gotejava pela cara de Bauer
e sua boca pendurava aberta, ofegante. Moveu a cabeça de um lado ao outro, seus olhos revisando o
quarto. Selvagem e em branco, passaram dos guardas, a mim, logo ao Carmichael. Detiveram-se em
um ponto vazio a sua esquerda, e investiu para frente, contida só pelos lençóis rasgados.
—Fora daqui! - gritou.
Ninguém estava ali.
Avancei lentamente, mantendo meus movimentos cuidadosos como se tratasse de evitar que
um animal selvagem me notasse.
—Temos que retê-la - sussurrei.
Ninguém se moveu.
—Me dê esses - disse Carmichael, avançando para arrebatar as cadeias do guarda mais próximo.
—Não - disse. —Deixa-os fazê-lo. Aproximar-me-ei e interferirei se ela atacar. Tenha um sedativo
preparado e mantenha apartada.
Oh, seguro, me dando o trabalho que ameaça a vida. E para que? Ninguém o notaria. Ninguém
se preocuparia. De todos os modos, o trabalho tinha que ser feito. Se eu não o fizesse, um destes
estúpidos dispararia sua pistola ao primeiro sinal de problemas. Então onde ficariam meus projetos?
Mortos e sepultados com Bauer.
Carmichael se girou para os guardas — Esperem até que Elena esteja ao lado da cama. Então
movam-se rapidamente, mas com cuidado. Sondra não sabe o que faz. Não queremos lhe fazer dano.
O qual, é obvio, era mais fácil de dizer que de fazer. Enquanto me arrastava através do quarto,
Bauer se mantinha quieta, olhando fixamente e blasfemando contra intrusos invisíveis. No momento
em que os guardas a tocaram, explodiu, reunindo força inesperada do delírio. Todos trabalhando juntos
logo que podíamos lutar com ela para mantê-la na cama.
Uma vez que Bauer esteve controlada, ajudei ao guarda mais próximo a sujeitar suas cadeias.
Enquanto meus dedos trabalhavam nos broches, o braço de Bauer pareceu brilhar e contrair-se. Sacudi
minha cabeça bruscamente, sentindo a dor dentro dela como um carvão candente. Minha visão se
rabiscou.
—Elena? - Carmichael grunhiu enquanto lutava para atar o outro braço de Bauer.
—Estou bem.
Quando trabalhei no nó, o braço de Bauer convulsionou, o pulso se estreitou, a mão se enroscou
e se torceu em um nó. Não tinha sido uma brincadeira de meus olhos. Estava mudando.
—Elena!
Quando ouvi o grito de Carmichael, saltei. A mão de Bauer voou de suas cadeias e rasgou o
espaço vazio onde minha garganta tinha estado. Os dedos aplaudidos e as garras disformes se
balançaram através do ar. Lancei-me sobre o peito de Bauer quando ficou direita outra vez.
Um grunhido de raiva fez erupção e me afastou de um empurrão. Com ambas as mãos livres
agora, Bauer agarrou um guarda e o lançou através do quarto. Ele paralisou, inconsciente, contra a
parede. As costas de Bauer se sacudiram e torceram, grandes massas movendo-se sob a pele. Ela uivou
e caiu de lado.
—Sede-a! - Gritei.
—Mas disse… - começou Carmichael.
—É muito logo! Não está preparada! Seda-a! Agora!
O cabelo brotou das costas de Bauer e de seus ombros. Os ossos se alargaram e se cortaram, e
ela lançou um grito, meio uivo, meio gemido. Seu corpo inteiro convulsionou, saltando da cama, comigo
ainda agarrada a ela. Sua cara era irreconhecível, uma máscara infernal de músculos retorcidos que não
eram nem de lobo, nem de humano. As presas se sobressaíam sobre seus lábios. O nariz se deteve a
metade de caminho na transformação a lobo. O cabelo brotava em penachos. Logo, os olhos. Os olhos
de Bauer. Não tinham trocado, mas se inchavam e punham em branco, a agonia flamejando em ondas.
Ela encontrou meu olhar, e durante um segundo vi o reconhecimento. Alguma parte dela tinha passado
do delírio e estava consciente, apanhada nesse inferno.
Carmichael cravou a seringa de injeção no braço de Bauer. Bauer voou e pendurou ali, comigo
sobre seu regaço. Seu corpo se sacudiu várias vezes, logo soltou um fôlego baixo, e seus olhos se
alargaram como se estivesse surpreendida. Piscou uma vez. Logo se deslizou para baixo na cama.
Estiquei-me, esperando o seguinte round; então a mudança pôs marcha atrás. Esta vez não
houve nenhuma violência ou dor na transformação. Ela voltou pacificamente para a forma humana.
Quando foi totalmente humana outra vez, curvou-se em posição semifetal e dormiu.

***

Armem fez outra visita ao hospital. Ontem tinha sido sua verificação regular. Hoje fingiu uma dor
de cabeça de enxaqueca com tal delicadeza que nem sequer Carmichael duvidou de seus sintomas,
embora supusesse que não era surpreendente, considerando que ele era psiquiatra e, portanto tinha
um grau médico. Retomamos nossa conversação onde tínhamos acabado. Ele tinha um plano para
escapar que implicava outra astúcia médica, de modo que o trouxessem até o primeiro piso comigo, de
onde era muito mais fácil escapar que do bem assegurado bloco de celas. Novamente, ele introduziu
isto em tal bate-papo ordinário que tive que manter meu próprio cérebro alerta para me manter à
corrente da interpretação subjacente.
Quanto mais falava com Armem, mais visualizava meu estratagema com Bauer como um plano
de reserva. Armem era um aliado muito mais de meu gosto. Primeiro, estava consciente, que era uma
vantagem definida sobre a comatosa Bauer. Segundo, recordava ao Jeremy, o qual aumentava meu
nível de comodidade em dez vezes. Era tranquilo, cortês e aprazível, um exterior modesto que
disfarçava uma vontade forte e uma mente muito afiada, alguém que tomava a carga por instinto, o
que atenuava esse autoritarismo com graça e engenho e me permitia deixar tomar a dianteira. Confiava
em Armem e eu gostava. Uma combinação ideal.

***

O resto do dia passou tranquilamente, mas a noite o compensou, me incomodando com sonhos
estranhos e inquietantes. Comecei a noite no Stonehaven, jogando na neve com o Clay e Nick.
Estávamos em meio de uma luta de bolas de neve quando um novo sonho cobriu aquele, cortando a
programação de forma parecida com uma emissora de rádio. No outro sonho, jazia na cama enquanto
Paige tentava ficar em contato comigo. Os dois sonhos se reuniam: Um minuto eu sentia a neve gelada
gotejando por meu pescoço, ao seguinte eu ouvia a Paige me invocando. Alguma parte de mim escolheu
o sonho das bolas de neve e tratou de bloquear o outro, mas isto não funcionou. Voei por cima das
duas últimas bolas de neve do Nick, logo uma onda de neve me inundou, tragando esse sonho e me
lançando no outro.
—Elena? Maldição, me responda!
Lutei por voltar para meus jogos de inverno, mas em vão. Estava pega no sonho de Paige.
Maravilhoso.
—Elena. Vamos. Acorda.
Inclusive em meu sonho, não queria responder, como se eu soubesse que imaginar falando com
a Paige só me deprimiria mais, me recordando que tinha estado fora de contato durante três dias, uma
situação que agora parecia permanente.
—Elena?
Resmunguei algo ininteligível inclusive para mim.
—Ah ah! Está ali. Bom. Espera. Vou trazer-te para meu corpo. Deve estar advertida esta vez.
Jeremy está aqui. Agora, à conta de três. Um, dois, três, ta-da!
Cinco segundos de silêncio. Então,
—Oh, merda.
A maldição do Paige decaiu detrás de mim quando caí através de pedaços de sonhos, como
alguém que trocava de canais, rechaçando o passar o tempo suficiente para ver o que estava conectado.
Quando isto se deteve, eu era um lobo. Não tinha que lombriga; podia senti-lo na forma em que meus
músculos se moviam, o ritmo perfeito de cada grande passo. Alguém correu diante de mim, uma forma
que vacilava através das árvores. Outro lobo. Sabia isto, embora não pudesse me aproximar mais que
o suficiente para ver a sombra e o movimento impreciso. Embora eu fora o perseguidor, não o
acossado, o medo me atravessava. A quem perseguia? Clay. Tinha que ser Clay. Esse grau de pânico, de
medo cego, o medo à perda e o abandono - eu só poderia associá-lo com o Clay. Ele estava ali, em
algum lugar, diante de mim, e eu não podia apanhá-lo. Cada vez que minhas patas golpeavam a terra,
um nome se repetia em meu crânio, um grito mental. Mas não era o nome do Clay. Era o meu próprio,
repetido milhares de vezes, pulsados que emparelhavam com o ritmo de minhas pernas. Jogando uma
olhada para baixo, obtive uma visão de minhas patas. Não eram minhas patas. Muito grandes, muito
escuras – um loiro quase dourado. As patas do Clay. Diante uma cauda parecida com um arbusto
cintilava à luz da lua. Uma cauda loira. Perseguia-me mesma.
Comecei a despertar e a me pôr direita na cama. Inclinando-me para frente, o peito pesado,
passei minhas mãos por meu cabelo, mas não era meu cabelo, não um enredo comprido e enredado, a
não ser uns cachos rapados. Deixei cair minhas mãos a meu regaço e as contemplei. Mãos grossas,
quadradas, unhas cortadas até o final. As mãos de um trabalhador, embora raramente dirigiam um
instrumento maior que uma pluma. Não calejadas, mas tampouco suaves. Ossos quebrados mais vezes
das que poderia contar, cada vez meticulosamente recuperadas, surgindo sem desastres exceto um
mapa de cicatrizes. Eu conhecia cada uma dessas cicatrizes. Podia recordar noites sem poder dormir,
perguntando, onde te fez esta? E esta? E-ups, eu te fiz esta.
Uma porta se abriu.
—Não funcionou, verdade? - a voz lenta e zangada do Clay, não da entrada, a não ser aqui, da
cama.
Jeremy fechou a porta detrás dele — Não, Paige não foi capaz de entrar em contato. Acreditou
havê-lo feito, mas algo saiu mal.
—E nos assombramos disso. Você confia a vida da Elena a um aprendiz de bruxa de vinte e dois
anos. Sabia isso, verdade?
—Sei que quero usar qualquer instrumento possível para encontrar a Elena. Agora mesmo, essa
aprendiz de bruxa é nossa melhor esperança.
—Não, não o é. Há outro caminho. Eu. Posso encontrar Elena. Mas você não o acredita.
—Se Paige for incapaz de restabelecer o contato…
—Maldita seja!- Clay agarrou um livro da mesinha de noite e o lançou através do quarto,
golpeando a parede longínqua.
Jeremy fez uma pausa, logo continuou, sua voz tão tranquila como sempre — vou trazer te algo
para beber, Clayton.
—Quer dizer que vais sedar-me de novo. Sedar-me, me calar, me manter tranquilo, e acalmado,
enquanto Elena está ali sozinha. Não acreditei que estivesse conversando através do Paige e agora ela
se foi. Não me diga que não é minha culpa.
Jeremy não disse nada.
—Muito obrigado - disse Clay.
—Sim, é culpado de que tenhamos perdido o contato essa vez, embora isso provavelmente não
explique por que não podemos nos pôr em contato de novo com ela. Seguiremos tentando-o. Enquanto
isso, possivelmente possamos falar desta outra tua idéia pela manhã. Vêem ver-me se mudar de opinião
sobre essa bebida. Ajudar-te-á a dormir.
Quando Jeremy partiu, o sonho se evaporou. Movi-me e girei, de volta na incrível mudança de
canais. Estalo, estalo, estalo, pedaços de sonhos e lembranças, muito dispersos para ter algum sentido.
Logo escuridão. Um golpe na porta. Estava sentada frente a um escritório, estudando minuciosamente
um mapa. A porta estava detrás de mim. Tratei de me dar volta ou gritar uma saudação. Em vez disso,
senti meu movimento de lápis arranhando umas palavras em uma caderneta. Olhei a escritura e, sem
me surpreender, reconheci os ganchos de ferro do Clay.
O quarto se confundiu, ameaçando voltando-se escuro. Algo atirou de mim com k suave
insistência da maré, tomando para me apartar. Lutei contra isso. Eu gostava onde estava, muito
obrigado. Este era um bom lugar, um lugar confortador. Só sentir a presença do Clay me fazia feliz, e
maldição, merecia um pouco da felicidade, ilusória ou não. A maré se voltou mais forte, inchando-se
até ser uma ressaca. O quarto ficou negro. Fiquei livre e me encontrei de volta no corpo do Clay. Ele
tinha deixado de escrever agora e estudava um mapa. Um mapa do que? Alguém chamou outra vez à
porta. Ele não respondeu. Atrás dele, a porta se abriu, logo se fechou.
—Clayton - A voz da Cassandra, suave como a manteiga.
Ele não respondeu.
—Um grunhido de saudação bastaria - murmurou ela.
—Isso implicaria boas-vindas. Não precisa ser convidada a um quarto?
—Sinto muito. Outro mito que se vai ao diabo.
—Sinta-se liberada para continuar.
Cassandra riu entre dentes — Vejo que Jeremy herdou todas as maneiras da família Danvers.
Não é que me importe. Eu sempre preferi a honestidade à cortesia mentirosa - Sua voz se aproximou
quando cruzou o quarto. —Notei sua luz presa e pensei que poderia te gostar de te unir a mim para
uma bebida.
—Eu adoraria, mas temo que não compartilhamos os mesmos gostos em fluídos.
—Poderia ao menos me olhar enquanto me rechaça?
Nenhuma resposta.
—Ou teme me olhar?
Clay deu a volta e encontrou seus olhos — Ali. Vai a incomodar a outra parte, Cassandra. O que
é isso?
—Ela não voltará, já sabe.
A mão do Clay se apertou ao redor do lápis, mas ele não disse nada.
Senti que atiravam de meus pés outra vez e lutei contra isso. Em algum lugar em minha cabeça,
Paige gritou meu nome. A ressaca se levantou, mas me sustentei firme. Esta era uma cena que eu
definitivamente não deixaria.
—Eles não a encontrarão - disse Cassandra.
—Segundo você, deveríamos deixar de tentá-lo.
—Só quero dizer que isto é um desperdício de nosso tempo. Melhor concentramos nossos
esforços em deter esta gente. Salvar nossas vidas, não só a da Elena. Se, detendo-os a resgatamos,
maravilhoso. Se não o fizermos... logo que é o fim do mundo.
O lápis se rompeu entre os dedos do Clay. Cassandra se aproximou mais. Quando a ressaca
ameaçou outra vez, chutei e lutei com toda minha força.
Cassandra deu ainda outro passo para o Clay. Senti-o esticar-se e começar a retroceder, deter-
se logo e ficar quieto.
—Sim, a ama - disse Cassandra. —Posso vê-lo e o admiro. Realmente o faço. Mas sabe a quantos
homens amei em todos estes anos? Amei apaixonadamente? E daqueles homens, sabe quão poucos
nomes recordo? Quão poucos rostos?
—Vai embora.
—Peço-te que tome uma bebida comigo. Uma bebida. Nada mais.
—Respondi, vai embora.
Cassandra só sorriu e sacudiu sua cabeça. Seus olhos brilharam agora com o mesmo olhar que
eu a tinha visto dar ao garçom no restaurante, só que mais forte. Mais faminta. Seus dedos roçaram o
antebraço do Clay. Quis gritar para que ele olhasse longe, mas estava impotente de fazer nada, menos
olhar e esperar.
—Não faça essa merda, Cassandra - disse Clay. —Isso não funciona em mim.
—Não?
—Não.
Clay olhou a Cassandra diretamente aos olhos. Ela estava completamente imóvel, só seus olhos
se moviam, brilhando cada vez mais enquanto o contemplava. Vários minutos passaram. Então Clay
avançou para a Cassandra. Seus lábios se torceram em um sorriso triunfante. Meu coração se deteve.
—Vai embora, Cassandra - disse Clay, seu rosto a só polegadas do dela. —Dez segundos ou te
lançarei fora.
—Não me ameace, Clayton.
—Ou fará o que? Morder-me? Acredita que pode afundar seus dentes em mim antes que eu te
arranque a cabeça? Ouvi que é uma boa cura para a imortalidade. Cinco segundos, Cassandra. Cinco...
quatro...
A cena se voltou negra. Não confusa, não me atirava. Só se deteve repentinamente. Pisquei. A
luz áspera me cegou. Apertei os olhos. Através das pálpebras, vi uma luz oscilar ao longe. Uns dedos
agarraram meu ombro e me sacudiram.
—Te levante e desperta dorminhoca.
Uma voz. Infelizmente, não era a voz do Clay. Tampouco a da Cassandra. Nem sequer a de Paige.
Era pior. Dez vezes pior. Ty Winsloe. De sonhos agradáveis a visões inquietantes, para chegar a
absolutos pesadelos. Apertei com força meus olhos.
—O que pensam, meninos? - disse Winsloe. —Necessita nossa beleza adormecido um beijo para
despertá-la? É obvio, no conto de fadas original, ela necessitava mais que um beijo...
Meus olhos se abriram e me pus direita. Winsloe riu e aproximou uma lanterna a minha cara,
logo a soltou sobre meu corpo.
—Sempre dorme com a roupa colocada? - perguntou.
—Esta não é exatamente uma suíte privada - respondi, grunhindo um bocejo. —Que horas são?
—As três passadas. Necessitamos sua ajuda. Houve um problema.
Sentei-me no bordo do berço, piscando, com meu cérebro lutando para deixar atrás as visões do
Clay e Cassandra. As três? Da manhã? Problema? Queria dizer que alguém se escapou? Quem? Por que
necessitavam minha ajuda? Houve um acidente? Carmichael me necessitava?
—Né? - Respondi. Bem pelas perguntas inteligentes e articuladas. O que esperam às três da
manhã?
Winsloe me tirou da cama — Te explicarei pelo caminho.

SABUJO
Armem tinha escapado. Quando Winsloe me disse isso, engasguei-me, e durante um comprido
momento não pude respirar. Armem se tinha escapado... sem mim. Escarranchado de meu pânico veio
um brilho de dano, logo a compreensão de que a Armem deveu haver lhe apresentado uma
oportunidade que não pôde ignorar. Podia culpá-lo? É obvio que não, embora isto não fazia melhor as
coisas. Meu sócio de fuga se foi, levando-se nosso plano com ele. Pior ainda, Winsloe queria que eu o
detivesse.
—Quer que eu o detecte? - respondi.
—Isso é o que falei. Usa seu nariz. Rastreia seu aroma.
—Como um sabujo.
Winsloe me jogou uma olhada bruscamente para ouvir meu tom. —Sim, como um sabujo. É um
problema?
É obvio que era um problema. Eu era uma pessoa, não um animal, não uma atração secundária.
Não realizava espetáculos para a diversão de ninguém. Queria dizê-lo, mas o fio da voz do Winsloe me
impediu de desafiá-lo. Não tive guelra. Ou, mais exatamente, meu instinto de autoconservação era
muito forte. Recordei a reação do Winsloe quando lhe tinha dado uma palmada na mão para afastá-lo
na ducha e sabia que não podia me permitir outro espetáculo de desafio. Isto não significava que eu
trairia a Armem. Devia rastreá-lo, mas não tinha que encontrá-lo.
Ladeada pelos guardas, segui ao Winsloe escada abaixo para o bloco de celas. Dois guardas mais
esperavam para fora da cela de Armem. Dentro, Tucker se ajoelhava ao lado de um guarda, que estava
sentado no chão, massageando a cabeça. O guarda parecia familiar, mas não podia lhe pôr um nome.
A única vez em que me incomodei em notar o nome de um guarda foi quando tinha feito algo para
distinguir-se de outros. A maioria não o fazia.
—Averiguou o que aconteceu? - perguntou Winsloe, com uma voz que implicava que lhe
importava bem pouco o que tinha passado, ele só queria seguir com a caça.
—Parece que Haig fez uma arma - disse Tucker. —Algo afiado, como uma faca. Causou um
escândalo quando meus homens faziam suas rondas, logo atirou a arma contra eles quando abriram a
porta. Deixou inconsciente ao Ryman. Deve ter levado ao Jolliffe como refém. Ryman está bem, mas
deveríamos nos mover se queremos recuperar ao Jolliffe vivo. Teremos que rastreá-lo. Enviei Pendecki
para trazer um rastreador…
—Não há necessidade - interrompeu Winsloe. —Tenho um rastreador de categoria mundial aqui
mesmo.
Tucker me olhou e franziu o cenho. —Já há um de meus homens aí, senhor. Com o devido
respeito, não acredito que devamos perder o tempo…
—Perder o tempo?
A mandíbula do Tucker fez clique como se engasgou. —Não o quis dizer desse modo... senhor.
Estou preocupado sobre…
—É obvio que o está. Também eu. Por isso trouxe a Elena. Ryman, Sente-se bem para te unir a
nós?
Ryman ficou de pé. —Sim, senhor.
—Acredito… - começou Tucker.
—Não acredita - cortou Winsloe. —Não é isso para o que te pago. Vamos, Ryman; veremos se
podemos apanhar a esse bastardo. Talvez obtenhamos um pequeno pagamento para esse ovo de ganso
em sua cabeça.

***

Fora do complexo, Winsloe despachou dois dos guardas que me acompanhavam, deixando só
ao ferido Ryman. Perguntei-me com respeito a isto, sabia que não era um bom sinal, mas ainda estava
muito drogada pelo sonho para dar sentido a isso. Outros pensamentos obstruíam meu cansado
cérebro. Armem se tinha feito uma arma? Ele tinha atacado um guarda? Tinha-o golpeado até deixá-lo
inconsciente? Era mesmo Armem que tinha estado pensando em mim para proporcionar a força bruta
para uma fuga?
Enquanto dirigíamos aos bosques, alguém gritou — Hey! - atrás de nós. Ryman virou, sua arma
em posição, seus reflexos não estavam sendo obstaculizados por nenhum efeito persistente de sua
ferida na cabeça. Não havia ninguém ali. O mato morta chispou adiante, e giramos para ver o Xavier a
vinte pés de distância.
—Lento, soldado - disse Xavier, suas mãos acima. —Não dispare aos aliados.
—Deveria - resmungou Ryman. —Ensinar-te uma lição.
—O que está passando? - perguntou Xavier, avançando para nós. —Ouvi que Haig fugiu.
Realizaremos o espetáculo de procurar-e-resgatar? Ou o espetáculo de procurar-e-destruir? - viu-me e
se deteve. —Wow, quem tirou a garota-lobo de sua jaula?
Franzi o cenho para ele. Ele deu um passo rápido ao lado, como se esquivasse meu olhar
deslumbrante, então voltou atrás Sorrindo abertamente.
—É um olhar letal o que temos aqui. Mais mortal que as balas do Ryman - se voltou para o
Winsloe. —Então, qual é o trato? Diversão e momento de jogos? Posso jogar?
—Talvez da próxima vez - disse Winsloe.
—Oh, vamos. Não seja desmancha-prazeres. Quero jogar.
—Sim? - disse Ryman. —E queria ser o objeto de prática?
Winsloe gesticulou para o Ryman para fazê-lo calar. —É suficiente. Volta para dentro, Reese. Já
o disse, a próxima vez.
—Bem - Xavier pôs os olhos em branco, logo desapareceu. Obviamente alguém mais que
entendia o suficiente para não pressionar ao Winsloe.
—Estamos ainda sobre a pista, Elena? - perguntou Winsloe.
—Hmmm? Oh, sim - Cheirei o ar. —Sim, Ar-Haig esteve aqui. Com alguém mais.
—Jolliffe - disse Winsloe. —Bem. Tucker estará contente. Vê adiante, então. Ryman, fique detrás
dela.
Dirigimos aos bosques.

***

—Está segura que este é o caminho? - perguntou Winsloe dez minutos mais tarde.
Não o estava. Tinha-me afastado do verdadeiro caminho de Armem dez metros antes. Winsloe
apontou sua lanterna a minha cara. Traguei uma resposta rápida e fiz o espetáculo de cheirar o ar. Pela
extremidade do olho, olhei-o, calibrando sua credulidade, e decidi provar a água antes de fazer um
salto potencialmente fatal.
—Pensei que o estava - respondi devagar. —O rastro parecia seguir este caminho.
—O mato parece bastante denso - disse Winsloe.
De verdade? Me parecia passável, mas talvez olhava como lobo, não como um humano em
pânico correndo por sua vida, com um refém a reboque. Pus-me de coque e inalei perto da terra. Atrás
de mim, Ryman riu dissimuladamente.
—Tem razão - disse. —Não vieram por este caminho. Devo ter estado apanhando seu aroma na
brisa. Melhor voltar sobre nossos passos.
—Talvez deveria ficar a gatas - disse Ryman. —Mantém seu nariz no rastro - Ele sorriu com
satisfação.
—Está bem, Elena - disse Winsloe. —Toma-o com calma. Não se sinta pressionada.
Eu? Me sentir pressionada? Por que demônios me sentiria pressionada? Só porque me pediam
que perseguisse um companheiro cativo, com uma pistola carregada em minhas costas e um
megalomaníaco psicótico chamando a disparar?
—Talvez estou um pouco nervosa - respondi. —O sinto.
Winsloe emitiu um sorriso magnânimo. —Está bem. Só toma as coisas com calma.
Seguro, chefe. Nenhum problema. Inalei, retrocedi ao verdadeiro rastro, e comecei outra vez.
Aproximadamente cinquenta metros mais à frente, o rastro de Armem virou ao leste. Decidi seguir
avançando para o sul. Não consegui dar três passos.
—Está segura que este é o caminho correto? - gritou-me Winsloe.
Congelei-me.
—Parece-me que se foram ao este - disse ele. —Há alguns ramos quebrados ali.
Dava volta para olhar os arbustos que rodeavam o amplo oco pelo que Armem tinha passado.
Nenhum só raminho estava quebrado. Não havia nenhum modo em que Winsloe pudesse dizer que
Armem tinha dado volta ali. A menos que ele já soubesse. A advertência lhe zumbia que havia sentido
já quando tínhamos começado esta expedição se elevou com uma frieza Ártica. Winsloe sabia
exatamente para onde tinha fugido Armem, provavelmente o tinha feito rastrear e capturar antes que
vir a me buscar ao hospital. Ele me provava-minhas capacidades e minha honestidade. Tinha falhado
já?
Reprimindo o impulso de gaguejar desculpas, olhei os arbustos do passo que eu tinha escolhido,
belisquei a ponta de meu nariz e tratei de parecer esgotada, o qual não era nem com muito um exagero.
Pus-me de coque e cheirei a terra, arrastei-me e cheirei os arbustos, logo me parei e aspirei o ar. Com
um suspiro, esfreguei meu pescoço.
—Bem? - disse Winsloe.
—Cheiro um rastro em ambos os caminhos. Me dê um segundo.
Fiz rodar meus ombros e respirei fundo o ar frio da noite. Então me pus engatinhando, ignorando
ao Ryman que ria dissimuladamente, e segui ambos os potenciais passos por vários metros.
—Esse - respondi, assinalando no verdadeiro rastro quando me pus de pé. —Ele deu uns poucos
passos pelo outro caminho, logo retornou e rechaçou esse oco entre os arbustos.
Plausível, e impossível de refutar a menos que a gente tivesse o nariz de um lobisomem. Winsloe
assentiu com a cabeça. Isto funcionava para ele. Bom.
Enquanto seguia o rastro, perguntei-me como planejava Winsloe terminar esta farsa.
Obviamente já tinham recuperado a Armem. Chocaríamo-nos com a tropa de guardas que o tinha
apanhado? Ou seguiríamos o rastro até o composto? Qual era o ponto? Divertir-se me fazendo
trabalhar como a um cão de circo? Humilhar-me provando minha honradez? Esperava que eu o traísse
ou tentasse fazê-lo, lhe dando uma desculpa para me caçar? Eu não lhe daria essa satisfação. Se ele
queria um sabujo de duas patas leal, isso era exatamente o que conseguiria.
Não tratei de enganá-lo outra vez. Do que serviria, se já tinha a Armem? Caminhamos outro meio
quilômetro através do bosque. O aroma se fez mais forte, até que pude recolhê-lo no vento.
—Estão perto - respondi.
—Bom - disse Winsloe. —Reduz a velocidade e…
Diante, um grupo de arbustos explorou entre rangidos e maldições. Duas figuras saíram voando
dos arbustos, Armem em cima de um guarda, mãos apertando a garganta do homem. Winsloe correu
para lá, extraindo uma arma de sua jaqueta. Ryman fez um disparo de advertência. Armem se congelou.
Winsloe se lançou contra Armem e o tirou de em cima de Jolliffe.
A cólera flamejou em meu estômago, um branco ardor. Apertei meus punhos para me impedir
de atuar a respeito. Quis gritar ao Winsloe, denunciar seu “exercício de rastreamento” como o que era.
Um jogo. Outro coreografado jogo juvenil para saltar sobre Armem depois de que o pobre homem
tivesse ficado paralisado pelo som da arma. Está tratando de me impressionar, Tyrone? Oh, estou
impressionada. Nunca tinha visto um espetáculo tão patético.
—Ali - disse, apenas capaz de mobilizar minha mandíbula para arrancar à força as palavras. —O
tem. Bom trabalho. Podemos ir agora?
Todos me ignoraram. Winsloe tinha estendido a Armem sobre a terra com as mãos abertas e o
apalpava procurando armas. Jolliffe estava sentado nas sombras, como se estivesse muito atordoado
para mover-se. Ryman lhe aproximou e estendeu uma mão, ajudando a seu sócio a ficar de pé.
—O que passou aqui? - disse Winsloe.
—Ele tinha uma arma, senhor - disse Jolliffe. —Me forçou a abrir a cela, tomou minha arma, e
me fez abrir as portas, logo me arrastou para os bosques. Tratou de me matar. Escapei um pouco antes,
segui-o, e o agarrei aqui.
O que significava que o havia sustentado até que nós chegássemos, pensei. Tendo estado
provavelmente em contato com o Winsloe por rádio desde que tinha escapado Armem.
—Escondia-se nesses arbustos - disse o guarda, seguindo sua história. —Me disparou. Desarmei-
o e lutamos, então vocês chegaram.
—O Q-que? - disse Armem, lutando por levantar a cabeça da terra. —Não fiz- você veio a minha
cela. Trouxe-me aqui fora. Você…
Winsloe esbofeteou a cara de Armem lançando-a ao barro. Novamente, tomou cada porção de
vontade não me lançar para ele. Então o impulso desapareceu e nem sequer podia me mover mesmo
que o desejasse. Minhas pernas se voltaram de frio chumbo quando vi o olhar em cara de Armem, a
confusão e incredulidade sob a capa de sangue e contusões. Jolliffe disse algo. Meu olhar se voltou para
ele. Vi sua cara, realmente o vi, e o reconheci, tal como tinha reconhecido antes ao Ryman. Olhando-
os juntos, soube onde os tinha visto. Na caça. Os dois homens sem nome, junto com o Pendecki e Bryce,
essa noite que tínhamos caçado ao Patrick Lake. Tampouco era quão última os tinha visto. Eles tinham
sido os dois que me tinha acompanhado à ducha com o Winsloe. Seus guardas favoritos. Escolhidos
para outra missão especial.
Armem não escapou. Isso não tinha sentido. Armem era um homem pensador, não a classe de
tipo que tomaria tal risco em um impulso repentino. Não saberia criar uma arma na prisão. E
certamente não atacaria a dois guardas armados, cada um com duas vezes seu tamanho. Não, ele não
escapou. Haviam lhe trazido aqui. Golpeado e miserável através do bosque. Para que? Para
desempenhar um papel no último jogo do Winsloe? Winsloe queria que eu rastreasse a alguém, então
tinha ido ao bloco de celas, escolhido um objetivo, e instruiu a seus guardas favoritos para ajudar a
construir o cenário. Que valor tinha tudo isto, bastardo doente? Conseguia tranquilizar sua mania?
—Podemos ir agora? - Pedi outra vez, levantando minha voz para ser ouvida por sobre sua
conversa. —O temos. Deveríamos nos devolver.
Winsloe se moveu para ficar sentado de lado junto a Armem, apoiado atrás como se estivesse
em uma cômoda cadeira. —Não pode fazer isso, Elena. Desejaria poder fazê-lo, mas não podemos. Não
terminamos ainda.
Jogou um olhar ao Ryman e Jolliffe. Os dois guardas lhe sorriram abertamente em resposta, e
meu estômago se voltou de gelo.
—Não podemos ter detentos escapando, verdade, moços? Escapando de suas celas, não
escapam ao castigo. Não senhor. Temos que impor um código. Ninguém escapa de meu complexo e
vive.
Lutei por tomar um fôlego —Mas -mas pensei que Haig era um sujeito importante. O doutor
Matasumi disse…
—Larry entenderá. Um detento escapa, perseguimo-lo, tratamos de devolvê-lo vivo, mas... bem,
as coisas passam. A captura de um detento é um assunto delicado. Tanto poderia sair mau, e é obvio,
não podemos arriscar deixar a ninguém afastar-se e pôr o projeto em perigo.
Eu não podia deixar acontecer isto. Havia-me sentido bastante doente a respeito de caçar ao
Patrick Lake, e ele tinha sido um assassino vicioso. Armem Haig não era nenhum monstro. Era um
homem decente, um inocente em um mundo onde a maior parte de nós, eu mesma incluída, tínhamos
perdido nossa inocência quando nos convertemos em uma coisa distinta a humano. Os monstros aqui
eram os três sem desculpas para seu comportamento.
O que via Winsloe quando olhava Armem, a mim, ao Patrick Lake, no guarda que tinha matado,
ou qualquer que habitava seu mundo? Via gente, seres conscientes? Ou via recortes de cartão, atores,
caracteres de algum magnífico jogo desenhado para sua diversão?
—Não pode matá-lo - disse, mantendo minha voz tão neutra como era possível.
Winsloe estirou suas pernas, colocando seu peso sobre Armem —Têm razão. Não posso. Bem,
eu poderia, mas não vou fazê-lo.
—Bom. Agora podemos…
—Não vou matá-lo eu. Você o fará.

SACRIFÍCIO
Detive-me em seco, as palavras entupidas em minha garganta —Eu-eu
—Assim é. Você o matará. Vai se transformar em lobo e caçá-lo - Winsloe ficou de pé e pisoteou
as costas de Armem. —É um problema, Elena?
Durante um segundo breve, tive a certeza de que Winsloe sabia a respeito de minha colaboração
com Armem, que este era seu modo de frustrar nossos projetos, matando a meu aliado, e me deixando
saber que ele sabia, mas rapidamente compreendi que Winsloe não podia sabê-lo. Armem tinha sido
muito perspicaz, tinha mantido nossas discussões bem disfarçadas. Não tínhamos progredido muito em
nossos projetos como para que o ouvinte mais agudo compreendesse o que planejávamos. Se alguém
tivesse estado escutando, só teria ouvido duas pessoas que conversando. Com uma sacudida gelada,
perguntei-me se tinha sido suficiente. Ter-me-ia ouvido Winsloe por acaso com Armem e tinha
descoberto uma amizade florescente? Explicava isto o porquê ele tinha escolhido a Armem de entre
todos os outros cativos, arriscando o desgosto do Matasumi? Por que não tomar a Leah ou, ainda
melhor, Curtis Zaid, o inútil sacerdote Vodoun? Porque isso não me faria suficiente dano. Não seria o
bastante sádico.
Winsloe se aproximou — Perguntou, É um problema, Elena?
—Sim, é um maldito problema - grunhi. —Não matarei a um homem para seu diver…
Cambaleei-me atrás. Senti sua mão imprimindo-se em minha bochecha. Tropecei. Recuperei-
me. Me girando, lancei um punho para sua mandíbula. Uma bala chamuscou meu flanco.
Desequilibrou-me, metade o impacto, metade a surpresa. Afirmei-me de uma árvore. Deteve minha
queda. Parada ali, em frente do tronco, com o peito pesado, uma serpente de raiva que atravessava
meu corpo. Agarrei a árvore com força suficiente para deixar buracos na casca com minha palma. Fechei
os olhos. Inalei. Lutei por obter controle. Encontrei-o. Tomei fôlegos profundos e retrocedi. Deixei cair
meus dedos a meus flancos e senti a ferida. Diretamente me atravessando, roubando uma costela e
nada mais.
—Uma vez mais, Elena - disse Winsloe, aproximando-se de mim. —É um problema?
Dava a volta lentamente, mantendo meus olhos longe dele. Winsloe deu um grunhido de
satisfação, interpretando minha falta de contato visual como um sinal de que estava intimidada, não
pelo que realmente era, que não me atrevia a olhá-lo por temor a arrancar seu rosto se o fizesse.
—Responde a pergunta, Elena.
—Não posso - Inalei. Forcei uma desculpa em meu tom. —Não posso fazer…
Vi sua mão subir, esta vez com a arma nela. Vi a pistola aproximar-se de minha cara. Dava um
passo atrás, mas muito tarde. A arma golpeou o flanco de meu crânio. As luzes cintilaram. Então todo
ficou escuro. Quando me recuperei, jazia em terra com o Winsloe em cima de mim.
—Assim é como isto vai funcionar, Elena - disse ele, inclinando-se para minha cara. —Vai
transformar-se em lobo. Aqui mesmo. Agora mesmo. Logo vais caçar ao Sr. Haig. Quando o capturar,
sustentá-lo-á até que eu chegue. Então o matará. Qualquer separação deste plano e ambos morrerão.
Entendido?
Tratei de me sentar. O pé do Winsloe aterrissou em meu estômago, me lançando ao chão e
tirando o fôlego de meus pulmões.
—Não é- não é tão fácil - ofeguei entre sorvos de ar. —Eu poderia não ser capaz de mudar.
Inclusive se o fizesse, não serei capaz de me controlar uma vez que o apanhe. Não funciona dessa
maneira.
—Isto funcionará de qualquer modo que eu diga que funcione - A voz do Winsloe continha toda
a emoção de um treinador de golfe explicando as regras do torneio. —Se enguiços, responder-me-á. E
quando estiver me respondendo, meus moços terão seu turno, e quando se tiverem cansado de ti,
morrerá. É bastante incentivo, Elena?
Comecei a tremer. Nada cólera agora. Só medo. Terror incontrolável. Matar a Armem seria um
ato de covardia pelo qual eu nunca me perdoaria, até se pudesse fazê-lo. Mas e se não o fazia? Violação
e morte. Para mim, a idéia de ser violada era mais aterradora que a de morrer. Os fantasmas de minha
infância encheram meu cérebro, vozes que diziam que tinha prometido que tal coisa nunca passaria
outra vez, que era muito forte, que nunca poderia ser novamente obrigada a me submeter a alguém.
—Não posso - sussurrei. —Simplesmente não posso.
Vi o pé do Winsloe voar atrás. Fechei meus olhos com força. Senti sua bota conectar com meu
flanco, justo em cima da ferida de bala. Ouvi o grito de uma mulher. Meu grito. Odiei-me mesma. Ódio,
ódio, ódio. Não morreria desta maneira. Não violada. Não forçada a matar a um homem inocente. Se
tivesse que morrer, fá-lo-ia a minha maneira.
Arrojei-me, lançando ao Winsloe ao claro. Aterrissou de costas. Pus-me de pé e o enfrentei.
—Não! - Um grito. Armem.
Girei, vi Ryman levantar sua arma. Armem se lançou para mim. A arma cuspiu uma corrente de
balas. O corpo de Armem se deteve em ar, seu peito explorando, corpo dando tombos devido ao
impacto. Quando golpeou terra, caí ao lado dele.
—É mais misericordioso. Para nós dois - Sua voz era fina, muito baixo para os ouvidos de
qualquer, mas não para meus. Sangrenta espuma borbulhava em seus lábios.
—Sinto-o - sussurrei.
—Não o faça - Suas pálpebras revoaram uma vez. Duas vezes. Logo se fecharam.
Deixei cair minha cabeça, lágrimas obstruíam minha garganta. No silêncio que seguiu, me
revigorei para o que devia vir. Winsloe me mataria para isto. Por atacá-lo. Por terminar seu jogo.
Quando finalmente me dava volta para confrontá-lo, entretanto, só vi satisfação em seus olhos. Ele não
tinha perdido absolutamente. O resultado era ainda o mesmo. Armem estava morto. Era minha falta.
Eu sabia e sofreria por isso.
—Levem-na de volta a sua cela - disse Winsloe, sacudindo seu jeans. —Logo tragam para alguém
para que limpar este desastre.
Enquanto ele jogava uma olhada a Armem, sua boca se apertou e ele fez uma careta para mim
com um olhar deslumbrante. O resultado pode ter sido o mesmo, mas seu jogo tinha sido arruinado.
Eu pagaria por isso. Não esta noite. Mas pagaria.

***

Ryman e Jolliffe me conduziram para o bosque. Estávamos a metade de caminho do complexo


quando Ryman de repente empurrou com força. Eu atirei. Quando me estabilizei e me dava volta para
fulminá-lo com o olhar, encontrei-me fulminando com o olhar o barril de sua arma. Apertei minha
mandíbula, girei-me, e segui andando. Tinha dado aproximadamente cinco passos quando uma patada
do Jolliffe me travou as pernas. Tropecei contra uma árvore e tomei um momento para me recompor
antes da me dar volta. Ambos os homens apontavam suas armas para mim.
—O que querem? - Respondi. —Uma desculpa para me pegar um tiro?
—Não necessitamos uma - disse Ryman. —Só dizemos ao Tyrone que tentou escapar e tivemos
que te baixar.
—Como um cão raivoso - disse Jolliffe.
Ambos os homens riram. A raiva me atravessou. O que tinha passado nesse arvoredo me tinha
doente de culpa e auto-aborrecimento. Não queria nada mais que encontrar outro objetivo para essa
cólera, alguém mais a quem pudesse culpar pela morte de Armem. Estes dois idiotas gritavam pedindo
o trabalho. Avaliei-os. Poderia derrubá-los sem sofrer um balaço? Estimei minhas probabilidades em
cinco a um. Quando essas probabilidades me pareceram razoavelmente boas, sabia que estava em
problemas. Minha raiva consumia rapidamente meu sentido comum. Arranquei meu olhar fixo dos dois
guardas e segui andando.
Ryman avançou a pernadas até ficar a meu lado e agarrou o braço. Quando me lançou de repente
contra uma árvore, comecei a repartir golpes a mão direita e sinistra, logo senti o metal frio de um
barril de arma em meu templo.
—Não volte a me dar as costas, cadela - ele respirou em minha cara. —Cliff e eu pensávamos
com muita ilusão em um pouco de diversão esta noite. Arruinou-o. Talvez ao Ty agrade passar por cima
isto, mas a nós não. Quem demônios acredita que é de todos os modos? Desafiando ao Tyrone Winsloe?
Atacando-o? Danificando nosso jogo?
—Tira suas mãos de mim.
—Ou o que? - Ele trespassou seu joelho no meio das minhas pernas. —O que vai fazer se não o
faço?
Alguém riu entre dentes a nossa esquerda —Algo como... arrancar sua tola garganta, tirar de raiz
seu testículo, e te converter em um peru de dia de Ação de Obrigado. Não necessariamente nessa
ordem.
Demo-nos volta para ver o Xavier apoiar-se contra uma árvore, aspirando um cigarro. Lançou
longe a bituca, passeou-se, e me tirou do afeto do Ryman.
—Não quer te sujar com este problema - disse Xavier. —Viu o que fez a esse outro lobisomem?
Rasgou sua perna... tendo colocadas as algemas. Agora, vocês moços poderão ter armas, mas eu não
quereria ver quanto dano poderia fazer ela antes que a tirassem do caminho.
Antes que um ou outro guarda pudesse abrir sua boca, Xavier enganchou seu braço ao redor de
minha cintura e me conduziu de volta a caminho aberto, dirigindo-se para o complexo.
—Ela parece te tolerar bastante bem - resmungou Jolliffe quando ele se aproximou detrás de
nós. —Algo que devêssemos lhe dizer ao Ty, Reese?
—Não sou o bastante louco para violar o território do grande homem - disse Xavier. —O que
posso fazer se a pobre moça tem uma coisa para mim?
Agarrou meu traseiro. Girei para esmurrá-lo, mas ele desapareceu, reaparecendo a meu outro
lado.
—Esta é uma dessas relações de amor-ódio - gritou aos guardas. Em voz baixa murmurou, — um
jogo agradável, Elena. Não quer que eu tome minhas coisas e vá a casa.
Ele tinha razão. Tanto como lamentava estar endividada com o Xavier, ele era a única coisa que
se interpunha entre eu, os dois guardas, e uma situação potencialmente repugnante.
Xavier pôs seu braço ao redor de minha cintura outra vez e jogou uma olhada por sobre seu
ombro. —Acredita que Tyrone me deixará tê-la quando ele já o tenha feito? Poderíamos escapar juntos,
construir uma choça em alguma ilha deserta, viver de cocos, luz do sol, e sexo. O que diz, Elena?
Teríamos uns bebês formosos. Pensa nisso. Poderíamos converter sem ajuda aos lobos em uma espécie
desaparecida.
—Sim, sim - disse.
Xavier fez uma pausa, e levantou a cabeça —Nada de risadas sarcásticas. Supõe que eles não
entendem a brincadeira. Querem que as expliquem, meninos?
—Queremos que lhe foda logo, Reese - disse Ryman. —Como agora mesmo.
—Diante de vocês? Sou um demônio, não um exibicionista - Xavier caminhou um pouco mais
rápido, me empurrando junto a ele. —De todos os modos, estamos quase no complexo. Larry se
perguntará o que aconteceu. Deve estar bastante preocupado por sua estrela-objeto. Ofereci-me para
estar no pelotão de salvamento. Acreditam que ganharei um prêmio?
—Não quando Matasumi averigúe o que aconteceu sua estrela-objeto - murmurei.
Algo cruzou o rosto do Xavier, mas antes que pudesse decodificar a expressão, fez seu próprio
ato de desaparecimento, escondendo-se atrás de sua despreocupação habitual. Manteve um
monólogo até que chegamos ao complexo. Então Xavier me levou através da porta de segurança,
deixando-a fechar-se frente aos dois guardas. Quase subimos ao elevador sem eles, mas Jolliffe
apanhou as portas no último momento. Avançaram e apertaram o botão para o bloco de celas. Quando
o elevador se deteve no piso do meio, Xavier tratou de me tirar. Ryman agarrou meu braço.
—Ty disse que a devolvêssemos a sua cela.
Xavier suspirou —Ele quis dizer o hospital. Ali é onde ela dorme agora. Ele deve havê-lo
esquecido.
—Ele disse a cela.
—Cometeu um engano.
Os dois homens se olharam. Então Xavier se endireitou e apareceu pela porta do elevador. A voz
do Carmichael e passos ecoaram pelo corredor.
—Doc? - chamou Xavier. —Tenho a Elena aqui. Estes tipos me dizem que Tyrone a quer de volta
em sua cela.
—Deve ter cometido um engano - disse Carmichael quando se aproximou.
—Isso é o que os respondi.
Carmichael parou diante das portas de elevador abertas. —Cliff, Paul, levem a Sra. Michaels ao
hospital. Estarei ali agora mesmo.

***

Xavier me acompanhou ao hospital e não partiu até que Carmichael voltou. Tratou de ficar mais
tempo, mas ela o afugentou, queixando de que meu sono tinha sido interrompido bastante e de que
necessitava minha ajuda pela manhã. Enquanto partia, Xavier articulou, —Deve-me isso - O fazia. E
estava segura de que ele não deixaria à nota promissória sem cobrar-se.
Quando alcancei minha cama, Carmichael se asseava ocupada pelo quarto, preparando equipe
e vigiando a Bauer. Uma vez me perguntou se havia algo do qual eu gostaria de falar. Havia-o, mas não
podia fazê-lo. Não queria ver minha culpa refletida na cara de outra pessoa. Um homem bom tinha
morrido essa noite. Tinha-lhe dado um tiro um guarda vicioso, sendo condenado a morte por um tirano
sádico, mas, além disso, o peso de sua morte estava sobre meus ombros. Eu não podia compartilhar
isso com Carmichael. A única pessoa no mundo com a que poderia me haver crédula estava centenas
de milhas de distância, lutando suas próprias batalhas em um quarto de motel. Pensar nisto me
recordou quão sozinha estava. Antes que Carmichael partisse, deixou-me uma taça de chá. Pelo aroma
medicinal, soube que continha um sedativo, mas o bebi de todos os modos. Era o único modo em que
ia dormir essa noite e desesperadamente queria dormir, dormir, esquecer... ao menos durante umas
horas.

EXÍLIO
Depois do café da manhã do dia seguinte, Bauer despertou.
Eu estava sentada ao lado de sua cama, absorta em meus pensamentos, tal como tinha estado
toda a manhã. Quando abriu seus olhos pela primeira vez, pensei que era um reflexo. Seus olhos se
abriram, mas não se movia, só contemplava o teto, inexpressiva. Então piscou.
—Doutora? - Perguntei.
Carmichael fez um ruído e elevou a vista de sua papelada. Uma fração de segundo mais tarde,
estava no lado da cama. Levou um momento a Bauer para despertar. Suponho que se a gente esteve
exânime durante dias, não passa a estar gritando exatamente, pelo qual deveríamos ser agradecidos,
já que ela não saltou gritando, considerando todas as coisas acontecidas.
Tomou aproximadamente vinte minutos a Bauer despertar o suficiente para mover-se. Tratou
de mudar de lado, mas as cadeias a contiveram. Jogou uma olhada para baixo bruscamente, franziu o
cenho, viu as restrições, e lançou um olhar deslumbrante a Carmichael. Sua boca se abriu, mas só um
sussurro saiu, tão suave que nem sequer eu pude distinguir as palavras. Carmichael recebeu a
mensagem, entretanto, e rapidamente soltou as restrições de seus braços.
—Uh, essa não é uma idéia tão boa - respondi.
—Ela está muito fraca para falar, muito menos para mover-se - disse Carmichael.
Os olhos de Bauer se moveram desde mim a Carmichael, seguindo nosso intercâmbio. Ela
procurou minha cara sem uma piscada de reconhecimento. Então vi o brilho. Recordou-me. Seus olhos
se estreitaram.
—Qu - Se deteve e tragou. —Que que faz ela aqui?
—Elena me esteve ajudando, Sondra. Desde você... desgraça.
—Minha-? - Bauer tragou outra vez, sua língua estalando sobre seus lábios secos. —Que
desgraça?
—Dê a Sondra um copo de água, Elena.
Outra vez o olhar fixo de Bauer se posou em mim. —Qu-o que faz ela aqui?
—Traz a água e logo faz que os guardas lhe levam a passear. Tenho que falar com a Sondra.
Recuperei a água e tratei de ignorar a segunda metade da petição, mas Carmichael me jogou. Eu
sabia que não deveria deixar a Carmichael só com Bauer. Também sabia que não tinha nenhum sentido
discutir a doutora. Então me conformei saindo com os guardas do quarto e aconselhar aos guardas da
porta para que tomassem posições dentro. Para minha surpresa, obedeceram. Teria sido um sinal
alentador de meu crescimento poder e posição se não tivesse suspeitado que eles queriam entrar no
hospital para poder contar a seus colegas contos a respeito de ser os primeiros em ver o novo
lobisomem acordado.

***

Depois de meu passeio, Tucker nos encontrou fora do hospital.


—Deixem-na com o Peters e Lewis dentro - disse Tucker. —Logo baixem às celas e escoltem à
senhorita Ou'Donnell à cela do Zaid.
—Pensava que o Doutor Matasumi tinha anulado todas as visitas - disse um de meus guardas.
—Katz-o doutor Matasumi trocou de opinião.
—Mas pensei que havia dito…
—Trocou de opinião. A senhorita Ou'Donnell visitará o Zaid durante uma hora, seguida de uma
visita de uma hora com a senhorita Levine.
—Como esta Savannah? - Perguntei.
Três pares de olhos me olharam, como se as paredes tivessem falado. Durante um momento
pareceu que ninguém ia responder-me, então Tucker disse bruscamente, —Ela está bem.
—Sabe, opor-me-ia a vê-la eu mesma - respondi. —Talvez tranquilizá-la um pouco.
—A senhorita Ou'Donnell pode fazer isso - disse Tucker, logo se girou e se encaminhou corredor
abaixo.
Os dois guardas me conduziram de volta ao quarto. Bauer ainda jazia sobre a cama. Carmichael
estava sentada ao lado dela, sustentando sua mão. Assumi que Bauer tinha cansado e estava
adormecida, logo notei que seus olhos estavam abertos. Carmichael me fez gestos para que
permanecesse em silêncio.
—Sei que isto é um choque - murmurou Carmichael. —Mas tem boa saúde e…
—Boa saúde? - cuspiu Bauer, dando a volta por volta do Carmichael com olhos ardentes. — Sabe
o que sinto agora mesmo? Estou-esto - Sua mão esquerda tratou de mover o ar, mas só obteve uma
débil agitação antes de sofrer um colapso de volta abaixo. —Este não é meu corpo. Não sou eu. É- está
mau. Horrivelmente, asquerosamente mau. E os sonhos - Soltou um grito afogado. —Oh, Deus. Os
sonhos.
Carmichael tocou a sobrancelha de Bauer. Bauer fechou os olhos e pareceu relaxar-se. Então
abriu seus olhos e me viu.
—Tire-a daqui - disse Bauer.
—Compreendo que Elena poderia não ser a pessoa que mais quer ver.
—Tire-a daqui.
Carmichael apertou a mão de Bauer. —Sei que ela é um aviso do que passou, mas a necessita,
Sondra. Ela entende o que acontece, e pode nos ajudar. Sem ela…
—Sem ela? - Bauer me olhou e retirou seus lábios em um grunhido. —Sem ela, eu não estaria
aqui.
—Entendo sua cólera, Sondra. Se não tivesse sido pela Elena que veio aqui, isto nunca teria
passado. Mas não pode culpá-la-
—Não posso culpá-la? Não posso culpá-la? - A voz de Bauer se elevou. —Quem demônios pensa
que me fez isto?

***

Uma hora mais tarde, estava de volta em minha cela.


Depois de tudo o que eu tinha feito, cada risco que tinha tomado, uma acusação de uma
lobisomem recém transformada, meio louca e estava em minha maldita cela. Eu tinha cuidado de Bauer
até que voltou sua saúde. Eu tinha prevenido ao Carmichael de administrar remédios que ameaçassem
potencialmente sua vida. Tinha-me arrojado entre Bauer e os guardas armados. Como me pagava ela?
Culpou-me, e não só em um sentido figurado -porque tinha usado minha saliva- a não ser literalmente
me acusando de convertê-la em lobisomem. Loucura, verdade? E a seringa de injeção? A marca de
agulha? Provas que me exoneravam. O que pensavam eles, que tinha roubado uma seringa de injeção
do hospital durante minha prova física, enchi-a com minha saliva, e cravei o braço de Bauer? Era
exatamente o que eles pensavam. Ou o que Matasumi pensava. Carmichael parecia ter o sentido de
compreender que isto era absurdo. Ela não o havia dito tão claramente, mas tinha discutido para me
manter no hospital, e quando tinha sido obrigada a partir, tinha caminhado para mim e tinha prometido
“arrumar as coisas”.
Quão boa como aliada podia ser Carmichael? Ela era uma empregada sem verdadeira
autoridade. Quando só Matasumi e Winsloe tinham sido os responsáveis, a forte vontade do
Carmichael se metamorfoseou em verdadeiro poder. Em batalhas de personalidade, Matasumi estava
indefeso. Winsloe tinha a força de vontade necessária para desafiar a alguém, mas ele se reservava de
meter-se na vida cotidiana do complexo. Deste modo, em ausência de Bauer, Carmichael tinha poucos
problemas para me manter no hospital contra os desejos do Matasumi. Mas agora Bauer estava de
volta. Onde deixava isto a Carmichael? Sopesei as personalidades de ambas as mulheres, loteando suas
possibilidades.
Havia um fator mais para considerar. Com quanta força lutaria Carmichael por mim? Ela fazia
pouco segredo de seu desprezo pelo Winsloe e Matasumi, mas parecia terna com Bauer. Poria a sua
debilitada paciente em uma luta de vontades? Isso dependeu de uma coisa: a convalescença de Bauer.
Se Carmichael sentisse que me necessitava para ajudar a Bauer, lutaria. Mas se Bauer se recuperava
sem recair, eu estaria com uma sorte de merda. Minha melhor esperança era que algo horrível
acontecesse, que Bauer perdesse o controle, e que Carmichael e Matasumi compreendessem que
necessitavam minha ajuda. Sabendo do que um lobisomem recém transformado era capaz, era
realmente horrível desejar algo pelo estilo.

***

Realmente estive afastada do favor. Se havia alguma dúvida, logo se desvaneceram. Os guardas
trouxeram meu café da manhã duas horas tarde, deixaram-no, e partiram. Logo trouxeram meu
almoço. Nada passou no interino. Absolutamente nada. Carmichael não me chamava para uma
verificação. Matasumi não se aproximava para me interrogar. Xavier não se aparecia para uma visita.
Nem sequer Tess se tomava o dever de observar fora de minha cela. Deixaram-me com meus
pensamentos, consumidos por lembranças da noite anterior. Só com meus medos, minhas auto-
recriminações, e minha pena, refletindo sobre a morte de Armem, logo Ruth, logo minha própria
situação, a que ficava mais difícil com cada hora que passava.
Ao redor do meio da tarde minha porta se abriu, e saltei de meu assento tão rápido que teriam
pensado que Ed McMahon estava de pé ali, com um passe para a Câmara de Editores. De acordo, era
só um guarda, mas chegado este ponto, qualquer cara era bem-vinda. Talvez ele venha para me levar
acima. Talvez viesse para entregar uma mensagem. Infernos, talvez viessem só para me falar. Seis horas
de exílio e já sentia como se eu tivesse passado uma semana em isolamento.
O guarda entrou, pôs um buquê de flores na mesa, e partiu.
Flores? Quem me enviaria flores? Carmichael que tratava de me animar? Correto. Matasumi
pedindo perdão por me devolver à cela? Oh, sim. Bauer me agradecendo por todo meu trabalho
desinteressado por ela? Isso devia ser. Com uma risada amarga, girei as flores e li o cartão.

Elena,
Lamento ouvir o que aconteceu.
Verei o que posso fazer.
Ty
Golpeei o buquê da mesa e apertei os punhos, fervendo de fúria. Como se atrevia! Depois da
noite anterior, como se atrevia a me enviar flores, fingir preocupação por meu exílio. Franzi o cenho
para as flores pulverizadas através do tapete. Esta era sua idéia de uma brincadeira? Ou tratava de me
enganar me fazendo pensar que se preocupava? Zombava de mim? Ou ele, de seu modo arrevesado,
realmente se preocupava? Maldição! Grunhi e dava uma patada ao buquê através do quarto. Quando
não se rompeu, avancei a pernadas, tomei com uma mão, e me girei para lançá-lo para a parede. Então
congelei a metade do tiro, os dedos ainda ao redor do buquê. Não podia fazer isto. Não podia me
permitir incorrer na cólera do Winsloe. Uma fúria impotente me atravessou e foi quase suficiente para
me fazer lançar o buquê à parede, mandando ao diabo as consequências. Mas não o fiz. Ceder à raiva
só daria uma desculpa para me fazer danifico outra vez. Queria jogar jogos mentais? Bem. Deixei-me
cair de joelhos e comecei a juntar as flores, apagando todos os sinais de minha cólera. A próxima vez
que Tyrone Winsloe entrasse em minha cela, veria suas flores amavelmente dispostas sobre a mesa. E
eu lhe agradeceria por sua preocupação. Sorrir e agradecer. Os dois podiam jogar este jogo.

***

Às sete dessa tarde, a porta se abriu. Um guarda entrou.


—Eles lhe necessitam acima - disse.
A euforia se precipitou através de mim. Sim! E não era muito logo. Então vi sua cara, a estreiteza
de sua mandíbula falhando ao ocultar a ansiedade em seus olhos.
—O que passou? - Perguntei, me pondo de pé.
Ele não respondeu, só virou e sustentou a porta. Dois guardas mais esperavam no corredor.
Todos traziam suas armas fora. Meu estômago se afundou. O que era isto, então? Tinha pedido Bauer
minha morte? Cansou-se Winsloe de jogar comigo e tinha decidido me caçar? Mas isto não faria que
os guardas estivessem preocupados. Alguns, como Ryman e Jolliffe, lamberiam seus lábios só de pensar
na perspectiva.
Quando atravessei a porta, o primeiro guarda me empurrou nas costas com sua arma, não um
golpe forte, mas bem um golpezinho impaciente. Tomei velocidade e rapidamente avançamos para a
saída de segurança.

***

A sala de espera do hospital estava lotada. Contei sete guardas, além do Tucker e Matasumi.
Enquanto dava um passo através da porta, o tempo reduziu sua marcha, me mostrando uma montagem
de impressões visuais privadas de aroma e som, como um filme silencioso avançando com a manivela
da um fotograma por vez.
Matasumi estava sentado, seu rosto branco, seus olhos contemplando um nada. Tucker no
intercomunicador ladrando ordens silenciosas. Cinco guardas em cachos ao redor dele. Um guarda
sentado ao lado do Matasumi, com a cabeça entre suas mãos, as palmas sobre seus olhos, umidade em
seu queixo, uma mancha úmida manchando uma manga de sua camisa. O último guarda olhava a
parede longínqua, abraçando-se a si mesmo com seus braços, a cabeça inclinada, seu peito levantado.
Enquanto movia meu peso para frente, meu sapato se deslizou. Algo fazia que o estou acostumado a
estivesse escorregadio. Joguei uma olhada para baixo. Um magro atoleiro opaco cor amarelada
marrom. Vômito. Elevei a vista. A porta do hospital estava fechada. Avancei, ainda com lentos
movimentos. As caras se voltearam. A multidão se separou, não me deixando espaço mas me afastar.
Nove pares de olhos sobre mim, expressões nos limites da apreensão até a repugnância.
—O que passa aqui? - A voz do Winsloe detrás de mim rompeu a ilusão.
Eu podia cheirar agora: vômito, suor, ansiedade, e medo. Alguém murmurou algo ininteligível.
Winsloe passou por diante de mim para examinar a janela do hospital. Todos fizeram uma pausa,
contendo coletivamente o fôlego.
—Merda Santa! - disse Winsloe, sua voz enche não de horror, mas sim de maravilha. —Elena fez
ah, merda, já vejo. Jesus ferre a Cristo, deve ver isto!
Quase contra minha vontade, meus pés se moveram para a porta do hospital. Winsloe deu um
passo ao lado para me dar espaço e pôr seu braço ao redor de minha cintura, me atirando para ele.
—Pode acreditar isto? - disse, logo riu. —Suponho que pode, verdade?
A princípio, não vi nada. Ou nada estranho. Além da janela havia um mostrador, uma pia branca,
de aço inoxidável anti-séptico brilhando como um artigo em uma sala de exibição de cozinhas. Uma fila
de garrafas estava ordenada atrás do mostrador. A pasta de Carmichael estava em um ângulo perfeito
de noventa graus ao lado da pia. Tudo ordenado e pulcro, como sempre. Então algo ao longo da base
do mostrador saltava à vista. Uma obscenidade dentro da antiga limpeza. Uma salpicadura com forma
de estrela de sangue.
Meu olhar varreu o chão. Uma mancha de sangue de quinze centímetros sobre o mostrador.
Grossas gotas caíam em ziguezague sobre carro derrubado. O carro estava convexo, os conteúdos
dispersos e quebrados. Um atoleiro de sangue. Uma marca de sapato no atoleiro, com os bordos
perfeitos. Logo outra mancha, maior, um sapato ensanguentado deslizando-se através do chão. O
arquivo. O gabinete de aço de cem de libras atirado, bloqueando a esquina longínqua como se alguém
o tivesse miserável e se escondeu detrás de sua imperfeita barricada. Os papéis se dispersavam através
do chão. Sangue salpicado sobre eles. Sob a cama, um sapato com a planta ensanguentada. Em cima
do sapato, uma perna. Girei para confrontar a outros, para lhes dizer havia alguém ali. Enquanto me
dava volta, meu olhar viajou pela perna para o joelho, logo a uma piscina de brilhante carmesim, logo
a um nada. Uma perna atalho. Meu estômago saltou a minha garganta. Girei-me longe, rápido, mas
não o bastante rápido. Vi uma mão atirada a uns pés da cama. Mais perto da porta, meio obscurecida
sob uma bandeja derramada, uma parte sangrenta de carne que havia sido humano.
Algo golpeou a porta, reverberando com tanta força que tropecei para trás com o impacto. Um
rugido de fúria. Um brilho de pele amarelada marrom. Uma orelha. Um focinho empapado de sangue.
Bauer.
—Tranquilizadores - Respirei com dificuldade quando recuperei meu equilíbrio. —Precisamos
sedá-la. Agora.
—Esse é o problema - disse Tucker. —Está tudo ali.
—Tudo? - Inalei, piscando, lutando para obter que meu cérebro trabalhasse outra vez. Esfreguei
uma mão através de minha cara, endireitei-me e olhei ao redor. —Deve haver um abastecimento de
reserva. Onde está a Doutora Carmichael? Ela deve saber.
Ninguém respondeu. Enquanto o silêncio se alargava, minhas tripas subiram e baixaram outra
vez. Fechei os olhos e me obriguei a examinar através da janela. De volta ao pé sob a cama. O sapato.
Um sapato negro brando e forte. O sapato do Carmichael.
Ah, Deus. Não era justo. Era tão, tão, tão injusto. O estribilho correu por minha cabeça, tirando
todos os outros pensamentos. De todos neste maldito lugar. De todos aqueles que veria de boa vontade
morrer. Desses poucos que me sentiria inclusive feliz de ver morrer de uma morte tão horrível como
esta. Não Carmichael.
A raiva se elevou em mim. Apertei os punhos, cedi ante a cólera durante um momento, logo a
empurrei para trás quando me dava volta para confrontar a outros.
—Ela está totalmente mudada - respondi. —Tem a um lobisomem completamente mudado e
meio louco ali dentro, e se não atuar rápido, ela sairá diretamente por esta porta. Por que estão todos
de pé ao redor? O que vais fazer?
—Pergunta-a é - disse Tucker. —O que vai fazer você?
Afastei-me desta porta é seu problema, não o meu. Adverti-te. Adverti e adverti e adverti. Usou-
me para lhe ajudar a recuperar-se, então devolveu a minha cela. Agora as coisas se estragaram e quer
que eu o arrume? Bem, eu não fiz este desastre em primeiro lugar.
Tucker fez um gesto para os guardas. Alguém se moveu para a porta, observando através da
janela, e girado o cabo.
—Encontrará sedativos nos armários ao longo da parede longínqua - disse Tucker.
—De maneira nenhuma - respondi. —De nenhuma maldita maneira.
Quatro dos guardas restantes levantaram suas armas. Apontaram essas armas contra mim.
—Não vou a…
A porta se abriu. Alguém me empurrou. Enquanto tropeçava para dentro, a porta se fechou de
repente, agarrando meu calcanhar e me lançando ao chão. Pondo-me de pé, ouvi somente o silêncio.
Logo um som vibrou através do quarto, mais o senti que ouvi. Um grunhido.

ALVOROÇO
Ainda a gatas, elevei lentamente a vista. Um lobo de quase 55 quilogramas me olhava fixamente,
a pele de suas costas era amarela e marrom final, fazendo que Bauer se visse tão grande como um
mastim. Olhou-me fixamente aos olhos, suas orelhas levantadas, os dentes expostos, os lábios curvados
em um grunhido silencioso.
Olhei longe e não me levantei, me sustentando uns centímetros mais abaixo que Bauer. A
submissão doía, mas minha vida merecia mais que meu orgulho. E sim, nesse momento, estava muito
preocupada com minha expectativa de vida. Inclusive Clay evitaria abordar a um lobisomem que estava
na forma de lobo quando ele não o estava. Como um lobo, Bauer tinha a vantagem dos dentes e garras.
Além disso, a forma humana é torpe para lutar contra um animal –muito lenta, muito alta, muito fácil
de desequilibrar. A única arma superiora dos humanos é seu cérebro, e não ajuda muito contra algo
com um corpo de animal e um cérebro humano. Contra um lobisomem recém trocado, o cérebro
humano é realmente uma desvantagem. Nossas mentes são fundamentalmente lógicas. Loteamos uma
situação, idealizamos estratégias possíveis, e escolhemos a que representa o melhor compromisso
entre a probabilidade de êxito e a probabilidade da sobrevivência. Se for tarde ao trabalho, posso pisar
no acelerador até o fundo até o escritório, mas considerando o risco de feridas pessoais, decidirei em
troca conduzir dez ou quinze quilômetros sobre a velocidade limite e chegar ao trabalho ligeiramente
tarde mas viva. Um lobisomem novo na forma de lobo perde essa capacidade de raciocinar, de lotear
as consequências. Parece-se com uma besta raivosa, abastecida de combustível por instinto e fúria,
pronta para destruir tudo à vista, até se isso o arbusto no processo.
Eu poderia lutar contra Bauer só se mudava a lobo. Mas até em condições ideais, tirar-me-ia de
cinco a dez minutos. Como Lake, eu seria completamente vulnerável durante o processo, muito
disforme inclusive para estar de pé e escapar. Bauer me rasgaria antes que me saísse pelagem. Embora
ninguém me deixaria sair daqui até que detivesse Bauer. O único modo de fazê-lo seria sedando-a.
Para deixar fora de jogo a Bauer, tudo o que tinha que fazer era correr através do quarto, agarrar
uma seringa de injeção cheia de sedativo do armário, e cravá-la. Parecia tão fácil. Se só não houvesse
um lobo enlouquecido de sangue entre o armário e eu. Inclusive se Bauer não saltava sobre mim antes
que eu corresse, ela atacaria ao segundo em que minhas costas estivessem volta para ela. Inalei.
Primeiro passo: tinha que encontrar a mescla apropriada de submissão e segurança em mim mesma.
Muito total e ela me veria como presa fácil. Muito assertiva e ela me veria como uma ameaça. A chave
era não mostrar o medo. Outra vez, parecia tão fácil... se não estivesse em um quarto orvalhado com
partes de corpo ensanguentadas, me recordando que com um movimento em falso meus membros e
órgãos vitais se uniriam a esses.
Avancei pouco a pouco, mantendo meu olhar fixo enfocado debaixo dos olhos de Bauer. Quando
me movi, esquadrinhei seu corpo procurando sinais: os músculos apertados, tendões tensos, todos os
sinais que pressagiavam um ataque. Em cinco passos, eu estaria paralela a ela, aproximadamente a seis
metros a sua esquerda. O suor descia por meus olhos. Mostrava medo? O nariz de Bauer se moveu
nervosamente, mas o resto dela permaneceu imóvel. Quando dava um passo para frente, girei-me, lhe
dando a cara. Seus olhos me seguiram. Segui-me movendo de lado. Uma dúzia de passos. Os quartos
traseiros de Bauer se moveram, o primeiro sinal de um salto iminente. Com esse sinal cedo, pensei que
eu teria tempo para reagir. Não o tive. Quando meu cérebro registrou isto ela estava a ponto de investir,
estava no ar. Não havia tempo para me dar volta e correr. Mergulhei-me por diante dela, golpeei a terra
e rodei. Atrás de mim, Bauer golpeou o chão, patinando com suas quatro patas. Enquanto a olhava
deslizar-se, compreendi que eu realmente tinha algo vantagem aqui. Como um condutor novo atrás do
volante de um Maserati, Bauer estava pouco preparada para o poder e a precisão de dirigir-se em seu
novo corpo. Se pudesse aproveitar seus enganos e inexperiência, poderia sobreviver.
Pus-me de pé a tombos, Bauer estava girando ao redor. Fiz uma finta por diante dela e saltei
para o mostrador. Lançando uma caixa aberta, agarrei a partição de madeira entre as portas para me
equilibrar e me girei. Bauer voava para mim. Dava-lhe uma patada sob a mandíbula e deu voltas para
trás, patinando através do chão. Quando me girei para confrontar os armários, vi caras lotando a janela
do hospital. Desfrutavam do espetáculo? Malditos fossem, isso esperava.
Enquanto Bauer se recuperava, abri a segunda porta do armário e procurei ambos os lados
seringas de injeção cheias de sedativo. Em vez disso, vi uma caixa de seringas de injeção encerradas em
plástico e filas de garrafas etiquetadas. Um trabalho de bricolagem. Merda! Estas eram as seringas de
injeção corretas? Que garrafa necessitava? Quanto deveria enchê-la? Apartei minhas perguntas,
agarrei uma seringa de injeção, e comecei a me escapulir abaixo pelo mostrador, para as garrafas. Então
me detive, arranquei uma segunda seringa de injeção embalada da caixa e o empurrei em meu bolso.
Seguro do Klutz. Quando alcancei as garrafas, revisei-as, procurando um nome familiar. Detrás de mim,
Bauer lutava para ficar de pés. Mova-te, Elena! Justo agarrei um! Vi pentobarbital, reconheci-o da bolsa
médica do Jeremy, e tomei. Bauer saltou para o mostrador, mas calculou mau e se chocou contra ele.
A estrutura inteira tremeu quando meus dedos agarraram o pentobarbital. Minha mão golpeou a
garrafa. Pincei procurando-a, mas caiu do armário, ricocheteado na coberta do mostrador, e rodou
através do linóleo. Quando Bauer deu a volta para outro ataque, alcancei uma nova garrafa de sedativo.
Não havia outra. Freneticamente, revisei a prateleira, mas não vi nada que reconhecesse. Bauer saltou.
Balancei-me para lhe dar uma patada outra vez, mas não lhe dava por um cabelo. Esta vez não me tinha
vigorizado, e o movimento me propulsou fora de equilíbrio. Lancei-me para diante e saltei do mostrador
antes de cair. Bauer agarrou minha perna esquerda no joelho. Suas presas se afundaram. A dor nublou
minha visão. Cegamente balancei meu punho para a fonte da dor, conectando seu crânio, e a enviei
cambaleando-se, provavelmente mais pela surpresa que pela dor. Quando ela se sacudiu, suas presas
rasgaram meu joelho. Minha perna se torceu logo que pus o peso sobre ela. Apertando os dentes,
tropecei com a garrafa de pentobarbital no chão, encontrando-a -intacta- apanhei-a e me atirei
torpemente sobre a primeira cama. Quando Bauer saltou detrás de mim, empurrei a cama e a golpeei
nos pés.
Rasguei o selo da garrafa e enchi a seringa de injeção. Usei muito? Importava-me? Se isto detinha
e Bauer -temporariamente ou para sempre- estava bastante bem. Bauer voou sobre a cama. Comecei
a subir sobre a segunda cama, mas Bauer me agarrou o pé. Suas presas soltaram meu tornozelo quando
meu sapato se saiu de sua boca. O sapato ficou entre seus dentes e ela caiu ao chão, sacudindo sua
cabeça como louca para liberar-se deste novo inimigo. Ainda em cima da segunda cama, levantei a
seringa de injeção sobre Bauer e a enterrei, sentindo uma euforia momentânea enquanto a agulha
penetrava a pele profunda detrás da cabeça de Bauer. Agora tudo o que tinha que fazer era golpear o
êmbolo. Mas tinha posto tanta força no afundar a seringa de injeção que não estava pronta para o
seguinte passo. Liberei a seringa de injeção para conseguir um melhor apertão e Bauer se moveu,
deixando a agulha enterrada inocuamente em seu ombro.
Enquanto Bauer investia para minhas pernas, saltei ao chão. Nesse lapso, afastei-me
rapidamente dos obstáculos. Corri ao redor dos pés da cama enquanto Bauer se lançava para ela.
Empurrei a cama, tratando de golpeá-la novamente, mas ela tinha saltado bastante alto esta vez e o
sorteou facilmente. Enquanto ela dava voltas ao redor, avancei em zig-zag através do quarto. Poderia
me aproximar o suficiente para pressionar o êmbolo de seringa de injeção? Não sem me pôr o bastante
perto para que Bauer arrancasse minha garganta. Poderia encher a segunda seringa de injeção e tentá-
lo outra vez? Procurei a garrafa, mas não a vi e não podia recordar se a tinha tomado. Pouco provável.
Agarrei um carro metálico e o joguei em Bauer quando ela veio para mim. Golpeou-a. Dava-me
volta para encontrar uma nova arma. A meus pés havia um pedaço de tecido branco manchado de
sangue. Com um torso roído em seu interior, e uma cabeça por cima, um pescoço mordido até quase a
decapitação, os olhos amplos, incrédulos. Carmichael. Seus olhos me paralisaram. Eu poderia havê-la
salvado. Se houvessem me trazido aqui antes... quanto tinha esperado? Quanto tinha estado
Carmichael aqui com Bauer? Correu por sua vida? Sentiu os dentes rasgando sua carne? Sabendo que
estava tudo terminado, mas ainda com esperanças, rezando para ser resgatada? Tinha estado morta
antes que Bauer começasse a destroçá-la? Antes que Bauer começasse a comê-la? Ah, Deus. Dobrei-
me, registrando ligeiramente uma mancha imprecisa de movimento a minha esquerda, sabendo que
Bauer vinha, mas incapaz de me mover, incapaz de tirar meu olhar ou meus pensamentos do
Carmichael. Pela extremidade do olho, vi o salto de Bauer. Isso rompeu o feitiço.
Tirei-me do caminho de Bauer, mas ela agarrou a perna de minha calça entre seus dentes e eu
tropecei, me estrelando contra o chão. Quando atirei, ela saltou a meu peito, suas mandíbulas abertas,
esfaqueando para minha garganta. Lancei meus punhos para a parte baixa de sua mandíbula, fazendo-
a perder seu objetivo. Entrelaçando ambas as mãos na pele de seu pescoço, lutei para manter sua
cabeça longe da minha. Suas mandíbulas se fecharam tão perto que uma baforada de ar quente
golpeou minha garganta. A fetidez de seu fôlego me envolveu, o fedor a sangue, raiva e carne crua.
Arqueei minha cabeça para encontrar seus olhos, tratando de afirmar minha superioridade com um
olhar deslumbrante. Isso não funcionou. Nunca funcionaria. Ela tinha ido muito longe para reconhecer
a um lobo dominante. Lutando corpo a corpo com ela, consegui tirar minhas pernas e as empurrar a
seu estômago. Ela retrocedeu. Quando saí de debaixo dela, algo se movia a minha esquerda. Xavier. Ele
agitou seus braços.
—Aqui cachorro, cachorro - chamou ele. —É momento para um novo brinquedo.
Bauer seguiu avançando para mim. Xavier investiu e agarrou um punhado da pele de sua cauda.
Quando se girou, ele desapareceu e reapareceu uns pés mais longe. Ela carregou. Ele apareceu ao outro
lado do quarto.
—Aqui, cachorro - chamou ele. —Vamos, Elena. Tem que golpear ao êmbolo para que a
substância faça seu trabalho.
—Já sei isso - grunhi.
Bauer girou e carregou contra Xavier outra vez. Esta vez, lancei-me atrás dela. Xavier esperou
até o segundo último, logo desapareceu. Bauer tratou de deter-se, mas tinha aumentado muito a
velocidade e se estrelou contra a parede. Saltei sobre suas costas e lhe dava um golpe ao êmbolo da
seringa de injeção. O alívio me alagou. Então compreendi que Bauer se estava girando, com as
mandíbulas abertas. O que tinha esperado eu? Que ela caísse ao segundo de que o sedativo entrasse?
Golpeei minha mão aberta contra o sensível focinho de Bauer. Logo corri como um demônio. Detrás de
mim, ouvi um ruído surdo, mas não girei até que tive saltado para a coberta do mostrador. Bauer jazia
feita um novelo no chão. Durante um momento, fiquei de pé ali, rígida, com o coração palpitante. Então
caí sobre o mostrador.

***
Uma hora mais tarde estive de volta em minha cela. Encontrei um patrão ali – salva o dia, é
arrojado ao isolamento. Grande motivação.
Embora Bauer só tivesse ferido meu pé, ela tinha feito um muito bom trabalho em meu joelho.
Sem o Carmichael, não havia ninguém para atender minhas feridas. Matasumi tinha examinado minha
perna e havia dito que os músculos e os tendões podiam ou não ter sido rasgados. Caramba, obrigada.

***

Tucker tinha costurado os dois rasgões maiores. Não tinha usado um anestésico, mas eu tinha
estado muito esgotada para me preocupar.
Uma vez dentro de minha cela, entrei no banheiro, despi-me, e me dava banho de esponja com
um lenço facial. Uma ducha teria sido estar no céu, mas não podia molhar minhas ataduras. Quando
limpei o sangue do rasgão em meu jeans, recordei as manchas de sangue no hospital e, recordando o
sangue, recordei os pedaços destroçados do Carmichael dispersos através do chão. Detive-me e inalei.
Condenada. Por que não me tinha escutado? Se tivesse eprestado atenção a minhas advertências, se
tivesse retido corretamente a Bauer, se tivesse mantido ae Bauer sob guarda, se tivesse lutado com
mais força para me manter no hospital... tantos ses.
Fechei meus olhos e inalei outra vez. Eu nem sequer sabia o nome do Carmichael. Quando esse
pensamento passou roçando com um ar de culpabilidade por meu cérebro, compreendi que isso não
importava. Eu sabia o suficiente sobre ela para saber que, apesar das erradas aspirações e sonhos que
haviam a trazido para este lugar, ela não tinha merecido morrer assim. Ela tinha sido a única pessoa
que tinha dado um maldito peso por Bauer, e o primeiro ato de Bauer como lobisomem tinha sido
matá-la. Quanto você gosta de sua nova vida agora, Sondra? É tudo o que tinha imaginado?
A porta de minha cela se abriu. Joguei uma olhada até ver o Xavier, por uma vez usando o método
convencional de entrar em um quarto. Ele fechou a porta detrás dele e agitou uma garrafa do Jack
Daniel`s.
—Pensei que poderia usar isto - disse. —Provavelmente não é o bastante bom para seus
padrões, mas Winsloe segue movendo sua provisão de bom material.
Retorci meu jeans sobre a pia e os atirei em cima. Xavier podia ver meu estado de nudez através
da parede de vidro transparente, mas não comentou nada. Talvez a tragédia acima o tivesse sacudido.
Ou talvez estivesse muito cansado para piadas.
Quando Xavier tinha vindo a meu resgate no hospital, eu tinha assumido que Matasumi ou
Tucker lhe tinham enviado, mas mais tarde, quando eles falaram da situação examinando meu joelho,
soube que Xavier tinha atuado sozinho. É obvio, com seus poderes, ele nunca tinha estado em nenhum
perigo real por parte de Bauer, mas ao menos ele se pôs no lugar de outro o suficiente para ajudar.
Deste modo, por uma vez, não lhe disse que se fora ao demônio e fosse de minha cela. Além disso,
realmente necessitava um gole.
Enquanto terminava de me vestir, Xavier encheu os dois copos que havia trazido. Deu-me um
quando saí do banheiro.
—Como passou isto? - perguntei. —Onde estavam os guardas?
—Eles tinham decidido que os guardas já não eram necessários. Sondra ainda estava
parcialmente retida a última vez que a vi. Ela se liberou ou a boa doutora a liberou. Um guarda se deteve
brevemente às seis e trinta e encontrou a Sondra mastigando sua primeira comida de lobo.
—Ninguém ouviu nada?
—Ouça, eles compraram a melhor isolação no mercado, recorda? Eu apostaria que Carmichael
golpeou o intercomunicador, mas ninguém teve o tempo para deter-se e falar. É obvio, ninguém em
segurança central confessa ter ouvido o intercomunicador.
Traguei meu uísque e sacudi minha cabeça.
—Economizei seu traseiro duas vezes agora - disse Xavier. Com o Ryman e Jolliffe ontem e agora
com a Sondra.
—Lamento-o, mas confiscaram meu talonário de cheques quando cheguei. Terá que me faturar.
Ele sorriu abertamente, sem ofender. —O dinheiro não é tudo. Ou isso me seguem me dizendo
eles. Este parece um bom momento para provar a teoria e tentar um método tradicional de comércio.
O sistema de troca. Um intercâmbio livre de impostos de serviços.
—Uh-huh.
—Ah, não me olhe assim - disse ele, jogando outras poucas onças em meu copo. —Não falo de
sexo. Comeria- vivo - Ele fez uma pausa e fez uma careta. —Má escolha de palavras. Minhas desculpas
à boa doutora. O que quis dizer é que me deve um grande momento, e um dia o reclamarei.
—Estou segura de que o fará.
—E enquanto observa, aqui há um pequeno conselho que pode lhe acrescentar. Já estive muito
tempo desde suas bem-vinda, Elena. Ambos o temos feito. O grande homem está bastante zangado
conosco dois agora mesmo.
—Winsloe - Fechei meus olhos e fiz uma careta. —Agora o que fiz?
—Bastante. Sei que deve estar fazendo projetos de fuga, por isso te sugeriria que os apurasse
antes que ele estale - baixou sua voz a quase um sussurro. A—gora, deve te cuidar de duas coisas sobre
fugas. O primeiro é Katzen…
—O feiticeiro misterioso. Nem sequer conheci ao tipo.
—Eu tampouco. Ele é um paranóico filho de cadela. Não tratará com ninguém exceto-
A porta de minha cela se abriu. Winsloe entrou com o Ryman e Jolliffe.
—Muito tarde - murmurou Xavier do bordo de seu copo. Tomou o que ficava, logo agitou o copo
vazio para o Winsloe. —Vê o que tenho que recorrer? Jack Daniel´S. Apenas potável. Faz-me enganchar
aos bons goles, logo os esconde de mim. Bastardo sádico.
Xavier sorriu abertamente, e descobri mais que uma indireta de satisfação nesse sorriso, o prazer
de ser capaz de chamar assim ao Winsloe em sua cara e deixá-lo passar.
—Deve-me uma garrafa do conhaque de todos os modos - continuou Xavier. —Eu gosto de Remy
Martin XO, não o VSOP21. Pode fazer que alguém o deixe em meu quarto mais tarde.
Winsloe arqueou seus as sobrancelhas. —E por que pensa isso?
—Salvei a sua garota. Duas vezes, a verdade das coisas - Sorriu abertamente ao Ryman e ao
Jolliffe. —Mas não recordaremos essa primeira vez, ou sim, meninos? Não sou nenhum fofoqueiro.
Além disso, não foi um grande problema. Mas o que passou acima? Uff. Outro minuto e ela teria sido
um caso perdido.
—Você acredita? - disse Winsloe.
—Ah, sim - Xavier deu palmadas em minhas costas. —Sem ofender, Elena, mas estava vias de
perder sua cabeça.
—Obrigada - respondi, e consegui soar quase como o que queria dizer.
—Então me deve isso, Ty. Deixa essa garrafa em qualquer momento.
Winsloe riu. —Tem bolas, Reese. É o justo então. Devo-lhe isso. Terá seu conhaque. Passa por
meu quarto em aproximadamente uma hora e recolhe-o. Talvez posso tirar algumas monopoliza Louis
XIII para nós, para fazer que o sabor do XO seja como um mau licor destilado ilegalmente.
—Soa a um plano.
Sob os sorrisos rápidos do Xavier e o companheirismo tranquilo do Winsloe se movia uma
corrente de tensão tão forte que quase podia vê-la. Xavier tinha tido razão. Ele estava na merda
profunda. Embora ambos os homens conversavam como se nada estivesse mau, como se só fossem
dois velhos companheiros que planejam reunir-se mais tarde para tomar uns goles. Professores de
merda, ambos.
—Então te verei em meu quarto? - disse Winsloe. —Em uma hora?
—Aposta por isso - disse Xavier. E eu sabia que ele não tinha nenhuma intenção de ir a essa
entrevista, assim sabia que quando ele me disse boa noite, realmente me dizia adeus e que se ele
alguma vez ia cobrar sua nota promissória, não seria dentro destas paredes. Como todos os jogadores
bem-sucedidos, Xavier sabia quando tomar o dinheiro e correr.
Logo depois de que Xavier desapareceu do quarto, o olhar fixo do Winsloe se deslizou sobre mim

21
XO e VSOP são classificações oficiais do envelhecimento da aguardente que dão origem a licores como o Cognac e Armagnac.
e apertou seus lábios.
—Essa é a mesma roupa com a que chegou - disse ele. —Eles lhe deram outra roupa para te
vestir, ou não? E a blusa que te trouxe?
Realmente, eu tinha tratado de usá-la como uma tira para me banhar de reposto, mas não havia
bastante tecido para obter uma ação de limpeza decente. Sei agradável, recordei-me. Se Xavier tinha
razão, eu estava já no lado mau do Winsloe. Outra vez. Não podia me permitir fazer que as coisas
estivessem pior. Não importa quão mal tivessem ido as coisas essa noite, fisicamente e
emocionalmente, tinha que jogar a ser agradável. Tinha que fazê-lo. Independentemente do que ele
dissesse. Independentemente do que fizesse. Não podia devolver o golpe. Seria um jogo de engenhos
e valentia mais complicado que minha partida com Bauer, mas podia dirigir isto. Realmente podia.
—É uma coisa de lobisomem - disse, injetando desculpas em meu tom. —Sabões de lavanderia,
suavizadores de tecido – aromas muito fortes.
—Deveria havê-lo dito. Direi ao pessoal que consiga um detergente sem perfume. Não te
incomode com a roupa que Sondra te subministrou. Pedirei coisas novas para ti.
Ah, alegria.
Winsloe se sentou em minha cama. Fiquei de pé, apoiada na prateleira de livros, tratando com
força de não me sentir abandonada.
—Pode acreditar o que Sondra lhe fez à doutora? - perguntou Winsloe, seus olhos cintilando
como um moço pequeno que viu sua primeira briga de sangue sobre gelo na NHL.
—Isso... passa.
—Alguma vez o tem feito?
—Sou um lobisomem da Manada.
Ele vacilou, como se essa fora uma conclusão ilógica. Então ele se inclinou para diante —Mas
poderia fazê-lo. Obviamente. É mais forte e muito mais jovem.
Quando não respondi, ele saltou sobre seus pés e se balançou sobre seus calcanhares —Fez um
trabalho notável evadindo a Sondra. Melhor que a doutora, isso é seguro - Ele riu. O som descendeu
por minha coluna. —Uma lástima que Xavier tenha interferido. Eu tinha esperado que lutasse contra
Sondra.
—Lamento-o.
Eu deveria lhe haver explicado por que não tinha lutado, mas não podia. Meu esgotamento era
muito grande. Uma desculpa teria que bastar. Talvez se eu fosse cortês, mas não alentadora, ele
tomaria a indireta e se iria.
—Deveria ter lutado contra ela - disse Winsloe.
Sacudi minha cabeça, os olhos abatidos, e caí em uma cadeira.
—Me teria gostado se tivesse lutado contra ela - continuou ele.
Por que melhor não briga você com ela a próxima vez, Ty? Acredito que eu gostaria disso.
Mantive meus olhos baixos então ele não veria a labareda de desprezo.
—Me teria gostado disso, Elena - repetiu ele, inclinando sua cabeça para me olhar.
—Por que não o disse? - Maldição! Muito agudo. Retrocede, retrocede. —Suponho que tive a
impressão de que vocês queriam a Bauer viva. Eu deveria ter perguntado.
Silêncio. Ainda parecia sarcástico? Maldito fora! Troca de tática, paga dobro. Bocejei e esfreguei
minhas mãos sobre minha cara.
—Sinto muito, Ty. Estou tão cansada.
—Você não parecia cansada quando entrei. Dando voltas, conversando com o Xavier. Você dois
parecem bastante unidos.
—Eu só lhe agradecia. Ele me fez um grande favor, saltando em…
Ele estalou seus dedos, seu ressentimento desaparecendo em uma piscada de olho — Um favor.
Isto me recorda, há algo que tenho que te perguntar. Espera e já volto.
Quis perguntar se isto poderia esperar até a manhã. Realmente quis fazê-lo. Mas depois da noite
passada, desesperadamente tinha que retornar a sua boa graça. Não podia lhe negar um favor. Além
disso, ele parecia estar de um humor simpático. Era um bom sinal. Então convoquei meus últimos
ressaibos de força, pus um sorriso meio torpe, e assenti com a cabeça. Não era que meu consentimento
importasse. Winsloe e seus guardas já se foram.

TORTURA
Quando Winsloe voltou eu dormitava sobre a cadeira. Ele irrompeu na cela agitando um sobre
de papel de trapo.
—Levou-me um tempo encontrar estes papéis- disse. —Larry os tinha arquivado já em seu… os
tinha posto em uma caixa. Muito eficiente.
Despertei. Tentei parecer interessada. Por acaso bocejei.
—Aborreço-te, Elena? - perguntou Winsloe. O bordo de sua voz transformou seu sorriso em uma
careta que deixava seus dentes à vista.
—Não, não - Me traguei outro bocejo. —É obvio que não. O que tem ali?
—As fotos de vigilância de um lobisomem que eu gostaria que identificasse.
—Seguro - Maldição, Elena. Deixa de bocejar!— se é que posso, mas minha memória para os
rostos é bastante má.
—Isso está bem. Este não tem um rosto - Winsloe riu. —Não um rosto humano, quero dizer. Ele
é um lobo. Se me perguntar, todos os lobos se vêem iguais, razão pela qual Larry não se incomodou em
lhe pedir uma identificação. Mas então pensei, talvez essa classe de pensamento está muito centrada
nas raças. Você sabe, como essas testemunhas que se param e apontam com o dedo ao tipo negro
porque todos os homens negros lhes parecem iguais.
—Uh-huh —Já tenho o ponto. Por favor. Antes que vá à deriva.
—Então, pensei, talvez todas as caras de lobo não lhe parecem iguais a um lobo. Ou a um lobo
do meio tempo - Outra risada alegre que pôs meus nervos de ponta.
—Farei todo o possível - respondi. —Mas se tiver visto este guia de ruas antes, provavelmente
só o vi como humano. Seu aroma seria melhor.
—Aroma - Winsloe estalou seus dedos. —Agora por que não pensei nisto. Vê-o? Centrado na
raça outra vez. Acredito que sou agudo se consigo identificar o aroma da pizza com pepperoni.
Estirei minha mão para o sobre. Ele se atirou na cama e a golpeou a seu lado, como se não me
tivesse visto estendendo a mão.
—Posso ver…? - Comecei a dizer.
—Uma equipe descobriu a este tipo ontem à noite tarde. Não, suponho que deveu ser cedo esta
manhã. A altas horas de todos os modos.
Assenti com a cabeça. Por favor, por favor, por favor, vai ao assunto.
—Em circunstâncias muito estranhas - refletiu Winsloe. —Desde que lhe trouxemos para ti e à
velha bruxa, tivemos uma equipe tratando de encontrar ao resto de seu grupo. Sempre poderíamos
usar a outro lobisomem, e Larry segue com vontade de adquirir esse demônio de fogo. Perdemos-lhe
a pista depois de que as apanhássemos a vocês dois. Isto não é exatamente um segredo, embora não
diga ao Larry que te disse. Ele não está muito contente com todo o assunto, mas estou seguro de que
te faz sentir melhor saber que seus amigos escaparam.
Winsloe fez uma pausa. E esperou.
—Obrigada —respondi, —por me dizer isso. —Me alegra ver que presta atenção, Elena. Sim, era
um lobo. Um enorme filho de puta de lobo. Parado ali mesmo, olhando-os. Agora esta é a maior
coincidência do universo este lobisomem havia estado seguindo-os. Buscando um pelotão de
salvamento.
—De nada. Assim, tivemos esta equipe explorando a área, recolhendo pistas, a maior parte delas
inúteis. Ontem, Tucker chamou o grupo de volta e enviou outro para substituí-los. Para manter a moral
alta e todo isso. A primeira equipe se voltava e passou a noite em algum motel. À manhã seguinte,
despertaram justo antes do amanhecer, saíram fora e o que acredita que viram ali, no bordo dos
bosques?
—A-uh - Vamos, cérebro, acorda. —A-umm, um lobo?
—Alegra-me ver que dispensa atenção, Elena. Sim, era um lobo. Um enorme filho de puta de
lobo. Parado aí mesmo, olhando-os. Agora esta é a coincidência maior no universo ou este lobisomem
tinha estado seguindo-os. Procurando um pelotão de salvamento.
Meu cérebro dava patadas agora. —Onde estava?
—Importa?
—Todos os lobisomem são territoriais. Tecnicamente os guias de ruas não podem ter um
território, mas a maioria se mantém em um pedaço de terra familiar, como um estado, só movendo-se
entre cidade e cidade. Se eu soubesse onde ocorreu isto, ajudar-me-ia a imaginar quem poderia ter
sido.
Winsloe sorriu. —E te ajudar a imaginar onde está você. Nada disso, Elena. Agora, me deixe
contar minha história. Seguindo, os guardas viram este lobo e se deu conta que isso era um lobisomem.
A gente agarrou uma câmara e lhe tirou algumas fotos. Os outros dois foram procurar as armas
tranquilizantes. Antes que pudessem as tirar, entretanto, o lobo desapareceu. Logo depois disso,
ficaram em marcha e entraram nos bosques. E sabe o que? Ele estava aí mesmo, como se esperasse.
Eles se aproximaram, ele correu, logo se deteve e esperou. Atraindo-os. Pode acreditá-lo?
—Os lobisomem retêm a inteligência humana. Não é que estranho - Mas o era. Por quê? Porque
atrair à presa é uma tática animal e os guias de ruas não usavam táticas de animais. Não, corrigi-me
rapidamente. Eles raramente usam táticas de animais. É obvio podiam. Alguns o faziam.
—Espera - disse Winsloe, Sorrindo abertamente. —Isto fica mais estranho ainda. Sabe o que fez
este lobo depois? Ele os separou. Toma uma equipe de comandos, incluídos antigos marinhe, e imagina
como separá-los. Então ele começa a liquidá-los. Matou-os! Pode acreditá-lo? - Winsloe riu e sacudiu
sua cabeça. —Homem, lamento não ter estado ali. Um lobisomem convertendo a esses militares
imbecis em idiotas, vagando pelos bosques, sendo liquidados como parvos em um movimento rápido
de horror. O lobo matou dois e logo foi depois do terceiro. E o que acredita que fez?
Meu coração palpitava agora — O matou?
—Não! Esta é a piada. Ele não o matou. Fê-lo correr. Como se tratasse de esgotá-lo, como se
queria mantê-lo vivo, mas muito fraco para lutar. Bem, talvez estou vendo muito nisto, atribuindo
motivações humanas a um animal. Antro… como chamam a isto?
—Antropomorfismo - sussurrei, sentindo como se todo o ar tivesse sido extraído de meus
pulmões, sabendo que isto não era nenhuma interrupção casual.
—Exato. Antropomorfismo. Ouça, isso é o que seu noivo estuda, verdade? Religiões
antropomórficas. Aborrecido como o inferno se me perguntar, mas a gente diz isso sobre os
computadores, também. Cada um com suas coisas. Agora onde ia eu?
—O lobo - sussurrei. —Esgotando ao último sobrevivente.
—Não te vê muito bem. Talvez deveria vir aqui e te deitar. Há muito espaço. Não? Acomode-te.
Bem, então o lobo correu em círculos ao redor deste último tipo. Só que algo esteve mau.
Quis tampar meus ouvidos. Eu sabia o que vinha. Havia só um modo de que Winsloe pudesse ter
as fotos nesse sobre, só um modo de que conhecesse esta história. Se o último membro da equipe
tivesse sobrevivido. Se o lobo…
—De algum jeito esse ardiloso filho de puta errou. Calculou mal uma volta ou uma distância
talvez. Ficou muito perto. O guarda disparou. Pow! Lobo morto.
—Me deixe… deixe-me ver as fotos.
Winsloe sacudiu-as sobre para mim. Quando caiu ao chão, cambaleei-me para ele, rasgando-o e
observando o conteúdo. Três fotos de um lobo. Um lobo de pele dourada, e olhos azuis. Senti uma
serpente subindo por minha garganta.
—Conhece-o? - perguntou Winsloe.
Pus-me de coque, agarrando as fotos.
—Não? Bem, está cansada. As guarde. Descansa um pouco e pensa-o. Xavier provavelmente me
espera acima. Voltarei pela manhã.
Winsloe partiu. Não o vi ir-se. Não o ouvi. Tudo o que podia ver eram as fotografias do Clay. Tudo
o que podia ouvir era a palpitação de meu sangue. Outro gemido subiu sigilosamente por meu peito,
mas morreu antes de alcançar minha boca. Não podia respirar. Não podia fazer som algum.
De repente meu corpo convulsionou. Uma onda de agonia me cegou. Caí-me, as fotos revoaram
sobre o tapete. Os músculos de minhas pernas se apertaram imediatamente, como se tivesse sido
apanhada por mil cavalos charley. Gritei. As ondas golpearam uma atrás de outra em rápida sucessão
e gritei até que não pude respirar. Meus membros se voltaram flácidos e se sacudiram como se
estivessem sendo deslocados. Alguma fraca parte de meu cérebro compreendeu que estava mudando
e me disse que devia obter o controle antes que me rasgasse. Não o fiz. Deixei-o ir, deixei que a corrente
de agonia me atravessasse, dava-lhe a bem-vinda a cada novo tortura justo inclusive enquanto gritava
pedindo a liberação. Finalmente terminou. Fiquei ali, ofegante, vazia. Então ouvi algo. Um arranhão
débil no vestíbulo. Winsloe estava ali. Olhando. Quis me levantar de um salto, carregar contra a parede,
e me golpear contra ela até que se rompesse ela ou eu. Quis rasgá-lo, bocado por bocado, mantendo-
o vivo até que tivesse tirado o último chiado de seus pulmões. Mas a pena me esmagou no chão, e não
podia encontrar nem sequer a energia necessária para estar de pé. Consegui levantar meu ventre da
terra e me arrastei para a greta estreita entre o pé da cama e a parede, um lugar onde Winsloe não
podia lombriga. Enrosquei-me no diminuto espaço, coloquei minha cauda debaixo de mim, e me rendi
à dor.

***

Passei a noite rememorando as palavras do Winsloe, lutando contra minha pena ao recordar
cada uma delas. Onde tinham visto os guardas ao lobo? Atrás do motel ou ao lado dele? Exatamente
quando passou? O que quis dizer Winsloe com “antes do amanhecer”? Tinha estado claro já? Enquanto
me fazia estas perguntas, uma parte de mim se perguntava se eu permitiria que minha mente vagasse
por futilidades antes de encarar a espantosa possibilidade da morte do Clay. Não. Estas perguntas
continham pistas, pistas que revelariam a mentira nas palavras do Winsloe. Tinha que encontrar essa
mentira. Por outra parte, temi que meu fôlego se entupisse em minha garganta e me asfixiaria de pena.
De modo que me torturei com a história do Winsloe, sua odiada voz invadindo e enchendo meu
cérebro. Encontra a mentira. Encontra a inconsistência, a palavra estranha, o detalhe tão obviamente
incorreto. Mas não importa quantas vezes revisei de novo sua história, não podia encontrar um engano.
Se Clay tivesse encontrado ao pelotão de salvamento, ele teria feito exatamente o que Winsloe
afirmava que tinha feito: atraí-los ao bosque, separá-los, e matá-los, deixando um vivo para torturar e
extrair informação. Não havia nenhum modo de que Winsloe pudesse inventar algo tão verdadeiro
sobre o caráter do Clay. Tampouco havia qualquer modo de que Winsloe pudesse ter adivinhado o que
Clay faria nessa situação. Então havia dito a verdade.
Meu coração se chocou contra minha garganta. Ofeguei. Não, tinha que ser uma mentira. Eu
saberia se Clay tivesse morrido. Eu haveria sentido o momento em que a bala lhe golpeasse. Ah, Deus,
queria acreditar que eu saberia se ele estivesse morto. Clay e eu compartilhávamos uma união
psicofísica, talvez porque ele era quem me tinha mordido. Se me fizessem mal e ele não estava perto
para vê-lo, ele o sentiria, sabendo que algo andava mal. Eu experimentaria as mesmas ferroadas, a
mesma ansiedade flutuante e inquietação se fizessem mal a ele. Eu não havia sentido nada essa manhã.
Ou sim? Eu tinha estado dormida ao amanhecer, drogada pelo sedativo de Carmichael. Haveria sentido
algo?
Detive-me. Não tinha nenhum sentido falar de situações caprichosas como premonições e
pontadas psíquicas. Atentei aos fatos. Encontra a mentira ali. Winsloe disse que o último guarda matou
ao Clay, logo voltou com as fotos e a história. Se eu pudesse falar com esse guarda, talvez ele não fosse
um mentiroso tão consumado como Winsloe. Talvez, inalei bruscamente. O guarda havia tornado com
as fotos e a história. E o corpo?
Se esse guarda tivesse matado ao Clay, ele teria tornado com seu corpo. Pelo menos, lhe teria
tomado fotos. Se havia um cadáver ou fotos de um, Winsloe não se teria conformado me expondo
fotografias do Clay vivo. Ele sabia exatamente quem era esse lobo e me tinha contado a história para
me torturar, me castigar. Este era meu castigo por desobedecê-lo a noite anterior. Um pequeno passo
em falso e ele tinha repartido golpes a destro e sinistro com o pior castigo que eu poderia imaginar. O
que faria ele se eu realmente o zangasse?

***
Finalmente, depois de que me tive persuadido de que Clay estava vivo, o esgotamento chegou e
dormi. Embora me tinha dormido como lobo, despertei como humana. Passava às vezes, em particular
se uma mudança era provocada pelo medo ou a emoção. Uma vez que nos relaxamos no sonho, o corpo
se transformava sem causar dor de volta à forma humana. Então despertei, nua, com minha cabeça e
torso intercalado entre a cama e a parede e minhas pernas se sobressaindo.
Não me levantei imediatamente. Em vez disso, pensei em modos de apanhar ao Winsloe em
uma mentira, então estaria segura sobre o Clay. Tinha que estar segura. Winsloe tinha deixado as fotos.
Talvez se eu as estudasse veria algo.
—Abre esta maldita porta agora! - gritou uma voz.
Pus-me direita, golpeando minha cabeça contra a cama. Aturdida, vacilei, logo saí de meu
esconderijo.
—Me tirem daqui!
A voz de uma mulher. Deformada, mas familiar. Estremeci-me quando a reconheci. Não. Por
favor não. Não tinha sofrido eu bastante?
—Sei que me ouve! Sei que está aí!
Com grande relutância, movi-me para o buraco na parede entre minha cela e a seguinte. Eu sabia
o que veria. Meu novo vizinho. Inclinei-me para olhar. Bauer estava de pé olhando para a parede de
vidro transparente unidirecional, golpeando seus punhos silenciosamente contra ela. Seu cabelo estava
desordenado e emaranhado, seu rosto ainda manchado de sangue. Alguém a tinha vestido com um
traje cinza pouco apropriado que deve ter pertencido a um dos guardas menores. Nada de ser a
herdeira meticulosamente escovada. Qualquer que visse a Sondra Bauer agora tomaria por uma doente
mental de meia idade encerrada nas vísceras de algum asilo gótico.
Depois do alvoroço da noite passada, eles tinham posto a Bauer na seguinte cela. A última fibra
de esperança de meu sonho de fuga se evaporou. Bauer agora era uma presa tanto como eu. Ela não
podia me ajudar nenhum pingo. Mais que isso, eu agora tinha a um lobisomem enlouquecido, que tinha
matado a uma mulher na cela do lado, com um buraco na parede que nos separava. O que estava
fazendo Winsloe? Não era a tortura da noite passada o bastante? Compreendi que nunca seria o
bastante. Enquanto eu estivesse neste lugar, Winsloe encontraria novos modos de me perseguir. Por
quê? Porque podia.
Quis avançar lentamente para trás, dentro de meu buraco e ir dormir. Não dormiria, certamente,
mas poderia fechar meus olhos e apagar este pesadelo, escapar a algum mundo de fantasia feliz em
minha mente, e viver ali até que alguém me resgatasse ou me matasse, o que viesse primeiro.
Em vez disso, com grande esforço, deixei-me cair de minha cama e contemplei o quarto. Minha
mudança tinha destroçado minha roupa. Um tanto para minha rebelião contra o guarda-roupa. Exalei.
Não havia tempo para meditar. Teria que ter posto o que eles me tinham dado. Primeiro passo: pôr-
me apresentável. Logo averiguaria por que Bauer estava na cela ao lado.

***

Quando saí do banheiro, limpa e vestida, voltei para o buraco e olhei às escondidas através dele,
se por acaso a presença de Bauer ali tivesse sido só uma torcedura sádica de minha imaginação. Não o
era. Ela estava aninhada ao pé da porta, gemendo e arranhando o vidro transparente como um gatinho
apanhado na chuva. Eu poderia havê-la compadecido, mas estava livre de compaixão.
Senti a alguém nos corredores. Talvez não fosse tanto “sentir” como assumir que Tess ou
Matasumi observavam ao novo lobisomem. Passei meus dedos através de meu cabelo, endireitei minha
camisa, e avancei para minha própria parede de vidro transparente unidirecional.
—Poderia falar com alguém, por favor? - perguntei, tranquila e claramente, esperando me
afastar da lunática da porta do lado.
Momentos mais tarde, dois guardas entraram em minha cela.
—Poderia alguém, por favor, me dizer por que a Sra. Bauer está ao lado? - Perguntei.
Eles se olharam, como se debatessem se deviam responder. Então a gente disse, — O Doutor
Matasumi sentiu que era necessário confiná-la. Por razões de segurança.
Merda — Certamente entendo isso. Mas poderia me dizer por que ela está nesse quarto em
particular? Há um buraco na parede que une nossas celas.
—Acredito que eles são conscientes disso.
—Eles? - Perguntei, com toda inocência e com os olhos muito abertos.
—O Doutor Matasumi e o Sr. Winsloe.
—Ah - Inalei brandamente. Meus dentes doíam com toda esta doçura. —Então eles são
conscientes que deram à Sra. Bauer uma cela com acesso à minha?
—O Sr. Winsloe sentiu que preenchia todas as exigências de segurança necessárias.
Com um sorriso tão doce como pude pôr, agradeci-lhes por seu tempo e partiram. Então eu tinha
tido razão. Esta era a idéia do Winsloe. Pôr a Bauer na cela ao lado da minha, deixar o buraco aberto
sem arrumar, e ver o que acontece.
Uma vez que se foram, revisei o buraco. Eu o havia aberto quase até o aço, e media menos de
trinta centímetros quadrados. Assim não havia verdadeiro risco de que Bauer se abrisse caminho. Ao
mais poderíamos nos comunicar.
Sem advertência, Bauer saltou sobre seus pés e fechou de repente seus punhos contra o vidro
transparente. — Abre esta porta, seus bastardos de merda! Abram-na ou arrancarei seus malditos
corações! Sou o grande lobo mau agora. Posso resfolegar e posso soprar e os farei voar em pedacinhos
- Sua voz se transformou em uma risada aguda entorpecida pelo soluço.
Bem, teoricamente poderíamos nos comunicar.

***

Examinei as fotos do Clay procurando pistas em relação a quando e onde tinham sido tomadas.
A data estampada na parte posterior dizia 27 de Agosto. Mentalmente contei os dias. Em 27 de agosto
tinha sido ontem. Então a história do Winsloe tinha sido certa ao menos na parte sobre alguém que
tinha tomado estas fotografias do Clay na manhã anterior. Eu ainda rechaçava acreditar que ele estava
morto. Julgando através do realismo do conto do Winsloe, assumi que Clay realmente tinha matado a
vários membros de seu pelotão. Isso tinha sentido. Se Jeremy descobrisse que esses guardas seguiam
ao grupo, ele teria enviado ao Clay atrás deles com instruções de trazer um vivo para interrogá-lo. Mas
a última vez que eu tinha visto o Clay, ele não tinha estado em forma para missões de elevado risco.
—Reconhece-o?
Girei para ver o Winsloe e a seus dois guardas em minha cela.
Winsloe sorriu. —A audição de lobisomem não está ao nível adequado esta manhã, Elena?
Vê quanto dano provocou seu sádico estratagema, Ty? De acordo, o desmoronamento da noite
anterior é toda a recompensa que vai conseguir. Eu estava de volta e pronta para entrar em jogo.
—Lamento-o - respondi. —Estava ocupada estudando estas fotografias. Ele me parece
vagamente familiar, mas não posso uni-lo a um nome - Com os olhos ainda nas fotos, perguntei, — E
como foi o assunto do Xavier e o conhaque?
Uma fração de segundo de vacilação. Joguei uma olhada pela extremidade do olho e vi a boca
do Winsloe apertar-se. Marquei-me um tanto. Mordi-me a bochecha para me impedir de sorrir
abertamente. Winsloe fez rodar seus ombros e cruzou o quarto. Quando ele me olhou de novo, tinha
reposto seu sorriso.
—O bastardo nunca se mostrou - disse Winsloe. —Provavelmente parou em algum lugar a
dormir com o Jack Daniel´s.
Ah, sim. Dormir em um hotel de cinco estrelas em algum lugar com uma carteira cheia do
dinheiro em efetivo do Winsloe.
—Provavelmente - disse. —Agora, sobre este lobo que quer que identifique, como te disse
ontem à noite, um aroma seria melhor. Consiga-me um aroma e, se tiver conhecido ao tipo, saberei.
—É assim de boa?
Sorri —A melhor. Se tivesse um objeto de vestir ou - sacudi minha cabeça. —Já sei. O corpo. Tem
o corpo, verdade? O doutor Matasumi não deixaria o corpo nos bosques para que alguém o
encontrasse. Me leve a ele e te darei essa identificação.
Winsloe tirou minha cadeira e se sentou nisso, procurando uns segundos extras. Vamos, idiota.
Pensa rápido.
—Bom, isso é um problema - disse Winsloe. —O guarda realmente se reorganizou depois de que
lhe pegou um tiro ao bruto. Voltou aqui. Larry e Tucker o envergonharam tanto que não acreditaria.
Deixar um cadáver de lobisomem nos bosques? Não contratamos a estes tipos por seus miolos, isso é
seguro. Tucker trouxe uma nova equipe ontem pela tarde e os enviou para recuperar o corpo. Só que
não puderam. Adivinha por que.
—Foi-se.
Winsloe riu e inclinou o respaldo —Uma companhia de truques. Já lhe imagina. Eles encontraram
o lugar e sangue, mas nenhum corpo. Agora Larry está furioso, pensando que o projeto está em perigo
porque alguém encontrou o corpo. Mas há outra possibilidade, ou não? Que o lobisomem ainda esteja
vivo - Winsloe cantarolou o tema do Halloween. —De modo que ordenei que outra equipe começasse
a procurar nosso mistério imortal. Mas não se preocupe.
—Sobre o que?
Winsloe sorriu abertamente — Sei o que está pensando, Elena. Não ponha cara de pintinho para
mim. Preocupa-se que o encontremos. Tenho razão?
—Realmente não me importa.
—Claro que o faz. Está preocupada que tragamos para este ‘guia de ruas’ aqui e ele trate de te
ferir, como Lake. Ou, pior ainda, que possa usurpar sua posição aqui, que o encontremos um espécime
mais interessante e lhe eliminemos. Mas isso não passará. Não deixarei que aconteça, Elena. É muito
importante para mim. Nenhum outro lobisomem tomará seu lugar. Assegurei-me que isso. Antes que
essa última equipe partisse, separei-os para lhes falar à parte e prometi uma recompensa de cem mil
dólares para o que me trouxesse a cabeça. Só a cabeça. Deixei-o claro. Não quero ao lobisomem vivo.
Ele ficou de pé para partir. Apertei meus punhos, minhas unhas afundando-se em minha palma
até que cheirei o sangue. Winsloe deu cinco passos. Ryman me sorriu com satisfação, logo abriu a porta
para o Winsloe. Antes de atravessá-la, Winsloe estalou seus dedos, atirou um sobre menor de seu bolso,
e o lançou a meus pés.
—Quase o esquecimento. Novas fotos de vigilância. Frescas da noite passada. Parece que Tucker
estava usando seu cérebro, enviando a uma nova equipe para encontrar a seus amigos. Encontraram-
nos. Durante umas poucas horas ao menos. Perderam a pista após, mas te manterei informada. Sei que
está preocupada.
Apertei meus dentes. Adagas de fúria ameaçaram partindo meu crânio.
—Parece que procuram a alguém - continuou Winsloe.
—A mim - consegui dizer.
—Ah, assumo isso, mas agora alguém mais se perdeu. Nossa equipe conseguiu capturar alguns
pedaços de conversa. Alguém saltou do navio. Alguém importante. A questão é que temos problemas
para imaginar quem é. Larry está trabalhando nisso, comparando estas novas fotografias com as
antigas. Talvez possa ver quem se perdeu. Embora não é necessário que me diga. Eu não te pediria que
delatasse a seus amigos.
Winsloe partiu. Fechei meus olhos, sentindo a punhalada de dor atravessar meu crânio e minha
palma. Tomou vários minutos mais estar pronta para olhar as fotos. Quando o estive, encontrei
fotografias do grupo rastreando e passando os laços a zona. Não tive que imaginar quem se perdeu.
Um olhar à expressão do Jeremy me disse isso. Clay se tinha ido. Ele não tinha estado atuando sob as
ordens do Jeremy na manhã anterior, quando tinha detectado a antiga equipe de busca. Ele estava
sozinho. Sozinho.
Clay vinha atrás de mim.

***

Passei o resto da manhã atormentando meu cérebro com um novo plano de fuga. Tinha que sair.
Não finalmente, não logo, a não ser agora, imediatamente, antes que Winsloe se cansasse deste último
jogo e aumentasse a aposta inicial outra vez. Mas por mais que lutava para obter uma idéia, maior o
pânico sentia, e mais pânico me entrava, mais difícil se me fazia obter uma idéia. Tinha que me acalmar
ou nunca conseguiria pensar em algo.

***

Bauer se sentou mais tarde que na manhã. Quando estive segura que estava lúcida - o que
determinei pelo fato de que ela tinha deixado de gritar e tinha começado a comer seu café da manhã -
me aproximei do buraco e tentei falar com ela. Ignorou-me. Quando terminou sua comida, procurou
um lápis e papel em uma gaveta e escreveu uma carta de duas páginas, logo caminhou até a porta e
cortesmente pediu a alguém que a entregasse. Eu podia adivinhar o conteúdo: uma súplica de
liberação, uma versão mais razoável do que tinha estado vociferando durante as últimas horas.
De modo que Bauer queria sair. Bom, ao igual ao resto de nós. Parecia ela “uma convidada”
agora? Quando pensei isto, um plano se formou em meu cérebro. Bauer queria sair. Eu queria sair.
Quando eu tinha ido cuidar dela, eu tinha esperado que em sua gratidão ela me ajudasse a escapar. A
gratidão era inadmissível agora. Mas que havia com respeito a uma fuga? E se eu lhe oferecesse levá-
la comigo? Bauer conhecia as debilidades do complexo e seu sistema disso segurança era se estivesse
o bastante sã para recordar. Combinando minha força e experiência com seu conhecimento
poderíamos fazer uma equipe formidável. Não era exatamente um plano completo e infalível, mas era
um princípio.
Um problema que subtraía —bom, de acordo, havia um montão de problemas restantes— mas
um bem grande era como escapar das celas. Considerei a possibilidade de organizar algo que me tirasse
de meu quarto. Seguro, provavelmente eu poderia fazê-lo, mas poderia tirar Bauer ao mesmo tempo?
Pouco provável. Quando os guardas trouxeram meu almoço, estudei a porta quando se abriu,
observando como operava, procurando uma debilidade. Então notei algo tão visível que me dava uma
patada por não havê-lo visto antes. Os guardas não fechavam completamente a porta. Nunca o faziam.
Por quê? Porque a porta só se abria do exterior e eles nunca traziam um guarda extra para que ficasse
de pé no corredor e lhes abrisse, enquanto que Bauer e Matasumi sempre o faziam. Quando entravam,
deixavam a porta entreaberta uns centímetros, lhes dando o espaço de um dedo para abri-la. Como
poderia usar isto em minha vantagem? Bem, podia deixar inconsciente a um guarda enquanto o outro
tirava sua arma e me disparava —de acordo, má idéia. Poderia dizer, —Ouça, o que vai avançando
lentamente pela parede? —e conseguir escapar enquanto eles se davam volta. Umm, não. Melhor
pensá-lo um pouco.

ALIANÇA
Os guardas levaram meu almoço à uma. Quando abriram a porta para partir, movi-me
sigilosamente para jogar uma olhada ao vestíbulo. Tess não estava ali. Hora de comer para todos. Bom.
Enquanto Bauer estivesse lúcida e ninguém escutasse, eu poderia discutir o tema fuga com ela. Seria
seguro? Ela poderia tratar de ganhar o favor do Matasumi me vendendo, mas duvidava de que estivesse
o bastante se desesperada para arrastar-se. Não ainda. Além disso, considerando suas circunstâncias e
sua animosidade para mim, ninguém lhe acreditaria se ela realmente falasse.
Escutando se por acaso apareciam ruídos reveladores do corredor, movi minha cadeira mais
perto do buraco, sentei-me, e olhei atentamente através dele. Bauer estava andando.
—Sente-se um pouco melhor? - perguntei.
Ela continuou andando.
—Não quero fazer as coisas mais más - respondi. —Mas sabe que eles não lhe deixarão sair dessa
cela. Para eles, você trocou de lado.
Uma andada para a porta, para a TV, de volta à porta.
—Se quer sair, terá que sair por ti mesma.
Ainda nenhuma resposta. Nem sequer uma piscada em minha direção.
—Tem que escapar - disse.
Bauer virou para mim. —Escapar? - Uma risada áspera. —A que? A uma vida como monstro?
Eu poderia lhe haver recordado que ela escolheu essa vida monstruosa, mas não o fiz —Sei que
é mau agora, mas se voltará mais fácil…
—Não quero que se volte mais fácil! - grunhiu ela, avançando a pernadas para o buraco. —
Quero que se vá! Isso é o que quero que eles façam por mim. Desfazer-se disso. Tirar esta maldição de
minhas veias e me fazer normal outra vez.
—Eles não podem fazer isso - respondi brandamente. —Ninguém pode fazê-lo.
—Merda! - A baba voou de seus lábios. —Quer que eu sofra, verdade? Desfruta disto. ‘Sondra
tem o que se merece’. Sim-sim-sim. Bem, eu não merecia isto. Nunca me disse que seria assim.
Enganou-me!
—Enganei-te? Adverti-te de não fazê-lo.
—Não me disse tudo.
—Ah, pois me perdoe. Quando entrou aqui como uma louca agitando uma seringa de injeção e
vociferando sobre o começo de uma nova vida emocionante, eu deveria ter tirado de repente meu
manual ‘Do modo que Quer Ser um lobisomem’ em sua versão de renúncia e te fazer assiná-lo.
Bauer agarrou uma cadeira, lançou-a para o buraco, logo foi por volta de banheiro dando passos
fortes.
Tinha que trabalhar em minha aproximação.

***

Umas horas mais tarde, a prudência de Bauer fez outra aparição como convidada. Eu estava
preparada. Plano dois: ser mais empática. Se por uma parte encontrava difícil sentir muita compaixão
por alguém que tinha feito o que ela, em algum lugar profundamente dentro de mim havia um impulso
débil para a empatia. Bauer era outro lobisomem feminino, provavelmente o único que eu encontraria
alguma vez. Recordando o horror de minha própria transformação, entendi pelo que ela estava
passando. Winsloe me tinha perguntado se eu tenha feito alguma vez algo como o que Bauer tinha
feito a Carmichael. Minha resposta não tinha sido completamente honesta. Quando eu tinha escapado
do Stonehaven, meu cérebro cheio de demônios tinha cansado em uma loucura incontrolada e raiva.
Eu tinha matado a duas pessoas antes que Jeremy me resgatasse. A diferença do que Bauer fez com
Carmichael, eu não conhecia minhas vítimas e não os tinha torturado ou despedaçado. Ainda assim, eu
tinha feito uma coisa que nunca esqueceria. Tinha comido as minhas vítimas. Era eu diferente de Bauer?
Eu não me tinha introduzido a saliva de um lobisomem, mas me tinha apaixonado por um homem que
suspeitava que fosse perigoso. Eu não tinha matado a uma amiga, mas tinha matado a gente inocente.
E tanto como resistia, entendia a Bauer. E queria enfatizar.
A pergunta era: poderia enfatizar? Tal como meu torpe episódio consolando a Savannah tinha
demonstrado, eu não era naturalmente uma pessoa empática. Apartando minhas dúvidas, coloquei-
me no buraco e examinei a cela de Bauer.
—O que está fazendo? - perguntei.
Bauer se girou para me confrontar — Que merda pensa que faço? - Ela inalou bruscamente,
fechando os olhos como se sentisse dor. —Esta não sou eu. Este corpo, esta personalidade. Não sou
eu. Não uso este idioma. Não sou raivosa. Não suplico por minha vida. Mas sabe o que é o pior? Estou
ainda aqui, apanhada dentro, procurando.
—Seu cérebro ainda está aceitando a transformação. Ficará…
—Não me diga que ficará mais fácil.
Eu sabia o que tinha que dizer, o que tinha que compartilhar, mas as palavras estavam apanhadas
em meu peito. Pisoteando meu orgulho, arranquei-as à força.
—Quando fui mordida, eu…
—Não o faça.
—Só queria dizer…
—Não te compare comigo, Elena. Não temos nada em comum. Se te dava essa impressão antes,
era só porque queria algo de ti.
—Talvez, mas temos algo em comum agora. Sou…
Sua voz foi fria — Não é nada, Elena. Uma dona ninguém que se converteu em alguém por acaso.
Voltar-te uma lobisomem foi o lucro que definiu sua vida, e não teve parte nisso. Seu dinheiro, sua
juventude, sua força, sua posição, seu amante, todo isso é teu só porque foi o único lobisomem
feminino.
—Eu…
—Sem isso, o que é? Uma jornalista anônima de meia jornada cujo salário anual não cobriria
meu guarda-roupa.
Com isto, ela deu a volta, avançou dando fortes passos por volta de banheiro, e começou a tomar
banho.
Já sabe, a empatia realmente é uma rua de duplo sentido.

***

Às sete os guardas trouxeram minha comida. Como de costume, a gente levou a bandeja
enquanto o outro se mantinha olhando, a arma pronta. Ignorei-os, tendo abandonado a esperança de
pôr a um guarda de meu lado ou tirar qualquer informação valiosa deles. Melhor tratá-los como garçons
surdos-mudos. Tinha outras coisas de que me preocupar.
Quando entraram, eu estava em minha cama, idealizando projetos de fuga. Depois de um
momento, notei que o guarda que levava a bandeja demorava na mesa, olhando as fotos do Clay. Ele
assentiu com a cabeça para seu sócio e lhe deu uma cotovelada, atraindo sua atenção às fotografias.
—É ele - articulou.
—Conhece-o? - perguntei.
O guarda se surpreendeu, como se a cama tivesse falado.
—Conhece-o? - repeti. —Ao lobo das fotos?
Ambos os homens me olharam como se eu me tivesse unido a Bauer em seu asilo privado,
provavelmente pensando que eu deveria ser a que reconhecesse a um lobisomem, não eles.
—Tyrone me deixou isso - respondi, ainda deitada, fingindo toda a despreocupação que pude
reunir. —Ele imaginou que eu poderia ser capaz de identificar o tipo, mas não pude. Parece que causou
alguma animação em um motel.
Agora eles me olhavam como se definitivamente estivesse pronta para uma camisa de força.
—Não o reconhece? - perguntou o que estava na porta.
Sufoquei meio bocejo. —Deveria?
—Este não é seu companheiro?
—Clay? Não, Ele nunca deixaria ao Alfa -nosso líder.
—Então por que… - o guarda se deteve, virou-se para seu sócio e baixou a voz. —Matasumi sabe
isto?
—Por quê? - disse o outro guarda, não incomodando-se em sussurrar. —Não importa quem é o
lobisomem. Se alguém o vir por aqui outra vez, matamo-lo. Essa é a ordem.
Minhas mãos se apertaram, mas obriguei a não fazer ruído, a não dizer uma palavra, não fazer
nenhuma pergunta. O segundo guarda encolheu os ombros, e partiram sem lançar sequer um olhar em
minha direção.
Clay estava perto. Eu tinha tido razão. Ele vinha por mim. Eu não podia lhe deixar fazer isso. Havia
muito que ele não sabia, muito para o qual não estava preparado. Clay tinha desarmado o pelotão de
salvamento do Tucker bastante facilmente, mas aqui havia ao menos cinco vezes mais guardas, mais
um edifício subterrâneo fortificado com um sistema de segurança de primeira categoria, tudo rodeado
por um bosque cheio com as armadilhas do Ty Winsloe. Tinha que deter o Clay antes que tratasse de
me resgatar. Para fazer isso, precisava escapar rápido. Joguei uma olhada para a jaula de Bauer. Era
momento de lançar a luva de pelica.

***

Era quase meia-noite quando Bauer esteve lúcida outra vez. Durante os dois dias passados, eu
tinha estado afiando minha capacidade de julgar quando havia alguém no corredor. Em parte o fazia
escutando, em parte sentindo. Embora fosse difícil saber se alguém nos olhava, havia um modo
definitivo de saber se nos escutavam. O intercomunicador. Quando estava aceso, fazia um clique
audível, logo assobiava brandamente até que alguém o apagava. Depois de que Bauer recuperou seus
sentidos, esperei até que os guardas fizeram seu percurso de cada hora, escutei com cuidado o
zumbido do intercomunicador, logo me reclinei em minha cama.
—Ainda pensa que vão soltar-te, verdade? - Chamei-a.
Bauer não respondeu, embora eu soubesse que podia me ouvir.
—Já sabe - continuei, —havia alguém que te teria soltado. Alguém que provavelmente não teria
deixado que lhe lançassem nessa cela em primeiro lugar. Infelizmente, você a despedaçou.
Bauer inalou, mas não respondeu.
—Sei que o recorda - respondi. —É como seu disse, parte de você está ainda ali, uma parte sã,
olhando. Recorda como foi? Persegui-la? Ver sua confusão? Sua incredulidade? Escutá-la suplicar por
sua vida? Ainda pode imaginá-la, o olhar em seu rosto quando arrancou sua garganta - Fiz uma pausa.
—Recorda como sabia?
Um ruído na outra cela. Logo arcadas. Esperei. Bauer ficou no banheiro.
—Quem te vai soltar, Sondra? - Chamei-a. —Quem vai arriscar se a ser sua seguinte comida?
Quem aí fora quer a uma maldita? Só uma pessoa o fazia e agora está em um saco de lixo... ou em
várias sacos de lixo.
—Para - A voz de Bauer estava tranquila, quase tremente.
—Quiçá planeja escapar por ti mesma. Então o que? Aonde irá? De volta a casa, a comer a
mamãe e papai?
—Para - Mais forte, mas ainda instável.
—Isso é o que acontecerá. Não será capaz de terminar a fome e as mudanças. Eventualmente
poderia obter controle suficiente para sobreviver, mas a que preço? Quantos morrerão primeiro?
Começará a matar porque terá que fazê-lo, logo seguirá fazendo-o porquê pode, porque depois de um
tempo desenvolverá o gosto por isso, o poder e a carne. Isso é o que acontece com os guias de ruas.
Fiz uma pausa antes continuar. —Falando de guias de ruas, o primeiro que encontre te matará.
É óbvio, provavelmente te violará primeiro, já que essa será sua única possibilidade de acasalar-se com
uma fêmea de sua própria espécie.
—Te cale.
—Estou vendo seu futuro aqui, Sondra. Grátis. Só uma pessoa pode te ajudar a evitar tudo isto.
O Alfa da manada. A pergunta é, como conseguir sua ajuda? Bem, se escapar por ti mesma, poderia te
apresentar em sua escada, suplicar piedade. Ele será muito amável. Convidar-te-á a entrar, tomará seu
casaco, mostrar-te-á o salão, oferecer-te-á café. Então apresentará ao Clayton. E esse formoso rosto
que admirará será a última coisa que verá. Quer dizer se ainda estou viva. Se morrer aqui, eu realmente
não te recomendaria que fosse a nenhuma parte perto do Estado de Nova Iorque. O inferno pelo que
passas agora não é nada comparado com o que Clay te fará se morrer.
A porta de banheiro se fechou de repente — Trata de me assustar.
Ri-me — Sabe melhor, Sondra. Conheceu o Patrick Lake. Sabe o que são os guias de ruas.
Conhece a reputação do Clay. Ofereço-te uma saída. Ajude-me a escapar e me assegurarei de que
Jeremy te ajude.
—Por que deveria acreditar que manteria sua palavra?
—Porque sou um lobo da manada, e não me degradaria mentindo a um guia de ruas. Para mim,
isso é o que é. Um guia de ruas útil, mas um guia de ruas depois de tudo.
Bauer não respondeu. Durante uma hora ficamos silenciosas em nossas respectivas celas. Logo,
tranquilamente, sua voz apenas mais forte que um sussurro, Bauer esteve de acordo. E fomos dormir.

RUPTURA
Passamos o dia seguinte planejando, trabalhando no programa de observação, as viagens dos
guardas do bloco de celas, os horários de comer, e os recorrentes ataques de loucura de Bauer. O último
era a parte mais preocupante. E se Bauer enlouquecia em metade de nossa fuga? Seus períodos lúcidos
se voltavam mais largos, mas durariam o tempo suficiente?
Segundo Bauer, o sistema de segurança do Winsloe estava conectado diretamente com as
identidades de todo o pessoal do complexo. Esta conexão assegurava que fosse quase impossível para
um cativo manipular o computador, acrescentando sua própria retina e marcas digitais. É obvio, isto
significava que era igualmente difícil apagar uma identificação. O que significava isto para nós? A
identificação de Bauer ainda funcionaria. Já que ela tinha autorização superior, poderia entrar e sair de
todos os níveis do complexo com um convidado não autorizado.
Partiria Bauer só com um companheiro? Eu ainda não me decidia. Sentia-o pela Leah e Curtis
Zaid, mas não podia levá-los comigo. Ruth tinha tido razão. Quanto mais pessoas adicionar a meu plano
de fuga, maior era a probabilidade de fracasso. Era melhor aplacar minha consciência com um
compromisso pessoal de liberá-los quando voltasse com outros. Mas e Savannah? Ruth me havia dito
que a deixasse. Devia fazê-lo? Podia fazê-lo? Duas perguntas muito diferentes. Considerando a conexão
do Savannah com a morte da Ruth e os outros incidentes, era seguro pô-la em liberdade? Temia que
os ensinos da Ruth só tivessem intensificado os poderes do Savannah, voltando-a mais perigosa. Era
sábio tirar Savannah daqui e deixá-la aos cuidados de uma aprendiz de bruxa como Paige? Ou deveria
deixá-la aqui, onde seus poderes seriam contidos sem perigo, até que pudéssemos entrar em contato
com as outras bruxas do Aquelarre? Possivelmente Ruth tinha antecipado o perigo e por isso me havia
dito que não me levasse ao Savannah quando me escapasse. De modo que devia deixar a Savannah.
Mas podia? Podia abandonar a uma menina aqui, sabendo que podia lhe passar algo antes que
voltasse? De acordo, essa menina podia ser capaz do mal, mas não era sua culpa ou não o fazia de
maneira consciente. Ela era inocente. Estava segura disso. Então, como poderia abandoná-la? Não
poderia. Bauer poderia nos tirar ambas pelas saídas simplesmente levando a uma pessoa de uma vez.
Isso nos faria mais lentas, mas isso não justificava abandonar ao Savannah. Se fosse possível, levar-me-
ia ao Savannah. Simplesmente não diria nada a Bauer a respeito. Não ainda.

***

Planejamos escapar essa noite, quando os guardas trouxessem minha comida das dez e meia da
noite. Estávamos preparadas? Provavelmente não, mas não me atrevia a esperar mais tempo. Tinha
que deter o Clay. Necessitávamos o dia de amanhã como dia de reserva, se por acaso eu pudesse sair
de minha cela essa noite.
Passei a primeira parte da tarde descansando na cama. É obvio, não descansava realmente –não
mentalmente ao menos. Jazia sem poder dormir me preocupando de todo que poderia sair mal. Antes
que os guardas chegassem, tiraria as crostas de meu joelho ferido, fazendo-o sangrar outra vez, logo
usaria essa distração para matá-los e escapar. E se o truque do joelho sangrando falhava ao incitar a
preocupação dos guardas? E se eu não era o bastante rápida, se o segundo guarda disparava sua arma
enquanto matava ao primeiro? Tinha que matá-los. Não podia arriscar-me a que recuperassem o
conhecimento antes que nos escapássemos-
Ufff.
Congelei-me, reconhecendo o som antes que meu cérebro o registrasse. A porta de minha cela
se abriu. Em vez de saltar para ver quem estava ali, fiquei imóvel, tensa e esperando. Que hora era?
Nove com vinte. Muito tarde para que fosse Matasumi. Muito cedo para minha comida. Xavier se tinha
ido. Isso deixava ao Winsloe. Por favor, não. Não esta noite. Fiquei quieta, escutando e cheirando o ar,
esperando ouvir algum ruído.
Passou um minuto inteiro sem nenhuma palavra de saudação, nenhum aroma de um intruso,
nenhum som da porta ao fechar-se. Levantei minha cabeça do travesseiro e dava a volta para a porta
detrás de mim. Não havia ninguém ali. Movi meus cotovelos para olhar melhor. A porta estava fechada.
Não, espera. Não fechada. Aberta dez centímetros, possivelmente menos. Outra vez, movi-me. Era
Winsloe no corredor, dando a instruções de última hora ao Ryman e Jolliffe? Ainda não ouvia nem
cheirava nada. Contei sessenta segundos, logo tirei minhas pernas pelo flanco da cama, e me arrastei
para a porta. Me inclinando para a greta aberta, inalei. Só havia velhos aromas. Como era possível?
Alguém tinha aberto a porta só um minuto antes. Por que podia não podia cheirá-lo?
Me movendo para me pôr de coque, abri a borda uns centímetros mais, logo um pouco mais,
finalmente um quase meio metro. Estirei os tendões de minhas curvas, avencei em pontas de pé, e
olhei atentamente fora da porta. Havia alguém no corredor. Joguei-me para trás, logo compreendi a
quem tinha visto e apareci outra vez. Bauer estava de pé fora de sua cela, olhando a um lado, logo ao
outro. Quando me viu, endireitou-se.
—Você? - sussurrou.
Sacudi minha cabeça e avancei pelo corredor. Antes que pudesse dizer algo, uma porta se abriu
no extremo oposto do corredor e Savannah saiu, meio tropeçando devido ao sonho, seu cabelo
convertido em um enredo escuro, um magro ombro se sobressaindo de uma camisola de tecido escocês
vermelho. Ao nos ver, esfregou-se uma mão sobre a cara e bocejou.
—O que acontece? - perguntou.
Fiz gestos para que ficasse em silêncio e se aproximasse. Já que eu não podia cheirar a ninguém
mais no corredor, as portas deviam haver-se aberto automaticamente, algum mau funcionamento
mecânico. Muita coincidência? Talvez, mas eu não ia ignorar a oportunidade. Sim, isto podia ser uma
armadilha, mas com que objetivo? Ver se trataríamos de escapar?Seria mais uma prova de inteligência
–alguém que permanecesse na prisão quando as portas estavam abertas claramente carecia de
algumas células cerebrais. Podia ser um dos experimentos do Matasumi, como quando me tinha posto
nesse quarto com o Patrick Lake. Pior ainda, podia ser outro dos jogos doentes do Winsloe. Então
deveria me sentar em minha cela e não fazer nada? Talvez devesse, mas não podia. Se isto era real,
tinha a possibilidade de salvar às três pessoas cuja segurança me concernia em maior medida:
Savannah, Bauer, e, é obvio, eu mesma.
—Partimo-nos - sussurrei, me inclinando para o ouvido do Savannah— Sondra pode nos tirar. Te
mova sigilosamente de volta a sua cela e te ponha seus sapatos.
—Vamos agora? - sussurrou Bauer.
—Estamos fora, verdade?
Quando Savannah saiu novamente de sua cela, Bauer vacilou, a confusão nublando seus olhos.
Disse-me que ela só tinha sonho, mas temi o pior. A mente podre de Bauer não responderia bem em
trocas de rotina. Ela tinha pensado que nos partíamos em umas horas, e inclusive esta pequena
separação do plano podia tirar seu cérebro de linha. Sorri tão favoravelmente como pude e a conduzi
para sua cela.
—Só agarra seus sapatos - disse.
Bauer assentiu com a cabeça e estendeu a mão para o trinco. Ela a girou, franziu o cenho, jogou
uma olhada sobre seu ombro para mim, logo moveu com força o trinco, e empurrou a porta. Não se
abriria. Tirando-a para um lado, atirei o trinco e golpeei a porta com meu ombro. Não se deslocou.
—Deveria abrir - disse Bauer, o pânico arrastando-se em sua voz. —Tem que abrir. Não há
nenhuma fechadura externa.
—Não posso retornar a minha cela - disse Savannah quando voltou para nós correndo. —A porta
se fechou.
—Esta também - disse. —Suponho que se um mau funcionamento mecânico pode as abrir, pode
as fechar também. Teremos que partir tal como estamos.
—E Leah e o Sr. Zaid? - perguntou Savannah. —Não deveríamos tirá-los?
—Se pudermos.
Não podíamos. Comecei com o Curtis Zaid. O sacerdote vodun jazia aninhado em cima dos
cobertores de sua cama, dormindo. Sua porta estava fortemente fechada.
—Fechada - respondi.
Savannah correu através do corredor e tentou com a porta do Leah. —Aqui também.
—Terão que ficar no momento - disse. —Sondra, a saída pela cela do Savannah é a única com
um posto de guarda, verdade? A única, porque a minha só se conecta através de uma câmara com a
estação.
Bauer assentiu com a cabeça.
—Bem.
Dirigi-me para a saída no lado do Savannah. Bauer agarrou meu braço.
—Esse é o único guarda - disse ela.
—Sei.
—Mas não pode –não podemos –eles nos dispararão!
Soltei suas mãos de meu braço e encontrei seus olhos selvagens. Falamos isto, recorda-o,
Sondra? Ambas comportam se conectam com um corredor comum com o elevador no ponto médio -
Me irritava ter que lhe dar a explicação ampliada, mas sabia que isto era o que Jeremy faria, assim
acalmaria ele a histeria de Bauer. —Se sairmos pela porta fiscalizada com câmara, o alarme notificará
aos guardas. Eles nos verão pela câmara e nos encontrarão antes que possamos subir ao elevador. Pela
outra porta, os guardas estarão justo ao outro lado. Terão só segundos para reagir antes que eu me
lance contra eles. Não terão tempo para pedir ajuda. Vou a arbusto… desarmá-los e poderemos nos
mover sigilosamente para cima.
Dava uma cotovelada a Bauer para que avançasse e fiz gestos a Savannah para que me seguisse.
Quando Bauer avançou para a porta, algo caiu do teto. Investi para frente, tirando-a do caminho. O
objeto golpeou o chão com um agudo pop e tinido de vidro transparente.
—É só uma ampulheta - disse Savannah. —Realmente se moveu rápido.
Quando Bauer se recuperou, joguei uma olhada. Acima havia uma fila de seis ampulhetas, o
primeiro espaço agora só tinha uma tomada vazia. Um diminuto chiado chamou minha atenção, e notei
a segunda ampulheta da linha. Quando a olhei, a ampulheta girava lentamente, saindo da tomada.
—Wow - disse Savannah. —Quase parece como se…
Crack, crack, crack! A fila inteira ampulhetas caiu contra o chão, nos inundando na escuridão.
Bauer grunhiu.
—Está bem, Sondra - disse. —Seus olhos se adaptarão. Tem visão noturna agora. A luz da porta
de segurança será suficiente. Se mova para ela e…
Savannah chiou. Girei e estendi a mão para a escuridão para acalmá-la. Algo fez cócegas meu
braço esquerdo. Dava palmadas com minha mão direita sobre o ponto e senti o sangue correr por
minha palma. Bauer gritou. Um macho impreciso voou para minha cara e cortou minha bochecha.
Quando o apanhei, um pedaço de vidro transparente muito afiado se cravou em minha palma. Outro
pedaço golpeou meu couro cabeludo. Meus olhos se adaptaram então, e vi um torvelinho de cristais
quebrados voando ao redor de nós.
—A porta! - Gritei. —Sondra! Abra a porta!
Difusamente vi que seu contorno me chocava contra a cela mais longínqua, seus braços
enfraquecidos, sua cabeça escondida para evitar o impacto. As partes de vidro transparente cravaram
e cortaram meus braços nus e cara quando me lancei para ela. Agarrei seu braço e a atirei para a saída,
colocando-a diante da câmara de retina. Quando alcancei o botão, notei que seus olhos estavam
fortemente fechados.
—Abre seus olhos! Gritei.
Ela os apertou ainda mais, baixando seu queixo para seu peito.
—Abre seus malditos olhos para o exploratório!
Eu estava estendendo minha mão para abri-los quando ela piscou. Golpeei o botão. A primeira
luz vermelha vacilou, logo morreu e o painel inteiro ficou negro. Golpeei o botão outra vez. Nada
passou. Toquei-o repetidas vezes, meus olhos observando o painel procurando qualquer sinal de vida.
Nada. Nenhuma luz. Nenhum som. Estava morto. Girei-me. No outro extremo do corredor, um débil
brilho vermelho se refletia à volta da esquina.
—A outra porta ainda tem a energia disse. —Vamos.
—Não posso - sussurrou Bauer, lançando sua cabeça contra o vidro transparente que voava. —
Não posso.
Não lhe faz caso Savannah, corre para minha cela. Não fechei minha porta. Fique dentro
enquanto abrimos a outra saída.
Agarrei a Bauer com ambas as mãos, e meio a carreguei, meio a arrastei para baixo pelo corredor.
O torvelinho de vidro transparente seguiu girando ao redor de nós, mordendo como mil vespas.
Na escuridão e com meu apuro, adiantei a Savannah, e cheguei a minha cela antes que ela. Com
um espasmo de alívio vi que minha porta estava ainda aberta. Recordei que necessitava meus sapatos
e me lancei dentro para agarrá-los. Quando me dava volta, os pés de minha cama se moviam.
Ricocheteou ao redor do meio metro da terra, logo se lançou diretamente no ar e se precipitou para
mim. Logo que tive tempo para me jogar atrás na cela antes que o colchão golpeasse a porta, fechando-
a.
—Que - gaguejou Bauer.
Empurrei-a para a outra saída. Uma série de golpes soaram. Esperando disparos, deixei-me cair
sobre meus joelhos. O corredor se encheu com uma ensurdecedora estática, como se alguém tivesse
arrancado o botão de todos os intercomunicadores. Savannah se roçou contra mim. Apertei seu ombro
e tratei de lhe dizer que tudo estaria bem, mas a estática me afogava. Dando ao Savannah uma última
carícia tranquilizadora, agarrei a Bauer e a propulsei para a porta de segurança. Esta vez, possivelmente
compreendendo que era sua única possibilidade de escapamento do vidro transparente voador, Bauer
se colocou diante do exploratório retinal e golpeou o botão. A luz vermelha vacilou, e durante um
momento todo esteve morto. Então uma luz verde cintilou. Bauer agarrou o cabo e a segunda luz trocou
de vermelho a verde. Atirou a porta e se lançou para o corredor. Eu sabia que o segurança de Bauer só
permitia que uma pessoa mais passasse, por isso logo que Savannah e eu passássemos, um alarme
soaria em algum lugar. Eu não podia me preocupar disso. Os guardas nos veriam pela câmara de todos
os modos.
Fechei de repente a porta atrás de nós. Uns pedaços de vidro transparente caíram inocuamente
ao chão.
—O que passou ali? - sussurrou Savannah.
—Não sei - respondi. —Estão bem?
Savannah e Bauer assentiram com a cabeça. Sim, cada centímetro de nossa pele nua parecia
sangrar, mas ninguém tinha perdido um pedaço de olho ou ferido uma artéria principal, então
parecíamos entender que isso nos fazia estar “bem”.
As vozes ressoaram do outro extremo do corredor. A cabeça do Savannah se sacudiu.
—Não vamos fazê-lo - sussurrou ela.
—Sim, faremo-lo - disse Bauer. Ela se endireitou, tirando uma gota de sangue de seu olho. —
Não voltarei ali. Estou fora agora e fico fora. Elena se ocupará dos guardas. Ficaremos aqui onde é
seguro.
De medusa gemente a líder de grupo em sessenta segundos? Era agradável ver Bauer recuperar
seu equilíbrio, mas esta não era a classe de mudança que eu teria desejado. Não importa. Ao menos
não se encolhia em uma esquina. Além disso, eu era quão única devia ir pelos guardas. Bauer só me
incomodaria.
Quando comecei a avançar, Savannah agarrou minha blusa.
—Ajudar-te-ei - sussurrou ela. —Farei um feitiço.
Vacilei, querendo lhe dizer que não incomodasse, mas compreendi que dando a Savannah uma
possibilidade para sentir-se útil poderia acalmar seus medos. Além disso, ela era só uma bruxa novata
de doze anos. Só conheceria a classe mais simples de feitiços.
—De acordo - respondi. —Enquanto possa dizê-lo daqui. Mantenha a coberta e tranquila.
Quando me arrastei para frente, um vidro transparente golpeou contra o vestíbulo. Logo outro.
Logo vidro transparente quebrado, mais forte que a queda das ampulhetas. E esse grau de escuridão.
Sim! Esta vez lhe dava a bem-vinda à escuridão. Dar-me-ia uma vantagem... enquanto que o vidro
transparente quebrado não começasse a voar outra vez.
—Maldição! —uma voz, provavelmente o vaio de um primeiro guarda, a saída um se apaga, logo
a câmara na saída dois, agora isto. Um maldito enguiço na alimentação de corrente.
—Tomarei a lanterna - disse uma segunda voz.
—Ambos o faremos. Não estou de pé ao redor na escuridão.
Assim havia só dois guardas? Melhor e melhor. Acelerei meu passo, dobrei sobre a esquina, e
golpeei o botão de elevador. Então me dirigi para a estação de guarda. Parcialmente ali, tropecei com
algo e olhei abaixo para ver uma tampa de luz de néon. Esquivei e golpeei com meu pé diretamente no
casco de vidro transparente. Mordendo minha bochecha contra um grunhido, passei meu pé raspando
direito, apagando o passo enquanto avançava aliviada. Uma luz se prendeu à volta da esquina. Os
guardas tinham encontrado sua lanterna. Malditos.
Atrás de mim, as portas de elevador rangeram e se abriram. Uma voz chamou, não de adiante,
a não ser de atrás. Congelei-me em meio de um passo. Os guardas dobraram a esquina, a luz da lanterna
ricocheteando nas paredes. Alguém detrás de mim gritou. Girei-me, vi uma arma, e me lancei ao chão.
Os disparos soaram do frente e atrás. Uma bala roçou minha perna. Ofeguei e avancei lentamente para
o flanco do corredor. Um grito. Um grito de raiva. Uma maldição. Joguei uma olhada. Os guardas
disparavam um contra o outro, os dois do posto de guarda fazendo fogo contra os três do elevador.
Dois mais jaziam sobre o chão, gritando e retorcendo-se. As balas zumbiam por cima de mim. Levantei-
me sobre minhas mãos e joelhos, comecei a avançar e corri agachada para as demais. Passei justo ao
lado do segundo grupo de guardas. Nem sequer o notaram.
—Voltem! - Gritei a Savannah e Bauer. —Entrem!

ABANDONADAS
Bauer empurrou a Savannah e voou pela sequência de segurança. A saída se abriu e as três nos
lançamos através dela. Fechei de repente a porta detrás. Savannah gritou que agora estava aberta a
porta à cela vazia cruzando a minha. Mergulhamo-nos dentro.
—Estava jogando uma olhada pela esquina - disse Savannah enquanto eu tragava ar. —Quando
os guardas vieram com as lanternas, vi os outros sair do elevador. Lancei um feitiço de confusão de
modo que pudesse acontecê-los. Funcionou bastante bem, né?
—Muito bem - disse, sem mencionar que quase tinha sido apanhada no fogo cruzado. Que
demônios tinha ensinado Ruth a esta menina? Uma bruxa de doze anos deveria lançar feitiços para
acalmar gatinhos assustados, não fazer que homens armados se disparassem os uns contra os outros.
—Hey - disse uma voz da entrada. —Perdi meu convite à festa?
Saltamos. Leah deu um passo dentro, bocejando e passando seus dedos por seu cabelo
desordenado pelo sonho.
—Não feche isso! - disse Bauer, agarrando a porta da cela.
Importava isso agora? Embora eu não dissesse nada, certamente não previa outro intento de
fuga em nosso futuro próximo. Enquanto as celas abertas não fossem uma armadilha, eles tampouco
tinham tido um golpe de sorte. O oposto, de fato. Meu grande plano de fuga tinha desaparecido nessa
chuva de granizo de balas lá fora. Inclusive se saíssemos desta confusão, Winsloe só teria que verificar
a base de dados do computador para compreender que eu tinha usado a Bauer para passar a segurança.
Ele se asseguraria de que nunca passasse outra vez. Tratei de não pensar na multidão de formas em
que ele poderia assegurar isso.
Leah caminhou para uma cadeira e caiu sobre ela — Cortei meu maldito pé caminhando para cá.
Há vidro transparente por toda parte no chão. E como é que as portas estão abertas? Não é que me
queixe, Mas -ups, O que lhes passou garotas?
—Cristais voadores - disse.
—Geez. Não lamento haver me perdido isso. Há alguma ferida? Sei algo de primeiros socorros.
—Estamos bem - disse Bauer, movendo-se para a cama.
Enquanto falávamos, Savannah apareceu à entrada. —Não vejo ninguém. Estão todos mortos?
—Mortos? - repetiu Leah enquanto eu empurrava a Savannah longe da porta aberta. —Quem
está morto?
Expliquei o que tinha passado. Enquanto falava, Leah seguiu lançando olhadas discretas a
Savannah, que se tinha atirado sobre o tapete e não parecia notá-lo.
—...deveríamos ficar aqui - disse. —Permanecer tranquilas e esperar que eles façam o mesmo.
Nada de movimentos repentinos. Nada que os faça ficar à corrente.
Savannah se levantou do solo. —Conheço um feitiço para acalmar…
—Estou segura que sim, carinho - disse Leah. —Mas talvez não seja uma idéia tão boa.
A cara do Savannah se escureceu. Leah pôs seu braço ao redor dos ombros da moça e lhe deu
um apertão.
—Elena e eu podemos dirigir aos guardas - disse Leah. —Encontraremos um lugar seguro para
ti, carinho, se por acaso houvesse problemas quando os guardas cheguem.
Lançando um olhar aos lados, Leah dirigiu meu olhar desde Savannah para os pedaços de
ampulhetas soltos no chão. Meu coração se afundou. Savannah. Quem mais poderia ter sido a
responsável pelo torvelinho do vidro transparente voador? Havia só três de nós nesse vestíbulo e só
uma que era conhecida por lançar objetos perigosos através do ar. Isto tinha sido um grande passo
adiante desde lançar pratos, mas eu tinha visto uma demonstração do incremento dos poderes de
Savannah com esse feitiço de confusão letal. É obvio, ela não o tinha feito deliberadamente – ela tinha
sido ferida tanto como qualquer de nós– mas esse não era o ponto. Querendo-o ou não, Savannah era
perigosa. Posta sob tensão emocional reagia com violência.
—Boa idéia - disse. —Deveríamos pôr a Savannah a resguardo. —Resguardo para ela e resguardo
para nós.
—Sondra, irá com Savannah? - disse Leah. —Minha cela está aberta. Escondam-se ali.
Bauer se sentou na cama, seus joelhos estirados, contemplando a parede. De volta ao estado de
medusa gemente.
—Estou bem - sussurrou ela.
—Fez um trabalho duro até aqui - disse Leah. —Elena e eu podemos dirigir isto. E toma a
Savannah…
—Estou bem! - grunhiu Bauer, sacudindo a cabeça, seus lábios curvando-se. Logo se congelou,
como se compreendesse o que tinha feito. Fechou seus olhos e se estremeceu. —Estou bem - disse
firmemente. —Quero ajudar.
—Talvez possamos falar com os guardas - disse. —Explicar o que aconteceu. Há um
intercomunicador, Sondra? Podemos nos comunicar de alguma forma com eles?
Bauer sacudiu sua cabeça.
Fora da cela, algo caiu com um ruído surdo contra a porta de saída. Paramo-nos para escutar.
Dois ruídos surdos em rápida sucessão, logo silêncio.
—Eles não podem entrar - sussurrou Bauer. —A porta de saída deve ter perdido a energia ou
haver-se trancado.
—Era muito esperar que todos estivessem mortos - disse Leah. —Quantos guardas havia ali em
total?
—Três dúzias..., não, trinta - disse Bauer. —Nós – começamos sendo trinta e seis, mas houve
baixas.
—Piolhentas probabilidades. Bem, vou fazer que Savannah saia daqui antes que as coisas fiquem
más.
Leah estendeu a mão para Savannah, mas ela a esquivou e correu para mim.
—Quero ajudar - disse ela, elevando a vista para mim.
Como se não me sentisse o bastante culpado por suspeitar que Savannah fosse a causadora do
vidro transparente voador. Mas se Leah e eu íamos lutar contra isto, tínhamos que pôr a Savannah em
algum lugar seguro onde pudesse acalmar-se.
—Não tratamos de te tirar do meio, Savannah. Sei que poderia ajudar. Esse feitiço de confusão
- Me arrumei isso para lhe dirigir um sorriso sardônico — bem, fiquei impressionada, se quiser que lhe
diga isso.
—Mas... - Savannah suspirou, com a cansada resignação de um menino que podia ouvir vir o
“mas” de uma milha de distância.
—Mas se fica, Leah e eu estaremos muito preocupadas com você para nos concentrar no perigo.
—Estaríamos muito preocupadas se ficasse - disse Leah, me lançando um olhar. —Nos
sentiríamos todas muito melhor se estivesse em algum lugar mais... seguro. Levar-te-ei a minha cela.
—Bem - disse Savannah, com uma voz que dizia que nossa decisão era tudo menos boa.
Leah estendeu sua mão para Savannah, mas a moça empurrou longe e espreitou a porta. Leah
trotou atrás dela.

***

Vários minutos mais tarde, Leah se apressava de volta. Os guardas ainda golpeavam a porta de
saída.
—Ela está em minha cela - disse Leah. —Escondida sob a cama. Fechei a porta.
Comecei a assentir com a cabeça, logo me detive. —Fechou a porta? E se tranca? Como a
tiraremos?
—Agora mesmo estou mais preocupada de que Savannah não interfira. Se não a encerrava com
chave, estaria aqui embaixo em dois minutos, tratando de nos ajudar. Não necessitamos essa classe de
ajuda - Ela jogou uma olhada ao vidro transparente quebrado. —Já ajudou o bastante.
—Se Savannah fez voar o vidro transparente, não foi intencional.
Leah encolheu os ombros. —Provavelmente tem razão. De todos os modos, não é sua culpa.
Que se pode esperar, com uma mãe como Eve.
—Pensa que é isso? Só porque sua mãe estava colocada com a magia negra não necessariamente
significa...
—Eve não só era uma bruxa, Elena. Seu pai era um demônio, quero dizer que ela era um híbrido
meio demônio meio bruxa. Uma combinação brutal. Eu sou bastante valente. Não me assusto
facilmente. Mas Eve me assustava de uma maneira incrível. Sondra, recorda quando recém a trouxeram
aqui…
Bauer girou para nos confrontar —A quem cacete importa, Leah?! Temos a Deus sabe quantos
guardas armados golpeando a porta de saída e falas da genealogia de Savannah!
—Frieza, Sondra. Elena e eu temos tudo sob controle. Estamos acostumadas a esta classe de
assuntos. Tudo o que digo, Elena, é que terá que tomar cuidado ao redor de Savannah. Recorda, é uma
moça pré-adolescente, hormônios chutando e toda essa merda. Só faz as coisas ainda pior. Quem
sabe…
—Maldição! - gritou Bauer. —Estão derrubando a maldita porta!
—Crês que entrarão? - perguntou-me Leah tranquilamente, como se Bauer fosse uma lunática
gritando dentro de um quarto acolchoado.
—Possivelmente - disse.
Ela suspirou —De acordo, então. É tempo de preparar a festa de bem-vinda.
***

Quando tínhamos terminado de planejar, apagamos a luz. Com nossa visão noturna, Bauer e eu
estaríamos bem, e Leah tinha decidido que as vantagens totais da escuridão pesavam mais que sua
desvantagem pessoal de visão limitada.
Deslizamo-nos para o corredor, ficando atrás da esquina se por acaso os guardas abriam
caminho, disparando suas armas.
—Olá! - gritou Leah. —Estamos apanhadas aqui! Feriu! Há alguém aí? Podem nos ouvir?
Ninguém respondeu. Tal como Bauer tinha advertido, a porta era a prova de sons. Leah tentou
um par de vezes mais, logo lhe fiz gestos para fazê-la calar e escutei. Eu podia só ouvir farrapos de vozes
surdas.
—Quem está ali?
—A outra porta, sem energia
—O rádio, outra vez
—Há homens fora? Matasumi, Winsloe?
Leah se apoiou contra meu ombro — Pode dizer quantos há?
Sacudi minha cabeça — Três, talvez quatro vozes, mais os que não falam. Espera, ouço algo mais.
Uma vaia forte soou do outro lado da saída. Quando tratei de identificar o ruído, de repente se
elevou a um zumbido guinchante, bastante forte com para que inclusive um não lobisomem pudesse
ouvi-lo.
—Um maçarico de soldar - disse Leah. —Isso funcionará. Deveríamos nos preparar.
Nunca tivemos uma oportunidade de pôr nosso plano em ação. Quando me balancei para a cela
vazia, a porta de saída se abriu de repente. Os gritos de surpresa dos guardas se transformaram em
uma série de ordens. Leah entrou como uma flecha à primeira cela comigo. Quando me girei para fechar
a porta, dava-me conta que Bauer não estava conosco.
—Ela escapou - disse Leah.
—Merda!
Abri a porta de um puxão. Bauer estava correndo para baixo pelo corredor.
—Sondra! - Gritei.
Ela se deteve. Em vez de virar-se, entretanto, começou a golpear a porta da cela a sua direita.
—Abram! - gritou. —Malditos sejam! Me deixem entrar!
A princípio, pensei que se perdeu. Logo compreendi que estava frente à única cela que
permanecia ocupada, a do sacerdote vodun. É obvio, Zaid não podia ouvi-la. A parede era a prova de
som. Apesar de tudo o que passava aqui fora, o pobre tipo provavelmente estava profundamente
adormecido. Apareci na entrada para lhe dizer que se escondesse, mas já se foi, desaparecendo na
antiga cela de Armem Haig.
Quando fechei a porta, compreendi que tínhamos um problema. Leah e eu estávamos
escondidas atrás de um vidro transparente unidirecional. Qualquer guarda no corredor poderia nos ver,
mas não poderíamos vê-lo. Nada bem. Explorei a cela procurando um ponto onde nos esconder,
sabendo que não o encontraria. Estávamos expostas. No momento em que os guardas girassem por
essa esquina, detive-me. Por que ainda não tinham saído por essa esquina? Quando abri um pouco a
porta, ouvi gritos frenéticos, logo um grito, um chiado desumano que fez que meus pêlos se
arrepiassem.
Fiz- gestos ao Leah para que se tornasse atrás — Estou jogando uma olhada.
—Ponha-se de coque - disse. —Permanece debaixo do nível de olho.
Ambas nos pusemos de coque. Deixei a porta aberta. Um brilho de luz ricocheteou em meus
olhos e me sacudi para trás, só para ver a luz passar roçando da parede para o chão e logo ao teto,
como algum louco brandindo uma lanterna. Por cima do grito, ouvi uma voz masculina; logo um alarme
agudo absorveu todo o som. Farejei e cheirei algo tão inesperado que duvidei de meus próprios
sentidos. O fedor acre a carne queimada encheu o ar. Quando inalei outra vez, me questionando a mim
mesma, um guarda disparou tão rápido que não tive tempo para me jogar atrás na cela. Não importou.
Ele passou por diante, com a boca aberta em um grito que era absorvido pela sereia. Algo se agitava a
seu lado. Entortei os olhos na escuridão, logo me estremeci. Era seu braço, quase talhado por cima do
cotovelo, balançando-se daqui para lá enquanto corria.

A luz da lanterna seguiu saltando ao redor das paredes. As formas vacilaram, produzindo
sombras torcidas na parede. A sereia vacilou e deixou escapar um último som sufocado. Enquanto
morria, o som encheu o ar: o vaio do maçarico, gritos dos guardas ainda escondidos à volta da esquina,
os gritos intermináveis do guarda do braço talhado. Outro guarda saiu tropeçando de detrás da esquina,
o maçarico ondulando a seu lado. Quando passou junto a nossa cela, deslizou-se sobre algo, suas pernas
saíram desprendidas. O maçarico saiu despedido pelo ar. Logo se deteve. Deteve-se mais de dois
metros por cima da terra e ficou suspenso ali, cuspindo sua chama azul. O guarda cansado saltou sobre
seus pés. O maçarico voou para baixo e o cortou através das costas. Seus braços se elevaram e ele caiu
para frente, gritando enquanto sua camisa ardia. O aroma penetrante a carne e tecido carbonizado
encheu o ar.
—Abram a maldita porta! - gritou um guarda da esquina. — Tirem-nos daqui!
—Eles estão apanhados - sussurrei a Leah. — Não posso ver o que está passando. O maçarico…
Bang! Um disparo de arma. Logo três mais em rápida sucessão. Quatro fortes sons metálicos.
—Estão disparando à porta - disse Leah. — Deveríamos ficar cobertas.
—Confia em mim. Não irei a nenhuma parte.
Um rugido repentino se sobrepôs aos gritos e chiados.
—O que é isso? - perguntou Leah.
Eu sabia. Inclusive enquanto entortava os olhos pelo corredor, eu sabia o que veria. Bauer tinha
trocado a lobo. Ela encarregou dos guardas. Abri a porta de um golpe. Leah agarrou meu braço.
—Os guardas ainda estão à volta da esquina - disse. —Posso deter a Sondra antes que eles a
vejam.
—E então o que?
Bauer se encolerizou quando se chocou contra o guarda. Grunhindo, tornou-se atrás e se
separou das chamas. O instinto humano superou ao animal. Girando, rodeou o corpo ardente e seguiu
correndo para baixo pelo corredor.
—Só me deixe - comecei.
—Não. Pensa, Elena. Não pode ajudá-la.
Bauer passou diante de nós e dobrou a esquina. Um guarda gritou. Ele correu para a extensão
principal do corredor, o sangue salpicando de seu ombro rasgado. Bauer o perseguia. Antes que sequer
alcançassem a porta de nossa cela, ela saltou, aterrissando em suas costas. Enquanto caíam, ela
afundou seus dentes na parte de atrás de seu pescoço, arrancando um bocado. O sangue saltou.
—Usarei a distração para baixar correndo à outra saída - disse Leah. —Talvez esteja aberta agora.
—O que-? - Comecei, logo compreendi que ela não podia ver o que acontecia, não estava
afetada por isso.
Leah me roçou ao passar por diante de mim.
—Cuidado! - gritei, mas ela já se foi e Bauer estava muito absorvida em sua vítima para ir a busca
de outra.
Bauer rasgou pedaços dos ombros e as costas do guarda, lançando-os ao ar. O corpo do guarda
convulsionava. Seu rosto estava completamente branco, seus olhos impossivelmente abertos e em
branco. Um guarda gritou, como se tivesse compreendido que seu camarada estava perdido.
Eu não podia seguir olhando mais tempo. Abri a porta e saltei fora, sem nenhum plano em mente
além de salvar de algum jeito a Bauer. Merecia ser salva? Valia sua vida o que arriscasse a minha? Não
importava. Ela era um lobisomem, uma lobisomem fêmea nascida de meus genes. Tinha que protegê-
la.
Quando saí da cela, outro guarda veio desde esquina, com sua arma em alto. Ele fez fogo. O
disparo ardeu através da escuridão e golpeou Bauer na anca esquerda. Ela investiu contra ele. Ele
levantou a arma, mas ela estava sobre ele, seus dentes rasgando sua garganta. Quando corri para eles,
duas formas saltaram da escuridão. O fogo ressonou pelo corredor. Mergulhei-me, me enroscando bem
a tempo para ver as balas golpear a Bauer, lhe destroçando o peito e a cabeça.
Nesse segundo, justo quando o sangue e o cérebro exploraram do crânio transtornado de Bauer,
inclusive antes que seu paralisasse sobre o chão em cima do guarda morto, vi a porta de saída abrir-se
de repente. Vi-a e vi minha possibilidade. Minha única possibilidade. Senti meus pés mover-se, meu
corpo virar-se. Savannah cintilou em minha mente. Não podia partir sem ela. Inclusive enquanto
pensava isto senti que meu corpo se mergulhava para a porta aberta. Não tinha tempo para voltar pelo
Savannah. Inclusive se o tivesse, fá-lo-ia? Quem sabia de que coisas era capaz de fazer ela se as coisas
foram realmente mal? Com Savannah a reboque, eu nunca poderia escapar, poderia morrer no intento.
Era melhor deixá-la aqui, clandestinamente, onde seus poderes podiam ser controlados, onde ela era
muito importante para ser assassinada. Eu voltaria por ela mais tarde com outros.
Estava já no corredor, meu corpo que tinha tomado a decisão justa enquanto meu cérebro se
agitava. E Leah? Estava-a abandonando também? Covarde! Mas meus pés seguiram me propulsando
para o elevador. Uma vez ali, esmurrei meu punho contra o botão, golpeando-o repetidas vezes,
sentindo o curso de dor por meu braço e só golpeando-o mais forte, castigando minha covardia.
As portas do elevador se abriram. Entrei.

FUGA
—Elena!
A voz de Leah. Agarrei a porta do elevador antes que se fechasse. Ao aparecer, vi Leah trotando
da saída de em frente.
—Não pude passar a procurar o Savannah - chamei.
—Eu tampouco. Merda! Há todo um inferno quebrado ali. Nunca retornaremos dentro.
—Te apresse então.
Enquanto ela corria, a porta de elevador se sacudiu, como se tratasse de fechar-se. Empurrei-o
para trás, mas seguiu movendo-se, empurrando mais e mais forte e forte até que tive que me apoiar
contra ela, me esforçando para mantê-la aberta.
—Vamos! - Gritei. —Há algo mau com as portas.
Quando Leah esteve a menos de dois metros de distância, a porta se sacudiu violentamente,
fechando-se de repente contra meu ombro. Tropecei. Leah alcançou a me agarrar, mas me caí para trás
dentro do elevador. Comporta-as se fecharam. Saltei e apertei o botão para voltar a abrir o elevador.
—Não abrirá! - Gritei. —Golpeia o botão de chamada!
—Isso faço!
O elevador deu tombos de repente. Subiu e baixou, balançando-se e me sacudindo com tanta
força que quase perdi o equilíbrio. Quando agarrei o trinco do lado, um ruído triturante partiu o ar. Eu
apertei o trinco até que meus nódulos ficaram brancos, meu cérebro movendo-se a toda velocidade
para recordar que fazer em uma falha do sistema de um elevador. Dobrar meus joelhos? Sentar-se no
chão? Rezar? O elevador reduziu a marcha, logo se deteve em um alto. Apenas me atrevi a respirar,
esperando que o solos cederia embaixo de mim. Então as portas abriram.
Encontrei-me contemplando uma parede que me chegava até a cintura. Não, não era uma
parede. Era um piso. O elevador se deteve entre níveis. Enquanto dava um passo adiante para olhar
fora, o elevador se sacudiu outra vez. A maquinaria gemeu no eixo superior e o trambolho começou a
afundar-se. O piso avançou pouco a pouco desde minha cintura até a metade de meu peito. Minha
janela de fuga literalmente desaparecia. Agarrando o bordo do piso, saltei, perdi meu agarre, e
retrocedi dentro do elevador. Pus-me de coque e o tentei outra vez. Esta vez consegui manter meu
afeto e me balancei justo quando o elevador desaparecia.
Quando olhei ao redor, reconheci o último piso. Então o elevador havia me trazido até acima.
Louvores sejam dados. Se tivesse ficado em um nível do meio, não teria tido a menor idéia de onde
encontrar uma escada. Tomei um momento para me recompor e recordar onde estava a saída. A minha
esquerda, ao final de corredor. Quando dava a volta, vozes ecoaram pelo corredor, vindo para mim de
atrás. Olhei ao redor procurando um esconderijo. Havia uma porta aproximadamente a seis pés para
baixo pelo corredor. Lancei-me para ela, abri a porta, e saltei dentro quando me dava conta que as
vozes se detiveram. Os guardas estavam de costas ao elevador. Enquanto escutava, eles discutiam
sobre o que fazer com o elevador quebrado, então decidiram unanimemente deixar a decisão em
alguém mais, chamado Tucker. Um minuto mais tarde, foram-se.
Esperei até que o som de suas botas se silenciou, logo deixei meu ponto de ocultação, olhando
em ambas as direções e corri. O corredor terminava em um pequeno quarto. Dentro estava a porta à
liberdade. Tudo o que tinha que fazer era abri-la. E para abri-la, tudo o que precisava era a retina e a
impressão digital de uma pessoa autorizada. Maldição! Por que não tinha pensado nisto? Chegar a este
nível era só a metade do problema. As vozes perto do elevador voltaram. De volta já? Corri para o
armário outra vez. Uma vez dentro, escutei. Só duas vozes esta vez. Esperavam que seus companheiros
voltassem com o Tucker. Eu não tinha tempo para idear um plano infalível, nem sequer um pedaço de
plano. Não teria nenhuma possibilidade contra mais de dois guardas. Se vacilava, ver-me-ia apanhada
neste armário até que alguém me encontrasse.
Empurrando a porta, verifiquei o corredor e me assegurei de que não podia ver os guardas. O
que significava que eles tampouco podiam me ver. Tão silenciosamente como era possível, avancei para
o elevador. Detive-me na esquina, pus-me de coque, e olhei atentamente ao redor. Os guardas
confrontavam a parede de em frente, a gente olhava atentamente o eixo do elevador, o outro
amaldiçoava sobre o atraso. Tomei fôlego, logo me lancei para o primeiro guarda, golpeando-o para o
eixo do elevador. Seus braços se moveram uma vez, e se afundou fora de vista. Quase tropecei atrás
dele e consegui evitá-lo só usando o impulso para me enroscar e saltar por volta do segundo guarda.
Sua mão foi a sua arma. Enquanto tirava a pistola, arrebatei-a de sua mão e a joguei para baixo pelo
espaço do elevador. Logo lhe dava uma palmada sobre a boca e o empurrei para frente. Quando ele
resistiu, levantei-o da terra e o elevei. Seus pés davam patadas freneticamente. Alguém golpeou minha
rótula ferida, enviando tal sacudida de dor por minha perna que o lancei para frente. A um milímetro
de deixá-lo cair, recuperei meu agarre e comecei a correr, meio tropeçando para a saída.
Arrastei ao guarda à porta. O painel de segurança era o mesmo que nas saídas do bloco de celas.
Golpeei o botão que Bauer tinha usado e levantei o queixo do guarda para cima. Quando a câmara
zumbiu, o guarda compreendeu o que eu fazia e fechou seus olhos. Mas era muito tarde. A primeira luz
cintilou verde. Agarrei a mão do guarda e lhe abri o punho. Os ossos se romperam. Forcei seus dedos
quebrados ao redor do trinco. A segunda luz se voltou verde. Colocando minha mão sobre a sua, atirei
a porta. Logo rompi seu pescoço. Não vacilei, não me perguntei se tinha que matá-lo, se não havia
algum outro caminho. Não tinha o tempo para a consciência. Matei-o, deixei seu corpo no chão, agarrei
suas botas e escapei.

***

Corri pelo bosque, evitando a rede de caminhos e me dirigindo para os espessos matagais.
Ninguém vinha atrás de mim. Far-no-iam. A pergunta era a que distância me poria antes que o fizessem.
A quantos quilômetros estaria a cidade mais próxima? Em que direção? Desfiz-me dos primeiros
reflexos de pânico. Encontrar a civilização não podia ser minha primeira prioridade. Encontrar um lugar
seguro era mais importante. Enquanto o humano em mim considerava que os lugares públicos eram
seguros, eu sabia que qualquer esconderijo bastante longe do complexo bastaria. Correr longe, ficar a
coberto e recuperar-se. Logo poderia me concentrar em encontrar um telefone.
Era outra noite como a que houve quando Winsloe tinha caçado ao Lake: fria, úmida, e nebulosa,
a lua atenuada pela cobertura de nuvens. Uma noite formosa para uma fuga da prisão. A escuridão me
cobriria, e o frio me impediria de me reaquecer. Logo descobri, entretanto, que a temperatura do corpo
não era um problema. Não podia me mover o bastante rápido para me complicar com o suor. Fora dos
caminhos, os bosques eram uma espessa selva tropical. Cada centímetro de terra estava obstruída com
videiras e vegetação morta. Cada centímetro de superfície estava talher de arbustos e árvores altas e
magras, todos competindo pelos pedaços de luz do sol sem reclamar pelo antigo bosque. Aqui e ali
tropecei com rastros deixados por cervos, e as segui até que as perdi quando se transformaram em
finos rastros que se confundiam com o páramo. Um lugar para animais, não pessoas. Agora, a diferença
da maior parte dos fugidos da prisão, eu tinha a opção de me converter em um animal, mas não podia
perder dez minutos para me mudar. Não enquanto ainda estava tão perto do complexo. Qualquer
guarda perseguindo iria também a pé, e no momento, eu podia me permitir compartilhar sua
desvantagem.
Enquanto me deslizava pelo bosque, compreendi que tinha uma, ou várias, desvantagens físicas
não compartilhadas pelos guardas. Primeiro, tinha posto um par de botas tamanho doze e masculinas
em pés tamanho dez e femininos. O que era mais importante, estava ferida. Os cortes cobriam meus
braços e cara, picando cada vez que um ramo me golpeava. Sofria de um número astronômico de outras
feridas acumuladas na semana passada. Eu poderia viver com isso, apesar de tudo. Apertar os dentes
e ser uma moça grande. Meu joelho era outro assunto. Desde que Bauer o tinha rasgado no hospital, a
dor incendiária se converteu em uma queimação surda, constante. As patadas do guarda tinham aceso
de novo o fogo, e correr pelo bosque só acrescentava o oxigênio para que ardesse. Depois de vinte
minutos, coxeava. De má maneira. O sangue quente se derramava por minha panturrilha, e a carne viva
se esfregava contra minhas calças, me dizendo que se desfizera a costura de Tucker. Tinha que mudar.
Simples aritmética: Uma perna má de quatro era duas vezes melhor que uma de dois.
Reduzi a marcha, me movendo com mais cuidado agora para não deixar um rastro óbvio. Depois
de que fui em ziguezague por cinco minutos, encontrei uma espessura, avancei lentamente dentro, e
escutei. Ainda nenhum som de perseguidores. Tirei minha roupa e mudei.
Eu ainda avançava pelas etapas finais de minha mudança quando algo lançou a terra. Me
levantando de um salto, enrosquei-me para confrontar a meu atacante. Um rottweiler estava a um
metro de distância, grunhindo, uma gota de baba tremendo em seu lábio superior curvado. A sua
esquerda havia um sabujo grande. Um cão de rastreamento e um assassino. Estes dois não se
extraviaram de uma granja vizinha. Tinham vindo do complexo. Maldição! Eu não tinha imaginado que
eles tinham esses cães. O canil devia estar fora. Se tivesse feito uma pausa antes de entrar na segurança
dos bosques, eu teria cheirado os cães e me teria preparado. Mas não me tinha tomado o tempo.
Minha mudança terminou, e me elevei em toda minha estatura. O sabujo girou e correu, nem
tanto intimidado a não ser aturdido, ao ver presas e cheirar a um humano. O rottweiler manteve sua
posição e esperou a que eu tomasse o seguinte passo no baile de ritualizada intimidação. Em vez de
fazê-lo, saltei para ele. Ritual em apuros. Não havia tempo para realizar a cerimônia. Cães de
rastreamento significava guardas perseguindo, e guardas perseguindo significava armas. Preferia tomar
minhas possibilidades contra o rottweiler.
Meu repentino ataque tomou ao cão despreparado, e afundei meus dentes em sua anca antes
que arrancasse. Ele se enroscou para me apanhar, mas me pus fora de alcance. Quando investi outra
vez, ele estava preparado, preparado para me encontrar a metade do salto. Estrelamo-nos, ambos
lutando por agarrar crucial pescoço. Seus dentes roçaram minha mandíbula inferior. Muito perto para
minha comodidade. Separei-me e saltei sobre minhas patas. O rottweiler tropeçou e saltou sobre mim.
Esperei até o último segundo, logo saltei ao lado. Ele golpeou a terra, suas quatro patas escorregando
para deter seu deslizamento. Lancei-me atrás dele e saltei a suas costas. Enquanto ele caía, enroscou-
se, suas mandíbulas enterrando-se em minha perna dianteira. A dor me atravessou, mas resisti ao
impulso de me sacudir longe. Esfaqueei sua garganta desprotegida, meus dentes rasgando através da
pele e a carne. O rottweiler convulsionou, resistindo a me liberar. Minha cabeça atacou outra vez, agora
agarrando sua garganta destroçada e fixando-a na terra. Esperei até que ele deixou de lutar, logo o
soltei e corri.
A essas alturas o uivo de um sabujo já reverberava pelo ar da noite. A terra vibrava sob minhas
patas correndo. Três cães, talvez quatro. O sabujo tinha descoberta de novo sua coragem com uma
equipe de reserva. Eu poderia lutar contra quatro cães? Não, mas a experiência me tinha ensinado que
um ou dois correriam longe de um lobisomem, tal como o tinha feito o sabujo. Poder-me-ia arrumar
isso com os que permanecessem? Enquanto me perguntava isso, alguém gritou, tomando a decisão por
mim. No tempo que me levaria desafiar e lutar contra os cães, os guardas estariam sobre nós. Minhas
opções se reduziam a dois: tirar o sabujo de meu rastro ou levar aos cães longe de seus proprietários.
De uma ou outra forma, tinha que correr.
O melhor modo de perder ao sabujo seria passar através da água. Winsloe tinha mencionado um
rio. Onde estava? O ar da noite estava tão úmido que tudo cheirava como a água. Eu tinha deslocado
aproximadamente oitocentos metros quando a umidade contida no vento do oeste se triplicou.
Quando virei ao oeste, encontrei um caminho e tomei. A velocidade era agora uma preocupação maior
que deixar um rastro difícil. No caminho aberto, corri a plenitude, com a cabeça baixa, os olhos
estreitados contra o vento. Lancei-me através de uma parte esponjosa de terra, cobrindo-o em três
pernadas. Quando minhas patas dianteiras golpearam a terra firme, a terra sob minhas pernas traseiras
de repente cedeu ao passo. Lutando por me agarrar, enterrei minhas garras dianteiras no chão
enquanto minhas pernas traseiras pedalavam no ar. Atrás de mim, meus quartos traseiros
desapareceram na escuridão de um buraco profundo. Recordei o que Winsloe havia dito sobre o Lake
correndo para o rio: “... se ele tomar a rota fácil, encontrar-se-á com um buraco de urso”. Por que não
o podia ter recordado faz cinco minutos?
O uivo do sabujo cresceu, logo se partiu em duas vozes. Dois sabujos. Ambos muito, muito perto.
Minha pata traseira direita golpeou algo no flanco da fossa, uma pedra ou uma raiz. Empurrei-o,
obtendo suficiente ação de alavanca para tirar meus quartos traseiros quase por inteiro da fossa.
Blasfemando minha carência de dedos, agarrei a terra com minhas garras dianteiras, afundei minhas
garras traseiras no flanco da fossa, e consegui mover meu traseiro. Um cão apareceu detrás de mim.
Não me dava volta para ver como era. Melhor não saber.
Corri para o rio. Um uivo ensurdecedor soou a minha esquerda, tão perto que senti a vibração.
Virei à direita e segui correndo. Os sons patas correndo sacudiam a terra. Encolhi-me e aumentei a
velocidade. Eu era mais rápida que qualquer cão. Tudo o que tinha que fazer era me conservar o tempo
suficiente fora de seu alcance para deixá-los atrás. Enquanto não caísse em mais armadilhas, poderia
fazê-lo. O som de água corrente cresceu até que quase afogava o ofego dos cães. Onde estava esse rio?
Eu podia cheirá-lo, ouvi-lo... mas não podia vê-lo. Tudo o que podia ver era o caminho abrindo-se outros
cinquenta metros. E além desses cinquenta metros? Nada. O que significava que a terra deixava passo
ao rio. Quanto seria? Um pequeno ribeiro ou um escarpado de cem metros? Estava disposta a me
arriscar, a seguir correndo até que cair pela borda? A água soava perto, então não podia ser uma ladeira
muito escarpada. Tinha que tomar a jogada. Sem reduzir a marcha, corri para o final do rastro. Então,
a menos de dez metros de distância, uma forma saiu do bordo do bosque e aterrissou em meu caminho.

ESCAPAMENTO
Minhas quatro patas saíram disparadas, como os freios de um carro fora de controle. Vislumbrei
a pele, um brilho de presas, e me preparei para o ataque. Um ventre avermelhado esteve em cima de
mim. Cão estúpido. Nunca tinham sentido do objetivo. Girei para encontrar a meu atacante no
contragolpe e só vi uma piscada da pele da cauda quando ele correu longe. Né!. Bem, seria fácil. Quando
comecei a correr para a ribeira, um rugido de fúria partiu o ar da noite, e outra vez patinei para me
deter. Eu conhecia aquele rugido. Inalando, apanhei o aroma de meu atacante e compreendi por que
não me tinha atacado.
Virando, vi o Clay lançando-se contra um grupo de cinco cães. Lancei-me atrás dele. Antes que
pudesse cobrir os dois metros entre nós, ambos os sabujos e um rottweiler se giraram e correram. Isso
significava que só tínhamos que lutar contra dois cães, um rottweiler e um pastor alemão. Perfeito!
Hey, espera um minuto, Clay estava correndo atrás dos covardes, me deixando com os dois cães
restantes. Maldito fosse! Não podia simplesmente deixá-los ir? De todos os egocêntricos, o rottweiler
se voltou para mim, interrompendo minha crítica mental. Quando me girei para confrontá-lo, o pastor
investiu contra minha anca. O rottweiler afundou seus dentes em meu ombro. Caí-me para trás,
tratando de fazê-lo cair. O pastor saltou a minha garganta, mas vi o brilho de dentes e lancei minha
cabeça para baixo para proteger meu pescoço. Quando o pastor se retirou, agarrei sua orelha entre
meus dentes e a atirei, triturando-a. Ele grunhiu e tropeçou longe. O rottweiler agarrou meu ombro
outra vez e me sacudiu. Minhas pernas lutaram por um espaço para apoiar a pata. A dor atravessou
meu ombro. A articulação de meu joelho traidor flamejou, duplicando a agonia. Quando minha perna
boa traseira tocou terra, enterrei-a, consegui algo ação de alavanca, e rodei, sacudindo o rottweiler de
seus pés. Caímos, dando voltas juntos, tentando morder algo dentro da distância de corte. Logo, em
meados do cilindro, o rottweiler se afastou voando. Literalmente voou. Um segundo seus dentes
estavam enterrados na grossa pele ao redor de meu pescoço, o seguinte se precipitava para o céu. O
sangue orvalhou meus olhos. Cegada, tropecei sobre minhas patas, sacudindo minha cabeça para
limpar minha visão. A primeira coisa que vi era o rottweiler pendurando das mandíbulas do Clay. Logo
notei um movimento a minha direita. O pastor. Este se mergulhou contra Clay. Girei, agarrando-o a
metade do vôo, e arranquei sua garganta antes de sequer tocasse a terra. Seu corpo ainda se movia
nervosamente quando ouvi os gritos dos guardas.
Corri para o ribeiro. Clay me cortou e me empurrou para os bosques. Quando tentei mordê-lo,
vi os corpos de ambos os sabujos jazendo no caminho e entendi. Clay tinha ido atrás quão sabujos
fugiam para assegurar-se que não poderiam devolver-se e recolher nosso rastro. Com os sabujos
mortos, não tínhamos que nos dirigir para a água.
Mergulhamo-nos no mato e fomos ao norte, passando a dez metros dos guardas enquanto estes
trotavam para o rio. Não se detiveram, nem fizeram que o rottweiler revisasse ao lado deles. Eles faziam
ruído suficiente para cobrir o nosso, e o vento do sudeste apartava nosso aroma do cão.
Segui ao Clay por três quilômetros de bosque, avançando para o nordeste. Quando ele se deteve,
farejei o aroma de um caminho, mas cheirei só bosque. Quando procurei a brisa, ele se roçou ao longo
de meu flanco, esfregando-o bastante perto de mim para sentir o calor de seu corpo através de sua
pele. Ele me rodeou, logo fez uma pausa em meu ombro ferido, lambeu-o duas vezes, e deu voltas
outra vez. Esta vez se deteve em minha perna traseira esquerda e me deu uma ligeira cotovelada, me
forçando a cair sobre minhas ancas. Ele sorveu a imundície de minha rótula rasgada, logo começou a
lambê-la. Sacudi-me, atirando longe, fazendo gestos de que tínhamos que seguir correndo, mas ele
golpeou minhas pernas traseiras de novo, menos brandamente esta vez, e voltou a trabalhar em meu
joelho antes de mover sua atenção a meu ombro. Cada poucos minutos, ele movia seu focinho a minha
bochecha, seu fôlego quente roçando meu rosto, me acariciando com o focinho, logo voltava para a
limpeza de minhas feridas. Enquanto trabalhava, minhas orelhas se giravam constantemente,
escutando aos guardas, mas não vieram. Finalmente, Clay me fez me parar, roçando-se ao longo de
meu flanco uma última vez, logo ficou em caminho em direção nordeste com um lento galope. Segui-
o. Uma meia hora mais tarde, recolhi o aroma distante de um caminho. Momento para mudar.

***

Inclusive depois de que me tinha mudado, fiquei em meu esconderijo. Enquanto Clay passeava
além da espessura, fiquei de coque ali, escutando ao rangido das folhas mortas sob seus pés e me
perguntando que demônios estava fazendo. Durante nove dias, não soube se veria o Clay de novo. Por
uma interminável noite, eu tinha pensado inclusive que ele poderia estar morto. No momento em que
minha mudança terminou, eu deveria ter deslocado para ele. Em vez disso, ajoelhei-me perto da terra,
meu coração fazendo um ruído surdo, não de antecipação, a não ser um pouco mais próximo ao temor.
Não sabia como confrontar ao Clay. Era como se um forasteiro me esperasse e eu não estivesse segura
de como reagir, não querendo nada mais que aninhar-me aqui até que ele partisse. Não era que eu
quisesse que Clay partisse. Eu só... eu lamentava que Jeremy não estivesse ali. Não era horrível? Desejar
um amortecedor que me protegesse de um reencontro com o homem que amava? Clay era a única
pessoa com quem alguma vez me sentia completamente cômoda. E agora sentia como se enfrentasse
a um forasteiro? Que tipo de merda era esta? Ainda quando me dava conta de minha loucura, não
podia me obrigar a ir para ele. Tinha medo. Medo de ver que algo faltava em seus olhos, ver rastros do
olhar que ele me tinha dirigido quando ele tinha pensado que eu era Paige.
Clay deixou de andar — Elena? - disse brandamente.
—Ummm, não tenho nenhuma roupa.
De todas as coisas idiotas que eu poderia haver dito, esta era a que encabeçava a pronta. Esperei
que Clay caísse rindo-se. Não o fez. Não fez nenhum som, só colocou a mão na espessura e sustentou
sua mão. Fechei meus olhos, tomei, e lhe deixei me tirar.
—Estranho momento para fazer brincadeiras, né? - respondi.
Mas ele não sorria. Em vez disso ficou de pé ali, seus olhos procurando minha cara, duvidoso,
quase incerto. Então me atirou contra ele. Meus joelhos cederam ao passo, e tropecei em seus braços,
sepultando minha cara contra seu ombro, inalando seu aroma enquanto um som alarmante próximo a
um estalo de soluços saía de meus lábios. Aspirei seu aroma, enchendo meu cérebro com ele, excluindo
todo o resto. Meu corpo se estremeceu, logo começou a tremer. Clay me abraçou com força, uma mão
entrelaçada em meu cabelo, a outra esfregando minhas costas.
Quando deixei de tremer, dobrei meus joelhos, nos baixando a terra. Suas mãos se deslizaram
detrás de minhas costas, amortecendo-a contra a terra fria. Toquei com meus lábios os seus,
tentativamente, como se ainda existisse a possibilidade de que ele me afastaria, rechaçaria-me. Seus
lábios se moveram contra meus, suaves, logo mais forte, aumentando a pressão e intensidade até que
não pude respirar e não me importava. Guiei meus quadris para os seus e o atirei para mim.

***
Logo, enquanto jazíamos sobre a terra úmida de rocio, pus atenção, procurando sons humanos
e só ouvi o ligeiro batimento do coração do coração do Clay, que reduzia sua marcha com cada fôlego.
Só seria minha sorte fazer que os guardas nos encontraram agora, estando no mato a vinte passos da
liberdade, havendo posposto nosso escapamento para fazer o amor. Era a última tontice, imprudência,
ou clara estupidez? Provavelmente uma combinação das três. Nunca deve dizer-se que Clay e eu
alguma vez faríamos algo tão convencional como completar realmente uma fuga de perto da morte
antes de nos agradar em uma ronda rápida de sexo de reencontro.
—Deveríamos ir - disse.
Clay riu entre dentes — Você acredita?
—Provavelmente. A menos que trouxesse comida. Então talvez poderíamos fazer um piquenique
antes de ir, olhando o sol elevar-se.
—Lamento-o, querida. Nada de comida. Há uma cidade aproximadamente a dez quilômetros
daqui. Tomaremos o café da manhã ali.
—Não tem sentido apressar as coisas. Sexo. Uma comida relaxante. Infernos, talvez
encontramos tempo para alguma visita turística antes de ir.
Clay riu — Temo que a única vista local que veremos é o estacionamento do restaurante mais
próximo. Eu estava um pouco apressado para escapar e não tomei uma mudança de roupa. Teremos
que compartilhar o que tenho. É obvio, isso o fará mais fácil se decidimos nos deter para mais sexo
depois do café da manhã.
—Só me leve a casa - respondi.
—Desejaria poder, querida.
—Quis dizer, me leve em qualquer lugar que estejam Jeremy e outros.
Ele assentiu com a cabeça e recuperou sua roupa de uma árvore próxima. Então me deu sua
camisa, boxes, e meias três - quartos, ficando com seu jeans e sapatos. Uma vez que nos tivemos vestido
–ou semivestido – me levou em braços ao carro. Não, não era um grande gesto romântico. A terra
estava molhada e eu teria empapado minhas meias três-quartos se caminhava. Além disso meu joelho
ainda palpitava quando punha qualquer peso sobre ele. Tão talvez sim era romântico depois de tudo.
Romance prático. A classe de romance que nós melhor fazíamos.

***

Estávamos em Maine. Não na praia, a terra de férias de Maine, a não ser em meio de uma seção
remota no norte. Antes que Clay tivesse deixado ao Jeremy para me buscar, outros tinham demarcado
minha posição à parte superior Maine. Em ausência do Clay, Jeremy os tinha movido a todos a New
Brunswick, julgando-o como a posição mais segura para nos buscar. Clay soube isto ao chamar o Jeremy
de um telefone público ao bordo do caminho. Jeremy ainda tinha meu telefone celular e era capaz de
lhe dar direções.
No caminho a New Brunswick mantivemos nos caminhos vicinais enquanto podiam, mas nessa
parte de Maine, os caminhos que não eram estrada eram frequentemente tão insignificantes que não
podíamos encontrá-los no mapa. Logo demos volta em I-95. Quarenta minutos mais tarde chegamos
ao passo fronteiriço Houlton-Woodstock. Como de costume, cruzar a fronteira ao Canadá era um
trâmite. Baixar o vidro e responder algumas simples pergunta. Cidadania? Lugar do destino? Tempo de
permanência? Trazem armas de fogo/licor/produtos frescos? Desfrute de sua permanência. Esperava
fazê-lo.
Jeremy tinha levado a outros a um motel a uns quilômetros da Estrada que cruzava o Canadá,
perto do Nackawic. Por que tinha escolhido Jeremy a parte oeste de New Brunswick para seu
acampamento de apoio? Dois motivos. Primeiro, estava fora dos Estados Unidos. Tucker e seus guardas
eram americanos e sabiam que todos nós, exceto eu, fomos americanos, então assumiriam que
ficaríamos nos Estados, até se o Canadá estava a umas escassas horas. Segundo, o oeste de New
Brunswick era principalmente francófono22. Isso podia parecer um obstáculo, e Jeremy esperava que o
fosse, mas em realidade a barreira dos idiomas era facilmente cruzada na fronteira internacional.
Jeremy e eu tanto falávamos francês como inglês, mas até se não o fizéssemos, a maior parte dos
vizinhos seriam bilíngues. Era difícil viver no Canadá e não encontrar ao menos algum inglês, a nosso
pesar o bilinguismo nacional era oficial. Se Tucker sequer chegasse a pensar em enviar um pelotão
através da fronteira, ele o enviaria para as regiões de fala inglesa na parte leste de New Brunswick.
Deste modo, embora estivéssemos a menos de duzentos quilômetros ao norte do complexo, estávamos
tão seguros aqui como se tivéssemos percorrido toda a costa até a Florida.
Com o passar da viagem, Clay e eu logo que falamos. Alguém mais me teria que crivar com
perguntas sobre meus captores, o complexo, minha fuga. Eventualmente teria que responder estas
perguntas, mas agora mesmo, não queria nada mais que dar-nos atrás em meu assento, olhar a
paisagem passar, e esquecer o que tinha deixado atrás. Clay me deixou fazer isso.
Chegamos ao motel às nove e trinta. Era velho, mas ordenado com um enorme pôster ao bordo
do caminho que proclamava “Bem vindos”. Só meia dúzia de carros ocupava o estacionamento. Mais
tarde, se encheria de pessoas veraneando que faziam a dificultosa viagem de Ontário e Quebec às
Maritimes, mas no momento todos se foram, cedo e em busca do café da manhã.
—Este é o lugar correto? - Perguntei. —Reconhece algum dos carros de aluguel?
—Não, mas eles os tinham trocado por novos. Entretanto, reconheço ao tipo que está perto.
Jeremy estava de pé diante de uma jaula de galos e faisões, nos dando as costas. Abri a porta e
saltei antes que o carro deixasse de rodar.
—Faminto? - Chamei enquanto trotava para o Jeremy. —Se vêem bastante gordos.
Jeremy deu a volta, me dirigindo um sorriso, não surpreso como se eu tivesse estado todo o
tempo detrás dele. Provavelmente nos visto havia conduzir e se ficou de pé aqui, olhando às aves. Em
um tempo, não muito tempo atrás, eu teria tomado isto como um desprezo, horas perdidas angustiadas
porque ele não tinha vindo a me saudar. Mas eu sabia que Jeremy não me tinha estado ignorando. Ele
tinha estado esperando. Jeremy nunca iria correndo a me dar a bem-vinda me abraçando com força e
me dizendo que tinha sentido saudade. Alguns na manada o fariam, mas não era a forma de ser do
Jeremy, nunca o seria. Logo quando lancei meus braços ao redor dele e beijei sua bochecha, ele me
abraçou de volta e murmurou que se alegrava de me ver. Era suficiente.
—Comeu? - perguntou. Outra vez, típico do Jeremy. Eu tinha passado nove dias encerrada em
uma cela e sua primeira preocupação seria que eles não me tinham alimentado corretamente.
—Tomamos café da manhã - disse Clay quando se aproximou. —Mas ela provavelmente ainda

22
Pessoa que fala francês ou aprecia o francês.
tem fome.
—Faminta - respondi.
—Há um restaurante um quilômetro mais abaixo - disse Jeremy. —Conseguiremos uma comida
apropriada ali. Primeiro, entretanto, sugiro que ponha mais roupa. Ambos - Ele me conduziu para o
motel. —Iremos a meu quarto. Minha equipe está ali. A julgar pela aparência desse joelho o
necessitaremos.
A porta de um quarto se abriu e Paige saiu, mas Jeremy seguiu me conduzindo para o extremo
oposto do motel. Dirigi-lhe um sorriso rápido e um gesto antes que Jeremy me levasse a seu quarto.
—Eles estão impacientes por ver-te, mas isso pode esperar - disse.
—Preferentemente até que tome banho - respondi.
—Primeiro, assistência médica. Logo uma ducha, alimento, e descanso. Não há nenhuma pressa
para falar com ninguém.
—Obrigada.
—Seu joelho é o pior - disse Clay quando me sentei. —O ombro tem má cara, mas é uma
rasgadura superficial. O dano do joelho vai mais profundo. Parcialmente curado e aberto outra vez. O
braço e os cortes faciais são superficiais, mas têm que ser limpos. O mesmo com o corte em sua mão e
o pó dos disparos em seu ombro e flanco. Há também algumas feridas de espetada curadas em seu
estômago que deveria revisar.
—Deveria? - disse Jeremy.
—Sinto muito.
Eu sabia que Clay pedia perdão nem tanto por dar ao Jeremy instruções médicas, mas sim pelos
dias anteriores, por sair sozinho. Ninguém falou enquanto Jeremy examinava minhas feridas. Enquanto
ele se inclinava para meu joelho, meu estômago grunhiu.
Jeremy jogou uma olhada por sobre seu ombro ao Clay —O restaurante está no lado leste da
estrada. Enfia ao sul ao redor da curva. Eles deveriam ter tortas.
—Et o jambon, s'il vous plaît - disse.
—Eles falam inglês - disse Jeremy, seus lábios curvando-se quando Clay vacilou na porta. Ele
cautelosamente atirou meia dúzia de pedaços de ramos de minha rótula antes adicionar, —Ela disse
que também quer presunto. Naturellement.
—De acordo - disse Clay. E nos deixou.

RECUPERAÇÃO
Depois de examinar e limpar minhas inumeráveis feridas, Jeremy costurou de novo minha perna.
Agora bem, a gente poderia perguntar-se como resultava ser que ele tivesse uma agulha cirúrgica e fio
à mão, pois Jeremy com maior probabilidade faria uma viagem sem sua escova de dentes que sem sua
equipe médica, e era muito consciencioso a respeito da higiene oral. Da experiência passada, Jeremy
tinha aprendido a levar sua equipe médica mais ou menos cada vez que saía com o Clay ou comigo.
Tínhamos o hábito de transformar inclusive os acontecimentos mais inofensivos em emergências
médicas, como a vez que fomos à ópera e terminei com uma clavícula fraturada –por minha própria
estupidez realmente, mas Clay tinha começado. Persuadi ao Jeremy para que renunciasse a enfaixar
minhas feridas. Uma ducha quente era mais importante. Uma vez que houve teve terminado os pontos
e me teve advertido contra “as molhar muito”, escapei-me ao banheiro. Esperei a que a temperatura
de água estivesse pronta para escaldar antes de dar um passo dentro da ducha. Durante vários minutos
fiquei imóvel, que a cascata de água quente caísse sobre mim, levando-se longe todos os resíduos da
semana passada. Quando a porta da ducha se abriu, não me dava volta. Claro que tinha visto Psicose,
mas nenhum intruso com uma faca poderia ter passado ao Jeremy, e eu sabia que não era Jeremy o
que abria a porta –com uma faca –para interromper minha ducha. Fria pele se roçou contra minhas
pernas nuas. Quando a porta de ducha se deslizou fechando-se, os dedos fizeram cócegas por meu
quadril. Fechei meus olhos e me apoiei atrás contra Clay, sentindo seu corpo acomodar-se aos
contornos de minhas costas. Senti-o estirar-se para frente, estendendo a mão para o xampu. Enquanto
inclinava minha cara para a água, suas mãos foram a meu cabelo, seus dedos desenredando-o, o
penetrante aroma do sabão perfumando o vapor. Joguei minha cabeça atrás em suas mãos, quase
ronronando de alegria.
Quando terminou com meu cabelo, afastou-se por um momento, logo voltou. Suas mãos
saponáceas acariciaram meus braços, logo se deslizaram para baixo pelo exterior de minhas pernas,
realizando círculos ali antes de mover-se gradualmente para o interior de minhas coxas. Separei minhas
pernas e Clay riu entre dentes, o som reverberando contra minhas costas. Ele dirigiu as gemas de seus
dedos em lentos ziguezagues de acima a abaixo pelo interior de minhas coxas, brincando, logo os
escorregou dentro de mim. Gemi e me arqueei contra ele. Sua mão livre estava ao redor de minha
cintura, me atirando mais perto, sua ereção empurrando contra minhas costas. Pus-me na ponta dos
pés e me movi, tratando de dirigi-lo dentro de mim. Ele me girou para confrontá-lo e me levantou para
ele. Joguei minha cabeça atrás, para a água, atraindo ao Clay enquanto beijava. A água se esfriou até
gerar gotinhas frias que golpeavam minha cara. Elevando minha mão, enredei meus dedos nos cachos
empapados do Clay, sentindo os riachos de água fazer cócegas ao longo das partes interiores de meus
pulsos. Ele fez um ruído profundo em sua garganta, meio gemido, meio grunhido, e empurrou para
mim, quase nos derrubando na tina. Então se estremeceu e se afastou.
—Por favor, não me diga que o tem feito - respondi, ainda pendurando enfraquecida em seus
braços
Clay riu — Faria isso? Estou bem, mas seu café da manhã se esfria.
—Confia em mim, não me preocupa.
Estendi a mão para aproximá-lo de mim, mas ele se afastou, obteve um melhor apertão em
minha cintura, abriu a porta da ducha, e me levou em braços. Uma vez no dormitório, deixou-me sobre
a cama e esteve dentro de mim antes que o colchão deixasse de saltar.
—Melhor? - perguntou.
—Ummm, muito.
Fechei meus olhos e me arqueei para ele. Quando me movi, o aroma de café da manhã na
mesinha de noite se elevou pelo ar para nós. Vacilei uma fração de segundo. Meu estômago grunhiu.
—Eclipsado pelo presunto e as tortas - disse Clay. —Outra vez.
—Posso esperar.
Clay empurrou dentro mim com grunhido fingido — É muito amável, querida.
Movi meus quadris contra os seus. Meu estômago fez um som afogado e vaiou. Clay se moveu e
afastou. Estendi a mão para trazê-lo de volta, mas ele não se devolveu, mas sim estendeu a mão para
algo por cima de minha cabeça. Quando fechei meus olhos outra vez, o óleo gotejou por minha
bochecha, e uma fatia de presunto pressionava meus lábios. Abri minha boca e me traguei isso com
poucas dentadas, logo suspirei, e levantei meus quadris para encontrar ao Clay.
—Mmmm.
—É por mim ou pelo presunto? - sussurrou contra meu cabelo.
Antes que pudesse aplacar seu ego, ele empurrou outra fatia do presunto em minha boca, logo
dobrou sua cabeça para lamber o óleo que gotejava, sua língua fazendo círculos ao longo de minha
bochecha. Movemo-nos juntos durante uns minutos e esqueci o alimento. Honestamente. Logo Clay
estendeu a mão de novo, esta vez voltando com uma torta. Afundei meus dentes até a metade e
empurrei o resto para sua boca. Ele riu e tomou um mordisco. Quando terminei, levantei minha cabeça
e lambi os miolos de seus lábios. Ele tomou outra torta e o pendurou em cima de mim. Sacudi minha
cabeça para arrebatá-la. Meus dentes se afundaram em algo que ele não tinha estado oferecendo.
—Yow! - disse, sacudindo seu dedo ferido.
—Não jogue com o alimento então - resmunguei através de um bocado de torta.
Clay grunhiu e baixou seu rosto ao flanco de meu pescoço, mordiscando um ponto sensível.
Grunhi e tratei de me mover longe, mas ele me sujeitou e empurrou dentro de mim. Estremeci-me e
ofeguei. Então realmente esqueci o alimento.

***

Vinte minutos mais tarde, estava enroscada ao lado do Clay, um braço sobre suas costas fazendo
desenhos no suor entre suas omoplatas enquanto ele mordiscava o oco entre meu pescoço e ombro.
Bocejei, estirei minhas pernas, logo as pus ao redor dele.
—Sono? - perguntou.
—Mais tarde.
—Conversa?
—Não ainda - Sepultei minha cara em seu peito, inalei, e suspirei. —Cheira tão bem.
Ele riu entre dentes — Como presunto?
—Não, como você. Senti falta de você.
Sua respiração ficou apanhada. Uma mão foi a meu cabelo, acariciando-o atrás de meu ouvido.
Eu geralmente não falava assim. Se eu dizia que o sentia falta dele, geralmente era uma frase chave. Se
eu dizia que o amava, quase sempre era enquanto fazíamos o amor, quando eu não podia ser
responsável por nada do que dizia. Por quê? Porque tinha medo, medo de que admitindo o que ele
significava para mim, eu lhe desse o poder de me fazer dano ainda de pior maneira do que o tinha feito
me mordendo. O qual era estúpido, é obvio. Clay sabia exatamente quanto o amava. A única pessoa a
que enganava era para mim mesma.
—Estava assustada - respondi. Outra coisa que lamentava admitir, mas enquanto estava com o
cilindro...
—Eu também - disse ele, beijando a parte superior de minha cabeça. —Quando compreendi que
te tinha ido…
Alguém bateu na porta. Clay xingou em voz baixa.
—Parte - murmurou, muito baixo para que o convidado ouvisse.
—Poderia ser Jeremy - disse.
—Jeremy não nos incomodaria. Não agora.
—Elena? Sou eu - chamou Paige.
Clay se levantou sobre seus antebraços - Parte !
—Só quero ver como está Elena..
—Não!
O suspiro do Paige revoou através da porta — Deixa de gritar, Clayton. Não vou acossá-la. Sei
que ela passou por muito. Só queria…
—Verá-a quando todos outros o façam. Até então, espera.
—Talvez eu deveria falar com ela - sussurrei.
—Se abrir essa porta, ela não partirá até que tenha tirado cada ápice de informação de ti.
—Ouvi isso, Clayton - disse Paige.
Ele grunhiu para a porta e resmungou em voz baixa. Algo me disse que Clay e Paige não se
fizeram amigos em minha ausência. Imaginem-se isso.
—Ummm, Paige? - Chamei. —Estou bastante cansada, mas se me dá um minuto para me vestir…
—Ela não partirá - disse Clay. —Necessita tempo para te relaxar. Não tem que responder
perguntas para um rebanho de estranhos.
—Não sou uma estranha - disse Paige. —Poderia ser um pouco menos grosseiro, Clayton?
Clay tinha razão. Se eu deixava entrar no Paige, ela quereria saber tudo. Eu não estava pronta
para isso. Tampouco queria jazer aqui enquanto Clay e Paige discutiam através de uma porta fechada.
Saí lentamente da cama e lancei ao Clay seu jeans. Quando ele abriu sua boca para protestar,
elevei um dedo para a janela, logo o levantei meus lábios. Ele assentiu com a cabeça. Enquanto colocava
a camiseta do Clay e boxers, ele abriu a janela e desenganchou a cortina. Logo, enquanto Paige
pacientemente esperava a que lhe abríssemos a porta, escapamo-nos para o bosque circundante.

***

—Provavelmente isso não foi muito amável - respondi enquanto entrávamos nos bosques.
Clay soprou —Não me apanhará perdendo o sono por isso.
—Sei que Paige pode ser difícil, mas…
—Ela é uma dor no traseiro, querida. E isso sendo generoso. A menina logo que saiu da escola e
acredita que é uma líder, tratando de que as coisas se façam a sua maneira em tudo, discutindo,
questionando ao Jeremy. Até que te conheceu em Pittsburgh, ela nunca tinha estado perto do
verdadeiro perigo e de repente é uma perita - sacudiu sua mão. —Não comece.
—Parece que já o fiz.
—Nah, isso não é nada, querida. Dêem-me umas horas e te direi o que realmente penso do Paige
Winterbourne. Ninguém se dirige ao Jeremy dessa maneira, sobretudo não uma menina com tamanho
superdimensionado de sua própria importância. Se fizessem as coisas a meu modo, Paige teria sido
enviada ao corno a semana passada. Mas conhece o Jeremy. Ele não manda longe toda sua merda, mas
tampouco a deixará fazer o que quiser - Ele avançou através de um enredo de ramos de árvore. —Para
onde vamos?
—E uma corrida? Nem se quisesse Paige incomodaria a um lobo.
—Não conte com isso.

***

Depois de nossa corrida, fizemos o amor. Outra vez. Depois nos atiramos no mato, absorvendo
último o sol o verão perfurando o teto de árvores acima.
—Cheira isso? - perguntou Clay.
—Hmmm?
—Cheiro comida.
—Morta ou viva?
Clay riu —Morta, querida. Morta e cozinhada.
Ele se levantou, olhou ao redor, logo me fez gestos para que esperasse e desapareceu nos
bosques. Meio minuto mais tarde voltou com uma cesta de piquenique. Bem, uma caixa de cartão
realmente, mas os aromas que saíam dela definitivamente eram de piquenique. Pondo-o sobre o mato,
desempacotou queijo, pão, fruta, um prato coberto de frango, uma garrafa de vinho, e ordenou os
instrumentos de comida de plástico e papel.
—Fadas de piquenique? - Perguntei, logo apanhei uma lufada que respondeu minha pergunta.
—Jeremy - Agarrei uma coxa de frango e tirei um pedaço. —Estão me acostumando mal.
—Merece-o.
Sorri abertamente — O faço, verdade?
Despachamos a comida e o vinho em menos de dez minutos. Então me reclinei sobre o mato e
suspirei, contente e saciada pela primeira vez em quase duas semanas. Fechei meus olhos e o primeiro
puxão sedutor de sono me percorreu. Sono. Sono ininterrupto. O final perfeito para um dia perfeito.
Rodei contra Clay, sorrindo dormi, e deixando que as ondas de sonso me apanhassem. De pronto me
esclareci.
—Não podemos dormir aqui fora - disse. —Não é seguro.
Os lábios do Clay roçaram minha fronte — Me manterei acordado, querida.
Quando abri minha boca para discutir, a voz do Jeremy veio da distância — Ambos podem
dormir. Estou aqui.
Vacilei, mas Clay me empurrou para baixo, entrelaçando suas pernas ao redor de mim e
amortecendo minha cabeça com seu braço. Abriguei-me em seu calor e dormi.

***

Era já tarde quando Jeremy nos deu uma cotovelada despertando. Clay grunhiu entre roncos
mas não se moveu. Bocejei, rodei, e segui rodando até que fiquei sobre meu outro flanco, com o qual
me voltei a dormir. Jeremy nos sacudiu mais forte.
—Sim, sei que ainda está cansado - disse quando Clay se queixou de maneira ininteligível. —Mas
Elena tem que falar com outros hoje. Não posso adiá-lo até manhã.
Clay resmungou em voz baixa.
—Sim, sei que poderia - disse Jeremy. —Mas seria grosseiro. Eles estiveram esperando todo o
dia.
—Precisamos… - comecei.
—Trouxe roupa.
—Tenho que escovar…
—Há um pente e enxágue bocal com a roupa. Não, não voltarão para seu quarto ou suspeito que
não os verei até amanhã. Vemo-nos em quinze minutos. Está-los-ei esperando.

***

A reunião se faria no quarto do Adam e Kenneth. Quando cruzamos o estacionamento, vi Paige


passear pela calçada que se derrubava. Seus braços estavam cruzados, provavelmente contra o fresco
ar noturno, mas parecia como se sustentara em uma represa de perguntas que tinha estado esperando
meio-dia para lançar contra mim. Justo o que necessitava - Não, não era justo. É óbvio, Paige estava
ansiosa de me falar. Eu tinha estado no campo inimigo. Eu tinha visto contra o que lutávamos. Era
compreensível que ela ardesse com perguntas sobre o complexo, meus captores, os outros detentos –
Oh, Deus. Ruth. Paige não sabia da Ruth. A semana passada tinha sido tal confusão que tinha esquecido
completamente que Paige se pôs em contato comigo antes que Ruth morresse. Pelo último que ela
tinha ouvido, sua tia estava viva. Maldição! Como podia ter sido tão insensível? Paige tinha estado
esperando notícias de sua tia. Ela o tinha atrasado enquanto Jeremy tratava minhas feridas,
considerando mim tempo para tomar banho, logo devia perguntar sobre a Ruth. E o que tinha feito eu?
Eu tinha escapado pela janela do dormitório.
—Tenho que falar com Paige - disse.
—Permanece à vista - gritou Clay enquanto trotava para ela.
Quando me aproximei, Paige se girou e assentiu com a cabeça, reconhecendo minha presença,
mas não dizendo nada. Sua cara era inexpressiva, qualquer moléstia escondida sob um manto de boas
maneiras.
—Como se sente? - perguntou. —Jeremy diz que suas feridas não são muito graves.
—Sobre o de antes - disse. —Eu -eu não pensava- foi um inferno de um dia - Sacudi minha cabeça.
—O lamento, é uma desculpa piolhenta. Você queria saber sobre sua tia. Nunca pensei… eu deveria
haver…
—Ela se foi, verdade?
—Sinto-o tanto. Passou depois de que perdemos o contato, e esqueci que não sabia.
Os olhos de Paige se afastaram de meus, dando-se a volta para olhar fixamente o
estacionamento. Lutei por algo que dizer, mas antes que pudesse pensar em algo, ela falou, seu olhar
ainda se fixava em algum ponto remoto.
—Eu sabia - disse ela, sua voz tão distante como seu olhar fixo. —Senti que se foi, embora tinha
esperado me equivocar - fez uma pausa, tragou, logo sacudiu sua cabeça bruscamente e se voltou para
mim. —Como passou?
Vacilei. Agora não era o momento para a verdade. Não antes que tivesse falado com o primeiro
Jeremy.
—Um ataque cardíaco - disse.
Paige franziu o cenho — Mas seu coração...
—Bem-vinda de volta! - gritou Adam desde mais à frente do estacionamento.
Dava-me a volta para vê-lo correr para mim, sorrindo abertamente.
—Vê-te bem - disse Adam. —Bem, exceto esses cortes. Recuperaremo-los para isto. Como estão
seus braços? As queimaduras, quero dizer. Nunca tive oportunidade para explicá-lo. Foi sem querer, o
qual suponho que imagina, já que Clay não me matou por isso. De todos os modos, sinto muito.
Realmente o sinto.
—Para ser sincera, tinha-me esquecido disso.
—Bom. Então esquece que o mencionei - deu a volta quando Clay nos alcançou. —Como é que
não me levou? Poderia ter ajudado com o resgate.
—Não houve nenhum resgate - disse Clay, colocando seu braço ao redor de minha cintura. —
Enquanto tratava de encontrar um caminho para dentro, Elena escapou. Tudo o que fiz foi proporcionar
um carro para escapar.
—Vê-o? - disse Cassandra quando se uniu a nós — disse que Elena era uma moça criativa.
Paige pôs seus olhos em branco para ouvir o uso de “moça”, mas Cassandra a ignorou.
—Felicitações, Elena - disse ela, pondo uma mão fria sobre meu braço. —Me alegro de ver- te e
com tão bom aspecto.
Ela soava como se o queria dizer de verdade. Detive-me. Por que não o quereria dizer? Porque
eu tinha sonhado que ela tinha aconselhado a outros me abandonar e tivesse feito um jogo para
conseguir ao Clay? Um sonho, recordei-me. Uma manifestação de minhas próprias inseguranças. O
sorriso que de bem-vinda da Cassandra era bastante genuína. Se o braço do Clay pareceu apertar-se ao
redor de mim, pois provavelmente era uma coincidência. Ou minha imaginação.
—Deveríamos começar esta reunião - disse Paige. —O faremos curto. Estou segura de que está
esgotada, Elena. Não lhe incomodaremos com detalhes esta noite. Prometo-o.

LEALDADES
Na reunião, Jeremy resumiu o que minha fuga adicionava a nosso conhecimento. Combinando
minha informação com a do Clay, tínhamos um quadro bastante bom da geografia i
entre as partes interna e externa do complexo. Possivelmente o mais importante, era que sabíamos
onde encontrar a nossos inimigos. Dado o tamanho e complexidade do funcionamento, era improvável
que eles movessem logo o acampamento. Por isso, raciocinou Jeremy, poderíamos tomar um tempo
para planejar uma estratégia de infiltração, acabar com a ameaça de maneira permanente, e liberar a
Ruth e a outros.
Quando Jeremy disse isto, compreendi que todos assumiam que Ruth ainda estava viva. Por que
não o fariam? Eu não havia dito outra coisa.
—Ruth –uh– ela não o fará - respondi.
—O que? - O olhar do Adam se moveu para o Paige. —Quer dizer que ela...
—Ela se foi - disse Paige, sua voz baixa, oca e débil.
—Merda - Adam caminhou para Paige e pôs seu braço ao redor de seus ombros, logo me olhou.
—O que aconteceu?
Agora estava apanhada. Mentiria diante de todo o grupo, ainda sabendo que eles logo
conheceriam a verdade logo depois de que lhe tivesse explicado tudo ao Jeremy? Ou seria honrada e
deixaria a Paige perguntando-se por que lhe tinha mentido só minutos antes? Como me tinha metido
nesta confusão? Bem melhor deixar limpo o assunto antes de me afundar ainda mais profundo.
—É –uh– complicado - comecei.
—Eles a assassinaram, ou não? - disse Paige. —Sei que o sequestro deve ter sido estressante,
mas ela estava em perfeito estado de saúde.
Em outras palavras, Paige não tinha comprado minha história do ataque ao coração. Eu lhe
agradeci mentalmente que me desse uma maneira elegante de escape e não me haver chamado
mentirosa.
—Realmente, não - disse. —Eles não a mataram. Não as pessoas que nos sequestraram. Foi um
dos outros cativos. Mas não foi sua culpa.
Paige franziu o sobrecenho. —Um acidente?
—Umm, algo assim, mas não exatamente - inalei. —Ruth não te disse tudo quando te contatou.
Havia outra bruxa ali. Uma moça jovem.
Eu contei a história inteira: o treinamento da Savannah, os eventos inexplicados no complexo,
os ataques aos guardas, a morte da Ruth, e a criminal mutilação que Savannah causou durante nosso
intento de escapamento.
—Assim está dizendo que essa garota é demoníaca - disse Adam.
—Não. Não o é - disse. —Ela só faz…
—coisas más - terminou Cassandra. —O sinto, Elena, mas isso me parece como demoníaco. Se
for intencional ou quase não é o ponto. Temos que considerar a sabedoria de liberar uma menina com
essa capacidade de destruição. Por isso ouvi, duvido realmente que qualquer de nós seja capaz de
controlá-la. Sobre tudo o Coven.
Cassandra lançou um olhar a Paige. As bochechas da moça arderam, e abriu sua boca como se
fora a defender-se, logo a fechou.
—É um fato, então - disse Cassandra. —Nós não podemos nos preocupar com a moça...
—Savannah não fez essas coisas - disse Paige tranquilamente.
Cassandra suspirou — Entendo por que você gostaria de pensar isso, Paige. Ninguém quer
acreditar que uma menina seja capaz do mal, muito menos condená-la a morte, mas o fato
permanece…
—Ela não o fez - disse Paige, mais forte agora. —Uma bruxa não pode fazer coisas assim.
Simplesmente não podemos. Um feitiço para mover um objeto inanimado? Sim. Mas mover o objeto
com força suficiente para lhe esmagar o crânio a alguém? Absolutamente não. O melhor que uma bruxa
poderia fazer seria tirar um prato da mesa, não atirá-lo através do quarto.
—Mas Eve também era meio-demônio - disse Adam. —Nós fomos só meninos quando ela se foi,
mas isso lembro-me.
—Seu pai era um Aspicio - disse Paige —Isso significa que o poder do Eve se limitava à visão. Ela
tinha reforçado a vista e podia causar cegueira temporária. Isso. Além disso, não se transmitem poderes
de um meio-demônio a sua descendência. Sabe isso.
Um comprido minuto de silêncio passou.
—Olhe - disse Paige. —Cassandra tem razão. Eu não quero acreditar que haja algo mau com esta
moça. Mas mentiria para salvá-la se isso significasse pôr em perigo aos outros? Claro que não. Me dêem
crédito por um pouco de sentido comum. Se Savannah pôde matar a Ruth, ela pode me matar a mim
também.
—Há outra teoria - disse. —Algumas pessoas pensaram que era um –uh – poltergeist.
—Um quê? - disse Clay.
Eu franzi o cenho para ele — Simplesmente repito o que ouvi, de acordo?
—Não foi um poltergeist - disse Paige. —E sim, Clayton, tais coisas existem, mas não é assim
como se manifestam. Alguém dentro desse complexo foi o responsável. O que outros sobrenaturais
havia ali?
—No lado contrário? - respondi. —O meio-demÔnio que se teletransportava, que nos
encontramos em Pittsburgh, mas ele se foi faz alguns dias. Além disso, supostamente tinham um
feiticeiro chamado Isaac Katzen em seu pessoal, embora eu nunca conheci tipo.
—Um feiticeiro poderia fazê-lo - disse Adam.
—Alguns deles - disse Paige. —Abrir as portas das celas, jogar com o sistema de
intercomunicação, bloquear as saídas. Todo isso são feitiços possíveis de fazer para um feiticeiro. Mas
lançar objetos e desparafusar ampulhetas? De maneira nenhuma. Isso requer um talento muito
específico.
—Telecinese - murmurei.
—Exatamente - disse Paige. —Várias raças têm graus variantes de poder telecinético, como...
—Como um meio-demônio telecinético - disse. Uma parte de gelo se estabeleceu em meu
estômago. —Mas ela disse – maldita seja! - inalei com força. —Havia um no complexo. Uma cativa. Ela
me disse que não era capaz de fazer algo assim. E eu lhe acreditei. Sei que parece incrivelmente tolo,
mas todos o cremos. Além disso, ela nem sequer estava perto quando a maioria das coisas passavam.
—Isso não importa - disse Paige. —Um vôo, o nível mais alto de meio-demônio telecinético, não
precisaria estar presente para exercer seus poderes. Eu recordo ter ouvido um caso onde um vôo pôde
encontrar uma flecha em um quarto imediato e dispará-la em um olho de boi com força suficiente para
fazê-lo estalar nos fósforos.
Fechei meus olhos — Como pude ser tão tola?
—Não é sua culpa - disse Paige. —Como disse, todos o cremos. Quando as pessoas pensam em
telecinese, imaginam a uma pessoa que dobra colheres, mas em realidade os Vejo-os poderiam ser o
tipo mais perigoso de meio-demônio. Podem lançar a uma pessoa por uma janela desde o décimo piso
sem elevar um dedo.
Eu me amaldiçoei por ter cansado na rotina da moça-da-porta-ao-lado de Leah, os
desdobramentos de preocupação, as ofertas de ajuda, as declarações de amizade. Eu tinha acreditado
em Leah. Tinha escutado enquanto ela tecia um molho de mentiras e enganos ao redor de uma menina
inocente, estendendo os indícios de dúvida até que a própria Savannah acreditou que era culpada. Leah
tinha sabido que Ruth a estava treinando? Tinha-a matado para detê-la? Qualquer que fosse o plano
de Leah, envolvia a Savannah. E eu as tinha deixado juntas.
De repente, não podia respirar. Cambaleei-me sobre meus pés e saí do quarto.
***

Ouvi o Clay atrás de mim. Sem me retardar, caminhei com passo comprido ao redor do motel e
me dirigi para o bosque. Ele não me chamou para que me detivesse ou esperasse, só trotou a meu lado
quando caminhei para o bosque.
—Paige tem razão - disse depois de uns minutos. —Não foi sua culpa.
—Sim, foi. Quis tirar Savannah. Mas não o fiz. O momento veio e eu a deixei. Disse-me que estava
fazendo a melhor coisa, deixando-a ali, mas profundamente dentro de mim sabia bem. Vi minha
oportunidade para escapar e tomei. Ao inferno com todos outros.
—Eu não acredito isso. Se a deixou atrás, foi porque tinha que fazê-lo. Tiraremo-la quando nós
retornemos.
—Mas não soa como se estivéssemos retornando logo.
Jeremy caminhou detrás de nós — Voltaremos assim que estejamos preparados, Elena. Está
segura, por que não me apressarei.
—Mas Savannah…
—Nosso objetivo principal é deter estas pessoas, não resgatar a ninguém.
—Mas estava planejando ir por mim.
—Isso é diferente. Clay e eu estávamos desejosos de tomar o risco. Todos outros eram livres de
tomar sua própria decisão. Eu não arriscarei sua vida ou a do Clayton nos apressando para resgatar a
um estranho. Nem sequer um menino.
—E o que se eu dito tomar esse risco?
—Não é livre de tomar essa decisão, Elena. Assim como é parte da Manada, posso tomá-la por
ti, e estou te proibindo que volte.
—Isso não é…
—Não é justo - terminou Jeremy. —Sim, discutimos isto antes. Mas é a lei da Manada. E não
ameace deixando a Manada porque farei cumprir que não retorne a esse complexo sozinha, não
importando que direitos à auto-determinação demande. Eu tomo a responsabilidade por esta decisão.
Faremos todos os esforços para salvar a esta menina quando voltarmos. Se algo lhe passar antes que
nós cheguemos ali, culpe a mim, não a ti.
Comecei a discutir, mas Jeremy já estava longe.

***

Eu não segui ao Jeremy para continuar com o assunto. Depois de dez anos de viver sob seu teto
e suas regras, eu sabia o que funcionava e o que não. Persegui-lo não servia. Uma vez Jeremy tomava
uma determinação, a única maneira de trocá-la era superar os obstáculos com lógica e persuasão. Saca
os arietes e ele simplesmente duplicava suas fortificações. Admiti-lo-ei, a paciência não é nenhuma de
minhas virtudes, mas resolvi algum tempo ao assunto. Umas horas pelo menos. Possivelmente toda a
noite.

***
—Assim que o sistema de segurança requer uma revisão de impressão digital e um exame
retinal? - perguntou Jeremy.
Ele se sentou frente à diminuta mesa em nosso quarto. Clay e eu estávamos atirados na cama,
Clay dormitando, eu tentando não me unir a ele.
—Uh, se - respondi.
Ele apontou algo em seus papéis. —O dedo indicador?
—Huh? Oh, não. Sinto muito. É um rastro da mão, não uma impressão digital. Agarra o cabo e
examina o rastro de sua mão.
—Não precisamos fazer isto esta noite. Teremos tempo suficiente depois.
Não se eu tinha algo que dizer a respeito. —Quero fazê-lo agora, enquanto está fresco em minha
mente.
—Comemos? - A voz surda do Clay flutuou dos travesseiros.
—O que?
Ele rodou sobre suas costas — Estou contando as comidas. Tomávamos o café da manhã em
Maine, logo outro café da manhã aqui. Ou esse foi tomo o café da manhã-almoço? Nesse caso, o
piquenique foi almoço ou jantar?
—Eu o conto como o almoço - disse.
—Bem. Então vamos procurar o jantar.

***

Jeremy insistiu em ser cortês e convidar a outros a unir-se nos enquanto Clay golpeava no quarto
do Kenneth e Adam, a porta vizinha se abriu e Adam saiu, girando-se para dizer umas palavras a alguém
dentro. Quando Kenneth abriu sua porta, Clay entrou. Eu esperei fora ao Adam.
—Vamos jantar - respondi. —Já comeu?
—Nop. Eu ia perguntar lhes a mesma coisa. Deixe ir pelas chaves do automóvel.
—Essa é Paige? - respondi, enquanto assinalava ao quarto contiguo.
—Sim. Ela está bastante desgostada.
—Deveria lhe perguntar se quer unir-se a nós?
Ele se encolheu de ombros — Pode perguntar, mas não acredito que ela esteja de humor para
isso. Se não querer, lhe diga que lhe trarei algo.
Eu preferia que Adam perguntasse ele mesmo ao Paige, mas desapareceu em seu quarto, me
deixando a mim para que lhe perguntasse. Eu era provavelmente a última pessoa que Paige queria ver.
Sua tia estava morta e eu não tinha tido nem sequer a decência de dizer-lhe diretamente. Tomei ar,
caminhei a sua porta, e golpeei ligeiramente, meio esperando que ela não pudesse me ouvir. Depois
de uma pausa de um segundo, dava-me volta para ir. Então ouvi o som metálico da fechadura de cadeia
e a porta se abriu.
—Né, ali - disse Paige, enquanto as arrumava para compor um meio-sorriso lívido. —Já está de
pé? Como se sente? Eu tenho um pouco de chá tranquilizador se está tendo problemas.
Como me estava sentindo? Oh, como de cinco centímetros de altura. Os olhos e nariz do Paige
estavam salpicados de vermelho, como se tivesse passado o último par de horas chorando, e agora se
preocupava de que eu não pudesse dormir?
—Realmente o sinto muito – respondi — O de sua tia. Não quero ser intrusa, mas vamos comer
fora e eu estava me perguntando se queria te unir a nós.
—Não - disse. —Obrigada, mas não.
—Adam disse que traria algo para ti.
Fez uma inclinação distraída, logo uma pausa, e disse rapidamente. —Poderia...? Eu não quero
ser uma moléstia. Realmente. Sei que está cansada e causar pena, e odeio te importunar, mas poderia
vir quando retorne? Eu tenho…
Ela se deteve e olhou por cima de meu ombro. Ouvi os passos do Clay atrás de mim. Paige fez uma
pausa, logo se endireitou, como dando-se confiança, e continuou —Clayton, simplesmente estava lhe
perguntando a Elena se podia passar comigo um momento esta noite. Trinta minutos. Prometo-o.
—Não jantará? - perguntou.
—Prefiro não ir.
—Ninguém fica sozinho - disse. —Essa é a regra do Jeremy - Eu lhe lancei um olhar intenso, lhe
advertindo que fora mais sensível, mas ele não o agarrou e continuou. —Cassandra ficará contigo.
—Oh, ela amará ficar - Paige disse.
—Se não gostar das regras, pode ir-se.
—Seríamos muito afortunados - murmurou Paige. —A sério, entretanto. Não precisa deixar a
ninguém comigo. Tenho feitiços de amparo suficientes.
—Essas são as regras - disse Clay. —Ninguém fica sozinho. Não é como se Cassandra comesse
depois de todo - Ele começou a sair, logo adicionou, — se Elena se sentir bem, pode deter-se para trazer
seu jantar. Vinte minutos. Logo ela precisa descansar.
—Gee, isso significa que tenho sua permissão? - gritei atrás dele.
—Não responderei isso - disse sem voltar-se.
—Homem inteligente - Olhei ao Paige. —Passarei depois.
—Obrigada. Aprecio-o.

COROAÇÃO
Às dez voltei para quarto de Paige, sua comida ainda quente em minha mão. Encontrei-a sozinha.
—Onde está Cassandra? - perguntei.
—Fora. Procurando comida ou companhia. Reúso ser o primeiro e estou qualificada para ser o
último. Gênero incorreto.
—Supõe-se que ninguém deve estar sozinho. Sabe Jeremy que ela se afastou de ti?
—Não, e não mexericarei, isto ficará entre nós. Pessoalmente, sinto-me segura quando ela não
está. Um vampiro não é exatamente minha opção ideal para um companheiro de habitação. Um ataque
de fome a meia-noite e sou um caso perdido. Eu estava ficando com o Adam, mas compartilhar um
quarto com Cassandra punha em tensão os nervos do Kenneth, por isso trocamos.
—De modo que você e Adam estão... juntos?
Ela franziu o cenho, logo apanhou o sentido e riu — Oh, Deus, não. Fomos amigos desde que
fomos meninos. Confia em mim, sabemos muito um do outro para algo mais - caminhou para a mini
geladeira. —Posso te oferecer algo para beber? Tenho água engarrafada, soda diet. Nada mais forte,
temo-me.
—Está bem.
—Só quer que vá ao grão, verdade?
—Não quis dizer…
Ela agitou uma mão — Não se preocupe. Sei que está cansada e, outra vez, peço-te perdão por
te acossar. É só, bom, que estou trabalhando em especificações, rastros, e esse tipo de coisas no
complexo. Sei que não os necessitamos em seguida, mas, bom, quero me manter ocupada. É mais fácil
- mordiscou seu lábio inferior, olhou ao longe. —É mais fácil se tiver algo que fazer, manter minha
mente ocupada.
Eu sabia o que queria dizer. O ano passado quando dois de meus irmãos de Manada morreram,
só a ação tinha aplacado minha pena. Eu me tinha arrojado a procurar a quão mestiços os tinham
matado, em parte por vingança e em parte para lhes impedir de falar extensamente de suas mortes.
Na preparação de nosso ataque contra os que tinham matado a Ruth, Paige fazia o mesmo. Entendia-
o.
—Tenho a maior parte disso preparado já - disse ela, me passando um computador portátil da
mesa. —Tudo o que preciso é que preencha uns poucos espaços em branco.
Folheei suas notas — Realmente, Jeremy tem a maior parte disto. Poderia…
—Conseguir o dele. Claro. Seguro - Ela deu a volta, mas não antes que eu visse a piscada de
desilusão em seu rosto. —Suponho que deveria ter sabido que ele estaria dois passos diante de mim.
De acordo, então, pois isso era tudo o que queria. Isto lamento. Eu não pensava.
—Ah, espera. Há um par de coisas aqui que Jeremy não tinha perguntado - menti. —Não estou
cansada ainda. E preencherei tudo o que falta. Inclusive se já o hei dito ao Jeremy, nunca é mau ter
duas cópias.
—Oh? - Pela primeira vez desde que tinha chegado, seu sorriso tocou seus olhos - Isso é
grandioso. Obrigada.
Como dizia, eu sabia como se sentia. Bem, eu não sabia exatamente como se sentia ela, não
tendo nem idéia de quão próxima tinha estado a sua tia, mas entendia que necessitava algo que fazer,
algo que a fizesse sentir que estava tomava medidas. Dar-lhe isso era o menos que podia fazer.
Quando terminamos, ofereci passar a noite no quarto do Paige, arguindo que Cassandra não
parecia ter nenhuma pressa em voltar e em que Jeremy estava compartilhando nosso quarto, de modo
que ninguém estaria sozinho se eu ficava. Paige se negou. Assegurou-me que seu feitiço de fechadura
não deixaria passar intrusos e seu feitiço de amparo a advertiria se alguém transpassava as fechaduras.
Suspeitei que ela queria estar a sós com sua pena, por isso não segui com o assunto.

***

Essa noite sonhei escapando do complexo. Repetidas vezes. Cada vez as circunstâncias eram
diferentes, mas um elemento permanecia igual. Deixava a Savannah. Às vezes me esquecia dela até
que estava fora e era muito tarde. Outras vezes minha culpa era mais óbvia. Corria por diante de sua
cela e não me detinha. Ouvia-a gritar meu nome e não me detinha. Via Leah estender sua mão para
agarrá-la... e não me detinha. Finalmente quando o sonho jogava sua enésima versão, eu corria para a
porta de saída aberta. Então Savannah aparecia do outro lado, me animando a sair. Detinha-me. Girava.
E corria para a outra saída.
Endireitei-me, ofegando. Clay estava acordado, me sustentando, tirando meu cabelo empapado
de suor de minha cara.
—Quer falar disso? - perguntou.
Quando sacudi minha cabeça, seus braços se apertaram, mas não olhei sua cara. Não queria. Isto
não era algo do qual não podia falar com ele. Ele só trataria de me convencer que eu tinha feito o
correto escapando do perigo. Se a situação fora ao reverso, Quereria eu que Clay arriscasse sua vida
para salvar a um estranho? É obvio não. Mas o ponto seria discutível porque Clay nunca tomaria
nenhum risco para salvar a um estranho. Ele se lançaria diante de uma bala para proteger a sua
Manada, mas não se deteria ajudar a uma vítima de acidente. Se eu estivesse ali, ele o faria por me
agradar, mas se estivesse sozinho, o pensamento nunca cruzaria por sua mente.
Não esperava que Clay se preocupasse com Savannah. Bem, talvez eu ainda tinha a esperança
de que ele desenvolvesse consciência social, mas tinha aprendido que tal mudança estava ao lado da
paz mundial na escala de desejos bem intencionados mas ingênuos. Clay se preocupava com sua
Manada e só sua Manada. Como poderia eu esperar que ele entendesse minha culpa pela Savannah?
Quando me relaxei nos braços do Clay, notei ao Jeremy através do quarto, apoiado sobre seu
cotovelo, me olhando desde sua cama. Levantou suas sobrancelhas em uma pergunta tácita. Queria
falar com ele? Dirigi-lhe uma pequena sacudida de minha cabeça e me deslizei na cama. Eu podia sentir
que ambos me olhavam, mas fechei meus olhos e fingi dormir. Finalmente o quarto estaria tranquilo.
Quando isso aconteceu, deslizei-me sobre minhas costas e fiquei ali na escuridão, pensando.
Tinha saltado às conclusões com muita prontidão, quando decidi que tinha sido Leah a que
causasse o problema e culpara a Savannah? E se persuadia ao Jeremy a atacar antes, e logo descobrisse
que tinha estado confundida? E se a gente morria devido a esse engano? E se eu não fazia nada e
Savannah morria devido a esse engano? Tinha que encontrar um terreno neutro. Se tivéssemos
informação suficiente, atuar rapidamente seria nossa vantagem. Sabíamos o suficiente? Ou, mais
exatamente, quais eram nossas possibilidades de mais aprendizagem? Muito poucas. Tínhamos os
dados que eu havia reúna do interior do complexo, mais o que Clay tinha aprendido de explorar o lugar,
mais o que outros tinham descoberto em sua investigação. Independentemente do que não sabíamos
ainda, provavelmente nunca o averiguaríamos. Teríamos que nos concentrar em formular um plano.
Fora, uma porta vizinha fez clique. Estiquei-me e escutei. Nosso grupo ocupava toda as quartas
desta asa. Alguém saía? Não, espera. Provavelmente era Cassandra voltando. Comprovei o relógio. Dois
e trinta e cinco. Oh, isto era grandioso. Pedíamos-lhe que vigiasse ao Paige e ela se tomava a metade
da noite. Paige poderia não querer delatá-la, mas Jeremy tinha que saber que não podíamos confiar na
Cassandra para resguardar ao Paige.
Quando me reclinei no travesseiro, ouvi sapatos que se arrastavam contra o pavimento fora.
Joguei uma olhada ao Clay e ao Jeremy. Profundamente adormecidos. Saí da cama e fui nas pontas dos
pés à janela. Levantando uma esquina da cortina, olhei atentamente para ver Paige passar através do
estacionamento, a mala em uma mão, o computador portátil na outra. Merda!
Procurando não despertar aos meninos, atirei meu jeans e camisa e saí sigilosamente pela porta.
Paige rodeou a jaula de pássaros e desapareceu na escuridão mais à frente. Descalça, brinquei de correr
atrás dela, um olho em meu objetivo, outro no pavimento, procurando cristais quebrados. Quando
alcancei a jaula, um faisão despertou, abriu um olho sonolento, logo grasnou e revoou no ar. Maldito!
Às vezes havia desvantagens sérias em ser um homem lobo. Inclusive quando corri longe da jaula, várias
outras aves despertaram e acrescentaram suas vozes ao alvoroço. Tanto por uma aproximação sigilosa.
Corri através do arvoredo onde tinha visto desaparecer a Paige e a encontrei em um estacionamento
auxiliar. Estava de pé ao lado de um carro, franzindo o cenho em direção às aves que tinham entrado
em pânico. Quando me viu, pinçou com as chaves, logo que conseguindo abrir a porta antes que eu
chegasse.
—Uh, olá - disse, falsificando um sorriso brilhante. —Está fora tarde.
—Vai a algum lugar? - perguntei.
—Ummm, só a procurar algo para comer - Ela se apoiou no assento do condutor. —O que me
trouxe se esfriou assim pensei que iria ver se posso encontrar um local ou algo.
—Não te oporá se me um a ti então - disse enquanto abria a fechadura da porta de passageiros
e me deslizava dentro. Gesticulei para sua mala. —Inferno de bolsa que tem ali.
Ela pôs suas mãos no volante, fez uma pausa, logo me jogou uma olhada — Eu vou partir, Elena.
Sei que este é um mau modo de fazê-lo, mas temia que alguém tratasse de me deter. É muito para
mim. Jogo-me atrás.
—Lamento o de sua tia.
—Ela... - Paige olhou pelo pára-brisa. —Ela não era minha tia.
—Oh, bem, sua irmã do Aquelarre ou o que fosse.
—Ela era minha mãe.
—Você…?
—Assim é como funciona no Aquelarre - disse Paige, mantendo seus olhos no pára-brisa. —Ou
como estava acostumado a funcionar. A velha maneira, a dos tempos de minha mãe. As bruxas não se
casavam, de modo que evitavam o estigma da maternidade, solteiras criando a suas filhas como
sobrinhas. Ninguém fora do Aquelarre sabia a verdade. Em meu caso Adam sabe, mas é parte disso.
Quando minha mãe era jovem, estava muito ocupada preparando-se para ser a líder do Aquelarre para
pensar em um herdeiro. Uma vez que se converteu na líder, compreendeu que o Aquelarre vacilava e
decidiu que necessitava uma filha, alguém a quem poder treinar e preparar a seu próprio modo. De
modo que quando teve cinquenta e dois anos, usou a magia para ter uma filha. Eu.
—De modo que isso significa que você é...?
—A líder oficial do Aquelarre - Seus lábios se curvaram em um sorriso sardônico. —Seria gracioso
se não fosse tão ridículo. Uma líder de vinte e dois anos - inalou bruscamente e sacudiu sua cabeça. —
Não importa. O caso é que fui treinada para isto. Para a responsabilidade. Não posso esperar que
Jeremy ou Kenneth ou Cassandra me aceitem como líder ainda, mas sei que posso fazê-lo. Agora
mesmo, entretanto, tenho que ir a casa. Há coisas que devem ser feitas, acertos.
—Entendo - Me inclinei para seu regaço e levantei o computador portátil que ela tinha deixado
escorregar entre seu assento e a porta. —Mas se for a casa, não necessitará isto.
Ela me tirou isso. —Ah, realmente, necessito-o. Para os arquivos do Aquelarre.
—Você não vai a casa, Paige. Vai ao complexo.
Ela forçou uma risada. —Sozinha? Estaria louca.
—Exatamente meus sentimentos. Entendo que deva querer vingar a sua mãe, e prometo que o
conseguirá quando voltarmos, mas não hoje.
Quando a confusão revoou através de sua cara, compreendi que a vingança não era seu motivo.
Então recordei a advertência da Ruth, me dizendo que não deixasse a Paige saber sobre o Savannah ou
ela insistiria em resgatar à moça.
—Vai atrás o Savannah - disse.
—Tenho que fazê-lo - disse tranquilamente.
—Porque seu Aquelarre o espera?
—Não, porque eu o espero. Como posso ser a líder do Aquelarre se deixar morrer a esta moça?
Como poderia viver comigo mesma? Olhe, não sou estúpida e não sou suicida. Não entrarei ali,
lançando feitiços, destroçando o lugar. Eu não poderia fazer isso de qualquer maneira. Tudo o que
quero é ao Savannah. Tomarei cuidado. Tomarei meu tempo, explorarei o lugar, e encontrarei um modo
de tirá-la. Vocês não têm que preocupar-se disto. É assunto de bruxas. Eu...
A porta de Paige voou, quase a derrubando a terra. Clay introduziu sua cabeça no carro. Paige
saltou e se correu para mim.
—O que está passando? - perguntou.
—Paige quer ir atrás de Savannah.
—Oh, merda! - Ele fechou de repente a porta e caminhou a pernadas até meu lado. Deixe-—Me
deixe adivinhar. Ela vai atrás da menina e necessita sua ajuda.
—Não… - começou Paige.
—Ela não pediu minha ajuda - disse, saindo do carro. —Quer fazê-lo sozinha.
—Então ela decidiu te contar sobre isso primeiro? Falar-te aqui fora, te dizer que ela está à altura,
e esperar que você a deixe ir sozinha? Estupidez. Ela se aproveita de sua compaixão. Insistirá em ir com
ela e...
—Ela não me chamou - respondi. —A segui.
Paige se deslizou do carro, endireitou-se, e encontrou os olhos do Clay. —Farei isto sozinha,
Clayton. Não estou pedindo nem aceitando nenhuma ajuda.
—Está louca? - Ele avançou e tratou de lhe arrancar as chaves do punho, mas se afastou. Ele se
deteve e ofereceu sua mão. —Dê-me isso Paige. Não vai a nenhuma parte.
Ela olhou desde o Clay para mim, como se loteasse suas possibilidades de fuga.
—Nem o tente - respondi. —Há dois de nós. Podemos te superar. Podemos te deixar fora de
combate. A menos que tenha um feitiço do dia do julgamento final sob a manga, não partirá.
Ela jogou uma olhada sobre seu ombro e pareceu pronta para correr quando Jeremy saiu dos
arbustos atrás dela. Ela vacilou. Logo seus ombros se encurvaram e as chaves se deslizaram de sua mão.
—Vêem dentro - disse Jeremy. —Falaremos.

***

—Tenho que tirar Savannah - disse Paige quando entramos em nosso quarto de motel. —Vocês
não o entendem. Não o espero tampouco. Como disse a Elena, isto é assunto de bruxas.
—Entendemos que está preocupada com ela - começou Jeremy.
Paige girou para confrontá-lo — Preocupada? Estou aterrorizada por ela - Ela folheou seu
computador portátil e cravou um dedo em uma página. —Olhe, anotei tudo o que aconteceu essa noite
que Elena escapou. Dividi os acontecimentos em potencial feiticeiro contra a atividade de um meio
demônio telecinético. Há alguns cobre, mas entre os dois cobrem tudo. Agora, quais são as
possibilidades de que este feiticeiro e meio demônio de maneira independente decidissem armar o
inferno durante a mesma noite? Certamente é possível que alguém começasse as coisas e o outro
participasse, mas o duvido. Este meio demônio trabalha com um feiticeiro.
—De acordo - respondi.
O olhar fixo de Paige viajou através de nossas caras — Vê? Não o entende. Não pode.
—Nos explique - disse Jeremy.
Ela inalou — Os feiticeiros odeiam às bruxas. E vice-versa. A inimizade é a maior na história das
raças sobrenaturais. Nossa versão dos Hatfields e os McCoys. Só que os feiticeiros fazem todos os
disparos. Somos um feio aviso - Ela inalou outra vez. —Vocês não necessitam uma lição de história. Só
confiem em mim nisto. Se Leah trabalhar com o Katzen, e ela culpa a Savannah de assassinato, então é
um problema. Um grande problema. Não posso começar a compreender sua motivação, mas sei que
Savannah está em perigo. Em uma noite, Winsloe e suas cortes perderam a ambos os lobisomem e
sofreram um dano inexprimível a sua instalação. Quem carregará sobre seus ombros a culpa de tudo
isto? A menina bruxa. Não é isso o que te disse Leah antes que escapasse? Que Savannah o tinha feito?
—Eles não matarão ao Savannah - disse. —Ela é muito importante.
Inclusive quando disse as palavras, ouvi minha própria dúvida. Com Bauer e Carmichael mortas,
Winsloe e Matasumi eram os únicos chefes que ficavam. Matasumi poderia querer a Savannah viva,
mas ele só era um cientista. Winsloe tinha o dinheiro efetivo, então ele era o responsável. Recordei a
conversa que tinha ouvido por acaso entre o Matasumi e o homem que assumia era Katzen. Essa vez,
Winsloe já tinha começado a fazer valer seu peso, escolhendo a classe de cativos que queria. Winsloe
não tinha nenhum interesse nas bruxas. Eu sabia isso. Savannah estava sozinha agora, sem sequer o
Xavier para protegê-la.
—Isto é pura especulação - disse Clay.
—O que admito totalmente - disse Paige. —Esse é o motivo porque não ponho em perigo
nenhuma vida, além da minha.
—Não pode fazer isso - disse Jeremy. —Se for a nova líder do Aquelarre, tem que considerar os
interesses superiores de seu Aquelarre. O que acontece perdem tanto a Ruth como a sua sucessora?
Tem a responsabilidade de te manter viva, só até que tenha selecionado e treinado a seguinte líder.
—Mas…
—Vejamos o que podemos fazer - disse ele. —Me dê suas notas e examinaremos o que temos.

VOLTA
Dois dias mais tarde, deixamos o motel. Voltávamos.
Tínhamos passado os dois dias anteriores planejando. Finalmente Jeremy esteve de acordo em
que tínhamos toda a informação que provavelmente conseguiríamos e não havia nenhum sentido em
atrasar nossa volta. Paige se tinha irritado com o atraso, mas não tinha tratado de escapar,
provavelmente porque Jeremy ou eu tínhamos estado quase às vinte e quatro horas do dia nos
assegurando que ela não o fazia. Tinha-me mudado a seu quarto, deixando a Cassandra ter um quarto
próprio, o qual não só ajudava a assegurar que Paige não desaparecesse de noite, mas também me
fazia sentir muito melhor a respeito de sua segurança pessoal. Quanto a Cassandra, pois ela podia
cuidar de si mesmo.
Para a viagem ao complexo, partimos o grupo em duas caminhonetes, apoiadas nos dois grupos
que formaríamos uma vez que chegássemos. O plano era que Jeremy, Cassandra, e Kenneth
esperassem na retaguarda enquanto Clay, Adam, Paige, e eu forçávamos a entrada e apagávamos toda
a resistência inicial. Tínhamos discutido em que grupo devia estar Paige. Como líder do Aquelarre - e
alguém pouco acostumado aos enfrentamentos - ela deveria haver ficado atrás com o Jeremy.
Entretanto, ela sustentou que seus feitiços poderiam ser inestimáveis no amparo do grupo de primeira
linha. Podia abrir portas, nos cobrir, aturdir atacantes, comunicar-se com Kenneth e a pronta
continuava. Além disso, ela realmente queria fazer isto, a diferença da Cassandra, que não tinha
mostrado nenhum interesse em tomar um papel mais ativo. Ao final, a persistência de Paige tinha dado
resultado, e tínhamos estado de acordo em que devia unir-se a meu grupo.
Conduzi o segundo carro, porque Paige rechaçava pôr o pé em nenhum veículo com o Clay atrás
do volante e Clay rechaçava sentar-se no assento traseiro de nenhuma aprendiz de bruxa–líder do
Aquelarre ou não– de modo que se queríamos sair alguma vez do estacionamento, a tarefa de conduzir
recaía em mim. Antes que nos amontoássemos no carro, notei ao Clay lançar olhadas ao Jeremy
enquanto ele subiu ao outro veículo.
—Pode ir com ele se quiser - respondi.
—Não - disse Clay. —Ele tem razão. Temos que falar de nossas estratégias durante a viagem, de
modo que isto tem sentido. Além disso, não é como se não o tivesse deixado sozinho antes.
—Sinto muito.
—Que coisa?
—Me afastar esse dia. Não tomar cuidado. Permitir-me ser sequestrada. Perder o contato com
vocês. Fazê-los…
Ele pressionou seus lábios sobre meus, me interrompendo — Não me tem que obrigar a fazer
nada. Decidi vir atrás de ti.
—É só que odeio... - Acalmei-me e me encolhi de ombros. —Já sabe, te pôr em uma posição
onde... - lancei um olhar ao Jeremy e exalei. —Fazer-te escolher.
Clay riu —“me fazer escolher?” Querida, vivemos com esse tipo. Compartilhamos uma casa,
contas bancárias, inclusive férias. Nunca estamos sozinhos e nunca ouvi que pronuncie uma palavra de
queixa. Você nunca me pediu que escolha, e não tem nem idéia de quão agradecido estou por isso,
porque se alguma vez tivesse que escolher, seria a ti, não importando o que isso signifique para a
Manada.
—Eu nunca te faria isso.
—Razão pela qual sei quanto me ama. Sim, sinto-me feito uma merda por ter abandonado ao
Jeremy, mas ele o entende, e não o lamento, até se conseguiu te liberar sem minha ajuda - Ele se virou
atrás para me olhar. —Agora, Está bem com isto? Sobre voltar? Porque se não...
—Estou bem. Quero terminá-lo. Quero terminar isto, dizer adeus a toda essa gente agradável e
ir a casa, a nossa própria casa, nossas camas, e estar sozinhos.
—Razoavelmente sós - disse Clay jogando outra olhada para o Jeremy.
—O suficiente.
—Vamos fazê-lo, então.

***

Quando Clay e eu tínhamos escapado das terras do complexo, tínhamos usado o caminho de
serviço principal que se bifurcava ao final da saída oeste da propriedade. Definitivamente não era a rota
mais segura, mas Clay não tinha sido capaz de encontrar outra. Esta vez usávamos um caminho sulcado
que se remontava a vários donos de propriedade. Paige o tinha descoberto hackeando arquivos de
propriedade e velhas inspeções. Sim, disse hackeando, como em hacking de computadores. Quando
ela me disse como tinha conseguido a informação, eu lhe tinha pedido que me repetisse isso, várias
vezes. Possivelmente meus prejuízos saíam à luz, mas quando imaginava a um Hacker, pensava em
alguém como Tyrone Winsloe, só que sem dinheiro e pior higiene. Paige rapidamente me corrigiu: ela
não era um Hacker; era uma programadora profissional de computadores que sabia hackear. Soava
algo suscetível para mim, mas mantive minha boca fechada. Entretanto ela obteve a informação, e eu
estava agradecida. Estávamo-lo... Inclusive Clay. As velhas inspeções tinham mostrado todos os
caminhos anteriores que se entrecruzavam na propriedade. Provamos vários e escolhemos o que
estava na metade entre caminho isolado e acessível. Conduzi umas centenas de metros ao longo dele,
logo me detive para nossa entrevista de pré-assalto final com o Jeremy.

***

Vinte minutos mais tarde, estava sentada em uma velha árvore falando com Paige enquanto Clay
e Adam estudavam minuciosamente os mapas. Jeremy nos tinha dado nossas instruções e falava agora
de detalhes de última hora com o Kenneth. Paige e Kenneth atuariam como enlace telepáticos entre os
dois grupos, nos permitindo nos comunicar sem rádios ou telefones celulares. Enlace telepático. A frase
se deslizava tão facilmente de minha língua mental. Atemorizante, realmente. Feitiços de agarre,
feitiçaria, projeção astral, telepatia, telecinese, teletransporte? Alguma vez ouviria essas palavras fora
de um episódio de Arquivo X? Agora estava parada em um arvoredo com uma bruxa, um meio demônio,
um vampiro, e um xamã, planejando acabar com um complô infame para usurpar nossos poderes e
alterar o destino da espécie humana. Conversando sobre suas teorias de conspiração.
Depois de uns poucos minutos falando com o Kenneth, Jeremy fez um gesto a Paige. Fiquei onde
estava.
—Você não gosta disto? - perguntou-me Cassandra, avançando para mim. —Estar de volta?
Encolhi os ombros. Não tínhamos falado muito nos poucos dias anteriores. Minha escolha. Não
importando o que Cassandra fizesse ou não em minha ausência, seu abandono de Paige em um
momento tão sensível era imperdoável. Apesar do que Clay pensava de Paige, eu gostava dela. Tinha o
espírito e uma profundidade de altruísmo que realmente admirava. Inclusive Clay tinha começado a
aproximar-se dela ao longo dos dois últimos dias, o que só fazia a insensibilidade da Cassandra tão mais
incompreensível. Inclusive depois de que eu havia dito a Cassandra, categoricamente, que me largava
com Paige porque ela esquivava suas responsabilidades, ela não tinha mostrado nenhuma pontada de
remorso. E acusava ao Clay de ser auto absorvente.
—Tome cuidado ali - continuou Cassandra. —Recorda o que Jeremy disse. Não sabe que tipo de
segurança extra suplementar eles podem ter implementado desde sua fuga. Quero dizer antes que
fosse sequestrada. Eu gostaria de chegar a te conhecer melhor, Elena. Asseguremos-nos de ter essa
oportunidade - Ela pôs sua mão em meu antebraço e sorriu, seus olhos cintilando de um modo
selvagem. —Devo confessar que espero com muita isto ilusão. Não há muitas oportunidades de caos
em minha vida nestes dias.
Paige se uniu a nós — Bem, Cass, se realmente quiser um pouco de diversão e excitação, sempre
poderia mudar de opinião e te unir a nós na primeira linha. Oh, mas não é isso o que queria dizer,
verdade? Quer caos controlado, sem risco.
—Minhas habilidades são melhor satisfeitas na segunda onda do ataque - disse Cassandra, rindo-
se de Paige como se gracejasse a um menino grosseiro.
Clay se aproximou — E não quero a ninguém conosco que não queira estar ali - Ele tomou meu
braço, retirando-o de-manera-não-tão-sutil do afeto da Cassandra. —Jeremy tem algumas instruções
de última hora para ti, querida.
—Me deixe adivinhar - respondi. —Tome cuidado. Não te lance de cabeça. Não tome riscos
desnecessários.
Clay sorriu abertamente — Nah. Jeremy confia em ti. É mas bem: “te assegure de que Clay seja
cuidadoso”, “te assegure que ele não se lance de cabeça”, “te assegure que ele não toma riscos
desnecessários”. Instruções de babá.
Pus meus olhos em branco e me dirigi para o Jeremy. Ele estava sozinho, inclinando-se sobre um
mapa na capota de um carro. Enquanto me aproximava, ele dobrou o mapa sem elevar a vista.
—Você será a responsável aí, Elena - disse quando deu a volta.
—Conheço a rotina. Vou atrás do Clay. Marco a pauta. Asseguro-me de que mantém o controle.
—Você ordenará os tiros. Ele sabe isso.
—E Adam e Paige? Sabem isto?
—Não importa. Adam seguirá o exemplo do Clay. Paige saberá que é melhor unir-se às posições
de mando no campo de batalha. Toma o controle e eles lhe seguirão.
—Tentá-lo-ei.
—Uma coisa mais. Permanece com o Clay. Se se separarem, estarão muito preocupados um do
outro para concentrar-se em suas tarefas. Não importa quão difíceis fiquem as coisas, mantenham-se
unidos. Não tome nenhum risco.
—Sei.
—O que quero dizer - Ele estendeu a mão e tirou um fio de cabelo que escapava sobre meu
ombro. —Sei que está doente de ouvi-lo, mas não tome nenhum risco. Por favor.
—Ficarei atrás dele.
—Isso não é o que quero dizer. Sabe.
Assenti com a cabeça e beijei sua bochecha —Tomarei cuidado. Por nós dois.
***

Passo um: Inspecionar as terras.


Clay, Paige, Adam, e eu seguimos o caminho de serviço por dois quilômetros, ponto no qual
trocamos nossa direção para o norte, nos afastando do complexo, o que implicava que tínhamos que
terminar a viagem com uma difícil caminhada do meio quilômetro através do espesso reflorestamento.
Uma vez que estivemos o bastante perto para ver o complexo, detivemo-nos e rodeamos o perímetro,
ficando o bastante longe, ao interior do bosque para poder ainda ser capazes de ver a planície aberta
que rodeava o edifício. Olhamos, escutamos, e cheiramos procurando a alguém fora das paredes do
edifício. Segundo Clay, de acordo com suas observações anteriores, a gente vinha fora por três motivos
sozinhos: fumar, alimentar os cães, e abandonar o lugar. Abandonar o lugar significava conduzir uma
das quatro SUVs estacionadas em uma garagem próxima. Ninguém partia a pé e ninguém ia passear ao
bosque. Estes tipos não eram amantes da natureza. Nosso passeio ao redor do perímetro confirmou
que ninguém estava fora.
Passo dois: Matar os cães.
Durante o anterior reconhecimento do Clay, ele tinha encontrado ao canil. Estava em um edifício
cinzento construído a trinta metros ao interior do bosque, como se deliberadamente tivesse sido
construído longe do complexo para eliminar o ruído. Estes cães eram para rastrear e matar, não para
fazer guarda. À medida que nos aproximávamos do canil, eu poderia entender por que. Cada poucos
minutos um dos cães começava um estrondo infernal, ladrando a algo no bosque, ladrando a um
companheiro de cela, ou só ladrando de espantoso aborrecimento. Embora os cães não alertassem a
ninguém de nossa presença, ainda assim tínhamos que nos desfazer deles. Eu tinha visto o que eram
capazes de me fazer como lobo. Não queria pensar quanto dano poderiam me fazer estando em forma
humana. Uma vez que os guardas compreendessem que estávamos no complexo, alguém procuraria
os cães, e fariam o que tinham sido treinados para fazer, quer dizer, nos rasgar em partes.
Rodeamos a residência pelo sul, nos movendo com o vento. O edifício media vinte metros por
dez com uma cerca a aproximadamente um metro. Tal como Clay tinha descoberto em sua visita
anterior, não havia guardas apostados no canil. Tampouco havia nenhuma medida de segurança no
lugar para proteger aos animais. Só um cadeado de jardim assegurava a porta.
Uma vez que estivemos junto à canil, contei os cães separando seus aromas. Três. Enquanto Clay,
Adam, e eu nos arrastávamos avançando, Paige lançou um feitiço de cobertura. Este era o mesmo
feitiço que Ruth tinha arrojado no beco de Pittsburgh, o que significava que fomos invisíveis só se
ficávamos quietos. Quando nos movíamos, nossas imagens se deformavam, mas eram visíveis. Isso
funcionava bem com os cães, confundindo-o o tempo suficiente para que Clay rompesse o cadeado e
os três pudéssemos entrar. Clay e eu matamos nossos objetivos facilmente, mas Adam se enredou com
o movimento que lhe tínhamos ensinado. Não era sua culpa. A maioria das pessoas não são peritas em
romper pescoços. O cão conseguiu fazer quatro sulcos sangrentos no braço do Adam antes que Clay
terminasse o trabalho. Paige tratou de inspecionar a ferida, mas Adam se afastou dela e ajudou ao Clay
a arrastar os cadáveres de cão do canil.
Passo três: Inutilizar os veículos.
Isto era uma coisa que nem Clay nem eu podíamos fazer. Por quê? Porque ambos somos tão
mecanicamente inúteis que raramente púnhamos gás nós mesmos ao veículo por medo a colocá-lo de
algum jeito e fazer que o carro se prendesse em chamas diante de nossos próprios olhos. Aqui estava
a possibilidade do Adam de compensar com o problema ao romper o pescoço do cão. Logo depois de
que rompemos as fechaduras das portas, Adam abriu as capotas, atirou uns arames e coisas metálicas,
e declarou que os veículos estavam imprestáveis. Tudo o que Clay e eu podíamos fazer era olhar. Pior
ainda, Paige aconselhou ao Adam sobre uns modos de fazer o dano menos detectável, para que nem
sequer os guardas com inclinações mecânicas pudessem deduzir rapidamente e arrumar o problema.
Não era que tivesse inveja. A quem lhe importava se podia mudar o petróleo do motor quando podia
romper o pescoço de um rottweiler em 2.8 segundos? Essa sim era uma habilidade prática.
Passo quatro: Entrar no complexo.
Bem, agora as coisas ficavam duras. Nos filmes, os heróis sempre entram em edifícios
aparentemente impenetráveis por um conduto aquecedor ou um eixo de ventilação ou a entrada de
serviço. Na vida real, se alguém passar por todo o chateio de criar um sistema de segurança complicado,
não têm uns eixos de ventilação de 3 x 3 metros assegurados só com um ralo metálico e quatro
parafusos. A menos que fossem realmente, realmente estúpidos. Estes tipos não o eram. Infernos, nem
sequer tinham dessas aberturas de ar com um crucifica girando, muito afiada que nos faria pedacinhos
se não passávamos entre as lâminas exatamente no momento correto. Não! Nada desse tipo de
diversão. Nem sequer janelas passadas de moda. Só um caminho para dentro e para fora. A porta
principal.

***

Quando Clay tinha explorado o complexo durante meu cativeiro, tinha descoberto que os
guardas se uniam nesse ritual sagrado dos trabalhadores em todas as partes –o pacote em comum: os
fumantes acérrimos condenados a aninhar-se juntos contra os elementos. Obviamente nem sequer os
infames projetos secretos estavam livres de fumaça estes dias. Tendo determinado que havia só um
caminho para o complexo, tínhamos que passar pelo sistema de segurança. Isto significava que
necessitávamos de uma mão válida e retina. Já que não necessitávamos de um par bom de pulmões,
um dos fumantes funcionaria bem.
Nos colocamos nos bosques ao lado da porta de saída e esperamos. Vinte e cinco minutos mais
tarde, dois guardas saíram e acenderam um charuto. Clay e eu escolhemos um cada um e o matamos.
Nenhum guarda nos viu, possivelmente muito encantados por essa primeira inundação de nicotina.
Tinham terminado apenas um quarto de seus cigarros antes que os curássemos do hábito.
Arrastamos os cadáveres ao redor de trinta metros para os bosques. Então Clay deixou cair o seu
e tirou uma bolsa de lixo dobrado de seu bolso traseiro.
—Ele não vai caber nisso - disse Paige.
Clay abriu a bolsa — Partes dele se caberão.
—Você não vai... - Paige empalideceu e eu quase pude ver os brilhos de um incidente de “cabeça
decapitada na bolsa” passando por sua mente— por que não pode simplesmente sustentá-lo frente à
câmara de segurança?
—Porque, de acordo com a Elena, teremos que passar mais segurança dentro, e se você gosta
da idéia de arrastar dois-cadáveres-de-noventa-quilogramas, fá-lo por favor.
—Não vejo por que...
Adam começou a cantarolar. Como Paige girou para lhe fulminar com o olhar, reconheci a
melodia.
—“Little Miss Cão B Wrong” 23 - murmurei... E tentei com força sufocar a risada.
Adam sorriu abertamente — Clay a chamou isso uma vez quando estava longe. Se ela começar
a fazê-la mandona, terá que cantá-lo. Faz-a ficar calada cada vez.
—Trata de cantá-la outra vez e verá o que passa - disse Paige.
O sorriso do Adam se alargou —O que vais fazer-me, me converter em um sapo?
Paige pretendeu não ouvi-lo — Elena, sabia que uma das principais acusações contra as bruxas
durante a Inquisição era que causavam impotência?
—Ummm, não - disse.
—Não só impotência psicológica, entretanto - disse Paige. —Os homens acusavam às bruxas de
remover seus pênis, literalmente. Eles pensavam que os colecionávamos em pequenas caixas onde se
moviam e comiam aveia e o milho. Inclusive há uma história no Malleus Maleficarum sobre um tipo
que foi a uma bruxa para pedir que lhe devolvesse seu pênis. Disse-lhe que subisse a uma árvore, onde
encontraria alguns no ninho de uma ave. Ele o fez e, é obvio, tratou de tomar o maior, mas a bruxa lhe
disse que não podia ter esse porque pertencia ao sacerdote da paróquia.
Ri-me.
—Homens - disse Paige. —Acusam às mulheres de algo - Ela fez uma pausa e lançou um olhar ao
Adam. —É obvio, é uma situação tão extravagante, que um não pode menos que perguntar-se se não
haver um grão de verdade nela.
Adam fingiu tragar — Pessoalmente, prefiro ser um sapo.
—Então deixa sua carreira como cantor ou a continuará como soprano.
Ri-me e joguei uma olhada ao Clay. Ele estava sustentando seu braço direito reto e o afirmava
com sua mão esquerda. O suor salpicava sua frente enquanto os músculos sob seu antebraço
começavam a palpitar.
—O que está…? - começou Paige.
Fiz gestos para que se calasse. Agora não era realmente um bom momento para incomodar ao
Clay. Já que não podíamos andar a rastros com uma caixa de ferramentas, ele tinha que improvisar um
modo de tirar a cabeça do morto e a mão.
Adam contemplou a mão do Clay quando começou a transformar-se em uma garra —Tem que
ser a coisa mais espetacular que vi alguma vez. Ou a mais obscena.
—Vêem aqui - disse a Paige. —Isto não é algo que queira ver.
Afastamo-nos para o bosque. Paige manteve seu olhar treinado em uma árvore à distância, sua
bochecha movendo-se nervosamente, como se tentando sem êxito não pensar sobre o que acontecia
nós. Houve um som úmido de algo rasgando-se, logo um ruído surdo embotado quando a cabeça
decapitada do guarda golpeou a terra.
—Nop - disse Adam. —Foi a mais obscena. Mãos abaixo.
—Cabeças abaixo - disse Clay. —A mão é a seguinte.
Adam se apressou para Paige e eu.

23
“A señorita não pode estar equivocada” canção do grupo nova-iorquino Spin Doctors.
—Já sabe - disse Paige, olhando ao Adam. —Sempre pensei que “ficar verde” era só uma
expressão. Acredito que não.
—Continua e ria,— disse Adam — Essa é uma vantagem de meus poderes, entretanto. A
incineração de carne pode cheirar horrível, mas ao menos é sem sangue.
—De acordo - disse Clay, saindo do bosque. —Estou preparado. Entremos.

INFILTRAÇÃO
Dirigimo-nos para a saída, revisando primeiro para nos assegurar de que ninguém mais tinha
saído fora por um pouco de nicotina. Uma vez ali, Clay tirou a cabeça e a mão da bolsa. Tomei a mão.
Quando ele levantou a cabeça para a câmara, equilibrei a mão ainda quente ao lado do cabo, pronta
para agarrá-la logo que a primeira luz ficasse verde. Em vez disso, o indicador ficou vermelho e algo
emitiu um sinal sonoro. Dava-me volta para ver um teclado numérico anexado à parede — ID? - cintilou
na diminuta tela.
—Merda! - Respondi. —Um código chave. Como perdi isto?
—Porque estava escapando, querida, não entrando - disse Clay. —Eu não o notei tampouco.
Deve ser a segurança acrescentada para entrar.
—Não há problema - disse Paige. —Vou resolver isto logicamente. Primeiro, encontrar o número
de dígitos - Ela começou pressionando o botão “9”.
—Não o faça! - disse Adam, arrebatando sua mão. —Se entrarmos o código incorreto,
poderíamos acender um alarme.
—Sei isso. Tudo o que faço é ver quantos dígitos aceitará isto. Parece que cinco. De acordo.
Voltemos para corpo deste tipo e vejamos se podemos encontrar um número de cinco dígitos.
—Talvez tatuado em seu peito - disse Adam.
—Não há necessidade de sarcasmo - disse ela. —Poderia ter um cartão ou algo com o número
impresso. Inclusive se for um segredo, como um PIN, muita gente o anota e o esconde em sua carteira.
Só procuramos algo com cinco dígitos.
—Isto é estúpido - resmungou Adam.
—Não - disse. —É lógico, como Paige disse. Correrei de volta...
—Não temos o tempo!
—Faremos o tempo - disse Clay. —Vocês dois entrem nos bosques e permaneçam escondidos.
Clay e eu voltamos para o cadáver sem cabeça e procuramos os bolsos, nem sequer encontrando
uma carteira, nem nada de nenhuma classe. Quando voltamos, Adam passeava junto ao bordo do
bosque.
—Nada, verdade? - disse.
Assenti com a cabeça, logo me voltei para o Paige. De acordo, então sabemos que é um número
de cinco dígitos. Pode hackear o sistema? Romper o código?
—Não sem um laptop e muito tempo - Ela jogou uma olhada ao Adam, que caminhou a pernadas
fora do alcance do ouvido, logo baixou sua voz. —Ele está conectado. Não acredito que tenha dormido
muito ontem à noite.
—Estará bem - disse. —Vou revisar esse teclado numérico outra vez.
Voltamos para a porta.
—Bem? - disse Adam. —Ainda temos um plano?
—Trabalhamos nisso - respondi.
—E vocês dois? - perguntou Paige. —Pode converter-se em lobos e nos levar dentro?
—Como? - disse Clay. —Gemer e arranhar a porta até que alguém a abra?
—É tudo o que temos? - bufou Adam. —E o plano de reserva?
—Muito bem - disse Clay. —Trabalhamos em um.
—Trabalhando em um? Quer dizer que não temos um?
Paige pôs sua mão no braço do Adam. Ele a tirou.
—Que demônios fazemos aqui? - disse ele. Sua voz se apertou, tomando uma nota gritada de
pânico. —Temos que nos apressar. Utilizar esse exploratório provavelmente ativou algum alarme.
Inclusive se não o fez, alguém deverá buscar a esses dois guardas. Maldição!
Os brancos dos olhos do Adam se banharam de vermelho, quando a raiva substituiu ao pânico.
O aroma de fogo flamejou. Clay agarrou ao Adam pelas costas da camisa enquanto o punho do Adam
conectava com a porta. Soou um forte pop. A porta brilhou. Clay arrastou ao Adam para trás e o lançou
a terra, logo empurrou a Paige e mim do caminho e se parou sobre o Adam.
—Controla-o Adam - disse Clay. Concentre-se.
Adam pôs o rosto sobre a terra. Converteu suas mãos estendidas em punhos, agarrando
punhados de erva e terra. O mato chispou e soltou fumaça. Quando Adam começou a ficar de pé, Clay
pôs seu pé sobre suas costas.
—Está sob controle? - perguntou Clay. Não te deixarei parar até que o esteja.
Adam assentiu com a cabeça e Clay se apartou, mas ficou tenso. Adam se sentou, sepultou sua
cara em suas mãos, e gemeu como um estudante de primeiro ano de colégio com uma ressaca
assassina. Então lhe deu uma sacudida a sua cabeça e nos olhou.
—Sinto muito, meninos - disse ele. Não quis dizer… - Sua cabeça se sacudiu. —Fiz isso?
Segui seu olhar fixo e vi que a porta de saída estava aberta. Pisquei, olhei outra vez, e compreendi
que não estava aberta. Foi-se. Só um montão de cinza permanecia.
—Merda Santa - sussurrou Paige. —A incinerou.
—Fi-lo? - Adam ficou de pé, caminhou para à porta, e tocou o bordo, logo gemeu e sacudiu sua
mão longe. Vergões vermelhos engalanaram com cores brilhantes as gemas de seus dedos. Sorriu
abertamente. —Olhe, mamãe, não há porta! - Ele golpeou o ar e chiou. —Suponho que não sou seu
meio demônio de fogo depois de tudo. Vê esta porta, Paige? Recorda-a próxima vez que decidas me
caluniar.
—Felicitações - disse Clay. —Agora vamos pelo inferno de dentro.
Adam assentiu com a cabeça e tratou de pôr uma cara séria, mas seu sorriso se escorregou. Clay
lhe fez gestos para que para mostrasse o caminho. Quando passou por cima do montão de cinza,
inclinou-se e passou seus dedos por ela, logo se girou a Paige e sorriu abertamente, seus olhos
brilhantes. Sorriu-lhe de volta, logo o empurrou pela entrada. Estávamos dentro.

***

Nossa seguinte tarefa era inibir o sistema de rádio e alarme. De minhas viagens para e do
hospital, sabia que o centro de comunicação estava localizado no primeiro piso, à volta da esquina do
elevador. Vários guardas estavam sempre de serviço ali, dirigindo a equipe. O escritório do Tucker
estava junto com a estação de guarda. Com um pouco de sorte, ele estaria ali. Matar ao Tucker era
outro trabalho prioritário. De todo o pessoal restante, Tucker era o mais perigoso, não por suas
qualidades pessoais – Eu não sabia se o homem tinha alguma– mas sim porque mandava as tropas.
Quando alguém descobrisse que nos tínhamos infiltrado no complexo, Tucker os reuniria para a ação.
Sem o Tucker e sem o sistema de rádio, qualquer sentido de ordem entre os guardas se viria abaixo –
ou era o que esperávamos. A única outra pessoa que poderia controlar possivelmente aos homens seria
Winsloe. Aos guardas poderia não lhes gostar de ou respeitar ao Winsloe, mas ele pagava seus salários,
que não receberiam se afastavam e corriam ao primeiro sinal de problemas. Pelo que Winsloe era o
seguinte em nossa pronta de objetivos.
Uma vez que Winsloe e Tucker estivessem mortos, estaríamos mais preocupados com
enfrentamentos contra os guardas por separado que em detectar aos empregados restantes. Ah,
seguro, Tess poderia atirar uma lima de unhas contra nós, mas eu provavelmente poderia agarrá-la.
Isso deixava ao Matasumi, um tipo que não podia lutar encontrar uma saída de um banheiro fechado
com chave. Oh, de acordo, esquecia a alguém. O feiticeiro. Paige me assegurou que ela reconheceria
ao Katzen se o visse. As bruxas intuitivamente reconheciam aos feiticeiros... ou isso tinha ouvido ela,
embora nunca tivesse encontrado um ela mesma. Muito consolador.
Tínhamos planejado tomar nosso tempo nos movendo da saída para a estação de guarda,
evitando confrontações, tomando rotas alternativas se fosse necessário. A porta de saída incinerada
freava esse plano. Tínhamos que chegar ao quarto de guarda e inibir a rádio antes que alguém visse o
dano.
Por sorte, chegamos ao centro de comunicação sem incidentes. Nossa sorte continuou quando
encontramos só dois guardas controlando a estação. A gente estava comendo uma barra de granola. O
outro fazia a palavra cruzada em um periódico semanal. Só podíamos ver traços de seus perfis, mas era
bastante para enviar uma emoção fria através mim. Sorri. Estes eram dois guardas que reconhecia, dois
que nunca esqueceria: Ryman e Jolliffe, os homens que tinham ajudado ao Winsloe a caçar ao Lake,
que haviam desempenhado papéis fundamentais na morte de Armem, que tinham encontrado orgulho
e prazer vicioso em seus empregos. E agora este dedicado dueto estava tão absorvido com seu trabalho
que Clay e eu conseguimos nos mover sigilosamente detrás de sem que nenhum o notasse. A tentação
de gritar “Boo!” e vê-los golpear as vigas era quase muito grande. Mas tínhamos pressa. Por isso Clay
agarrou ao Ryman com uma chave no pescoço e eu rompi o pescoço do Jolliffe enquanto ele
considerava um sinônimo de nove letras para estupidez. Tínhamos que manter um guarda vivo e
tínhamos escolhido ao Ryman, esperando que sua boca estivesse muito cheia de granola para que
gritasse. Estava-o. Infelizmente, estava tão cheio que quando Clay o agarrou pela garganta, quase se
afogou até a morte, requerendo um momento de discussão sobre o modo apropriado de realizar a
manobra do Heimlich. Era uma situação triste quando tinha que salvar a vida de alguém antes de matá-
lo.
Ryman finalmente expeliu uma parte empapada de aveia, logo soltou uma enxurrada de
vulgaridades.
—Agora isso não soa como um “obrigado” - disse Clay, sujeitando com força sua mão sobre a
boca do Ryman.
—Há gratidão para você - respondi. Inclinei-me sobre a cara do Ryman. —Me recorda?
Sua cara estava branca. Sorri abertamente, ensinando os dentes.
—Estes são os dois sobre os que te contei - disse ao Clay.
Seus olhos faiscaram, e ele devolveu meu sorriso — Perfeito.
Ryman fez um ruído que soou como a um gemido. Dirigi-o um último sorriso, logo me afastei,
deixando-o com o Clay. Enquanto Adam desconectava a equipe de comunicação, rompi a fechadura do
escritório do Tucker, inclinei-me dentro, olhei, e cheirei.
—Parece que nossa sorte se detém aqui - disse. —Nenhum sinal do coronel.
—Por isso temos a este - Clay golpeou o torso do Ryman sobre o escritório, atropelando uma
garrafa de água mineral. —Guardemos este relatório. Onde encontramos ao Tucker?
O sangue gotejou do nariz do Ryman. Ele piscou, orientando-se, logo esclareceu sua garganta e
levantou sua cabeça.
—Paul Michael Ryman - disse, sua voz compassada, robótica. —Antigo cabo do Exército dos
Estados Unidos. Atualmente servindo sob o Coronel de Operações Especial R. J. Tucker.
—Que demônios é isto? - disse Clay.
Paige amorteceu uma risada —eu, uh… acredito que é sua versão de nome, fila, e número de
série. Lamento-o, Paul, mas isso realmente não vai ajudar-nos.
Clay se inclinou, estirou a mão do Ryman sobre a mesa, logo a rompeu com seu punho. Um jorro
de estática de um jogo de alto-falantes me fez pular. Ryman chiou, ouvindo-se pela metade pela mão
do Clay sobre sua boca.
—Os doutores terão muito tempo arrumando isto - disse Clay. —Eu o chamaria uma
amortização. Era a mão esquerda. Agora a direita. Onde está Tucker?
—Paul Michael Ryman - ofegou Ryman quando Clay desentupiu sua boca. —Antigo cabo do
Exército dos Estados Unidos. Atualmente servindo sob as ordens do Coronel de Operações Especial R.
J. Tucker.
—Oh, pelo amor de deus - disse Paige. —Vamos, Paul. Apreciamos sua lealdade, mas confia em
mim, ninguém mais vai dar um maldito peso. Só diga ao homem o que ele quer saber e termina.
—Paul Michael Ryman. Antigo cabo do Exército dos Estados Unidos. Atualmente servindo sob as
ordens do Coronel de Operações Especial R. J. Tucker.
—Homens - resmungou Paige, sacudindo sua cabeça.
Clay estendeu a mão direita do Ryman sobre a mesa. Um jorro de estática de um jogo de alto-
falantes me fez saltar. Clay só jogou uma olhada ao Adam.
—Sinto-o - disse Adam. —Já quase o faço.
Baixou o volume no alto-falante estático que vomitava, logo se inclinou para olhar os cabos do
outro.
—Bem - disse Clay. —Uma última possibilidade. Dón...
O alto-falante que ainda funcionava rompeu em um ensurdecedor gemido. Quando Adam
estendeu a mão rapidamente para apagá-lo, uma voz soou.
—Jackson a base. Base copia? Repito, a segurança foi violada...
—Espera - sussurrou Clay antes que Adam o apagasse. Fez gestos para mim para que sustentasse
ao Ryman calado e tranquilo, logo arrebatou o microfone ao Adam. —Como funciona esta coisa?
—Empurra o botão para falar. Solta-o para escutar. Eles não podem ouvir nada a menos que o
botão esteja abaixo.
Clay subiu o volume com a manivela do alto-falante desligado. A estática encheu o quarto.
Empurrou o botão de conversação.
—Base ao Jackson - disse Clay, tragando seu acento. —Aqui Ryman. Temos problemas com a
equipe. Repito...
—Merda, Paul - voltou a voz. —Posso te ouvir apenas. Respondi que temos uma violação. A porta
de merda foi tirada. Supondo que explosivos, mas merda, deveria ver isto. Nada mais que cinza. Uma
bomba infernal.
—Não - disse Adam, Sorrindo abertamente. —Um meio demônio infernal.
Clay lhe fez gestos para que calasse, logo pulsou o botão do microfone — Onde está…-o coronel
Tucker?
—A última vez que o vi, estava no nível dois, tomando o inventário no armário de armas. Ele não
responde seu rádio?
—Tentarei outra vez. Mantenha sua posição. Envio reforços.
Clay deu o microfone ao Adam, logo gesticulou desde mim ao Ryman.
—Quê-lo? - perguntou.
Encontrei os olhos do Ryman com um frio olhar. —Não realmente. Segue adiante e mata-o.
Os olhos do Ryman se incharam. Sua boca se abriu, mas antes que algo saísse, Clay rompeu seu
pescoço. Uma vez que Adam terminou de desconectar a rádio e os sistemas de segurança, dirigimo-nos
para o armário de armas.

***

Agora, não sabíamos exatamente onde encontrar o armário de armas. O guarda havia dito nível
dois, o que o reduzia algo. De minhas excursões ao hospital, tinha aprendido que o segundo piso se
parecia muito ao nível inferior, um bloco grande com um único corredor que se unia ao elevador. Isto
o fazia mais fácil. Tudo o que tínhamos que fazer era revisar a cada quarto até que encontrássemos ao
Tucker. Fazer que Ryman dissesse a posição exata do armário de armas teria tomado muito tempo.
Em nossa busca, encontramos e matamos a dois cozinheiros. Não, não nos ameaçaram. Não, não
os percebemos como uma ameaça. A desagradável verdade era que tínhamos que matar a todos. Não
importando quão inócuos pudessem parecer, até o empregado mais humilde possuía a arma mais
perigosa de todas: conhecimento. Sabiam que existíamos, e por isso, não podíamos lhes permitir deixar
o complexo.
***

Procurando o Tucker, encontramos ao Matasumi em um quarto fechado com chave, ou deveria


dizer, cheirei-o através de uma porta fechada com chave. Escutamos durante um momento, logo Paige
lançou um feitiço menor para abri-lo. Ela confessou que o feitiço só funcionava em fechaduras simples,
mas já que era silencioso, decidimos tentar isso antes de empregar técnicas físicas. Funcionou e abrimos
a porta. Olhei atentamente dentro e vi o Matasumi sentado frente a um computador. Estava sozinho.
Fechei a porta silenciosamente, dando um golpe a Paige no queixo quando ela estirou o pescoço para
jogar um olhar dentro.
—Tudo limpo - sussurrei. —Ele trabalha em um computador. Não parece compreender que haja
um problema.
—Ele sabe - disse Paige. —Viu os discos Zip? A mochila? Está fazendo uma cópia de segurança
dos dados e apagando o disco rígido antes de arrancar.
—E está a ponto de encontrar um engano fatal - disse Adam, Sorrindo abertamente. —Importa
se me ocupo deste?
—Vi uma arma no escritório - disse Paige. —Uma grande. Provavelmente agarrou a maior que
pôde encontrar.
Clay me jogou uma olhada.
—Duvido que tenha a menor idéia de como usá-lo - Assenti com a cabeça ao Adam. —Seguro,
vai. Cobrir-lhe-emos. Só sej...
—Cuidado - disse Adam. —Sei.
Abri a porta. Matasumi olhava a parede lateral. Seus dedos voavam através do teclado. Enquanto
Adam entrava no quarto, Matasumi se inclinou para pôr outro disco na unidade. Viu o Adam e se
congelou, logo jogou uma olhada à arma na esquina do escritório. Sua mão saiu como uma flecha, mas
Adam arrebatou o rifle antes que Matasumi se aproximasse.
Adam brandiu a arma e assobiou. —Isto é um bom pedaço de capacidade armamentícia. Tem
uma licença para ela, Doutor?
Matasumi se congelou outra vez, sua mão ainda estendida.
—Não acredito - disse Adam. —Eu tampouco, por isso nos desfaremos disto antes que alguém
saia ferido.
Adam começou a sacudir a arma para o Clay, logo o pensou melhor, pô-la no chão, e a lançou
para nós com seu pé.
—Adam Vasic - murmurou Matasumi.
—Sabe meu nome? Sinto-me adulado.
Adam agarrou a mão do Matasumi e a sacudiu. Matasumi grunhiu e tratou de tirar sua mão.
Contemplou as manchas vermelhas brilhantes em sua palma, logo ofegou para o Adam, como se fosse
incapaz de acreditar que ele o tinha queimado.
—Ups - disse Adam. — Lamento isto, Doutor. Não obtive completamente manter o controle
ainda - Adam se girou para o computador. —Estava trabalhando? É um pedaço de hardware. Paige, vê
isto? O que é?
Adam se inclinou e entortou os olhos para a CPU. Estendeu a mão e a tocou. Faíscas voaram. Os
circuitos arrebentaram. Matasumi se sacudiu atrás.
—Maldição! - disse Adam — Isto tem má cara. Acredita que pode arrumá-lo, Paige?
—Sinto muito, não sou técnica.
Adam sacudiu sua cabeça. —Suponho que somos uns pobres sem sorte, Doutor. Isto lamento.
Que fazia você de todos os modos? Descarregar arquivos? - Adam fez arrebentar o disco da unidade.
Chispou, logo se derreteu como cera entre seus dedos. —Ai! Espero que tenha cópias de segurança.
Os olhos do Matasumi piscaram para uma prateleira fechada com chave acima. Clay avançou e
o rompeu. Adam observou um punhado de discos. Estes se desintegraram a seu toque, deixando só
pedaços carbonizados de plástico e metal.
—Vê? - disse, mostrando ao Clay seu punho cheio disto cinzas é o que passa quando me ajuda a
reforçar meus poderes. Inclusive pior que a maldição do Rei Midas. Ao menos o ouro tem valor — deu
a volta para o Matasumi e se encolheu de ombros. —O sinto, Doutor, mas realmente é para melhor.
Não podemos deixar que essa informação saia fora destas paredes, verdade? Oh, espere. Há um banco
de cor mais que tenho que apagar. Minhas desculpas de antemão.
Adão tirou um cabo do computador e o pôs ao redor do pescoço do Matasumi. Durante um
segundo, Matasumi não pareceu compreender o que acontecia. Então suas mãos voaram a sua
garganta. Muito tarde. Quando Adam atirou o cabo com força, este se acendeu, flamejou, logo morreu
quando Matasumi caiu de lado, rígido.
—Desfrutou de muito - disse Paige.
Adam só sorriu abertamente —Que espera? Sou um demônio.
—Meio demônio.
—E um demônio inteiro teria torturado ao pobre primeiro tipo. Ao menos eu fui misericordioso.
—Termina de destruir os arquivos e o computador - disse Clay. —Logo nos movemos.

***

—Deveria me pôr em contato com o Kenneth agora? - perguntou Paige quando deixamos o
quarto.
Clay sacudiu sua cabeça e seguiu andando.
—Mas Jeremy disse que os notificássemos uma vez que estivéssemos dentro e tivéssemos os
sistemas abaixo.
—Não, ele disse que o notificasse quando Elena te dissesse que o fizesse.
Paige me jogou uma olhada.
Sacudi minha cabeça —Não ainda.
—Mas poderíamos usar sua ajuda.
—A ajuda de quem? - disse Clay, detendo-se de repente e girando para ela. —Kenneth? Ele não
pode lutar. Cassandra? Ela poderia lutar, se queria fazê-lo. Chamaremo-los quando estiver claro.
—Mas...
—Mas nada - Clay franziu o cenho para o Paige. —Me está pedindo que ponha a meu Alfa em
uma posição potencialmente perigosa onde não só é o único lutador, mas também onde, além disso, é
responsável pelas outras duas pessoas. Não farei isso.
—Sinto-o - murmurou Paige enquanto Clay dava a volta.
Clay girou para ela —O que?
—Respondi, sinto muito.
Clay vacilou, lançou-lhe um brusco assentimento, e logo nos fez gestos para que calássemos e
começou a avançar outra vez.

***

Encontramos o armário de armas. Para minha surpresa, realmente era um quarto inteiro. Hey,
nunca estive na milícia. Ouço o termo “armário de armas” e imagino um armário de escola secundária
cheio do AK-47 e amadurecidas em vez de meias três-quartos fedorentos e sanduíches de presunto de
semanas.
Movi-me sigilosamente para uma entrada aberta, joguei uma olhada à volta da esquina, e vi o
Tucker rabiscar em uma prancheta. Não só estava sozinho, mas também nos dava as costas. Talvez
Bauer tinha tido um ponto quando fez esse pequeno discurso sobre a confiança na tecnologia na época
pós industrial. Estes tipos estavam tão convencidos da impenetrabilidade de seu sistema de segurança
de alta tecnologia que, enquanto que nenhum alarme ressonasse, sentiam-se seguros. Tucker nem
sequer estava armado. Realmente, onde estava o desafio?
Retrocedi ante a porta e fiz gestos ao Clay. Ele se arrastou a meu lado, jogou uma olhada ao
redor da porta, e sacudiu sua cabeça. Lançamos a uma conversa de sinais. Então assenti com a cabeça,
retrocedi, e fiz gestos ao Adam e a Paige para que avançassem. Clay se deslizou ao redor da porta, seus
sapatos silenciosos contra o linóleo. Quando Adam tratou de segui-lo, pus minhas mãos para detê-lo.
Clay podia dirigir isto sozinho. Melhor se ficávamos escondidos.
Fechei meus olhos para afiar meu ouvido e rastreei o sussurro da respiração do Clay, riscando
um mapa contra Tucker. O espaço entre eles se fechava. Então, quando esperei o som do ataque, dois
cliques fortes romperam o silêncio. Armas.
Investi contra a entrada aberta. Paige agarrou as costas de minha camisa, me detendo enquanto
dois guardas saíam de seus esconderijos, suas armas na cabeça do Clay.
ANIQUILAÇÃO
Clay se congelou a metade do passo. Seus olhos vacilaram de um guarda ao outro, mas não se
moveu, nem sequer completou seu passo. Tucker se deu volta para confrontá-lo, Sorrindo.
—Então é você - disse Tucker. —O bruto que tirou meus homens perto de Augusta. Se não
tivéssemos encontrado a câmara, eu não o teria acreditado. Três de meus melhores homens.
Assassinados por um cão raivoso.
Clay não disse nada. Adam, Paige, e eu desabamos parados na entrada aberta. Tucker não fez
caso de nós.
—Não foi uma má idéia, inutilizar as rádios e alarmes - disse Tucker. —Nada mal, mas tampouco
brilhante. Subestimou quão bem treinei a meus homens. Logo que Jackson compreendeu que tínhamos
uma violação, ele enviou a um de sua equipe para me advertir pessoalmente.
Paige sustentou meu braço. Enquanto Tucker falava, ela o apertava. Pensando que estava
assustada, não a afastei. Então ela me beliscou com tanta força que tive que morder um gemido.
Quando a fulminei com o olhar, ela assentiu com a cabeça quase imperceptivelmente para o guarda
próximo. Devolvi-lhe uma sacudida de cabeça igualmente discreta. Não havia maneira de que eu
pusesse em perigo a vida do Clay atacando um guarda. Paige apertou meu braço com mais força e me
lançou um olhar impaciente. Dava-me volta longe.
Tucker continuou —Sim, sei que estamos quatro a três agora mesmo. Não são probabilidades
excepcionais para nosso lado, mas espero que melhorem em qualquer momento. Um de meus homens
reúne a reserva enquanto falamos - Ele inclinou sua cabeça. —Ouço passos? Acredito que o faço. Mas
você é o que tem audição biônica. Diga-me, Quantos homens se aproximam? Quatro? Seis? Dez?
Paige murmurou em voz baixa. Não soava como espanhol... merda! Ensaiava lançando um
feitiço. Antes que pudesse detê-la, o guarda que estava mais longe de nós se esticou. Olhou de um lado
ao outro, só com movimento de olhos, lentamente entrando em pânico. Soube então o que Paige tinha
arrojado: um feitiço de agarre. Paige liberou seu apertão a meu braço e voei para o guarda mais
próximo. Enquanto me lançava para ele, um tiro saiu despedido para o teto. Atirei a arma de suas mãos
enquanto caíamos ao chão. O segundo guarda se dava volta agora, o feitiço quebrado.
Adam passou por cima de mim e lançou ao outro guarda para a parede. Clay agarrou ao Tucker
pelo pescoço. Enquanto conduzia meus punhos para o estômago de meu objetivo, seu joelho me
apanhou no peito, me girando. Aroma de carne ardendo encheu o quarto. O outro guarda gritou. Ao
som, meu guarda vacilou justo o suficiente para aguentar minha respiração. Levantei-o sobre minha
cabeça e o lancei para um jogo de pesadas prateleiras de aço. A parte de atrás de sua cabeça se golpeou
na esquina da prateleira superiora. Pendurou ali um minuto, suspenso no ar. Seus olhos piscaram uma
vez, logo derrubou sua cara para o chão, o sangue saía a fervuras de uma greta detrás de seu crânio.
Clay comprovou o pulso do guarda enquanto me parava.
—Morto - disse.
Uma olhada ao Tucker e ao outro guarda me disse que eles sofriam da mesma condição.
—Pode ouvir alguém vindo, querida? - perguntou Clay.
—Tucker estava mentindo - respondi. —Mas vêm agora. Ao menos quatro. Não menos de sete.
Deveríamos correr.
—Correr? - disse Adam —Seus sete contra nós quatro? Essas são probabilidades decentes.
—Quero excelentes, não decentes. Sete a quatro quase garante uma perda em nosso lado.
Oferece-te para a posição?
Adam jogou uma olhada ao Clay.
—Elena tem razão - disse Clay. —Corremos agora e esperaremos a que se dispersem. Se não o
fizerem, escolhemos o campo de batalha. Aqui, estamos abandonados.
Deixamos o armário de armas.

***

Embora eu podia ouvir a chegada dos guardas, não estavam à vista ainda. Vimo-los a volta da
esquina. Então nos metemos em uma entrada aberta.
—Estão no armário de armas - sussurrei enquanto escutava. —Falam... vêem o Tucker. Um –não,
dois ficam para verificar sinais de vida. O resto vai seguir procurando. Reduziram a marcha a um passo,
mas vêm por este caminho.
—Separaram-se - murmurou Clay. —Mas não por muito tempo.
Dava-me volta o Paige. —Pode lançar esse feitiço de cobertura?
—Claro - disse.
—Isso funciona... realmente?
Sua cara se obscureceu. —É obvio —se deteve e assentiu com a cabeça. —Funcionará. É um
feitiço nível três. Sou uma aprendiz nível quatro. Feitiços de agarre são de quarto nível, que é o por que
me dão um pouco de problemas.
—Bem. Vocês três esperem aqui na entrada. Paige lançará seu feitiço de cobertura. Fiquem
quietos e não lhes verão. Não me cubra, Paige. Serei o chamariz e os conduzirei diante de vocês. Clay e
Adam podem atacar pelas costas. Uma vez a atenção dos guardas, e suas armas, estejam longe de mim,
unir-me-ei à luta.
Paige sacudiu sua cabeça. —Eu serei o chamariz.
—Não temos tempo para discutir - disse Clay.
—Você, Adam, e Elena são lutadores. Eu não. Melhor ter três ao ataque. Além disso, Elena pode
não parecer muito ameaçador, mas quando estes tipos me vejam, as palavras ‘chutem o traseiro da
cadela’ não entrarão sequer em suas mentes. Não esperarão uma luta.
—Ela tem razão - disse Clay.
Vacilei.
—Estaremos aqui mesmo - me sussurrou Clay, muito baixo para que outros ouvissem. —Ela
estará bem.
—A seus lugares todos - disse Paige. —Aqui vêm.

***

Na conseguinte batalha, Adam apanhou uma bala no ombro. Doloroso, mas não incapacitante.
Os guardas morreram. Todos, os quatro que tinha vindo pela esquina, mais os dois que se ficaram para
verificar ao Tucker, mais outros três que chegaram antes de que Paige terminasse de lançar um feitiço
de cura para deter o sangrado do Adam. Nove guardas. Todos os mortos. Quando terminamos, Paige
ficou de pé entre os guardas mortos, olhou os corpos, e se perdoou. Passou os poucos minutos
seguintes em um quarto vazio. Não a incomodamos. Ela não era quão única havia visto suficiente morte
esse dia. Quando pensei em toda a matança por vir, os guardas e o resto do pessoal que não tínhamos
encontrado ainda, minha própria resolução começou a vacilar. Era muito. Sim, eu tinha matado antes,
mas tinham sido guias de ruas, assassinos, e suas mortes tinham sido espaçadas durante todos meus
anos como lobisomem. Matar a tantas pessoas, em um tempo tão curto... eu sabia que teria pesadelos
sobre este dia, que veria suas caras, perguntar-me-ia se tinham mulheres, noivas, meninos. Disse-me
que não podia pensar nisto. Tinham que morrer para proteger nossos segredos. Tinham entendido o
perigo quando foram contratados neste projeto. Saber isso não o fazia nem um pouco mais fácil. Os
corpos se amontoavam, e desesperadamente quis encontrar algum modo de evitar a matança. Mas
não havia nenhum outro caminho. Todos tinham que morrer.
Adam, Clay, e eu não trocamos nem sequer uma palavra enquanto Paige se foi. Quando ela
voltou, sua cara estava pálida, mas severa.
—Terminemos com isto - disse.
Adam piscou e olhou ao redor confuso, como um sonâmbulo que acorda no pátio de trás. Sua
cara estava tão pálida como a do Paige. Neurose de guerra. Clay olhou de Paige ao Adam e logo a mim.
Descansou as gemas de seus dedos em meu braço e me girou, me confrontando.
—Eu terminarei - disse. —Vocês tiveram suficiente. Mostre-me onde olhar e cobre minhas
costas. Farei o resto.
Encontrei seus olhos. Ele pareceu tão cansado como eu me sentia. Não fisicamente esgotado, a
não ser mentalmente apagado. Tinha tido o bastante, também. Quando toquei sua mão, ele apertou
meus dedos.
—Encontremos um lugar seguro para eles - murmurei, muito baixo para que Paige e Adam
ouvissem. —Então você e eu terminaremos.
Clay vacilou.
—Jeremy nos disse que ficássemos juntos - respondi. —Não te deixarei lutar sozinho.
Clay procurou minha cara, logo exalou lentamente. —De acordo, querida. Vamos terminar isto
então poderemos ir a casa.

***

Deixamos a Paige e ao Adam atrás. Paige esteve de acordo sem fazer comentários. Adam
protestou, mas o separei para falar à parte e lhe expliquei que estávamos preocupados com Paige e
não nos atrevíamos a abandoná-la sem alguém que fizesse guarda. Acredito que Adam sabia melhor,
mas depois de ver um modo de sair de ação com sua dignidade intacta, aceitou a mudança de projetos
e escoltou a Paige a um quarto vazio.
Clay e eu cobrimos o segundo nível inteiro duas vezes. Quando não encontramos nenhum sinal
do Winsloe, fomos acima, saímos do complexo, e comprovamos potenciais escapamentos. Os quatro
veículos estavam ainda na garagem. Matamos dois guardas que freneticamente tratavam de arrumar
um. Logo rodeamos o perímetro do complexo, escutando e cheirando por alguém que pudesse ter
escapado aos bosques. Nada. Nenhum rastro do Winsloe tampouco.
Quando voltamos com Paige e Adam, pedi a Paige que seguisse adiante e contatasse com o
Kenneth. Era momento de que Jeremy se unisse a nós. Levar-lhes-ia a menos trinta minutos passar
através dos bosques. Então, estaríamos preparados para receber sua ajuda limpando e destruindo
provas. Primeiro, entretanto, tínhamos uma última tarefa: limpar as celas.
EMANCIPAÇÃO
Paige e Adam insistiram em nos acompanhar abaixo. Segundo minha conta, a maior parte dos
guardas estavam mortos já, então lhes deixamos vir. Tal como esperava, só estavam os dois homens
habituais que dirigiam a estação de guarda do bloco de celas. Clay e eu os despachamos, logo dirigimos
às celas. O trabalho do Adam desconectando o sistema significava que todas as portas de segurança
estavam abertas agora, por isso poderíamos desprezar a bolsa de partes de corpo que Clay tinha
recuperado desde fora.
Antes de entrar no bloco de celas, Clay e eu nos separamos. Sim, Jeremy nos tinha advertido que
não o fizéssemos, mas entendia que ele não queria dizer que não devíamos deixar de nos ver
absolutamente. Ele confiava em mim para usar minha discrição, e essa discrição dizia que seria melhor
que dois de nós entrassem em bloco de celas por portas opostas. Estivemos fora de contato durante só
uns segundos enquanto passávamos pelo corredor para o bloco de celas. Entrar por portas separadas
significava que ninguém poderia escapar pelo outro lado enquanto entrávamos. Uma precaução
desnecessária. Winsloe não se escondia no corredor de celas. Ninguém o fazia. Paige e eu entramos
pró o lado da estação de guarda, e, enquanto passávamos pela porta, Adam e Clay se dirigiam já para
nós da outra porta.
—Deveríamos deixá-los a todos livres - chamei quando eles se aproximaram.
Clay assentiu com a cabeça — Nos dá uma possibilidade de verificar as celas para procurar o
Winsloe.
—É ela? - sussurrou Paige.
Dava a volta para ver que ela se deteve na cela do Savannah. Dentro, Savannah jogava em um
Game Boy, seu nariz franzido devido à concentração.
—Ela está bem - disse. —Bem.
—Podemos soltá-la? - disse Paige, ainda cochichando, como se Savannah pudesse nos ouvir por
acaso.
Sacudi minha cabeça. —Vejamos primeiro a Leah. Assegure-te que ela está em sua cela.
A cela de Leah ainda estava ao lado da de Savannah, e infelizmente ela estava também viva e
bem, sentada em sua cadeira, seus pés apoiados em uma mesa, lendo uma Cosmo.
Adam olhou atentamente cela — Esta é ela? A malvada Leah? Não me parece muito perigosa.
Eu poderia levá-la.
Paige pôs seus olhos em branco. —Incrível. Uma porta desintegrada e o moço de fogo acredita
que é o rei dos demônios.
—Moço? - chispou Adam. —Sou um ano mais velho que você.
—Movam-se - disse Clay. —Enquanto que está trancada, deixaremo-la ali até que Jeremy dita o
que terá que fazer.
Adam jogou um último olhar de saudades a Leah, logo se girou para mim —Agora o que?
—Você e Clay podem verificar quantas outras celas estão ocupadas enquanto Paige e eu falamos
com Savannah.
Enquanto Clay e Adam ficavam em marcha fazia abaixo pelo corredor, Paige e eu nos
aproximamos da cela de Savannah. Dentro, ela ainda jogava com seu videojogo. Fizemos uma pausa
fora da porta.
—Disse- minha mãe ao Savannah algo sobre mim? - perguntou Paige.
Assenti com a cabeça —Ela sabe que esperar, que vai cuidar dela. Ou, que esse era o plano, embora
suponha que enquanto volta para seu Aquelarre, isso seria suficiente. Duvido que Ruth realmente
esperasse que adotasse a uma menina de doze anos.
—Ela o fazia - disse Paige. —Embora eu não esteja segura do que pensará Savannah da idéia.
—Oh, estará bem - estendi a mão para o trinco. —Pronta?
Um pouco parecido ao pânico revoou através da cara de Paige. Então exalou, endireitou sua
blusa, e passou uma mão através de seus cachos, como se preparasse para uma entrevista trabalho.
—De acordo - disse. Ela se estirou por diante de mim, abriu a porta, e entrou. —Olá, Savannah.
Savannah se levantou de um salto, o Game Boy se estrelou contra o chão. Seus piscaram por
cima do Paige e me viram. Sorrindo abertamente, ela correu e lançou seus braços ao redor de mim.
—Eu sabia que voltaria - disse.
Ouch. Isso dói. Realmente dói. Mas havia tornado, verdade? Só lamentava não ter tido fé suficiente
para não abandoná-la em primeiro lugar.
—Esta é Paige Winterbourne - disse. —Ruth...
—A filha - terminou Paige.
Savannah se girou para Paige. Eram da mesma altura.
—Esta é a bruxa que supostamente me cuidará? - Savannah olhou desde mim a Paige, então se
voltou para mim. —Que idade tem ela?
—Tenho vinte e dois anos - disse Paige, Sorrindo.
Os olhos de Savannah se alargaram de horror. —Vinte e dois? Ela é apenas mais velha que eu!
—Falaremos disto mais tarde - disse. —Agora mesmo…
—Quem é ele? —Ela assinalou ao Clay, que estava de pé na entrada, logo compreendeu que
estava lhe apontando e converteu o gesto em uma onda.
—Clayton - disse. —Mi...
—Ruth me contou sobre ele. Seu marido, verdade?
—Uh-fui.
Savannah dirigiu ao Clay a versão adolescente de um olhar, que não se estendeu mais abaixo de
seu pescoço. Ela assentiu com a cabeça com aprovação, logo avançou, quase tropeçando comigo.
—Quem é esse?
—Adam Vasic - disse Adam, entrando no quarto fingindo uma reverência.
Savannah sufocou uma risada parva —Ruth te mencionou. O demônio de fogo. Isso não soa
muito mau, mas o que pode fazer? Além de começar incêndios?
—Realmente deveríamos... - começou Paige.
—É Savannah Levine, verdade? - perguntou Adam.
Savannah assentiu com a cabeça. Adam ampliou sua mão com um floreio, fez uma pausa, logo
pôs seu dedo na parede. A parede jogou fumaça. Usando seu dedo, gravou S. L., logo desenhou um
coração ao redor disso.
A cara do Savannah se acendeu, mas lutou para escondê-lo sob um véu de indiferença. —Não
está mau. Mas qualquer pode fazer isso com uma lupa. Não tem algum poder verdadeiro?
—Mais tarde - disse Clay. —Temos duas celas mais que desocupar.
Adam se apartou para deixar passar a Savannah, sustentando a porta aberta para ela. Ela
pretendeu ignorá-lo, mas não pôde esconder um diminuto sorriso e uma última olhada a suas
ilustrações na parede. Pobre Xavier. Tão facilmente expulso dos afetos de Savannah por um meio
demônio mais jovem, mais poderoso. Quão volúvel é o coração de uma moça de doze anos.
Quando Savannah passou por diante do Adam, chocou-se com o Clay que bloqueava a saída.
—Ela fica aqui - disse ele. —Paige pode cuidar dela.
Savannah grunhiu.
—Deveríamos havê-la liberado ao final - disse Clay. —Ainda podem haver guardas por aí. Não
quero que ela perambule.
—Não perambularei...
Clay a cortou com um olhar. Eles travaram seus olhares, logo Savannah deixou cair seu olhar fixo.
—Bem - disse ela. Girou-se sobre seus calcanhares, observou sua cama, e se lançou em cima
dela, com os braços cruzados, de cara à parede.
—Adam, permanece com elas - disse Clay. —Monta guarda.
—Não necessito a ninguém para me proteger - disse Savannah, atirando e sentando-se, o
ressentimento desaparecendo quando Adam se aproximou. —Mas pode cuidar dela - sacudiu seu
queixo para o Paige. —Ela parece necessitar ajuda.
—Isto vai ser divertido - murmurou Paige em voz baixa. —Não podiam me haver encontrado
uma pequena e doce bruxa de oito anos?
—Poderia ser pior - respondi. —Poderia ter dezesseis.
—Um dia, tê-los-á.

***

Ficavam dois presos. Curtis Zaid, o sacerdote vodun, e um novo cativo na cela em frente de minha
velha cela.
—O que pensa que é? - Perguntei ao Clay, inclinando minha cabeça para estudar ao recém-
chegado. —Ouvi que eles tratavam de capturar a um vampiro, mas este tipo não parece muito anêmico,
verdade?
Era uma subestimação. O homem na cela media quase 1.90 metros, com amplos ombros e pleno
de músculos, luzidos através uma camiseta sem mangas e jeans gastos. Definitivamente não estava
anêmico.
—Pode deixar de babar, querida - disse Clay.
Fiz-lhe uma careta e olhei de novo ao estranho —Acredita que é um vampiro?
—Quer que meta meu pescoço e o averigúe?
—Talvez mais tarde. No momento, acredito que deveríamos deixá-lo onde está. Só para estar
seguros.
Caminhamos para a cela do Curtis Zaid. Olhei-o através do vidro transparente unidirecional,
tratando de lotear sua estabilidade mental.
—Parece estar bem - disse. —Não vocifera nem amaldiçoa. Acredito que o pobre tipo se perdeu,
mas não é perigoso. Não tem nenhum poder verdadeiro. É mais provavelmente uma chateação que
uma ameaça.
—Vamos tirá-lo, então - disse Clay, abrindo a porta.
Quando entramos na cela, Zaid se girou e tirou algo de sua cabeça. Aparelhos de surdez,
conectados a um reprodutor do CD sobre a mesa. Ele fechou seu livro e o pôs em cima de um gravador
de vídeo. CDs? Vídeos? Inferno, tudo o que alguma vez consegui foram velhos livros e uma televisão
com duas estações. Talvez deveria ter arrojado maldições.
—Estamos aqui para te tirar, Curtis - disse.
Zaid não pareceu nada surpreso. Talvez estava muito ido. Nos ignorando, ficou de pé e se dirigiu
para a porta. Movemo-nos para trás para deixá-lo passar. Caminhou para o corredor, deteve-se, e olhou
ao redor, como se esperasse uma armadilha. Então avançou para a saída.
—Uh, não queremos ir ainda - chamei. —É uma larga excursão à cidade mais próxima.
Zaid seguiu caminhando.
—Deixe ir - disse Clay. Não se irá longe. Encontraremo-lo antes que nos partamos.
Savannah correu de sua cela. Adam girou de sua posição de guarda e tratou de apanhar seu
braço, mas a perdeu.
—Já estão preparados? - chamou ela. —Podemos ir agora? Ouça, esse é o Sr. Zaid? - Ela se deteve
uns metros do Zaid, olhando-o para cima, e dando um diminuto passo para trás. —Isto não é um vodu...
—Savannah! - Paige disse, correndo da cela. —Te disse que ficasse...
Ela se deteve de repente. Segui seu olhar fixo ao Zaid, quem se tinha detido e dava volta
lentamente para confrontar às duas bruxas. Paige estava branca. Completamente branca. Zaid levantou
sua mão como se saudasse. Os pés de Savannah voaram de debaixo dela. Navegou através do ar.
—Savannah! - gritou Paige e se lançou para a moça.
O corpo de Savannah se debateu no ar durante um segundo, logo foi arrojado para nós como
uma rocha. Não, não para nós. Para a parede atrás de nós. Clay e eu nos giramos, estendendo os braços
para agarrá-la. Seu corpo pegou em meu ombro com força suficiente para me lançar de repente contra
a parede. Clay investiu, nos apanhando a ambas antes que nos golpeássemos contra o chão.
Olhei por cima do ombro do Clay e vi Paige parada a cinco metros do Zaid. Estavam um em frente
ao outro, ambos os silenciosos. Os lábios do Zaid se torceram em um sorriso diminuto.
—Passou muito tempo desde que tive o prazer de encarar a uma bruxa - disse ele. —E aqui tenho
a duas. Infelizmente para elas são só aprendizes. Poderíamos ter tido um pouco de diversão.
Ele revoou uma mão e os joelhos de Paige se apertaram. Ela tropeçou, mas se agarrou.
—Melhor uma aprendiz de bruxa que um feiticeiro que apunhale pelas costas - disse ela.
—Katzen - sussurrei.
Enquanto me punha de coque no estou acostumado a sustentando a Savannah, Adam e Clay
avançaram para o Katzen desde lados opostos. Ele jogou uma olhada para eles e fez um círculo com
uma mão. Clay se deteve em seco, piscando. Estendeu uma mão. Sua mão parecia golpear algo com
força, mas invisível. Balançou seu punho, mas sua mão foi detida metade da oscilação. Katzen nos
lançou um olhar aborrecido.
—Não se incomode - disse. —Isto é entre a bruxa e eu. Desfrutem de do espetáculo, mas não
fiquem muito cômodos. Isto não durará muito tempo - se girou por volta de Paige. —Me sinto
magnânimo hoje, bruxa. Renda-te e te deixarei ir.
—Não há trato - disse Paige. —Mas se te render, deixarei-te ir.
Katzen moveu sua boneca. Esta vez Paige resmungou umas palavras e sua mão se paralisou. Ele
dobrou seus dedos, facilmente rompendo ao feitiço de agarre, mas quando tentou o gesto outra vez,
Paige o enfeitiçou, detendo sua mão antes que completasse o movimento.
—Bom intento - disse ele. —Mas perde seu tempo. Nenhuma bruxa, em particular uma aprendiz,
pode esperar lutar contra um feiticeiro. Estou seguro que conhece sua história. Vocês as bruxas fariam
tão bem em recordar o passado. Tudo o que abandonaram, realmente. Bastante triste.
—Conheço minhas lições de história - disse Paige. —Qualquer feiticeiro com poderes
verdadeiros descende de bruxas. Ensinamos-lhes tudo, mas quando a Inquisição começou, Protegeram-
nos? Não. No momento em que foram o objetivo, deram-lhes nossas cabeças em bandeja de prata.
Demos-lhes poder e vocês nos traíram.
—Possivelmente me equivoquei - disse Katzen. —A história não é tudo o que abandonaram. Há
amargura, também. Amargura e inveja.
Katzen levantou ambas as mãos. Os lábios do Paige se moveram, mas antes que qualquer feitiço
saísse, ela saltou pro ar. Golpeou a terra rodando pelo impacto, logo se desvaneceu. Desapareceu.
Katzen escaneou o chão.
—Um feitiço de cobertura. Que original - Ele deu a volta, pisou em forte com um pé, logo girou
outra vez, pisou em forte outra vez, como se tratando de esmagar uma formiga que fugia.
A barreira do Katzen o rodeava a ele e ao Paige, apanhando ao Adam no lado oposto do corredor.
Os olhos do Adam brilhavam vermelhos enquanto golpeava a barreira, mas nem sequer seu poder
podia nos abrir caminho. Clay passeou a nosso lado, movendo suas mãos sobre a barreira, tratando de
encontrar uma violação. Eu abraçava a Savannah enquanto comprovava se tinha ossos quebrados. Ela
parecia bem, só um pouco machucada e aturdida.
Katzen seguiu pisando em forte o chão, movendo umas polegadas com cada golpe — Diga-me
quando me aproximo, bruxa. Sabe que te encontrarei. Tudo o que tem que fazer é te mover e será
apanhada. Esse é o problema com os feitiços de bruxa, verdade? Só pode te defender. Não pode
devolver o golpe.
Uma forma brilhou a uns metros do Katzen. Paige, movendo os lábios.
—Paige! - Gritei, lhe advertindo que se revelava.
Antes que Katzen pudesse dar-se volta, uma bola acesa desceu em picado do teto, golpeou-o no
peito, e explodiu. Ele se cambaleou, tossiu, sua roupa se chamuscou. Moveu sua cabeça ao redor,
procurando Paige. Um de seus curtos dreadlocks24 se acendeu e golpeou sua bochecha, deixando um
rastro vermelho e brilhante. Ele grunhiu e deu palmadas ao fogo, logo olhou ao redor outra vez. Paige
se tinha ido.
—Bem feito, bruxa - disse ele. —Esteve lendo manuais de feiticeiros?
Ele começou a dizer mais, logo se deteve, dando a volta como se algo lhe tivesse saltado à vista.
Seus lábios se torceram em um lento sorriso. Segui seu olhar fixo à cela de Leah. O sorriso do Katzen se
alargou, e estendeu sua mão, murmurando umas palavras. Houve um clique, muito suave para que
ouvidos humanos o ouvissem. Então a porta do Leah rangeu e se abriu uns centímetros. Dentro, ela se
sentou, sua revista deslizando-se ao chão. Avançou para a porta, abriu-a, e saiu.

24
Faz referência a um corte de cabelo: Rastafaria.Original dizem de Jamaica e símbolo da cultura Rasta.
DEMONSTRAÇÃO
—Está perdendo toda a diversão, querida - disse Katzen quando Leah saiu de sua cela. —Por que
não põe à moça em um lugar seguro enquanto trato com isto.
Leah piscou, momentaneamente desorientada enquanto explorava o corredor, seu olhar
cruzando-se com as figuras desconhecidas do Clay, Adam, e Paige. Corri a Savannah de meu regaço e
me pus de pé. Leah viu o movimento e se deu volta.
—Deveria havê-lo adivinhado - disse ela. —Bem-vinda de volta, Elena.
Clay avançou para nós, tratando de não chamar sua atenção até que estivesse bastante perto
para investir. Ao outro lado da barreira invisível, Adam se passeava, seus olhos ardendo sem chamas.
Dava um passo em frente de Savannah.
—Nem sequer o pense - respondi.
—Leah? - disse Savannah, ainda parecendo aturdida. Ela lutou e ficou de pé detrás de mim. —
Po… pode nos ajudar?
Leah sorriu. —É obvio que posso.
Lancei-me para Leah. Algo me golpeou atrás da cabeça. Quando me atirei para frente, tudo se
voltou escuro. Voltei para a consciência quando me golpeei contra o chão de cimento. Os braços do
Clay estavam ao redor de mim, me atirando.
—Savannah - disse, me pondo de pé.
Cambaleei-me, ainda aturdida pelo golpe. O quarto dava voltas. O sangue gotejava quente por
minhas costas. Clay tratou de me estabilizar, mas o apartei.
—Ajuda a Savannah - disse.
Clay agarrou a Savannah, que agora estava de pé diante de nós. Mas sua mão não entrou em
contato. Deteve-se em seco como quando ele tinha golpeado a barreira invisível ao redor do Katzen e
Paige.
—Nenhuma interferência de ti, lobisomem - disse Katzen. —Não necessitamos a sua classe ou
ao demônio de fogo. Toma a seu amigo e a sua companheira, e vete antes que esta bruxa afie meu
apetite por um desafio mais forte.
Cambaleei-me para frente e me choquei com a barreira que rodeava a Savannah e a Leah. Minha
cabeça ainda girava. Quando esmurrei meus punhos contra a parede invisível, a força de meus próprios
golpes me enviou tropeçando atrás. Quando Clay me agarrou, vi algo no chão. Um livro, provavelmente
da cela do Katzen. A esquina estava pisoteada com sangue. Meu sangue. Contemplei-o. Um livro. Leah
me tinha golpeado com um ordinário livro, arrojado com força bastante para me deixar pasmada e
sangrando. Olhei ao Savannah e o medo me encheu.
—Deixa-a ir - respondi. —É só uma menina.
Leah pôs os olhos em branco —Não me atire toda essa merda da ‘menina inocente’, Elena.
Savannah tem doze anos. Apenas uma menina. E apenas inocente - Ela riu do Savannah. —Mas não
me importa isso. Cuidarei de ti.
Savannah me olhou logo a Leah, ainda aturdida. Nesse momento compreendi do que tinha sido
capaz Leah, organizando todos esses acontecimentos de objetos voadores e culpando a Savannah. Ela
tinha tratado de fazer-se a única aliada da moça, a única a quem ela aceitaria passasse o que
acontecesse. Além disso, Leah se tinha aliado de algum jeito com o Katzen, tal como Paige tinha
suspeitado. Juntos tinham organizado o espetáculo de inteiro horror da noite que me escapei. Mas com
que objetivo? Não importava. Agora mesmo tudo o que importava era que Paige estava apanhada com
o Katzen, e Savannah estava em perigo de ir-se com Leah. Eu não podia fazer muito com a primeira
parte, mas a segunda...
—Ela é inocente - respondi. —Inocente de tudo o que passou aqui. Por ] que não lhe conta quem
atacou realmente todos esses guardas, quem matou realmente a Ruth Winterbourne. Objetos
volantes... um meio demônio telecinético. Hmmm, poderia haver ali uma conexão?
—Mas... - Savannah piscou me olhando a mim, logo a Leah. —Você –não faria isso.
—É obvio que não - disse Leah. —Eu nunca te faria mal, Savannah.
—Não? - Respondi. —E os cristais que voavam? Pensa que faziam cócegas? Mas não estava ali,
verdade? Comodamente apareceu depois de que teve terminado.
O olhar fixo de Savannah passou de Leah a mim e logo depois de volta.
—De acordo - disse ela tranquilamente. —Se for minga amiga, Leah, então deixa-os ir. Diga-lhe
que deixe ir ao Paige. Ela não fez nada mau. Deixe ir e irei com vós.
—Não posso fazer isso, Savannah - disse Leah. —Eles não lhe entendem. Eles lhe levarão e,
quando as coisas se danifiquem, não entenderão. Sou a única...
—Não! - gritou Savannah.
Seu corpo se sacudiu. Durante um momento, pensei que Katzen a tinha outra vez. Lancei-me
para a barreira, logo vi o olhar na cara do Savannah. Seus olhos ardiam e seus rasgos estavam torcidos
de raiva. Seus lábios se moveram.
Leah estendeu uma mão para a moça, logo se congelou a metade do movimento. A confusão
vacilou em seus olhos, logo uma crescente compreensão, logo uma pequena amostra de medo. Ela não
se moveu. Nem sequer um músculo. Olhei a Savannah. Seus olhos estavam fixos em Leah.
—Meu Deus - sussurrou Paige. —Ela a ligou.
Katzen não pareceu notar que Paige tinha reaparecido, rompendo seu feitiço de cobertura. Em
vez disso, contemplou a Savannah, logo começou a rir.
—Agora há poder - disse. Ele olhou ao Paige que estava sentada nesse chão — é um feitiço de
agarre, bruxa. Talvez deveria lhe haver pedido lições antes que decidisse me lançar um. Muito mal. Eu
teria desfrutado de uma verdadeira prova.
Ele mexeu sua mão e Paige voou para a parede. Ela golpeou o solo rodando e desapareceu.
Katzen renovou sua busca pisando em forte. Atrás deles, Savannah estava de pé de costas à ação,
ligando a Leah. Adam, Clay, e eu olhávamos, indefesos, nossa atenção partida entre as duas batalhas.
Paige brilhou quando lançou um feitiço. Katzen girou a tempo para vê-la a um metro detrás dele,
e seus pés voaram, agarrando-a no estômago antes que ela terminasse as palavras. Resfolegando, Paige
rodou fora de seu caminho e lutou para ficar em pé. Ela repetiu o feitiço. Outra esfera acesa fez erupção
de um nada, golpeando ao Katzen entre as omoplatas e fazendo-o cair de seus joelhos. Enquanto ele
caía, levantou suas mãos e Paige foi lançada pelo ar, precipitando-se contra o teto. Ela disse algo e o
feitiço do feiticeiro se rompeu repentinamente, deixando-a cair ao chão com um ruído surdo e
discordante de ossos. Ela rodou e desapareceu atrás de outro feitiço de cobertura.
—Um repertório impressionante mas tristemente limitado - disse Katzen, ficando de pés. —Essas
bolas de fogo não me matarão, bruxa. Sabe isso.
—Oh, sei - disse Paige, aparecendo a uns dez metros detrás dele.
Katzen girou para confrontar a Paige. Ela se sentou com as pernas cruzadas no chão, não fazendo
nenhum movimento para ficar de pé.
—Mas apostarei a que posso te matar - disse ela. —De fato, posso fazê-lo sem te tocar, sem
sequer me parar.
Katzen riu —Oh, aqui vamos. O chamariz. Faz todo o possível, bruxa. Então farei o meu.
Paige fechou seus olhos e disse umas palavras. Katzen se endireitou. Contive meu fôlego. Mas
nada passou. Katzen vacilou, logo começou a rir. Paige girou sua cabeça e olhou ao Clay. Ele capturou
seu olhar e assentiu com a cabeça, logo deu um passo para a parede invisível... e caminhou diretamente
através dela. A barreira se foi. Katzen não o notou.
—Maldição - resmungou Paige. —Posso uh... Tentá-lo outra vez?
Katzen rugiu de risada. Saltei sobre meus pés e me lancei para ele. Clay e Adam investiram ao
mesmo tempo, e os três golpeamos ao Katzen juntos. Suas mãos voaram para lançar um feitiço.
Apanhei suas bonecas, apertando-a tão forte que rompi seus ossos. Katzen ofegou. Clay agarrou sua
cabeça e a girou. O corpo do feiticeiro convulsionou, golpeando ao Adam em seu lado ferido e lançando-
o para trás. Logo Katzen ficou quieto. Clay comprovou seu pulso, esperado que seu coração de detivera,
logo o deixou cair.
—Está morto.
A declaração não veio do Clay, a não ser desde mais à frente do corredor. De Savannah. Demo-
nos volta para ver Leah que ainda estava enfeitiçada, suas costas para nós. Ela não havia se dado volta.
Não tinha visto a luta, incapaz de tirar seus olhos de Leah sem romper o feitiço.
—Está morto - disse outra vez, e compreendi que se dirigia a Leah. —Terminou.
A cara de Leah estava branca. O ultraje e a pena alagaram seus olhos. Um trovão encheu o
quarto. Um forte crack. Logo outro. Um pedaço de gesso voou da parede detrás de mim. As ampulhetas
exploraram. Girei para Savannah enquanto uma cadeira saía da cela do Katzen. Esta golpeou a
Savannah nas costas e ela se encolheu. Precipitei-me para ela, mas não o bastante rápido. Ela caiu para
trás ao chão. Paige e eu a agarramos ao mesmo tempo. O vidro transparente se formava redemoinhos
ao redor de nós, mesclando-se com um torvelinho de pó de gesso que caía. Clay gritou. Logo Adam.
Paige e eu nos inclinamos sobre Savannah, protegendo-a da chuva de granizo de escombros. Então, tão
de repente como tinha começado, deteve-se. E Leah se foi.

***

Clay e eu seguimos o rastro do Leah fora, mas não afastamos antes de que uma voz familiar nos
chamasse. Jeremy saiu dos bosques, Cassandra e Kenneth foram detrás.
—O que aconteceu? - perguntou Jeremy, tocando em nossa roupa coberta por pó e de cristais
quebrados.
Estendendo a mão, ele limpou um pouco de sangue de minha bochecha. Apoiei-me contra ele,
fechando meus olhos para me permitir um breve momento de paz.
—Está bem? - murmurou ele.
—Viva - respondi. —Todos o estamos.
Dava ao Jeremy um relatório completo, que concluía com a fuga de Leah. Embora eu quisesse ir
atrás dela imediatamente, Jeremy rechaçou esse plano. Ele estava mais preocupado por deter o Tyrone
Winsloe e descobrir a qualquer empregado que ficasse. Se Leah estava fugindo, não expor nenhum
perigo imediato. Era um passeio comprido ao telefone mais próximo. Poderíamos detê-la mais tarde.
Agora mesmo tínhamos que nos assegurar de que nenhuma pessoa abandonasse o complexo e levasse
nossos segredos com eles.
—Clay e eu iremos procurar ao Winsloe - disse.
—Irei com vocês - disse Cassandra. —Encontramos só um guarda, e Jeremy se ocupou dele.
Tyrone Winsloe pode ser minha última possibilidade de ter um combate real.
—Elena e eu podemos dirigir isto - disse Clay. —Se quiser algo para fazer, Cassandra, anda ao
segundo piso, e vê se pode encontrar algum alimento quente.
Cassandra só sorriu — Não, obrigado, Clayton. Esperarei ao Winsloe. Ele deveria estar
completamente quente quando terminar com ele.
—Oh, isto me recorda - respondi. —Ainda há um cativo abandonado. Poderia ser um vampiro,
mas não estamos seguros. Poderia olhar, Cassandra? Se ele for um vampiro, pode me dizer se for seguro
liberá-lo. Saberia, verdade?
Ela assentiu com a cabeça — Não há muitos vampiros na América do Norte. Se ele for um de nós,
deveria reconhecê-lo.
Depois de que voltamos para bloco de celas, conduzi a Cassandra abaixo pelo corredor para o
cativo restante. Enquanto andávamos, tratei de idealizar um modo de impedir a Cassandra que
acompanhasse ao Clay e a mim em nossa busca do Winsloe. Não a queria ali. Winsloe era o meu. O
devia por tudo o que tinha feito, todo que tinha ameaçado fazendo. Sua morte era um assunto pessoal,
algo que eu compartilharia só com o Clay.
Chegamos à cela antes que idealizasse um plano. Cassandra jogou um olhar ao homem dentro e
piscou. Com força.
—Conhece-o? - Perguntei.
Ela fez uma pausa, parecendo discutir se havia que mentir — Ele é um vampiro.
Interpretei isso como que significava que o conhecia realmente. —É perigoso?
—Não realmente. Tampouco muito útil. Eu não teria nenhuma pressa em liberá-lo. Ele só
estorvará. Podemos voltar mais tarde.
Ela deu a volta para ir-se. Agarrei seu braço. Sua pele era fresca ao toque, como alguém que
tivesse passado o dia em um escritório com ar condicionado.
—E se algo passa e não podemos liberá-lo mais tarde? - Respondi. —Ou é uma possibilidade que
quer tomar, como quando eu estava cativa?
As palavras saíram de minha boca antes que eu as compreendesse. Cassandra se deu volta e
estudou minha cara.
—Então Clayton te contou - disse ela. —Eu teria pensado que ele quereria cuidar seus
sentimentos. Não é como isto, Elena. É um lobisomem. Um guerreiro. Um guerreiro brilhante, criativo.
Não necessitou minha ajuda para escapar. Não havia nada que pudesse ter feito.
—E outros? Aconselhou-os para que não me ajudassem. Que me deixassem apodrecer aqui.
Cassandra suspirou —Não foi assim, Elena.
—E a coisa com o Clay? Fazendo-lhe um convite antes de que meu lado da cama estivesse frio?
—Eu não o chamaria ‘um convite’. Clayton é um homem muito intrigante. Possivelmente eu
estava um pouco muito intrigada, mas dificilmente pode me culpar por isso. Agora está de volta. Ele é
seu homem. Isso respeito. Não tem que preocupar-se por mim.
Sorri, ensinando os dentes — Confia em mim, Cassandra, não estava preocupada - Joguei uma
olhada ao homem na cela. —Mas estou preocupada com este pobre tipo. Deixá-lo-ei livre.
Cassandra empalideceu, logo rapidamente recuperou sua calma —Fá-lo.
Ela deu a volta e se encaminhou pelo corredor, caminhando mais rápido do que eu a tinha visto
alguma vez mover-se. Fugindo da cena? Hmmm.
Abri a porta da cela. O homem deu a volta e me dirigiu uma olhada cautelosa.
—Sim? - disse ele, cortês, mas frio.
—Olá, sou Elena - Estendi minha mão. —Seu resgate do dia.
—Oh? - Ainda frio. Um arqueamento de sobrancelhas. Nenhum esforço para sacudir minha mão.
—Quer sair? - Perguntei.
Ele sorriu, um pouco de calor descongelando a frieza —Realmente, sentia-me completamente
cômodo aqui, mas se insistir, suponho que poderia me arrancar.
—Temos a uma velha amiga tua conosco. Ela está impaciente por ver-te.
—Amiga?
—Cassandra... não estou segura do sobrenome. Cabelo castanho avermelhado. Olhos verdes.
Vampiro.
—Cassandra? - Seus olhos se estreitaram. —Onde?
—Direito por esse corredor.
Apareci pela porta. O homem passou por diante de mim e partiu para o corredor.
—Cassandra! - gritou.
A metade do caminho do corredor, Cassandra deu a volta. Lentamente.
—Aaron! - chamou ela. Seus lábios se estiraram em um amplo sorriso quando se devolveu para
a nós. —Meu Deus, realmente é você? Quanto tempo passou? Todos estes anos e já sabe, não trocaste
nem sequer um pouco.
—Muito gracioso - disse Aaron. —Agora, Cass...
Ela juntou suas mãos com as suas e lhe deu um beijo na bochecha. —Não posso acreditar isto.
Quando foi a última vez que te vi? Mil novecentos e setenta, verdade? Filadélfia?
—Mil novecentos e trinta e um, Romênia - grunhiu Aaron, soltando do abraço de Cassandra. —
Quinta parada de nossa Magnífica Viagem. Poderíamos ter ido a Praga, Varsóvia, Kiev, mas não, tinha
que te deter em algum remanso romeno para divertir jogando a Drácula com os camponeses. E estou
seguro que teria sido muito divertido se não tivesse sido encerrado com chave em um porão de igreja
durante três dias e quase te afogasse em uma tina de água bendita.
—Isso foi um engano - murmurou Cassandra.
—Engano? Você me abandonou ali!
—Ela te abandonou? - Respondi. —Imaginem isto.
—Oh, não - disse Aaron, seu olhar aborrecido em cima de Cassandra. —Ela não só me
abandonou. Ela me entregou. Sua pequena travessura se descontrolou, e quando a multidão veio, ela
se salvou me entregando.
—Não foi assim - disse Cassandra.
—Estou segura de que não foi - respondi. —Bem, suponho que vocês dois têm muito que
conversar. Segue adiante, Cassandra. Clay e eu podemos dirigir ao Winsloe.
Quando me afastei, Cassandra tratou de me seguir, mas Aaron agarrou seu braço. Eles ainda
estava discutindo enquanto Clay e eu deixávamos o bloco celas célula para procurar o Winsloe.

VINGANÇA
O cão estava no canil.
Cheiramos ao Winsloe logo que estivemos a alguns metros fora do edifício. Exploramos o
perímetro enquanto sussurrava meu plano ao Clay. Antes que terminasse, ele apanhou meu braço, me
detendo.
—Está segura disto, querida? - perguntou.
—Oh, estou segura. Você não?
Clay me atirou mais perto e juntei seu rosto com o meu. —Estou seguro de que quero fazê-lo, e
sou estou malditamente seguro de que o bastardo o merece. Certamente é justiça poética. Mas é
realmente o que quer?
—É o que quero.
—Tudo bem, então. Se houver algum problema, apesar de tudo, matá-lo-ei.
—Não, eu o farei.
Clay vacilou. —De acordo, querida. Se tivermos uma opção, ele é teu. Mas não me conterei se
estiver em perigo.
—De acordo.
Dirigimo-nos para a canil.

***

Winsloe estava sentado na parte de trás do canil. Suas costas contra a parede, os joelhos
elevados, a pistola treinada sobre a porta. Uma vez que tivemos determinado sua posição observando
atentamente através das poeirentas janelas, escolhemos um curso de ação. Obviamente, entrar pela
porta era inadmissível. Não somos antibalas. Já que a entrada estava à esquerda do Winsloe, selecionei
a janela mais próxima a sua direita. Clay me levantou, e com cuidado desenganchei os fechos, tirei o
vidro, e o passei ao Clay. A abertura tinha apenas meio metro quadrado, muito pequena para o Clay,
então teria que ir sozinha. Ele me levantou mais alto, e coloquei meus primeiro pés, me esforçando
para ouvir o Winsloe abaixo, preparado para gritar que me tirasse se ele se movia. Não o fez. Uma vez
que meu torso passou pela janela, agarrei o batente com ambas as mãos, balancei-me de lado, e saltei,
aterrissando na cabeça do Winsloe e seus ombros. Ele gritou. Agarrei sua arma e a joguei sobre a perto
de arame da jaula contigua.
—Um grito agradável, Tyrone - disse enquanto limpava a palha de meu jeans. —Muito macho.
Clay entrou pela entrada — Me pareceu mas bem um chiado, querida.
Winsloe se girou para contemplar ao Clay.
—Sim, este é Clayton - disse. —Se vê bastante bom para um tipo morto, né?
Enquanto Winsloe lutava para ficar de pé, Clay avançou a pernadas, agarrou-o pelo pescoço,
pegou-o de repente contra a parede, e o revisou.
—Desarmado - disse, deixando cair ao Winsloe.
—O que? - Respondi. —Nenhuma granada? Nenhuma arma? E chama a você mesmo de um
caçador.
—Quanto quer? - disse Winsloe. Sua voz era estável, debruada mais com cólera que medo. —
Qual é o preço de uma vida por estes dias? Um milhão? Dois?
—Dinheiro? - Ri-me. —Não necessitamos o dinheiro, Tyrone. Jeremy tem em abundância e ele é
mais que complacente na hora de compartilhar.
—Um valor nítido de talvez dois milhões de dólares? - Winsloe soprou. —Isso não é nada. Aqui
está o trato. Apanharam-me em um momento honrado. Quero pagar um objeto. Dez milhões.
Clay franziu o cenho. —O que é isto? Nunca disse nada sobre um trato, querida. Prometeu-me
uma caça.
—Sinto muito, Ty - disse. —Clay tem razão. Prometi-lhe uma caça, e se não o agrado, zangar-se-
á durante dias.
—Caça? - A agitação cintilou nos olhos do Winsloe, mas rapidamente a deslocou. —Querem uma
caça? Bem. É justo. Como respondi, apanharam-me. Aqui está o trato, então. Deixem-me conseguir
minha equipe e teremos uma verdadeira caça. Se os mato a ambos, ganho. Vocês me deixam esquivar
e ganharão quinze milhões.
—O homem tem bolas, querida - disse Clay. —Tenha que lhe dar isso - Ele devorou ao Winsloe
pela parte frontal de sua camisa. —Quer fazer um trato? Aqui está o trato. Deixamos-lhe ir. Corre por
sua vida de merda. Consegue sair do campo de jogos e lhe deixamos ir. Apanhamos-lhe primeiro,
matamos-lhe. De acordo?
—Isso não é justo - chispou Winsloe.
Clay jogou sua cabeça atrás e riu. —Ouve isto, querida? Não é justo. Não eram essas suas regras?
As regras que planejava usar se caçava a Elena. Ela seria liberada e caçada por uma equipe de
profissionais treinados. Se ela escapava do campo de jogos, viveria. De outra maneira, morreria. Perco-
me algo?
—Isto não é o mesmo - disse Winsloe, fulminando-o com o olhar. —Não sou um lobisomem. Um
humano não pode lutar sem armas.
—E esses armários de equipamento que tem aí? - Respondi.
—Estão fechados com chave.
—Bem - suspirei. —Vou fazer o ‘justo’, então. Não o quereríamos muito fácil. Sem desafio não
há diversão.
Caminhei à jaula contígua e recolhi a arma. Ao examiná-la, entendi como abrir a câmara e atirei
as balas ao chão. Então voltei para o Winsloe e lhe dava a arma vazia.
—Que demônios se supõe que tenho que fazer com isto? - disse.
Clay sacudiu sua cabeça. —Acreditei que este tipo supostamente era brilhante. Pensemos a
respeito disto. Temos que mudar formas para te caçar. Isto significa que estaremos ocupados um
momento. Não vamos deixar-te com uma arma carregada para que possa nos disparar enquanto
mudamos.
—Poderia nos encontrar e nos golpear na cabeça com a pistola vazia - disse. —Mas eu não o
recomendaria. Faremos a mudança por turnos. Se se aproximar de nós, mataremos-lhe. Enquanto
estamos ocupados, terá tempo para fazer algo. Quanto tempo? Bem, não vou dizer-te isso. O que te
direi é que terá tempo para fazer algo. Pode correr por sua vida. Ou pode voltar para complexo e
encontrar munição para essa arma. Ou pode correr ao armário de equipe mais próxima e tratar de
acionar a fechadura. Ou pode ir à garagem e ver se pode conseguir que um dos veículos inabilitados
funcione.
—Isso é - disse Clay. —O explicamos detalhadamente para ti. Bastante justo?
Winsloe olhou fixamente ao Clay. —Vinte milhões.
—Vinte segundos - disse Clay.
—Vinte e cinco mil…
—Dezenove segundos.
Winsloe soltou sua mandíbula, olhou desde o Clay para mim, logo saiu do canil.
—Ele tomou isto notavelmente bem - disse quando Winsloe se foi.
—Decepcionada? - perguntou Clay.
—Devo confessá-lo, tinha esperado que ele se urinasse em suas calças. Mas não é tão mau. Ao
menos o tentará. Mais desafio.
Clay sorriu abertamente —Mais diversão.

***

Não fomos bastante estúpidos para mudar no canil. Fomos fora e encontramos uma clareira a
aproximadamente vinte metros no bosque. Clay mudou primeiro enquanto montava guarda. Logo
trocamos. Quando terminei, voltamos para o canil, onde recolhi o aroma do Winsloe e o segui.
Winsloe não tinha voltado para complexo. Tampouco tinha tentado ir à garagem. Ele tinha ido
diretamente aos bosques, correndo por sua vida ou entretendo-se com a lastimosa esperança de poder
abrir à força a fechadura em um abrigo de equipamentos antes que o alcançássemos. Pior ainda –ao
menos, pior para o Winsloe –tinha tomado o caminho principal. Se ele tinha esboçado seu próprio
rastro pelo mato, nos teria feito ir mais lentos. No caminho amplo, poderíamos correr a toda
velocidade, lado a lado. O qual fazíamos. Havia pouca necessidade de precaução. Com apenas uma
pistola vazia, o pior que Winsloe poderia fazer era esconder-se nos arbustos e esperar a que nós
passássemos correndo por diante. Não era exatamente causa de grave preocupação.
Passamos a torre de vigilância. A metade de caminho para liberar o ponto dois apanhei uma
baforada a metal. Minha memória voltou para essa caça inicial com o Lake, e recordei o seguinte sinal:
um armário de equipamento. De modo que esse era o plano do Winsloe? A menos que ele tivesse
prática em forçar fechaduras, ele teria uma grande surpresa. E nós teríamos uma caça muito curta.
Dobrei pela esquina e vi o armário diante. Nenhum sinal do Winsloe. Rendeu-se e tinha
deslocado? Quanto mais me aproximava do abrigo, notei algo na terra. Óculos de visão noturna. Ao
lado deles, um cartão de munições. E binóculos. Patinei para me deter. As portas do armário estavam
abertas. A luz do sol cintilava de uma chave metálica na fechadura. Winsloe tinha tido uma chave desde
o começo, ou sabia onde encontrar uma. Agora estava armado com Deus sabe que tipo de artilharia.
Enquanto contemplava o desastre, Clay me golpeou o ombro, me lançando contra os arbustos.
Uma ronda de fogo rompeu o silêncio. Clay me cravou mais longe paro mato. Como não me movi o
bastante rápido, ele mordeu minha anca. Meti-me nos arbustos, com o ventre na terra. Clay me seguia.
Outra ronda de fogo automático regou balas em um amplo arco por cima de nossas cabeças. Em
qualquer lugar que ele se escondesse, Winsloe não podia nos ver e apontava pelo som. Reduzi a marcha
a uma velocidade lenta, escapando silenciosamente através dos ramos. Quando estivemos fora de
alcance, encontrei uma espessura e me detive. Clay avançou sigilosamente atrás de mim. Ele sorveu ao
longo de meu flanco, até meu pescoço, tirando o sangue. Quando terminou, revisei-o. Tínhamos
escapado ilesos... até agora. Quantas armas tinham Winsloe agora? Quanta munição? Alguma granada
ou outras surpresas? Quando eu havia dito que queria um desafio, isto não era no que tinha estado
pensando.
Nos aninhamos na espessura, nem tanto nos ocultando a não ser ficando quietos e seguros
enquanto encontrávamos a posição do Winsloe. Depois de uns minutos, Clay deu uma cotovelada em
meu ombro e assinalou ao nordeste com seu focinho. Levantei meu nariz, mas o vento soprava desde
o sul. Clay moveu as orelhas. Escuta, não cheire. Fechei meus olhos, concentrei-me, e ouvi um débil
arrasto, o som de tecido roçando contra tecido. Winsloe ia ao nordeste, ao menos a trinta metros de
distância, de volta ao armário de equipe. Julgando pelo som, ele arrumava sua equipe ou trocava a uma
melhor posição de vantagem, mas ficava perto de um ponto. Perfeito. Indiquei ao Clay que deveríamos
nos dispersar e circular. Ele soprou brandamente e saiu da espessura. Quando saí, ele se tinha ido.
Pelo aroma do Clay, eu podia dizer que ele foi pela esquerda, de modo que fui à direita. Dando
ao Winsloe um amplo espaço, arrastei-me pelos arbustos até que calculei que estava justo ao norte
dele. Então reduzi a marcha, afundei-me, e me arrastei para o sul. Agora o vento estava a meu favor,
fazendo voar o aroma do Winsloe a minhas fossas nasais com cada fôlego. Eu deveria ter enviado ao
Clay por este caminho. Seu sentido do olfato era mais pobre que o meu e o vento lhe teria ajudado.
Não importava. Clay se dirigiria bem sem a ajuda suplementar. Ele sempre o fazia.
Outros dez metros pés me aproximaram o suficiente para ver brilhos da jaqueta cinza do Winsloe
enquanto se movia. Farejando a relva, cheirei procurando o Clay e encontrei seu aroma. Seguindo-o,
corri entre as árvores e recolhi a débil cintilação da pele dourada contra o mato apagada. Clay estava
mais perto do Winsloe que eu, por isso me deslizei para frente até que tive arrumado a diferença. Agora
eu poderia empurrar meu focinho por cima de um arbusto e ver o Winsloe claramente. Ele estava de
coque em um claro, as mãos apertadas ao redor de uma arma automática grande, seus olhos olhando
de esquerda a direita. Enquanto observava, ele trocou sua posição, girando ao sul, contemplando o
bosque, logo girando ao norte e observando desde esse ponto de vista, nunca deixando suas costas a
nenhuma direção muito tempo. Preparado. Muito preparado. Enquanto ele se movia, revisei o claro
procurando armas, mas só podia ver a pistola. Estava segura que ele tinha escondido mais,
provavelmente dentro ou sob sua jaqueta.
Enquanto olhava, ouvi um grunhido suave a minha esquerda. Era Clay, me advertindo que estava
ali, antes de aparecer de repente a meu lado e me assustar. Quando me dava volta, ele caminhou pelo
último grupo de árvores entre nós. Isto não era parte do plano. Resfoleguei e lhe franzi o cenho. Ele
sacudiu sua cabeça. Com um olhar, eu sabia o que queria dizer. O jogo tinha terminado. Winsloe estava
pesadamente armado, levando as probabilidades muito longe em seu favor. Tempo para uma morte
rápida. Clay fez um movimento girando seu focinho, logo o sacudiu para o Winsloe. Outra vez, entendi.
Usaríamos o rotineiro habitual, aborrecido, mas confiável. Clay rodearia o sul outra vez. Eu assustaria
ao Winsloe e o conduziria às mandíbulas do Clay. Exalei um suspiro canino e esperei até que Clay
tomasse posição. Mas ele não partiu. Em vez disso cravou meus pés e fez gestos desde o Winsloe a
mim. Ah, uma mudança de rotina. Clay rodearia ao Winsloe pro sul e o conduziria a minhas mandíbulas.
Ao princípio, pensei que Clay era considerado, me concedendo a morte que eu tinha pedido. Então
compreendi que ele queria que trocássemos papéis porque assustar ao Winsloe seria mais perigoso
que matá-lo. Bem, suponho que ele ainda era considerado, não querendo que eu voasse em pedacinhos
ou algo assim. Eu teria discutido o ponto, mas queria matá-lo a toda custo.
Clay desapareceu no bosque. Rastreei o sussurro de seus passos. Quando ele estava
parcialmente ao redor do esconderijo do Winsloe, Winsloe de repente ficou de pé. Congelei-me. Tinha
ouvido o Clay? Tensa para o ataque, escutei. Tudo o que ouvi eram os gorjeios normais e os rangidos
do bosque. De todos os modos, se Winsloe apontava a arma na direção ao Clay, eu sairia dos arbustos
em um segundo, toda precaução ia ao demônio. Winsloe se endireitou, fez rodar seus ombros em uma
flexão, logo olhou às árvores, estirando o pescoço e contemplando o céu. Estaria Clay em posição já?
De ser assim, este seria o momento perfeito para atacar. Mas não cheirei ao Clay na brisa, por isso
ainda devia estar caminho ao sul. Maldição! Winsloe esfregou a parte de atrás de seu pescoço, logo
comprovou sua arma, deu um último olhar ao redor, e saiu do claro, dirigindo-se ao oeste.
Aproximei-me da clareira agora deserto. Quando alcancei o perímetro, vi o Clay no lado sudeste,
parcialmente escondido nos arbustos. Notando-me, ele se retirou e desapareceu. Segundos mais tarde,
reapareceu a meu lado. Olhei-o. Agora o que? Nosso objetivo estava em movimento. Assustá-lo e
conduzi-lo na direção apropriada seria dez vezes mais difícil. Uma emboscada seria nossa melhor opção,
mas isso significava rodear ao Winsloe, conjeturar seu caminho, e encontrar um lugar bem escondido
para esperar. Bastante difícil inclusive quando conhecíamos o terreno, próximo ao suicida dado que
não o fazíamos. Pelo olhar nos olhos do Clay, ele tampouco podia idealizar um plano decente.
Finalmente soprou, esfregou-se contra mim, logo avançou em direção ao Winsloe. Por ele.

***

Emergimos de uma clareira a um espesso pedaço de bosque. Diante, a jaqueta do Winsloe


pendurava entre as árvores. Movendo-nos com cuidado para evitar grupos ruidosos de folhas mortas,
arrastamo-nos atrás dele. Ele não deu a volta. Movia-se rápido. Enquanto agarrávamos velocidade, o
bosque se espessou. A última luz de sol da tarde perfurou o grosso dossel acima, jaspeando25 a terra
com manchas de luz. O bosque terminava. Caminhamos a um galope lento. Winsloe desapareceu em
uma inundação de luz do sol. Uma clareira. Uma grande clareira. Cheirei o ar. A água. Vínhamos ao rio.
Joguei uma olhada ao Clay. Ele grunhiu, me dizendo que cheirava a água e não estava preocupado.
Winsloe pensava que podia nos perder no rio? Nadando ou empapando seu rastro? Isso não
funcionaria. Podíamos nadar só bem, mas indubitavelmente muito melhor que Winsloe. Quanto à
perda de seu rastro, era certo que não podíamos rastreá-lo pela água, mas estávamos tão perto que
não importava. Inclusive se o perdíamos de vista, eu poderia recolher seu aroma no ar.

25
Pintar imitando salpicos e estrias do jaspe.
Winsloe caminhou pelo bordo da água, detendo-se, e girando rápido, movendo sua arma. Não
vendo nada detrás dele, deu volta ao rio, olhou-o de cima abaixo, logo começou a avançar para o banco.
Clay soprou com impaciência. Logo que Winsloe esteve a dez metros do bordo do bosque, não nos
atrevemos a nos aproximar ou ele teria tempo para disparar antes que o derrubássemos. Se ele
caminhasse à água e começasse a andar, poderíamos nos mover junto a ele, ficando nas árvores até
que o bosque se espessasse mais perto da ribeira, nos podendo aproximar o suficiente para atacar.
Winsloe finalmente deixou de passear. Ficou de pé ao lado de um enorme carvalho, jogou sua
cabeça atrás, e sombreou seus olhos para elevar a vista. Então ele agarrou o ramo mais baixo e deu um
puxão experimental. Quando lançou a arma sobre seu ombro, Clay saiu do bosque. Winsloe não o
notou. Com suas costas para nós, ele agarrou o ramo outra vez e se elevou. Precisamente então
compreendi o que Winsloe fazia. Subia à árvore. De acordo, às vezes sou um pouco torpe. Para quando
saltei de nosso esconderijo, Winsloe estava a cinco metros de terra. Ainda correndo, Clay ficou de coque
e saltou. Só então Winsloe o viu. Ele jogou uma olhada sobre seu ombro uma fração de segundo antes
que os dentes do Clay se afundassem em seu joelho. Winsloe uivou. Deu patadas com sua perna livre,
golpeando ao Clay no flanco do crânio. Clay se pendurou. O sangue orvalhou seu focinho enquanto
Winsloe pendurava, gritando e lutando para manter seu agarre a árvore. Eu estava ainda a vários
metros de distância, correndo a toda velocidade. Eu podia ver sulcos profundos na coxa do Winsloe
onde os dentes do Clay tinham rasgado sua perna até o osso. Enquanto a carne se rasgava, Clay
começou a perder seu apertão. Dançou sobre suas pernas, não atrevendo-se a liberar o tempo
suficiente ao Winsloe para conseguir um afeto fresco. Cobri os últimos centímetros e saltei à perna livre
do Winsloe. Ele chutou exatamente no momento correto, me alcançando no olho. Grunhi e retrocedi.
Quando me pus sobre minhas patas, o agarre do Clay escorregou até sapato do Winsloe. Antes que
pudesse saltar sobre o Winsloe outra vez, seu sapato se deslizou e Clay caiu para trás. Winsloe balançou
suas pernas fora de alcance, subindo ao seguinte ramo, e agarrou sua arma. Escapamo-nos. Uma ronda
de fogo soou, mas estávamos atrás, escondidos no bosque outra vez.
Detivemo-nos detrás de um espesso grupo de árvores. Clay me fez gestos para ficasse ali, logo
girou e se devolveu para conseguir uma melhor perspectiva da situação. Não o segui, não porque Clay
me houvesse dito que não –eu nunca tinha sido boa recebendo ordens– mas sim porque era mais
seguro que só um de nós se arriscasse. Tanto como lamentava admiti-lo, Clay era o melhor caçador. Se
eu tratasse de ajudar, só triplicaria a probabilidade de fazer ruído e nos pôr a tiro.
Winsloe subindo a uma árvore expor um problema. Um grande problema. A próxima vez, teria
muito mais cuidado sobre pedir um desafio. Eu sabia que Winsloe era preparado, mas não tinha
esperado que se sentisse tão afresco sob pressão. Considerando o que eu conhecia do Winsloe –essa
crescida presunção mascarando um ego facilmente contundido – eu tinha pensado que ele entraria
em pânico quando compreendesse que sua vida estava em perigo. Talvez ele não pensasse que o
estava. Talvez tudo isto ainda era um jogo para ele. Infelizmente para nós, era um jogo que ele ganhava.
Falando de egos machucados. Primeiro, tinha-nos enganado e se armou. Agora tinha subido a uma
árvore, um lugar ao qual não o podíamos seguir. A árvore não só o provia de segurança, mas também
era uma posição vantajosa e perfeita para disparar. Como poderíamos sequer nos aproximar...
O bosque explorou em uma rajada de fogo. Escapei-me de meu esconderijo, logo me detive
metade de corrida. Eu não deveria ir aí. Estava segura aqui. Clay estava seguro comigo aqui. Mas o que
tinha passado? Disparava Winsloe cegamente? Ou tinha visto o Clay?
Outra ronda de rápidos disparos. Logo silêncio. Fiquei ali, minhas pernas tremendo enquanto
escutava. Quando Winsloe disparou outra vez, quase saltei de meu lugar. O fazia. Arrastei-me para o
rio. Mais tiros. Detive no bordo do apagar, afundei-me, e me arrastei para frente até que pude ver o
que acontecia. Diante estava o velho carvalho com o Winsloe pendurado quase a dez metros nele,
observando o sul, a arma preparada. Além disto, a clareira estava vazia. Vazia e tranquila. De repente
um rangido de folhas rompeu o silêncio. Balancei minha cabeça para o norte. Um brilho de ouro passou
pelas árvores. Winsloe deu a volta e fez fogo, disparando ao ruído. Clay já se foi faz muito. Um
desperdício de balas. Compreendi qual era a idéia. Fazer que Winsloe esvaziasse sua arma disparando
a fantasmas. Um bom plano, e um no que eu deveria ter pensado... finalmente.
Pensei me retirar de meu esconderijo, mas não podia fazê-lo. Eu sabia que seria mais seguro
deixar ao Clay fazer isto sozinho, mas me voltaria louca de preocupação se não podia ver o que
acontecia. Dentro de pouco, Clay me cheiraria ali. Ele veio e tratou de me mandar mais profundo no
bosque, mas eu não me deslocaria. Atirei a terra, pus minha cabeça sobre minhas patas dianteiras, e
olhei fixamente o claro. Ele captou a idéia. Eu tinha que olhar estar segura de que ele estava a salvo.
Ele se conformou com uma rápida esfregação de nariz, logo agarrou as costas de meu pescoço com
suas mandíbulas, não mordendo a não ser cravando minha cabeça, me dizendo que ficasse aqui e não
me levantasse. Grunhi meu assentimento. Ele roçou seu focinho contra o meu, logo desapareceu no
bosque.
Winsloe esvaziou sua automática rapidamente, passando várias recargas de munições. Então
tirou uma pistola de sua jaqueta. Teve mais cuidado agora, menos complacente em gastar balas a meros
ruídos no bosque. Então Clay teve que ser mais audaz. Ao princípio, só tinha ido perto do bordo da
clareira, permitindo ao Winsloe ver um brilho de pele. Finalmente, entretanto, nem sequer isso
funcionava e teve que entrar como uma flecha ao claro. Ao chegar esse ponto, meus olhos estavam
firmemente fechados. Meu coração palpitou tão forte que quase esperei que Winsloe o ouvisse.
Finalmente, entretanto, esteve terminado. O último tiro saiu. Depois de vários minutos, Clay saiu do
bosque, ficou ali, a clara vista, os músculos esticados, e esperou. Winsloe lançou a pistola vazia para ele
e blasfemou. Clay se aproximou mais, lentamente, apresentando o objetivo perfeito se Winsloe tivesse
outra arma escondida sob sua jaqueta. Nada. Winsloe estava preparado.
Agora eu tinha um plano. Uma boa coisa, também, ou meu ego teria estado ainda mais
machucado. Esta era minha caça, e eu não tinha feito quase nada, não tinha feito nenhum projeto,
tomado nenhum risco. Era meu turno. Enquanto Clay se assegurava que Winsloe estava desarmado,
arrastei-me mais longe no bosque, encontrei um lugar apropriado, e comecei minha mudança.
Menos de dez minutos mais tarde, saí ao bordo do claro e assobiei. A cabeça do Winsloe se
elevou e ele observou o bosque.
—Ouve isso? - chamou o Clay. —Alguém vem. Suponho que não matou a todos meus guardas
depois de tudo.
Ele se inclinou sob o ramo da árvore e olhou atentamente para baixo, mas Clay se foi. Segundos
mais tarde, Clay saiu pelo perímetro do bosque e me buscou. Seus olhos me fizeram uma pergunta.
Queria que ele trocasse também? Sacudi minha cabeça, ajoelhei-me, e sussurrei meu plano. Enquanto
falava, ele se aproximou, sua pele roçando contra minha pele nua. Sem pensá-lo, arrastei meus dedos
por sua espessa pele. Quando terminei, compreendi o que fazia e me detive. Meu rosto se esquentou.
Em estranhas ocasiões quando a situação era à inversa, e eu era um lobo enquanto Clay era humano,
perguntava-me que aconteceria ele me tocava. Era... bom, muito estranho. Esta vez, quando me retirei,
Clay me deu um golpe na mão e lambeu entre meus dedos, me dizendo que estava bem. E o estava.
Clay era Clay não importava que forma tivesse. Outro pequeno passo para a aceitação de minha própria
dualidade.
—Sonha bem? - Sussurrei quando tive terminado de lhe explicar meu plano.
Ele inclinou sua cabeça, considerando-o, logo bufou seu acordo.
Sorri abertamente — Não pode discutir de todos os modos, verdade?
Ele soltou um grunhido fingido e beliscou minha mão, logo me mordiscou os pés. Pus-me de pé
e nos dirigimos para o carvalho.

***

Quando saí do bosque, Winsloe tinha baixado um pouco, ficando a uns metros em cima da terra,
obviamente pensando que Clay se escapou, mas não disposto a descender completamente até que a
ajuda chegasse. Quando me ouviu chegar, chamou, — Aqui! - então viu quem era. A desilusão revoou
através de sua cara. Não o temor, só desilusão. Vendo o Clay a meu lado, subiu ao seguinte ramo.
—Quanto tempo tem planejando ficar lá em cima? - chamei.
—Quanto seja necessário Seus olhos vacilaram sobre meu corpo nu, e ele dispôs um sorriso sem
senso de humor. — Espera me atrair abaixo?
—Se tivesse estômago para te seduzir eu o teria feito enquanto estava apanhada nessa cela.
Sua boca se apertou. Assombroso. Inclusive espreitado por dois lobisomens, Winsloe estava mais
preocupado por seu orgulho que por sua vida. Avancei até a base da árvore e agarrei um ramo. Ele só
me olhou. Ainda era um jogo para ele.
Balancei-me no primeiro ramo. Ele subiu mais alto. Fui ao seguinte ramo. O mesmo fez ele.
Debaixo nós, Clay rodeava a árvore. Dois metros mais e o pé do Winsloe escorregaria. O ramo que ele
sustentava cedeu a seu passo e ele se agarrou ao tronco da árvore procurando apoio. Depois de
estabilizar-se, observou os ramos restantes acima.
—Essas não sustentarão seu peso - disse. —Mas não tenha minha palavra como segura.
Ele não o fez. Ele agarrou um ramo e atirou. Rompeu-se em sua mão. Ele vacilou, logo baixou ao
ramo sob seus pés até que se sentou nela. Quando me aproximei o suficiente, ele me deu patadas.
Como se eu não tivesse visto que isso viria. Esquivei-o facilmente e agarrei sua perna ferida. Ele ofegou
e se sacudiu para trás, quase caindo do ramo.
—Se quer lutar contra mim, adiante - disse quando subi a seu ramo. —Mas deveria ter uma arma
de reposto baixo essa jaqueta se espera ganhar.
Ele não disse nada. Vacilei no ramo, conseguindo meu equilíbrio. Winsloe ficou quieto, como se
resignasse a isto. Então sua mão se estendeu e golpeou meu tornozelo. Agarrei o ramo de acima e me
estabilizei. O ramo baixo nós se moveu.
—Não faça isso - respondi. —Se este ramo se romper, posso saltar a terra. Inclusive se você
sobreviver à queda, não sobreviverá ao que espera abaixo.
Winsloe murmurou algo e fez um movimento para acomodar-se, logo fechou de repente ambas
as mãos em minha coxa. Agarrei seu pescoço, arrastei-o até seus pés, e o golpeei no tronco da árvore.
—Quer lutar? - Respondi. —De acordo, vamos lutar.
Ele não se moveu. Seu olhar estalou para baixo. Golpeei sua cabeça contra a árvore.
—Pensando golpear minhas pernas? Não te incomode. Fá-lo e ambos caímos. Agora, se por
acaso não o notou, não trato de te matar. De fato, não pus uma mão sem provocação em ti, verdade?
Uma tênue luz de astúcia iluminou seus olhos. —Quer negociar.
—Talvez.
—Quinze milhões.
—Pensava que estávamos nos vinte e cinco?
—Vinte então.
—Ah, então assim é como trabalha? Uma vez que mostro algum interesse, a oferta diminui. Um
verdadeiro homem de negócios.
Sua boca se apertou. —Bem. Vinte e cinco.
Pretendi considerá-lo. —Já sabe, Clay tem razão. Não necessitamos o dinheiro. Temos o
bastante. Desejar mais seria avaro.
—Trinta milhões.
Agarrei-o pelo pescoço da camisa e o balancei pelo flanco. Seus pés brigaram por um lugar onde
pisar, encontrando só ar. Troquei de lado e descansei minhas costas contra a árvore. Quando ele me
agarrou, empurrei-o à longitude do braço.
—Oferece mais - respondi.
Sua boca se apertou. Deixei-o escorregar às gemas de meus dedos. Ele se balançou, seus quatro
membros sacudindo-se, convulsionando, repartindo golpes a destro e sinistro. Comecei a liberar meu
apertão.
—Cinquenta milhões - disse.
—Não é bastante – Deixei-lhe escorregar outros centímetros. —Ofereça-Me tudo.
—O que?!
Liberei uma mão de sua camisa.
—De acordo, de acordo! Bom!
Agarrei-o e o estabilizei. Ele tragou ar, logo jogou uma olhada oculta à terra e se estremeceu.
—Vamos clarear isto - respondi. —O que é exatamente o que oferece?
—Meus imóveis. Tudo.
—Seus bens pessoais? Não é bastante bom. Quero suas posses comerciais também. Cada dólar,
cada ação, até a última coisa que possua. Ofereça-me isso.
—De que viveria eu?
—Começaria de novo. É um tipo preparado. Poderia ganhar a vida. Ao menos estará vivo. É mais
do que podemos dizer do Lake e Bryce, verdade?
—Dar-te-ei minhas posses em tudo, inclusive o Fogo do Prometeu.
Deixei-o ir. Ele chiou, seus braços batendo as asas. Antes que cair, agarrei-o pela camisa, levantei-
o, e me inclinei.
—Quer tentá-lo outra vez? - respondi.
Sua camisa se rasgou, só uns centímetros, mas o som do rasgado soou no silêncio como uma
cadeia.
—Tudo - disse. —Maldita seja. Toma tudo.
—Porque nada é pior que morrer, verdade? Diga-me, Ty, O que teria feito se Armem Haig te
tivesse feito a mesma oferta? Prometido tudo o que ele tinha? Ter-lhe-ia deixado viver?
A camisa do Winsloe se rasgou outro centímetro. Ele me contemplou, os olhos abertos, seus
lábios movendo-se silenciosamente.
—Me deixe responder isto por ti, Ty. É ‘não’. Ele poderia te haver devotado milhões e você ainda
o teria matado. Por quê? Porque sua morte valia mais que tudo o dinheiro que ele podia dar. Os poucos
segundos de diversão que sua morte oferecia valiam mais.
—Por favor - disse. —Por favor, vou A...
—Cair? Hah. Muito fácil. Você cairá. Clay arrancará sua garganta. Jogo terminado.
—Isto não é um jogo de merda!
Eu cavei minha mão detrás de meu ouvido —O que é isto, Ty? Acredito que não te ouvi.
—Respondi que este não é um jogo de merda. É minha vida!
—Não, é sua morte. Hey, uma idéia. Não é um jogo, a não ser um programa de concurso. Esta É
Sua Morte. Agora, tenho que confessá-lo, sou um pouco jovem para ter visto Esta É sua Vida. Só
conheço o título pelo que terei que improvisar. Cruzá-lo com algo que me recordo ter visto de menina.
Vamos fazer um trato.
Tirei-o do ramo e lhe ajudei a conseguir seu equilíbrio, mantendo minhas mãos em sua camisa.
—Você- você quer negociar - Ele limpou o suor de sua cara e tragou em voz alta. —Bem. Bom.
Vamos negociar.
—Negociar? Infernos, não. Farei um trato quanto ao método de sua execução, Ty. Vai morrer.
Isso é um fato. A única pergunta é como?
—N-não. Não. Espera. Vamos falar…
—Sobre o que? Ofereceu-me tudo o que poses. Não tem nada mais para oferecer, verdade?
Ele me olhou fixamente, sua boca movendo-se silenciosamente.
—Ofereceu tudo. Rechacei essa oferta. Então vai morrer. Por quê? Porque finalmente vejo seu
ponto de vista. Convenceu-me. Ver alguém morrer pode valer mais que tudo o dinheiro do mundo.
Seu rosto foi drenado de sangue, abria e fechava a boca como um pescado em terra.
—Atrás da porta número um temos a opção mais óbvia. Cai-te desta árvore. Só me assegurarei
de que Clay não lhe mate. E não te deixarei cair, lançar-te-ei. Com força suficiente para romper cada
um de seu membro, mas não com força suficiente para te matar. Então lhe amordaçaremos e lhe
deixaremos morrer, devagar e dolorosamente.
—Atrás da porta a número dois...
—Não - disse, sua voz quase inaudível. —Não. Não o faça...
—Hey, só estou esquentando. Sabe o que mais admiro sobre ti, Ty? Sua criatividade. Seu
engenho. Como me dar a opção entre matar a Armem ou ser violada por uma equipe. Inspiraste a novas
alturas de criatividade, assim permanece calado e escuta.
—Opção dois. Recorda o vídeo que viu de mim lutando contra Lake? Onde transformava minha
mão em uma garra? Grande brincadeira, né? Bem, aqui está minha idéia. Troco minha mão e curto suas
tripas. Não muito, talvez arranque um pouco do intestino, começando uma destilação de sangue
estável. Conhece o que dizem sobre as feridas de bala? Que o disparo nas vísceras é o pior. Leva sempre
à morte e dói como os fogos do Inferno. O qual, se me perguntar, seria um bom precursor ao que pode
esperar de sua eternidade. Agrada-me esta. Muito apropriada. Ao diabo com o jogo, vou escolher esta.
Pulsei minha mão contra seu estômago. Ele convulsionou e um aroma forte e acre encheu o ar.
Olhei para baixo para ver uma mancha molhada estender-se pela perna de sua calça.
—Merda, Ty. Só brincava - Agitei minha mão diante dele.
—Para - sussurrou ele. —Só para...
—Não posso. Recorda vamos fazer um Trato, verdade? É de minha idade, assim deve havê-lo
visto sendo menino. Há uma porta número três. E atrás dessa temos... hmmm - Olhei ao redor, logo
vislumbrei algo acima. —Ali. Vê esse pássaro que voa ao leste? Sabe qual é? Um abutre. Um limpador.
Será a última opção. Morte pelo limpador. Desço-te desta árvore e te estaco à terra. Então te corto.
Montões de pequenas feridas, fatiadas não letais, só o bastante para extrair sangue. Dentro de pouco,
conseguirá uma vista de primeira mão de cada abutre nestes bosques. Ah, e terei que cortar sua língua
para que não possa gritar. Uma melhora sádica sobre o amordaçamento, não acredita? Deveria estar
orgulhoso de mim, Ty. Sou sua aluna estrela. Oh, falando de alunos, não te enfaixarei os olhos. Dessa
forma poderá ver os abutres e aos cães extraviados enquanto se alimentam de ti. Bem, até que os
abutres tirem seus olhos...
—Basta! - Sua voz se elevou, quase gritando. —Sei o que faz. Quer que eu peça por minha vida.
Que te ofereça mais.
—Que mais? Ofereceu-me tudo, Ty. E respondi que não.
Seus olhos rodaram, raivoso de medo e ódio — Não. Não me matará. Valho muito.
—Você não vale nada. Só sua morte vale algo para mim.
—Não! Não o fará, Elena. Sei que não vais fazê-lo. Quer me assustar, mas você nunca...
—Alguma vez?
—Não o tem em ti.
—Opção um, dois, ou três. Escolhe agora.
—Tortura-me. Isso é tudo. Só quer lombriga me retorcendo. Não o tem...
Agarrei-o pela garganta e o arrastei de seus pés. Então pressionei minha cara contra a dele.
—Não me diga o que não tenho em mim.
Grunhi. Vi o terror em seus olhos e o apreciei. Então o deixei ir. Clay arrancou sua garganta antes
que seu corpo golpeasse a terra.

LIMPEZA
Depois de matar ao Winsloe, Clay mudou, e voltamos para pôr nossa roupa. Não havia tempo
para tardanças. Havia ainda trabalho por fazer no complexo. Cada pedaço de prova devia ser
encontrado e destruído. Tínhamos que apagar todos os rastros de nossa presença. Finalmente alguém
encontraria o complexo e os corpos dentro. Para diminuir a probabilidade de uma investigação policial
a grande escala, Paige havia hackeado o sistema do computador essa manhã e tinha transferido o
direito de propriedade a um cartel de drogas colombiano. Não me perguntem como conhecia ela o
nome de um senhor da droga sul-americano. Algumas perguntas é melhor as deixar sem responder.
Quanto ao Winsloe, tínhamos eliminado seu corpo de uma maneira que assegurava que nunca seria
encontrado. Como? Bem, essa é outra dessas perguntas. O ponto era que ninguém encontraria alguma
vez ao Winsloe ou o conectaria com o complexo, o que evitaria uma campanha de meios de
comunicação que rodearia sua morte.
—Acredita que Savannah estará bem? - perguntei quando terminamos de nos vestir. —Ela
golpeou essa parede com bastante força.
—Ela parecia bem. Jeremy cuidará dela.
—Acredita que Paige será capaz de dirigi-la?
—Se Paige pôde dirigir a esse feiticeiro, pode dirigir a uma menina de doze anos. Ela estará bem,
querida. Ambas o estarão.
—Isso espero.
Clay apartou um ramo para mim —Te olhando com Savannah, eu pensei...
—Não o faça.
—Não disse nada.
—Bom. Não o faça.
—Eu só pensei...
—Nada de meninos.
Ele riu e pôs seu braço ao redor de mim — Parece definitivo.
—É-o. Eu como mãe? - Estremeci-me. —Só posso imaginar uma coisa pior. Você como pai.
—Um milhão de obrigados. Eu seria um... pai bastante bom. E se não, está Jeremy. Ele é um
grande pai. Ele compensaria meus defeitos.
—Grande idéia. Temos meninos e deixamos a responsabilidade nele. Ele amaria tudo isto.
—Ele não se oporia.
Gemi — Nada de meninos.
Clay avançou uns metros mais, logo sorriu abertamente —Hey, sabe que mais? Se tivéssemos
meninos, não poderia partir. Ter-me-ia que aguentar. Hei aí um pensamento.
—Você-que-Oh!
Levantei minhas mãos e me afastei pisando em forte. A risada do Clay ressonou pelo bosque. Ele
trotou, lançou a terra, e me fez cócegas.
—Escondo minhas pílulas anticoncepcionais - disse, ofegando.
—Falaremos disso mais tarde.
—Nun…
Ele me cortou com um beijo. Um minuto mais tarde, veio um rangido dos arbustos.
—Estão-se beijando - Uma voz jovem. Savannah.
Curvei-me para ver Savannah atrás do Jeremy. Então ele olhou atentamente por cima dos
arbustos.
—Oh, estão vestidos - disse, e liberou Savannah.
Escapei-me do agarre do Clay —É obvio que estamos vestidos. Desde quando nos detemos em
meio de uma situação perigosa para ter —joguei um olhar ao Savannah— um descanso.
Jeremy pôs os olhos em branco.
—Matou ao Winsloe? —- perguntou Savannah.
—Matamo-lo - me afoguei. —Um, não, nós –uh
—Ocuparam-se dele - disse Jeremy. —Agora acredito que deveríamos voltar com Paige antes...
—Ali está! - disse Paige, atravessando os arbustos, seu rosto reluzente de suor. —Te disse que
ficasse perto.
—Fiquei realmente perto - disse Savannah. —Não me disse perto de quem tinha que ficar.
—Eu tratava de recolher o rastro de Leah - nos explicou Jeremy. —Não há nenhum rastro dela.
Possivelmente vocês dois podem fazer um melhor trabalho.
—Irei com a Elena - disse Savannah. —Se encontrarmos a Leah, posso usar meu feitiço de agarre
outra vez.
Paige e eu abrimos nossas bocas para protestar, mas Jeremy nos calou com a mão.
—Por que não vamos procurar ao Adam? - disse. —Possivelmente possamos lhe ajudar.
Os olhos do Savannah faiscaram à menção de Adam, mas ela só se encolheu de ombros e nos
permitiu acreditar que supostamente seria uma alternativa aceitável. Quando Jeremy se dirigiu para o
complexo, Savannah se arrastou atrás dele.
Paige suspirou — Posso ter encontrado finalmente um desafio para o que não estou preparada.
Graças a Deus tenho a minhas irmãs do Aquelarre. Elas morrerão provavelmente do assombro quando
realmente admitir que necessito ajuda.
—Quer vir conosco e procurar Leah? - Perguntei. —Descansar um momento?
—Não, vocês continuem dois. Tomem cuidado.
Sorri abertamente —Vamos, qual seria a diversão nisso?
Paige riu e trotou atrás o Jeremy e Savannah.

***

Quando deixamos o complexo ao amanhecer não havia nenhuma prova que sugerisse que algo
fora do comum tinha passado ali. Bem, um edifício cheio de cadáveres não é exatamente corriqueiro,
mas não havia nenhuma prova de nada sobrenatural. Antes de sair, Adam começou uma série de
pequenos incêndios, não o suficiente para ser vistos pelos aviões, mas o suficiente para encher o
edifício de espessa fumaça, danificando algo que ficasse.
Oh, e Leah? Nunca a encontramos. Passei duas horas registrando as terras fora do complexo.
Se ela partiu, eu deveria ter encontrado um rastro. Já que não o tinha obtido, tínhamos que assumir
que se escondeu em algum lugar no complexo, onde teria sido vencida finalmente pela fumaça. E se
realmente tinha conseguido escapar? Bem, digamos que nenhum de nós planejava visitar sua casa de
Wisconsin em nenhum momento no curto prazo.

Fim

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