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Produção de
móveis na UnB:
Cadeiras de madeira
e de couro
Marcelo Mari
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1. Faculdade de Educação da
UnB, projeto de Alcides da Rocha
Miranda, c. 1962.
Arquivo CEDOC
Esta ideia de Brasília, que vos parece tão surpreendente, que parece ter caído do
céu, não caiu do céu, pois faz parte de certa tradição histórica desde os começos
do país. [...] um primeiro-ministro do rei absolutista (Dom João VI), ao chegar à
cidadezinha colonial do Rio de Janeiro do princípio do século XIX, foi logo tomado
da ideia de fundar aqui um grande império [...] (e) de fundar uma capital nas
montanhas de Minas Gerais. [...] Um pouco mais tarde, [...] José Bonifácio, também
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Arquivo CEDOC
propumha uma nova capital. [...] Ainda no século XIX, [...] o fundador da historiografia
brasileira, Varnhagen, também teve a ideia de fundar uma nova capital [...]. Os
principais arquitetos da República eram oficiais do Exército, educados no positivismo
[...]. Fizeram a Constituição, fizeram os emblemas nacionais, inclusive nossa
bandeira, aliás bastante feia, e tiveram a ideia de marcar no centro geográfico do
país um quadrilátero para ali fundar a capital.198
Ao tomar Brasília, a cidade nova, como uma obra de arte coletiva, queremos com
isso dizer que a arte se introduz na vida de nossa época, não mais como obra
isolada mas como um conjunto das atividades criadoras do homem. Quando se
faz uma cidade nas condições de Brasília, partindo do nada, a mil quilômetros do
litoral, é por assim dizer um ensaio de utopias. [...] Nossa época é a época em que
a utopia se transforma em plano, e é principalmente aí que se encontra a mais alta
atividade criadora do homem – a da planificação. [...] É evidente que nos
encontramos diante de uma crise bem profunda da arte individual. Precisamos
reencontrar as bases sociais, as bases filosóficas da arte, da atividade criadora, e
creio que um empreendimento como este, de fundar uma cidade planificada e a
construir de alto a baixo com todos os recursos tecnológicos de nossos dias e com
um pensamento fundamental, um pensamento a dirigi-la, é realmente o de construir
não só uma capital mas uma obra de arte coletiva. [...] É uma obra coletiva porque
por definição ela suprime o empirismo, e nunca poderá ser completada por uma 3. Entrada do Auditório Dois
política de laisser-faire, laisser-aller.200 Candangos com escultura Bartira
de Victor Brecheret, 1962.
Talvez, as palavras de Pedrosa201 tenham dado o tom do debate sobre a Cidade Nova Arquivo CEDOC
e sobre a síntese das artes. A visão da necessidade de plano contra a visão de cidade
espontânea parecia ter vencido o debate do Congresso, mas na prática os governos
pós-Golpe Militar trataram de enterrar o planejamento urbano no Brasil. É evidente que
o Crítico brasileiro invertia valores artísticos e sobretudo estéticos internacionais, com
consequências políticas óbvias, no sentido de atender clamores específicos de países
periféricos – como era o caso dos países latino-americanos – que foram incorporados
ao processo de modernização internacional. Todavia, existia a expectativa de que era
possível alcançar patamares de modernidade dos países centrais, o que gerou um
clima generalizado de otimismo e de euforia no País.
Foi daí que surgira o projeto de Lúcio Costa; ousado e poder-se-ia dizer completo,
pois nele quase todos os detalhes da vida de uma cidade foram pensados em suas
peculiaridades e exigências. Das creches, às escolas e lavanderias de superquadras,
até as áreas de ajardinamento, de lazer e de comércio local. Tudo fora pensado no
plano cuidadosamente para atender as demandas não só de funcionamento da
própria cidade, da Urbs, mas também da Civitas que era própria de uma Capital, que
pode ser definida pelo conjunto de aparelhos e espaços públicos que garantem a
constituição da cidadania pela valorização do indivíduo: museus, espaços culturais,
128 bibliotecas e a Universidade de Brasília.
Alcides da Rocha Miranda foi arquiteto, muito interessado em artes visuais e patrimônio
histórico brasileiro. Formado pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro,
foi aluno de Cândido Portinari e de Mário de Andrade, que nele semearam o interesse
pelo moderno aliado necessariamente à visão ampla de interlocução entre as várias
manifestações artísticas e a sociedade. Além de ser peça-chave nos trabalhos
inaugurais de fundação do SPHAN, com Rodrigo Mello Franco de Andrade e ter sido
influenciado pelo trabalho prévio e idealizador do serviço de patrimônio feito por Mário
de Andrade, é preciso ter em mente que Rocha Miranda participou de momento ímpar
de efervescência de ideias novas, de valorização da peculiaridade do local no Brasil.
Nos anos de 1950, Rocha Miranda foi convidado por Luís Inácio de Anhaia Melo a se
tornar professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (FAU-USP). O convite de Anhaia Melo não foi casual e tinha muito a ver com sua
proposta de criação de uma faculdade que ganhava independência do curso de
Engenheiro-Arquiteto da Escola Politécnica da mesma Universidade. Tratava-se de 129
uma proposta nova em que engenheiros e artistas plásticos ministravam aulas
seguindo as especificidades de suas áreas.
Foi esse conjunto de experiências que marcou, em sua trajetória posterior, a visão
ampla e integradora das artes. A procura pela integração das artes, vendo nelas
correspondências de investigação psíquica, fenomenológica e deslindamento do
conteúdo social da forma, aliou-se muito bem, por aqui, à relação entre modernidade
e valorização das raízes culturais brasileiras. A chave de compreensão do Brasil
anunciava seu movimento renovador que derivava do vínculo entre, por um lado,
técnica e conteúdo social emancipado e, por outro, linguagem formal internacionalizada
e especificidade das raízes culturais locais. Tratava-se de um momento privilegiado
da história brasileira em que houve prerrogativa de se pensar em um projeto
arquitetônico, artístico em geral que acompanhava a ideia de constituição de um 4. Alcides da Rocha Miranda no
canteiro da UnB, c. 1962-3.
projeto de Nação na circunstância que definia a especificidade brasileira.
Arquivo CEDOC
A ideia vanguardista de prospecção do futuro em benefício de a realização utópica do
projeto de Nação brasileira aliou-se ao interesse pela investigação necessária do
passado, na medida em que esse passado oferecia soluções para se lidar com o
presente. É justamente quando se coloca a exemplaridade das soluções arquitetônicas
locais em primeira plana, que se entende porque a arquitetura moderna teria muito a
aprender com a arquitetura colonial brasileira. Essa ideia de referenciar as soluções
novas em elementos aquilatados pelo passado marcou várias gerações de artistas,
arquitetos e intelectuais brasileiros a partir da Semana de Arte Moderna de São Paulo
até o período em que se viu realizar, em Brasília, as soluções arquitetônicas de Lúcio
Costa, de Oscar Niemeyer e de Alcides da Rocha Miranda, entre outros.
Pode-se dizer que o fato de Alcides da Rocha Miranda ser arquiteto, ocupado com o
serviço do patrimônio histórico nacional e consciente da relação enriquecedora entre
passado e presente, fez com que a História da arquitetura se tornasse disciplina
fundamental no futuro curso de arquitetura da Universidade de Brasília, onde a FAU
se aproximou do espírito e das atividades do SPHAN:
Rocha Miranda, logo que chegou em Brasília, em 1960, para fundar secretaria
geral do SPHAN, interessou-se por pensar em espaços e instituições de cultura
para Brasília. De imediato, ele abraçou o projeto de construção de uma universidade
no Distrito Federal. Assim como Lúcio Costa, Rocha Miranda acreditava que a
fundação de uma universidade no Distrito Federal seria essencial para combater
o isolamento cultural e o provincianismo a que estavam sujeitos os habitantes de
Nova Capital:
Arquivo CEDOC
A situação era ambígua: de um lado, seria imprudente iniciar a sua instalação sem
ter assentado as bases solidamente; de outro, seria também imprudente não iniciá-
la, porque ela poderia ser muito retardada ou até desaparecer antes de existir. Muito
como Cyro dos Anjos, pensavam que a maior das duas imprudências seria a de
não fazer nada. Foi decidido iniciá-la. A universidade começou a funcionar, então
quatro meses depois de sancionada a lei que a criou, em salas emprestadas pelo
132 Ministério da Educação e Cultura recém-instalado em Brasília, com muita expectativa
e grande precipitação.205
A casa proposta pelos modelos da Oca não surge de um projeto a priori, ou muito
menos de um exercício de composição, mas de normas industriais prevalecentes
nas fábricas, de normas e módulos de materiais em circulação no mercado. Aqui,
pois, escapa-se, com naturalidade, do preconceito da “arte pela arte”, da “arquitetura
pela arquitetura” ainda tão visível na mente mesmo dos nossos arquitetos mais
aparelhados tecnicamente e mais familiarizados com a vida industrial. [...] A casa
da Oca não é de todo indissolúvel que, por sua engrenagem, proíba modificações
na forma e na distribuição de seus espaços. [...] ela (pode ser) portátil, mas não
imutável, segundo um molde dado para sempre. Por aí foge à mecanização
padronizada que não permite ao protagonista da comédia caseira, isto é, ao
homem que nela vive modificá-la para melhor atender às próprias inclinações.211
Por mais que houvessem várias contradições entre teoria e prática, atrás assinaladas,
no processo de modernização brasileira, é preciso ter em mente o fato nada corriqueiro
de o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro ter se interessado por elementos
característicos do desenvolvimento brasileiro e abrir espaço para soluções de
arquitetura em série e, mais especificamente, de soluções arquitetônicas para edifícios
de interesse público, fábricas e habitações populares. Isso denotava um interesse
generalizado das classes sociais (sobretudo a classe média e a operária) mais
avançadas e politizadas em apoiar alternativas artísticas e estéticas que estavam
comprometidas com a modernização, a democratização e oferecessem novo patamar
de construção de cidadania. Tratava-se de um senso mais ou menos generalizado e
confuso de emancipação política do País, que fora resultado da aproximação instigante
com projetos intelectuais de cunho social e esteticamente libertador.
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Em 21 de abril de 1962, João Goulart inaugurou a Universidade de Brasília e com ela
surgiu o Instituto Central de Arte (ICA-UnB), dirigido pelo arquiteto Alcides da Rocha
Miranda. Como foi dito, baseado na experiência anterior implementada na faculdade de
arquitetura da USP, Rocha Miranda concebeu o ICA como um local que congregasse
todas as experiências humanas sem pensá-las separadamente. Rocha Miranda, tais
como os homens de sua geração, acreditava tanto na filiação entre arte e trabalho bem
como na força educadora da arte. No que concerne à última, esse aprendizado lento, de
se aprender a ver, de se aprimorar os sentidos e desembotar a sensibilidade malformada,
fazia parte do esforço em se superar a cisão experimentada pelo homem moderno. Cisão
entre a razão e a sensibilidade – deslindada não por acaso por Schiller e pelo idealismo
alemão – imposta pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelo novo modo de
produção na sociedade capitalista a partir do século XIX até os dias atuais.212
136 Todos esses móveis tinham a característica de serem produto de desenho muito
simples e elegante, de fácil execução, compostos de materiais também simples, que
– de acordo com o clima intelectual da época – em certo sentido proporcionavam
entendimento e apreciação estética do que é o Brasil e sua brasilidade. Sérgio
Rodrigues usou do couro e da madeira para as cadeiras do auditório Dois Candangos,
onde ocorreu a cerimônia de inauguração da Universidade de Brasília. É preciso
enfatizar que tanto o couro sola quanto a madeira caviúna, o pau-ferro e outros, que
eram cortados e utilizados muitas vezes sem torneamento, passaram a ser materiais
principais utilizados nas marcenarias, dentro e fora da Universidade, para a fabricação
de mobiliário. Tal como relata o ex-funcionário Sebastião Varela:
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Elvin M. Dubugras, como outros em sua época, foi responsável pelo desenho de
poltrona de estrutura em madeira com couro no assento e encosto. A poltrona de
Dubugras, tem estrutura em madeira com pés em seção quadrada e quadros laterais
de sustentação. O assento da poltrona de Dubugras é inclinado, para trás na direção
do encosto, feito em peça única de couro-sola e o encosto é articulado, em formato
de rótula, para melhor adequação à posição do corpo. O modelo é semelhante à da
poltrona de Sérgio Rodrigues, com a diferença que na Lia a estrutura é em jacarandá
com assento e encosto fixos, estofados em espuma de poliuretano e revestidos de
couro natural ou tecido. Já, Dubugras optou por um quadro estruturante com encosto
138 mais livre, o que oferece vantagens e desvantagens dependendo da ocasião e
indubitavelmente do uso.
Por sua vez, a cadeira de Dubugras com assento em palhinha foi largamente utilizada
em eventos e reuniões na UnB. Ela foi adotada, juntamente com a poltrona de auditório
de Sérgio Rodrigues, como objeto-símbolo da época e está sempre presente em
registros fotográficos. Por causa do arqueado da madeira que compõem em curva
contínua os braços e o encosto, essa cadeira era de mais difícil execução. A curva
contínua dos braços e encosto é espelhada no assento. Esse remonta sem dúvida às
soluções coloniais com o uso da palhinha, que é elemento resistente – não tanto como
o couro – e leve por isso mais apropriado para o clima quente de nossas terras.
De fato, as duas alternativas supracitadas não são excludentes, pois podem ser
complementares e funcionam como elementos ativos para a compreensão do 139
depoimento do arquiteto João Filgueiras Lima, que dá muito a pensar. Segundo Lelé217,
a autoria dos desenhos dessas duas cadeiras, a de couro inteiriço e a de assento com
couro trançado, foi de Darcy Ribeiro e não havia propriamente um interesse de
valorização da autoria de quem fez isso ou aquilo naquele momento. A diferença entre
as duas era dada por uma contenção de material, por uma economia de meios, em que
se fazia o aproveitamento das sobras de couro utilizados nas cadeiras e com elas se
faziam tiras para serem trançadas nos assentos de ainda mais outras cadeiras. Por falta
de recursos tudo se aproveitava. Portanto, as cadeiras de couro sola da UnB foram
realizadas primeiro em croquis pelo próprio Darcy Ribeiro e depois melhoradas pelo
desenho de Filgueiras Lima e de outros que também contribuíram na empreitada de
aparelhar Universidade com móveis bons, baratos e modernos. Por fim, os desenhos
eram executados pela marcenaria de Manoel Ferreira Lima.