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Produção de
móveis na UnB:
Cadeiras de madeira
e de couro

Marcelo Mari

Nós temos História, mas nos falta memória 123


Frank Svensson

Em quase todas as partes da Universidade de Brasília (UnB) pode-se encontrar uma


ou várias delas. Já vi em cantos de diferentes prédios, em corredores insuspeitos e
até a céu aberto, sujeitas às intempéries rigorosas de Brasília que, pouco a pouco,
foram e vão consumindo a madeira e afrouxando os couros até estes se romperem e
sobrarem somente restos de tiras, outrora vistosas. Cadeiras modernas esquecidas
da memória coletiva tornaram-se uma reconfiguração histórica difícil. Elas passaram
despercebidas por muito tempo até que, algumas delas, por um inusitado ambiente
cada vez mais farsesco, se tornassem recentemente interessantes para o mercado
ligado ao consumo de aficionados fetichistas ou das classes mais abastadas.

De uma hora para outra, essas personagens se tornaram compradoras do móvel


moderno brasileiro, que passou a ser vendido nos shoppings centers das capitais e
das cidades grandes do Brasil. Mas o que aconteceu? Não se pode dizer que o
simples fato do móvel moderno brasileiro estar em voga no exterior seja a causa do
aumento do consumo interno. Aquilo que fôra um dos símbolos da produção moderna
no País, que visava nos tempos idos democratizar o acesso e o significado inscrito na
forma moderna e aliar qualidade material com estética, funcionalidade e produção em
massa, ganhou nova oportunidade de se realizar hoje somente como consumo
conspícuo. Isso quer dizer que a nova produção não foi, até o momento presente,
acompanhada do espírito que animou o empenho coletivo inscrito no projeto e
realização das cadeiras de madeira e de couro da Universidade.

Desde a primeira metade do século XX até o período do Pós-Guerra, várias empresas


brasileiras tentaram produzir móveis de qualidade em série. Entre elas: Móveis Cimo,
Móveis Artesanal, Mobilinea, Forma, Móveis Z, Pau-Brasil, Unilabor etc. Pode-se dizer
que o projeto de produção de móveis para a Universidade de Brasília (UnB) foi
expediente encontrado para solucionar um problema de demanda urgente e veio na
esteira de várias iniciativas resultantes do processo acelerado e generalizado de
modernização e industrialização brasileiras. Tratava-se de produzir e replicar modelos,
de colocar os gabaritos na linha de produção fabril e a partir dessas iniciativas muitas
empresas tentaram lograr êxito e lucro no mercado nacional. Nesse sentido, a
produção de móveis para a UnB tinha dinâmica muito peculiar e destino diverso do
consumo privado de uma cadeira, mesa, ou coisa parecida. A ideia de construção de
uma universidade pública fez com que os esforços intelectuais e materiais fossem
somados em favor de uma ideia difusa de bem-público. Pode-se dizer que a iniciativa
de fundação da UnB, inspirada na construção de Brasília, visava a consolidação de
um espaço legítimo e democrático para debate sobre o Brasil.

Embora o projeto moderno tenha se realizado negativamente hoje, sua missão – em


meados do século passado – era generosa. Muitas das promessas inscritas na
modernização brasileira foram postas em pauta privilegiada com a construção de
Brasília. Em 1959, o Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte (AICA)
foi realizado em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. O Congresso contou com a
124 participação de alguns elementos da intelligentsia mundial muito interessados, em
debater a construção da Nova Capital para o Brasil, nos marcos estabelecidos pelo
desdobramento brasileiro e latino-americano da tendência construtiva internacional.
As sessões do Congresso foram uma inaugural e mais oito específicas. Em cada uma
delas se tratou de assunto relacionado e pertinente à mudança da capital brasileira.
No que concerne ao mobiliário, a sexta sessão teve como tema as artes industriais de
maneira ampla, sob a presidência de Sérgio Milliet, e teve a participação de Giulio
Carlo Argan, Will Grohmann, Gillo Dorfles, Tomás Maldonado, Luiz Heitor Corrêa de
Azevedo, Francisco Matarazzo Sobrinho, Hain Gamzu, Crespo de la Serna, Mário
Pedrosa, Gille Delafon e Mário Barata.

A sexta sessão do Congresso extraordinário da AICA debateu especificamente a


necessidade de se pensar o lugar da artesania na realidade cada vez mais referenciada
pela produção industrial, inclua-se aí tanto a produção de móveis como arquitetônica;
isto é, a sessão expôs a disputa entre os defensores da síntese das artes e os
detratares da industrialização, entendida como despersonalizante e exemplificada
pelo desprestígio acentuado de atividades artesanais tais como a pintura e a escultura
no contexto da serialização e da produção em massa. Nesse sentido, o crítico Mário
Barata defenderia uma integração (para outros autores tratava-se menos de integração
e mais de síntese) entre arquitetura, pintura e escultura. A expressão disso poderia ser
encontrada na boa adequação dos apartamentos funcionais e seu mobiliário moderno:

Sabe-se que centenas de apartamentos iniciais, destinados a funcionários públicos,


serão mobiliados – está-se tratando disso; a concorrência já foi feita – pelo grupo
de trabalho encarregado da transferência dos serviços federais. É evidente que os
móveis serão modernos. Cito este fato, não para afirmar que esta comissão vai
mobiliar bem os apartamentos, mas apenas para inidicar a tendência existente –
imposta igualmente pela urgência que decorre das condições políticas do
nascimento de Brasília – às soluções de material estandardizadas, o que
evidentemente propriciará oportunidade de melhorar no país o nível coletivo do
gosto. Os primeiros resultados deste trabalho já estão aparecendo.197

De fato, quase todas as sessões do Congresso Extraordinário da AICA foram


polarizadas, ou pelo debate sobre a pertinência do projeto de Lúcio Costa e do
planejamento urbano adotado para se construir a Capital no centro geográfico do
País, ou pelo questionamento da atualidade de se pensar as artes em termos de uma
tendência para a síntese. Tanto um como outro questionamento visavam colocar em
foco a importância do projeto construtivo moderno no final da década de 1950, quando
se acirrava o período da Guerra Fria e aumentava progressivamente a polarização
entre o modelo liberal capitalista norte-americano e o de planejamento estatal
econômico de tipo ou soviético ou de, guardadas as diferenças de cada um deles,
estado de bem estar social.

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1. Faculdade de Educação da
UnB, projeto de Alcides da Rocha
Miranda, c. 1962.

Arquivo CEDOC

A escolha de mudança da Capital brasileira obedeceu plano estratégico de


modernização mais equânime entre as quatro regiões do País, muito embora é preciso
dizer que esse deslocamento geográfico não deixou de revelar obediência a critério
ligado ao centramento geométrico. A medida proposta por Juscelino Kubistchek
ganhou proporções relevantes que mobilizou intelectualmente o País. Para avaliar o
impacto da construção de Brasília e seu histórico baseado na ideia de construção
plena da Nação, logo na primeira sessão da AICA, cujo tema era “A Cidade Nova”,
Mário Pedrosa fez um apanhado histórico das primeiras concepções e das principais
iniciativas de mudança da Capital, desde o período Joanino, com a passagem para
a República no Brasil, até a iniciativa idealizadora da Constituição de 1945 e a execução
da ação no governo de Juscelino Kubistchek:

Esta ideia de Brasília, que vos parece tão surpreendente, que parece ter caído do
céu, não caiu do céu, pois faz parte de certa tradição histórica desde os começos
do país. [...] um primeiro-ministro do rei absolutista (Dom João VI), ao chegar à
cidadezinha colonial do Rio de Janeiro do princípio do século XIX, foi logo tomado
da ideia de fundar aqui um grande império [...] (e) de fundar uma capital nas
montanhas de Minas Gerais. [...] Um pouco mais tarde, [...] José Bonifácio, também

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2. Monumento à cultura de Bruno


Giorgi com prédio da Faculdade de
Educação da UnB ao Fundo, 1962.

Arquivo CEDOC
propumha uma nova capital. [...] Ainda no século XIX, [...] o fundador da historiografia
brasileira, Varnhagen, também teve a ideia de fundar uma nova capital [...]. Os
principais arquitetos da República eram oficiais do Exército, educados no positivismo
[...]. Fizeram a Constituição, fizeram os emblemas nacionais, inclusive nossa
bandeira, aliás bastante feia, e tiveram a ideia de marcar no centro geográfico do
país um quadrilátero para ali fundar a capital.198

Se Mário Pedrosa, por um lado, reconhecia a continuidade entre o traçado geométrico


praticado no Século XIX e a construção de Brasília no governo de Kubistchek, por
outro, vê uma situação diferenciada no projeto de construção da Nova Capital; tratava-
se de uma situação em que o Brasil se projetava para o futuro como momento ímpar
de sua inserção, pela ultrapassagem das condições locais legadas do passado
arcaico, no processo de modernização. Modernização que acompanharia o movimento 127
generalizado das nações à espera de algum sinal promissor, quiçá de um processo
emancipatório internacionalista. A arte antecipava esse momento futuro do concerto
dos povos no mundo.

Neste momento, Pedrosa enfatizou dentro do esquema interpretativo moderno tanto


a negação do passado, colonial e escravocrata, como a afirmação do futuro
emancipador, esse último entendido como realização utópica, pelo fato de nós,
brasileiros, estarmos “condenados ao moderno”199, em que a crise da arte individual
se encontrava com a antevisão do que poderia ser o inteiramente outro das cidades
(definidas pejorativamente como artificiais) na realização de obra coletiva:

Ao tomar Brasília, a cidade nova, como uma obra de arte coletiva, queremos com
isso dizer que a arte se introduz na vida de nossa época, não mais como obra
isolada mas como um conjunto das atividades criadoras do homem. Quando se
faz uma cidade nas condições de Brasília, partindo do nada, a mil quilômetros do
litoral, é por assim dizer um ensaio de utopias. [...] Nossa época é a época em que
a utopia se transforma em plano, e é principalmente aí que se encontra a mais alta
atividade criadora do homem – a da planificação. [...] É evidente que nos
encontramos diante de uma crise bem profunda da arte individual. Precisamos
reencontrar as bases sociais, as bases filosóficas da arte, da atividade criadora, e
creio que um empreendimento como este, de fundar uma cidade planificada e a
construir de alto a baixo com todos os recursos tecnológicos de nossos dias e com
um pensamento fundamental, um pensamento a dirigi-la, é realmente o de construir
não só uma capital mas uma obra de arte coletiva. [...] É uma obra coletiva porque
por definição ela suprime o empirismo, e nunca poderá ser completada por uma 3. Entrada do Auditório Dois
política de laisser-faire, laisser-aller.200 Candangos com escultura Bartira
de Victor Brecheret, 1962.

Talvez, as palavras de Pedrosa201 tenham dado o tom do debate sobre a Cidade Nova Arquivo CEDOC

e sobre a síntese das artes. A visão da necessidade de plano contra a visão de cidade
espontânea parecia ter vencido o debate do Congresso, mas na prática os governos
pós-Golpe Militar trataram de enterrar o planejamento urbano no Brasil. É evidente que
o Crítico brasileiro invertia valores artísticos e sobretudo estéticos internacionais, com
consequências políticas óbvias, no sentido de atender clamores específicos de países
periféricos – como era o caso dos países latino-americanos – que foram incorporados
ao processo de modernização internacional. Todavia, existia a expectativa de que era
possível alcançar patamares de modernidade dos países centrais, o que gerou um
clima generalizado de otimismo e de euforia no País.

Foi daí que surgira o projeto de Lúcio Costa; ousado e poder-se-ia dizer completo,
pois nele quase todos os detalhes da vida de uma cidade foram pensados em suas
peculiaridades e exigências. Das creches, às escolas e lavanderias de superquadras,
até as áreas de ajardinamento, de lazer e de comércio local. Tudo fora pensado no
plano cuidadosamente para atender as demandas não só de funcionamento da
própria cidade, da Urbs, mas também da Civitas que era própria de uma Capital, que
pode ser definida pelo conjunto de aparelhos e espaços públicos que garantem a
constituição da cidadania pela valorização do indivíduo: museus, espaços culturais,
128 bibliotecas e a Universidade de Brasília.

A ideia inicial de implantação de uma universidade no Distrito Federal foi de Lúcio


Costa. O Urbanista idealizara a necessidade de se construir uma cidade nova, uma
Capital fundada sobre novos princípios e sobretudo associada à inteligência. A futura
universidade seria lugar de primazia do encontro de novas e inauditas soluções para
a construção da nação brasileira. Em tom de depoimento, o engenheiro e ex-professor
da Universidade de Brasília, Roberto Aureliano Salmeron confirma:

O primeiro a pensar numa universidade para Brasília foi o arquiteto e urbanista


Lúcio Costa, que fez o Plano Piloto para a cidade. No fluxo da História, incluindo as
artes e as ciências, homens de visão ampla lançam às vezes, com simplicidade,
ideias importantes que mais tarde ultrapassam as suas experiências. Quando Lúcio
Costa propôs uma Universidade para a Capital que ainda delineava, estava
consciente de que ela seria necessária para a germinação da vida intelectual, mas
não podia prever o desencadeamento de situações, a oportunidade para debates
culturais que essa proposta abriria.202

A construção, a mudança da Capital e o projeto de redimensionamento das relações


políticas a partir da região central do Brasil foram fundamentais para agremiar vários
esforços individuais de professores, intelectuais, artistas e arquitetos que visaram
inaugurar um novo patamar político e social, mais elevado, amplo e generoso, de
vivência no Brasil. Incontáveis intelectuais, artistas, professores, arquitetos estiveram
em Brasília no seu início. Alguns vieram para acompanhar a construção da Cidade e
outros para contribuir no que fosse possível. Dentre eles, muitos se lançaram na
empresa de levar, para a Nova Capital, as secretarias e departamentos de órgãos
existentes na Guanabara, Rio de Janeiro. Foi o caso de Alcides da Rocha Miranda que
propôs na época, para Rodrigo Mello Franco de Andrade, inaugurar um núcleo do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em Brasília. Essa
iniciativa seria fundamental para dar impulso aos estudos do patrimônio histórico da
região centro-oeste do País.

Alcides da Rocha Miranda foi arquiteto, muito interessado em artes visuais e patrimônio
histórico brasileiro. Formado pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro,
foi aluno de Cândido Portinari e de Mário de Andrade, que nele semearam o interesse
pelo moderno aliado necessariamente à visão ampla de interlocução entre as várias
manifestações artísticas e a sociedade. Além de ser peça-chave nos trabalhos
inaugurais de fundação do SPHAN, com Rodrigo Mello Franco de Andrade e ter sido
influenciado pelo trabalho prévio e idealizador do serviço de patrimônio feito por Mário
de Andrade, é preciso ter em mente que Rocha Miranda participou de momento ímpar
de efervescência de ideias novas, de valorização da peculiaridade do local no Brasil.

Nos anos de 1950, Rocha Miranda foi convidado por Luís Inácio de Anhaia Melo a se
tornar professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (FAU-USP). O convite de Anhaia Melo não foi casual e tinha muito a ver com sua
proposta de criação de uma faculdade que ganhava independência do curso de
Engenheiro-Arquiteto da Escola Politécnica da mesma Universidade. Tratava-se de 129
uma proposta nova em que engenheiros e artistas plásticos ministravam aulas
seguindo as especificidades de suas áreas.

Da primazia pela solução tecnicista, o curso da FAU-USP encontrou seu lugar na


defesa de visão ampla e complexa sobre a totalidade, em cujo modelo formativo, que
privilegiava a relação entre arte e ciência, consolidou-se. Era justamente isso que,
assim como outros homens de seu tempo, Rocha Miranda defendia. Ele ingressou na
FAU-USP como professor da disciplina de Plástica e, na ocasião, convidou o
maqueteiro e marceneiro Zanine Caldas, para com ele, trabalhar junto aos alunos,
todos os fundamentos da espacialidade inscritos nas maquetes dos projetos
arquitetônicos. A concepção da arquitetura, que qualificada como funcional, não pode
prescindir da investigação da forma, foi elemento chave de um pensamento renovador.
Operava-se aí uma circunscrição da forma arquitetônica nos parâmetros perceptivos
da Gestalt e de correspondência direta com outras artes.

Foi esse conjunto de experiências que marcou, em sua trajetória posterior, a visão
ampla e integradora das artes. A procura pela integração das artes, vendo nelas
correspondências de investigação psíquica, fenomenológica e deslindamento do
conteúdo social da forma, aliou-se muito bem, por aqui, à relação entre modernidade
e valorização das raízes culturais brasileiras. A chave de compreensão do Brasil
anunciava seu movimento renovador que derivava do vínculo entre, por um lado,
técnica e conteúdo social emancipado e, por outro, linguagem formal internacionalizada
e especificidade das raízes culturais locais. Tratava-se de um momento privilegiado
da história brasileira em que houve prerrogativa de se pensar em um projeto
arquitetônico, artístico em geral que acompanhava a ideia de constituição de um 4. Alcides da Rocha Miranda no
canteiro da UnB, c. 1962-3.
projeto de Nação na circunstância que definia a especificidade brasileira.
Arquivo CEDOC
A ideia vanguardista de prospecção do futuro em benefício de a realização utópica do
projeto de Nação brasileira aliou-se ao interesse pela investigação necessária do
passado, na medida em que esse passado oferecia soluções para se lidar com o
presente. É justamente quando se coloca a exemplaridade das soluções arquitetônicas
locais em primeira plana, que se entende porque a arquitetura moderna teria muito a
aprender com a arquitetura colonial brasileira. Essa ideia de referenciar as soluções
novas em elementos aquilatados pelo passado marcou várias gerações de artistas,
arquitetos e intelectuais brasileiros a partir da Semana de Arte Moderna de São Paulo
até o período em que se viu realizar, em Brasília, as soluções arquitetônicas de Lúcio
Costa, de Oscar Niemeyer e de Alcides da Rocha Miranda, entre outros.

Pode-se dizer que o fato de Alcides da Rocha Miranda ser arquiteto, ocupado com o
serviço do patrimônio histórico nacional e consciente da relação enriquecedora entre
passado e presente, fez com que a História da arquitetura se tornasse disciplina
fundamental no futuro curso de arquitetura da Universidade de Brasília, onde a FAU
se aproximou do espírito e das atividades do SPHAN:

A ideia da construção da nova capital já havia tomado corpo no governo de


130 Juscelino Kubistchek. A atração que exercia a criação de uma cidade moderna com
as personalidades de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer à frente desse projeto, numa
época em que tudo parecia abrir-se para o progresso social e econômico do país,
constitui apelo forte para o inovador Alcides. Ele propõe a Rodrigo fundar um núcleo
do SPHAN em Brasília, que irradiaria a política do órgão para o Centro-Oeste. A
sugestão é aceita e ele se encaminha para o seu novo destino, não sem antes
projetar e construir em 120 dias, com Dubugras e Cabral, a CASEB, uma escola
para filhos de funcionários que começassem a se destacar para Brasília com as
famílias. [...] Na sua bagagem para o planalto, quando vai sozinho fundar o núcleo
do SPHAN em Brasília, segue o dado da sua experiência paulista na FAU, embrião
do Instituto Central das Artes que ele muito em breve criará no corpo da Universidade
da nova capital.203

Rocha Miranda, logo que chegou em Brasília, em 1960, para fundar secretaria
geral do SPHAN, interessou-se por pensar em espaços e instituições de cultura
para Brasília. De imediato, ele abraçou o projeto de construção de uma universidade
no Distrito Federal. Assim como Lúcio Costa, Rocha Miranda acreditava que a
fundação de uma universidade no Distrito Federal seria essencial para combater
o isolamento cultural e o provincianismo a que estavam sujeitos os habitantes de
Nova Capital:

Além de representar o SPHAN, Alcides é indicado para assessor do gabinete do


Ministro da Educação. Ali tem oportunidade para influir na manutenção da
universidade dentro do projeto-piloto, em terreno escolhido por Lúcio Costa, no
momento em que ela correu o risco de ser afastada para Vargem Bonita, a vinte
5. Darcy Ribeiro recebe Celso quilômetros de distância, pelo receio de manifestações estudantis. Alcides
Furtado na UnB, c. 1962-1963. consegue convencer Clóvis Salgado e Israel Pinheiro da necessidade de se ter a
Arquivo CEDOC universidade como um centro cultural no centro da cidade, e ainda assegura para
a futura Escola de Agronomia o terreno de Vargem Bonita. [...] Em 15 de dezembro
de 1961, Juscelino Kubistchek assinara o projeto-de-lei de iniciativa do Poder
Executivo que autorizava a instituição de uma fundação, destinada a criar e manter
a Universidade de Brasília. [...] E todos os contemporâneos de Alcides são unânimes
em testemunhar o papel decisivo que ele desempenhou, juntamente com Darcy,
por ocasião da votação no Congresso, para a aprovação da lei que criaria a
Universidade.204
Embora seja verídico que a pressão feita por Darcy Ribeiro junto aos parlamentares
do Congresso fosse decisiva para a instituição da Universidade de Brasília, essa
conquista não foi empreendimento de uma só pessoa e não se pode olvidar o
empenho de Alcides da Rocha Miranda e de Anísio Teixeira na ocasião. Esses
intelectuais acreditavam na necessidade de se construir uma universidade para o
Distrito Federal e conseguiram dirimir o impasse causado pelo temor de Clóvis
Salgado e Israel Pinheiro de que a presença de estudantes – força viva à época – e
também de operários traria ambiente conturbado e de instabilidade para o governo.
De fato, a criação da UnB foi pensada também como espaço de conhecimento e de
debate político que poderia garantir o fortalecimento das instituições democráticas na
relação entre representantes de segmentos da sociedade civil, constituída de
professores e de estudantes, e políticos legitimamente eleitos no sistema da
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democracia representativa.

6. Visita de João Goulart na UnB,


1962.

Arquivo CEDOC

A Universidade de Brasília foi criada por Ato Presidencial no dia 15 de dezembro de


1961. Neste momento, o governo de João Goulart passou a lutar contra a crescente
oposição interna, representada pela União Democrática Nacional (UDN) e pelos
militares, e contra a oposição externa, representada pelos interesses dos Estados
Unidos na América Latina durante a Guerra Fria. A criação da UnB estava afinada a
um projeto alternativo de país, que por seu turno se aproximava cada vez mais das
bandeiras levantadas pelos movimentos sociais no território nacional. Essa guinada à
esquerda na política brasileira levou o governo de John Fitzgerald Kennedy e, logo em
seguida, de Lyndon Baines Johnson a tramarem um conjunto de medidas para
desestabilizar o governo de Jango e mais tarde apoiar um golpe militar, que controlasse
os movimentos sociais no Brasil. Com o clima de incertezas e os revezes da política
daquele período, iniciaram-se tanto o funcionamento como as obras de construção
da Universidade em ritmo acelerado:

A situação era ambígua: de um lado, seria imprudente iniciar a sua instalação sem
ter assentado as bases solidamente; de outro, seria também imprudente não iniciá-
la, porque ela poderia ser muito retardada ou até desaparecer antes de existir. Muito
como Cyro dos Anjos, pensavam que a maior das duas imprudências seria a de
não fazer nada. Foi decidido iniciá-la. A universidade começou a funcionar, então
quatro meses depois de sancionada a lei que a criou, em salas emprestadas pelo
132 Ministério da Educação e Cultura recém-instalado em Brasília, com muita expectativa
e grande precipitação.205

Essa criação e funcionamento precipitado da Universidade de Brasília trouxeram


consigo uma série de dificuldades, mas também de soluções alternativas e muita vez
inusitadas. Anísio Teixeira várias vezes conseguiu interceder junto ao governo para
resolver problemas da universidade, mas os problemas se acumulavam com muita
rapidez. Porém, isso não foi uma realidade exclusiva da construção acelerada da
universidade no Distrito Federal e sim algo que só pode ser dimensionado em
proporções nacionais.

Desde a construção de Brasília até o clima de mudanças sociais profundas introduzido


pelo governo de João Goulart, as ideologias que defendiam a tendência de se acumular
esforços para a realização de um Estado-Nação moderno e independente eram o
clamor do dia-a-dia. Nesse sentido, as reformas de base defendidas por Goulart seriam
indispensáveis. Esse Estado-Nação implicava, nos limites dos planos ideológicos
defendidos por alas nacionalistas-burguesas, pelos poucos setores esclarecidos da
Igreja e pelo Partido Comunista do Brasil, em estabelecer no plano econômico e político
tanto a ampliação de mercado interno, por meio da reforma agrária, como uma política
externa independente do poder de influência dos Estados Unidos. Tudo isso em ritmo
acelerado para resolver problemas entraves da realidade brasileira.

Como observa Roberto Schwarz206, havia conteúdos revolucionários inscritos nas


propostas nacionalistas-burguesas de modernização e democratização, que poderiam
em última medida, dependendo dos rumos que as coisas tomassem, romper os
limites impostos pela economia capitalista numa nação periférica. Ocorre que os
setores locais ligados à modernização não se preocuparam (ou melhor, não deixaram
dúvida nenhuma) em se aliar aos setores arcaicos quando a questão principal foi
impedir a ascendência das lutas operárias e da influência pequena do Partido
Comunista no Brasil.

Entretanto, o clima de mudanças profundas gerou uma série de soluções alternativas


e inusitadas para se resolver problemas brasileiros. Para além da construção da Nova
Capital, a arquitetura ofereceu iniciativas de solução, por exemplo, para a construção
de edifícios de interesse público, construção de fábricas e de habitações populares
em condições dignas tanto na cidade como no campo. As soluções arquitetônicas
seguiam a aproximação entre arte e indústria, do ponto de vista da produção em série
de produtos material e esteticamente de boa qualidade. Como se sabe, essa
aproximação entre arte e produção em massa foi apontada por Mário Pedrosa como
um dos fatores principais que definiam a arte moderna:

Há, evidentemente, grande correlação entre a arte contemporânea e a indústria


moderna. As formas novas trazidas pela técnica industrial de nossos dias
enriqueceram, sem dúvida alguma, o campo de pesquisas e invenção do artista
moderno. [...] As ciências naturais, nos disse Valéry, refizeram a nossa maneira de
ver e substituíram a visão e a classificação ingênua de seus objetos por uns
sistemas de noções particularmente elaborados. Mas o homem normal [...] tudo vê 133
por meio das “lembranças”, das recordações, sem abrir mão das tradições e
convenções inconscientes e rotineiras. [...] o que (se põe) assim era a questão da
criação individual do artista. A química e a mecânica modernas podem, naturalmente,
criar toda uma nova mitologia, todo um mundo desconhecido de objetos até então
inexistentes [...]. O fenômeno em si mesmo é arrebatador, e nos enche por um
tempo a imaginação. Esses objetos são, contudo, em geral em série e irreproduzíveis
ou transitórios. E assim não podemos distinguir uns dos outros.207

Dentre as soluções arquitetônicas pensadas e realizadas na Universidade de Brasília


estão: a de João Filgueiras Lima (Lelé), a de Oscar Niemeyer e a de Sérgio Rodrigues208.
Tanto Filgueiras Lima como Niemeyer fizeram a utilização de estruturas pré-fabricadas
em concreto. Para os apartamentos funcionais de professores, Filgueiras Lima utilizou
sistema construtivo baseado em encaixes de pré-moldados e estruturas protendidas.
Todas essas técnicas foram estudadas por Lelé, quando viajou em missão especial
para os países do Leste Europeu, que já desenvolviam e tinham expertise na técnica
da pré-moldagem para construção de edifícios em série. Eis descrição da revista
Acrópole em número dedicado à UnB:

As áreas correspondentes a sala e quartos são flexíveis permitindo que o


dimensionamento dessas peças se ajuste corretamente ao programa de cada
professor. [...] O sistema [...] utiliza os conjuntos de circulação vertical fundidos no
local, [...] esses elementos suportam as estruturas pré-moldadas [...]; nelas se
apoiam as lajes nervuradas também protendidas, que constituem os pisos dos
apartamentos. Nos painéis pré-moldados das fachadas foram previstos rasgos no
concreto para encaixe dos vidros e os perfis metálicos foram fixados na fundição
das peças.209

Dada a necessidade de construção de novas habitações para atender as demandas


de Brasília, Niemeyer adotou também o uso de pré-moldados. Seu projeto de
habitação coletiva teve a primeira unidade pré-fabricada em 1962. Essa habitação de
concreto, construída no Campus da Universidade de Brasília, permitia sua utilização
como habitação individual ou coletiva, distribuídas no sentido horizontal ou possíveis
de serem empilhadas:
Estas unidades, igualmente pensadas para resolver o problema de alojamento de
estudantes, seriam localizadas próximas às residências de professores, para o que
se construiu um protótipo, com área de 45 m² e peso de 42 toneladas. Dada a
complexidade do transporte destas unidades, ficou a montagem do conjunto
dependendo da construção da Usina de Pré-moldados, prevista nas proximidades
e não executada.210

A construção da OCA 1 e 2 de Sérgio Rodrigues, mais os apartamentos funcionais


para professores de João Filgueiras na Colina (UnB) e o protótipo de residência de
Oscar Niemeyer apontavam para alternativas práticas capazes de solucionar, com
qualidade e em pouco tempo, as demandas no Brasil. As soluções para a construção
de interesse social estavam dadas em cimento ou em madeira..
134
7. OCA 1, residência de professores No caso de Sérgio Rodrigues, sua experiência com a arquitetura em madeira era
da UnB, 1962.
extensiva do interesse pelo desenho de mobiliário, que lhe deu fama e se tornou aos
Arquivo CEDOC
poucos sua atividade principal. As soluções arquitetônicas encontradas por Rodrigues,
com sua arquitetura de base de madeira, saiam em pé de igualdade com Lelé e à
frente dos resultados obtidos pelo protótipo e experimento de pré-moldados, feito por
Niemeyer, na tentativa de atender as demandas crescente do mercado de consumo
interno. Ao contrário do protótipo de Niemeyer, que necessitava de transporte especial
devido ao peso resultante de cada módulo de habitação, tanto Rodrigues como Lelé
optaram por modelos fáceis de serem executados e que atendiam a complexidade
das variantes da construção (tempo de construção, topografia, mão-de-obra
qualificada, recursos financeiros disponíveis etc.) inscritas na época.

Em 1960, para a exposição nas adjacências do Museu de Arte Moderna do Rio de


Janeiro (MAM-RJ), Sérgio Rodrigues produzira protótipo de casa em madeira. Por
ocasião dessa exposição no MAM-RJ, Mário Pedrosa comentaria a preocupação de
grande parte da arquitetura brasileira moderna em aliar a questão da beleza formal
com a utilização de materiais que fossem baratos, mas de boa qualidade e que
pudessem atender rapidamente a demanda do mercado de consumo, isto é, seriam
protótipos suscetíveis de serem serializados. Assim, a arquitetura não era nem podia
ser concebida como jogo livre das faculdades – produção intelectual livre e
desvinculada da produção material – sem nenhum lastro na realidade da produção
industrial:

A casa proposta pelos modelos da Oca não surge de um projeto a priori, ou muito
menos de um exercício de composição, mas de normas industriais prevalecentes
nas fábricas, de normas e módulos de materiais em circulação no mercado. Aqui,
pois, escapa-se, com naturalidade, do preconceito da “arte pela arte”, da “arquitetura
pela arquitetura” ainda tão visível na mente mesmo dos nossos arquitetos mais
aparelhados tecnicamente e mais familiarizados com a vida industrial. [...] A casa
da Oca não é de todo indissolúvel que, por sua engrenagem, proíba modificações
na forma e na distribuição de seus espaços. [...] ela (pode ser) portátil, mas não
imutável, segundo um molde dado para sempre. Por aí foge à mecanização
padronizada que não permite ao protagonista da comédia caseira, isto é, ao
homem que nela vive modificá-la para melhor atender às próprias inclinações.211
Por mais que houvessem várias contradições entre teoria e prática, atrás assinaladas,
no processo de modernização brasileira, é preciso ter em mente o fato nada corriqueiro
de o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro ter se interessado por elementos
característicos do desenvolvimento brasileiro e abrir espaço para soluções de
arquitetura em série e, mais especificamente, de soluções arquitetônicas para edifícios
de interesse público, fábricas e habitações populares. Isso denotava um interesse
generalizado das classes sociais (sobretudo a classe média e a operária) mais
avançadas e politizadas em apoiar alternativas artísticas e estéticas que estavam
comprometidas com a modernização, a democratização e oferecessem novo patamar
de construção de cidadania. Tratava-se de um senso mais ou menos generalizado e
confuso de emancipação política do País, que fora resultado da aproximação instigante
com projetos intelectuais de cunho social e esteticamente libertador.
135
Em 21 de abril de 1962, João Goulart inaugurou a Universidade de Brasília e com ela
surgiu o Instituto Central de Arte (ICA-UnB), dirigido pelo arquiteto Alcides da Rocha
Miranda. Como foi dito, baseado na experiência anterior implementada na faculdade de
arquitetura da USP, Rocha Miranda concebeu o ICA como um local que congregasse
todas as experiências humanas sem pensá-las separadamente. Rocha Miranda, tais
como os homens de sua geração, acreditava tanto na filiação entre arte e trabalho bem
como na força educadora da arte. No que concerne à última, esse aprendizado lento, de
se aprender a ver, de se aprimorar os sentidos e desembotar a sensibilidade malformada,
fazia parte do esforço em se superar a cisão experimentada pelo homem moderno. Cisão
entre a razão e a sensibilidade – deslindada não por acaso por Schiller e pelo idealismo
alemão – imposta pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelo novo modo de
produção na sociedade capitalista a partir do século XIX até os dias atuais.212

Se o mundo moderno relegava a experiência humana ao processo de alienação da


sensibilidade pela lógica racional e fria que instrumentalizava a realidade, nesse
momento estava inscrita a possibilidade de solução das contradições existentes em
um nível superior, que era a tentativa de aproximação entre arte e produção em massa,
sempre balizada pelo mundo da produção. O construtivismo soviético e a Bauhaus
tinham feito isso na Europa e o modelo de síntese entre arte e técnica, arte e ciência
era atualizado pelo construtivismo brasileiro e latino-americano. Nisso residia a tarefa
do construtivismo brasileiro e latino-americano: a educação dos sentidos, o exercício
artesanal do que nele há de melhor, da materialidade em que se juntaria inequivocamente
o intelecto e os sentidos:

Os alunos do ICA da UnB, de 62 a 64, passavam do desenho da natureza e da


figura humana para o de mobiliário213, que também faziam artesanalmente, já que
quase todos os protótipos de móveis da Universidade foram estudados a partir do
Instituto. Estudantes faziam maquetes, participavam no canteiro de obras do
levantamento das primeiras unidades da instituição. Alunos de artes visuais e letras
escreviam e compunham juntos cartazes e textos. Todos os impressos da UnB,
durante bastante tempo, foram feitos por alunos na tipografia do ICA. Música,
cinema, experiências e debates constavam do dia-a-dia curricular. Os alunos
gostavam tanto do novo ensino que iam à noite para a universidade.214
Na Universidade de Brasília, à medida que os edifícios iam sendo construídos era
preciso aparelhá-los com lousas, armários, cadeiras e toda sorte de mobília. Depois
de Darcy Ribeiro convidar o arquiteto Sérgio Rodrigues para desenhar os primeiros
móveis da UnB, que foram executados pela empresa Ernesto Hauner, Indústria e
Comércio S. A., também conhecida como Mobilinea, em São Paulo, no ano de 1962,
as demandas posteriores foram atendidas pela loja Oca e progressivamente passaram
a ser realizadas também por marcenarias filiadas à própria Universidade. Rodrigues
desenhou, naquele momento, móveis que iam de cadeiras e poltronas até estantes e
mesas. Muitos desses móveis não mais existem. Os mais conhecidos são: a cadeira
UnB, a poltrona do auditório Dois Candangos, a poltrona UnB, a poltrona Lia e o sofá
Darcy.215

136 Todos esses móveis tinham a característica de serem produto de desenho muito
simples e elegante, de fácil execução, compostos de materiais também simples, que
– de acordo com o clima intelectual da época – em certo sentido proporcionavam
entendimento e apreciação estética do que é o Brasil e sua brasilidade. Sérgio
Rodrigues usou do couro e da madeira para as cadeiras do auditório Dois Candangos,
onde ocorreu a cerimônia de inauguração da Universidade de Brasília. É preciso
enfatizar que tanto o couro sola quanto a madeira caviúna, o pau-ferro e outros, que
eram cortados e utilizados muitas vezes sem torneamento, passaram a ser materiais
principais utilizados nas marcenarias, dentro e fora da Universidade, para a fabricação
de mobiliário. Tal como relata o ex-funcionário Sebastião Varela:

Por ocasião da inauguração da Universidade de Brasília, cujo número de móveis


era muito reduzido, o reitor (Darcy Ribeiro) contratou um marceneiro especializado
no ramo: Manoel Ferreira Lima, uma ‘marra de homem’, que todos chamavam de
Manoel Gordo. De madeira, era bom entendedor e músico nas horas vagas tocava
pistom. O professor Darcy Ribeiro sugeriu que Manoel comprasse por sua própria
conta o maquinário completo de marcenaria, cujo retorno financeiro se daria de
acordo com a produção, e deu certo. [...] Foi construído um enorme barracão e nele
montadas a tupia, a plaina, a serra e tudo o que era necessário para uma grande
marcenaria bem equipada, com lugar para quinze marceneiros e serventes. Fizeram
de madeira e puseram mãos à obra. Fabricaram-se grandes quadros-negros,
cadeiras e mesas que, naquele momento, se faziam mais necessários. Foram
poucos os quadros-negros comprados fora dali. Os pedidos dos Departamentos
e dos Institutos eram constantes e urgentes. [...] Móveis foram fabricados em
pouco tempo. Faz quase 30 anos e ainda hoje existem, espalhados por toda parte
da grande UnB, móveis fabricados por esta firma.216

Nos anos iniciais da Universidade de Brasília, as condições de exercício experimental


nas práticas construtivas estavam dadas pelos desafios e dificuldades próprias dos
canteiros de obras e do aparelhamento dos edifícios. Tanto a arquitetura como o
mobiliário modernos obedeciam, em última instância, às prerrogativas de uma
concepção de mundo, isto é, de um tipo de processo artístico, científico, técnico e
social que poderíamos denominar em sua totalidade de processo de modernização
emancipatória. De fato, as marcenarias tiveram possibilidade de funcionar, por um
breve período de tempo, como oficina coletiva de exercício experimental baseada em
relações de conhecimento e de trocas mútuas entre operários, alunos e professores.
Isso não significou, porém, que funcionaram a contento e que houve eliminação da
hierarquia da divisão social do trabalho, pois o móvel era desenhado pelo arquiteto e
executado pelo marceneiro e demais operários da marcenaria. Dentre os professores
da UnB, o arquiteto e aluno de Rocha Miranda, Elvin Mackay Dubugras ficou conhecido
pelo desenho e fabricação de protótipos para móveis utilizados na UnB e de dar aulas
para alunos interessados em mobiliário.

137

8. Da esquerda para a direita: Elvin


dubugras, Luis Humberto e esposa,
Alcides da Rocha Miranda.

Ao todo funcionaram pelo menos quatro marcenarias independentes na Universidade


de Brasília: a primeira era a marcenaria de Manoel Ferreira Lima, conhecido como a
marcenaria de Manuel, o Gordo; outra, era a de Zanine Caldas; outra ainda de Alex
Peirano Chacon e, por último, a famosa marcenaria de Elvin Dubugras. Todas essas
marcenarias realizaram trabalhos de protótipos e somente a de Ferreira Lima foi capaz
e de fato serviu para atender às demandas de aparelhamento da Universidade. Em
seu barracão, para marcenaria, Zanine Caldas dava aula de maquete e de fabricação
de bancos e de montagem em couro e madeira de bancos altos; o chileno Alex
Peirano Chacon, mantinha aberto seu atelier-livre e desenvolvia uma série de atividades
ligadas à experimentação nas artes e no desenho, com desenvolvimento de trabalhos
em expografia e artes gráficas; já o caso de Elvin Dubugras é parecido ao de Zanine
Caldas. Dubugras realizou uma série de experimentos com cadeiras e mobiliário
geral. Tratava-se de pensar o desenho do móvel indissociado do projeto do edifício e
por extensão do projeto urbanístico. São famosos e elegantes seus projetos de
cadeiras, de mesas e de estantes. Sua produção oscilava entre o uso de influências
consagradas e de modelos inteiramente novos e inusitados.

Elvin M. Dubugras, como outros em sua época, foi responsável pelo desenho de
poltrona de estrutura em madeira com couro no assento e encosto. A poltrona de
Dubugras, tem estrutura em madeira com pés em seção quadrada e quadros laterais
de sustentação. O assento da poltrona de Dubugras é inclinado, para trás na direção
do encosto, feito em peça única de couro-sola e o encosto é articulado, em formato
de rótula, para melhor adequação à posição do corpo. O modelo é semelhante à da
poltrona de Sérgio Rodrigues, com a diferença que na Lia a estrutura é em jacarandá
com assento e encosto fixos, estofados em espuma de poliuretano e revestidos de
couro natural ou tecido. Já, Dubugras optou por um quadro estruturante com encosto
138 mais livre, o que oferece vantagens e desvantagens dependendo da ocasião e
indubitavelmente do uso.

Por sua vez, a cadeira de Dubugras com assento em palhinha foi largamente utilizada
em eventos e reuniões na UnB. Ela foi adotada, juntamente com a poltrona de auditório
de Sérgio Rodrigues, como objeto-símbolo da época e está sempre presente em
registros fotográficos. Por causa do arqueado da madeira que compõem em curva
contínua os braços e o encosto, essa cadeira era de mais difícil execução. A curva
contínua dos braços e encosto é espelhada no assento. Esse remonta sem dúvida às
soluções coloniais com o uso da palhinha, que é elemento resistente – não tanto como
o couro – e leve por isso mais apropriado para o clima quente de nossas terras.

Embora a cadeira de Elvin Dubugras e a poltrona de Sérgio Rodrigues para o auditório


Dois Candangos sejam símbolos da época da fundação da Universidade de Brasília,
a mobília existente em maior quantidade ali remete à produção moveleira não
identificada por falta de registros. Até hoje, são duas cadeiras de desenho moderno,
muito rústicas e simples, feitas em madeira maciça, uma com assento e encosto em
couro sola natural inteiriços com dobras nas travessas superiores e inferiores da
estrutura em madeira da cadeira e outra com assento em couro trançado e encosto
feito com travessa de madeira. Ambas têm outro elemento associado à linguagem
moderna que é o fato de a costura dos arremates e das bainhas no couro estar
aparente, numa tentativa de revelar sua feitura e os elementos que a compõe.

É evidente, a semelhança da cadeira de couro inteiriço da UnB com a cadeira Cantu,


de 1958, da família Tacape de Sérgio Rodrigues; todavia, a diferença está na ausência
de torneamento dos pés em fusos, pois os pés da cadeira de couro inteiriço foram
feitos em seção quadrada, mais simples. Ao contrário do caso de Rodrigues, não
houve preocupação e interesse, por parte dos reais autores, em assumir a autoria da
famosa cadeira de couro e madeira, encontrada por todas as partes da UnB. Nesse
sentido, duas alternativas são possíveis: ou, a semelhança com o móvel de Rodrigues
era plausível a ponto de inviabilizar o reconhecimento da autoria, ou quem concebeu
a cadeira não estava preocupado em advogar sua autoria e sim em suprir uma
necessidade emergencial, pautando-se em modelos já em uso na Universidade.
A segunda alternativa é mais otimista, sem que se possa dizer se tratar de uma
situação verídica ou simplesmente de uma inverdade. A beleza e a graça dos dois
tipos de cadeira de couro da UnB estão justamente associadas ao anonimato da
concepção e da execução, que sinaliza horizonte possível para legítima produção
coletivista, cujo significado material e espiritual profundo vão muito mais além do que
o fetiche da marca, associada quase sempre à genialidade de uma autoria falsificada
pelo jogo de valorização de mercado. Essas cadeiras nunca foram efetivamente
assinadas, são fruto da construção interrompida de uma utopia de Universidade; se
essa é sua graça e beleza é também sua má sorte e condenação, já que os registros
sobre esses objetos estão desaparecidos.

De fato, as duas alternativas supracitadas não são excludentes, pois podem ser
complementares e funcionam como elementos ativos para a compreensão do 139
depoimento do arquiteto João Filgueiras Lima, que dá muito a pensar. Segundo Lelé217,
a autoria dos desenhos dessas duas cadeiras, a de couro inteiriço e a de assento com
couro trançado, foi de Darcy Ribeiro e não havia propriamente um interesse de
valorização da autoria de quem fez isso ou aquilo naquele momento. A diferença entre
as duas era dada por uma contenção de material, por uma economia de meios, em que
se fazia o aproveitamento das sobras de couro utilizados nas cadeiras e com elas se
faziam tiras para serem trançadas nos assentos de ainda mais outras cadeiras. Por falta
de recursos tudo se aproveitava. Portanto, as cadeiras de couro sola da UnB foram
realizadas primeiro em croquis pelo próprio Darcy Ribeiro e depois melhoradas pelo
desenho de Filgueiras Lima e de outros que também contribuíram na empreitada de
aparelhar Universidade com móveis bons, baratos e modernos. Por fim, os desenhos
eram executados pela marcenaria de Manoel Ferreira Lima.

9. Invasão militar do campus, 9 de


abril de 1964.
A situação do mobiliário não era diferente das edificações, pois eles foram requisitados
no afã de equipar a Universidade recém-criada, mas não houve tempo hábil para um
encontro satisfatoriamente virtuoso entre a pesquisa da forma, realizada por
professores e alunos, e as marcenarias locais. Acresce-se, à separação entre trabalho
manual e intelectual, o fato iniludível de o móvel moderno não poder ser pensado
como algo separado de uma concepção geral de sociedade. O Golpe Militar
interrompeu as experiências promissoras da Universidade de Brasília e grande parte
das pesquisas e dos experimentos estéticos no âmbito da forma, realizados por
professores e alunos, reduziram-se a especulações teóricas ou protótipos, que não
foram executados posteriormente. Tratou-se de uma experiência interrompida pela
demissão coletiva dos professores da Universidade e pelo hiato produzido na memória
com os vinte anos de governo militar no Brasil.
140
197
AICA, 1959, p. 107. Republicado em 207
Mário PEDROSA. Arte, necessidade vi- UnB Luís Humberto: “A gente fazia mui-
Maria da Silveira LOBO; Roberto SEGRE tal. Rio de Janeiro: Casa do Estudantes, to desenho de observação porque o
(org.). Cidade nova: síntese das artes / 1949, p. 213-214. Alcides era muito crente que o desenho
Congresso Internacional Extraordinário 208
Ver Ana Luiza de Souza NOBRE, Ana de observação era necessário, e é. Eu
de Críticos de Artes. Rio de Janeiro: Luiza de Souza. Fios cortantes: Projeto acho que é um exercício fantástico. Eu
UFRJ/FAU, 2009, pp. 28-29. e produto, arquitetura e design no Rio lembro que, já dando fotografia na co-
198
AICA, 1959, pp. 08-09. de Janeiro (1950-70). Tese de doutora- municação, eu introduzi um período
199 mento apresentada ao Programa de novo de história da arte porque o pesso-
Dizia Mário Pedrosa no Congresso da al da comunicação tem uma resistência
AICA: “somos condenados ao moder- Pós-Graduação em História Social da
Cultura do Departamento de História da muito grande a respeito do que é arte e
no, isto é, às aquisições da nossa do que não é arte. Para mim, arte é qual-
civilização atual e às necessidades de PUC-Rio, sob orientação do Prof. Ronal-
do Brito Fernandes, V. I, Rio de Janeiro, quer coisa que você maneja uma
nossa civilização atual.” Ibidem, p. 38. linguagem com intenção de passar al-
Abril de 2008, pp. 156 e seguintes.
200
Ibidem, p. 8-10. Continua Pedrosa: “Pa- gum tipo de emoção ou outro tipo de
ra esta obra é preciso uma concepção
209
ACRÓPOLE. Edição especial sobre Bra- coisa. Não importa se ele é o jornalismo,
global e imaginação criadora. Trata-se sília. São Paulo, ano 31, número 369-70, se ele é escrito, se ele é visual, se ele é
em verdade de uma política de planifica- janeiro/fevereiro de 1970. p. 23-24. televisão. Uma coisa é a permanência 141
ção, com uma ideia coletiva, social e 210
Ibidem, p. 19. da arte enquanto produto, mas você
estética, mais alta, mais profunda, mais 211
Mário PEDROSA, 1960, Apud Soraia não faz tudo para ficar, para ir pro mu-
ampla. E é isto que faz o interesse do CALS.Sérgio Rodrigues. Rio de Janeiro: seu. Você faz as coisas no cotidiano.
empreendimento Brasília.” Ibidem, p. 10. Icatu, 2000, p. 161. Então a gente por exemplo levava os
201
Discurso proferido na primeira sessão caras para fazer desenho de observa-
do Congresso da AICA. ção. Eu dava isso rememorando meu
212
Conforme expõe Leila C. Frota a partir tempo de arquiteto. E o Alcides tinha um
202
Roberto A. SALMERON. A universidade de depoimento e análise do Plano Dire- negócio de “preste atenção nos vazios
interrompida: Brasília (1964-65). São tor de Darcy Ribeiro: “já então Reitor da enquanto você desenha, olhe o vazio”.
Paulo: Universidade de Brasília, 2012, Universidade por que tanto lutara, Alcides foi um professor fantástico que
p. 37. vemos o Instituto de Artes orientado pa- eu tive.” Vide depoimento de Luís Hum-
203
Lélia Coelho FROTA. Alcides Rocha Mi- ra a [nas próprias palavras de Darcy berto a Alex Calheiros e José A. Costa,
randa: caminho de um arquiteto. Rio de Ribeiro]: ‘função fundamental de dar a em junho de 2013.
Janeiro: UFRJ, 1993. p. 55. toda comunidade universitária e à pop- 214
Leila A FROTA. Op. cit., 1993, p. 63.
204
Ibidem, p. 58. ulação de Brasília oportunidade de
215
experiência e de apreciação artística. Esse móveis constam no catálogo, or-
205
Roberto A. SALMERON. Op. cit., 2012, Em lugar de montar complexos currícu- ganizado por Soraia Cals, da obra de
p. 77 los com a pretensão de formar pintores, Sérgio Rodrigues. Ver Soraia CALS
206
Em Cultura e Política, Schwarz situa o musicistas e artistas criadores em out- (org.). Sérgio Rodrigues. Rio de Janeiro:
conflito estabelecido pelo conjunto de ros ramos, a Universidade se empenhará Icatu, Soraia Cals, 2000.
forças políticas no Brasil desde os anos por trazer para o convívio do seu cam- 216
Documento UnB 30 anos, 1992, p.
de 1950 até o período pós-Golpe Militar. pus grandes artistas nacionais e 114-115.
Ele aponta quais foram os erros estraté- estrangeiros para programas informais 217
Depoimento de João Filgueiras Lima
gicos do Partido Comunista que não de aprimoramento de jovens artistas, para Marcelo Mari, às 11 horas da man-
permitiram avaliar suas alianças políti- selecionados pelo vigor e originalidade hã de quarta-feira, dia 16 de outubro de
cas, quando aumentou a pressão por revelados em estudos básicos, realiza- 2013.
mudanças mais profundas no Brasil. dos em qualquer centro de formação
Esse processo levou a um esvaziamen- artística’ [Como soam atuais essas pa-
to do campo político que apoiou a lavras!]. A formação artesanal e o
modernização e a industrialização, com apuramento do gosto dos estudantes
democratização, do País. As classes de arquitetura, desenho industrial, artes
dominantes em sua maioria apoiaram a gráficas e plásticas, meios audiovisuais
via autoritária. As injunções das dispu- de difusão cultural e educação, bem co-
tas entre Estados Unidos e URSS, no mo de teatro e de cinema, eram os
período da Guerra Fria, terminaram por outros pontos marcantes da malha
aproximar os interesses dos setores flexível que constituía o Instituto Central
agrários retrógrados bem como o em- de Artes.” [colchetes nossos]. Leila
presariado brasileiro com os interesses FROTA. Op. cit., 1993, p. 59-60.
imperialistas dos Estados Unidos, em 213
De fato, no sistema pensado por Al-
detrimento dos interesses locais. Cf. Ro- cides, a concepção de projeto advinda
berto SCHWARZ. Cultura e política. São a partir do desenho – sempre entendido
Paulo: Editora Paz e Terra, 2009, pp. como exercício reflexivo – era essencial.
12-14. Explica o arquiteto e ex-professor da

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