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Custo dado no Collège de France 1977-1978

SEGURANÇA, TERRITÓRIO E POPULAÇÃO


Aula de 1º de fevereiro de 1978

O que seria o problema do governo?


Foucault começa apontando que a partir de meados do séc. XVI até o final do
século XVIII se vê florescer toda uma literatura sobre a “arte de governar”, que estava
além dos livros até então produzidos, que se limitavam a tratar dos conselhos e ações do
próprio príncipe.
Foucault fala da preocupação que surge com o governo de si, também com o
governo das almas e condutas, governo dos filhos, e, só por último, o governo dos
Estados.
Como se governar? Como ser governado? Como governar os outros? Por quem
devemos aceitar ser governados? Como fazer para ser o melhor governo possível?
Todas essas questões surgiriam no ponto de cruzamento de dois movimentos:
a) o desfazimento das estruturas feudais, com a emergência dos Estados territoriais,
administrativos, coloniais;
b) os movimentos causados pela reforma e contra reforma, que passam a questionar
a forma como as pessoas vão querer ser espiritualmente dirigidas. O primeiro
movimento implicando concentração. O segundo movimento implicando
dispersão.
Para o Estudo do problema do governo, Foucault escolhe isolar alguns pontos a
partir da obra O Príncipe, de Maquiável, já que tal texto foi objeto de oposição por
quase toda a literatura produzida no período que se esta tratando (século XVI até –
XVIII).
Foucault esclarece que quando lançado, o texto de maquiável não fora
imediatamente abominado, mas exaltado por seus contemporâneos e sucessores
imediatos.
Maquiável ressurge no início do Século XIX, exatamente no contexto pós-
revolução francesa, a partir da discussão sobre como manter a soberania de um
Soberano sobre o Estado, e o aparecimento, com Clauswitz, do problema da guerra e da
estratégia, além do Congresso de Viena, as negociações de paz na Europa e a questão da
unificação da Alemanha.
Todavia, entre a homenagem quando do surgimento no século XVI, e o
renascimento no século XIX, uma farta literatura anti-Maquiavel surgiu.
O ponto que Foucault destaca, contudo, é que essa literatura que anti-Maquiável
que surge, seja declarada ou sub-reptícia, não tem apenas funções negativas, de
obstrução, mas também um caráter positivo. Nas palavras de Foucault:

“A literatura anti-Maquiavel é um gênero, e um gênero


positivo, que tem seu objeto, que tem seus conceitos e que
tem sua estratégia, e é como tal, nessa positividade, que eu
gostaria de focalízá-la”.

Ao analisar essa literatura anti-Maquiavel, a primeira coisa que Foucault destaca é


o local do príncipe. Para a literatura anti-Maquiavel, Maquiavel coloca o príncipe em
relação de singularidade e exterioridade para o principado, ou seja, o príncipe não faz
parte desse principado, pouco importando para isso a forma que o tenha recebido, seja
herança, seja conquista. E sendo exterior essa relação, a posição do príncipe é sempre
objeto de ameaça, já que sua ligação com o principado é sintética, não-natural, podendo
ser ameaçada tanto externamente, por quem quer tomar ou retomar o principado,
quanto mesmo internamente, já que não há vínculos sólidos com os súditos. Por isso,
essa literatura anti-Maquiavel diz que Maquiavel se dedicou a buscar formas de manter
esse principado, dando essa como a principal missão do príncipe. Mas não proteger o
território em si ou os súditos que há nele, e sim a relação do príncipe com esse território
e com os súditos. (achei essa questão importante). E aqui, na proteção dessa relação do
princípio com o território do principado e com os súditos é que está o centro para
Maquiável, de acordo com essa literatura (não importa o território em si, tampouco os
súditos objetivamente, mas sim a relação desse território e dos súditos com o príncipe).
Toda essa construção vlevaria a dois aspectos centrais em Maquiavel para essa
literatura de oposição:
1. identificação dos perigos para o príncipe;
2. como o príncipe poderia manipular as relações de modo tal que mantivesse sua
relação com o território e seus súditos.
Foucault diz que não importa verificar se “o Príncipe” de Maquiavel tem mesmo
ou não esse conteúdo, mas sim entender o que a literatura anti-Maquivel queria
contrapor, que é justamente a visão da obra “o príncipe” que essa literatura construiu. E
para contrapor esse “tratado de habilidades do príncipe” é que essa literatura anti-
Maquiavel traz algo novo, que seria a “arte de governar”.
Para demonstrar o referido acima, Foucault seleciona a obra de Guillsume de La
Perrière, uma das primeiras obras anti-Maquiavel escrita. A primeira diferença apontada
é sobre o que se entende por governar e governador. Diz Foucault:
“É que, de fato, o príncipe, tal como aparece em Maquiavel ou nas
representações que dele, são dadas, é por definição - esse era um
princípio fundamental do livro tal como era lido - único em seu
principado, e numa posição de exterioridade e de transcendência em
relação a esse. Enquanto, aí, vemos que o governador, as pessoas
que governam, a prática do governo, por um lado, são praticas
múltiplas, já que muita gente governa: o pai de família, o superior
de um convento, o pedagogo, o professor em relação a criança ou
ao discípulo: há portanto muitos governos em relação aos quais o
do príncipe que governa seu Estado não é mais que uma das
modalidades. Por outro lado, todos esses governos são interiores a
própria sociedade ou ao Estado. É no interior do Estado que o pai
de família vai governar sua família, que o superior do convento vai
governar seu convento, etc. Há, portanto, ao mesmo tempo,
pluralidade das formas de governo e imanência das praticas de
governo em relação ao Estado, multiplicidade e imanência dessa
atividade, que a opõe radicalmente a singularidade transcendente do
príncipe de Maquiavel.”

Foucault aponta, contudo, que entre todas essas formas possíveis de governo
dentro do Estado, há uma comum a todas elas. Ele cita François La Mothe Le Vayer,
que, em seus textos para o Delfim da França, falará das três formas de governo: a)
governo de si, que diz com a moral; b) governo da família, relacionado a econômica; c)
governo do Estado, que estaria ligado a política. Mas o que Foucault ressalta de
importante, apesar da tipologia das artes de governar apresentadas, é que no final a arte
de governar, como sempre é apresentada, acaba por ser a continuidade essencial de uma
a outra. Foucault ressalta que enquanto a doutrina do princípe ou a teoria jurídica da
Soberania sempre buscam deixar clara uma descontinuidade, um afastamento do poder
soberano e qualquer outro poder, na arte de governar há sempre uma continuidade entre
as formas de se governar, seja ascendente ou descendente.
A continuidade é ascendente, quando se pensa que quem quer governar o Estado
deve saber governar a si mesmo, e depois sua família, seu domínio, para aí chegar ao
Estado. Era essa pedagogia que se aplicava aos ensinamentos do Delfin, que primeiro
aprendia sobre a moral, depois sobre a economia, e por último sobre a política. Mas essa
linha também é descendente, na medida que o Estado bem governado faz com que os
pais de família também saibam governar suas famílias e as pessoas em geral se governem
como convém. Conforme esclarece Foucault, a linha descendente que faz o bom
governo do príncipe chegar até as famílias e as pessoas começa a ser chamada nessa
época de “polícia”.
Foucaut diz que a peça central desse governo, que se encontra tanto na ligação
ascendente da pedagogia, quanto na descendente da polícia é o governo da família,
chamado, justamente, de economia, que a ligação tanta do movimento ascendente da
pedagogia, quanto do descendente da polícia.
Foucault diz que a arte de governar tenta fazer, então, exatamente a pergunta:
“como introduzir a economia na arte de governar o Estado? Como fazer o método de
governo do pai de família, que dirige seus bens, sua mulher, seus filhos para a riqueza,
ser o método de governo da gestão do Estado? Foucault diz que a introdução da
economia no seio do exercício político será, para ele, a meta do governo. Foucault diz
que em Rousseau ainda aparece o sentido da palavra economia como “ o sábio governo
da casa para o bem comum da família”.
Governar o Estado será, então, aplicar a economia no sentido da gestão da família
pelo pai de família, mas para todo o Estado, em relação aos habitantes, às riquezas, às
condutas de todos e de cada um uma forma de vigilância, não menor do que aquela
exercida pelo pai de família sobre a casa e seus bens.
A frase “bom governo é um governo econômico” de Quesnay é citada por
Foucault como exemplo, ao mesmo tempo que refere nessa época, século XVIII, a
palavra econômica já vai atingindo o significado moderno que compreendemos até hoje.
Até o século XVI, a palavra economia designava uma forma de governo, mas a partir do
século, adotando seu sentido moderno, vai designar “um campo de intervenção para o
governo, através de uma série de processos complexos, e creio” diz Foucault
“absolutamente essenciais para a nossa história. Eis portanto que é governar e ser
governado”.
Seguindo no texto de Guillsume de La Perrière, Foucault cita a frase “Governo é
a correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para conduzi-las a um fim
adequado”. Foucault destaca o termo “coisas”. Diz que no Princípio de Maquiável,
coisas seriam os objetos sobre os quais o poder agiria, ou seja, o território e as pessoas
que estivessem nele. Foucault diz que maquiável apenas se estava utilizando da noção de
soberania prevalente na idade média, para qual, o ponto chave seria o território.
Já no texto Guillsume de La Perrière, não há referência ao território, já que se
governam coisas, ou seja, todo um complexo, constituído por homens e coisas:

Quer dizer também que essas coisas de que o governo deve se


encarregar, diz La Perriere, sao os homens, mas em suas
relações, em seus vínculos, mo suas imbricações com essas
coisas que sã as riquezas, os recursos, os meios de subsistência,
o território, é claro, em suas fronteiras, com suas qualidades,
seu clima, sua sequidão, sua fecundidade. São os homens em
suas relações com estas outras coisas que sao os costumes, os
hábitos, as maneiras de fazer ou de pensar. E, enfim, são os
homens em suas relações com estas outras coisas que podem
ser os acidentes ou as calamidades como a fome, as epidemias,
a morte.
Foucult cita a metáfora do Barco. Governar um navio é, além do próprio navio,
encarregar-se dos marinheiros, da carga, é levar em conta os ventos, as tempestades, as
intempéries. Essa relação dos marinhos, com o navio, com a carga que deve chegar ao
porto, somados a todos os acontecimentos possíveis da jornada é que é governar o
barco. Foucault afirma que, no fim, governar a família também é essencialmente ter
como meta os membros da família, sua riqueza sua prosperidade, “levando em conta os
acontecimentos que podem sobrevir: as mortes, os nascimentos, as coisas que se podem
fazer, como alianças com outras famílias”.
“E toda essa gestão geral que caracteriza o governo e em
relação à qual o problema da propriedade fundiária, no caso da
família, ou a aquisição da soberania sobre um território, no
caso do príncipe, não são mais que elementos relativamente
secundários. O essencial, portanto, é esse complexo de
homens e de coisas, é isso que é o elemento principal, o
território- a propriedade, de certo modo, é apenas uma
variável.”
A comparação entre Holanda e Rússia, no texto de Frederico II: Rússia seria
um vasto território, mas pantonaso, cheio de florestas e desertos, pouco povoado por
alguns grupos de pobres e miseráveis, sem atividades industriais. Já Holanda, mesmo
pequena e pantanosa, possuia uma população indiustrial, uma riqueza, muita atividade
comercial e uma frota marítima que a tornava importante. Havia muitas coisas a serem
governadas na Holanda. Na Rússia, nem tanto.
E aqui Foucault pontua a distinção entre a ideia de soberania da idade média
para a ideia de governo que esta emergindo nessa literatura anti-maquiavel. Na soberania
a finalidade é cumprida com a obediência estrita pelos súditos das Leis determinadas
pelo soberano, que traduz a vontade de Deus para os homens e a natureza na Terra, ou
seja, um bem comum traduzido como submissão, como obediência a Lei, a soberania diz
que o bem comum é a própria obediência a soberania, num movimento que Foucault diz
ser circular.
Por outro lado,

O governo é definido por La Perriere como uma maneira


correta de dispor das coisas para leválas, não à forma do "bem
comum", como diziam os textos dos juristas, mas a um "fim
adequado", fim adequado para cada uma das coisas que,
precisamente, devem ser governadas. O que implica, primeiro,
uma pluralidade de fins específicos. Por exemplo, o governo
deverá agir de modo que se produza o máximo possível de
riquezas; e terá de agir de modo que se forneça às pessoas
meios de subsistência suficientes, ou mesmo a maior
quantidade possível de meios de subsistência; o governo terá
de agir, por fim, de modo que a população possa multiplicar-
se. Logo, toda uma série de finalidades específicas, que vão se
tomar o próprio objetivo do governo. E, para alcançar essas
diversas finalidades, vai se dispor das coisas. Essa palavra
"dispor" é importante, porque, na soberania, o que
possibilitava alcançar a finalidade da soberania, isto é, a
obediência às leis, era a própria lei. Lei e soberania coincidiam
pois absolutamente uma com outra. Ao contrário, aqui não se
trata de impor uma lei aos homens, trata-se de dispor das
coisas, isto é, de utilizar táticas, muito mais que leis, ou utilizar
ao máximo as leis como táticas; agir de modo que, por um
certo número de meios, esta ou aquela finalidade possa ser
alcançada.

Vale citar outro trecho


Creio que temos aqui u’ma ruptura importante: enquanto a
finalidade da soberania está em si mesma e enquanto ela tira
seus instrumentos de si mesma sob a forma da lei, a finalidade
do governo está nas coisas que ele dirige; ela deve ser buscada
na perfeição, na maximização ou na intensificação dos
processos que ele dirige, e os instrumentos do governo, em
vez de serem leis, vão ser diversas táticas. Regressão, por
conseguinte, da lei; ou antes, na perspectiva do que deve ser o
governo, a lei não é certamente o instrumento maior..

O governador deve ser alguém com paciência, ou seja, não pode ser mais o
direito de matar, o direito de valer sua força que deve ser determinante no personagem
governador. Ao invés do ferrão para ferir, o governador deve ter sabedoria e inteligência.
A sabedoria do soberano, no entanto, não será mais o conhecimento da leis humanas e
divinas, da tradição, como até então era, mas sim o conhecimento das coisas, das
finalidades específicas de cada uma delas, do que pode ser alcançado, e o que fazer para
se alcançar, a disposição de casa coisa, o emprego delas para atingir as finalidades. Já a
diligência será entendida como a norma que impõe a quem governa, seja o soberano ou
outro (são multiplus governos imanente, como já visto), que só governo na medida que
aja e considere como se estivesse a serviço dos governados.
Foucault que essas ideias, que seriam esboço do que viria a ser governo,
ainda que incipiente, não se limitou ao plano teórico, mas já se mostrava nas
organizações administrativas das Monarquias territoriais, e até mesmo em suas
representações para essas estruturas. Também em todo um conjunto de saberes relativos
ao conhecimento do Estado em seus mais diferentes aspectos, que se desenvolveram a
partir do final do século XVI e tiveram sua amplitude no século XVII, depois chamados
“estatística”. Além disso, Fooucault destaca o desenvolvimento do mercantilismo e do
cameralismo, que foram o mesmo tempo esforços para racionalizar o exercício de poder
a partir dos novos saberes estatisticos, e, também, “princípios doutrinais” para aumentar
a riqueza do Estado.
Mas Foucault refere que as questões históricas do século XVII,
especificamente as constantes guerras e crises, aliada a prevalência teórica da noção de
soberania da idade média, impediram o desenvolvimento dessas técnicas de governo no
período, que acabaram presas as estruturas fechadas das monarquias territoriais.
O mercantilismo é de fato a primeira racionalização do exercício do
poder como prática do governo; é de fato a primeira vez que
começa a se constituir um saber do Estado capaz de ser utilizado
para as táticas do governo. É a pura verdade, mas o mercantilismo
viu-se bloqueado e detido, creio eu, precisamente por ter se dado o
que como objetivo? Pois bem, essencialmente o poder do soberano:
como fazer de modo que não tanto o país seja rico, mas que o
soberano possa dispor de riquezas, possa ter tesouros, que possa
constituir exércitos com os quais poderá fazer sua política? O
objetivo do mercantilismo é o poder do soberano, e os
instrumentos que o mercantilismo se dá, quais são? São as leis, os
decretos, os regulamentos, isto é, as armas tradicionais da soberania.
Objetivo: o soberano; instrumentos: as próprias ferramentas da
soberania. O mercantilismo procurava fazer as possibilidades dadas
por urna arte refletida de governo entrarem numa estrutura
institucional e mental de soberania que a bloqueava. De sorte que,
durante todo o século XVII e até a grande liquidação dos temas
mercantilistas do início do século XVIII, a arte de governar ficou
de certo modo andando sem sair do lugar, pega entre duas coisas.

Note-se, assim, que o mercantilismo não conseguiu fazer um governo para


os governados, mas um governo circular que voltada para a Soberania, a partir das regras
da Soberania. Isso que me parece ter sido o que prendeu o mercantilismo na armadilha
da soberania.
A Teoria do Contrato Social, segundo Foucault, foi um exemplo da
tentativa dos juristas de compatibilizar a relação dos soberanos e dos súditos dentro
dessa ideia de arte de governar. Todavia, em que pese buscasse evidenciar princípios
gerais da arte de governar, sua missão não conseguiu ir além da formação de princípios
gerais do direito público, campo no qual foi efetivamente importante. Mas além disso, a
economia ainda se centrava no governo da família, muito estreito, focalizado. A questão
passou a ser como liberar esse governo da família, para que passasse a ser a forma de
governo do estado.

Porque é o governo da família que melhor corresponde a essa


arte de governar que se buscava. Um poder imanente, à
sociedade (o pai faz parte da família), um pode sobre as
“coisas”, e não sobre o território, e com finalidades múltiplas,
todas voltadas ao bem-estar, a felicidade e a riqueza da família,
um poder vigilante
Segundo Foucault, foram vários processos conjuntos, como a expansão
demográfica, com a abundância monetária, ligada ao aumento da produção agrícola, em
processos que se reforçam, que teria viabilizado esse desbloqueio, que Foucault identifica
como a emergência do problema da população. Nas palavras do autor:

Ou, digamos também, temos um processo bastante sutil, que


precisariamos tentar reconstituir em detalhe, no qual
veríamos como a ciencia do governo, o recentramento da
economia em outra coisa além da família e, enfim, o
problema da população estão ligados uns aos outros. Foi
através do desenvolvimento da ciência do governo que a
economia pode recentrar-se num certo nível de realidade que
caracterizamos agora como econômica, e foi também através
do desenvolvimento da ciência do governo que foi possível
recortar o problema específico da população. Mas poder-se-
ia igualmente dizer que é graças a percepção dos problemas
específicos da população e gracas ao isolamento desse nível
de realidade que se chama economia, que o problema do
governo pode enfim ser pensado, refletido e calculado fora
do marco jurídico da soberania.

E nesse exato ponto, quando não precisa mais funcionar apenas em benefício
da monarquia, como até então ocorria, é que a estatista, como conjunto de saberes sobre
as coisas de governo, que vai se tornar um dos fatores principais do desbloqueio da arte
de governar.
A perspectiva da população e a realidade dos
fenômenos próprios da população vão possibilitar afastar
definitivamente o modelo da família e recentrar essa noção de
economia noutra coisa. De fato, essa estatística que havia
funcionado até então no interior dos marcos administrativos e,
portante, do funcionamento da soberania, essa mesma
estatística descobre e mostra pouco a pouco que a populaçãoo
tem suas regularidades próprias: seu número de morros, seu
número de doentes, suas regularidades de acidentes. A
estatística mostra igualmente que a população comporta efeitos
próprios da sua agregação e que esses fenômenos são
irredutíveis aos da família: serão as grandes epidemias, as
expansões epidêmicas, a espiral do trabalho e da riqueza. A
estatística mostra [também] que, por seus deslocamentos, por
seus modos de gir, por sua atividade, a população tem efeitos
econômicos específicos. A estatística, ao possibilitar a
quantificação dos fenômenos próprios da população, faz
aparecer sua especificidade irredutível [ao] pequeno âmbito da
família. Salvo certo número de temas residuais, que podem ser
perfeitamente temas morais e religiosos, a família como modelo
do governo vai desaparecer.

Mas um fato apontado por Foucault é que se até o surgimento da


problemática da população a arte de governar não poderia ser pensando de outra forma
que não fosse a lógica da família, e da gestão da família como economia, a partir do
momento que a população não cabe mais na ideia reduzida de família, a família passa o
no nível inferior a população, no interior dela. A família,

Portanto, ela não é mais um modelo; é um segmento,


segmento simplesmente privilegiado porque, quando se quiser
obter alguma coisa da população quanto ao comportamento
sexual, quanto à demografia, ao número de filhos, quanto ao
consumo, é pela família que se terá efetivamente de passar.
Mas, de modelo, a família vai se tomar instrumento,
instrumento privilegiado para o governo das populações e não
modelo quimérico para o bom governo.
Segundo Foucault, a população contribuiu para o desbloqueio da arte de
governar exatamente quando elimina o modelo de família.
Outro fato importante é que essa população vai ser o objetivo último go
governo, pois o governo terá como fim principal melhorar a situação das populações, ao
mesmo tempo que será essa própria população que será o instrumento principal para
atingir esse fim.
E o instrumento que o governo o vai se dar para obter esses
fins, que, de certo modo, são imanentes ao campo da
população, será essencialmente a população, agindo
diretamente sobre ela por meio de campanhas ou também,
indiretamente, por meio de técnicas que vão permitir, por
exemplo, estimular, sem que as pessoas percebam multo, a taxa
de natalidade, ou dirigindo nesta ou naquela região, para
determinada atividade, os fluxos de população. É a população,
portante, multo mais que o poder do soberano, que aparece
como o fim e o instrumento do governo: sujeito de
necessidades, de aspirações, mas também objeto nas mãos do
governo. O interesse como consciência de cada um dos
indivíduos que constitui a população e o interesse como
interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e as
aspirações individuais dos que a compõem, é isso que vai ser,
em seu equívoco, o alvo e o instrumento fundamental do
governo das populações. Nascimento de urna arte ou, em
todo caso, de táticas e técnicas absolutamente novas.

Outra fala de Foucault é ainda mais precisa:

Ou seja, a população vai ser o objeto que o governo deverá


levar em conta nas suas observações, em seu saber, para
chegar efetivamente a governar de maneira racional e refletida.
A constituição de um saber de governo é absolutamente
indissociável da constituição de um saber de todos os
processos que giram em tomo da população no sentido lato, o
que se chama precisamente "economia".

E segue:
Pois bem, é apreendendo essa rede continua e múltipla de
relações entre a população, o território e a riqueza que se
constituirá uma ciência chamada "economia política" e, ao
mesmo tempo, um tipo de intervenção característica do
governo, que vai ser a intervenção no campo da economia e
da população. Em suma, a passagem de uma arte de governar
a uma ciência política", a passagem de um regime dominado
pelas estruturas de soberania a um regime dominado pelas
técnicas do governo se faz no século XVIII em tomo da
população e, por conseguinte, em tomo do nascimento da
economia política.

Foucault ressalta, contudo, que essa arte de governar ter se tornado ciência
política de maneira alguma eliminou a questão da soberania. O que Foucault aponta
como mudança é a ordem: não se busca mais uma arte de governar a partir das teorias
da soberania, mas, ao contrário, buscar descobrir, a partir da constatação e do
desenvolvimento dessa arte de governar, qual a forma jurídica, qual forma institucional,
qual fundamento de direito seria dado à soberania que caracteriza um Estado (?).
Foucault aponta que essa questão já seria vista em Rousseau, que já descartaria o modelo
de economia da família. Logo, o problema passa a ser encontrar o fundamento que
justifique a ideia de soberania, ao mesmo tempo que sirva de fundamento para os novos
elementos da arte de governar. Compatibilizar o soberano com os governos que tem
como finalidade a população, ou seja, o conjunto dos governador. O problema da
soberania estaria mais agudo do que nunca.
A questão das disciplinas igualmente ganham importância, já que tendo a
administração da população como objetivo máximo, e sendo essa população ao mesmo
tempo também o principal instrumento para atingir tal fim, pois:

a disciplina foi mais importante e mais valorizada do que a partir do


momento em que se procurava administrar a população - e
administrar a população não quer dizer simplesmente admirústrar a
massa coletiva dos fenômenos ou administrá-los simplesmente no
plano dos seus resultados globais; administrar a população quer
dizer administrá-la igualmente em profundidade, administrá-la com
sutileza e administrá-la em detalhe.

Foucault ressalta, diante do dito acima, que um governo como governo


da população tornou ainda mais agudo o problema da fundação da soberania e da
necessidade de desenvolver as disciplinas.
De sorte que as coisas nao devem de forma nenhuma ser
compreendidas como a substituição de urna sociedade de
soberania por urna sociedade de disciplina, e mais tarde de
uma sociedade de disciplina por uma sociedade, digamos, de
governo. Temos, de fato, um triângulo - soberania, disciplina e
gestão governamental-, uma gestão governamental cujo alvo
principal é a população e cujos mecanismos essenciais são os
dispositivos de segurança.

E Foucault arremata:

Em todo caso, o que eu queria lhes mostrar era um vínculo


histórico profundo entre o movimento que desloca as
constantes da soberania para detrás do problema, agora maior,
das boas opções de governo, o movimento que faz a
população aparecer como um dado, como um campo de
intervenção, como a finalidade das técnicas de governo,
[enfim] o movimento que isola a economia como domínio
específico de realidade e a economia política ao mesmo tempo
como ciência e como técnica de intervenção do governo nesse
campo de realidade. São estes três movimentos - a meu ver:
governo, população e economia política -, acerca dos quais
cabe notar que constituem a partir do século XVlTI uma série
sólida, que certamente não foi dissociada até hoje.

A partir dessas conclusões, Foucault questiona o próprio título que deu ao


curso, referindo que ficaria mais bem representado se fosse algo como “ a história da
governamentalidade. E diz:
Por esta palavra, "govemamentalidade", entendo o conjunto
constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e
reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa
forma bem específica, embora muito complexa, de poder que
tem por alvo principal a população, por principal forma de
saber a economia política e por instrumento técnico essencial os
dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por
"governamentalidade" entendo a tendência, a linha de força que,
em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito,
para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar
de "governo" sobre todos os outros - soberanía, disciplina - e
que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda urna série
de aparelhos específicos de governo (e, por outro lado1), o
desenvolvimento de toda urna série de saberes. Enfim, por
"governamentalidade", creio que se deveria entender o
processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado
de justiça da Idade Medía, que nos séculos XV e XVI se tornou
o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco
"governamentalizado".
Foucault avança, tratando das formas de supervalorização do Estado na
história, seja como o monstro frio, seja – e aqui Foucault aponta como um paradoxo,
reduzindo o Estado a certas funções, como reprodutor das forças produtivas, ou seja,
reduzindo o Estado a outra coisa, mas ainda assim como principal alvo de ataque, como
principal posição a ocupar (parece uma crítica ao marxismo revolucionário).
Foucault aponta que o Estado nunca teve, ao longo da história e nem teria
hoje, essa a importância. Diz:
Afinal de contas, o Estado talvez nao seja mais que urna
realidade compósita e urna abstração mitificada cuja
importância é bem mais reduzida do que se imagina. Talvez. O
que há de importante para a nossa modernidade, isto é, para a
nossa atualidade não é portanto a estatização da sociedade,
mas o que eu chamaria de “governamentalização” do Estado.

E diz lodo depois:


Vivemos na era da "governamentalidade", aquela que foi
descoberta no século XVIII. Governamentalização do Estado
que é um fenômeno particularmente tortuoso, pois, embora
efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas
de governo tenham se tomado de fato o único intuitoo
político e o único espaço real da luta e dos embates políticos,
essaa governamentalização do Estado foi, apesar de tudo, o
fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver. E e possível
que, se o Estado existe tal como ele existe agora, seja
precisamente graças a essa governamentalidade que é ao
mesmo tempo exterior e interior ao Estado, já que são as
táticas de governo que, a cada instante permitem definir o que
deve ser do âmbito do Estado e o que não deve, o que é
publico e o que é privado, o que é estatal e o que é não é
estatal. Portanto, se quiserem, o Estado em sua sobrevivência
e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos a
partir das táticas gerais da governamentalidade.

De maneira simplificada, Foucault diz que poderíamos apontar as grandes


formas de poder no Ocidente da seguinte maneira:
a) primeiro o Estado de Justiça, nascido de uma territorialidade, do tipo feudal, que seria
uma sociedade da Lei, aqui entendida como leis consuetudinárias e leis escritas, com um
jogo de compromissos e litígios;
b) depois o Estado administrativo, já com um Estado do tipo fronteiriço, não mais
feudal, que teria uma sociedade organizada a partir de regulamentos e disciplinas;
c) por fim, o Estado já não mais definido pelo seu território, pela superfície que ocupa,
mas pelo seu volume, pela massa da população que ocupa o território sobre o qual esse
Estado se estende, não sendo mais esse território a essência do Estado, mas mais um
competente dele.

E esse Estado de governo, que tem essencialmente por objeto


a população e que se refere [a] e utiliza a instrumentação do
saber econômico, corresponderia a urna sociedade controlada
pelos dispositivos de segurança.

São nesses elementos que Foucault a instauração da governamentalidade.


Ele conclui:
Procurarei agora lhes mostrar como essa governamentalidade
nasceu, [em primeiro lugar] a partir de um modelo arcaico, o da
pastoral cristã; em segundo lugar, apoiando-se num modelo, ou
antes, numa técnica diplomático-militar; e, enfim, em terceiro lugar,
como essa governamentalidade só pode adquirir as dimensões que
tem graças a urna série de instrumentos bem particulares, cuja
formação é contemporânea precisamente da arte de governar e que
chamamos, no antigo sentido do termo, o sentido dos séculos XVII
e XVIII, de "policia". A pastoral, a nova técnica diplomático-militar
e, enfim, a polícia - creio que foram esses os três grandes pontos de
apoio a partir dos quais pode se produzir esse fenômeno
fundamental na histona do ocidente, a governamentalização do
Estado.

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