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ALGUMAS APLICAÇÕES DA ANTROPOLOGIA LEGAL E DA

ANTROPOLOGIA JURÍDICA NO BRASIL

Do ponto de vista da ciência jurídica pura e da lógica técnica no elaborar as leis, o Brasil pode ser
considerado um país desenvolvido. É na aplicação das leis, entretanto, que surgem os problemas; na
divisão nítida entre a teoria e a.prática, que permitiu que a forte tendência liberal na filosofia
jurídica brasileira (a crença na democracia, os direitos humanos básicos, a remuneração adequada
para o trabalho etc.) existisse lado a lado com uma das mais elitistas e estratificadas sociedades de
classe do mundo. Algumas leis no Brasil são escritas para atingir o objetivo tencionado pelo
legislador ou pelo governo, e para fazer cumpri-las é montado um sistema de aplicação de leis
adequado. Outras são escritas com fins de propaganda, para satisfazer oficialmente a alguns grupos
de interesses; “para inglês ver”, como diz o velho ditado. Neste caso, não há providências para a
execução da lei, e esta simplesmente não surtirá efeito ou, no máximo, somente sobre uma pequena
minoria da população. Contudo, outras leis são aprovadas mesmo sabendo-se que na situação
brasileira e com o sistema jurídico existente terão um resultado bem diferente daquele determinado.
Essa lacuna entre o direito formal e o aplicado é real em todos os países, mas no Brasil alcançou
proporções quase surrealistas. Os brasileiros simplesmente não acreditam na lei. Crêem, sim, numa
estrutura de poder e em mediadores do poder que se movem paralelamente à ordenação formal das
leis substantivas do País. A lei lá está para ser usada seletivamente: para nossos amigos, a amizade;
para nossos inimigos, a lei.
É por isso que a maioria das pessoas evita tanto quanto possível a estrutura jurídica formal. Se
puderem resolver suas disputas ou problemas manipulando o sistema informal, isto é, o “jeitinho”
brasileiro, eles o farão. Caso contrário, geralmente sentirão receio de se aproximar do sistema
formal, temendo perder de qualquer maneira, já que a verdadeira força reside na estrutura informal.
Há exceções, e estas são importantes, pois podem revelar uma nova tendência no direito brasileiro.
Nós observamos em mais de uma ocasião, quando da pesquisa do papel do Judiciário nas regiões
rurais do Brasil, que alguns juízes constantemente defendem os direitos legais dos pobres da zona
rural, como seu direito de posse da terra, de receber pelo menos um salário mínimo, e os numerosos
direitos formais que deveria ter um agregado brasileiro, porém que geralmente não são cumpridos.
Qualquer juiz que faça cumprir continuamente esses direitos se legitimará aos olhos da população
local. É interessante observar, todavia, que esta fé, esta legitimação, é, muitas vezes, pessoal. O juiz
se torna, de certo modo, um bom patrão e como tal será logo amplamente respeitado pela população
de sua comunidade. Infelizmente, ele também poderá fazer inimigos entre os importantes e ricos,
que poderão prejudicá-lo na sua carreira. Mais ainda, é só recentemente que há indicações de uma
legitimação além da pessoal: a legitimação da instituição.
Essa espécie de legitimação individual não se estende às grandes cidades. Numa metrópole como
São Paulo, que tem várias centenas de Varas, é difícil para um juiz conhecer a população
pessoalmente, e, ainda que isso fosse possível, não há nenhuma garantia de que qualquer processo
particular seja encaminhado ao seu tribunal. Portanto, o tipo de legitimação jurídica que às vezes
aparece nas comarcas rurais desaparece nas cidades.
Teoricamente, um dos principais papéis do Estado é trazer justiça ao povo. Citaremos um dos mais
antigos legisladores, Hamurabi, no Epílogo do seu Código de Hamurabi:
“(Estas são) as prescrições de justiça, que Hammurabi, o rei forte, estabeleceu e que fez o pais
tomar um caminho seguro e uma direção boa;
“Eu (sou) Hammurabi, o rei perfeito. Para com os cabeças-pretas, que Enlil me deu de presente e
dos quais Marduk me deu o pastoreio, não fui negligente, nem deixei cair os braços; eu lhes
procurei sempre lugares de paz, resolvi dificuldades graves, fiz-lhes aparecer a luz. ... acabei com as
lutas, promovi o bem-estar do país. Eu fiz os povos dos lugarejos habitar em verdes prados,
ninguém os atormentará. Os grandes deuses chamaram-me e tornei-me o pastor salvador, cujo cetro
é reto; minha sombra benéfica está estendida sobre minha cidade.... Para que o forte não oprima o
fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva, para proclamar o direito do país em Babel, a cidade cuja
cabeça An e Enlil levantaram, na Esagila, o templo cujos fundamentos são tão firmes como o céu e
a terra, para proclamar as leis do país, para fazer direito aos oprimidos, escrevi minhas preciosas
palavras em minha estela e coloquei-a diante de minha estátua de rei do direito
“Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante da minha estátua de rei
da justiça, e leia atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha
estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate!” (Bouzon, O Código de
Hamurabi, cit., p. 109-10).
A estrutura jurídica de um Estado pode ser uma força de legitimação ou um instrumento básico de
repressão. Isso é verdadeiro para o Judiciário, para o Ministério Público e para a Policia. Os juizes
podem trabalhar muito no sentido de resolver as disputas rapidamente e ignorar ou revogar as leis
que sentirem que são contrárias aos interesses da nação como expressas na Constituição. “Para que
o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva”, ... “para fazer direito aos
oprimidos”, o papel do juiz no fundo é de legitimação. Um Judiciário que funciona só como
máquina de condenação é uma negação da justiça responsiva. O juiz, como Lobo-do-Dorso-Alto,
deve humanizar a lei, tal como, às vezes, faz o júri. É verdade que, na máquina estatal proposta por
Kelsen, o Judiciário tem o papel altamente formal de aplicar a lei, mas isso pressupõe um Estado
radicalmente democrático, e mesmo assim é muito difícil fazer leis gerais para um país complexo
moderno.
Wilhelm Aubert (apud Nader, Law in culture, 1969, p. 282-302) mostra como na Noruega, uma
nação pequena e unificada, o uso dos tribunais e dos advogados está diminuindo porque o povo
desenvolveu outros mecanismos de solucionar suas disputas e problemas. Neste país, a maioria das
famílias têm e lêem cópias do Código Civil. Eles conhecem seus direitos e obrigações e possuem
meios políticos para modificá-los. No direito criminal, também 83% dos casos são resolvidos pela
Polícia na base duma instituição chamada Forelegg, em que o criminoso admite sua culpa e paga
uma multa determinada pela Polícia com base na gravidade do delito. Se o crime é muito grave, o
suspeito pode optar pelo processo, que pode ser de dois tipos. O sumário, quando o réu admite sua
culpa e o processo é feito pelo juiz singular, que tem liberdade quase que total sobre a pena. Ele
pode perdoar o culpado, encaminhá-lo a um tratamento psiquiátrico, exigir pagamento à vitima,
mandar que o criminoso pare de tomar álcool, ou condená-lo à cadeia. Se o acusado não quer um
processo sumário, então pode optar por um processo formal, realizado por um juiz togado e por dois
leigos - o tribunal oficial, que tem o poder de absolver ou condenar segundo as leis formais do
Código Penal. Somente 30% dos acusados optam por este processo, o que mostra o alto grau de
confiança do povo, não só no Judiciário, mas também na Polícia, através do Forelegg.
Outra instituição jurídica, o Ministério Público, pode operar como agente de uma pequena elite
dominante ou servir como força de legitimação, fiscalizando a função e o equilíbrio do processo
jurídico em geral.
Esta dualidade de repressão versus legitimação é verdadeira mesmo em se tratando da Policia, que,
no Brasil, é uma instituição amplamente temida por todas as classes sociais, especialmente a classe
operária dos subúrbios das grandes cidades. Um temor que a própria Polícia criou enquanto agente,
muitas vezes arbitrário, da elite dominante. Porém não se deve esquecer que o papel original da
“Polícia” — os representantes da “polis” — era o serviço público. O agente da Polícia rural inglês,
o constable, não era uma figura temida de repressão, mas um cidadão comum, eleito por um ano
para fiscalizar as atividades da comunidade nos serviços públicos e para despertar o povo através de
hue-and-cry — o chamado para a assistência comunitária — se fosse cometido um crime ou em
caso de incêndio, especialmente à noite. Ele também tinha o poder privilegiado e único de
aprisionar qualquer pessoa por crime, e era uma figura judicial importante para decidir as disputas
menores e as brigas na zona rural, bem como controlar os problemas crônicos da comunidade,
auxiliando os débeis mentais e os bêbados. Esta tarefa parece idílica, porém era realmente o papel
do antigo policial inglês.
Esse elo legítimo entre a Polícia e a sociedade não é tão raro como se pode pensar quando se
observam somente os países da América Latina. O guarda policial on the beat (no seu território) é
uma figura familiar nos Estados Unidos e não é, geralmente, temido — exceto quando se é negro.
(A repressão brutal nos Estados Unidos tende a discriminar a cor, embora antigamente a Polícia
tenha também reprimido fortemente a formação de sindicatos.) Na verdade, na Inglaterra e no
Japão, a Polícia tem um forte papel de legitimação. O policial japonês, por exemplo, mora e
trabalha em seu distrito e ali conhece todas as pessoas pelo nome. Os forasteiros não são
interrogados diretamente, porém estão sempre sendo observados e sua presença é informada à
delegacia central, em caso de que algo fora do comum possa acontecer. Duas vezes ao ano, a Polícia
local visita cada família do distrito para (geralmente) tomar chá e ouvir qualquer queixa que os
cidadãos da localidade tenham contra eles ou contra os serviços do governo em geral. Tais
reclamações são sempre registradas e informadas ao governo. Devido às condições criadas pelas
autoridades americanas em 1945, a Polícia japonesa carrega armas de fogo. Porém, nenhum tiro foi
dado deliberadamente pelos policiais em toda a cidade de Tóquio nos últimos trinta e seis anos. A
Polícia japonesa não é apenas uma força de vigorosa legitimação, acredita ter um dever quase que
sagrado de manter a ordem e ajudar os fracos. Os policiais agem como agentes da “polis”. Assim,
há sociedades de assistência policial em todo o Japão. Tudo isso provavelmente ajuda a explicar por
que a cidade de Tóquio apresenta o mais baixo índice de criminalidade no mundo. (Aqui, “crime”
não significa “atividade não-legal”. Tóquio tem um sólido submundo de atividades formalmente
ilegais, como a prostituição, que são abertamente toleradas pelo governo e pela Policia.)
(V. Bayley, Forces and order: police behavior in Japan and the United States, 1976.)
O problema do Brasil está na própria estrutura da sociedade. Não há o que faça uma força policial
ou um sistema jurídico de Estado se legitimarem se eles operam principalmente como força
repressiva contra o povo, na defesa dos direitos e prosperidade de uma pequena classe dominante,
ou mesmo de interesses exteriores à nação.
A antropologia, com suas pesquisas sobre a aplicação real da lei nas ruas e nas comunidades, e não
nas bibliotecas e nos escritórios, pode mostrar algumas dessas contradições. A antropologia, mais
do que qualquer outra ciência social, estuda as atitudes e o modo de vida do “povão”, dos
camponeses, dos bóias-frias, dos trabalhadores e dos desempregados. Até os criminosos e os loucos
são analisados. A pesquisa pode revelar o grau dos verdadeiros problemas do direito na sociedade e
talvez dar algumas sugestões de aprimoramento. Pode ajudar a trazer ao conhecimento público uma
percepção das injustiças e arbitrariedades e auxiliar os aflitos a se defenderem. No mínimo, o
antropólogo deve cumprir seu antigo papel de dar voz a quem não a tem e fazer advertências
sinceras sobre situações reais. Depois, como dizem os chineses, “se os imperadores não escutarem
os seus censores, a dinastia cairá”.

SHIRLEY. Robert Weave. In.: Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva,1987. p. 79-93

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