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Filosofia e História

da Ciência Moderna
Disciplina optativa FLF03608

Maurício de Carvalho Ramos


Departamento de filosofia FFLCH USP

Laboratório de pesquisa interdisciplinar em epistemohistoria das


culturas científicas.
1. O problema do conhecimento e a filosofia natural do Renascimento

2. O nascimento das ciências modernas

3. A astronomia moderna e o papel do sujeito do conhecimento

4. Kepler e a harmonia do mundo

5. Galileu, experiência e razão

6. Leibniz: metafísica e física

7. Geração orgânica
Introdução
Ernst Cassirer (1874 – 1945)
O problema do conhecimento
na filosofia e na ciência modernas
1906 – Volume I
O renascer do problema do conhecimento
A descoberta do conceito de natureza
Os fundamentos do idealismo

1907 – Volume II
Desenvolvimento e culminação do racionalismo
O problema do conhecimento no sistema do empirismo
De Newton a Kant
A filosofia crítica

1920 – Volume III


Os sistemas pós-kantianos

1957 – Volume IV
As ciências exatas
O ideal do conhecimento na biologia e suas vicissitudes
Formas e direções fundamentais do conhecimento histórico
Estudo do volume I:
CASSIRER, E. El problema del conocimiento. v.1. Cidade do México: Fondo de Cultura
Económica, 1993.

Prólogo e Introdução (parte I):


Até pág. 29

Livro I. O renascer do problema do conhecimento:


pág. 179 – 187.

Livro II. A descoberta do conceito da natureza


Capítulo 1. A filosofia da natureza: pág. 225 - 260
Capítulo 2. O nascimento da ciência exata: pág. 289-320; 345 - 356
Projeto e método da obra

“[…] iluminar e esclarecer as origens e o desenvolvimento


históricos do problema fundamental da filosofia moderna: o
problema do conhecimento” (p. 7)

Esclarecer como tomou forma o conceito moderno e os sistemas


modernos de conhecimento. Esta perspectiva atribui uma
importância capital tanto para a história da filosofia como para a
das ciências modernas. Esta é, entendemos, sua principal virtude
como interpretação de fundo para um curso que articule filosofia e
história da ciência moderna.
Nossa abordagem do conteúdo é feita utilizando um estilo de
pensamento e um método epistemohistórico. Nele, os autores são
utilizados como instrumentos para a solução de problemas, a
compreensão de temas e o desenvolvimento de conceitos. O texto de
Cassirer é voltado não para a teoria do conhecimento e da ciência
moderna, mas para o problema do conhecimento. Assim, nosso
objetivo é examinar e compreender o problema partindo das ideias
do autor, mas articulando-as a outros domínios conceituais.

Segundo Cassirer, “Tentaremos analisar o complexo de premissas


com o qual nossa ciência [a ciência moderna] aborda a
interpretação dos fenômenos para ir seguindo, um a um, os fios
mais importantes em seu nascimento e desenvolvimento históricos"
(p. 16).

Seguir esses fios significa adotar pistas deixadas por Cassirer para
compreender as metamorfoses dos conceitos que estão em exame.
Prólogo: identificação de sete pistas de investigação:

(1) O pensamento moderno converge para a elaboração de um novo


conceito do conhecimento.

(2) Cada época possui um sistema de conceitos e premissas que organiza,


na forma de uma unidade, a matéria oriunda da experiência e da
observação.

(3) Sem uma introspecção crítica, este sistema, como produto do espírito,
pode ser transformado em formas fixas e definitivas:
(a) Os instrumentos livres do pensamento transformam-se em objetos
subsistentes.
(b) Os postulados livres do entendimento são considerados como coisas
do mundo exterior que são passivamente aceitas.
(4) A nova atitude moderna em relação ao conhecimento desenvolve-se na
medida em que propõe uma introspecção crítica capaz de evitar que a força
e a independência do espírito seja transformada em uma segunda realidade
independente e imutável:

(a) A ciência desfaz a ilusão de atribuir aos próprios objetos as sensações


subjetivas dos sentidos (por exemplo, a ilusão de que a cor e a textura estão
nos corpos e não na percepção dos mesmos; que a vida que sentimos
subjetivamente encontra-se nos próprios corpos vivos ou mesmo nos
inanimados), mas
(b) os conceitos como instrumentos que asseguram a supremacia do
pensamento sobre os fenômenos podem adquirir poderes próprios e
independentes. Por exemplo: os conceitos de “átomo” e de “matéria” tomados
no sentido puro devem ser meios que asseguram a supremacia do
pensamento sobre os fenômenos, mas, sem a referida crítica, eles podem ser
tomados como coisas independentes do pensamento. Uma análise crítica
deve esclarecer a estrutura e as leis interiores da ciência, a base de seus
princípios.
Esquematicamente, temos a seguinte sequência genética de sistemas de
conceitos e premissas que procuraram unificar o conteúdo proveniente
da experiência e da observação:

Transformação A atitude do estilo


dos instrumentos moderno esforça-
e postulados do se para não deixar
pensamento livre que o pensamento
em objetos e livre se torne uma
coisas exteriores. segunda realidade
fixa.

Mesmo desfazendo a
ilusão de atribuir aos
objetos atributos
subjetivos, constitui-se
o dogma de que os
conceitos adquirem
poderes independentes
(5) A análise crítica procurará eliminar este dogmatismo em relação aos
conceitos.

(6) A análise lógica deve combinar-se com a consideração histórica dos conceitos
e das premissas da ciência:
(a) Os conceitos e as premissas são resultados da capacidade criativa do
pensamento.
(b) A condicionalidade histórica do pensamento revela o desenvolvimento de tal
capacidade.
(c) Sintetizando os dois itens anteriores, vemos claramente a perspectiva
epistemohistórica de Cassirer: ele faz o método e o objeto se interpenetrarem.

(7) Síntese do método sistemático-histórico:


(a) A organização sistemática e a interdependência dos conceitos fundamentais
são projetados na imagem de sua aparição histórica.
(b) Estudo das fontes históricas dos conceitos fundamentais examinando-os
dentro do horizonte intelectual concreto no qual surgiram.
(c) A formulação geral do problema do conhecimento não se resume ao exame
dos distintos sistemas filosóficos e científicos em sucessão, mas também deve
considerar as correntes e as forças da cultura do espírito em geral – sobretudo o
nascimento e o desenvolvimento da ciência exata.
Metamorfoses epistêmicas a partir da liberdade do pensamento

Forma Forma Forma


conceitual conceitual conceitual
1 2 3

Concepção Preformacionismo Atomismo


panorgânica
Século XVII Século XVIII Século XIX

Condicionantes históricos dos conceitos


(d) A unidade interior que define os distintos fatos não estão dadas
diretamente nestes próprios fatos, mas são as sínteses do
pensamento que devem criá-las.

(8) Nesta abordagem, as origens renascentistas da filosofia e da


ciência modernas ganham significado especial.
Volume I

Introdução (parte I)
1. Conhecimento ingênuo e conhecimento científico

Conhecimento como reprodução e cópia de uma realidade


inquestionada: entre o ‘ser’ do objeto e o modo como se reflete no
conhecimento não há qualquer divergência ou contradição: entre o
ser do objeto e o modo pelo qual esse ser se constitui como
conhecimento há apenas uma diferença de grau e não de natureza
(cf. Cassirer, 1993, p. 11)

Conhecimento científico como transformação, crítica e seleção do


conteúdo oriundo do mundo exterior. O conhecimento possui uma
força originária própria.

Mas, não temos mais os “originais” externos para conferir a


consistência e a verdade dos conceitos criados por essa força
originária. O mundo conceitual se transforma em uma segunda
realidade.
“[…] se para a ciência basta reduzir o mundo multiforme das cores
e dos sons ao mundo dos átomos e dos movimentos atômicos
[conceitos científicos], dando-lhe certeza e permanência em uma
série de unidades e leis últimas e constantes, o problema
autenticamente filosófico surge precisamente ali onde estes
elementos originários do ser são concebidos, por sua vez, como
criações do pensamento" (p. 13).

Duas indagações epistemohistóricas sobre a cultura científica


moderma – pensando “com” e “a partir do” autor (Cassirer):
(1) Onde podemos chegar pensando os conceitos de conhecimento
ingênuo, ciência e filosofia a partir do que foi dito até aqui?
Desejo que esta indagação conduza ao significado de “história e
filosofia da ciência moderna”.
(2) O que significa “originário” quando Cassirer fala em “força
originária própria do conhecimento” ou “elementos originários”
conceituais como criações do pensamento ?
Voltando ao percurso proposto por Cassirer: “[…] a realidade dos
objetos se dissolve agora, para nós, no mundo da consciência; o
mundo das coisas foi substituído pelo mundo espiritual de conceitos
puros e de 'hipóteses’ " (p. 13).

Aqui é preciso refletir sobre o que estamos percebendo do


problema filosófico que está diante de nosso espírito. Feita a
reflexão, podemos ler a seguir o que considerarei como uma
solução proposta por Cassirer. Contudo, segundo minha proposta
de estudo, é necessário que essa resposta encontre agora alguma
sintonia com o espírito inquiridor de quem está estudando estas
ideias:
“[…] No campo do espiritual não se dão uma consistência e uma
‘existência’ que possam ser comparadas com a ‘existência’ dos
objetos da natureza. A realidade de um conteúdo, nesse campo,
consiste sempre no processo no qual ele é descoberto e trazido para
a consciência; somente compreendemos o ser através de seu
processo de desenvolvimento e pelas leis de seu nascimento. Daí, a
própria essência daqueles conceitos lógicos fundamentais que a
ciência desenvolve por si mesma exige que não os consideremos
como estruturas separadas e desprendidas umas das outras, mas, ao
contrário, que as captemos em sua sucessão e dependência
históricas “ (p. 13).

Nosso primeiro exemplo:


Segundo exemplo: há desejo entre os corpos da natureza?

Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759)


Maupertuis defende a posição newtoniana argumentando que
“uma resposta categórica à existência da atração – ou de qualquer
outra propriedade da matéria – depende de um conhecimento
absoluto dos corpos [...] Segundo o autor, estamos longe de tal
conhecimento” e o que podemos conhecer com segurança sobre os
corpos são basicamente duas coisas: “conhecemos conjuntos de
propriedades que nos permitem identificar este ou aquele corpo
particular e podemos também distinguir diferentes ordens de
universalidade de propriedades”
Ramos, M. de C. A geração dos corpos organizados em Maupertuis.
São Paulo: Scientiae Studia/Editora 34/Fapesp, 2009. Capítulo 1, p.
23-4.

Construção livre do pensamento de conceitos que abarquem


diferentes universalidades de propriedades.
Continuidade do processo de elaboração livre dos conceitos para
organizarem diferentes universalidades de propriedades.

Maupertuis, P.-L. M. de. Sistema da


natureza: ensaio sobre a geração dos
corpos organizados. Scientiae Studia,
7, 3, 2009. p. 473-506.
A função que o exemplo cumpriu pode ser compreendida
apenas se pudermos formular uma resposta completa para a
pergunta inicial “Há desejo entre os corpos da natureza?”.
Esta é uma maneira epistemohistoricamente direta de
verificarmos internamente nossa ligação com o que estamos
chamando de “o problema do conhecimento”.

Temos aqui um caso de elaboração de um sistema metafísico


dogmático panpsiquista ou vitalista, ou a proposição das
propriedades psíquicas na matéria representa um movimento
autônomo do pensamento na construção de conceitos capazes
de organizar criticamente os fenômenos? Esta pergunta incide
diretamente sobre o problema clássico da filosofia das ciências
biológicas acerca da cientificidade do vitalismo.
Conclusão:

“[…] vemos como um conceito que em uma época parece


contraditório consigo mesmo é empregado na seguinte como
instrumento e condição necessária de todo conhecimento” (p. 15).
Um bom exemplo é o conceito de forma; e a atração possui lugares
conceituais bem distintos na metafísica das qualidades ocultas e na
física-matemática.

“[…] a visão que cada época se forma da natureza e da realidade


das coisas é apenas a expressão e o reflexo de seu ideal de
conhecimento” (p. 16)

Como já vimos anteriormente, Cassirer diz: “Tentaremos analisar o


complexo de premissas com o qual nossa ciência aborda a
interpretação dos fenômenos para ir seguindo, um por um, os fios
mais importantes, em seu nascimento e desenvolvimento históricos"
(p. 16).
“[...] podemos confiar em ir penetrando com nosso olhar
o conteúdo desta intricada trama conceitual e, ao mesmo
tempo, ir descobrindo as relações e os nexos interiores de
dependência entre seus distintos membros [...] a história
tende a converter-se em complemento e em pedra de
toque dos resultados que a análise intrínseca e a redução
das ciências nos brindam” (p. 16) Modo de Cassirer
conceber o que consideramos uma perspectiva
epistemohistórica da pesquisa das culturas científicas.
2. Novos desenvolvimentos gerais do problema do
conhecimento: sujeito, objeto, mito e ciência.

“[…] os conceitos de ‘sujeito’ e ‘objeto’, com os quais a teoria


psicológica do conhecimento [teoria sobre a alma] geralmente
operam como se fossem pontos de partida firmes, não são
tampouco um patrimônio dado e evidente do pensamento,
mas toda época verdadeiramente criadora tem que começar
por adquiri-los e imprimir-lhes seu sentido por sua própria
conta" (p. 18).

A abordagem histórica das realizações científicas pode mostar


como sujeito e objeto podem trocar de função. O que era
objeto do mundo pode torna-se conceito no espírito; o espírito
pode torna-se objeto do mundo.
Mito e ciência também podem trocar de função. Cassirer afirma
que na filosofia renascentista não podemos “estabelecer com nitidez
os limites entre mito e ciência, entre ‘magia’ e ‘filosofia’”. Veremos
um exemplo disso ao estudarmos a magia natural de Della Porta.
Porém, também é verdade que, “percorrendo esse caminho, nossos
olhos mergulham profundamente na dinâmica do processo
intectual através do qual, e somente através dele, se processou, de
forma lenta e constante, a ‘separação’ entre esses dois domínios"
Cassirer, E. Indivíduo e cosmo na filosofia do Renascimento. São
Paulo: Martins Fontes, 1984. p. 170.

Acrescentamos que essa separação não é necessariamente


progressiva e pode apresentar metamorfoses conceituais cíclicas
que apontam para um estado futuro de novas sínteses.
Nova indagação epistemohistórica final sobre a cultura
científica moderma:

Que diferença existe entre o processo de construção de


um conceito pelo sujeito utilizando instrumentos
racionais e a história da construção do mesmo conceito
por uma comunidade de sujeitos existentes em um dado
intervalo de tempo? As duas construções são igualmente
históricas?

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