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FACUNDO: UM MITO 

ANTROPOFÓBICO DA VIOLÊNCIA E TERROR EM


LATINO-AMÉRICA

 
Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto
Professor Associado Unioeste-PR, Brasil
bernardosakamoto@yahoo.com.br

RESUMO
Com o objetivo de entender a origem mítica da exclusão social na América Latina abordamos
Facundo: civilización y barbarie (1845) de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888),
político e educador argentino. Nesta obra observa-se a oposição dos conceitos civilização e
barbárie, que fundamentam as preferências ou discriminações entre as províncias argentinas.
O conceito de civilização tem uma conotação europeia, iluminista: a maturidade da
humanidade, a racionalidade, o rigor do método científico, a vida na cidade é o modelo da
sociabilidade. A barbárie é compreendida como o estado natural do homem, está situada entre
os homens do campo, rurais, com suas costumes grosseiras e rústicas; e eles, por ignorar a
civilização, não possuem desenvolvimento da racionalidade científica apresentando
“sentimentos morais menos cultivados”. Assim, esta obra de Sarmiento propõe que a
civilização deva suplantar à barbárie. Esta dicotomia antropológica, pessoas civilizadas e
homens bárbaros, influencia o imaginário latino-americano originando os preconceitos
culturais e as políticas de exclusão ou de extermínio. Portanto, a leitura de Facundo nos faz
refletir sobre os fundamentos míticos da exclusão social, ademais, mostra-se útil para os que
elaboram projetos consistentes sobre a inclusão educacional na América Latina. O contexto
histórico da elaboração do Facundo foi a época denominada A Confederação Argentina
(1835-1852) foi um dos períodos entre a libertação da Espanha, o Período da Independência, e
a formação da República Argentina; foi predominantemente liderada pelos “federalistas”. Os
projetos fundamentais para a República eram os: dos unitaristas e dos federalistas; os
primeiros representavam os interesses da centralização do governo desde a província de
Buenos Aires; os federalistas representavam os interesses das províncias pelos governos
autônomos. O trabalho está dividido em três partes: a primeira, Facundo e a mensagem latino-
americana, segunda, a originalidade dos caracteres argentinos como imaginário tipológico
argentino e, por último, a violência e terror nos “gaúchos maus” onde se descrevem as
atitudes de Facundo Quiroga.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia e educação latino-americana, mito latino-americano,


Domingo F. Sarmiento.

INTRODUÇÃO
Com o objetivo de entender a origem mítica da exclusão social em América Latina
apresentamos, para este trabalho, a obra Facundo: civilización y barbarie (1845) do político e
educador Domingo Faustino Sarmiento (1811-1874). Numa primeira leitura, este livro pode
ser compreendido como um escrito contra seu adversário político Juan Manuel Rosas, mas
Sarmiento propõe-se elaborar um documento das ciências sociais como os da História ou
Sociologia:

1
À América do Sul em geral, e à República Argentina sobretudo, fez falta um
Tocqueville, que, munido do conhecimento das teorias sociais, como de barómetros,
octantes e bússolas o cientista viajante, viesse penetrar no interior de nossa vida
política como num campo vastíssimo e ainda não explorado nem descrito pela
ciência, e revelasse à Europa, à França, tão ávida de fases novas na vida das diversas
porções da humanidade, este novo modo de ser que não tem antecedentes bem
demarcados e conhecidos. (SARMIENTO, 1996, p. 48).
Nela observa-se a oposição dos conceitos civilização e barbárie, que fundamentam as
preferências ou discriminações entre as províncias argentinas. América é vista como uma terra
inexplorada ainda por desbravar, que contrasta com Europa.

O conceito de civilização tem uma conotação europeia iluminista: a maturidade da


humanidade, a racionalidade, o rigor do método científico, a vida na cidade é o modelo da
sociabilidade. A barbárie é compreendida como o estado natural do homem, ela está situada
entre os homens do campo, rurais, com seus costumes grosseiros e rústicos; e eles, por ignorar
a civilização, não possuem desenvolvimento da racionalidade científica apresentando
“sentimentos morais menos cultivados”. Depois da Revolução da Independência Sarmiento
observava a instabilidade política com o futuro da Argentina, pois Facundo mostra a violência
que surge da barbárie que ameaça a civilização. Assim, esta obra de Sarmiento propõe que a
civilização deva suplantar à barbárie, do contrário Argentina está condenada a sua destruição.

O Facundo contribui com a dicotomia antropológica: pessoas civilizadas e homens


bárbaros, que influenciou o imaginário latino-americano originando os preconceitos culturais
e as políticas de exclusão ou de extermínio. Como destaca Greja (2009), não foram apenas os
conceitos gerais das ideias sobre educação e política defendidas por Sarmiento que se
perpetuaram, senão principalmente a noção de dualismo entre civilização e barbárie, quando
os intelectuais1 se referem à Europa e à América, respectivamente.

A leitura de Facundo nos faz refletir sobre os fundamentos míticos da exclusão


social e tem uma relevância filosófica para poder observar as raízes mitológicas do imaginário
Latino-americano que influenciará as primeiras propostas educativas. Portanto, este trabalho
mostra-se útil para os que elaboram projetos consistentes sobre a inclusão educacional na
América Latina.

O trabalho está dividido em três partes: Facundo e a mensagem latino-americana,


originalidade dos caracteres argentinos como imaginário tipológico argentino e, violência e
terror nos “gaúchos maus”.
1
Greja (2009) no título de seu livro menciona dois destacados intelectuais, Carlos Octavio Bunge e
José Ingenieros, que foram influenciados por Sarmiento.

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1. FACUNDO E A MENSAGEM LATINO-AMERICANA.

A Confederação Argentina (1835-1852) foi um dos períodos entre a libertação da


Espanha, o Período da Independência, e a formação da República Argentina; foi
predominantemente liderada pelos “federalistas”. Os projetos fundamentais para a republica
eram os: dos unitaristas e dos federalistas; os primeiros representavam os interesses da
centralização do governo desde a província de Buenos Aires; os federalistas representavam os
interesses das província pelos governos autônomos.

Neste contexto histórico, a obra Facundo: civilización y barbárie de Domingo


Faustino Sarmiento (1811-1888) é considerado um clássico da literatura latino-americana.
Este livro, originalmente publicado por partes num jornal chileno, foi escrito quando o
unitarista Sarmiento esteve exilado, pela segunda vez, em Chile por opor-se à política do
governador da Província de Buenos Aires e líder da Confederação Argentina, o federalista
Juan Manuel de Rosas.

A descrição da Argentina exposta no Facundo, dividida entre a civilização e


barbárie, foi redigida quando o interiorano Sarmiento tinha 34 anos e não conhecia
presencialmente nem Buenos Aires nem a pampa; bastou sua formação autodidata e sua
convicção política para abordar as ações do caudilho Facundo Quiroga nas províncias do
norte.

Sarmiento foi influenciado pelas ideias liberais e unitaristas da Geração do 37; como
político chegou a ser governador, senador e presidente da Nação Argentina entre 1868 e 1874;
como educador, escreveu obras sobre educação e contribuiu para o aperfeiçoamento das
escolas em Chile, ademais, em seu governo como Presidente promoveu a vinda de professores
americanos, de Boston, para a formação de professores e, construiu bibliotecas e escolas nas
principais cidades argentinas. Vejamos como Sarmiento descreve os personagens em seu
Facundo.

A CONSTRUCÃO DO MITO ANTROPOLÓGICO EM FACUNDO

A mitologia apresenta-se, antecedendo à filosofia, como a primeira explicação que


expõe uma compreensão do mundo recorrendo a personagens sobre-humanos. Toda cultura
converte suas narrações mitológicas em histórias sagradas e fabulosas, daqui o culto aos
deuses e aos heróis, que podem ser bons ou maus.

Sarmiento concebe Argentina a partir dos atos do caudilho Facundo Quiroga, que o
apresenta em seus atos e discursos como um personagem mítico mau, misantropo ou

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antropopofóbico bárbaro, que odeia a cultura da civilização. Facundo representa o
caudilhismo, que impera na barbárie, é o governo que privilegia os interesses privados sobre o
interesse público. Facundo é o personagem que resume a centralização do poder do Estado no
caudilho. A política bárbara é elitista, ela deve ser combatida pelos princípios da civilização
que visam o interesse geral através de um estado centralista. Sarmiento inicia a obra, na
introdução, lembrando a imagem de Facundo Quiroga:

Espectro terrível de Facundo, vou evocar-te para que, sacudindo o ensanguentado pó


que cobre tuas cinzas, te levantes para explicar-nos a vida secreta e as convulsões
internas que dilaceram as entranhas de um nobre povo! Tu possuis o segredo, revela-
nos! Mesmo dez anos depois de tua trágica morte, o homem das cidades e o gaúcho
dos lhanos argentinos, ao tomar diferentes caminhos no deserto, diziam: “Não, não
morreu, ainda vive, ele virá!” Certo, Facundo não morreu, está vivo nas tradições
populares, na política e nas revoluções argentinas”. (SARMIENTO, 1996, p. 45-46)
Facundo Quiroga (1788-1835) foi um caudilho federalista assassinado em 1835,
Sarmiento insinua que foi por ordens de seu aliado político e, duas vezes governador da
província de Buenos Aires: Juan Manuel de Rosas. O chamamento para a aparição de
Facundo é pela necessidade teórica de esclarecer “a vida secreta e as convulsões internas que
dilaceram as entranhas” da Argentina. Evocar a pessoa de Facundo é apresentar, não só um
belo efeito literário para atrair a atenção do leitor, senão ressaltar o caudilho como uma
espécie sobre-humana: “Não, não morreu, ainda vive, ele virá!”, “Facundo não morreu, está
vivo nas tradições populares, na política, nas revoluções argentinas” (Ibidem). Em realidade,
Sarmiento mostra uma mescla de amor e ódio pela personagem: Facundo, e é um pretexto
para falar do caudilho, do gaucho do deserto, dos elementos que para ele representam a
barbárie e aos quais é preciso erradicar (PIGNA, 2005). Sarmiento considerava o caudilhismo
como o maior problema da Argentina, como a causa da ignorância, do declínio e a barbárie,
enquanto o unitarismo representava o progresso, a ciência e a civilização (GREJA, 2009).

Os federalistas Facundo Quiroga e Juan Manuel de Rosas são descritos de maneiras


diferentes pelo unitarista Sarmiento: “Facundo, provinciano, bárbaro, valente, audaz, foi
substituído por Rosas, filho da Buenos Aires, sem ele o ser; por Rosas, falso, coração gelado,
espírito calculista, que faz o mal sem paixão e organiza lentamente o despotismo com toda a
inteligência de um Maquiavel” (SARMIENTO, 1996, p. 47).

O assassinado Facundo foi um bárbaro, mas valente e audaz. O caudilho Rosas é


comparado como o déspota do Príncipe de Maquiavel. Sarmiento compara estes dois políticos
federalistas com as atitudes do imperador Calígula ou dos jacobinos da Revolução Francesa,

Facundo se dava ares de inspirado, de adivinho, para suprir a sua incapacidade


natural de influir sobre os ânimos. Rosas se fazia adorar nos templos e levar seu

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retrato pelas ruas num carro ao qual iam atrelados generais e senhoras, para criar
para si o prestígio que menosprezava. Mas Facundo é cruel só quando o sangue lhe
veio à cabeça e aos olhos, e vê tudo colorado. Seus cálculos frios se limitam a fuzilar
um homem, a açoitar um cidadão; Rosas não se enfurece nunca; calcula na quietude
e no recolhimento de seu gabinete, e dali saem as ordens aos seus sicários.
(SARMIENTO, 1996, p. 237-238).
A descrição de Sarmiento sobre seus inimigos políticos são observações, segundo
ele, da imparcialidade científica. O Facundo está dividido em 15 capítulos que se podem
aglutinar em três seções: os 04 primeiros capítulos tratam sobre a geografia, antropologia e a
história argentina; a segunda, em dez capítulos, sobre a vida de Facundo Quiroga; e, a
terceira, sobre o futuro político de Argentina,

Evoquei, portanto, minhas recordações e procurei, para completar os detalhes,


homens que pudessem me fornecê-los por o terem conhecido em sua infância, que
foram seus partidários ou seus inimigos, que viram com seus olhos alguns fatos,
ouviram outros e tiveram conhecimento exato de uma época ou de uma situação
particular. Ainda espero mais dados além dos que possuo, que já são numerosos. Se
passarem algumas inexatidões, rogo aos que as perceberem que mas comuniquem;
porque em Facundo Quiroga não vejo um caudilho simplesmente, mas uma
manifestação da vida Argentina tal como a fizeram a colonização e as peculiaridades
do terreno, ao qual acho necessário dedicar uma séria atenção. (SARMIENTO,
1996, p. 56).
A primeira seção do Facundo fundamenta-se numa concepção antropológica no qual
os homens são determinados pelas condições geográficas, o ambiente, em que vivem.
Montesquieu na terceira parte Do espírito da Leis explicita a relação das constituições
políticas com o clima; por exemplo, o livro XXIV tem por título “Das leis, na relação que elas
têm com a natureza do clima” encontramos no seu capítulo II que: “Os povos das regiões
quentes são tímidos como os anciões; os das regiões frias são corajosos como os jovens”
(MONTESQUIEU, 1973, p. 274); no livro XVII “Como as leis da servidão política se
relacionam com a natureza do clima” encontram-se declarações como as do capítulo II: “Não
nos devemos, pois, espantar que a covardia dos povos de clima quente os tenha, quase
sempre, tornado escravos, e que a coragem dos povos dos climas frios os tenha mantido
livres. É uma consequência que deriva de sua causa natural.” (MONTESQUIEU, 1973, p.
247). Também, no livro XIX “Das leis, em suas relações com os princípios que formam o
espírito geral, os costumes e as maneiras de um povo”, no seu capítulo IV encontramos:
“Muitas coisas governam os homens: o clima, a religião, as leis, as máximas do governo, os
exemplos das coisas passadas, os costumes, as maneiras, resultando disso um espírito geral”.
(MONTESQUIEU, 1973, p. 274).

Os unitários privilegiavam a província de Buenos Aires, sobre as outras, para ser o


centro do governo Republicano. Sarmiento anota que esta cidade é privilegiada por sua
localização, é autossuficiente e, por tanto, chegará a ser a mais grandiosa das Américas:

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Buenos Aires está destinada a ser um dia a cidade mais gigantesca de ambas as
Américas. Sob um clima benigno, senhora da navegação de cem rios que correm a
seus pés, reclinada molemente sobre um imenso território e com treze províncias
interiores que não conhecem outra saída para seus produtos, seria já a Babilônia
americana se o espírito do pampa não tivesse soprado sobre ela e se não afogasse em
suas fontes o tributo de riqueza que os rios e as províncias têm de levar-lhe sempre.
Só ela, na vasta extensão argentina, está em contato com as nações europeias; só ela
explora as vantagens do comércio externo; só ela tem o poder e as rendas.
(SARMIENTO, 1996, p. 68)
O autor ressalta que Buenos Aires está mais próxima da Europa, isto favorece o
desenvolvimento econômico e cultural desta província. Diferentemente acontece com
Córdoba, que tinha uma universidade desde o século XVII, que foi a província principal da
cultura espanhola é descrita por Sarmiento assim:

[Córdoba] Esta cidade douta não teve até hoje teatro público, não conheceu a ópera,
ainda não tem jornais e a imprensa é uma indústria que não pode criar raízes aí. O
espírito de Córdoba até 1829 é monacal e escolástico, as conversas nas salas giram
sempre sobre as procissões e as festas dos santos, sobre exames universitários,
profissão de freiras e a graduação de doutor. (SARMIENTO, 1996, p. 163).
Segundo Sarmiento, Buenos Aires é a província que possui os atributos territoriais e
cosmopolitas para desenvolver a civilização argentina e, Córdoba é uma província que possui
precariedade geográfica que determina o “espírito do povo”: com vida e costumes limitados,
diálogos pontuais entre sua população, enfim, Córdoba é “uma cidade monacal e escolástica”,
uma cidade da idade das trevas desde a perspectiva iluminista. O autor reflete sobre até que
ponto pode essas condições podem influenciar no espírito de um povo, dado que os
moradores de Córdoba têm uma visão curta, seus olhos estão voltados a uma cidade que mais
parece um claustro fechado com freiras ou monges.

Sarmiento considera que a civilização está localizada principalmente nos países do


continente europeu e os Estados Unidos. Os outros continentes como África, Ásia e os países
da América Latina possuem limitada civilização. Quando Sarmiento compara a enorme
extensão rural da Argentina com os oásis do deserto árabe é para determinar os valores morais
dos habitantes do campo argentino, inferiores às populações asiáticas:

O progresso moral, a cultura da inteligência, descuidada na tribo árabe ou tártara, é


aqui não só descuidada, mas também impossível. Onde localizar a escola para que
venham receber lições as crianças espalhadas por dez léguas de distância em todas
as direções? Assim, portanto, a civilização é totalmente irrealizável, a barbárie é
normal e devemos agradecer se os costumes domésticos mantiverem um pequeno
depósito de moral”. (SARMIENTO, 1996, p. 77).
As outras províncias, que não sejam Buenos Aires nem Córdoba, representam a
barbárie. A vida e o espírito das províncias pode ser encontrada em uma nota de rodapé do
Facundo, no qual Sarmiento relata o grau de instrução dos filhos das famílias ricas: “No ano
de 1826, durante una residência de um ano na terra de San Luis, ensinei seis jovens de

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famílias ricas a ler, o menor dos quais tinha vinte e dois anos”. (SARMIENTO, 1996, p. 77).
Na província de San Luis, na região de Cuyo da Argentina, os jovens de famílias poderosas e
ricas, com idade de mais de 20 anos eram analfabetos!: “Porque o saber é riqueza, e um povo
que vegeta na ignorância é pobre e bárbaro, como o são os da costa de África ou os selvagens
de nossos pampas”. (SARMIENTO, 1996, p. 322).

A barbárie, para Sarmiento, estaria representada pela população rural governada por
caudilhos, esta população deveria dar lugar à civilização, guiada por uma elite intelectual,
europeizada. Por isso, na sua proposta de governo, pretendia promover a imigração europeia e
estimular a educação. Sobre a vida nas cidades do interior, o autor comenta que existe
preguiça natural e limitados prazeres entre os habitantes bárbaros; as famílias são feudais,
isoladas. que não formam uma sociedade e impossibilita o governo: segurança pública e
justiça civil são quase inexistentes: “Desconheço se no mundo moderno apresenta-se um
gênero de associação tão monstruoso como este”. (SARMIENTO, 1965, p. 33).

NEGROS E INDÍGENAS NA BARBÁRIE

Na maioria dos interiores das províncias apresenta-se uma vida social com
características de “barbárie”. A população argentina estava, na época de Sarmiento, composta
principalmente de imigrantes europeus, africanos e indígenas. Vejamos como descreve a
cultura da cidade e do meio rural:

“As raças americanas vivem na ociosidade e se mostram incapazes, mesmo pela


coação, de se dedicarem a um trabalho duro e contínuo. Isto sugeriu a ideia de
introduzir negros na América, que tão fatais resultados produziu. Mas não se mostra
melhor dotada de ação a raça espanhola”. (SARMIENTO, 1996, p. 72).
Segundo Sarmiento, “as raças americanas” possuem capacidade limitada para o
trabalho e são desprovidas, como nos indígenas e negros, de persistência e rigor no trabalho.
Enquanto que os descendentes da Europa, como os alemães e escoceses, são laboriosos e
vivem na prosperidade crescente até que alguns conseguem riqueza e moram na cidade:

Causa compaixão e vergonha comparar, na Republica Argentina, a colônia alemã ou


escocesa do sul de Buenos Aires e a vila que se forma no interior: na primeira as
casinhas são pintadas; a frente da casa sempre limpa, adornada de flores e arbustos
graciosos; o mobiliário é simples, porém completo; a baixela de cobre ou de
estanho, sempre reluzente; a cama com cortinas graciosas, e os habitantes em
contínuo movimento e ação. Ordenhando vacas, fabricando manteiga e queijos,
algumas famílias conseguiram fazer fortunas colossais e se retirar para a cidade a
fim de gozar as comodidades. A vila nacional é o reverso desta medalha [...]
(SARMIENTO, 1996, p. 72).
O autor destaca a vergonha que sente ao comparar as colônias alemãs ou escocesas
do sul de Buenos Aires com as vilas do interior; ele observa que enquanto nas colônias as

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primeiras são limpas, bem cuidadas e decoradas dando a entender que pertencem a um povo
muito trabalhador e educado, que com seu esforço consegui progredir e ter uma vida
confortável; de outro lado, as casas de algumas vilas do interior apresentam falta de higiene e
suas populações não estão preocupadas em trabalhar nem em progredir, pois são habitadas por
negros, indígenas ou gaúchos.

Pode-se perceber que os indígenas e os negros não possuem condições para


contribuir na formação da República, estes são excluídos da representação política e do
projeto nacional. Vejamos, então, a participação política dos gaúchos.

2. ORIGINALIDADE DOS CARACTERES ARGENTINOS COMO IMAGINÁRIO


TIPOLÓGICO ARGENTINO.

O capítulo II de Facundo tem por título “Originalidade e caracteres argentinos: o


rastreador, o baqueano, o gaúcho mau, o cantor” no qual Sarmiento classifica os habitantes
das pampas argentinas criando uma tipología com quatro traços distintivos dos costumes e
gostos gerais. A intenção de Sarmiento com esta classificação dos gaúchos é de entender a
conjuntura política argentina:

a) O Gaúcho Rastreador. Ainda que todos os gaúchos sejam um pouco rastreadores


pelas atividades da caça; Sarmiento descreve o rastreador como um personagem grave,
circunspecto, aquele que nos tribunais inferiores tem depoimento conclusivo. Os rastreadores
estão cientes de seu conhecimento que lhe dá “dignidade reservada e misteriosa”, por isto,
pobres e ricos o tratam com consideração. Vejamos como Sarmiento descreve o rastreador
Calíbar:
Dele se conta que durante uma viagem a Buenos Aires lhe roubaram uma vez seus
arreios de gala. Sua mulher tapou o rasto com uma gamela. Dois meses depois
Calibar regressou, viu o rasto já apagado e imperceptível para outros olhos e não se
falou mais do caso. Ano e meio depois Calibar andava cabisbaixo por uma rua dos
subúrbios, entra numa casa e encontra seus arreios, enegrecidos já e quase
inutilizados pelo uso. Encontrara o rastro do ladrão depois de dois anos!
(SARMIENTO, 1996, p. 91-92).
Esta e outras histórias incríveis de rastreador Calíbar são relatadas no livro. Como
podemos perceber o rastreador é apresentado como um ser sobre-humano, um personagem
mítico no mundo rural argentino que percebe os rastros deixados por alguém depois de dois
anos.

b) O Gaúcho Vaqueano. É o conhecedor de caminhos ou de uma região, é


apresentado por Sarmiento assim,

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Depois do rastreador vem o vaqueano, personagem eminente e que tem em suas
mãos a sorte dos particulares e das províncias. O vaqueano é um gaúcho grave e
discreto, que conhece palmo a palmo vinte mil léguas quadradas de planícies, matas
e montanhas. É o topógrafo mais completo, é o único mapa que leva um general
para dirigir o movimento de sua campanha. O vaqueano vai sempre ao seu lado.
Modesto e reservado como uma cerca, está a par de todos os segredos da campanha.
A sorte do exército, o êxito de uma batalha, a conquista de uma província, tudo
depende dele” (SARMIENTO, 1996, p. 92-93
O gaúcho vaqueano determina a vida no campo por ser “o topógrafo mais completo”
e, contribui decisivamente nas vitórias do exército. Ele é descrito como o ser sobre-humano
que possui naturalmente o conhecimento da Engenharia Cartográfica e de Agrimensura, útil
para as estratégias militares, ele é mais um personagem mítico no mundo rural argentino: “É
exagerado? Nao! O general Rivera, da Banda Oriental, é un simple baqueano, que conhece
cada árvore que existe em toda a extensão da República do Uruguai” (SARMIENTO, 1965, p.
46).

O gaúcho vaqueano conhece a geografia do terreno e seus atalhos, as distâncias e o


tempo para chegar a cada lugar, por isto, ele é indispensável para os ataques inesperados no
combate.

c) O Gaúcho Mau. É o fora da lei que tem aversão aos povoados dos brancos, sem
moral e “sem ligações com os selvagens” por ser misantropo, mora na pampa isolado, se bem
seu nome é temido, ele não é odiado, é nomeado com respeito pois,

Este homem divorciado da sociedade, proscrito pelas leis, este selvagem de cor
branca no fundo não é um ser mais depravado que os habitantes dos povoados. O
ousado fora-da-lei que ataca uma patrulha inteira é inofensivo aos viajantes. O
Gaúcho Mau não é um bandido, não é um salteador; o ataque à vida não entra em
sua ideia, como o roubo não entrava na ideia do Charriador; rouba, é verdade, mas
esta é sua profissão, seu tráfico, sua ciência. Rouba cavalos. (SARMIENTO, 1996,
p. 96
O gaúcho mau conhece cada cavalo de mil fazendas, por exemplo, quando um
comprador lhe encomenda um equino com um estrela na paleta: este gaúcho percorre
mentalmente as mil fazendas das pampas, lembrando a marca, cor, as suas características
particulares de cada cavalo que existe no estado. “É surpreendente esta memória? Não!
Napoleão conhecia pelos seus nomes duzentos mil soldados, e lembrava ao vê-los todos os
fatos que a cada um deles se referiam” (SARMIENTO, 1965, p. 48).

Este personagem misantropo, de prodigiosa memória na distinção das


particularidades dos cavalos, é comparado por Sarmiento à memória prodigiosa de Napoleão
em relação aos nomes dos integrantes de seu exército. O gaúcho mau é mais um personagem
mítico, único, no mundo rural argentino: “La partida [a patrulha] rara vez lo sigue; mataría

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inútilmente sus caballos, porque el que monta el Gaucho Malo es un parejero pangaré tan
célebre como su amo” (SARMIENTO, 1965, p. 47).

d) O Gaúcho Cantor. É o próprio bardo, o vate, o trovador da idade média, é o


cronista, a memória dos costumes, a história e o biógrafo das pampas argentinas:

O Cantor está fazendo ingenuamente o mesmo trabalho de crônica, costumes,


história, biografia que o bardo da Idade Média, e seus versos seriam recolhidos mais
tarde como os documentos e dados em que haveria de se apoiar o historiador do
futuro, se a seu lado não estivesse outra sociedade culta com inteligência superior
dos acontecimentos a que o infeliz desenvolve em suas rapsódias ingênuas.
(SARMIENTO, 1996, p. 50)
Segundo Sarmiento, O Gaúcho Cantor é o lendário jogral da idade média que
representa a estagnação espiritual do meio rural argentino e, que convive com o progresso e a
civilização contemporânea. O autor ressalta que na Argentina podem ser observadas duas
civilizações diferentes: Uma que ele considera “nascente”, que pouco ou nada defere do povo
medieval enquanto ingênuos e infrutuosos; em cambio existem outros que sem se importar
pelas condições ou dificuldades, tentar acompanhar os avanços e desafios que o povo europeu
manifesta. Ambas as culturas convivem no território argentino, umas em cidades prósperas
outras no interior em vilas atrasadas.

Esta tipologia, de quatro caracteres que representam a vida no campo argentino,


serve a Sarmiento para criar o imaginário do estado de barbárie dos gaúchos. Para Sarmiento
os políticos federalistas, aqueles que desejam a autonomia de cada província, defenderiam a
permanência do atraso e da ignorância no meio rural da República Argentina.

3. VIOLÊNCIA E TERROR NOS “GAÚCHOS MAUS”

Sarmiento distingue a Facundo Quiroga e Juan Manuel de Rosas como os “gaúchos


maus”, pelos graus de violência e terror que eles manifestam ao governar. O filósofo e
politicólogo Max Weber define que, em toda associação política, o Estado possui “o
monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER,
1979, p. 98), isto é, o Estado estabelece corporações públicas (polícias, exército, etc.) para
fazer cumprir suas leis e disposições com a finalidade de manter a ordem social. Dependerá
das formas de governo (monarquia, aristocracia ou democracia) a intensidade de repressão
para manter a ordem social.

Segundo Sarmiento, o caudilho Juan Facundo Quiroga e o governo de Juan Manuel


de Rosas mostram um modo de impor a sua vontade pelo uso sistemático do terror, isto é, as

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políticas federalistas impõem a ordem social utilizando o terrorismo. Vejamos brevemente os
atos do caudilho misantropo Facundo.

O GAÚCHO MAU FACUNDO QUIROGA

Concluído o processo da independência Argentina, Facundo Quiroga apoiou o


Congresso reunido em 1824, em Buenos Aires. Em 1825, enfrentou o projeto político unitário
de Bernardino Rivadavia junto com outros caudilhos. Facundo tornou-se um dos líderes do
movimento federalista do Interior. Ocupou a província de Córdoba, segunda província depois
de Buenos Aires. Em 1831, ao termino da guerra civil, Juan Manuel de Rosas venceu Juan
Lavalle em Buenos Aires e Facundo saiu vitorioso na batalha de La Ciudadela em Tucumán.
Facundo instalou-se em Buenos Aires para consolidar sua aliança com o governador Rosas.
Frente ao conflito surgido entre as províncias de Salta e Tucumán, Facundo foi enviado com a
missão de mediar a paz; ele deslocou-se para proceder à gestão, mas em seu retorno foi
assassinado em Barranca Yaco, Córdoba, em 1835.

O caudilho Facundo Quiroga nasceu em San Antonio e chegou a ser governador


provisional de sua província, La Rioja. Sarmiento o descreve assim no Capítulo V “Vida de
Juan Facundo Quiroga” (SARMIENTO, 1965):
a. Facundo é um tipo da barbárie primitiva; não conheceu sujeição de nenhuma
lei;
b. Tinha uma cólera que era como das feras;
c. Possuía uma melena de cabelos negros semelhavam às serpentes da cabeça de
Medusa;
d. Sua voz era enrouquecida e seus olhares se convertiam em punhaladas.
e. Dominado pela cólera, matava a pontapés, estilhaçando os miolos de N por
uma disputa de jogo;
f. Arrancava as orelhas de sua amada porque lhe pedira uma vez 30 pesos para
celebrar um casamento consentido por ele;
g. Abriu a cabeça de seu filho João com um machadado, porque não havia
forma de fazê-lo calar;
h. Esbofeteou, em Tucumán, uma linda senhorita a quem não podia seduzir ou
forçar.
i. Em todos os seus atos se mostrava ainda o homem-fera sem ser por isso
estúpido e sem carecer de elevação de interesses.
j. Incapaz de se fazer admirar ou estimar, gostava de ser temido:

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Facundo não é cruel, não é sanguinário; é o bárbaro, somente, que não sabe conter
suas paixões e que, uma vez irritadas, não conhecem freio nem medida; é o terrorista
que à entrada de uma cidade fuzila um e açoita outro, mas com economia, muitas
vezes com discernimento; o fuzilado é um cego, um paralítico ou um sacristão.
(SARMIENTO, 1996, p. 236.
Facundo era denominado o “Tigre de los llanos” ou o “Enviado de Dios”; este
gaúcho apresentava um feroz rosto: “seus olhos pretos, cheios de fogo e sombreados por
povoadas sobrencelhas, produziam uma sensacao involuntária de terror em aqueles a quem
alguma vez chegaban a fixar-se, porque Facundo não miraba nunca de frente”
(SARMIENTO, 1965. p. 75-76).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das principais obras de Sarmiento, O Facundo, contribuiu com a dicotomia


antropológica: pessoas civilizadas e homens bárbaros, que influenciou o imaginário latino-
americano originando os preconceitos culturais e as políticas de exclusão ou de extermínio. O
conceito de civilização tem uma conotação europeia iluminista, próxima da racionalidade, a
ciência das pessoas da cidade. Já a barbárie está relacionada com os homens do campo,
tipificados como grosseiros e ignorantes. Esta concepção antropológica mostra a
determinação das condições geográficas nos homens.

Segundo Sarmiento, Buenos Aires é cosmopolita e representa civilização argentina e,


Córdoba, pela precariedade geográfica, é uma cidade da idade das trevas que deve procurar a
luz da razão. As outras províncias, que não sejam Buenos Aires nem Córdoba, representam a
barbárie.

Para Sarmiento, o caudilhismo está próximo da barbárie e representa o governo dos


interesses privados sobre o interesse público. Facundo é o personagem que representa a
centralização do poder do Estado no caudilho. Esta política bárbara e elitista deve ser
combatida para poder estabelecer a civilização na Argentina. Através de Facundo, Sarmiento
critica a Rosas que representa os elementos a barbárie, que considera o maior problema da
Argentina.

Sarmiento estabelece uma tipologia que representam ao bárbaro, estas características


ajudam a criar o imaginário do estado de barbárie dos gaúchos. Facundo é um tipo da barbárie
primitiva que não conheceu sujeição de nenhuma lei, e dentre suas características está a
extrema violência representada pelas suas características físicas e relatada em fatos
anedóticos. Entre estes estão sua aparência de fera, cabelos negros semelhavam à cabeça de

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Medusa, olhar que apunhala etc. A cólera o levava a matar, estilhaçar cabeças a pontapés,
arrancar as orelhas, abrir a cabeça de seu filho com um machadado etc. Estes atos cheios de
violência mostram a este gaúcho não unicamente como ignorante senão como homem não
civilizado e temido.

O trabalho, então, descreve um imaginário latino-americano criado a partir do mito


de Facundo: exclui a representação política dos indígenas e dos negros, ademais, trata de
forma preconceituosa a vida rural da pampa, da vida dos gaúchos misantropos, determinada
pela situação geográfica que possibilita uma forma de convívio através da violência e do
terror.

REFERÊNCIAS

BRAVO, Héctor Félix. Domingo Faustino Sarmiento. UNESCO: Oficina Internacional de


Educación, (1999) Disponível em:
http://www.ibe.unesco.org/publications/ThinkersPdf/sarmientos.PDF. Acesso em: 19 de
agosto de 2014.
GREJA, Camila Bueno. Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros: entre o científico e o
político: pensamento racial e identidade nacional na Argentina (1880-1920). São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2009.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril, 1973.
PIGNA, Felipe. Los mitos de la historia Argentina, de San Martín a el granero del mundo.
Buenos Aires: Planeta, 2005.
PUIGGRÓS, Adriana. “Domingo F. Sarmiento ou os antagonismos da cultura e da educação
argentinas”. In: STRECK, Danilo. Fontes da pedagogia Latino-americana. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010, p. 105-115.
SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: civilización y barbarie. 2. ed. Buenos Aires:
Universitaria, 1965.
______________________________ Facundo: civilização e barbárie. Tradução de Jaime A.
Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
WEBER, Max. “A política como vocação” In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC,
1985, p. 97-153.

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