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Convite ao espelho

Reflexão acerca da compreensão do eu

Igor Teles Feitoza


São Paulo, 17 de agosto de 2023

Na ponta da língua da maioria dos inteligentinhos – expressão de Luiz Felipe Pondé - está o
jargão “lugar de fala”. Tal expressão somente avança em uma sociedade constituída por uma porção
que concorda, pois abdicou da virtuosidade, e por uma outra porção que perdeu a habilidade de
defender-se dessa e de outras expressões gatilho.
Primeiro, expressão gatilho é aquela que causa um forte impacto emocional imediato ou dito
prima facie, mas que, porém, com uma análise mais atenta, percebe-se como um raciocício ilógico
e/ou substancialmente vazio.
Veja leitor, mencionei virtudes na introdução, tendo em mente uma virtude em especial, a
compaixão. Compaixão vem do latim cum e passio [com paixão], compadecer ou sofrer junto. A
virtude da compaixão é o que possibilita, por exemplo, de um médico oncologista verdadeiramente
ajudar um paciente que sofre dessa terrível enfermidade, mesmo, contudo, que ele próprio não tenha
tido a necessidade de vencer o câncer.
MacInteyer diz que o homem é um animal racional dependente. Sim, dependente um dos
outros, e o encaixe da engrenagem é o hábito virtuoso.
Virtude persegue o bem. O Bem, por sua vez, como diz Platão, é algo verdadeiro e justo. A
etimologia de “ética” advém do grego ethos, ao passo que “moral” vem de mos, em latim, cujo
plural é moris. Ethos e mos/moris significam, ambas, costume. Servem, portanto, para denominar
um comportamento habitual, um comportamento costumeiro. São termos indissociáveis, mas que
para fim de assimilação atribui-se moral ao comportamento prático individual, ao passo que ética
tem uma carga de meditação teórica de um coletivo.
Cinco são as correntes éticas mais corriqueiramente adotadas na contemporaneidade:
- Ética das virtudes, com seus maiores expoente sendo Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, versa
sobre a aquisição de excelências do caráter, as virtudes, que deve ser habitual e contínua. Nessa
ética a virtude responsável por aprimorar a razão seria a prudência ou razão prática. A virtude que
aprimora a vontade é a justiça. E a virtude que aperfeiçoa o afetividade é a temperança e a fortaleza.
Prudência, justiça, temperança e fortaleza, as quatro virtudes cardeais;

- Ética do dever, de Immanuel Kant. De forma sucinta, versa sobre uma lei moral, que não é jurídica
ou divina. A lei moral, para Kant, em sua metafísica (filosofia primeira) dos costumes seria um
imperativo categórico a priori da razão humana que é autônoma, auto = próprio e nomos = norma,
ou seja, criamos nossa própria regra. A priori pois é algo anterior a experiência sensível humana. E
imperativo categórico, pois não seria um dever condicional, mas um dever puro e simples, a ser
cumprido mesmo contra nossas inclinações. A proposta kantiana é redundante, o dever pelo dever. A
lei moral seria então igual para todos;

- Ética da coordenação social, de Thomas Hoobes, é a mais adotada e versa sobre um terceiro
legislador, sendo a legislação fonte e limitadora dos direitos, deveres e moral humana. O enfoque
dessa ética é a liberdade individual possível que visa a paz em sociedade. O objeto a ser protegido é
a sociedade e não o indivíduo;

- Ética do comportamento humano, de David Hume, versa sobre um referencial ético que se baseia
em um observador das condutas alheias. Para Hume, o certo e errado são ideias que temos em
nossas cabeças, e que portanto, para ele, uma ideia deve passar por nossos sentidos (visão, olfato,
audição, paladar e tato), se não houve essa experiência sensorial, a ideia deve ser descartada. Para
Hume, nossa conduta pode ser ajustada pelo ângulo daquele que possui experiência sensorial sobre
nós, um terceiro observador, sendo então o critério para a moralidade a visão alheia;

- E a ética da utilidade, de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Essa última parece ser o cume do
ideal moderno, de matematizar todo o conhecimento e colocar a realidade em uma equação. Essa
ética possui um único princípio e um método algorítmico. O princípio é a utilidade e o algoritmo é o
hedonista, um cálculo de prazer e desprazer, e a conduta moral então é decidida por um saldo entre
satisfação e insatisfação.

Antes de seguir é preciso que saiba leitor da existência de uma diferença fundamental entre
o pensamento clássico e o moderno. O clássico busca a verdade, sabendo que ela é aprimorável e
nunca esgotável. Isso implica que por mais que o indivíduo conheça muito bem a verdade, faltará
algo, e isso carrega um elemento de imprevisibilidade e insegurança, algo inaceitável para o
moderno. O pensamento moderno, procura eliminar essa insegurança transpondo a certeza
matemática e empírica para a filosofia. O empecilho dessa forma de pensar está no fato de que os
métodos científicos, por grande valor que os tenham, conseguem lidar somente com recortes da
realidade e devem considerar limitações analíticas do método e a possibilidade limitada de
isolamento de variáveis.
Seguindo, a primeira ética listada distingue-se das quatro seguintes cronologicamente e
substancialmente. Aristóteles da Grécia clássica, século IV a.C., falava em sua teologia do primeiro
motor imóvel, sobre a exigência de um ser dotado de perfeição, absoluto, puro e do qual dele
decorrem todas as coisas. Aquele que move e não é movido.
Santo Tomás de Aquino, que bebeu da fonte do aristotelismo, somou esse conhecimento à
revelação, dada na tradição apostólica e nas escrituras, do Deus (onipresente, onisciente e
onipotente) que se fez homem.
Leitor, faça uma pausa, abra seu navegador e procure pelo quadro “Ecce homo” de Antonio
Ciseri. Pronto, ficou fácil entender o modelo referencial da ética das virtudes. Como diz Platão, “a
verdade só serve a quem é seu escravo”, servir à verdade é uma atitude virtuosa que entretanto
acompanha um fardo, e que muitos ao tomar conhecimento desse peso preferem lavar as mãos na
pia do relativismo. De forma mais clara, para a ética das virtudes, ser ético é se aproximar de um
modelo ideal de perfeição, num esforço ao mesmo tempo individual e coletivo, pois o ser humano
coexiste.
Modernamente, com a ascensão do pensamento iluminista, que busca colocar num altar a
dimensão temporal em detrimento da espiritual, deificando a razão humana, é que surgem as quatro
correntes de ética seguintes. Elas embora tenham enfoques distintos, compartilham um traço, a de
considerar a existência humana de forma isolada, atomizada, fragmentada e pertencente a um
sistema teórico que engaiola a realidade em razão de uma engrenagem pública. Dito de outro modo,
você leitor, não será mais um ente ou uma pessoa, mas sim um cidadão obediente a ordem pública
ou uma força de trabalho produtiva.
Ademais, se tomada fielmente, essas quatro correntes de ética moderna culminam em
manifestações inumanas, pois, como seres dotados de paixões que somos, podemos com exercício
virtuoso, governar tais impulsos, porém, de maneira alguma – em prol do coletivo – castrá-las e
anulá-las em decorrência de um observador, legislador, do raciocínio puro ou cálculo de prazer.
Foi Pascal quem disse: “La vrai morale se moque de la morale”, ou “a verdadeira moral
zomba da moral”. Particularmente tendo a concordar, pois, se descartada uma referência divina de
perfeição absoluta a ser seguido, tal como o esforço cognitivo de Aristóteles concebeu na teologia
do primeiro motor imóvel, e a potestade do Deus cristão revelada nos evangelhos sagrados,
qualquer outra referência ética torna-se um convencionalismo temporário, ou mesmo um código de
conduta adotado como regulamento universal para atender as acepções de um grupo dominante.
Em verdade, a ética das virtudes é somente ela a ética propriamente dita, pois, versa sobre as
faculdades humanas em sua integralidade, inteligência, vontade e sentimentos. Corpo, mente e
espírito em coexistência, admitindo as possibilidades de transcendência e redenção do indivíduo no
arco da sua existência temporal.
Para ser um sujeito moral então devemos acreditar em Deus? Acredite leitor, correto está
Henry Müller, se o tema for abordado pelo ponto de vista religioso a questão fundamental não é
questionar se tu acreditas em Deus, mas, fazer por onde que ele acredite em ti.
Embora a fonte da ética das virtudes seja um ser Divino, um indivíduo não-cristão pode ter
uma conduta moral compatível com a ética das virtudes, pois moralidade é uma questão metafísica
e não religiosa.
Veja, Mario Ferreira dos Santos, em um de seus estalos escreveu: “Algo há”. Essa frase
simples é incontornável, pois a mera tentativa de refutá-la já é algo. Não se trata de um joguete de
palavras, mas sim de uma frase que carrega uma percepção ontológica (de toda a existência). Isso
porque se existe algo, esse algo pode ser acessado pelo ser humano, o acesso ocorre por meio da
realidade, que é concreta e objetiva, portanto, ato contínuo, verdades absolutas podem ser
enunciadas, com a exigência de correta gnosiologia e formulação.
Ainda para Mario, o bem (ou a verdade) – dado concreto da realidade – está disponível
como possibilidade universal e infinita, da qual o ser humano tende, persegue, no entanto, sem
jamais tocar. Portanto, admitindo um referencial de Bem Supremo, do qual você se aproxima ou se
afasta, é que temos uma régua moral, ao que o autor chamava de tímese parabólica.
Eu compreendo leitor, que muitos tomam decisões moralmente condenáveis não por má-fé,
mas sim por ignorância. Platão dizia, “o homem faz bom juízo daquilo que sabe”. Como então
podemos organizar nosso discurso? Para isso devemos novamente escalar nos ombros do gigante
Aristóteles. O filósofo enunciou quatro níveis de veracidade: o certo, o provável, o verossímil e o
possível, e para cada nível existe um tipo de discurso correspondente, na ordem, o analítico
(científico), o dialético (confronto de ideias), o retórico (convencimento de um ponto de vista) e o
poético (artístico).
Essa tipologia do discurso apresentada é o que permite organizar o peso e as proporções das
ideias que lidaremos, e eis aí o antídoto para a inteligência não ficar cega de tanta informação.
Todo esse caminho percorrido é indispensável para escolher a lente ética pela qual você
leitor irá enxergar e pensar a realidade que o cerca. Afinal, é impossível discutir a conduta humana
sem antes conhecer o potencial humano e por extensão, o seu próprio.
Sua tarefa leitor, será primeiro resolver o seu próprio enigma. Em seu reflexo, o que vê? Um
“eu hegemônico” que governa suas paixões, coexiste e é responsável por seus atos, um “eu
autônomo” puramente racional que exerce domínio tirânico sobre seus sentimentos para cumprir um
dever, o “eu” regido por um legislador que julga por você os limites morais em função do bem
coletivo, o “eu” que se adéqua ao julgo de um observador, ou o “eu” hedonista que age de acordo
com um saldo de prazer?

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