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SÍMBOLOS E DIREITO PENAL

Para Winfried Hassemer1, o estudioso do Direito Penal que defenda a tese da


existência de um Direito Penal simbólico é geralmente visto pela comunidade
acadêmica como suspeito, já que é inegável que institutos como a prisão preventiva e a
definitiva, a pena de multa, etc. são intervenções muito mais que simbólicas na vida do
cidadão. Se ao Direito Penal coubesse um papel meramente simbólico, a grande
seriedade com que se costuma debater política e cientificamente sua efetividade e
justeza estaria comprometida. É inegável que as intervenções que este ramo do Direito
realiza na prática são muito mais profundas tanto psicologicamente quanto socialmente
do que meramente simbólicas.
Entretanto, ainda na visão do referido autor, o tema deve ser tratado com seriedade e
não se trata de tema absolutamente novo, já que desde os anos de 1960 os
criminólogos norte-americanos têm defendido a tese de que a política não se constitui
meramente de poder e interesses, mas que engloba a construção e defesa de
símbolos: processos conhecidos como elaborating symbols e summarizing symbols,
que são utilizados em função de seu potencial manipulativo e emotivo; e ainda a
correção e eliminação de símbolos, os quais têm apenas uma vaga relação com a
realidade preexistente, e com ela desenvolvem uma capacidade de criar uma nova
realidade, aparente e fictícia; a análise do fenômeno penal norte-americano leva ao
encontro de figuras como os “empresários morais” e as “cruzadas simbólicas”; assim,
depreende-se que o sistema de punição não visa apenas evitar ou minimizar as
condutas proibidas, mas reafirmar valores culturais e morais que simbolizam um
determinado estilo de vida que se pretende implantar em toda a sociedade.
Também a criminologia radical tem se dedicado ao estudo do tema, e os defensores do
chamado “interacionismo simbólico” propugnam ser a criminalidade não um objeto
preexistente, mas o resultado de uma determinada interação na qual o legislador ocupa
uma posição ativa dentro de um processo fundamentalmente simbólico de rotulação e
estigmatização do ofensor.

1
HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y Protección de Bienes Jurídicos.
Para o já citado mestre da Universidade de Frankfurt, desde os trabalhos de Peter Noll
se podia enxergar os contornos da função simbólica da reação penal, concluindo este
estudioso que leis com caráter simbólico não são infreqüentes, conclusões que
redundaram na “teoria das reações de substituição” onde são correlacionados os
comportamentos dos animais que adotam posturas de combate ou de ameaça
(justamente por não estarem em condições de levar a cabo a batalha real), com a
produção de normas simbólicas, caso em que há uma demanda por regulamentação
sem que coexistam os elementos para sua efetiva aplicação e execução.

FORMAS DE DIREITO PENAL SIMBÓLICO

Ao passo em que a presença de efeitos simbólicos no âmbito do Direito Penal é quase


que um consenso, o mesmo não pode ser dito com relação às justificativas para sua
existência, estas variam conforme diversos valores que embasam seu estudo por parte
da doutrina, e conforme a amplitude com que se enxergue a questão.
Assim, ao passo que para estudiosos como Winfried Hassemer, José Luiz Diés
Ripolles, entre outros, importa analisar os efeitos simbólicos da norma em si, para
estudiosos como Odone Sanguiné, Alessandro Baratta, Vera Regina Pereira de
Andrade, importa muito mais analisar as funções não declaradas do sistema penal
como um todo.
Dessa forma,

CLASSIFICAÇÃO

Hassemer2 desenvolve uma classificação das normas (não apenas penais) com relação
ao tipo de efeito simbólico que produzem:
 Leis de declaração de valores: normas segundo as quais o Estado demonstra
uma escolha entre pontos de vista socialmente conflitantes, como
exemplificativamente ocorre na proibição do aborto, caso em que se pesam: de
um lado a liberdade de escolha por parte da mulher em quando e como ter filhos,
2
HASSEMER, Winfried. Op. Cit.
e de outro a exigência moral de que se responsabilize pelos seus descendentes
associada à confirmação da proibição de matar.
 Leis com caráter de apelação (moral): exemplificativamente, tenha-se em mente
a proteção penal dada ao meio ambiente, onde uma das funções a ser exercida
reside na conscientização da sociedade, e sobretudo dos ocupantes de posições
socialmente relevantes, acerca da necessidade de preservação.
 Respostas substitutivas do legislador: leis que visam responder à uma crise,
como nos recentes casos de atuação de facções criminosas onde o legislador
adota medidas que não visam apenas solucionar a crise, e sim tranqüilizar a
população.
 Leis de compromisso: formadas por cláusulas penais amplas, que ainda que
sejam pouco utilizáveis na prática, respondem à “necessidade de atuação” do
Estado, como se teria exemplificativamente nos casos em que o legislador utiliza
indiscriminadamente na tipificação de determinadas condutas elementos
normativos, deixando à discricionariedade dos demais níveis do sistema penal a
criminalização dessas condutas.

Características do Direito Penal Moderno

Para Winfried Hassemer3, as finalidades classicamente atribuídas à pena, sobretudo


com respeito à teoria da prevenção geral positiva, representam sempre mais que um
“mero adestramento e crua modificação do comportamento”, estando obrigada a
representar uma intervenção simbólica sobre seus destinatários – o delinqüente
condenado com relação à socialização, e a sociedade como um todo na teoria da
prevenção geral positiva – visando implantar de forma generalizada uma mentalidade
que enfatize sua invunerabilidade diante das condutas vedadas, e a liberdade e a
igualdade que legitimam a aceitação do uso da força pelo Estado. Assim, quanto mais
exigentes forem as finalidades preventivas que se atribua às penas (seja a
ressocialização do delinqüente, intimidação da capacidade delitiva, reafirmação das
normas fundamentais), e quanto mais amplos sejam os fins da pena, mais claramente

3
HASSEMER, Winfried. Op. Cit. P.
se estará diante de seu conteúdo simbólico: “perseguem com a ajuda de uma
intervenção instrumental do Direito Penal transmitir uma vida de fidelidade ao Direito”.
Esta persecução de uma “vida de fidelidade ao Direito” é precisamente, para Hassemer,
a característica do Direito Penal desde que finalizou uma fundamentalização absoluta
da pena. Segundo esta concepção, mesmo as teorias retributivas da pena estão
carregadas com essa característica “preventiva” no sentido a ela dado pelo autor:

“Não se trata apenas da aplicação instrumental do Direito e da justiça penal, e


sim (por trás dessa aplicação) de objetivos preventivos especiais e gerais:
transmitir ao condenado um sentimento de responsabilidade, proteger a
consciência moral coletiva e sedimentar o juízo social ético; se trata da
confirmação do Direito e da observância das leis.”4

CONCEITO

O termo em si ainda não foi objeto de estudo da doutrina, não existindo uma
conceituação do que seja o “simbólico” quando em relação com o Direito, e nem em
que consistem as normas penais simbólicas.
Há contudo, dentre os autores que tratam da matéria, uma espécie de consenso quanto
a direção a ser seguida, sendo certo segundo Hassemer 5 que se trata da oposição
entre o “aparente” e o “real”, entre o “manifesto” e o “latente”, entre o “verdadeiramente
querido” e o “diversamente aplicado”, tratando-se sempre dos efeitos reais oriundos da
aplicação das normas penais.
Para a construção de uma conceituação acerca do assunto, o já citado mestre alemão 6
enuncia alguns pressupostos que a seu ver devem levados em conta por sempre
estarem presentes quando se tratar do simbólico dentro do Direito:
a. Para que faça sentido, o estudo do simbólico deve voltar-se às conseqüências
do Direito Penal, tanto assim que os estudiosos que valorizam voltado
exclusivamente ao seu interior, como concreção de normas gerais ao caso
concreto são incapazes de compreender qual a utilidade e necessidade do

4
HASSEMER, Winfried. Op. Cit. P.
5
Idem. Ibidem. P
6
Idem. Ibidem. P
estudo do tema. Para o autor o fato de voltar-se às conseqüências também
explica porque atualmente o fenômeno do simbólico é de tão dilatada existência.
b. Segundo Hassemer, a elaboração de um conceito neste caso, não deveria se
apoiar em elementos de disposição como os “objetivos” ou as “intenções” do
legislador. Vez que, estes elementos apresentam seus problemas específicos de
aplicação, conhecidos pela doutrina do método subjetivo-histórico de
interpretação: na maior parte dos casos o legislador silencia acerca de suas
intenções, freqüentemente as encobre, e geralmente nem a ele ficam totalmente
claras, sobretudo, quando são elaboradas normas em que se consubstanciam-se
diversas orientações morais, algumas conflitantes entre si. Assim, um conceito
de Direito Penal simbólico deve ser fundamentado objetivamente, trocando-se as
“expectativas” por “previsibilidade”, ou seja, em vez de busca das intenções nos
efeitos que terão as leis, a existência de determinadas condições prévias
objetivas e probabilidade de um efeito. Finalmente, não se trata de estudar fins, e
sim funções.
c. A elaboração do conceito será inevitavelmente comparativa, já que o
“simbolismo” advém da promulgação e execução das leis, podendo se falar em
graus de simbolismo. Assim, mesmo uma norma tão concreta como o homicídio
(artigo 121 do Código Penal), enfeixa em si efeitos simbólicos como a
“esperança preventiva de fortalecer o respeito à vida”, e mesmo uma norma que
incrimine a conduta de genocídio (tipificada na lei 2.889, de 1º de outubro de
1956) de caráter suspeitosamente simbólico (em vista da sua difícil configuração
e comprovação no caso concreto) possui efeitos para o citado autor, visto
demonstrar não apenas a adesão do país à Convenção de 1948 sobre a
prevenção e o castigo do genocídio e seus princípios fundamentais, como ainda
adota um programa de execução de normas para um eventual caso concreto.
d. O conceito não deve se propor a apenas denunciar as leis e sua aplicação; seria
anacrônico assinalar o caráter simbólico das normas que compõem o Direito
Penal moderno, já que, como dito anteriormente, mesmo as mais efetivas
normas penais possuem elementos simbólicos. Assim, a partir de qual momento
a mistura de elementos instrumentais e simbólicos é uma questão que não pode
ser respondida apenas utilizando o conceito de Direito Penal simbólico. Deve
contudo, ser delimitado um momento a partir do qual essa crítica deve ser feita,
já que a atribuição do caráter predominantemente simbólico a uma norma não é
somente um conceito analítico inócuo, devendo servir como uma “designação
normativa-combativa”, que expressa não apenas uma descrição mas antes uma
crítica.

Ainda que se faça uso dos elementos acima elencados por Hassemer, não se pode
ainda utilizá-lo, segundo a visão deste autor, para se criticar as normas que acaso se
encaixem neste conceito, já que assinalar apenas a discrepância entre “função real” e
“função latente” é uma operação que pode ser efetivada sobre qualquer norma penal
moderna. Assim, para que reste concreto o caráter danoso e indesejável das normas
penais simbólicas faz-se mister que o objeto em questão seja passível de determinação
por alguma qualidade crítica.
Para Hassemer esta qualidade crítica reside precisamente na oposição entre aparência
e realidade, apontando ao elemento de engano, à falsa aparência de efetividade e
instrumentalidade:

“Esta qualidade, dá, em minha opinião, no objetivo buscado, usando os


requisitos já numerados, que sob ‘engano’ não se entenda uma determinada
disposição (motivos e intenções históricas do legislador), e sim uma qualidade
objetiva da norma, e sendo consciente que ‘promulgação simbólica’ é um
conceito aumentativo que descreve graus, e não simplesmente um ser ou não
ser.”7

Assim, para Hassemer8, deve-se conceituar o Direito Penal simbólico


como sendo aquele em que as funções latentes predominam sobre as manifestas, do
qual se deve esperar que realize através de sua aplicação objetivos diversos dos
descritos na norma. Devendo ressaltar-se que por “função manifesta”, entende o mestre
de Frankfurt, ter-se aquelas que a própria norma alcança com a sua formulação: uma
regulação do conjunto global de casos singulares que caem em seu âmbito de
aplicação, ou seja, a proteção do bem jurídico previsto na norma. Já as “funções
latentes” são múltiplas, e se sobrepõem, variando desde a demonstração de uma

7
HASSEMER, Winfried. Op. Cit. P.
8
IDEM. Ibidem. P.
reação por parte do legislador diante de um quadro de comoção nacional, até a simples
demonstração através da edição normativa da força do Estado.
Diante deste conceito, deve-se ter em mente que a amplitude de
aplicação e de efetividade que determinada norma penal alcançará é diretamente
proporcional à quantidade e à qualidade das condições objetivas que estejam à
disposição para a realização objetiva instrumental da norma.
Finalmente, dentro da conceituação de Hassemer do Direito Penal
simbólico, a concreção do caráter simbólico da norma não se encontra somente no
processo de aplicação da norma, vez que freqüentemente desde a sua formulação e
publicação são notados tais efeitos, ao ponto de se poder pensar na existência de
normas serem construídas sem visar qualquer eficácia instrumental.

ORIGEM DO DIREITO PENAL SIMBÓLICO

CORRELAÇÃO COM ORIENTAÇÃO ÀS CONSEQÜÊNCIAS E PREVENÇÃO

Somente aquele que se compromente com um Direito Penal orientado


às conseqüências e quer e pode medir seus efeitos tem acesso ao conceito de Direito
Penal simbólico; para um Direito Penal internamente orientado o caráter simbólico do
Direito Penal não constitui tema algum. Esta perspectiva permite compreender melhor o
surgimento e desenvolvimento do Direito Penal simbólico e ao mesmo tempo situá-lo
em seu contexto político criminal mais amplo.
O Direito Penal Simbólico surge sob esta perspectiva como uma crise
do Direito Penal orientado às conseqüências.
A orientação às conseqüências altera e acentua o problema da
legitimação do Direito Penal. Ao passo que uma regulamentação internamente
orientada somente deve demonstrar, a fim de justificação, sua submissão à hierarquia
normativa (Constituição, legislação infraconstitucional), as disposições orientadas ao
exterior não apenas devem ser corretas – tanto sua promulgação quanto sua execução
-, como devem também ser eficazes, seja na consecução de um objetivo individual
(ressocialização, reintegração), seja na busca de objetivos amplos (prevenção geral,
controle da criminalidade). A prevenção só é um conceito aceitável se é eficaz.
Somente com uma concreção histórica desta relação bastante trivial é
que podem ser vistos os problemas políticos de um Direito Penal orientado às
conseqüências e do Direito Penal simbólico, ou seja, quando alguém se pergunta o que
seja verdadeiramente uma prevenção ‘eficaz’. Esta pergunta é de difícil resposta. As
condições para uma prevenção efetiva (e com ela os pressupostos da justificação de
uma regulação penal) são complexas, historicamente variáveis e atualmente difusas.

CORRELAÇÃO COM A PROTEÇÃO DOS BENS JURÍDICOS NA POLÍTICA


CRIMINAL MODERNA

A primeira resposta, a mais antiga e simples à pergunta de quanto


cumpre o Direito Penal sua função preventiva seria: quando verdadeiramente protege
os bens jurídicos que tem como missão proteger. Esta resposta seria suficiente se
pudéssemos partir do conceito de bem jurídico e se soubéssemos o que é uma
‘verdadeira’ proteção de bens jurídicos. Devido à dificuldade em conceituar os bens
jurídicos e em afirmar quando a proteção é ‘verdadeira’ surge o Direito Penal simbólico.
A função fundamental da doutrina dos bens jurídicos era, e é, com
todas as diferenças de origem e conceito, negativa e de crítica ao Direito (ainda quando
a negatividade constituía já uma condição da potência crítica): o legislador devia
castigar somente aqueles comportamentos que ameaçavam um bem jurídico; os atos
que somente atentavam contra a moral, valores sociais ou contra o soberano deviam
ser excluídos do catálogo de delitos; o conceito de bem jurídico (para que pudesse
discriminar verdadeiramente) devia ser o mais preciso possível: assim, por exemplo, no
Direito Penal sexual não se devia referenciar ‘moralidade sexual’ mas sim a
autodeterminação, saúde e proteção da juventude.
O problema central da doutrina do bem jurídico era – e continua sendo -
que permaneceu presa nesta tarefa. Já inicialmente era previsível que o conceito de
bem jurídico não fosse capaz de transpor dois grandes obstáculos a ele vinculados: os
interesses políticos criminais de conseguir uma criminalização global e os interesses da
ciência penal de ser capaz de opor um conceito crítico sistemático de bem jurídico.
Tratava-se de estender o conceito de bem jurídico para poder abarcar todo o Direito
Penal, ou de restringi-lo para criticar o Direito Penal por sua extrapolação ao campo dos
bens jurídicos. Assim, Feuerbach havia admitido ‘delitos em sentido amplo’ nos casos
em que não se dava proteção a um bem jurídico, e Birnbaum acabou sua busca de
bens jurídicos apreensíveis como pessoas e coisas nos valores morais da sociedade.
Assim, quanto mais vago o conceito de bem jurídico e quantos mais objetos abarca,
mas tênue se torna a possibilidade de contestar à nossa pergunta de se o Direito Penal
cumpre sua função preventiva.
As dificuldades originárias da doutrina do bem jurídico não foram
solucionadas em tempos posteriores, ao contrario, acentuaram-se. Fundamentalmente,
os chamados bens jurídicos universais (os interesses da maioria na proteção da
intimidade diante da coleta de dados, administração da justiça, tráfico jurídico de
documentos, etc.) converteu-se em um tema fundamental da política criminal; este
desenvolvimento ameaça o conceito de bem jurídico e torna o Direito Penal
preventivamente orientado em uma forma especifica.
Já numa primeira aproximação vemos que as novas leis no âmbito de
nosso Direito Penal material não tem como objeto de proteção apenas bens jurídicos
universais, e que mesmo estes estão protegidos de forma especialmente vaga. Âmbitos
específicos de produção legislativa são fundamentalmente: o Direito Penal econômico,
tributário, meio ambiente, acumulação de dados, terrorismo, drogas, exportação de
materiais perigosos. Os bens jurídicos compreendidos neste âmbito são tão gerais que
não deixam nenhum desejo a satisfazer.
Trata-se de uma criminalização antecipada à lesão do bem jurídico; da
proteção do ‘bem estar’ dos homens ‘em um sentido puramente somático’ em vez da
proteção da vida e da saúde das pessoas; da saúde pública; do funcionamento do
mercado; da proteção estatal empresarial ou da acumulação de dados comercial ou
administrativa.
O desenvolvimento geral que aqui se descreveu de forma superficial
não se vê obstaculizado naturalmente pela política criminal; esta o encoraja e por vezes
o exige. Embasa-se, na já famosa frase de Binding, na ‘lesão do bem jurídico ou sua
periclitação’ como uma ‘perturbação da certeza da existência’. Aparece nas
considerações das ciências sociais como uma ‘incerteza da percepção ou da
orientação’, conseqüência da ‘crescente complexidade de cada aspecto do mundo que
para nós tem significado’. Aparece como traço distintivo de uma ‘sociedade do risco’
moderna que não pode aceitar seus perigos ou ‘riscos de modernização’, e sim que
necessita de um ‘vínculo casual e com ele ao mesmo tempo uma responsabilidade
jurídica e social’.
As assim criadas e em sua concreção experimentadas
responsabilidades, os interesses em minimizar a insegurança de uma ‘sociedade de
risco’ e de dirigir os processos complexos, têm afetado não apenas a política criminal e
sim mesmo a teoria penal e a doutrina do bem jurídico.
Jakobs constrói, influenciado pela teoria sistêmica de Luhman, sua
variante da teoria da prevenção geral positiva sobre a experiência de expectativas
frustradas em contatos sociais e na necessidade de orientação e estabilidade da
‘sociedade do risco’. Na doutrina do bem jurídico, foi Kratzsch quem viu mais
claramente o significado penal de conceitos como insegurança, complexidade,
perturbações e orientação, e como eles se plasmaram, por exemplo, na criação de tipos
de perigo abstrato que são uma reação específica à colocação em perigo de bens
jurídicos ‘os quais descartam uma influência direta devido ao efeito conjunto de
múltiplos fatores casuais’, a norma combate ‘o perigo que ameaça ao bem jurídico não
como um perigo individual, e sim como um elemento tipificado de uma perigosa grande
perturbação (direção individual através de uma ordem geral)’.
O Direito Penal abandona sua máscara liberal, quando ainda se tratava
de assegurar um ‘mínimo ético’ e se torna instrumento de controle dos grandes
problemas sociais ou estatais. Luta (ou melhor) ou contenção do delito é tarefa
demasiado estreita como Direito Penal, agora se trata de abranger proteção às
subvenções, do meio ambiente, da saúde e da política exterior.
De uma repressão pontual de lesões concretas de bens jurídicos a uma
prevenção em grande escala de situações problemáticas.
CONSEQÜÊNCIAS

Em sua concepção clássica, o Direito Penal, em sua característica de ultima ratio, é, na


opinião de Winfried Hassemer, instrumento pouco apropriado para a consecução de
objetivos políticos, para a orientação concreta de condutas e para a prevenção de
situações de perigo; sendo um instrumento de uso mais prudente, dirigido ao passado e
dotado de um arsenal de meios fragmentários, sendo-lhe vedado interferir em casos de
perturbação geral, de objetivos flexíveis ou abertos ao futuro, de meios de resolução de
conflitos, em vista do princípio da legalidade; sua utilização só se justificaria quando
realizado um injusto relevante (fato típico), quando – por mais complexas que se
mostrem as situações de risco – atribuíveis a um indivíduo concreto (culpabilidade
pessoal), situações em que deve estar presente elevado nível de certeza acerca desses
elementos para que se possa utilizar este ramo do Direito (in dubio pro reu); e
finalmente, as conseqüências penais, independente de que sejam do interesse da
maioria, esbarram na fronteira da culpabilidade e da proporcionalidade.
Diante deste quadro, parece natural que o Direito Penal uma vez convertido em prima
ratio pela “moderna política criminal”, que por sua vez aparece sempre associada a
termos como “cifra negra”, “déficit de aplicação”, etc., sejam incapazes de responder de
maneira eficiente à questões como criminalidade supranacional, crimes ambientais,
combate ao terrorismo, etc. Neste quadro surgem, na lição de Hassemer, duas figuras
correlatas: os delitos de perigo abstrato, e o Direito Penal simbólico.
O surgimento dos delitos de perigo abstrato, criados emergencialmente na busca por
um alívio da pressão exercida contra o Direito Penal para que este realize funções aos
quais não foi classicamente concebido, é culpado pela quase que eliminação do
surgimento de delitos de resultado, realizando segundo Hassemer a função de encobrir
a ausência de força de fato do Direito Penal para proteção eficaz de bens jurídicos, pela
supressão do vínculo entre comportamento criminalizado e a lesão ao bem jurídico.
Nesta concepção, o tipo penal não consiste numa provável criação de um prejuízo e
sim numa atividade que o legislador haja considerado criminosa, discussão diferente se
dá em saber se há ou não quando da eleição de tal atividade como criminosa efetiva
potencialidade de perigo abstrato, discussão que na lição do mestre de Frankfurt só
pode se dar no âmbito de promulgação da norma e não quando da sua aplicação. Estes
delitos dispensam a comprovação de um dano efetivo e em conseqüência do nexo
causal do comportamento, de forma a facilitar sua atribuição ao sujeito, debilitando a
defesa do autor da conduta.
Continuando seus eloqüentes ensinamentos, Hassemer entende que o Direito Penal
simbólico fortalece o processo, já que através da criação de delitos – sobretudo os de
perigo abstrato – o legislador age como “empresário moral” ao invés de buscar a
proteção de bens essenciais para a vida em sociedade.
Dessa forma, o Direito Penal simbólico fortalece o engano social entre as funções
manifestas e latentes que o Direito realiza, fazendo com que a pergunta crítica sobre a
real capacidade de atuação do Direito Penal seja abandonada pela classe política.
Assim, um Direito Penal simbólico que abra mão de suas funções manifestas em favor
das latentes trai os princípios de um Direito Penal liberal, especialmente no que tange à
proteção de bens jurídicos, minando a confiança popular na administração da justiça.

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