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Afirmação Histórica dos Direitos Humanos e os Referenciais da Civilização Ocidental.

A Revolu-
ção Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

UNIDADE 2

2
AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DOS
DIREITOS HUMANOS

1. AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E OS


REFERENCIAIS DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL
O estudo da afirmação histórica dos Direito Humanos remete à análise dos fatos históricos
que levaram ao surgimento de direitos e de garantias protetivos da dignidade das pessoas.

Feitas as considerações preliminares de ordem conceitual, faz-se necessário um pas-


seio rápido pela história, a fim de facilitar a compreensão sobre os desdobramentos da
temática por meio do estudo de alguns Referenciais Históricos da Civilização Ocidental.

Na Grécia antiga, desde Sócrates, existia a reflexão sobre a vida dos cidadãos na Polis
(cidade) e também sobre sua sabedoria e virtude. Naquela época, a partir da filosofia e
das contribuições de Platão e Aristóteles, se pensava sobre o convívio do homem em
sociedade (PENTEADO FILHO, 2012).

Na Idade Média, Tomás de Aquino defendeu a existência de direitos naturais ao ho-


mem. Nos casos em que um governo agisse com tirania sobre os seus súditos, por
exemplo, Aquino sustentava a licitude da revolução por parte da vítima. A esse gesto,
ele deu o nome de sedição. Assim, segundo o pensamento tomista, “[a] perturbação do
regime tirânico não tem caráter de sedição e é, portanto, eticamente permitida” (BO-
NASSI, 1982, p. 39).

A tirania acontece quando o governante procura o seu bem particular e deixa de promo-
ver o bem comum. Para Tomás de Aquino, bem comum constitui o eixo central da ética
social, sendo que todo governo que não concretiza a realização do bem comum é um
governo tirânico, podendo ser deposto.

Outros acontecimentos, materializados em documentos históricos, se somaram para


consolidar o que entendemos hoje pela teoria dos Direitos Humanos, por exemplo o
Tratado de Westphalia (1648), proclamado na Europa pondo fim à Guerra dos Trinta
Anos, de onde decorre o reconhecimento aos princípios de Estado-nação e soberania
estatal; a retomada do conceito de cidadão e a ideia de limitação da monarquia
absolutista, no iluminismo; os movimentos pela independência Norte Americana (PEN-
TEADO FILHO, 2012) etc.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, por exemplo, originária da Re-


volução Francesa e inspirada nos ideais iluministas, firmou conceitos importantes para a
constituição dos Direitos Humanos, como os de estado de direitos e soberania popular

1
(PENTEADO FILHO, 2012, p. 16), ambos consagrados textualmente no artigo 1º, parágra-
fo único, e artigo 14 da Constituição Federal do Brasil de 1988. Vejamos o texto (BRASIL,
1988), que ilustra nossa menção (destaque nosso): 2

TÍTULO I
DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrá-
tico de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
CAPÍTULO IV
DOS DIREITOS POLÍTICOS
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo
voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei [...].

Soberania popular: é a doutrina pela qual todo o poder político de um Estado


emana do povo.

Faremos apontamentos sobre alguns documentos de grande importância para localiza-


ção dos Direitos Humanos na história, bem como para compreender melhor como se
deu sua evolução e consolidação no tempo. Veremos também um detalhamento sobre
a Declaração Internacional dos Direitos do Homem e do Cidadão, citada anteriormente
em razão da sua importância elementar para o nosso estudo.

Destacamos, apenas a título de exortação 1, que alguns autores trazem outros do-
cumentos e eventos para situar a história dos Direitos Humanos. Neste trabalho,
não pretendemos esgotar todas essas fontes, mas apenas nos deter àquelas de
maior expressividade.

Carta de Liberdades ou Pequena Carta (Inglaterra – 1100)


Este documento foi firmado pelo rei Henrique I, da Inglaterra, em 1100, como meio
de proteger os costumes anglo-saxões e direitos feudais. Vale dizer que, naquela
época, os direitos feudais permitiam aos nobres que se insurgissem contra um rei
injusto. Foi desse direito de insurreição que a Carta de Liberdades foi editada, servindo
de alicerce para a Magna Charta Libertatum, que veio em seguida (CARDOSO, 1986;
CANOTILHO, 2013).

1. Exortar é o mesmo que advertir.

Direitos Humanos 2
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ção Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

Magna Charta Libertatum (Inglaterra – 1215)


2 Dentre os documentos reconhecidos internacionalmente e que limitaram o poder do
governante em relação aos direitos do homem, encontra-se o mais remoto e pioneiro
antecedente que submetia o rei a um corpo escrito de normas, procurava afastar a arbi-
trariedade na cobrança de impostos e implementava um julgamento justo aos homens.
Trata-se da Magna Charta Libertatum.

A Magna Carta foi assinada em 1215 e constituiu um acordo entre o rei e barões da
Inglaterra, que se destinou à proteção dos direitos individuais, originários da law of the
land (lei da terra). A finalidade principal do documento foi a submissão do rei às suas
regras a fim de evitar arbitrariedades e excessiva cobrança de impostos, além de reco-
nhecer direitos civis como a propriedade privada e o direito de ir e vir.

Nesse contexto histórico, o rei João, conhecido como João Sem-Terra, assinou em 15
de junho de 1215 a Magna Charta perante as autoridades civis e eclesiásticas da épo-
ca, que o haviam pressionado àquele ato, uma vez que, sobre o seu governo, pesava
um clima de profundo descontentamento em razão de derrotas militares e perdas mate-
riais sofridas pelo reino por conta de suas decisões (COMPARATO, 2019).

Reproduzimos abaixo alguns trechos


João, pela graça de Deus rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, duque da Nor-
mandia e da Aquitânia e conde de Anjou, aos arcebispos, bispos, abades, ba-
rões, juízes, coiteiros, xerifes prebostes, ministros, bailios e a todos os seus
fiéis súditos. [...]

1. Em primeiro lugar, garantimos perante Deus e confirmamos pela presente


Carta, em nosso nome e no de nossos herdeiros para sempre, que a Igreja da
Inglaterra será livre e manterá os seus direitos íntegros e as suas liberdades
intocadas; e é nossa vontade que assim seja observado; o que é evidente pelo
fato de que, antes de principiar a atual querela entre nós e nossos barões, nós,
voluntária e espontaneamente, garantimos e pela nossa Carta confirmamos
a liberdade de escolha (dos superiores eclesiásticos), a qual é reconhecida
como da maior importância e verdadeiramente essencial para a Igreja inglesa,
e obtivemos confirmação disto de parte do Senhor Papa Inocêncio III; o que
observaremos e queremos que nossos herdeiros observem em boa-fé, para
sempre. Garantimos, também, a todos os homens livres de nosso reino, de
nossa parte e de parte de nossos herdeiros para sempre, todas as liberdades
abaixo indicadas, para que eles e seus herdeiros as possuam. [...]

12. Nenhuma taxa de isenção do serviço militar (scutagium) nem contribuição


alguma será criada em nosso reino, salvo mediante o consentimento do con-
selho comum do reino, a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar
cavaleiro o nosso filho mais velho e para celebrar, uma única vez, o casamento
de nossa filha mais velha; e para isto, tão somente, uma contribuição razoável
será lançada. [...] (COMPARATO, 2019, p. 95-96, destaque nosso)

3
A Magna Charta Libertatum foi um importante instrumento normativo no
processo de constituição dos Direitos Humanos. Ela foi promulgada2 como 2
forma de garantir alguns direitos face aos amplos poderes que detinha o
monarca reinante na Inglaterra3.
Intrigante4 é a alcunha5 dada ao referido monarca de prenome6 João,
complementado com a expressão “Sem-Terra”. É claro que isso não é ao
acaso! O rei João Sem-Terra, filho de Henrique II e Eleonor da Aquitânia,
irmão de Ricardo I (Ricardo Coração de Leão), era o mais novo dos sete
filhos do casal real (FERRAZ, 2019).
O pai, rei Henrique II, havia repartido o reino entre os filhos, exceto para
João, que ainda era uma criança e não recebeu terras como herança. Desse
modo, criou-se o famoso apelido de “João Sem-Terra” ou como é conhecido
na Inglaterra, John Lackland (MALHEIRO, 2016, p. 5).

Petition of Rights (Inglaterra – 1628)


Foi um requerimento formal encaminhado pelo parlamento inglês ao rei Charles I, in-
dicando uma série de violações à lei e reclamando o reconhecimento de alguns prin-
cípios, como a criação de tributos que dependeria de aprovação do parlamento, não
haveria prisão sem causa justa, proibição de leis marciais em tempos de paz, entre
outros (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 2020, tradução nossa).

Habeas Corpus Act (Inglaterra – 1679)


Foi o instrumento que garantiu que pessoas acusadas fossem apresentadas a um juiz,
bem como consagrou o conceito de liberdade de locomoção (PENTEADO FILHO, 2012).

Bill of Rights (Inglaterra – 1689)


Este documento legitimou algumas garantias individuais, tratou da liberdade de eleição
dos parlamentares e definiu atribuições do parlamento (PENTEADO FILHO, 2012).

A Independência dos Estados Unidos e a Declaração de Independência


Americana (EUA – 1776)
A Revolução Americana, também conhecida como independência dos Estados Unidos,
foi declarada pelos colonos em 1776 e marcou o fim da colonização inglesa sobre as 13
colônias americanas. O processo de independência dos Estados Unidos manifestou a
insatisfação dos colonos com a política exploratória imposta pela Inglaterra.

2. Em termos jurídicos, quando se diz que algum ato normativo foi promulgado, significa dizer que o chefe do
Poder Executivo (Presidente da República) sancionou (aprovou) uma lei para que seja publicada.
3. Um monarca reinante é um rei ou imperador que está no exercício do seu governo.
4. Intrigante é algo que causa curiosidade.
5. Alcunha significa apelido.
6. Prenome é aquele nome que antecede um sobrenome (patronímico familiar). Por exemplo, o prenome de
“Fulano de Tal” é “Fulano”.

Direitos Humanos 4
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Esse processo de independência foi amplamente influenciado pelos ideais iluministas


difundidos na época e fomentado pela insatisfação das elites locais com o aumento da
2 exploração, principalmente a cobrança de impostos.

Ao longo do século XVIII, a Inglaterra envolveu-se em uma série de conflitos, como a


Guerra de Sucessão Espanhola, a Guerra da Orelha de Jenkins e, principalmente, a
Guerra dos Sete Anos. Essas guerras contribuíram para o endividamento da metrópole
e a instalação de uma crise financeira.

Com a crise na Inglaterra e o crescimento econômico das Treze Colônias, em 1763, o


Rei George III criou diversas leis que instituíam impostos para essas colônias.

A primeira delas foi a Lei do Açúcar, que taxava vários produtos, entre eles o café, o
vinho, o tecido e o próprio açúcar. Em seguida, várias outras leis foram criadas como a
Lei do Selo e a Lei do Chá.

A Declaração de Independência Americana deu início a uma guerra contra a Inglaterra e


materializou-se em um documento proclamado pelas 13 colônias britânicas. Este diploma for-
malizou oficialmente a separação dos EUA da Grã-Bretanha (BRITANNICA ESCOLA, 2020).

Figura 01. Apresentação ao Congresso do documento da Declaração da Indepen-


dência Americana.

Fonte: 123rf.

Constituição dos Estados Unidos da América (EUA – 1787)


A carta constitucional americana é a pedra angular do sistema de governo federati-
vo dos Estados Unidos e foi inspiração para as atuais constituições modernas de
diversos países. Este documento histórico, ainda em vigor, reconheceu importantes
direitos para os cidadãos. Malheiro Fiuza (1987, p. 70-71, grifo nosso) defende que
a Constituição americana foi:

5
[...] a primeira Constituição orgânica (ou escrita) do mundo, isto é,
seus preceitos estão contidos em um só código de forma organizada e
sistemática, num só corpo de lei. Antes de seu advento, os Estados eram 2
regidos por leis fundamentais esparsas, cujo conjunto pode ser chamado
de Constituição inorgânica [...]

Ela foi a primeira Constituição a consagrar, na prática, a Doutrina de Montes-


quieu, separando distintamente, em seu texto enxuto, os três grandes ór-
gãos do Poder do Estado: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, consubs-
tanciados ali no Congresso, no Presidente da República e na Suprema Corte.

E os americanos não só adotaram a trilogia “montesquiana” como a aprimora-


ram, através do “sistema de freios e contrapesos”, elaborado por Madison,
Hamilton e Jay, de tal maneira que os três órgãos do poder sejam interdepen-
dentes (e não independentes) e harmônicos (e não antagônicos), levando à
frente a grande engrenagem do Estado. Pode-se dizer, ainda, neste item, que
a Constituição americana criou no mundo o presidencialismo.

[...]

Ela criou o primeiro Estado federal ou Federação do mundo, forma de Es-


tado composto até então inexistente e que consiste numa união mais perfeita
entre os antigos Estados confederados, com base numa Constituição única,
superior às Constituições dos Estados-Membros. Um novo tipo de Estado com-
posto em que a União passa a ter a soberania no plano internacional, enquanto
os Estados-Membros, já agora federados, conservam para si a autonomia polí-
tica e administrativa. Uma nova forma de União em que, tanto no plano federal
como no plano estadual, existem os três órgãos do Poder, criando, assim, dois
planos harmônicos de governo. Hoje, como sabido, diversos são os Estados
do mundo que adotam a forma federativa. Entre eles, o Brasil, a Argentina, o
México, a Venezuela, o Canadá, a Suíça, a Alemanha Ocidental, a Áustria, a
Iugoslávia e, com certos aspectos sui generis, a própria União Soviética.

Agora que já estamos situados na história sobre os principais eventos e documentos


que deram origem à atual sistemática dos Direitos Humanos, é possível cogitar que os
direitos que gozamos7 atualmente não existem ao acaso, como algo solto no tempo e no
espaço, pelo contrário, são fruto da realidade social, das insatisfações, dos movimentos
em busca de mudanças, da consciência sobre o papel das pessoas no mundo, de uma
construção e constante evolução histórica.

O que vimos em comum nesses eventos todos foi o desejo de determinados grupos em
constituir direitos, garantir a proteção de outros e estabelecer limites ao poder dos so-
beranos a fim de minimizar arbitrariedades. Vale considerar que muitos outros eventos
fizeram parte desse processo de evolução histórica dos Direitos Humanos, sendo que
alguns deles estudaremos em outras unidades deste componente curricular.

2. A REVOLUÇÃO FRANCESA E A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO


HOMEM E DO CIDADÃO.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão será tratada separadamente neste
tópico. O mencionado documento originou-se de um movimento político ocorrido na Fran-
ça, no ano de 1789, a partir do descontentamento dos povos com a monarquia absolutista

7. Gozar significa usufruir.

Direitos Humanos 6
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ção Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

exercida naquele local. O movimento se deu pela Revolução Francesa, evento histórico
em que se procurava romper com o antigo regime aristocrático e centralizador, personifi-
2 cado na figura do rei.

A ideia do movimento era de instaurar uma nova sociedade, fundamentada nos ideais
iluministas, com uma forma de pensar absolutamente oposta àquela exercida até então
pelo regime absolutista. A Revolução ocorreu de modo sangrento e inúmeros símbolos
do antigo regime foram destruídos, pois representavam contravalores culturais ao que
o movimento pregava (COMPARATO, 2019).

Naquele momento histórico, o reino da França estava dividido basicamente em três


classes sociais distintas, que eram a nobreza, o clero e a burguesia. Nesta última esta-
vam inclusos os camponeses e os trabalhadores.

Ocorre que, para grande maioria do povo, composta pelas classes que estavam às
margens dos grandes círculos do reino, não eram assegurados direitos básicos, como
os relativos à personalidade humana e a soberania popular, por exemplo.

Tais situações foram o mote8 para Revolução que pouco a pouco foi espalhando pelo
mundo os seus ideais e influenciando várias nações a partir da tríade9 liberdade, igual-
dade e fraternidade. Comparato (2019, p. 139, grifo nosso) leciona que
A Revolução Francesa desencadeou, em curto espaço de tempo, a supressão
das desigualdades entre indivíduos e grupos sociais, como a humanidade jamais
experimentara até então. Na tríade famosa, foi sem dúvida a igualdade que repre-
sentou o ponto central do movimento revolucionário. A liberdade, para os homens
de 1789, limitava-se praticamente à supressão de todas as peias sociais ligadas
à existência de estamentos ou corporações de ofícios. E a fraternidade, como
virtude cívica, seria o resultado necessário da abolição de todos os privilégios.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão pretendia torna-se uma referência


universal, portanto, diferentemente dos outros documentos que citamos anteriormente,
este traz algo de novo, pois transcende aos limites de um Estado individualmente.

Dentre as disposições trazidas pelo documento, destacam-se a defesa da propriedade,


da liberdade, da segurança, a resistência à opressão, a garantia à separação dos pode-
res, o direito de pedir contas aos agentes públicos etc.

A Declaração possui um total 17 artigos, além do preâmbulo. Este último, trazemos


abaixo, para melhor compreensão do conteúdo (SENAT, 2020, grifo nosso):
Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, consi-
derando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do
homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos gover-
nos, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalie-
náveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, constantemente
presente junto a todos os membros do corpo social, lembre-lhes permanentemen-
te seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e do poder
executivo, podendo ser, a todo instante, comparados ao objetivo de qualquer ins-

8. Mote significa propósito.


9. A palavra tríade expressa o conjunto de três elementos ou objetos.

7
tituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações
dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, estejam
sempre voltadas para a preservação da Constituição e para a felicidade geral. 2
Em razão disso, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob
a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão [...].

Note-se que o texto do preâmbulo da Declaração deixa marcada a ideia de uma nova so-
ciedade, baseada em direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, em oposição
ao desprezo a estes mesmos direitos durante o antigo regime monárquico-absolutista.

A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão surgem


como o marco de um novo tempo, no qual o homem passa a ser detentor de importantes
direitos e garantias. Além disso, dado o caráter universal da Declaração, muitos de seus
princípios e fundamentos foram recepcionados por Estados soberanos em suas leis.

No início do ano de 2020, em razão da situação de pandemia decretada


pela Organização Mundial da Saúde (OMS), vivenciamos uma crise sanitária
internacional, que desencadeou uma série de medidas por parte de países em
todo o mundo com o fim de minimizar a disseminação do Coronavírus (Covid-19).
Dentre essas medidas, a que mais foi recomendada pelas autoridades
sanitárias era o isolamento social, ou seja, que o maior número de pessoas
possível deveria ficar em casa a fim de evitar aglomerações, diminuindo
assim os riscos de contágio pela doença.
Diante dessa situação atípica e supranacional10, pudemos notar o empenho e a
solidariedade de muitas pessoas na tentativa de salvar o máximo de vidas possível,
sobretudo por parte dos profissionais da saúde que, muitas vezes, mesmo em
condições precárias de trabalho, deram o máximo de si neste intento11.
Contudo, percebemos também o quão frágil é o sistema internacional de
saúde e o quanto os países de modo geral, apesar da globalização, estão
despreparados para lidar com uma situação como esta, mesmo conhecendo
precedentes12, como foi o caso da Gripe Espanhola em 1918.
Assim, com base nessas informações, surgem algumas reflexões importantes
e dignas da nossa atenção:
I. O direito à saúde pode ser considerado um Direito Fundamental?
II. Será que esse mesmo direito à saúde, concretamente, é garantido à
todas as pessoas indistintamente13?
III. O conceito de dignidade da pessoa humana abrange também o direito à saúde?
IV. No Brasil, todas as pessoas teriam condições básicas para sobreviver durante
o período de isolamento social recomendado pelas autoridades sanitárias?
V. Será que os países, de modo geral, poderiam de alguma forma se organizar
para criar políticas preventivas de enfrentamento a crises como esta?

10. Supranacional é o que vai além das fronteiras de um país.


11. Intento significa propósito.
12. Precedentes referem-se a casos parecidos anteriores.
13. Indistinto é algo ao qual não se faz distinção.

Direitos Humanos 8
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ção Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

Para fixar o conteúdo, vejamos o quadro abaixo:

2 Tabela 01. Resumo das principais informações a respeito dos documentos tratados anteriormente.

N.º DOCUMENTO LOCAL ANO OBJETIVOS


Carta de Liberdades ou Proteção dos costumes e dos direitos feudais,
01 Inglaterra 1100
Pequena Carta dentro deles o de insurreição contra rei injusto.
Proteção de direitos individuais, evitar arbitrarie-
dades e excessiva cobrança de impostos, reco-
02 Magna Charta Libertatum Inglaterra 1215
nhecer direitos civis como a propriedade privada
e o direito de ir e vir.
Criação de tributos dependente de aprovação
03 Petition of Rights Inglaterra 1628 do parlamento, proibição de prisão sem causa
justa e de leis marciais em tempos de paz.
Réus deveriam ser apresentados a um juiz, pro-
04 Habeas Corpus Act Inglaterra 1679
teção da liberdade de locomoção.
Legitimou algumas garantias individuais, tratou
05 Bill of Rights Inglaterra 1689 da liberdade de eleição dos parlamentares e de-
finiu atribuições do parlamento.
Declaração de Indepen-
06 EUA 1776 Separação política dos EUA da Grã-Bretanha.
dência Americana
Proclamação do sistema federativo, da separa-
Constituição dos Estados
07 EUA 1787 ção dos poderes, aplicação do sistema de freios
Unidos da América
e contrapesos, criação do presidencialismo.
Rompimento com a monarquia absolutista, de-
fesa dos ideais de liberdade, igualdade e frater-
Declaração dos Direitos nidade, defesa da propriedade, da liberdade, da
08 França 1789
do Homem e do Cidadão segurança, a resistência à opressão, a garantia
à separação dos poderes, o direito de pedir con-
tas aos agentes públicos etc.
Fonte: elaborado pelo autor.

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Direitos Humanos 10

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