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Golpes de Estado em África e militarização dos regimes

A
doptando o critério de classi- condições para se evoluir para situações de
MILITARES E GOLPES DE ESTADO EM ÁFRICA
ficação do fenómeno relativo guerra civil.
aos intervenientes, o golpe de Em contextos teóricos e académicos, o Mauritânia – Em Agosto de 2008, o ex-chefe do Estado-Maior do Exército e comandante da
Estado constitui-se, na grande exposto anteriormente associa-se à questão Guarda Presidencial, general Mohamed Ould Abdel Aziz toma o poder.
maioria das casos, como uma da lealdade das Forças Armadas ao poder Guiné – Em Dezembro de 2008, o capitão Dadis Camara, liderando uma junta militar, toma
guerra interna, mesmo conside- político, que se poderá constituir como o poder.
rando apoios e estímulos externos. Estamos obstáculo a golpes de Estado e revoltas
Madagáscar – Em Março de 2009, o líder da oposição ao presidente Ravalomanana, assumiu
a falar de uma acção caracterizada pela militares com sucesso; aquela lealdade, em o poder, com o apoio maciço do Exército.
rapidez e surpresa, executada por determi- momentos e espaços diferenciados, pode Fonte: Security Council Report, Abril de 2009.

nado conjunto ou grupo, com a valência ser garantida, no extremo, pela percepção
de utilização da força física/militar, com a da legitimidade governativa, por um lado e,
principal finalidade de tomar o poder. por outro, pela ideia e prática de as forças
Importa ainda acrescentar que nos estamos militares, militarizadas e até policiais pode- das populações, ao contrário das acções importante e decisivo, senão o principal,
a referir a grupos naturalmente restritos, o rem retirar maiores benefícios do regime revolucionárias, na sua pureza. o que não é de estranhar, dado que, em
que nos remete para a ideia de uma acção instalado. Num continente caracterizado pela repú- última análise, são detentores dos meios
ou acções que não implicam e não envol- Sobre o termo «militarização», este rela- blica como forma de governo esmagadora- da violência física e militar. Esta realidade
vem as massas populares. ciona-se com o «militarismo», que pode mente maioritária, cerca de 80%, podemos também induz logo a ideia ou percepção,
Parece-nos útil acrescentar ou induzir ser entendido como doutrina política que verificar a utilização do golpe de Estado pelo menos às populações em geral, do
pensamento para outra tipologia de acção, advoga a ideia de as Forças Armadas gover- como acção prioritária seleccionada para militarismo e/ou da militarização.
sobretudo no caso em que aquele grupo narem os destinos de um povo, organizado aceder ao poder. Existe alguma discrepância Por outro lado, em sociedades modeladas
restrito seja constituído maioritariamente politicamente, seja na forma de Estado, seja relativamente a números apresentados, por diferenças substanciais, nos mais
por militares; estamos a abordar o quadro noutra qualquer tipologia. derivando certamente do entendimento variados aspectos, pobres também em
conceptual da revolta militar. Do ponto de A ideia da militarização simplifica-se, muitas conceptual de golpe de Estado, de conspira- índices educacionais, mas principalmente
vista teórico, a última consubstancia acção vezes, na lógica da ocupação ou tentativa de ção no sentido do planeamento ou mesmo ressurgidas de guerras civis ou governadas
de parte, senão significativa, pelo menos ocupação do poder pelas Forças Armadas de revolta militar e até de revolução. por grupos que tomaram o poder pela
importante e representativa, das forças mi- mas, de facto, temos que a complexificar; Mas o que importa é destacar o número força, os seus diferentes sectores são por
litares e até policiais, também com o intuito muitas vezes significará mais que isso e elevado de situações e isso é possível: eles controlados ou pelos seus apoiantes
de derrubar a autoridade de facto. este incremento materializa-se ou deveria de acordo com um estudo de Patrick J. ou famílias, mesmo depois de desmilitari-
Ambas as acções podem confundir-se materializar-se na concepção e implementa- McGowan publicado em 2003 no Journal of zados, e a imagem social, na generalidade,
porque têm como finalidade o derrube da ção de determinado projecto político para Modern African Studies, no período com- é a de receio e incompreensão de projectos
autoridade; são efectuadas por um grupo aquele povo, aquela nação, politicamente preendido entre 1960 e 2001, registaram-se políticos, se assim os podemos chamar, até
restrito de pessoas e não envolvem a utiliza- organizada. 109 tentativas marcadas pelo insucesso e porque muitos deles se tornam carentes
ção e participação das massas populares. Muitas das vezes, as intervenções das Forças oitenta e dois golpes de Estado que vinga- de resultados positivos, o que, em última
A diferença está, essencialmente, no Armadas na designada política de um Estado ram e estes números têm aumentado até análise, propicia outro golpe.
seguinte: o golpe de Estado, na esmaga- correspondem à fragilização e incapacidade aos nossos dias. O insucesso social e económico resultante
dora maioria das situações, não pressupõe de outras instituições o fazerem e, nestes Komi Tsakadi, em Dezembro de 2008, em leva muitos autores, como por exemplo
grandes alterações dos chefes, estruturas e casos, até falamos do papel moderador da artigo publicado em 1998, no Journal of Elaigwu (1981), a referir que a militarização
organizações militares e, na sua preparação, Instituição militar. Mas o que importa, neste Peace Research, refere o número de 267, da política no continente africano não trou-
garante-se o seu apoio, pese embora pos- pequeno enquadramento conceptual, é que entre tentativas e golpes de Estado com xe, de forma clara, alguma vantagem.
sam ocorrer, por razões sempre justificáveis, na situação descrita, a instituição militar, sucesso, no período compreendido entre Estudos efectuados com o auxílio da econo-
substituições de alguns comandantes ou a através do projecto definidor, também se 1960 e 1990. metria procuraram responder à questão da
deslocalização e desmantelamento de algu- ocupa do estabelecimento, execução e Parece assim não haver dúvida de que a grande frequência de golpes de Estado em
mas unidades que possam revelar indícios controlo da gestão de todos os sectores e as- tomada do poder pela força em África é território africano; tal é o caso das reflexões
de comportamento incerto. A revolta militar pectos civis das sociedades. É a militarização sintomática. Sobre as razões e alguns ele- (2005) de Paul Collier e Anke Hoeffler do
não pressupõe um apoio na estrutura destas, numa palavra. mentos interessantes, avançaremos mais à Departamento de Economia da Universida-
e forças militares, tais como existem no frente, mas uma coisa também parece certa: de de Oxford. Dos resultados, poderemos
momento, pelo menos em toda ou em parte é que o método e as variâncias de poder destacar:
O “golpe de Estado” em África
significativa e será por isso que a adesão dos não vieram modificar a realidade africana, • a significativa importância dos factores
elementos e respectivos comandantes não Retivemos certamente que as acções descri- caracterizada pelas pobres condições econó- económicos, tais como a falta de cresci-
participantes ou que apoiam a autoridade tas manifestam formas violentas de tomar micas e instabilidade política. mento económico e os baixos rendimentos
de facto será importante para o sucesso o poder ou garantir alternância, grande Em todos os casos, as Forças Armadas e per capita, no despoletar da tendência
da revolta; de outra forma, estão criadas parte das vezes sem envolvimento imediato os seus chefes, desempenharam papel da execução de golpes de Estado; a estes

JANUS 2010 anuário de relações exteriores


Meio século de independências africanas
Carlos Manuel Dias Defesa e segurança 3.3.2

factores, que poderiam ser mitigados pela contrário do que se poderia pensar, fará particular da África subsariana, na parte final
POSIÇÃO POR ORDEM DE IDH
homogeneidade étnica ou alguma dominân- aumentar o risco de ocorrência de golpes (universo de 177 países) da tabela, quer no que respeita ao Índice de
cia por parte de determinada componente, de Estado; isto pode ser explicado pela Desenvolvimento Humano, quer a indicado-
acresce a diversidade de etnias existente; possibilidade de que melhores condições Desenvolvimento Humano Médio res de natureza económica.
sobre esta possível causa, diríamos somente propiciam um acréscimo de status que, por São Tomé e Príncipe – 123 Em estreita associação, verifica-se a exis-
que pode ser integrada no quadro mais sua vez, poderá induzir nos comandantes Guiné Equatorial – 127 tência de alguns regimes que têm muita
vasto de um ambiente sociopolítico frágil, outro tipo de ambições. De outro ponto de Comores – 134 dificuldade, por uma série de factores, nos
Gana – 135
marcado pela incapacidade governamental vista, umas Forças Armadas cujo único elo quais se incluem o cultural e o histórico, em
Mauritânia – 137
e pela falta de cultura política de um povo, de coesão são as condições que proporcio- justificar a sua inserção num Estado cum-
Congo – 139
muito particularmente de quem o governa, nam serão mais fáceis de comandar, por Madagáscar – 143 pridor das finalidades teleológicas e que,
contribuindo em muitos casos, pela extrema parte de um chefe ambicioso. Na nossa Sudão – 147 porventura, só existe como tal, dos pontos
fragilidade do Estado, que não consegue opinião, a militarização de alguns sectores- Togo – 152 de vista formal e jurídico. No fundo, pode-
garantir os fins teleológicos à intervenção -chave da sociedade também poderá ajudar Uganda – 154 remos estar perante abstracções, em que o
de forças militares; ao golpe; Gâmbia – 155 cidadão comum terá grande dificuldade em
• o incremento da despesa militar ou a • o estudo concluiu que Forças Armadas conviver, na justa medida em que não sente
Desenvolvimento Humano Baixo
melhoria das condições dos militares, ao significativas do ponto de vista quantitativo, verdadeiras melhorias da sua condição de
Nigéria – 158
contrariando igualmente o que a intuição vida, ao mesmo tempo que vê classes ditas
Guiné – 160
nos tenta dizer, induzem maior proba- Costa do Marfim – 166 elitistas e governantes a acumular riqueza,
bilidade de ocorrência de tentativas da Burundi – 167 por vezes desmesurada, sem praticar a boa
guerra interna, explicável, de acordo com Rep. Democrática do Congo – 168 governança, ao mesmo tempo que legalizam
ÁFRICA: O CONTINENTE DOS GOLPES os autores, pela existência de maior número Chade – 170 a sua cristalização no poder.
DE ESTADO de grupos no seio militar, separados pelo República Centro-Africana – 171 Como tal, existe grande possibilidade de o
Níger – 174
ressentimento, sentimentos de vingança, golpe de Estado se manter como méto-
Gana – Fevereiro de 1966 Guiné-Bissau – 175
ambições diferenciadas e, acrescentaríamos Burquina Faso – 176 do para a alternância política e as forças
Líbia – Setembro de 1969
nós, vários suportes ideológicos, religiosos Serra Leoa – 177 militares, neste contexto, continuarem a ser
Uganda – Janeiro de 1971
Nigéria – Julho de 1975 e étnicos; Fonte: PNUD (2007) — Relatório de Desenvolvimento percebidas como ameaça para os próprios
Humano 2007/2008. Programa das Nações Unidas para o
Seychelles – Junho de 1977 • a utilização do golpe de Estado para a Desenvolvimento, Nova Iorque, EUA. regimes. ■
Rep. Centro-Africana – Setembro de 1978 tomada de poder agrava a tendência para o
Burquina Faso – 1983 contragolpe e assim sucessivamente; se um
Mauritânia – Dezembro de 1984 grupo político quer ver legitimado o acesso
Sudão – Abril de 1985
ao poder através do método violento, estará parecem ter encontrado solução em mano-
Burundi – Setembro de 1987
Gâmbia – Julho de 1994 a legitimar quem tente a alternância pela bras eleitorais menos claras e até em altera-
São Tomé e Príncipe – Agosto de 1995 mesma via. ções de natureza constitucional, facilitando
Comores – Setembro de 1995 Ainda gostaríamos de acrescentar as ques- legitimações e legalizações de permanência
Serra Leoa – Janeiro de 1996 tões relativas à legalidade e à legitimidade. no poder; situações fáceis, até porque algu-
Nigéria – Janeiro de 1996 Se relativamente a esta, poderá o próprio mas vezes, o próprio poder legislativo assim
Burundi – Julho de 1996
povo, manipulado ou não, pressionar se erigiu pela via da violência;
Zaire – Maio de 1997
no sentido de uma acção deste tipo ser • a instabilidade política existente ou que
Serra Leoa – Maio de 1997
Congo-Brazzaville – Outubro de 1997 considerada legítima, já do ponto de vista entretanto foi criada pela tentativa ou mes-
Níger – Abril de 1999 da legalidade, a matéria apresenta-se como mo realização de um golpe de Estado com
Comores – Abril de 1999 muito problemática. É neste contexto sucesso, e que não é ultrapassada, induz em
Guiné-Bissau – Maio de 1999 que a Organização da Unidade Africana, pouco tempo, a existência de nova alternân-
Costa do Marfim – Dezembro de 1999 depois União Africana, em 1999, emitiu a cia política pelo mesmo método.
Rep. Centro-Africana – Março de 2003
conhecida Declaração de Argel, onde se Prova-se que, se este círculo vicioso de
São Tomé e Príncipe – Julho de 2003
condena a tomada de poder com recurso golpe e contragolpe não for quebrado, o
Guiné-Bissau – Setembro de 2003
Togo – Fevereiro de 2005 ao golpe de Estado. De qualquer maneira, mesmo tende a perpetuar-se.
Mauritânia – Agosto de 2005 como se verifica, o documento e/ou toda a
Mauritânia – Agosto de 2008 legislação internacional sobre a matéria não
Guiné – Dezembro de 2008 Cenários futuros
produziram nenhum efeito prático, apesar
Madagáscar – Janeiro de 2009 de o primeiro, por exemplo, preconizar O Relatório do Desenvolvimento Humano
Fonte: adaptado de NHANTUMBO, Noé (2008) — Golpes de
Estado em África. Internet: http://comunidademocambicana. sanções contra os prevaricadores. 2007/2008 faz realçar, entre outras coisas,
blogspot.com/2008/06/golpes-de-estado-em-africa.html, 14 de
Junho de 2009, 23h15min. Bem pelo contrário, diferentes dirigentes o predomínio dos Estados africanos, em

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