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DIREITO ADMINISTRATIVO II

2018/2019

PROFESSOR DOUTOR LICÍNIO LOPES MARTINS


FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Filipe Martinho Ferreira
Bibliografia: Lições de Direito Administrativo, Pedro Costa Gonçalves, 2018

Teoria Geral da Ação Administrativa.

Capítulo I: Ação administrativa (noções gerais).

1.Ação administrativa.

A ação administrativa (tarefa administrativa, função administrativa ou administração


pública em sentido material) referencia uma parcela da ação pública com características
específicas, no plano material e formal, que a singularizam e a distinguem das ações ou
tarefas desenvolvidas na execução de outras funções públicas (política, legislativa e
jurisdicional).

De forma muito simples, a ação administrativa apresenta-se como o conjunto das ações
executadas por sujeitos da Administração Pública. Ao contrário do que acontece com as
outras funções públicas, que tem uma tendência para a homogeneidade das formas ou
instrumentos de ação [leis (função legislativa), sentenças (função jurisdicional)], a ação
administrativa revela-se multiforme.

Assim, podemos afirmar que a variedade constitui uma palavra adequada para
caracterizar o modo de desenvolvimento e de revelação da ação administrativa, que se deteta,
pelo menos, ao nível:

• Dos fins;
• Do conteúdo;
• Da forma;
• Da natureza jurídica:
• Dos efeitos;
• Do âmbito de incidência.

1.1.Fins da ação administrativa: as missões da Administração Pública (AP).

A ação administrativa desenvolve-se sempre no sentido da realização do interesse público, sendo


este um ponto fulcral de qualquer ação da AP. Mas, neste ponto, a ação administrativa não se
caracteriza pela variedade, mas pela homogeneidade, podendo falar-se numa unicidade de fim da
ação administrativa.

Mas é necessária uma concretização desta prossecução do interesse público, concretização que
se realiza mediante o estabelecimento de missões da AP.

No passado, a AP exercia, fundamentalmente, funções de caráter autoritário (defesa da ordem


pública e cobrança de impostos, por exemplo), mas, ao longo do século XX, surgiram novas funções,
como a gestão de serviços públicos, o fomento e o incentivo de atividades privadas de interesse geral.

1.2.Conteúdos da ação admi nistrativa.

No desenvolvimento das suas finalidades e missões, a AP executa tarefas de conteúdo muito


variado:

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• Fiscalização e vigilância das atividades privadas, através de inspeções e vistorias (domínios
económico, ambiental ou urbanístico);
• Ações tendentes a garantir a tranquilidade e ordem pública ou atribuição de subsídios
(domínios da saúde e educação);
• Gere equipamentos e infraestruturas (domínio dos serviços públicos);
• Produz ou trata e fornece bens, entre outros.

Ou seja, um dos traços que caracteriza as missões da AP é a variedade: por exemplo, as


missões de fiscalização de atividades privadas, de construção e gestão de um quartel de
bombeiros chegam para perceber que a variedade de conteúdos das tarefas e das ações
empreendidas se apresenta como uma marca essencial da atividade administrativa.

1.3.Efeitos da ação administrativa.

Considerando as heterogéneas manifestações da ação administrativa, podemos efetuar


uma distinção com base nos efeitos desencadeados ou induzidos pela ação da AP:

1. As ações ou atos jurídicos: ações administrativas que produzem ou determinam a produção


de efeitos jurídicos, de efeitos que “afetam o ordenamento jurídico” (por exemplo, emissão de
uma ordem ou a revogação de uma decisão).
Ao domínio das ações jurídicas pertencem os atos (declarativos) com efeitos jurídicos
(atos jurídicos), que incluem:
i. Atos de caráter normativo (regulamentos administrativos);
ii. Decisões concretas e individuais (atos administrativos);
iii. Atos jurídicos não decisórios;
iv. Contratos administrativos.

Na teoria geral do direito, distinguem-se duas classes de atos jurídicos:

i. Atos jurídicos em sentido estrito: atos que consistem em “declarações de vontade


intencionalmente dirigidas à produção de efeitos jurídicos”;
ii. Atos jurídicos quase-negociais: consistem em “declarações de ciência ou de
vontade a que a ordem jurídica associa diretamente efeitos jurídicos,
independentemente da presença de uma vontade do autor nesse sentido”.

Esta distinção é pouco operativa no domínio do DA, o que explica a que se aluda apenas
a atos jurídicos da AP, o que agrega todos os atos (declarativos) da AP a cuja prática se
associam efeitos jurídicos predeterminados na lei.

Acrescente-se ainda que a vontade ocupa um lugar secundário no DA, na medida em


que o processo psicológico que conduz ao ato não tem relevância. Os atos jurídicos da AP
são considerados no seu recorte simplesmente objetivo, enquanto objetivados numa
declaração.

Os vícios que afetem o processo psicológico poderão relevar não por si mesmos, mas na
medida em que conduzam a uma ilegalidade (não conformidade da declaração com a lei), o
que não quer dizer que os atos jurídicos da AP não tenham de ser “voluntários”, no sentido
em que devem ser praticados voluntariamente pelos seus autores e não sob o uso ou a
ameaça do uso da força ou de outras formas de constrangimento (161º/2/f) CPA).

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Efetivamente, os órgãos da AP não têm vontade. Nem tão-pouco a vontade dos titulares
desses órgãos conhece relevo autónomo no campo jurídico. No contexto do art.1º/1 CPA, o
conceito de vontade parece estar associado ao resultado traduzido na prática de atos com
efeitos jurídico-administrativos, no sentido em que, por exemplo, a “formação da vontade” ou
a “execução da vontade se devem interpretar como a formação e a execução de medidas ou
de atos de caráter jurídico-administrativo.

Importa igualmente ter em atenção a relevância da vontade da AP no domínio do contrato


administrativo (284º/3 CCP).

2. As ações de facto (ou atos reais): ações administrativas que determinam a produção de meros
efeitos de facto, que não envolvem, diretamente, uma transformação da ordem jurídica
(processamento de um texto no computador ou a vistoria de um estabelecimento, por
exemplo).

Nota: O facto de as ações de facto não produzirem efeitos jurídicos não implica que não
possam determinar consequências jurídicas (a remoção de um automóvel pode envolver para
a AP um dever de indemnização quando a operação de remoção provoque danos.

As ações de facto integram, primeiramente, as operações materiais da AP (por exemplo, a


construção de uma estrada), mas incluem também atos declarativos (declarações de ciência que
a ordem jurídica não associa diretamente à produção de efeitos jurídicos, como a prestação de
informações).

1.4.Formas da ação administra tiva.

Os instrumentos, modos e processos formais da ação administrativa são também


multiformes, aludindo-se a um catálogo aberto das formas de ação administrativa.

Considerando os instrumentos, processos ou modelos de ação de que a AP se socorre


para desempenhar as missões que lhe estão confiadas, verificamos que os organismos que a
integram tomam ou adotam decisões unilaterais (por exemplo, de proibição ou autorização),
emitem avisos e recomendações, dão opiniões e pareceres, outorgam contratos (por exemplo de
obras públicas), editam normas (por exemplo, para regular relações entre a universidade e os seus
estudantes), aprovam planos e programas de ação, mas executam também, no plano material ou
físico, ações ou operações materiais (por exemplo, administração de vacinas).

Ou seja, temos modelos, de processos ou de esquemas e instrumentos de atuação com


um recorte formal, que não identificam os efeitos ou os resultados em concreto desencadeados, o
que explica um modo de atuar, mas não fornece uma indicação sobre o conteúdo concreto em
que tal agir se concretiza.

Sistematizando as formas da ação administrativa, podemos realizar uma distinção entre:

• Ações declarativas: afirma-se em comportamentos de tipo declarativo, os quais podem


determinar, ou não, a produção de efeitos jurídicos. No primeiro caso, temos “ações
declarativas com efeitos jurídicos” (autorização, ordem, proibição). No segundo casso,
temos “ações declarativas sem efeitos jurídicos”, ou seja, ações de facto (por exemplo,
recomendação ou prestação de informação);

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• Ações materiais: precipitam-se na produção de um resultado de facto ou material, isto é,
de um efeito que se projeta fisicamente na realidade (por exemplo, a construção de uma
ponte). Integram-se aqui as ações administrativas que envolvem o uso da força e da
coerção, quer no âmbito da execução coerciva de atos administrativos (175º e segs. CPA)
ou de contratos administrativos (325º CCP), quer no contexto da “coação direta” (175º/2
CPA).
Nota: Algumas vezes, a ação material segue-se a uma ação declarativa e pressupõe esta
[por exemplo, a execução (coativa) de atos administrativos (177º/1 CPA). Por exemplo, o
abate de uma árvore situada em prédio particular depois de ter sido dada uma ordem ao
proprietário que este não cumprir. Afigura-se adequado falar aqui de ações materiais de
execução. Pode também verificar-se o oposto: a ação declarativa seguir-se e pressupor
uma prévia ação material, como sucede quando a AP autoriza uma fábrica a laborar
depois da realização de uma inspeção ao local. Em casos particulares, pode revelar-se
menos fácil identificar se uma ação da Administração se apresenta como declarativa ou
material, como o ato de “exame” de avaliação, designadamente no caso da prova oral. A
prova oral, enquanto interrogatório feito pelos membros de um júri a uma pessoa constitui
uma ação material, sendo que a decisão sobre a classificação a atribuir ao examinando
corresponde a uma ação declarativa.

1.5.Natureza das formas de ação administrativas.

Para a realização das suas missões, a AP lança mão das formas que o DA disponibiliza,
mas também das formas de atuação acessíveis a qualquer pessoa que, por isso, pertencem à
esfera do direito privado.

Neste último âmbito, da utilização das formas de direito privado, ocupa posição de relevo
o contrato, que é o principal instrumento de produção de efeitos jurídicos no comércio jurídico
privado. Hoje, com o CCP, um número muito significativo de contratos das pessoas coletivas de
direito público são contratos administrativos.

Ainda subsistem espaços de contratação privada, desde logo quando a ação


administrativa é protagonizada por entidades de natureza jurídica privada.

1.5.1.Formas de ação reguladas pelo Direito Administrativo.

A referência a formas de ação administrativa chama a atenção para a variedade


dos modos, dos instrumentos e dos módulos de que a Administração se serve para agir.

Ora, uma das funções essenciais do DA consiste em definir um regime jurídico


para uma determinada forma de ação, surgindo uma “forma de ação administrativa
juridicamente regulada”.

A regulamentação jurídica de determinadas formas da ação administrativa


consiste em definir uma disciplina jurídica para um “modelo” ou “categoria abstrata de
ação”, legalmente definida nos seus elementos constitutivos, ao qual se vão reconduzir
ações concretamente executadas pela Administração.

Desta forma, a lei define, em abstrato, o regime jurídico de um modelo, de uma


forma de ação (passa a existir uma forma de ação típica), aplicando-se esse regime a
todas as manifestações concretas e reais do referido modelo, ou seja, constitui um “direito

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pré-fabricado”, baseado na forma e que serve para todas as aplicações que
correspondam ao modelo ou que se encaixem na forma.

A regulamentação da forma serve objetivos de “ordenação” e de “redução da


complexidade”, viabilizando a conceção de uma disciplina jurídica suscetível de aplicação
generalizada, introduzindo um elemento de segurança e previsibilidade na conduta da
AP.

Sem esta regulamentação em abstrato, o DA estaria marcado pelo casuísmo e


não realizaria as suas funções de orientação e direção da ação administrativa e de
garantia de proteção do administrado.

O resultado do processo de regulamentação jurídica das formas de ação conduz


ao conceito de “ação administrativa formal”: concreta ação da AP, que corresponde e que
se reconduz a uma forma juridicamente regulada. Ou seja, “ato formal é todo o ato que
deve obedecer a uma forma pré-estabelecida”.

Exemplo: A definição legal da figura de ato administrativo (148º CPA)


corresponde à definição abstrata de um modelo, de uma forma de ação à qual
se irão reconduzir inúmeras espécies de atos.

Quando, independentemente do respetivo conteúdo, um determinado


ato da AP (por exemplo, uma sanção disciplinar, uma ordem para abandono de
um local) se reconduz ao conceito de ato administrativo definido na lei, segue-
se a aplicação de um regime jurídico predisposto e formulado em abstrato para
a forma a que esse ato corresponde.

Vale dizer, seja qual for a circunstância do ato concreto, há um regime


que vai aplicar-se necessariamente, apenas por se tratar de um ato
administrativo, como sucede com a forma (150º CPA), com as menções
obrigatórias (151º CPA) ou com o dever de fundamentação (152º CPA).

Aplica-se o mesmo raciocínio a outras formas de ação, como o


regulamento ou o contrato administrativo.

1.5.2.Relevo jurídico da formalização da ação administrativa.

A existência de formas de ação administrativa juridicamente reguladas reclama


uma dupla distinção:

i. Por um lado, surge uma bifurcação entre “ações administrativas formais” e


“ações administrativas informais”, sendo formais os tipos concretos de ações
que correspondem a uma forma e informais todas as outras.
O relevo jurídico desta distinção alcança-se facilmente: ao contrário das
informais, as ações formais submetem-se ao regime jurídico previamente
definido;

ii. Por outro lado, impõe-se uma distinção entre “vários tipos de ações formais”,
entre os vários tipos de formas juridicamente reguladas (por exemplo, entre ato
administrativo e contrato administrativo).

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Esta distinção, no interior das ações formais, comporta um relevo
baseado na diferenciação prévia entre regimes jurídicos, a que se entende
deverem submeter-se diferentes formas de ação administrativa: a perceção de
uma diferença estrutural entre regulamento, ato e contrato parece ser a
justificação histórica para a delineação de regimes jurídicos específicos para
cada uma das figuras.

1.5.3.Sistema clássico das três formas reguladas de ação


administrativa.

A Parte IV do CPA (“Da Atividade Administrativa”) divide-se em três capítulos:


“Do regulamento administrativo” (I), “Do ato administrativo” (II) e “Dos contratos da
Administração Pública” (regime dos contratos é remetido para o CCP). A Parte III do CPA
contém essa disciplina, logo o contrato administrativo surge como uma forma
juridicamente regulada da ação administrativa.

Ora, isto não significa que a ação administrativa se esgota nas três formas
reguladas. A AP desenvolve muitas outras ações que não se encontram reguladas como
formas ou modelos abstratos (178º CPA).

Em relação a cada uma das três formas consideradas, a ordem jurídica


regulamenta aspetos relacionados com:

i. O procedimento de formação;
ii. Os requisitos de validade e eficácia, o regime de invalidade e o regime de
execução;
iii. O regime do contencioso, mediante a definição de regras específicas quanto aos
meios jurisdicionais de proteção dos interessados.

1.5.4.Desenvolvimentos do sistema clássico.

De forma crítica, a doutrina tem chamado a atenção par alguns aspetos do


entendimento clássico sobre a ação administrativa, aludindo-se ao excesso de rigidez
que a teoria das formas introduz na ação administrativa.

Assim, sugere-se uma relativização da distinção das várias ações formais e da


destrinça destas relativamente às ações informais, assinalando-se a tendência para um
regime comum, aplicável a todos os tipos de ação administrativa. Sublinha-se que a
compreensão das formas jurídicas acentua um estudo de “atos” quando a análise se
devia focar em comportamentos.

Sem prejuízo da procedência de algumas dessas críticas, afigura-se-nos que a


formalização continua a apresentar vantagens indiscutíveis quanto:

i. À consolidação de uma disciplina jurídica que a Administração deve observar;


ii. À segurança jurídica, quer para a AP, quer para os cidadãos;
iii. À compreensão científica do DA.

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Note-se, também, a formalização dos principais modos de ação administrativa
não tem impedido a evolução do DA, nem tem travado o livre desenvolvimento dos modos
de ação administrativa.

1.5.5.Um sistema aberto de formas de ação; os processos de ação


administrativa informal.

A doutrina tem observado não existi um numerus clausus de formas de ação


administrativa. Esta asserção pretende explicar que às formas atualmente reguladas se
podem vir a juntar outras.

Além disso, a observação pretende ainda sublinhar que a AP não se encontra


impedida de utilizar ações administrativas informais na prossecução dos objetivos que
pautam a sua intervenção.

Isto significa que a ausência de formalização de um certo modo de ação (por


exemplo, um acordo sem efeitos jurídicos vinculativos) não representa, em si mesma, um
obstáculo à utilização desse modo de agir (o obstáculo poderá resultar de a AP não estar
autorizada a desenvolver uma ação com o conteúdo especificamente pretendido). O
obstáculo pode estar no “princípio da legalidade administrativa”, que se concretiza na
exigência de fundamento legal da ação administrativa.

A AP não age sempre segundo modelos pré-definidos e formatados, sendo que,


quando o cenário é este, estamos perante uma “ação administrativa informal”. O caráter
informal de uma ação administrativa não significa que o direito a desconheça, nem que
seja ignorada pela lei administrativa, podendo o legislador estabelecer que um
determinado órgão é competente para praticar um ato informal.

Exemplo: A lei que aprova os estatutos da ANACOM estabelece que esta pode
“recomendar” aos operadores de comunicações as providências necessárias à
reparação das queixas dos utentes.

Impõe-se ainda, para notar que o “imperativo da formalização” acaba por


influenciar as ações informais, sobretudo quando as mesmas revelam uma eficácia
(jurídica ou de facto) potencialmente agressiva para os direitos dos cidadãos. Assim, é
nítida a conveniência e mesmo a exigência de configuração de um regime jurídico que
defina as condições em que a AP pode praticar ações desse tipo e as condições de
proteção jurídica dos cidadãos.

1.5.6.Conjugação entre formas de ação administrativa.

Por vezes, a produção de um certo resultado exige a combinação entre


diferentes formas da ação administrativa [por exemplo, no procedimento de formação de
inúmeros contratos públicos, que inclui, além de um contrato, um ato de adjudicação
(73º/1 CCP)].

Por outro lado, no decurso da relação contratual, surgem os atos administrativos


conformadores da relação contratual (307º CCP). Outro exemplo de combinação entre
ato e contrato encontra-se nos contratos pelos quais a AP se vincular a praticar, ou não,
um ato administrativo com um certo conteúdo (57º/3 CPA e 337º CCP).

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1.5.7.Liberdade de escolha entre formas de ação administrativa.

Vista por alguns autores como uma questão de “boa administração”, a regra da
“livre escolha” entre as formas pressupõe a escolha do regime jurídico aplicável.

O tema da liberdade de escolha entre formas de ação tem-se colocado a respeito


da alternativa entre “ato administrativo e contrato”. A questão pode formular-se, também,
a respeito da escolha entre a ação formal (por exemplo, um ato administrativo de ordem
de retirada de um produto do mercado) ou a ação informal (por exemplo, alerta público
sobre os efeitos nocivos desse mesmo produto).

Do exposto não se deve inferir que a lei se revela indiferente quanto à escolha
da forma da ação administrativa, remetendo esta escolha em todos os casos para os
critérios não estritamente jurídicos de “boa administração”. Há casos em que os efeitos
jurídicos a constituir implicam o uso de uma determinada forma (por exemplo, a avaliação
de um aluno não pode deixar de repousar num ato declarativo e unilateral do júri de
exame).

1.6.Âmbito de incidência da ação administrativa.

Considerando o âmbito de incidência da ação administrativa, temos três áreas em que a


ação da AP se desenvolve:

a) Ação administrativa externa: ação que a AP promove e desenvolve no contexto do seu


relacionamento com os particulares (cidadãos, empresas e outras entidades criadas no
seio da sociedade)
Apesar de o caráter externo se poder encontrar também na ação
interadministrativa, sublinha-se que apenas no caso que agora vemos se verifica a
produção de efeitos ou de resultados num âmbito que transpõe as fronteiras da AP
(projetando-se extra-muros), integrando ações que colocam em confronto a AP com
entidades que estão fora dela, integradas na Sociedade Civil.
Assim, o âmbito da ação administrativa externa pressupõe o encontro ou
cruzamento entre o interesse público, protagonizado pela AP e um interesse privado,
radicado no particular beneficiado ou prejudicado pela ação administrativa, ou seja, há
uma diferença entre os interesses presentes ou envolvidos nos processos de
relacionamento intersubjetivo promovidos no âmbito da ação administrativa externa.

b) Ação interadministrativa: as ações que se desenvolvem num quadro de relacionamento


entre duas ou mais entidades públicas (por exemplo, entre o Estado e um município).
A diversidade de natureza jurídica das entidades que integram a AP [entidades
com personalidade de direito público (institutos públicos, por exemplo), mas também
entidades com personalidade de direito privado (por exemplo, sociedades comerciais)]
conduz a considerar ainda interadministrativas as ações que se processam entre
entidades administrativas privadas (por exemplo, relações jurídicas administrativas que
se processam entre os municípios e as empresas municipais de que aqueles sejam
acionistas únicos).
Quer dizer, quer se trate de ações que promovem o relacionamento entre
entidades de direito público (por exemplo, ações de inspeção do Estado nas autarquias
locais, no âmbito da tutela administrativa), quer se trate de ações que relacionam
entidades públicas e entidades administrativas privadas (por exemplo, o financiamento

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estadual de uma empresa pública), entram em jogo ações de caráter intersubjetivo, que
não esgotam a sua eficácia no interior da própria entidade responsável pela ação.
Do ponto de vista formal, estão em causa formas de ação administrativa externa,
mas deve sublinhar-se o caráter apenas formalmente externo, porquanto se trata de
ações que projetam e esgotam os respetivos efeitos ou resultados no espaço “interior da
AP” (intra muros).
Assim, o tipo de ação em presença envolve o relacionamento entre duas
entidades (ação de incidência externa), mas, pertencendo essas duas entidades à AP,
poderá concluir-se que o âmbito da ação se esgota no “interior da AP”.
Percebe-se, desta maneira, que a ação interadministrativa desconheça o
fenómeno do encontro entre interesse público e interesses privados, o que não significa
que não existam relações de tensão e até de conflito entre as entidades que se
relacionam neste âmbito.

c) Ação administrativa interna: trata-se da ação que se desenrola no “interior de uma


entidade da AP”. É uma ação intrasubjetiva, que não coloca em contacto dois sujeitos
diferentes, visto que se processa dentro de uma mesma entidade. Incluem-se ações que
se desenvolvem na relação:

i. Entre os órgãos de uma entidade (por exemplo, numa universidade, as


relações entre a assembleia da universidade e o reitor);
ii. Dentro dos órgãos de uma entidade (por exemplo, as relações entre o
presidente e os restantes membros de um órgão colegial);
iii. Entre os órgãos e os serviços de uma entidade (por exemplo, as relações
entre o presidente da câmara municipal e os serviços municipais);
iv. Entre os órgãos e os trabalhadores de uma entidade.

A pluralidade interna das pessoas coletivas, bem como nos serviços,


trabalhadores e agentes ao seu serviço, é a responsável pela existência de uma ação
interna, que se desenvolve dentro da pessoa coletiva e em cujo âmbito podem processar-
se relações jurídicas (internas).
A relação de hierarquia ocupa, aqui, uma posição de destaque, visto que o
vínculo hierárquico constitui uma importante fonte de atos internos (por exemplo, ordens,
diretivas, ente outros). Mas a ação administrativa interna pode ainda concretizar-se em
ações materiais (por exemplo, limpeza de edifícios; redação de documentos, entre
outros), bem como em atos jurídicos internos de recorte variado (por exemplo, pareceres
ou recomendações).
Em algumas situações, pode surgir a dúvida sobre se uma determinada ação
projeta efeitos apenas no plano interno (esgotando a sua eficácia jurídica dentro da
entidade) ou se irradia uma eficácia externa (por exemplo, engendrar efeitos que se
repercutem na situação jurídica pessoal de um membro da entidade). Se há casos
indiscutíveis no sentido do caráter externo (por exemplo, a aplicação de uma sanção
disciplinar a um trabalhador), em relação a outros podem haver dúvidas (por exemplo, os
atos no quadro do relacionamento entre um órgão e os respetivos titulares ou membros).

2.Ação e inação administrativa.

A ação administrativa remete para um “fazer”, traduzido na adoção de um comportamento


positivo, que pode ser uma tomada de uma medida ou na prática de um ato jurídico.

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Mas o “não fazer” (inação) também assume relevância jurídica na vida administrativa, que
varia em função do tipo de iniciativa suscetível de desencadear uma atuação da AP: pode
desenvolver-se na sequência de um ato de iniciativa externo (hétero-iniciativa); ou como
resultado de uma decisão da própria AP responsável pela ação a empreender (autoiniciativa).

a) Inação administrativa no caso de hétero-iniciativa.

Quando a iniciativa de pôr em marcha a ação administrativa pertence a um particular


ou a uma entidade pública diferente da entidade a atuar, o ato de iniciativa desencadeia um
dever legal de agir: dependendo do tipo de solicitação, o dever legal de agir pode corresponder
a um dever de proceder, que se concretiza, pelo menos, num dever de responder ou “dever
de pronúncia” e, porventura, a um dever de decidir (13º CPA).

Nota: O art.13º CPA tem, como epígrafe, “princípio da decisão”, mas, pelo menos no seu nº1,
o que se regula é um “princípio de pronúncia”. Ali se estabelece que os órgãos da AP “têm o
dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam
apresentados e sobre os assuntos que aos interessados digam diretamente respeito, bem
como sobre quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em
defesa da CRP, das lei ou do interesse público”. Dependendo das circunstâncias (acima de
tudo, do pedido e da legitimidade do requerente), o dever de pronúncia pode consistir num
dever de decisão, mediante a tomada de uma decisão formal sobre o pedido apresentado (ato
administrativo: 128º/1 CPA) ou a emissão de um regulamento administrativo (137º/2).

Em alguns casos, a lei poderá atribuir à inação administrativa o valor e o efeito jurídico
próprio de uma ação positiva: uma ficção jurídica com esse recorte remete para a figura do
“ato administrativo tácito” (130º CPA).

Mas, normalmente, a inação, em cenários em que a AP tem um dever de agir decorrente


de um ato de iniciativa externo não se associa à criação ficcionada de um efeito jurídico. A
ordem jurídica limita-se a prever ou a permitir que se extraiam efeitos do “facto” em que se
traduz o incumprimento (por exemplo, responsabilidade civil e disciplinar do faltoso,
condenação da AP à adoção do comportamento devido).

Exemplo: A respeito da não emissão de pareceres solicitados a órgãos consultivos, o 92º/5


estabelece que, “quando um parecer obrigatório não for emitido dentro dos prazos estabelecidos
no número anterior, pode o procedimento prosseguir e vir a ser decidido sem o parecer, salvo
disposição legal em contrário”.

Neste caso, a lei não associa qualquer efeito jurídico à omissão do parecer obrigatório e
não vinculativo, considerando, ainda assim que não existe ilegalidade procedimental pelo facto de
o parecer não ser emitido pelo órgão consultivo. O nº6 acrescenta que, “no caso de o parecer
obrigatório ser vinculativo, a decisão final só pode ser proferida sem a prévia emissão daquele
desde que o responsável pela direção do procedimento tenha interpelado, no prazo de 10 dias, o
órgão competente para o emitir, sem que o tenha feito no prazo de 20 dias a contar dessa
interpelação”.

b) Inação administrativa oficiosa.

Pode suceder que a iniciativa oficiosa se apresente obrigatória ou discricionária.


Ainda assim, em ambos os casos, coloca-se a questão de saber se, e em que termos, pode
a AP ser obrigada a exercer o seu dever (de ação ou exercício do seu poder discricionário

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sobre a apreciação dos pressupostos da sua ação). Trata-se de um tema complexo em dois
planos:

i. Quanto à identificação dos sujeitos que podem exigir o cumprimento do dever administrativo;
ii. Quanto à latitude da intervenção do tribunal, sobretudo em face do poder, que deve
reconhecer-se à AP, de decidir sobre a utilização dos seus recursos.

O valor da inação administrativa oficiosa cruza-se com o tema da tolerância


administrativa (prática de abdicação de um poder). No DA, os conceitos de tolerância e de
inação encontram-se sobretudo relacionados com a função inspetiva e fiscalizadora e com o
(não) exercício de poderes administrativos de caráter sancionatório (sanção de condutas
ilícitas ou ilegais).

A tolerância concretiza-se num “fechar de olhos” diante de condutas que deveriam


ser reprimidas ou alvo de investigação, sendo que, em princípio, não deve aceitar-se como
causa legítima de inação, embora se possa compreender que a AP defina prioridades para as
suas ações de fiscalização e de inspeção, no quadro de um princípio de eficiência na alocação
de recursos disponíveis (o que pode justificar uma certa tolerância administrativa em face de
irregularidades menores).

Quando existe um dever legal de ação oficiosa da AP (por exemplo, o dever de


adjudicação, 76º CCP), os interessados poderão exigir judicialmente a condenação da AP à
prática do ato ou à emissão do regulamento omitido (67º/4 e 77º CPTA).

Em relação aos procedimentos de iniciativa oficiosa para a prática de atos


administrativos, “os procedimentos de iniciativa oficiosa, passíveis de conduzir à emissão de
uma decisão com efeitos desfavoráveis para os interessados caducam, na ausência de
decisão, no prazo de 180 dias” (128º/6 CPA).

Sem impor uma obrigação geral de decisão de procedimentos de iniciativa oficiosa,


a lei determina a caducidade do procedimento que não seja concluído no prazo indicado,
estando, na hipótese prevista na lei, em causa um procedimento iniciado para a prática de ato
desfavorável, mas não existe um regime para os casos de iniciativa oficiosa de um
procedimento para a prática de ato favorável (por exemplo, a atribuição de subsídios), em que
não vem a ser tomada qualquer decisão.

3.Ação administrativa eletrónica.

Atualmente, a ação da AP desenvolve-se, maioritariamente, mediante a utilização ou com


o apoio de equipamentos informáticos. As NTIC passaram a constituir uma ferramenta
imprescindível, falando-se de “administração eletrónica”, de E-Government ou de “ação
administrativa eletrónica”.

3.1.Objetivos e princípios aplicáveis à administração eletrónica.

Os vários números do art.14º CPA não acolhem, em todos os casos, princípios jurídicos,
procedendo à indicação de objetivos, finalidades e linhas de orientação quanto à utilização de
meios eletrónicos na ação administrativa.

a) Objetivos da administração eletrónica.

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A AP deve utilizar meios eletrónicos no desempenho da sua atividade, de forma a promover
a eficiência e a transparência administrativas e a proximidade com os interessados, identificando-
se três categorias de objetivos principais:

i. Eficiência.

É indiscutível que a utilização de meios eletrónicos constitui um poderoso instrumento


para incrementar o funcionamento mais eficiente da AP, quer ao nível dos processos internos
de ação, quer no que se refere ao relacionamento com os cidadãos. A administração
eletrónica pode servir o objetivo da simplificação dos procedimentos administrativos, tornando
mais rápido e eficiente o acesso dos interessados e reduzindo a duração dos procedimentos
(61º/1 CPA).

ii. Transparência.

O emprego de meios eletrónicos constitui um meio especialmente adequado para a AP


promover uma estratégia proativa de abertura, de informação e de transparência do sistema
administrativo (note-se a criação do www.base.gov.pt, que contém todos os contratos
adjudicados).

Note-se igualmente a obrigatoriedade legal de publicitação dos benefícios concedidos


pela AP (Lei nº64/2013), publicitação que se realiza mediante a publicação e manutenção de
listagem anual no sítio na Internet da entidade obrigada e da Inspeção-Geral de Finanças,
com a indicação de vários dados.

É ainda neste âmbito que a se explica, por exemplo, a determinação legal no sentido de
que as “empresas locais” (do setor público) tenham um sítio na Internet e nele publiquem
informações de vária natureza, entre as quais se incluem os documentos de prestação de
contas. Também as associações públicas profissionais devem disponibilizar ao público um
amplo conjunto de informações através do seu sítio eletrónico.

Merece ainda destaque o art.10º da Lei do Acesso aos Documentos da Administração


(LADA), que impõe aos organismos da AP o dever de assegurar a divulgação da seguinte
informação administrativa, a atualizar, no mínimo, semestralmente:

1. Todos os documentos que comportem enquadramento da atividade administrativa;


2. A enunciação de todos os documentos que comportem interpretação de direito
positivo ou descrição de procedimento administrativo.

Trata-se de utilizar a eletrónica como meio de publicitação de documentos e


regulamentos internos da Administração.

iii. Aproximação da AP aos cidadãos.

Os meios eletrónicos podem constituir um meio para dar uma efetividade prática ao
princípio constitucional e legal da aproximação dos serviços às populações (267º/1 CRP e
5º/2 CPA). Os balcões eletrónicos ou a prestação de serviços públicos por via digital são um
exemplo disto.

b) Generalização e disponibilização de meios eletrónicos.

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Os serviços administrativos devem disponibilizar meios eletrónicos de relacionamento com a
AP e divulga-los de forma adequada, de modo a que os interessados os possam utilizar no
exercício dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (14º/4 CPA).

c) Valores que os meios eletrónicos da Administração devem garantir.

O art.14º/2 CPA formula requisitos gerais, associados a valores jurídicos, que os meios
eletrónicos utilizados pela AP devem garantir: disponibilidade, acesso, integridade, autenticidade,
confidencialidade, conservação e segurança da informação.

Daqui decorrem princípios jurídicos e direitos, como o princípio da neutralidade tecnológica


das soluções eletrónicas usadas pela AP, de forma a garantir a disponibilidade e o acesso à
informação ou a garantir de uma imputação segura dos resultados da ação administrativa a
organismos identificados da AP.

Outro princípio importante é o da equivalência jurídica entre a utilização de meios eletrónicos


e a utilização de outros meios (por exemplo, da notificação por correio eletrónico ou a notificação
por carta ou contacto pessoal). Aliás, o DL nº73/2014 estabelece que a correspondência
transmitida por via eletrónica tem o mesmo valor da trocada em suporte de papel, devendo ser-
lhe conferida idêntico tratamento.

d) Direito de igualdade de acesso aos serviços da Administração eletrónica.

A lei preocupa-se com o risco da utilização de meios eletrónicos ter efeitos indesejáveis e
opostos àqueles que são pretendidos.

Assim, o art.14º/5 CPA estabelece que os interessados têm direito à igualdade no acesso aos
serviços da AP, não podendo o uso de meios eletrónicos implicar restrições ou discriminações não
previstas para os que se relacionem com a AP por meios não eletrónicos, estando aqui em causa
a instituição de um cânone de igualdade jurídica de tratamento, que não elimina a desigualdade
de facto que existe entre os cidadãos que dispõem de um computador e os que não disfrutam
desta possibilidade ou que não sabem utilizar os meios informáticos.

A instituição do referido cânone de igualdade não prejudica a adoção de medidas de


diferenciação positiva para a utilização, pelos interessados, de meios eletrónicos no
relacionamento com a AP (por exemplo, o “atendimento digital assistido nos Espaços do Cidadão”,
DL nº74/2012)

e) Condições jurídicas de utilização de meios eletrónicos.

O art.14º/3 CPA acolhe a formulação segundo a qual a utilização de meios eletrónicos, dentro
dos limites estabelecidos na CRP e na lei, está sujeita às garantias previstas no CPA e aos
princípios gerais da atividade administrativa.

É um enunciado que aponta, por um lado, para uma evidência (a utilização de meios
eletrónicos tem de se processar dentro dos limites estabelecidos na CRP e na lei) e, por outro,
para um enigma, visto que não se alcança o significado da referência à sujeição da utilização de
meios eletrónicos às garantias previstas no CPA e aos princípios gerais da atividade
administrativa, sendo que, segundo Costa Gonçalves, a lei tem a pretensão de estabelecer que a
utilização de meios eletrónicos não pode envolver uma diminuição das garantias previstas no CPA,

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nem determinar uma infração ou desvio ao sentido dos princípios gerais da atividade
administrativa.

3.2.Aplicações da administração eletrónica.

São múltiplas as aplicações da administração eletrónica:

• Armazenamento e processamento de informação;


• Prestação digital de serviços públicos;
• Processo de comunicação e relacionamento procedimental;
• Tomada de decisões administrativas.

3.2.1.Armazenamento e processamento de informação administrativa.

Primeiramente, os meios eletrónicos e informáticos cumprem uma função como suporte


do registo, armazenamento e do processamento de dados e de informações, facilitando a
eletróncia o trabalho administrativo em todos os planos.

A detenção ou posse de informações e de dados pela AP reclama regulamentações


jurídicas relacionadas com o acesso dos cidadãos a essas informações e com a proteção dos
cidadãos quanto aos dados e informações de que a AP dispõe e ao modo como os utiliza.

Nos termos da LADA, “documento administrativo” é qualquer suporte de informação sob


forma escrita, visual, sonora, eletróncia ou outra forma material, na posse dos órgãos e
entidades da AP, ou detidos em seu nome” (268º/2 CRP). A LADA concretiza e delimita o
âmbito deste direito, que assiste a todos os seus cidadãos de acederem aos documentos
administrativos e exercerem direitos de consulta, reprodução e informação sobre a sua
existência e conteúdo.

Adquirem especial acuidade as questões relacionadas com a proteção dos cidadãos em


face do tratamento e da interconexão de dados e com a exigência de lhes reconhecer o direito
de conhecerem que dados seus se encontram armazenados ou de se oporem a certas formas
de utilização e de tratamento (35º CRP). Note-se que a tutela administrativa destes direitos
fundamentais dos cidadãos encontra-se confiada à Comissão Nacional de Proteção de
Dados.

3.2.2.Prestação digital de serviços públicos.

O DL nº74/2014 estabeleceu que os serviços públicos devem, sempre que a sua natureza
a isso não se oponha, para além do atendimento presencial, ser também prestados de forma
digital. Trata-se da consagração da regra de que a AP deve disponibilizar, por via digital, os
serviços que a tal se afeiçoam (por exemplo, a emissão de certidões ou a passagem de guias).
O objetivo é a simplificação da vida dos cidadãos.

Uma generalização descuidada da prestação digital de serviços públicos poderia, ainda


assim, gerar dificuldades específicas para os cidadãos sem acesso a instrumentos
eletrónicos, daí que o mesmo diploma tenha instituído o atendimento digital assistido nos
Espaços do Cidadão.

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A Lei nº37/2014 estabelece um sistema alternativo e voluntário de autenticação dos
cidadãos nos portais e sítios na Internet da AP, denominado Chave Móvel Digital, sendo que
a associação do número de identificação civil a um único número de telemóvel ou e-mail serve
apenas para a obtenção da Chave Móvel Digital como mecanismo voluntário e alternativo de
autenticação perante serviços públicos prestados de forma digital para todo o utilizador, não
podendo ser os dados assim obtidos para qualquer outro fim.

3.2.3.Comunicações e relacionamento procedimental.

Outro préstimo fundamental dos meios eletrónicos ocorre no domínio da facilitação dos
contactos entre os sujeitos da AP e entre estes e os cidadãos (por exemplo, através de
requerimentos eletrónicos, notificações eletrónicas, entre outros).

Assim, a utilização de meios eletrónicos constitui uma alternativa ao contacto presencial


ou à utilização de documentos em papel e, no âmbito de procedimentos, assegura as
comunicações entre os sujeitos da relação jurídica procedimental.

Aqui, o CPA utiliza os conceitos (equivalentes) de procedimento eletrónico (82º/4 CPA) e


de procedimento informatizado (84º/3 CPA), contemplando um preceito específico sobre a
“utilização de meios eletrónicos” na instrução de procedimentos administrativos (61º CPA).

Os conceitos de procedimento eletrónico referem-se a situações em que toda a


tramitação do procedimento se desenvolve de forma eletrónica, através de uma plataforma
eletrónica disponibilizada pela AP para esse efeito específico, como sucede com as
plataformas eletróncias, nos termos do CCP, para a tramitação dos procedimentos de
formação dos contratos públicos.

Ao “procedimento administrativo eletrónico” corresponde um “processo administrativo em


suporte eletrónico” (64º/4 CPA), sendo uma correspondência equivalente à que decorre entre
os conceitos de procedimento administrativo e de processo administrativo (1º/1/2 CPA). O
art.122º/3 CPA refere-se à consulta do processo por via eletrónica

O art.161º CPA estabelece um princípio de preferência da utilização de meios eletrónicos,


na instrução de procedimentos administrativos, tendo em vista:

a) Facilitar o exercício de direito e o cumprimento de deveres através de sistemas que,


de forma segura e fácil, célere e compreensível, sejam acessíveis a todos os
interessados;
b) Tornar mais simples e rápido o acesso dos interessados ao procedimento e à
informação;
c) Simplificar e reduzir a duração dos procedimentos, promovendo a rapidez das
decisões, com as devidas garantias legais.

Apesar da abertura da lei, a utilização de meios eletrónicos não tem de se estender a tod
a tramitação do procedimento, havendo diligências do procedimento que não podem ser
realizadas por meios eletrónicos (por exemplo, a inspeção a um local). Note-se que não se
revela inteiramente claro o sentido da indicação legal da permissão de utilização de meios
eletrónicos, “salvo disposição legal em contrário”. Segundo Costa Gonçalves, por “disposição
legal em contrário” devemos entender qualquer disposição que exclua expressamente a
utilização de meios eletrónicos, mas também a disposição legal que se refira a um ato,

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diligência ou providência procedimental sem prever a utilização de meios eletrónicos e que
tenha subjacente um contexto factual ou jurídico que exclui aquela utilização.

Exemplo: A teleconferência (123º/2 CPA) e a videoconferência (79º/4 CPA) apenas se


relevam possíveis na medida em que a lei as permite expressamente. De outro modo,
tenderíamos a considerar que a comparência ou a presença física das pessoas
envolvidas naqueles dois casos não poderiam ser substituídas por uma “presença” por
meios eletrónicos, sendo por força das circunstâncias e do contexto que não se nos
afigura possível a realização de uma reunião de órgão colegial por videoconferência.

O CPA permite direta e expressamente a respetiva prática de alguns atos do


procedimento mediante meios eletróncias, quer se trate de atos dos particulares
(104º/1/c) CPA), quer se trate de atos da AP (112º/1/d) CPA).

O art.61º/2 CPA estabelece algumas condições a observar no caso da utilização


de meios eletrónicos na instrução de procedimentos: neste caso, as aplicações e
sistemas informáticos utilizados devem indicar sempre o responsável pela direção do
procedimento e o órgão competente para a decisão, garantindo o controlo dos prazos, a
tramitação ordenada e a simplificação e a publicidade do procedimento.

De acordo com o art.61º/3 CPA, os interessados têm o direito a conhecer, por


meios eletrónicos, o estado de tramitação dos procedimentos que lhes digam diretamente
respeito (82º/4 e 84º/3 CPA) e a obter os instrumentos necessários à comunicação por
via eletrónica com os serviços da AP.

Relacionado com a tramitação eletrónica do procedimento administrativo, têm


sido instituídos balcões eletrónicos: por exemplo, o DL nº92/2010, sobre o acesso às
atividades de serviços, o qual estabelece que todos os pedidos, comunicações e
notificações entre os prestadores de serviços e outros intervenientes e as autoridades
administrativas competentes devem poder ser efetuados por meios eletrónicos através
do “balcão único eletrónico”, balcão que integra o “Balcão do Empregador” (DL nº48/2011,
alterado pelo DL nº10/2015).

Os balcões eletrónicos constituem um importante instrumento de


desburocratização e de simplificação do relacionamento entre os cidadãos e a AP,
permitindo a transmissão eletrónica de requerimentos, pedidos, exposições,
comunicações ou a emissão de certidões e notificações.

O CPA define regras gerais sobre os balcões eletrónicos, indicando que os


mesmos devem proporcionar:

a) Informação clara e acessível a qualquer interessado sobre os documentos


necessários para a apresentação e instrução dos correspondentes pedidos
e condições para a obtenção dos efeitos jurídicos pretendidos com o pedido;
b) Meios de consulta eletrónica do estado dos pedidos;
c) Meios de pagamento por via eletrónica das taxas devidas, quando seja caso
disso;
d) Informação completa sobre a disciplina jurídica dos procedimentos
administrativos que se podem realizar através do balcão eletrónico em
causa;

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e) Endereço e contacto da entidade administrativa com competência para a
direção do procedimento administrativo em causa;
f) Informação sobre os meios de reação judiciais e extrajudiciais de resolução
de eventuais litígios.

A lei acrescenta ainda que os balcões eletrónicos devem poder intermediar nos
procedimentos a serem desenvolvidos entre os interessados e as autoridades
administrativas competentes, recebendo atos uns e outros, mediante a entrega do
correspondente recibo e transmitindo-o imediatamente.

É ainda de sublinhar a indicação de que os balcões eletrónicos asseguram a


emissão automatizada de atos meramente certificativos e a notificação de decisões que
incidam sobre os requerimentos formulados através daquele suporte eletróncico (62º
CPA).

3.2.4.Tomada de decisões administrativas.

Agora, temos em vista um outro nível de aplicação dos meios eletrónicos na


ação administrativa. Ora, a ação administrativa apresenta-se como uma atuação
juridicamente imputável a organizações e pessoas coletivas, mas, na realidade, consiste
numa ação de pessoas humanas ou físicas que servem as referidas organizações e
entidades.

Em áreas particulares, a “administração eletrónica” pretende contribuir para a


simplificação ou desmaterialização e para uma certa forma de desburocratização
administrativa, mas também substituir a própria decisão humana na AP.

a) O ato administrativo eletrónico ou informático.

Pôde verificar-se uma expansão da eletrónica como meio da “produção” de decisões


administrativas, por exemplo, nos setores da administração fiscal (liquidação de
impostos) ou da administração da segurança social (por exemplo, liquidação de taxas).
Nestes setores, é a própria decisão administrativa, o próprio ato administrativo, que surge
adotada por um equipamento eletrónico, sem a intervenção direta e imediata de uma
pessoa humana. Estamos, então, em face da figura do ato administrativo eletrónico ou
informático, sendo que o seu sinal distintivo reside no facto de a definição do seu
conteúdo se apresentar como o resultado produzido por uma máquina (computado) de
acordo com as instruções contidas no ato-programa.

Embora produzido pela máquina, a autoria do ato administrativo é atribuída à


entidade pública responsável pelo funcionamento daquela. Aliás, como a doutrina
observa, por via da programação e da introdução dos dados da situação concreta, a
entidade pública mantém o “senhorio do procedimento”. Segundo a opinião corrente, a
figura do ato administrativo informático revela-se admissível essencialmente nos
domínios de vinculação estria da AP à lei (“decisões vinculativas”).

Alguma doutrina admite a automatização de atos administrativos em casos de “baixa


discricionariedade”. Aliás, tecnicamente, o facto de a lei conceder discricionariedade à AP
não exclui a aplicação do ato administrativo informático. A automatização de decisões
desta natureza apresenta-se possível no quadro de uma programação informática, que
“anule” a discricionariedade concedida por lei. Ou seja, não seria a máquina a efetuar a

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escolha discricionária na situação concreta, visto que o programa informático teria
convertido a abertura legal para o exercício de discricionariedade numa competência
vinculada. Costa Gonçalves entende que a concessão legal de poderes discricionários
ao agente administrativo constitui, em princípio, um obstáculo jurídico à automatização
de decisões administrativas.

Assim, se a lei estabelece que uma autorização será concedida quando se verifiquem
requisitos objetivamente verificáveis, a automatização afigura-se possível, visto que, no
caso concreto, exige-se apenas atestar, de forma objetiva e vinculada, se os requisitos
estão, ou não, verificados. Se a lei acrescentar que a autorização será concedida “desde
que não perturbe o equilíbrio do mercado”, a automatização estará excluída.

O CPA contém diversas referências ao procedimento administrativo eletrónico ou


informatizado, atinentes à tramitação da fase de iniciativa e da instrução e às
comunicações. Em si mesmo, o ato administrativo eletrónico é uma figura quase
desconhecida, o que é visível no silêncio da lei (150º e 151º CPA).

Porém, surge um preceito que formula que “à decisão final proferida através de meios
eletrónicos deve ser aposta assinatura eletrónica ou outro meio idóneo de autenticação
do titular do órgão competente (…)” (94º/2 CPA), o que parece ser uma referência ao ato
administrativo eletrónico. Nesse preceito, resolve-se o problema da imputação da decisão
ao titular de um órgão administrativo, mediante a aposição da assinatura eletrónica ou
outro meio idóneo de autenticação do “titular do órgão competente”, o qual deve ser
devidamente identificado.

b) O ato administrativo em forma eletrónica.

Do ato administrativo eletrónico distingue-se o ato administrativo em forma


eletrónica: trata-se de um ato administrativo praticado por uma pessoa, mas que surge
revestido de uma forma eletrónica, como sucede com a ordem constante de um ficheiro
informático e comunicada por email ou com a autorização conferida e comunicada por
uma plataforma eletrónica. Aqui, o modo como o ato administrativo se exterioriza ou
manifesta é eletrónico e não escrito ou oral.

Sem prejuízo de, em sentido rigoroso, estar em causa um ato administrativo


praticado em forma eletrónica, parece possível considera-lo um ato equiparado ao ato
praticado em forma escrita: nestes termos, talvez se possa aceitar que a prática de um
ato em forma eletrónica cumpre a exigência legal inscrita no artigo 150º, mas, neste caso
do documento informático (email, ficheiro informático), deverão constar as menções
obrigatórias do art.151º. A exigência de assinatura do autor do ato (151º/1/g) CPA)
considera-se satisfeita desde que:

i. Naquele documento o autor seja identificado, pela indicação expressa do seu


nome, ou eventualmente com a sua assinatura digitalizada;
ii. O meio pelo qual o ato é comunicado ao destinatário permita atribuir de forma
inquestionável a autoria do ato a quem nele surge identificado como seu autor.

c) A notificação eletrónica de atos administrativos.

Situação diferente das anteriores é a da notificação, por meio eletrónico, de um ato


administrativo escrito. Agora, a eletrónica serve apenas como um meio de comunicação,

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mas já não de suporte formal de uma decisão da AP, sendo o suporte formal um
documento assinado e escrito pelo seu autor (112º/1/c), 112º/2 e 113º/5/6 CPA).

4.Ação administrativa e ação de particulares.

A dicotomia entre ação administrativa e ação privada apresenta-se em termos simples (âmbito
público vs âmbito privado), mas é conveniente sublinhar que os particulares podem desenvolver ações
administrativas (por exemplo, nos casos em que, por delegação ou concessão públicas, são investidos de
funções administrativas).

Outra hipótese ocorre com o fenómeno dos “particulares na Administração”, onde os particulares,
nesta qualidade, são incorporados em órgãos da AP (por exemplo, cidadãos chamados a compor as mesas
eleitorais).

É controversa a compreensão jurídica da figura do funcionário de facto. Por funcionário de facto


entende-se o particular que, sem vínculo formal que o ligue à AP, assume, sua sponte e com espírito de
colaboração, o exercício de funções próprias da AP. Em “tempos de normalidade”, o exercício das funções
próprias da AP por particulares não investidos constitui um abuso e pode representar uma conduta ilícita
típica penal. Mas, em circunstâncias graves, quando a AP competente não está capaz de responder às
solicitações e se torna necessário mobilizar “todas as forças”, entende-se que o exercício de funções
públicas por particulares sem investidura formal não preenche qualquer ilícito. Apesar de não existir um ato
formal de investidura do cidadão no exercício de uma função pública, entende-se que a própria situação de
facto constitui a fonte da mesma, a qual se revela pois como uma “investidura de facto”.

Na “administração por particulares” e “particulares na administração”, a ligação dos cidadãos à


ação administrativa revela-se com grande nitidez e traduz-se em serem eles mesmos a responsabilizar-se
por desenvolver a própria ação administrativa.

Mas a ação dos particulares surge relacionada com a ação dos particulares noutras situações,
como sucede no âmbito de procedimentos administrativos, quando são os particulares que, para a
realização dos seus interesses pessoais, promovem ou desencadeiam a ação da AP (82º e 102º CPA, por
exemplo). Temos a apresentação prévia de uma operação de concentração de empresas (Lei da
Concorrência), a apresentação de comunicação prévia (para realizar uma operação urbanística, por
exemplo) e a apresentação de uma proposta num procedimento de adjudicação de um contrato (56º CCP).

Todos estes atos cumprem uma função específica no interior de um procedimento


administrativo, o que explica que se submetam à regulação do DA. Trata-se de atos de particulares
regulados pelo DA: por exemplo, o CPA regula como e onde se apresenta e como se formula o
requerimento, bem como os respetivos efeitos jurídicos. O procedimento administrativo constitui,
em geral, a sede, por excelência, da relevância jus-administrativa de inúmeras ações de
particulares, ao nível da prova de factos, da audiência e da aceitação do ato que a AP pratica.

Por vezes, a atuação do particular revela-se determinante da produção de efeitos jurídicos


de um ato da AP: por exemplo, o pagamento de uma taxa enquanto condição da eficácia jurídica
de uma licença.

Em casos particulares, a intervenção do particular no procedimento administrativo assume


uma dimensão quase-constitutiva do efeito jurídico do ato da Administração: como sucede nos
procedimentos de exame (por exemplo, o exame de condução automóvel e exames académicos),

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em que a função da ação do particular reside em determinar o sentido da decisão. Noutro plano,
nos procedimentos de ajuramentação (por exemplo, procedimentos em que particulares não-
trabalhadores da AP prestam juramento para poderem desempenhar funções de autoridade), o
juramento revela-se decisivo para a produção de um efeito jurídico de DA.

No cenário contratual (contratos administrativos), a declaração dos particulares cruza-se


com uma declaração da AP e o resultado jurídico produz-se com base na confluência e na
conjugação de declarações negociais administrativas e de declarações negociais privadas.

Ainda noutro plano, a ação de particulares releva na esfera do DA quando a mesma


consiste no cumprimento dos deveres ou restrições impostas por contratos (obrigações
contratuais) ou por atos administrativos (por exemplo, o cumprimento de uma ordem de remoção
de um veículo) ou no cumprimento de deveres legais ou regulamentares pela AP (por exemplo, o
dever de recenseamento eleitoral).

Nota: A ação particular consistente no cumprimento de atos administrativos deve distinguir-se da


atividade que os particulares exercem com fundamento em atos administrativos (por exemplo, atos
de autorização ou de concessão). Neste último caso, trata-se de atividades da esfera do direito
privado, ainda que submetidas a regulação pública. O particular que exerce uma atividade
licenciada ou autorizada (por exemplo, ao abrigo de uma licença de construção) não está a cumprir
a licença, mas a exercer uma atividade integrada na esfera privada.

Ora, a atuação de particulares pode ser, com particular intensidade, conformada e orientada pela
AP, como sucede nas atividades privadas submetidas a regulação pública (por exemplo, atividades do setor
financeiro).

Por fim, a ação dos particulares, quando ilícita, pode conhecer uma relevância na esfera do direito
administrativo sancionador: ilícito de mera ordenação social, ilícito disciplinar e ilícito contratual.

5.Ação administrativa e relação jurídica administrativa.

O estudo da ação administrativa remete para uma visão unidirecional, polarizada na AP, que
pretende captar os modos como esta atua. Em vez de uma compreensão relacional, a exposição focada
na ação propõe uma abordagem do DA a partir dos modos ou “processos de agir” da AP. O conceito de
relação jurídica pode surgir, mas como um efeito da ação.

Segundo Costa Gonçalves, o eixo de compreensão do sistema administrativo reside em “o que” a


Administração faz ou no “modo” como o faz. Privilegiar uma exposição do DA a partir das formas da ação
administrativa não equivale a ignorar o fenómeno da “AP em relação”, nem a desvalorizar a importância
relativa que se deve reconhecer ao conceito de relação jurídica administrativa.

Importa observar que, ao agir, a AP “entra em relação”: as formas de ação administrativa (por
exemplo, ato administrativo, contrato administrativo, operações materiais) constituem fontes ou meios de
constituição de relações jurídicas administrativas com os destinatários ou com os terceiros que sejam
afetados pela ação administrativa.

Também não se discute o valor pontual que o conceito de relação jurídica administrativa pode ter
para uma compreensão fixada num quadro relacional, bipolar (AP e cidadão) ou multipolar, que suscita

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uma referência a direitos e a deveres recíprocos e, em geral, a posições jurídicas de DA que correlacionam
AP e cidadãos.

Importa ainda recordar que o conceito de relação jurídica administrativa tem acolhimento
constitucional (212º/3 CRP).

Porque se trata de um conceito de direito positivo (279º CCP) que apresenta potencial para
enquadrar juridicamente certos “contactos” que envolvam sujeitos da AP, pode revelar-se útil conhecer os
contornos do conceito, que, segundo Costa Gonçalves, se define assim: “relação jurídica entre dois ou mais
sujeitos de direito (ou entre dois órgãos do mesmo sujeito) em que pelo menos um deles intervém como
sujeito da AP e que é disciplinada por normas jurídicas que a esse sujeito se dirigem enquanto responsável
pelo exercício da função administrativa”.

A fonte da relação jurídica administrativa pode ser qualquer forma de ação administrativa ou o ato
de um particular (por exemplo, o requerimento que inicia um procedimento administrativo). Simples factos
jurídicos, como o decurso do tempo, de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos
nulos (134º/3 CPA). Caducidade pelo não exercício de um direito ou de um poder administrativo num
determinado período de tempo.

O capítulo II da parte III do CPA tem por título “relação jurídica procedimental” (65º a 73º),
procurando a lei enquadrar num contexto relacional e jurídico os contactos que se processam entre os
sujeitos do procedimento administrativo. Assim, os sujeitos do procedimento surgem como titulares de
posições jurídicas ativas e passivas, com uma incidência procedimental (por exemplo, direito à decisão do
procedimento).

Capítulo II: Procedimento administrativo.

Todas estas formas de ação (regulamento, ato e contrato administrativo) emergem no contexto de
um procedimento e constituem o momento de um procedimento. Devemos encarar o procedimento como
um fenómeno de aplicação geral da ação administrativa.

6.Noções gerais sobre o procedimento administrativo.

6.1.Conceito de procedimento administrativo.

O procedimento administrativo surge como uma sucessão ordenada de atos e


formalidades relativos à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da AP (1º/1
CPA).

No CPA originário, o procedimento era apresentado como uma sucessão ordenada de


atos e formalidades tendentes à formação ou manifestação da vontade da AP ou à sua execução.
Agora, os atos e formalidades deixam de ser “tendentes”, passando a ser relativos à formação,
manifestação e execução da vontade dos órgãos da AP, deixando a vontade de ser associada à
AP para passar a ser referida aos “órgãos da AP”.

Segundo Costa Gonçalves, em 2015, a definição de procedimento administrativo ficou


mais pobre e menos correta: a substituição de “tendentes” por “relativos” desvalorizou a referência
finalista que une todos os atos de um procedimento. Por outro lado, quanto à segunda alteração,
dir-se-á que a anterior referência genérica e mais ou menos desprendida de rigor técnico a uma
“vontade da AP” ainda se podia aceitar, mas o mesmo não se pode dizer da atual alusão a uma

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“vontade dos órgãos da AP”, acabando a alteração por gerar um resultado absurdo, pois decorre
da natureza das coisas que os órgãos da AP não têm vontade, mas competências, contadno com
os seus titulares para as exercer.

Para Costa Gonçalves, em vez da alusão à vontade, o conceito legal ganharia em


associar o procedimento administrativo à adoção de medidas ou à prática de atos com efeitos
jurídico-administrativos.

Assim, Costa Gonçalves define procedimento administrativo como um conjunto ordenado


e sequencial de atos e de diligências tendentes à formação, manifestação e execução de medidas
e de atos de caráter jurídico-administrativo adotados pelos órgãos da AP ou por quaisquer
entidades no exercício de poderes públicos.

O procedimento administrativo constitui uma série encadeada de atos, medidas e


diligências que tem como desfecho a produção de um resultado concretizado na adoção de uma
determinada “medida administrativa” ou de um “ato jurídico-administrativo”, que constitui um “ato
final” da série” ou sequência procedimental.

O ato final (“ato principal”) da série procedimental pode ser um regulamento, um ato
administrativo ou um contrato administrativo, mas também um outro jurídico de DA (por exemplo,
um parecer) ou até uma operação material (por exemplo, a apreensão de um equipamento).

Ou seja, o procedimento administrativo pressupõe uma sucessão de atos e diligencias


autónomos, praticados em vista de um resultado jurídico ou material.

Nota: A referência ao caráter final do ato ou medida principal do procedimento não pretende
sugerir que esteja em causa um ato com efeitos finais externos. Pode tratar-se de um ato intercalar
e instrumental, sem efeitos externos, mas que surge como ato principal do seu próprio
procedimento. Por exemplo, o parecer (91º CPA), emitido no âmbito do procedimento de
concessão de uma licença, é o ato principal e final do seu procedimento (emissão do parecer),
mas não é um ato final, com efeitos externos.

Está pressuposta no conceito de procedimento administrativo a ideia de movimento, de


sequência de atos e de medidas que vão sendo praticados e cuja prática se associa a uma marcha.

Por outro lado, o procedimento traduz a “identidade de fim mediato” da série de atos e
medidas que o integram: cada ato e cada medida que se sucede e se articula com os outros atos
e medidas no desenvolvimento do procedimento persegue um fim imediato próprio, mas também
um fim mediato, comum a todos os outros, visto que se destina a criar as condições para a
produção do mesmo resultado.

O procedimento administrativo agrega as providências, as diligências e os atos tendentes


à formação, manifestação e execução de um ato principal:

1. Formação: atos e formalidades que põem o procedimento em marcha e que visam preparar
a prática do ato principal (atos de iniciativa e atos de instrução);

2. Manifestação: atos e formalidades relativos ao momento constitutivo, à própria prática do ato


principal: por exemplo, com as formalidades relativas à forma e formalização do ato, à sua
publicação e notificação;

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3. Execução: providências adotadas com o sentido de executar e de realizar os efeitos práticos
definidos no ato principal.

Apesar de considerarmos estas 3 fases, na prática temos uma divisão dual:

1. Procedimento declarativo: abrange os atos e formalidades adotados relativos à preparação


(formação) e à produção (manifestação) de um ato principal;

2. Procedimento executivo: atos adotados em vista da execução desse mesmo ato.

Uma visão do procedimento administrativo como um conjunto de atos, sem descurar a


posição central do ato principal, postula uma visão mais abrangente da atividade administrativa.
Assim, o procedimento contribui para um certo redimensionamento da importância atribuída ao
ato que representa o seu desfecho ou resultado final (por exemplo, o contrato administrativo), o
qual tem de se entender como uma série procedimental.

Talvez fizesse mais sentido, no espírito do CPA, associar o conceito de procedimento


administrativo à formação, manifestação e execução de atos adotados por “quaisquer entidades
no exercício de poderes administrativos” (2º/1 CPA).

Apesar de esta conceção de procedimento apontar para a ideia de uma intervenção


administrativa, realizada por órgãos da AP e por entidades no exercício de poderes públicos, note-
se que o procedimento é a sede de acolhimento de formas de participação dos interessados na
ação administrativa e daqueles que vão sofrer os efeitos jurídicos e práticos dos atos e das
medidas da AP.

6.2.Procedimento: a forma da função administrativa.

O procedimento administrativo não se coloca como uma forma de ação, a par do ato
administrativo e do contrato administrativo. O procedimento não se confunde com o resultado ou
o “ato isolado” em que se consubstancia.

Ainda assim, isto não significa que o procedimento administrativo represente um


“conteúdo”, na medida em que não constitui uma “forma”. O procedimento é a “forma da função
administrativa” (Benvenuti), fórmula que enfatiza o facto de o procedimento se apresentar como
um modo de desenvolvimento da função ou atividade administrativa, destacando uma dimensão
funcional no conceito, o que introduz uma ideia de “dinâmica”.

6.3.Procedimento administrativo e formalismo.

Ainda que seja um instrumento de abertura à participação ativa dos cidadãos, devemos
tomar atenção os riscos que o excesso de procedimentalismo (“formalismo”) pode produzir
ineficiências, conduzindo a um peso excessivo das “conversações” e dos “diálogos” e á criação de
um ambiente menos propício à tomada de decisões efetivas.

Por outro lado, não devemos excluir uma eventual instrumentalização do procedimento e
dos direitos procedimentais, que podem ser exercidos de forma estratégica no sentido de adiar ou
eliminar a capacidade de decisão administrativa. Aliás, uma das grandes dificuldades do DA está

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na tarefa de encontrar a medida certa de um equilíbrio entre formalismo e eficácia do sistema
administrativo

A associação entre procedimento administrativo e “formalização” remete para o problema


de o legislador se deixar tentar pela adoção de um sistema de prescrições detalhadas sobre a
tramitação que a AP deve adotar. Vigora entre nós a tese de Rogério Soares, sendo que, salvo
casos particulares (que reclamam maior rigidez da tramitação, como com o procedimento
disciplinar), o desenvolvimento da tramitação deve pautar-se por uma regra de discricionariedade
procedimental, ainda que temperada pela observância de alguns trâmites legalmente obrigatórios
(por exemplo, audiência prévia).

Discricionariedade procedimental: poder que assiste ao responsável pelo procedimento de


definir a estruturação do procedimento administrativo, orientando-se por princípios jurídicos com
incidência procedimental (por exemplo, participação ou eficiência) (56º CPA).

Alguns procedimentos administrativos requerem um nível mais avançado de


formalização, de definição legislativa da tramitação. Por exemplo, os “procedimentos
disciplinares”, que colocam a AP na posição de acusar e de punir um particular, pelo que suscitam
preocupações de garantia dos direitos de defesa e de contraditório.

Também os “procedimentos de seleção concorrencial” reclamam uma regulamentação


legislativa detalhada, que ofereça garantias seguras de que todos os interessados são tratados
pela AP em condições de igualdade e de que a escolha do vencedor se processa de modo justo.

Ora, uma certa atenuação do formalismo exacerbado e inconsequente poderá passar por
opções legislativas e jurisprudenciais de desvalorização de certas ilegalidades de caráter
procedimental (“irrelevância dos vícios de forma e procedimento”). O CPA estabelece que não se
produz o efeito anulatório do ato administrativo quando o fim visado pela exigência procedimental
ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via (163º/5/b)).

6.4.Procedimento (administrativo) e processo.

O procedimento é uma sucessão de atos e formalidades relativos à formação,


manifestação e execução da vontade dos órgãos da AP. O processo é “o conjunto de documentos
devidamente ordenados” em que se traduzem os atos e formalidades que integram o procedimento
administrativo (1º/1/2 CPA).

Ou seja, o processo é um dossiê físico (em papel) ou eletrónico que contém a


representação documental dos atos e das diligências praticados no desenvolvimento do
procedimento administrativo (64º/3 CPA, por exemplo).

Mas o conceito de processo também se reporta ao processo como categoria do direito


judiciário, que culmina numa sentença judicial. Os conceitos de procedimento (administrativo) e
processo (judicial) traduzem realidades jurídicas distintas.

O procedimento refere-se ao desenrolar de uma atividade administrativa, pautada por


critérios e objetivos de interesse público, reclamando da AP uma conduta emprenha na obtenção
de um resultado. No procedimento, a AP é sempre uma “parte”, apesar de ter a responsabilidade
de atuar de forma imparcial.

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Desta forma, aponta-se para a AP como uma “parte imparcial”, enfatizando o seu dever
institucional de prosseguir um interesse.

O princípio do inquisitório ou da oficialidade, que comanda o desenvolvimento do


procedimento, exprime precisamente a responsabilidade própria da AP pela tramitação adotada e
pelo resultado produzido.

Nota: Devendo prosseguir um interesse específico, a AP é uma parte mesmo nos procedimentos
(triangulares) de resolução de um litígio, em que surge incumbida de resolver, imparcialmente, um
litígio (procedimentos contenciosos). O mesmo acontece nos procedimentos de seleção
concorrencial, em que a AP é portadora do interesse de selecionar a melhor oferta.

Por outro lado, o processo refere-se à atividade judicial, mas em protagonizar um


interesse próprio que não seja o da administração da justiça. O processo pretende garantir esses
valores do “desinteresse” e da imparcialidade do tribunal, impondo a igualdade de armas entre as
partes e o princípio do contraditório, sendo a posição do juiz passiva, tendo as partes de provar os
factos que alegam.

Vale dizer, o processo é orientado para garantir a melhor defesa. O procedimento é


orientado para garantir a melhor decisão.

Embora com intenções diferentes, procedimento e processo traduzem a ideia de “modo


de proceder” e de uma sequência de atos e diligências que se interligam e são praticados em vista
de um resultado final unitário.

7.Caráter procedimentalizado da ação administrativa.

No contexto do procedimento de formação de atos da ação administrativa, podemos falar de um


princípio de procedimentalidade, segundo o qual a atividade da AP, que se expressa em atos finais de
“contacto” com os cidadãos ou com outras instâncias da AP, se desenvolve no contexto de um
procedimento, com observância de princípios e critérios jurídicos que regulam a respetiva formação,
deduzindo-se este princípio do art.1º/1 CPA, que também tem uma projeção na atividade administrativa
executiva, pelo menos quando se traduza em execução coerciva de atos administrativos (177º/2 CPA).

O princípio do desenvolvimento procedimental da ação administrativa conhece desvios:

• “Ação administrativa sem procedimento” ou “desprocedimentalizada”: constitui uma ocorrência


frequente no domínio da atividade de polícia administrativa e da adoção das “medidas de polícia”.
Por exemplo, nos termos da Lei de Segurança Interna (LSI), a remoção de obstáculos
colocados em locais públicos, que impeçam a passagem, pode ser determinada fora do contexto
de um procedimento, logo aquando da verificação, pelos agentes competentes, da situação
irregular.
Note-se igualmente do “internamento compulsivo de urgência”, de portador de anomalia
psíquica grave que crie perigos para outros indivíduos e recuse submeter-se ao necessário
tratamento jurídico (Lei da Saúde Mental), que pode ser desencadeado por autoridade de saúde.
Aqui, o caráter desprocedimentalizado da ação administrativa conjuga-se com a
indistinção entre o procedimento declarativo e o procedimento executivo, na medida em que se
apresenta uma ação de tipo executivo sem declaração prévia (177º/2 CPA)
Quando a ação administrativa sem procedimento envolver uma coerção direta sobre os
particulares ou a proibição do exercício de direitos, fundada em suspeitas e indícios, a lei pode

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determinar a validação ou a confirmação judicial das medidas administrativas adotadas (a LSI
determina a nulidade das medidas especiais de polícia quando não sejam tomadas em 48 horas);
• Desvios relacionados com o estado de necessidade administrativa (3º/2, 161/2/l) e 177º/2 CPA).

8.Funções do procedimento administrativo.

Ora, ao lado de uma função instrumental (que decorre do procedimento “servir” a produção de um
ato final ou principal) o procedimento realiza funções que lhe conferem autonomia, enquanto fenómeno
jurídico-administrativo (multifuncionalidade do procedimento administrativo).

A. Instrumentalidade do procedimento administrativo.

Na medida em que se entende como um conjunto de atos destinados à produção de um resultado,


temos que o procedimento cumpre uma função instrumental.

Por exemplo, o procedimento iniciado com o requerimento da autorização para a instalação de uma
indústria integra ou agrega a série, mais ou menos extensa, de atos e diligências necessários à tomada de
uma decisão (sobre o pedido de autorização).

Quer dizer, o procedimento tem um valor instrumental, organizando a tarefa de recolha de informação
e de aquisição de conhecimento que coloque a AP em posição de decidir. A função instrumental associa-
se à conceção do procedimento como um “meio” que serve os objetivos da realização, da concretização e
da correta aplicação do DA material.

Esta visão do procedimento como um instrumento concretiza uma subalternidade do direito


procedimental em relação ao direito material.

B. Autonomia dogmática do procedimento administrativo.

Rejeitando a ideia de que o procedimento se deva conceber como um “fim em si mesmo”, diz-se que
o mesmo tem um valor próprio. Não está em causa a contraposição deste valor próprio do procedimento à
sua função instrumental, mas sim a ideia de articular esta função com uma de valor não apenas
instrumental.

A conceção de um valor próprio do procedimento administrativo resulta, deste modo, de se considerar


que o procedimento administrativo se apresenta como um momento de realização de finalidades próprias
e específicas.

O procedimento segue funções como:

a) Legitimação da ação administrativa (“legitimação pelo procedimento”): ao fomentar a


aceitabilidade de decisões administrativas, em função das exigências específicas de
fundamentação e de ponderação, assim como em função do envolvimento e da participação
dos interessados na formação das decisões;

b) Incremento da abertura da AP e da transparência administrativa: mediante o reconhecimento


do direito à informação procedimental ou mediante a estipulação de impedimento, que
previnam os conflitos de interesses ou a captura da AP por interesses parciais;

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c) Abertura à participação ativa e ao envolvimento dos interessados (267º/5 CRP): o
procedimento é o momento ou a sede de organização e de fomento da participação dos
interessados, que podem carrear elementos para ponderação no processo de decisão da AP;

d) Garantia e proteção de direitos fundamentais dos cidadãos: pode consistir numa proteção de
direitos “através” de procedimentos de um certo tipo (por exemplo, direito à igualdade de
acesso a recursos escassos, através da adoção de procedimentos de seleção concorrencial,
como os procedimentos de adjudicação de contratos públicos);

e) Indução e fomento do consenso, estimulando o diálogo entre a AP e os particulares, podendo


isto conduzir a um desfecho contratual e consensual em vez de autoritário e unilateral

Nota: Esta função revela-se nos “procedimentos de regulamentação” das entidades


reguladoras da economia, quanto à adoção de uma fase de divulgação do projeto de
regulamento, seguida de consulta pública. A entidade reguladora deve fundamentar as suas
opções (41º LQER). Podemos ainda referir o procedimento de transação ou o mecanismo de
arquivamento do processo mediante imposição de condições (Lei da Concorrência), que
podem culminar em acordos enxertados em processos de contraordenação que permitem
substituir ou atenuar medidas sancionatórias.

f) Agilização dos fluxos de comunicação entre a AP e os cidadãos e desenvolvimento de uma


lógica de cooperação e de colaboração entre os dois polos;

g) Função epistémica e de reflexão sobre a informação recolhida: permite que a AP efetue a


recolha e o tratamento de informação de que carece e realize um trabalho de ponderação e
de reflexão sobre o sentido da decisão a tomar, promovendo e assegurando, assim, a
racionalização do trabalho administrativo;

h) Reforço da previsibilidade sobre o sentido e direção das condutas da AP;

i) Promoção da coordenação entre entidades administrativas: fomenta, racionaliza e organiza o


trabalho e a reflexão em conjunto das instâncias administrativas chamadas a intervir em
determinado contexto.

Nota: A propósito do DA da UE, tenha-se presente a figura dos procedimentos administrativos


compostos, que articulam a intervenção de autoridades nacionais e autoridades europeias.

Alguma doutrina mais recente tem chamado a atenção para a necessidade de reforçar a tendência
procedimental do DA, visto que este induz transparência, envolvendo os cidadãos na formação das normas
e das decisões administrativas e criando condições especiais de legitimação da ação administrativa.

9.Princípios do procedimento administr ativo.

Estão aqui em vista os princípios jurídicos aplicáveis ao desenvolvimento da tramitação ou da


sequência procedimental e não os princípios da atividade administrativa. Esta observação impõe-se para
tornar claro que os “princípios gerais” (19º/3 CPA) são, em muitos casos, princípios gerais da atividade
administrativa, que não mantêm qualquer relação com o procedimento administrativo: por exemplo, o
princípio da legalidade (3º/1 CPA) ou o da responsabilidade (16º CPA).

A. Princípio da participação

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O procedimento é a sede, por excelência, da efetivação do princípio da participação (267º/5 CRP e 12º
CPA), sendo concretizado através do reconhecimento legal de direitos procedimentais de participação dos
interessados, bem como de deveres procedimentais de ativar a participação atribuídos à AP. Constituem
direitos procedimentais de participação:

i. Direito de iniciativa e de participação no procedimento (53º e 68º CPA);


ii. Direito à informação sobre o procedimento (82º e segs. CPA);
iii. Direitos a juntar documentos e pareceres, a requerer diligências de prova e a designar peritos
(116º/2 CPA);
iv. Direito de audiência (100º CPA).

Por outro lado, a lei onera a AP com deveres de incentivar a participação dos interessados (por
exemplo, 7º/1 CPA), sendo que há exemplos:

i. Comunicação do início do procedimento às pessoas cujos direitos ou interesses legalmente


protegidos possam ser lesados pelos atos a praticar e que possam ser, desde logo,
nominalmente identificadas (110º CPA);
ii. Notificação do projeto de decisão, para efeitos da audiência dos interessados (122º/2 CPA);
iii. Notificação do ato administrativo (114º CPA).

A participação dos interessados no procedimento assume uma dimensão de especial relevo nos
procedimentos administrativos consensuais, que incluem fases de “diálogo” ou “conversações” (por
exemplo, procedimentos de transação na Lei da Concorrência), mas, mesmo em procedimentos que
desconhecem (formalmente) estas fases, revela-se este princípio [por exemplo, o acolhimento de soluções
negociais e negociadas, que serão vertidas em “acordos endoprocedimentais” (57º e 98º/2 CPA)].

O princípio da participação será aquele com uma mais clara “incidência simultânea” no
procedimento do regulamento e no do ato administrativo (97º e segs. e 121º e segs. CPA).

B. Princípios da colaboração, da cooperação e da boa-fé procedimental.

Os órgãos da AP devem atuar em “estreita colaboração com os particulares”, cumprindo-lhes prestar


aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam e apoiar e estimular as iniciativas
dos particulares e receber as suas sugestões e informações (11º/1 CPA).

O CPA prescreve ainda um dever de cooperação recíproca entre os órgãos da AP e os interessados,


para fixar os pressupostos de decisão e a obtenção de decisões legais e justas (60º/1 CPA).

Em relação aos interessados, a lei indica que devem concorrer para a economia de meios na realização
das diligências instrutórias e para a tomada de decisão num prazo razoável, abstendo-se de requerer
diligências inúteis e de recorrer a expedientes dilatórios (60º/2 CPA). É igualmente atribuído o ónus da
prova dos factos que tenham alegado (116º/1 CPA), assim como o dever de apresentação de provas,
quando para tal forem solicitados (117º CPA).

O incumprimento dos deveres de prestação de informações ou de apresentação de provas tem as


consequências previstas no art.119º CPA, sendo esse cumprimento livremente apreciado para efeitos de
prova, sendo que, quando existam documentos, informações ou atos solicitados ao interessado que sejam
necessários à apreciação do pedido por aquele formulado, não deve ser dado seguimento ao
procedimento, disso se notificando o particular (132º/1 CPA).

C. Princípio do inquisitório.

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Este princípio atribui ao responsável pela direção do procedimento e aos outros órgãos que participem
na instrução o poder de proceder a quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias à
preparação de uma decisão legal e justa, ainda que respeitantes a matérias não mencionadas nos
requerimentos ou nas respostas dos interessados (59º CPA).

O princípio do inquisitório (ou da oficialidade externa) encontra explicação no facto de ser sobre a AP
que impende o ónus de cumprir a lei e de realizar as diligências que considere convenientes para se colocar
em posição de decidir bem e em conformidade com a lei.

Por isso, é o responsável pela direção do procedimento que deve procurar averiguar todos os factos
cujo conhecimento seja adequado e necessário à tomada de uma decisão legal e justa dentro de prazo
razoável, podendo recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito (115º/1 CPA).

Note-se ainda que o dever de averiguação dos factos relevantes para a decisão não deixa de pertencer
à AP, mesmo nos casos em que esta solicitou a apresentação de provas aos interessados e estes não
cumpriram o seu dever de cooperação. Por exemplo, a falta de cumprimento da notificação é livremente
apreciada para efeitos de prova, consoante as circunstâncias do caso , “não dispensando o órgão
administrativo de procurar averiguar os factos, nem de proferir a decisão” (119º/2 CPA).

A solução só se mostra diferente quando as informações, documentos ou atos solicitados ao


interessado sejam necessários à apreciação do pedido por ele formulado, caso em que “deve ser dado
seguimento ao procedimento, disso se notificando o particular” (119º/3 CPA), sendo este um cenário em
que o interessado goza de um monopólio de prova, não podendo exigir-se à AP um dever de averiguação
dos factos que só o interessado conhece ou de que só ele tem prova.

D. Princípio da adequação ou da discricionariedade procedimental.

A AP disporá, em princípio, de uma margem de adequação do procedimento: discricionariedade


procedimental (56º CPA).

A adequação procedimental desenvolve-se na medida em que não haja normas injuntivas: por
exemplo, o responsável do procedimento não pode estruturar discricionariamente a tramitação de modo a
eliminar a exigência de solicitação de um parecer obrigatório ou a audiência dos interessados, sendo que
o exercício da discricionariedade procedimental pressupõe o respeito pelos princípios gerais da atividade
administrativa.

A lei estabelece, igualmente, critérios de orientação do exercício da discricionariedade procedimental


(interesses públicos da participação, da eficiência, da economicidade e da celeridade na preparação da
decisão).

Os acordos endoprocedimentais abrangem os acordos ou contratos sobre o exercício da


discricionariedade procedimental (57º CPA), sendo que o “órgão competente para a decisão final” e os
interessados podem, por escrito, acordar [os] termos do procedimento (57º/1).

Tais acordos têm efeito vinculativo e o seu objeto pode consistir na organização de audiências orais
para o exercício do contraditório entre os interessados que pretendam uma certa decisão e aqueles que se
lhe oponham.

E. Princípio da boa administração (eficiência, economicidade e celeridade).

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A AP deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade, tendo este princípio uma
incidência muito particular no procedimento administrativo (56º e 77º/1 CPA).

O art.59º CPA destaca o dever de celeridade, incumbindo o responsável pela direção do procedimento
e os outros órgãos intervenientes na respetiva tramitação de providenciar “por um andamento rápido e
eficaz, quer recusando e evitando tudo o que for impertinente e dilatório, quer ordenando e promovendo
tudo o que seja necessário a um seguimento diligente e à tomada de uma decisão dentro de prazo
razoável”. A celeridade tem várias expressões na lei (61º/1/c) CPA).

F. Princípio da legalidade procedimental.

Em muitos casos, existem trâmites procedimentais obrigatórios (impostos por normas injuntivas):

• Podem ser prazos que têm de ser respeitados ou de diligências que a lei impõe (por exemplo,
parecer obrigatório ou audiência dos interessados);
• Podem ser diligências que, não tendo de ocorrer, se ocorrerem, têm de se conformar com certas
regras legais.

Nestes casos, a AP tem de cumprir determinações que a lei estabelece, no âmbito de um princípio de
legalidade procedimental. Tais exigências só se podem dispensar em casos de estado de necessidade
administrativa (3º/2 CPA). A urgência também pode permitir a dispensa do cumprimento de exigências
legais.

Algumas vezes, o legislador estabelece (completamente ou quase) o faseamento e a tramitação do


procedimento, sendo que temos aí um procedimento administrativo formalizado.

O grau de formalização é variável, mas costuma ser elevado nos procedimentos sancionatórios, nos
procedimentos de seleção que envolvem a participação de particulares com interesses concorrentes, nos
procedimentos de resolução de litígios e nos procedimentos que servem a formação de atos especialmente
agressivos para os direitos dos particulares (por exemplo, expropriação por utilidade pública).

Em todos os casos, a formalização legislativa do procedimento, que introduz rigidez e tem o resultado
de condicionar o trabalho procedimental (vinculação procedimental da AP), visa definir condições para a
consideração obrigatória, completa e imparcial dos fatores ou dimensões relevantes para a decisão a
adotar.

De qualquer forma, a formalização projeta-se sobretudo na delineação das fases fundamentais do


procedimento, assim como na determinação de diligências obrigatórias, mas não exclui a discricionariedade
procedimental para a adoção de diligências que o órgão competente entenda dever efetuar para se colocar
em posição de decidir.

G. Princípio da imparcialidade.

A AP deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente
considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando
as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à
confiança nessa isenção (9º CPA).

Ainda que não se limite ao procedimento, este constitui um momento fundamental de vinculação da
AP ao princípio da imparcialidade, que exige:

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i. Que, perante interesses em confronto, a AP atue de forma isenta e objetiva, ponderando
adequadamente todos os interesses legítimos presentes no procedimento.
No desenvolvimento do procedimento, não há uma necessária prevalência do interesse
público sobre os interesses particulares, daí que a AP deva pautar a sua ação pela
neutralidade, dispondo-se a ponderar e considerar, sem discriminação, todos os interesses
legítimos que estejam representados no procedimento e todos os factos relevantes para a
decisão.

ii. Os titulares dos órgãos da AP não devem contaminar a intervenção no procedimento


administrativo com a consideração de interesses pessoais, ocupando aqui lugar especial as
garantias de imparcialidade e o regime de impedimentos e suspeições (69º e segs. CPA).

H. Princípio da igualdade.

O princípio da igualdade conhece projeção no procedimento na exigência imposta à AP de dispensar


um tratamento igualitário a todos os intervenientes ou interessados em participar no procedimento: neste
sentido horizontal, o princípio da igualdade opera tipicamente nos procedimentos de seleção concorrencial
e envolve uma dupla exigência: (1) garantia de igualdade de acesso e (2) igualdade de tratamento.

A doutrina alude também a um sentido vertical deste princípio, para referenciar a exigência de um
tratamento paritário entre a AP e os particulares intervenientes no procedimento, principalmente no acesso
à informação relevante no âmbito do concreto procedimento, mas também na imposição de deveres à AP
de considerar factos alegados pelos particulares ou realizar diligências por eles requeridas ou ainda de lhes
proporcionar o contraditório.

I. Princípio da decisão.

Os órgãos da AP têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes
sejam apresentados e, principalmente, sobre todos os assuntos que aos interessados digam diretamente
respeito, assim como sobre quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em
defesa da CRP, das leis ou do interesse público (13º/1 CPA).

Ainda assim, o que aqui se enuncia é mais um princípio de pronúncia. Assim, os órgãos da AP têm o
dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados. Assim,
uma “petição”, uma “exposição” ou uma “queixa” apresentada exige sempre uma pronúncia, isto é, uma
resposta da AP, originando-se, assim, um dever de proceder para a AP, mas não se exige um dever de
decisão, visto que o teor da petição ou queixa pode não convocar qualquer poder de decisão do órgão a
quem se dirige.

Nota: O princípio da pronúncia opera no âmbito de procedimentos que podem dar lugar à prática de atos
administrativos (por exemplo, a queixa que dá origem a um procedimento disciplinar), mas também no
procedimento do regulamento (97º, sobre petições, por exemplo): após estabelecer que os interessados
podem apresentar aos órgãos competentes petições em que solicitem a elaboração, modificação ou
revogação de regulamentos (nº1), o órgão com competência regulamentar deve informar os interessados
do destino dado às petições formuladas ao abrigo do nº1 (nº2), bem como dos fundamentos da posição
que tome em relação a elas.

Além disto, a AP tem, algumas vezes, um específico dever de decisão, como sucede quando um
interessado (com legitimidade procedimental), titular de uma posição jurídica substantiva, solicita, através
de um requerimento, à instância competente a produção de um efeito jurídico que envolve o exercício de
um poder de decisão, isto é, a prática de um ato administrativo (128º CPA).

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A falta, no prazo legal, de decisão final sobre pretensão dirigida a órgão administrativo competente
constitui incumprimento do dever de decisão, conferindo ao interessado a possibilidade de utilizar os meios
de tutela administrativa e jurisdicional adequados (129º CPA), sendo que o art.129º CPA salvaguarda o
disposto no art.13º/2 CPA, que afasta o dever de decisão sempre que, há menos de 2 anos, contados da
data da apresentação do requerimento, o órgão competente tenha praticado um ato administrativo sobre o
mesmo pedido, formulado pelo mesmo particular com os mesmos fundamentos.

No procedimento do regulamento administrativo, dever de decisão corresponde a um dever de


emissão do regulamento (137º/1/2).

J. Princípio da independência da decisão em relação ao pedido.

Os órgãos da AP podem decidir sobre coisa diferente ou mais ampla do que a pedida, quando o
interesse público assim o exija (13º/2 CPA).

Ou seja, é um princípio aplicável aos procedimentos de iniciativa heterónoma, devendo ser tomadas
algumas cautelas quanto à sua interpretação, especialmente na parte que se refere ao “decidir sobre coisa
diferente”. A AP poderá decidir coisa diferente do que lhe foi pedido se:

i. Tomar uma decisão sobre o pedido que lhe foi apresentado;


ii. Dispuser de competência oficiosa para tomar a decisão sobre coisa diferente, que não lhe foi
pedida.

Quanto à decisão sobre coisa mais ampla, é também necessário que a AP disponha de competência
própria para, num procedimento iniciado por impulso externo, decidir esse “algo mais” do que lhe foi pedido
(149º CPA).

K. Princípio da colaboração e da cooperação interadministrativa.

No decurso do procedimento administrativo, são estabelecidos contactos entre diversos órgãos


administrativos da mesma entidade ou de entidades diferentes, relações que podem assumir feições
variadas: pedidos de pareceres, de estudos, da realização de ensaios ou de exames; referência ao auxílio
administrativo (66º CPA) e às conferencias procedimentais (77º a 81º CPA).

O fenómeno da cooperação interadministrativa tem tido um grande desenvolvimento ao nível do direito


da UE, que estabelece exigências de cooperação e assistência mútua entre autoridades administrativas de
diferentes EM’s [por exemplo, a cooperação entre autoridades administrativas (DL nº92/2010)].

L. Princípio da tendencial gratuitidade do procedimento.

O procedimento administrativo é tendencialmente gratuito, na medida em que leis especiais não


imponham o pagamento de taxas por despesas, encargos ou outros custos suportados pela AP (15º/1
CPA).

Assim, mesmo com a reserva do caráter tendencial, estamos não tanto perante um princípio jurídico,
mas perante uma proclamação sem conteúdo normativo útil (161º/2/k) CPA).

Com relevo normativo, surgem os arts. 15º/2/3 CPA: em caso de insuficiência económica, a AP isenta,
total ou parcialmente, o interessado do pagamento das taxas ou das despesas referidas no número anterior.
A insuficiência económica deve ser provada nos termos da lei sobre apoio judiciário, com as devidas
adaptações.

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10.Sujeitos do procedimento administrativo.

O atos que integram o procedimento são realizados por diversos sujeitos: aos sujeitos ou órgãos
públicos responsáveis pelo ato principal do procedimento (por exemplo, ato do presidente da câmara
municipal a ordenar o despejo de um prédio) juntam-se outros órgãos da mesma ou de outra pessoa
coletiva pública (por exemplo, parecer de um órgão), assim como, possivelmente, entidades privadas
contratadas para a realização de certas diligências (por exemplo, empresa contratada para apresentar um
estudo de apoio à decisão).

No outro polo da relação procedimental, intervêm entidades com vários estatutos, mas titulares de
um interesse relacionado com a matéria a que o procedimento se refere.

Vale dizer, o procedimento aparece como o momento de organização da intervenção dos vários
sujeitos envolvidos e a envolver na ação administrativa tendente à produção de um certo resultado.

Deste modo, são sujeitos da relação jurídica procedimental:

a) Os órgãos de quaisquer entidades, cuja conduta seja adotada no exercício de poderes públicos ou
regulada de modo específico por disposições de DA, quando competentes para a tomada de decisões
ou prática de atos preparatórios;

b) Os particulares (cidadãos e pessoas coletivas) (68º/1 CPA): têm legitimidade para iniciar o
procedimento ou para nele se constituírem como interessados os titulares de direitos, interesses
legalmente protegidos, deveres, encargos, ónus ou sujeições no âmbito das decisões que nele forem
ou possam ser tomadas, assim como as associações, para defender interesses coletivos ou proceder
à defesa coletiva de interesses individuais dos seus associados que caibam no âmbito dos respetivos
fins;

c) Pessoas singulares (cidadãos) e pessoas coletivas de direito privado, em defesa de interesses difusos
(68º/2/3 CPA): têm legitimidade para a proteção de interesses difusos perante ações ou omissões da
AP passíveis de causa prejuízos relevantes não individualizados em bens fundamentais como a saúde
pública, a habitação ou a educação, por exemplo:

i. Os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e os demais eleitores recenseados no
território português;
ii. As associações e fundações representativas de tais interesses.

d) Os órgãos que exerçam funções administrativas, quando se verifiquem algumas condições (68º/4
CPA): têm legitimidade procedimental os órgãos que exerçam funções administrativas quando as
pessoas coletivas nas quais eles se integram sejam titulares de direitos ou interesses legalmente
protegidos, poderes, deveres ou sujeições que possam ser conformados pelas decisões que nesse
âmbito forem (ou possam ser) tomadas, ou quando lhes caiba defender interesses difusos que possam
ser beneficiados ou afetados por tais decisões.

e) As autarquias locais, em relação à proteção de interesses difusos nas áreas das respetivas
circunscrições (68º/3 CPA);

f) Cidadãos “residentes na circunscrição em que se localize ou tenha localizado o bem defendido”, tendo
em vista assegurar a defesa de bens do Estado, das regiões autónomas e de autarquias locais
afetados por ação ou omissão da AP (68º/4 CPA).

Filipe Ferreira | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


De acordo com a lógica da bipolarização da relação jurídica procedimental (polo da AP versus polo do
interessado em que se adote, ou não, uma medida procedimental), pressupõe-se a contraposição de dois
sujeitos do procedimento (65º/2 CPA):

• Por um lado, os sujeitos ou entidades em que se integram os órgãos competentes para a prática
dos atos jurídico-públicos do procedimento;
• Por outro lado, os interessados.

10.1.Órgãos responsáveis pelos atos juríd ico-públicos do procedimento.

O art.62º/1/a) CPA inclui no elenco dos sujeitos da relação jurídica procedimental “os órgãos das
entidades referidas no nº1 do art.2º”, quando competentes para a tomada de decisões ou para a prática
de atos preparatórios”.

Esta remissão pretende indicar que são sujeitos do procedimento os órgãos de quaisquer
entidades que atuem investidas de poderes públicos.

Em cada procedimento, sujeito da relação jurídica procedimental não é apenas o órgão com
competência para a decisão final do procedimento, sendo tal condição partilhada pelos órgãos
competentes para a prática de atos preparatórios (por exemplo, pareceres ou exames). Veja-se o
art.69º/3 CPA que se refere ao responsável pela direção do procedimento e a quaisquer sujeitos
públicos da relação jurídica procedimental.

10.2.A figura do responsável pela direção do procedimento.

É indiscutível a posição singular do órgão competente para a decisão final. Além da competência
para a decisão final, esse órgão dispõe da incumbência de conduzir e dirigir o procedimento (55º/1
CPA).

Ainda assim, o órgão competente para a decisão final deve delegar para inferior hierárquico seu o
poder de direção do procedimento (55º/2 CPA). Esta delegação é, em princípio, obrigatória, só não
existindo se houver disposição legal, regulamentar ou estatutária em contrário ou quando a isso
obviarem as condições de serviço ou outras, invocadas no procedimento concreto ou em diretiva
interna.

Por ocasião desta delegação, cada procedimento tem um agente a que pertence o órgão
competente para a decisão final com a incumbência específica de conduzir o procedimento, sendo que
este agente assume a titularidade de um órgão administrativo, que é o órgão responsável pela direção
do procedimento (64º/3, 110º/3, 118º/2, 122º/1 CPA). Esta figura é operativa no procedimento do ato
administrativo, mas também no procedimento do regulamento administrativo (100º/1 CPA).

A direção do procedimento referencia a incumbência ou responsabilidade genérica de condução


do desenvolvimento do procedimento, entre os momentos da iniciativa e de tomada da decisão final.
O papel do responsável cinge-se a assegurar a realização das diligências (consultivas, técnicas e
probatórias) necessárias para a definição do sentido e do âmbito da decisão do procedimento.

Filipe Ferreira | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


O CPA atribui ao responsável pela direção do procedimento algumas competências e
responsabilidades:

a) Realização de diligências instrutórias (probatórias e consultivas): o responsável pela direção


do procedimento deve procurar averiguar toso os factos cujo conhecimento seja necessário à
tomada de uma decisão legal e justa, dentro de um prazo razoável, podendo recorrer a todos
os meios de prova admitidos legalmente. Os factos notórios e os factos de que o responsável
da direção do procedimento tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções
não carecem de prova.
Na realização de tais diligências, o responsável pela direção do procedimento deve
orientar-se pelos princípios da discricionariedade procedimental (56º), do princípio do
inquisitório (58º), em conformidade com o dever de celeridade (59º).
É também o responsável pelo procedimento que dá impulso para a realização das
diligências consultivas que a lei imponha (pareceres obrigatórios) ou que ele entenda que
devem ter lugar (pareceres facultativos) (91º e 92º).
Por outro lado, o responsável pela direção do procedimento estabelece relações diretas
com os interessados (117º CPA).

b) Dever de informação: o responsável pela direção do procedimento é o sujeito passivo do


direito à informação procedimental dos interessados (82º e segs CPA).

c) Realização da audiência: é ao responsável pela direção do procedimento que cabe colocar


em marca o trâmite da audiência, tendo competência para tomar decisões
(endoprocedimentais) neste âmbito, como sobre se a audiência se processa por forma escrita
ou oral (121º e segs. CPA). Dispõe ainda de competência decisória para dispensar a audiência
dos interessados (124º/1 CPA).

d) Competência para prorrogação do prazo do procedimento: os procedimentos de iniciativa


particular devem ser decididos no prazo de 90 dias, salvo se outro prazo decorrer da lei, mas
esse prazo pode ser prorrogado pelo responsável pela direção do procedimento, por um ou
mais períodos, até ao limite de 90 dias, embora apenas mediante autorização do órgão
competente para a decisão final, quando as duas funções não coincidam no mesmo órgão
(128º CPA).

e) Responsabilidade pelo processo administrativo: o responsável pela direção do procedimento


é o responsável pelo processo administrativo e pelo conjunto de documentos que o integram
(64º/3 CPA).

f) Elaboração do relatório final do procedimento e proposta de decisão: quando o responsável


pela direção não for o órgão competente para a decisão final, elabora um relatório no qual
indica o pedido do interessado, resume o conteúdo do procedimento, incluindo a
fundamentação da dispensa da audiência dos interessados e formula uma proposta de
decisão (126º CPA).

10.3.Interessados.

Têm legitimidade para iniciar o procedimento ou para nele se constituírem como


interessados os titulares de direitos, interesses legalmente protegidos, deveres, encargos, ónus
ou sujeições no âmbito das decisões que nele forem ou possam ser tomadas, assim como as
associações, para defender interesses coletivos ou proceder à defesa coletiva de interesses
individuais dos seus associados que caibam no âmbito dos respetivos fim (68º/1 CPA).

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A participação no procedimento administrativo não se limita aos titulares de interesses
pessoais, com radicação subjetiva (interesses singulares ou coletivos). Tendo em vista a proteção
de interesses difusos, é alargada a legitimidade para participação procedimental (68º/2 CPA):

• Aos cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e os demais eleitores
recenseados no território português;
• Às associações e fundações representativas de tais interesses;
• Às autarquias locais, em relação à proteção de tais interesses nas áreas das
respetivas circunscrições.

É ainda permitida a participação no procedimento, na condição de interessados, de


“órgãos que exerçam funções administrativas” quando as pessoas coletivas nas quais eles se
integrem sejam titulares de direitos ou interesses legalmente protegidos, deveres ou sujeições que
possam ser conformados pelas decisões que nesse âmbito forem (ou possam ser) tomadas ou
quando lhes caiba defender interesses difusos que possam ser beneficiados ou afetados por tais
decisões.

A qualidade de sujeito da relação procedimental cabe igualmente ao órgão da pessoa


coletiva, tendo em atenção as posições jurídicas que conferem legitimidade procedimental a estes
órgãos, podendo dizer-se que a lei pretende contemplar aqui os casos em que sujeitos públicos
surgem como interessados, quer como titulares de situações jurídicas de direito público, quer como
titulares de situações jurídicas inerentes à capacidade de direito privado (por exemplo, associação
pública que requer uma licença de construção).

11.As relações jurídicas procedimentais.

O procedimento é o suporte do desenvolvimento de relações jurídicas que se processam no


interior da AP (por exemplo, relação entre o órgão que solicita e o órgão que emite um parecer) ou de
relações entre sujeitos da AP e entidades particulares chamadas a colaborar com aqueles (por exemplo,
contrato de aquisição de um estudo). Estas relações desenrolam-se sob o pretexto do procedimento, mas
apresentam um caráter instrumental ou acessório.

À “rede de relações procedimentais”, juntam-se as relações jurídicas procedimentais principais


que se processam entre o responsável pelo procedimento e os interessados no ato final a produzir (por
exemplo, relações entre o órgão competente para autorizar e o requerente de autorização ou os terceiros
com interesses contrários à atribuição da autorização).

Estas relações procedimentais desenvolvem-se no quadro do exercício de direitos subjetivos


procedimentais (por exemplo, direito à informação, 82º e segs. CPA) e de ónus (por exemplo, ónus de
prova, 116º CPA), mas também do cumprimento de deveres procedimentais, que recaem sobre a AP por
exemplo, dever de audiência dos interessados (121º), de notificação de atos administrativos (114º)].

Nuns casos, os deveres da AP são impostos diretamente pela lei e são, portanto, de cumprimento
oficioso (por exemplo, o dever de audiência), sendo que, noutros, os deveres emergem na sequencia do
exercício de direitos pelos interessados (por exemplo, o dever de prestar informações).

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12.Codificação do procedimento administrativo: o CPA.

12.1.Caráter híbrido do CPA.

O CPA é um código do procedimento administrativo, mas as normas que o integram não


revestem, sempre, o caráter de “normas de procedimento”, de normas de disciplina do “modo de
proceder da AP”. Por exemplo:

i. Sobre princípios gerais da atividade administrativa (3º a 19º), que conhecem um


sentido substancial e não procedimental ou não apenas procedimental (por exemplo,
princípios de igualdade, da justiça, entre outros);
ii. Sobre o regulamento administrativo (135º a 147º) e sobre o ato administrativo (148º
a 183º), na medida em que se cumprem a função principal de definir os contornos
das figura e o respetivo regime jurídico substantivo;
iii. Que conferem competências materiais a órgãos da AP (“normas de competência”),
incluindo mesmo a prática de atos administrativos (44º/3, 70º/4 ou 169º).

Ou seja, o CPA acolhe normas que disciplinam aspetos substantivos ou materiais do DA.

12.2.Procedimentos especificamente regulados no CPA.

O CPA não disciplina um procedimento-padrão de aplicação generalizada da ação


administrativa, nem disciplina um procedimento que defina a marcha da tramitação de formação
de um ato administrativo. Ainda assim, o CPA regula alguns procedimentos, subprocedimentos ou
fases procedimentais, sendo um código de “procedimentos”:

• Subprocedimento sobre funcionamento de órgãos colegiais: (21.º a 35.º);


• Procedimento de delegação de poderes: (47.º);
• Procedimentos de resolução de conflitos de atribuições e competências: (51.º e
52.º);
• Subprocedimento de auxílio administrativo: (66.º);
• Subprocedimentos de instituição de conferências procedimentais: (78.º);
• Procedimentos de arguição e declaração de impedimentos e de pedido de
dispensa de intervenção: (70.º a 75.º);
• Subprocedimentos de emissão de pareceres: (92.º);
• Procedimento do regulamento administrativo: (97.º a 101.º);
• Procedimento de acesso à informação procedimental: (82.º a 85.º);
• Subprocedimentos de notificação: (110.º a 114.º);
• Subprocedimento de adoção de medidas provisórias: (89.º e 90.º);
• Procedimento de execução do ato administrativo: (149.º a 157.º);
• Procedimentos de revogação e de anulação administrativa: (170.º);
• Procedimentos de impugnação administrativa de atos administrativos
(reclamação e recursos administrativos: (184.º a 199.º).

Nota: Excetuando o procedimento regulamentar, todos os procedimentos ou subprocedimentos


indicados ou são sequenciais em relação à prática do ato administrativo ou são subprocedimentos
enxertados na fase de gestação do ato administrativo. Ou seja, trata-se de procedimentos que se
desenvolvem de forma interligada com o procedimento de formação de um ato administrativo ou
a propósito de um ato administrativo (por exemplo, no auxílio administrativo ou na conferência
procedimental).

Filipe Ferreira | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


12.3.Âmbito de aplicação do CPA.

O art.2º/1 cumpre a função de identificar o âmbito (subjetivo) de aplicação dos três


seguintes universos de disposições do CPA:

i. Disposições respeitantes aos princípios gerais da atividade administrativa (3º a 19º);


ii. Disposições respeitantes ao procedimento administrativo (53º a 134º);
iii. Disposições respeitantes à atividade administrativa (135º a 202º).

O âmbito subjetivo de aplicação desses três universos normativos (“quaisquer entidades”)


é definido com apoio num critério material (tem por objeto uma “conduta”), conjugado com um
critério normativo (conduta “adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo
específico por disposições de direito administrativo”).

O triplo bloco de disposições não esgota a regulamentação do CPA: de fora fica a Parte
II, sobre os órgãos da AP (20º a 52º), a qual é aplicável (tendencialmente) “aos órgãos da AP”
(2º/2).

O mesmo critério orgânico surge ainda no art.2º/3, estabelecendo-se que “os princípios
gerais da atividade administrativa e as disposições do presente Código que concretizem preceitos
constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer atuação da AP, ainda que meramente técnica ou
de gestão privada”.

Capítulo III: Ato Administrativo.

20.Conceito de ato administrativo.

O ato administrativo (AA) é o ato jurídico da AP tipicamente associado ao exercício da função


administrativa de autoridade, representando a figura clássica do DA e sendo o epicentro das formas de
ação administrativa.

O ato administrativo exprime a “autotutela declarativa” que caracteriza o sistema de administração


executiva ou sistema de administração de ato administrativo: é uma fórmula que representa a imagem de
um sistema jurídico em que a AP detém um poder próprio para adotar medidas que, sem necessidade de
recurso aos tribunais, provocam alterações na esfera jurídica dos destinatários, ainda que contra a vontade
destes.

Embora não prevaleça sobre outras formas de ação administrativa (principalmente sobre o
contrato), e se sublinhe a vigência de um princípio de alternidade entre ato e contrato, é indiscutível que o
ato unilateral é dominante na prática da AP.

O AA constitui um modo de ação administrativa de caráter formal, que corresponde a um modelo


definido no ordenamento jurídico e vinculado a um determinado regime jurídico preestabelecido.

O regime do AA projeta-se nos planos procedimental e formal (regulamentação do procedimento


de formação e das exigências formais), substantivo (regime jurídico da validade e da revisão) e processual
(regime jurídico da impugnação).

Consideram-se atos administrativos “as decisões que, no exercício de poderes jurídico-


administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta” (148º CPA).

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Nota: Comparando com o CPA de 1991, essa noção omite um referencial orgânico- ali consideravam-se
atos administrativos “as decisões dos órgãos da AP”-, substitui a referência “ao abrigo de normas de direito
público” pela fórmula “no exercício de poderes jurídico-administrativos” e acrescenta que são “externos” os
efeitos jurídicos produzidos pelo ato administrativo.

Ato administrativo: decisão.

O AA assenta num comportamento declarativo ou ação declarativa, sendo uma declaração que
produz efeitos jurídicos: como ato jurídico, o AA “afeta o ordenamento jurídico” e constitui, modifica ou
extingue uma relação jurídica administrativa.

Na medida em que não correspondem a uma declaração, não são AA’s as ações ou operações
materiais (por exemplo, a entrega de um documento).

Por outro lado, não produzindo efeitos jurídicos, mas apenas efeitos de facto, não são atos
administrativos os atos de prestação de esclarecimentos ou de informações, os avisos, entre outros.

A declaração em que o AA consiste pode ser exteriorizada de forma escrita, oral ou eletrónica
(150º CPA).

Algumas vezes, considera-se praticado um AA, embora não exista uma declaração da AP, visando
a produção do efeito jurídico, surgindo algumas figuras entendidas segundo a ideia de ato administrativo
ficcionado:

i. Ato administrativo implícito: associa-se a casos em que, apesar de não existir um


procedimento (declarativo) formalmente autónomo de formação do ato administrativo, a AP
realiza a “operação material” que corresponderia à execução do AA.
Verificados certos requisitos, pode aceitar-se que o AA, embora não assente em qualquer
declaração, se encontra implícito na operação material de execução. Existem dois requisitos
específicos da possibilidade legal do ato administrativo implícito:

1. O agente que procede à operação material tem de ser o titular do órgão competente
para a prática do ato administrativo ou atuar, no caso concreto, sob o comando
daquele;
2. A ausência do procedimento declarativo e a emissão do ato administrativo tem de
encontrar justificação numa situação de estado de necessidade (3º/2 CPA).

Exemplo: A demolição de um muro que ameaça ruína iminente, não precedido de


qualquer decisão administrativa dirigida ao proprietário no sentido de ele proceder à
demolição.

Nota: Aparentemente, não é esse o cenário previsto no art.177º/2 CPA. Em termos literais,
invoca-se o estado de necessidade para legitimar situações em que se inicia o procedimento
de execução (por exemplo, demolição de um muro) sem uma emissão de uma decisão de
proceder à execução (decisão de realizar a operação de demolição do muro), mas não sem
a emissão do ato administrativo exequendo (decisão a impor a demolição do muro). Ainda
assim, uma vez que a decisão de proceder à execução pode ser notificada conjuntamente
com a notificação do ato administrativo exequendo, revela-se legítimo concluir que o estado
de necessidade pode justificar a execução sem a emissão do ato exequendo e da decisão de
proceder à execução.

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ii. Ato administrativo concludente: ato administrativo que, apesar de não existir, se deve
considerar praticado, por constituir um pressuposto lógico e necessário de outro ato praticado
pela AP. Por exemplo, a celebração de um contrato de compra de produtos com a empresa
“X” pressupõe que a AP praticou um ato administrativo de adjudicação que incidiu sobre uma
proposta por aquela empresa;

iii. Ato administrativo tácito: situação de inércia, em concreto de ausência de uma decisão que,
na sequência de um requerimento dirigido ao órgão competente, este deveria adotar dentro
do prazo legal para decidir (90 dias, 128º/1 CPA).
Mas pode suceder que a lei determine que essa ausência de decisão no prazo legal tem
o valor jurídico de uma decisão, de deferimento ou de indeferimento do pedido formulado no
requerimento, o que nos coloca perante um ato tácito de deferimento ou de indeferimento
(130º/1/2/3 CPA).
Normalmente, o facto de a AP não proferir qualquer decisão sobre os requerimentos que
lhe são dirigidos no prazo legal de que dispõe para o efeito não tem qualquer valor jurídico de
ato administrativo tácito, correspondendo a falta de decisão ao incumprimento de um dever
(dever de decisão), que pode originar responsabilidade disciplinar (128º/5 CPA), assim como
responsabilidade civil. Isto confere ao interessado a possibilidade de utilizar os meios de tutela
administrativa e jurisdicional adequados (129º, 192º/3 e 198º/4 CPA).
Ainda assim, em alguns casos, a lei ou o regulamento podem estabelecer que a falta de
decisão no prazo legal tem o valor de deferimento ou de indeferimento (ato administrativo
tácito). Ou seja, apesar de não ter tomado qualquer decisão, o órgão competente suporta a
imputação dos efeitos jurídicos da decisão.
Por exemplo, nos termos do regime jurídico de acesso e de exercício de diversas
atividades de comércio, serviços e restauração (DL nº10/2015), o decurso do prazo legal sem
que o município emita a autorização para a exploração de certos estabelecimentos dá lugar
a deferimento tácito.
Tenha-se atenção o regime da contagem de prazos (130º/2/3 CPA). Considera-se que há
deferimento tácito se a notificação do ato não for expedida até ao primeiro dia útil seguinte ao
termo do prazo da decisão (130º/2 CPA).
Suponhamos que um requerimento a solicitar uma autorização dá entrada no dia 5 e que
a AP tem 10 dias para decidir. De acordo com as regras de contagem dos prazos (87º CPA),
vamos admitir que o prazo para decidir terminaria no dia 20 e ainda que o órgão competente
tomou a decisão nesse mesmo dia 20. Isto é, a AP decidiu dentro do prazo legal de que
dispunha para o efeito, daí que se poderia dizer que não há ato tácito, mas não é bem assim.
Se a notificação da decisão for expedida no dia 21, não há ato tácito, mas se a notificação
não for expedida nesse dia 21, mas depois desta data, o particular poderá invocar a formação
de um ato de indeferimento tácito. Neste caso, o ato de deferimento tácito não resulta de a
AP não ter decidido no prazo legal, mas de não ter notificado no primeiro dia útil seguinte ao
termo desse prazo.

Nota: Isto pretende impedir que a AP, depois de decidir dentro do prazo legal, se desleixe no
cumprimento do dever de notificar o particular e venha a invocar que, apesar da falta de
notificação, já tomou uma certa decisão há 10 ou 15 dias [é certo que os atos administrativos
devem ser notificados no prazo de 8 dias (114º/5 CPA), mas noa se prevê qualquer
consequência para o incumprimento deste prazo].

Nos casos em que a lei estabeleça que a falta de decisão no prazo legal tem o valor
jurídico de deferimento, o particular pode sempre invocar o deferimento tácito quando seja
seguro que a decisão não foi objeto de notificação no dia seguinte ao termo do prazo (130º/2

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CPA). O prazo legal de produção de deferimento tácito suspende-se se o procedimento estiver
parado por motivo imputável ao interessado, determinando-se ainda que o mesmo prazo só
se interrompe com a notificação da decisão expressa (130º/3 CPA).

Além disso, “quando a prática de um ato administrativo dependa de autorização prévia


ou um ato esteja sujeito à aprovação de um órgão da AP ou de outra entidade no exercício
de poderes públicos, prescinde-se da autorização prévia ou da aprovação desde que o órgão
que as solicitou tenha interpelado o órgão competente para as emitir” (130º/4 CPA).

Mas não estamos perante a figura do ato tácito. Tem-se em vista uma situação de inércia
no âmbito de procedimentos interadministrativos, relacionados com pedidos de autorização
prévia ou aprovação posterior apresentados por um órgão da AP (“órgão ativo”) a um outro
órgão da AP (“órgão de controlo”). A lei regula a situação que decorre do facto de o órgão de
controlo, instado a autorizar ou aprovar, não tomar qualquer decisão no prazo legal,
prescindindo-se da autorização ou da aprovação, desde que o órgão ativo interpele o órgão
de controlo, competente para autorizar ou aprovar.

A interpelação deve ser efetuada decorridos 10 dias, a contar do termo do prazo para a
autorização ou aprovação, devendo o órgão competente, nesse caso, emiti-las no prazo de
20 dias (130º/5 CPA).

Vale dizer, se o órgão de controlo deveria ter autorizado ou aprovado até ao dia 5, o órgão
ativo tem 10 dias, a partir do dia 5, para interpelar o primeiro. O órgão de controlo tem agora
um novo prazo de 20 dias para decidir sobre o pedido de autorização ou de aprovação. Se o
não fizer, prescinde-se da exigência de autorização ou de aprovação, ficando o órgão ativo
em condições de praticar o ato dependente de autorização ou em considerar eficaz o ato que
dependia de aprovação. Note-se que não existe qualquer ficção de deferimento da
autorização ou da aprovação (regime semelhante: 92º/6 CPA).

O AA é uma declaração que incorpora uma decisão, uma medida decisória, podendo envolver, por
exemplo, a determinação da produção de um efeito, a prescrição de uma conduta ou a resolução de uma
situação.

O AA é um ato unilateral, visto que a existência jurídica do mesmo depende exclusivamente do


respetivo autor, podendo suceder que a sua eficácia jurídica dependa de uma ação do destinatário (“AA’s
dependentes de aceitação do destinatário”) ou de outro órgão da AP (“AA’s dependentes de aprovação”),
mas a existência do AA depende apenas da declaração do autor. É a nota unilateral que distingue o AA do
contrato administrativo (depende de duas partes).

A unilateralidade deve autonomizar-se da autoridade, que reflete o facto de a prática do AA


envolver o exercício de um poder administrativo de decisão e de determinação de efeitos que se produzem
na ordem jurídica, incrustando-se na esfera dos destinatários independentemente da vontade destes.
Mesmo os atos administrativos favoráveis conhecem esta nota de autoridade, que reside no poder para
praticar o ato. Está em causa um ato de autoridade, posto em prática no exercício de um poder público, o
poder administrativo.

Esta nota da autoridade projeta-se na executividade, ou seja, no facto de a determinação contida


no AA estar em condições de ser executada, dispensando um ato de confirmação ou de validação de um
tribunal. Se a AA determina a um cidadão a adoção de uma conduta (por exemplo, a entrega de uma coisa),
a obrigação incrusta-se logo na esfera do destinatário, ficando a determinação pronta para ser executada

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quando se verifique que o destinatário não a acatou. No Direito Privado, as decisões unilaterais não
comportam a executividade.

O caráter decisório (e autoritário) permite distinguir o ato administrativo de um conjunto vasto e


heterogéneo de outros atos jurídicos unilaterais da AP.

“Capacidade para a prática de atos administrativos”

A declaração de uma autoridade administrativa é uma condição necessária do ato administrativo, mas não
é necessário que essa autoridade detenha competência para a emissão da declaração, visto que o facto
de não dispor competência para proferir a declaração não coloca em causa a existência, mas apenas a
validade do ato administrativo.

Também não é necessário que a lei confira àquela autoridade a capacidade para a prática de atos
administrativos. O valor jurídico autónomo do conceito de ato administrativo revela-se no facto de este,
como declaração, convocar, de imediato, um regime jurídico que contribui para reforçar a supremacia que
a AP já detém na relação jurídica que o ato disciplina. É o que decorre do ato administrativo constituir um
título executivo, muitas vezes dotado de força executória, assim como de instituir um ónus de impugnação
para o interessado (não havendo impugnação no prazo legal, o AA torna-se inatacável e acabará por se
consolidar na ordem jurídica). A autonomia do tema da capacidade para a prática de atos administrativos
nota-se na diferença entre, por um lado, a autorização ou a ordem que um órgão pode conceder ou impor,
enquanto meras declarações revestidas de autoridade e emitidas em situação de supremacia jurídica e,
por outro lado, no facto de essas autorizações ou ordens envolvidas na forma de “ato administrativo”. A
forma “ato administrativo” acrescenta à autoridade material intrínseca das declarações o caráter executivo,
a força executória, assim como o ónus de impugnação.

No passado, o tema da capacidade para a prática de atos administrativos foi discutido a propósito da
natureza das declarações, emitidas no exercício de “poderes “ legais, por contraentes públicos no
desenvolvimento de relações contratuais. Hoje, com o CCP, a dúvida está resolvida: por um lado, o elenco
dos poderes do contraente público (302º CCP) e, por outro, a indicação explícita de que essas declarações
revestem a natureza de ato administrativo (307º/2 CCP), atribuindo esta norma aos contraentes públicos a
capacidade para a prática de atos administrativos.

Geralmente, a dúvida sobre se a AP está autorizada a agir por via do AA pode esclarecer-se com base na
determinação da natureza do poder conferido pela norma de competência. Quer dizer, haverá de ser a
interpretação da norma de competência material a conduzir o julgador à conclusão de que uma certa
instância administrativa se encontra investida de um poder próprio para a tomada de uma decisão de
autoridade aplicável a uma dada situação. Se a lei entregar à AP um “poder próprio de decisão”, então as
pronúncias emitidas no exercício desse poder qualificam-se como AA’s, desde que preencham os restantes
elementos do conceito. Vale dizer, a capacidade formal para a prática de atos administrativos afere-se em
função da interpretação das normas de competência material.

Ato administrativo e função administrativa.

O AA é adotado no exercício da função administrativa, enquanto missão de que se ocupam os


sujeitos da AP. Para a recondução de um ato à função administrativa revela-se indiferente a respetiva
inserção formal, isto é, há atos administrativos praticados sob a forma de lei, até sob a forma de decreto-
lei. Isto sucede na medida em que o Governo acumula as funções legislativa e administrativa, o que pode
conduzir ao desenvolvimento da função administrativa mediante a forma legislativa: são atos

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administrativos (na forma legislativa) a adjudicação de uma concessão ou o reconhecimento do interesse
público de uma universidade privada por DL.

A categoria dos atos administrativos sob a forma de lei tem cobertura constitucional, estando
consagrada a possibilidade de impugnação de quaisquer atos administrativos independentemente da sua
forma, fórmula que abrange igualmente os atos administrativos sob forma regulamentar (268º/4 CRP).

Apesar da forma legislativa, estando em causa um ato administrativo, este pode ser submetido à
apreciação dos tribunais administrativos (52º/2 CPA).

A conexão entre AA e exercício da função administrativa implica não considerar administrativos


quaisquer atos praticados no âmbito de outras funções do Estado. Alguns atos da “alta administração”
encontram-se numa “zona cinzenta”, algures entre a função administrativa e a função política ou de governo
(por exemplo, decisão de encerramento de um tribunal).

Disciplina para uma situação individual e concreta.

O AA vale para uma situação individual e concreta (148º CPA), o que nos permite distinguir o AA
do regulamento administrativo, que se caracteriza por ser geral e abstrato, próprio de atos normativos (135º
CPA).

A referência à situação concreta e individual evidencia o sentido ou recorte não normativo do ato
administrativo. Este não constitui uma norma ou uma regra para uma situação, aplicável sempre que essa
situação ocorra, traduzindo antes a decisão para uma situação única que atinge destinatários determinados,
pelo que o AA é representativo da forma específica do agir da AP, enquanto atuação concreta e em relação
com o cidadão, com cada cidadão.

Por caráter individual, deve entender-se a exigência de o ato administrativo se referir à situação
jurídica de uma pessoa determinada ou de várias pessoas determinadas, isto é, o caráter individual não
reclama que o AA se dirija a uma única pessoa, mas que os seus destinatários se encontrem determinados.

O caráter individual não deve afastar os designados atos administrativos gerais: atos
administrativos (concretos), mas que não atingem um círculo de destinatários individualizados. Alude-se a
estes atos quando se estabelece que o não exercício do direito de impugnar um ato que não individualize
os seus destinatários não obsta à impugnação dos seus atos de execução ou aplicação cujos destinatários
sejam individualmente identificados (52º/3 CPTA).

Devemos ainda reconduzir ao conceitos os atos administrativos intransitivos, que não têm
destinatário [por exemplo, o ato de afetação de um bem ao domínio público (16º e 17º DL nº280/2007)].

A situação a que o ato se reporta deve ser concreta, ou seja, o AA aplica-se a uma situação e
resolve-se nessa mesma aplicação. O propósito do ato esgota-se na sua aplicação no caso concreto, não
tendo a pretensão de valer para o futuro. O AA não assenta numa hipótese, mas sim numa resposta. Em
paralelo à figura dos AA’s gerais, aceita-se a existência de atos administrativos abstratos (que terão de ser
individuais): por exemplo, a determinação que uma autoridade administrativa dirige a uma empresa
específica no sentido de impor a esta uma conduta determinada sempre que a mesma proceda à emissão
de gases perigosos.

Filipe Ferreira | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


Produção de efeitos jurídicos externos.

O AA introduz alterações no ordenamento jurídico, sendo responsável pela constituição,


modificação ou extinção de uma relação jurídica administrativa. Por exemplo, quando a autoridade
administrativa pune um cidadão com uma coima ou um estudante com uma sanção disciplinar.

Pode haver atos que produzem uma lesão na esfera de um cidadão, apesar de não serem
praticados em relação a esse cidadão: o critério da lesividade (por exemplo, uma medida de organização
que atenta contra o direito de alguém); os efeitos externos são laterais; há aqui uma questão de “dupla
natureza” (interna e externa).

Ainda assim, não é apenas o AA que produz efeitos jurídicos positivos. Reconduzem-se ainda ao
conceito as decisões administrativas que produzem efeitos jurídicos negativos, ou seja, efeitos que se
traduzem na recusa da alteração do ordenamento jurídico concretamente pretendida pelo interessado. Ou
seja, efeitos negativos são os efeitos dos atos de indeferimento dos pedidos constantes de requerimentos
de particulares.

Efeitos negativos não significam ausência de efeitos jurídicos: o ato administrativo negativo
constitui uma decisão da AP, que resolve uma situação jurídica. A reação contra um ato desta natureza
não segue a via da impugnação, mas a da condenação à prática do ato administrativo devido (51º/4 CPTA).

O AA produz efeitos jurídicos externos, operando numa relação intersubjetiva, que ocorre entre
sujeitos diferentes: a entidade pública (ou privada) a que pertence o autor do ato e o destinatário, que pode
ser um particular ou uma entidade pública.

Se a decisão de um órgão administrativo produz efeitos que se repercutem na esfera de outros


órgãos administrativos, não temos um ato administrativo, precisamente por ausência de efeitos jurídicos
externos, o que não significa que este ato não opere nas relações interorgânicas.

Os efeitos jurídicos do ato administrativo projetam-se num objeto, que pode ser uma pessoa (atos
administrativos pessoais), uma coisa (atos administrativos reais), um outro ato administrativo (atos
administrativos secundários), um contrato da AP ou um contrato entre particulares.

Note-se que muitos atos têm a pretensão de provocar a produção de efeitos práticos ou de facto:
por exemplo, a ordem de demolição de uma casa produz o efeito jurídico de constituir o destinatário na
obrigação de proceder à demolição e tem ainda a pretensão de produzir o efeito de facto consistente na
demolição.

O AA no direito da UE

O AA é também uma categoria do direito da UE. Os Tratados não definem expressamente a figura. Mas, a
partir de vários preceitos e da jurisprudência, é possível definir o ato administrativo da UE como o ato de
exercício de um poder administrativo da UE, como o ato de exercício de um poder administrativo praticado
por uma instituição ou órgão da UE numa situação concreta e dirigido a particulares (indivíduos ou
empresas) ou aos EM’s [por exemplo, autorização (105º/2 TFUE) ou decisão de supressão ou modificação
de auxílios (108º/2 TFUE)].

Filipe Ferreira | FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


O AA no direito constitucional

A figura do ato administrativo tem acolhimento na CRP (268º/3), que define aspetos do regime jurídico do
AA (notificação e fundamentação dos AA’s que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos); o
art.268º/4 regula aspetos relacionados com a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos particulares em
face de AA’s lesivos (impugnação) e devidos (condenação). A referência à figura neste plano traduz,
indiretamente, o reconhecimento constitucional de um “sistema de administração de ato administrativo”,
tendo o efeito de legitimar o regime jurídico do ato administrativo, com as notas que classicamente o
distinguem.

21.Funções do ato administrativo.

O AA tem as seguintes funções:

A. Função de concretização e individualização: assinala o facto de o AA constituir um meio ou


instrumento jurídico de aplicação da lei e dos seus comandos normativos a situações concretas da
vida e perante cidadãos determinados. Ao AA associa-se, portanto, uma dimensão de “contacto” direto
e imediato dos poderes públicos com os cidadãos e de “regulação” de uma situação específica da vida
real;

B. Estabilização de situações jurídicas: o AA tem uma propensão para a estabilidade e para pôr em
marcha efeitos jurídicos “definitivos”, que manifestam uma especial “capacidade de resistência”. Esta
força de estabilização tem implicações no plano da eficácia jurídica vinculativa, a qual opera
independentemente da confirmação da legalidade (autotutela declarativa da AP), remetendo para os
interessados o “ónus de impugnação” do ato em prazo relativamente curto (normalmente, 3 meses
após a notificação);

C. Procedimental: o AA constitui a decisão formal de conclusão de um procedimento. Aqui, a qualificação


de uma declaração de uma autoridade da AP como ato administrativo (com esta “forma”) mobiliza logo
a aplicação e um regime jurídico predefinido com dimensões formais e procedimentais (por exemplo,
audiência de interessados, fundamentação, notificação), mas também materiais (por exemplo, regime
de revogação e anulação);

D. Titulação: ao AA associa-se um caráter de executividade, conceito que traduz o facto de o mesmo


constituir um “título executivo”. Assim, a declaração em que o ato administrativo se concretiza pode
fundar diretamente uma execução sem necessidade de intervenção ou intermediação judicial
declarativa.

Ou seja, uma vez praticado e eficaz, o ato está em condições de ser executado, no âmbito de um
processo (executivo) movido contra o destinatário [execução coerciva, que se processa pela via
jurisdicional (176º/1 e 183º CPA) ou conta a AP (157º/3 CPA).

E. Processual: o AA constitui também uma categoria processual, que releva no plano do direito do
processo administrativo. Aqui, desempenha a função de circunscrever o âmbito de aplicação de certas
formas de processo, como a “ação administrativa”, que acolhe pedidos de impugnação e de
condenação à prática de atos administrativos.
Deste modo o AA condiciona ou delimita o campo de utilização de mecanismos específicos de
tutela jurisdicional em face da AP.

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23.Procedimento do ato administrativo.

Em princípio (“princípio da procedimentalidade”), a decisão em que se traduz o AA é adotada no


âmbito de um procedimento. Ou seja, o AA surge como o ato principal, que integra o conjunto de atos, de
medidas e de diligências que compõem um procedimento administrativo.

O princípio da procedimentalidade do AA conhece desvios na figura do AA desprocedimentalizado:


trata-se de um AA “livre de procedimento”, que se consubstancia numa decisão que o órgão competente
adota na sequência de um processo decisório puramente interno e psicológico e que desconhece qualquer
momento juridicamente autónomo de formação ou de preparação.

Por exemplo: as ordens da polícia, adotadas pelas autoridades competentes em reação direta e
imediata à verificação das circunstâncias concretas que as exigem (175º/2 CPA).

Existe uma regra de relação biunívoca entre procedimento de formação de AA e AA: cada AA tem
o “seu procedimento” e cada procedimento conta com o “seu” AA. Isto sucede mesmo quando um resultado
jurídico que se pretende alcançar se produz no âmbito de dois ou mais procedimentos administrativos que
se interligam: por exemplo, para a abertura de certas instalações industriais, é necessária uma autorização
industrial, uma licença ambiental e uma licença urbanística.

Numa compreensão unitária deste fenómeno, utilizam-se, por vezes, os conceitos de


procedimento complexo (77º/3 CPA) ou de operação procedimental complexa, para captar o momento de
unidade que interliga os vários procedimentos que se sucedem no tempo. Por exemplo, os conceitos
apresentam-se adequados para referenciar o “procedimento de instalação da indústria X”.

Nota: por vezes, esbate-se a diferença entre o fenómeno do encadeamento de procedimentos de formação
de vários AA’s (por exemplo, o procedimento de autorização a um particular encadeado com um
procedimento de aprovação (de outro órgão) e o do relacionamento entre órgãos no âmbito do
procedimento de formação de um AA (por exemplo, o procedimento de autorização a um particular que
inclui o parecer de um órgão consultivo). Neste último caso, o parecer não constitui uma “decisão”, um AA,
não está presente a figura do procedimento complexo: trata-se de um procedimento administrativo simples,
limitado à prática de um AA, mas isto não exclui que se possa referenciar a existência de um
“subprocedimento” na relação que intercorre entre o órgão que solicita o parecer e o órgão que o emana.

O procedimento de formação de AA’s apresenta uma configuração muito variada, em função


sobretudo do tipo de AA a praticar: por exemplo, o procedimento disciplinar, que pode conduzir à aplicação
de uma sanção disciplinar, conhece uma tramitação específica e é, além disso, composto por atos e
medidas que o distinguem do procedimento para a atribuição de um subsídio, por exemplo.

O procedimento de formação do AA está previsto nos arts. 102º a 133º CPA.

23.1.Iniciativa.

A iniciativa do procedimento de formação do AA é, maioritariamente, particular (de um


interessado em obter uma decisão da AP) ou oficiosa (da mesma instância da AP que vai proferir
a decisão), mas há ainda situações de hétero-iniciativa pública (de instância da AP diferente da
que vai proferir a decisão).

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a) Iniciativa particular.

Os procedimentos de iniciativa particular visam a produção de efeitos jurídicos favoráveis ou


ampliativos para o requerente: têm por objeto os interesses pretensivos.

O particular que promove o procedimento procura obter uma vantagem para a sua esfera
jurídica, mas pode suceder que que a produção da situação de vantagem se associe à produção
de um efeito desfavorável para um terceiro (por exemplo, uma empresa que requer a aplicação de
sanções a uma empresa concorrente).

Em casos especiais, a lei dissocia mesmo a iniciativa procedimental da produção de uma


vantagem para a esfera jurídica do requerente, como acontece com os procedimentos destinados
à resolução administrativa de litígios, em que o requerente se dirige ao órgão administrativo
competente para que este resolva um conflito entre o requerente e um terceiro (por exemplo,
competências de resolução de litígios da ANACOM).

A apresentação do requerimento implica sempre, para o órgão que o recebe, uma obrigação
de proceder, estando o requerimento na génese de uma relação jurídica procedimental. Esta
obrigação de proceder decorrer de o órgão que recebe o procedimento estar adstrito a desenvolver
uma atividade procedimental, de verificação do preenchimento dos pressupostos procedimentais
[podem ser de caráter subjetivo (competência do órgão) ou objetivo (existência e inteligibilidade
do requerimento)].

Se estes pressupostos não estão preenchidos, diz-se que existem “questões que prejudicam
o desenvolvimento normal do procedimento” (109º CPA). O órgão deve, então, tomar uma decisão,
que consistirá, normalmente, em pôr termo ao procedimento por falta de pressupostos
procedimentais (decisão de arquivamento do procedimento). Outro caso diz respeito ao
“indeferimento limitar do requerimento” não identificado ou cujo pedido seja ininteligível (108º/3
CPA).

Não devemos confundir a obrigação de proceder com a obrigação de decidir:

• Obrigação de proceder: decorre imediatamente da entrada do requerimento na AP;

• Obrigação de decidir: traduz-se na obrigação de proferir uma decisão sobre o


requerimento apresentado e reclama a verificação dos pressupostos procedimentais.

Não existindo questões que prejudiquem o desenvolvimento normal do procedimento, pode


reconduzir-se ao requerimento o efeito de constituir a AP na obrigação de decidir. Por exemplo,
num procedimento em que se requer uma autorização, a obrigação de decidir consiste na
obrigação de proferir uma decisão de indeferimento ou de indeferimento do pedido de autorização.

Ou seja, a obrigação de decidir corresponde à obrigação de praticar um AA. Estamos perante


um AA devido, quer dizer, um AA que a AP tem de praticar dentro de certo prazo (86º/1 e 128º/1
CPA).

Quando previsto na lei como ato de iniciativa, o requerimento é um pressuposto


procedimental; sem o requerimento, o procedimento não pode ter início e a decisão que a AP
venha a tomar é ilegal. Note-se que este efeito não se verifica nos casos em que a lei estabelece
que um procedimento se pode iniciar por ato de iniciativa particular “ou” oficiosamente.

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Devemos tomar atenção à legitimidade procedimental do requerente. O pressuposto da
legitimidade procedimental responde à questão de saber quem pode “iniciar” ou “participar” num
procedimento de formação do AA (68º CPA).

O pressuposto da legitimidade procedimental assume-se fundamental para se apurar a


existência de um requerimento no sentido específico de (1) ato de iniciativa (2) que constitui o
órgão administrativo na obrigação de decidir.

Ou seja, existe um associação entre requerimento e AA, surgindo o requerimento como o ato
jurídico em que o autor requer a produção de um efeito que a AP irá, ou não, produzir mediante a
prática de um AA (por exemplo, o requerimento de uma bolsa de estudo).

Por falta de legitimidade procedimental do autor, não é requerimento o ato pelo qual um
cidadão apresenta uma “participação” ou uma “queixa”, tendo o objetivo de levar a AP a exercer
uma competência. Estes são atos pré-procedimentais que levam à AP o conhecimento de factos
e situações que podem conduzi-la a iniciar um procedimento (iniciativa oficiosa).

A associação entre requerimento e AA reclama que distingamos o requerimento como ato de


iniciativa procedimental que constitui a AP na obrigação de decidir do ato pelo qual o particular
“requer” a passagem de uma certidão (83º/3 CPA) ou “requer” certas diligências de prova (116º/3
CPA): estes requerimentos não são atos de iniciativa procedimental, nem estão na origem de
qualquer obrigação de decidir.

Vale dizer: nem todos os requerimentos constituem atos de iniciativa procedimental.

Devemos notar também que existem atos de iniciativa procedimental dos particulares a que
a lei não atribui a designação de requerimento:

• Por exemplo, a “notificação prévia de uma operação de concentração de empresas (Lei


da Concorrência).

Apesar de a lei lhe atribuir outro nome, é um ato de iniciativa procedimental, que constitui a
AP na obrigação de proferir uma decisão.

Nota: É importante não confundir a “notificação” com as “comunicações prévias de início de


atividade”, as quais não suscitam qualquer decisão ou pronúncia da AP sobre a comunicação.
Aqui, a lei exige a comunicação de um facto à AP (por exemplo, a instalação e abertura de um
estabelecimento de restauração), mas esta não é chamada a proferir uma decisão sobre a
verificação das condições legais para a instalação do estabelecimento: a responsabilidade por
efetuar essa verificação pertencer ao promotor. O “procedimento” de comunicação conclui-se com
a entrega do ato de comunicação à AP.

Finalmente, o requerimento é o nome que o CPA atribui aos atos de iniciativa particular nos
procedimentos administrativos de 1º grau.

Nos procedimentos administrativos de 2º grau, que visam a impugnação administrativa de


uma decisão da AP, o ato de iniciativa particular reclamação, se a impugnação se dirige ao autor
da decisão (184º e segs. CPA), ou recurso, se a impugnação se dirige ao superior hierárquico do
autor do ato (recurso hierárquico) ou ao órgão colegial de que este seja membro, ao delegante ou

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subdelegante ou ao órgão com poderes de supervisão, tutela ou de superintendência sobre o autor
do ato (recursos administrativos especiais).

b) Iniciativa oficiosa.

São de iniciativa oficiosa os procedimentos desencadeados pela instância administrativa


competente para praticar o AA que vai concluir o procedimento. Por exemplo, a promoção de
procedimentos de embargo e de demolição de obras ilegais é iniciado e concluído pelo presidente
da Câmara Municipal.

Aos procedimentos de iniciativa oficiosa reconduzem-se ainda os procedimentos que, por


força de uma separação hierárquica das competências, são iniciados por um órgão e concluídos
por outro órgão.

Embora a descoincidência entre “órgão de iniciativa” e “órgão decisor” aponte para um caso
de hétero-iniciativa, deve reconduzir-se ao tipo de iniciativa oficiosa o procedimento em que um
órgão com competência de iniciativa coloca em marcha um procedimento que vai ser concluído e
“decidido” por outro órgão (hierarquicamente superior), mas numa “lógica de continuidade” e não
de “alteridade”: os dois órgãos envolvidos não estão “face a face”, mas numa relação sequencial.
Por exemplo, o procedimento disciplinar dos trabalhadores em funções públicas.

Ao contrário do que acontece nos casos de hétero-iniciativa, aqui não existe sempre um
explícito ato de iniciativa, ou seja, este não se revela sempre como um ato formalmente autónomo.
Quando é assim, o ato de iniciativa há de revelar-se através de um ato posterior, como o ato de
comunicação do início oficioso do procedimento a que se refere o art.110º/1 CPA, onde se
estabelece que o “início do procedimento é notificado às pessoas cujos direitos ou interesses
legalmente protegidos possam ser lesados pelos atos a praticar e que possam ser logo
nominalmente identificadas”.

Quando tem autonomia, coloca-se a questão de saber se o ato de iniciativa oficiosa do


procedimento corresponde a um AA. Geralmente, a resposta é negativa: o ato de promoção do
procedimento constitui um ato procedimental com eficácia jurídica interna. Porém, em alguns
casos, o ato de promoção do procedimento pode produzir logo uma eficácia jurídica externa,
qualificando-se como AA (suscetível de impugnação judicial).

Nota: “Ainda que não ponham termo a um procedimento, são impugnáveis todas as decisões que,
no exercício de poderes jurídico-administrativo, visem produzir efeitos jurídicos externos numa
situação individual e concreta” (51º/1 CPTA). A eficácia externa de um ato que inicia um
procedimento afere-se em função do facto de se tratar de um ato lesivo para uma pessoa
determinada e logo identificada (por exemplo, o início de um procedimento disciplinar). Pode ainda
tratar-se de um ato geral, com capacidade de lesão de sujeitos não individualizados (o anúncio
público de um procedimento para atribuição de novas licenças de táxi, que os titulares de licença
considerem ilegal).

Uma vez que a iniciativa é oficiosa, pertence à AP a decisão sobre a promoção do


procedimento.

Primeiramente, a AP pode não dispõe de uma liberdade para decidir entre iniciar ou não
um procedimento. Há procedimentos cuja iniciativa repousa numa decisão livre da AP: por
exemplo, instauração de um procedimento para a atribuição de uma condecoração a um cidadão
ilustre.

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Noutros casos, a iniciativa oficiosa do procedimento pode associar-se à verificação,
concretamente, de pressupostos legais de ação administrativa. Por exemplo, a determinação do
início do procedimento poderá resultar de uma “vinculação legal escrita” ou de um “juízo
discricionário” da AP (princípio a legalidade v. princípio de oportunidade da iniciativa oficiosa).

A regra é a da oportunidade, mas, por força de lei, de regulamento ou de contrato


administrativo, a AP pode estar obrigada a iniciar um procedimento ou a praticar um AA por sua
iniciativa.

Em segundo lugar, devemos notar que, em geral, o procedimento de iniciatova oficiosa


não exclui a consideração de eventuais particulares titulares de um interesse no início do
procedimento. Devemos distinguir entre:

• Titulares de um “interesse de facto”: podem denunciar, participar e até solicitar a


instauração do procedimento, mas a AP não fica, por força disso, obrigada a promover o
procedimento. Isto acontece mesmo nos casos em que a lei impõe à AP o dever de
comunicar ao participante, denunciante ou queixoso a sua decisão sobre a participação,
denúncia ou queixa (13º/1 CPA)

• Titulares de um “interesse juridicamente protegido”: pense-se, por exemplo, no interesse


do particular que reside num certo local no sentido da repressão da violação das regras
urbanísticas cometida por um vizinho. Por ser titular de um interesse juridicamente
protegido, o particular tem “legitimidade procedimental” para iniciar o procedimento
administrativo de demolição da obra ilegal e pode apresentar requerimento com esse
objetivo . Ou seja, por força da legitimidade da iniciativa particular, um procedimento que,
em geral, se apresenta como de iniciativa oficiosa, vê-se convertido num procedimento
de hétero-iniciativa.

O particular iniciar o procedimento, com a apresentação do requerimento, e a


AP deve continuá-lo, bem como tomar a decisão final.

Nos procedimentos de iniciativa oficiosa coloca-se ainda a questão de saber se e em que


termos se pode aceitar a existência de uma obrigação de decidir. Não há uma resposta com
validade geral.

Relativamente aos procedimentos cujo início oficioso foi comunicado, parece de exigir a
tomada de uma decisão de conclusão do procedimento, mesmo que se trate de uma decisão de
desistência ou de arquivamento do procedimento.

Noutros casos, o início do procedimento pode suscitar nos particulares uma “expectativa
legítima” no sentido da conclusão do mesmo através de uma decisão substantiva ou de fundo: em
geral, não é fácil obter a condenação da AP a adotar a decisão favorável a que o procedimento
poderia conduzir, mas pode acontecer que a lei imponha esse resultado ou que a tomada de uma
decisão com um certo conteúdo decorra de uma exigência de proteção dos direitos de um
particular (por exemplo, o direito do arguido num procedimento disciplinar a uma decisão que
esclareça que não subsistem factos que possam conduzir a uma condenação).

Pode ainda suceder que os particulares tenham assumido custos em consequência da


abertura do procedimento e para nele participar (por exemplo, custos incorridos na sequência de
um procedimento iniciado para atribuição de subsídios e apoios financeiros a quem investir em

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certas culturas agrícolas). Mas entende-se que, mesmo nesses casos, a AP pode ordenar o
arquivamento, renunciar ou desistir do procedimento.

Pode ainda admitir-se a inexistência de um dever de conclusão do procedimento, por


exemplo quando este se tenha iniciado, mas não tenha ultrapassado um dimensão puramente
interna.

c) Iniciativa pública não oficiosa.

Esta é uma categoria própria dos procedimentos que se desenrolam nas relações
interadministrativas (entre entidades públicas ou entre órgãos administrativos). Consoante os
casos, os atos públicos de iniciativa procedimental designam-se pedidos ou propostas.

• Pedidos: meros atos de iniciativa, que manifestam um interesse do órgão solicitante em que
outro órgão pratique um ato administrativo (por exemplo, pedido de uma autorização).
A apresentação de um pedido implica uma obrigação de decidir (130º/4 CPA).;

• Propostas: são atos de iniciativa em que o órgão proponente se pronuncia sobre o conteúdo
do AA a praticar. As propostas dizem-se facultativas, quando a existência das mesmas não é
necessária para que o órgão decisor exerça a competência em questão e adote a decisão
proposta.
Propostas obrigatórias são as que se apresentam necessárias para que o órgão decisor
exerça a competência em questão e adote a decisão proposta, como sucede quando a lei
estabelece que uma certa competência de um órgão (por exemplo, competência da
assembleia municipal para autorizar empréstimos ou a conceder serviços públicos) se exerce
sob proposta de outro órgão (câmara municipal).
Estas propostas são vinculantes, quando o órgão decisor, não podendo decidir sem
proposta, também não pode decidir com alterações ao conteúdo da mesma (pode decidir em
conformidade ou rejeitar a proposta).
Se a lei nada estabelece, podemos dizer que as propostas obrigatórias não são
vinculantes, pelo que o órgão decidir em conformidade, rejeitar a proposta ou decidir com um
conteúdo diferente da proposta.
Geralmente, as propostas são atos finais de um procedimento que se desenvolve no
interior do órgão administrativo com poderes de impulso. A proposta pressupõe um trabalho
efetuado em vista da determinação do conteúdo do ato administrativo que o órgão proponente
pretende ver praticado.

Os procedimentos de iniciativa pública surgem, frequentemente, como desenvolvimentos de


outros procedimentos: por exemplo, no procedimento de autorização de instalações industriais (de
iniciativa particular), é a entidade a quem a autorização é requerida que tem o dever de pedir as
autorizações e aprovações de outras entidades que se revelem necessárias.

23.2.Instrução.

A instrução (115º a 121º CPA) é a fase do procedimento destinada à aquisição e


verificação de factos e de situações (pressupostos do AA) e à avaliação e ponderação dos
interesses coenvolvidos ou implicados no AA a praticar.

A competência para a direção da instrução cabe ao órgão competente para a decisão


(55º/1), mas a lei obriga esse órgão a delegar essa competência ao responsável pela direção do
procedimento.

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A instrução é uma fase procedimental caracterizada pela variedade dos atos ou
diligências a realizar e dos atores que intervêm, daí que possamos percecionar duas categorias
de diligências:

• Diligências probatórias;
• Diligências consultivas.

A AP tem o domínio do procedimento, sendo esta uma formulação com uma repercussão
direta na fase de instrução, que exprime um princípio de oficialidade ou de inquisitório quanto ao
desenvolvimento da tramitação procedimental nesta fase.

Assim, estabelece-se que os órgãos administrativos podem proceder às diligências que se


revelem adequadas e necessárias à preparação de uma decisão legal e justa, ainda que
respeitantes a matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados.

O princípio da oficialidade como critério para delimitação das diligências a realizar é o


corolário da ideia segundo a qual cabe á AP a responsabilidade de se colocar em posição de
decidir bem e de acordo com o direito.

Deste modo, os órgãos administrativos “podem” proceder às “diligências que considerem


convenientes” para a instrução (58º CPA), acolhendo a lei um cânone de discricionariedade
procedimental, conferindo à AP num poder jurídico de definição das diligências a realizar.

Ainda assim, a discricionariedade não constitui um poder livre do direito. O órgão competente
“deve” averiguar “todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa decisão do
procedimento (115º/1 CPA).

A decisão final pode ver-se inquinada por défice de instrução sempre que a AP não cuida de
realizar todas as diligências que se tornam necessárias para verificar a exatidão de factos a aplicar
corretamente o direito.

i. Diligências probatórias.

A instrução abrange as diligências destinadas a provar factos. Note-se que o dever


de averiguação de todos os factos que onera a AP se articula com o ónus da prova
atribuído aos interessados (116º e 60º/1 CPA).

Pode haver situações em que o interessado tem o designado monopólio da prova,


visto que só ele está em condições de provar factos com interesse para a decisão. Nestes
casos, o dever de colaboração do interessado assume maior preponderância (117º/1 e
119º/1/3 CPA).

Ao conceito de diligências probatórias reconduzem-se todas as diligências e atos


que permitem à AP adquirir ciência sobre a matéria em causa (exames, vistorias, visitas
ao local, avaliações, verificações técnicas, relatórios periciais e outros atos análogos).

ii. Diligências consultivas e de promoção de pronúncias de outras entidades.

A instrução do procedimento conta com uma faz de consulta e diálogo entre vários
organismos da AP. Por exemplo, a instalação de uma indústria pode exigir uma pronúncia
sobre o impacto ambiental, outra sobre o risco de acidente graves, entre outros. Em

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situações destas, o órgão principal pode ter a incumbência de coordenação do
procedimento, funcionando como um “balcão único” e encarregando-se de acionar os
mecanismos de consulta de relacionamento interadministrativo.

Pode surgir aqui um procedimento administrativo complexo ou simples, consoante


as pronúncias dos organismos instados pelo órgão principal se qualificam como atos ou
decisões administrativas ou antes como atos jurídicos sem caráter decisório. Em termos
funcionais, a distinção compreende-se à luz de uma opção legislativa entre “repartir” o
poder de decisão por várias instâncias administrativas (procedimento complexo) ou
concentrar o poder de decisão num órgão, impondo-lhe o dever de consultar outros
órgãos e de ponderar as pronúncias destes na sua decisão (procedimento simples).

Assim, a fase de instrução do procedimento administrativo pode ser um momento de


promoção de novos procedimentos (pedidos de aprovação, de autorização por parte de
outros órgãos decisores) ou de recolha de opiniões e de juízos de outros órgãos (órgãos
consultivos) que o órgão principal terá de considerar na sua decisão.

O parecer tem grande importância na fase da instrução. Este pode definir-se como
o ato jurídico pelo qual um órgão administrativo com funções consultivas se pronuncia,
num plano técnico, jurídico ou de boa administração, sobre uma decisão em preparação.
Os pareceres têm subjacente um juízo crítico, não conhecendo um caráter decisório.

Os pareceres podem ser obrigatórios ou facultativos, “consoante sejam ou não


exigidos por lei” (91º/1 CPA). Este critério é compreensível pois deve entender-se que o
parecer é facultativo ou obrigatório consoante o órgão instrutor do procedimento “possa”
ou “deva” solicitá-lo ao órgão consultivo. Se o parecer obrigatório não for solicitado, o AA
padecerá de um vício relativamente ao procedimento.

Mesmo que o parecer seja facultativo, o órgão decisor tem o dever específico de
fundamentar a decisão na parte em que a mesma venha eventualmente a contrariar o
parecer. Aqui, não há diferenças entre o parecer facultativo e obrigatório.

Os pareceres obrigatórios qualificam-se como vinculativos ou não vinculativos,


“conforme as respetivas conclusões tenham ou não de ser seguidas pelo órgão
competente para a decisão”. Se o parecer é vinculativo, o órgão consultivo acaba por
determinar o sentido da decisão, degradando-se a posição do órgão decisor.

Os pareceres (totalmente) vinculativos são raros. Mas é frequente que a lei exija uma
decisão que “só pode ser” adotada se tiver apoio num parecer: o parecer é vinculativo,
se for negativo ou desfavorável à autorização. Estes pareceres dizem-se confomes.

iii. Conferências procedimentais (77º a 81º CPA).

iv. Participação de interessados no procedimento.

A fase de instrução do procedimento administrativo constitui o momento crucial para


efetivar os valores da participação dos interessados na formação das decisões que lhes
dizem respeito (267º/5 CRP e 8º CPA), assim como da adequada participação dos
mesmos no desempenho da função administrativa (12º CPA).

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A delimitação do círculo de interessados para “intervir” no procedimento segue o
critério de legitimidade procedimental para “iniciar o procedimento (68º CPA).

v. Formação consensualizada do ato administrativo.

O procedimento é sede de realização do princípio da prossecução do interesse


público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (4º CPA), bem como o
momento para assegurar a adequada participação dos interessados no desempenho da
função administrativa. (7/1 CPA).

A instrução do procedimento constitui uma oportunidade para a construção de


consensos entre os vários intervenientes e para uma conformação consensual do próprio
conteúdo do AA a praticar. Este, apesar da sua unilateralidade, pode conhecer uma
génese consensual, quando o respetivo conteúdo resulta de um acordo formal ou informal
entre a AP e o interessado.

A existência de “conversações” entre a AP e os interessados cria momentos e


“espaços de negociação”. Sobretudo em casos de grande complexidade, com múltiplas
variáveis a considerar e a ponderar, em contextos de discricionariedade administrativa, a
instrução do procedimento pode transformar-se numa arena de negociação da
discricionariedade.

Por exemplo, o AA de aceitação de compromissos trata-se do “ato administrativo


pelo qual a AP aceita compromissos propostos por um particular e converte tais
compromissos em imposições, quer dizer, em obrigações cujo cumprimento impõe ao
mesmo particular”. (57º/3 e 127º CPA).

23.3.Audiência dos interessados.

Os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a


decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta (121º/1
CPA). A audiência dos interessados constitui um instrumento de realização do princípio da
participação dos particulares no procedimento administrativo (12º CPA).

O direito de audiência é um direito legal. O direito constitucional de participação dos


cidadãos na formação das decisões que lhes dizem respeito (267º/5 CRP) realiza-se por várias
formas e não deve confundir-se com o dever oficioso que a lei impõe à AP de ouvir os interessados.

A audiência serva para permitir ao interessado introduzir elementos que enriqueçam o


“património cognoscitivo da AP”, instaurando um contraditório que visa a melhor ponderação do
interesse público com os interesses dos interessados, devendo esta ser considerada um trâmite
essencial.

Resulta implícito da lei que o direito de audiência incide sobre um projeto de decisão, que
não se apresenta vinculativo para a AP, que pode vir a alterar, tendo, para isso, de repetir o trâmite
da audiência.

O órgão instrutor decide se a audiência é escrita ou oral ou se se realiza por


videoconferência, existindo casos de dispensa da audiência dos interessados (124º CPA).

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• Sequência.

Sem prejuízo da realização de eventuais diligências complementares que se mostrem


convenientes (125º CPA), após a realização da audiência, o procedimento segue para a fase de
decisão.

Quando o responsável pela direção da instrução não for o órgão competente para a decisão
final, elaborará um relatório no qual indica o pedido do interessado, resume o conteúdo do
procedimento e formula uma proposta de decisão, sintetizando as razões de facto e de direito que
a justificam (126º CPA).

Quando a instrução é dirigida pelo órgão competente para a decisão final, não há elaboração
do relatório final.

23.4.Decisão.

O AA considera-se praticado quando seja emitida uma decisão que identifique o autor e
indique o destinatário, se for o caso e o objeto a que se refere o seu conteúdo.

Principalmente nos procedimentos de iniciativa particular, em que o requerimento implica,


para a AP, uma obrigação de decidir dentro de um prazo, coloca-se a questão de saber qual a
consequência de a AP não tomar qualquer decisão dentro desse prazo.

Regra geral, a essa omissão não se associa a conclusão do procedimento com um


sentido específico. Ou seja, o procedimento fica sem decisão e extingue-se pelo decurso do tempo
(caducidade). O interessado poderá reagir pela via judicial, propondo uma ação administrativa
especial de condenação da AP à prática do ato devido.

Em alguns casos, a lei cria uma ficção jurídica e faz corresponder a inércia da AP à
emissão de um ato positivo, de deferimento do requerimento, surgindo o ato de deferimento tácito
(130º CPA).

Na maior parte das situações, a AP pratica o AA, toma a decisão final do procedimento
de forma expressa. Quando praticado de forma escrita, o ato tem de conter as menções do art.151º
CPA.

Na hipótese da prática do ato por órgão singular, não existe nenhuma disciplina
procedimental a seguir. Porém, estando em causa um órgão colegial, o AA será um ato colegial,
tornando-se necessário observar as regras procedimentais que regulam a formação desta
categoria de atos (21º a 35º CPA).

A decisão do procedimento pode ser simples ou em coautoria, consoante a adoção da


mesma caiba a um único órgão (singular ou colegial) ou à reunião de declarações de 2 ou mais
órgãos (por exemplo, os despachos conjuntos de dois ministros).

Nota: Apesar de haver uma convergência de vontades, a decisão em coautoria constitui uma
decisão unilateral e não um contrato. No contrato, as partes produzem um acordo para produzir
direitos e obrigações para elas mesmas (caráter reflexivo). No AA em coautoria, os coautores
acordam em adotar uma decisão com o objetivo de produzir efeitos na esfera jurídica de terceiros
(os destinatários).

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Ainda assim, o procedimento acaba por conduzir à celebração de um contrato. Por
exemplo, suponha-se que um particular requer à autoridade competente uma autorização para
exercer uma determinada atividade. Apesar de a lei pressupor que a dita autorização é atribuída
por um AA, pode acontecer que esta venha a ser incluída num contrato a celebrar entre o órgão
competente e o requerente (contrato sobre o exercício de poderes públicos com objeto passível
de AA).

O procedimento pode extinguir-se por um contrato, que substitui o AA: é um contrato com
objeto passível de AA (127º CPA).

23.5.Integração de eficácia.

O procedimento extingue-se pela tomada da decisão final ou por qualquer outro dos
factos previstos no CPA (93º CPA).

Contudo, o facto de o ato existir no mundo jurídico não significa que esteja em condições
de produzir imediatamente os seus efeitos jurídicos.

Quando o AA começa a produzir os seus efeitos desde a data em que é praticado, diz-se
que se trata de um AA de eficácia imediata (155º/1 CPA). Quando assim seja, o procedimento
administrativo termina com a tomada da decisão final, com a prática do AA.

Porém, em muitos casos, o AA conhece uma eficácia diferida, ou seja, o ato é praticado,
mas não fica logo apto a produzir os seus efeitos jurídicos (157º CPA). Nestes casos, o
procedimento produz o ato, mas não produz um ato eficaz.

Para formar um ato com eficácia jurídica, o procedimento tem de prosseguir com o
objetivo de reunir os requisitos procedimentais de produção da eficácia do AA, surgindo a fase
integrativa de eficácia.

Nota: Não existe uma associação completa entre as categorias do AA de eficácia diferida e
existência de uma fase procedimental de integração de eficácia. Casos há em que a eficácia
diferida do AA não resulta da existência de uma fase procedimental de integração de eficácia [por
exemplo, AA’s com condição suspensiva ou termo inicial, falando-se de atos com eficácia
condicionada (157º/1/b) CPA)]

A fase de integração de eficácia reúne os atos jurídicos ou materiais, da AP ou de


particulares, cuja prática se revela indispensável para que o AA comece a produzir os seus efeitos
jurídicos. Por exemplo, atos de controlo preventivo (nas relações interadministrativas), como a
aprovação ou visto a conceder por um órgão de controlo (por exempo, visto do Tribunal de Contas):
a competência para a decisão pertence a um órgão, mas a lei exige que outro órgão aprove ou
conceda o seu visto como requisito da eficácia daquela decisão.

Aqui, o controlo preventivo radica em atos de integração de eficácia: trata-se de um


controlo preventivo, mas que se efetiva em momento posterior à prática de um AA (controlo
preventivo ex post). Mas a lei também estabelece um controlo preventivo prévio à prática do AA,
exigindo que o órgão decisor solicite uma autorização prévia a outro órgão (controlo preventivo ex
ante): aqui, o ato de controlo não é condição de eficácia, mas requisito de validade do AA principal.

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São igualmente atos integrativos de eficácia os atos de publicação, quando esta seja
obrigatória (158º/2 CPA), sendo que a falta de publicação importa a ineficácia do AA. Também
antes da notificação ao destinatário, o AA não produz os seus efeitos jurídicos, sendo a notificação
condição de eficácia jurídica objetiva do ato para o respetivo destinatário.

Integram também esta fase atos de complemento executivo (por exemplo, a emissão de
um diploma que titula a decisão e que lhe confere eficácia). Normalmente, a prática destes atos
deve ocorrer num determinado prazo, sob pena de caducidade da decisão e de extinção do
procedimento (133º/1 CPA).

Uma função de integração de eficácia têm também as atas relativas a reuniões de órgãos
colegiais. Os órgãos colegiais só adquirem eficácia depois de consignados em ata aprovada (34º/6
e 150º/2).

27.Impugnação de atos administrativos e reação contra a omissão de atos


administrativos.

Impugnação e reação na “via administrativa” (perante a AP) (184º/1 CPA).

27.1.Tipos de impugnações e de reações contra omissões.

27.1.1.Reclamações e recursos.

Classificação em função do órgão a que se dirigem (o autor do ato ou outro


órgão) (191º/1, 193º/1 e 198º/1 CPA).

27.1.2.Reclamações e recursos contra atos administrativos e


reclamações e recursos de reação contra a omissão de a tos
administrativos.

Classificação em função da existência de um AA e da natureza da reação


(184º/1/a)/d) CPA).

27.1.3.Reclamações e recursos facultativos e reclamações e recursos


necessários.

Classificação em função da articulação com os meios de reação judicial contra


AA’s ou contra a omissão de AA (185º/1/2 CPA).

27.1.4.Reclamações e recursos por ilegalidade e reclamações e


recursos por inconveniência.

Classificação em função dos fundamentos da impugnação ou da reação contra


a omissão (185º/3 CPA).

27.2.Reclamação.

Impugnação ou reação perante o autor do ato. Em princípio, é sempre possível, com


fundamento direto no CPA.

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27.2.1.Âmbito.

Regra da reclamação da prática ou da omissão de “qualquer ato administrativo”


(191º/1/2 CPA).

27.2.2.Legitimidade (186º CPA).

27.2.3.Tempestividade.

1. Contra AA’s: 15 dias (191º/3 CPA), contado nos termos dos arts.188º/1/2 CPA;
2. Contra a omissão ilegal de AA’s: prazo de 1 ano (187º CPA), contado nos termos do
art.188º/3 CPA.

27.2.4.Procedimento.

27.2.4.1.Apresentação da reclamação.

Por meio de requerimento (184º/3 CPA), tendo os seguintes efeitos:

i. Quanto aos efeitos do ato impugnado, variáveis em função de a


reclamação ser necessária ou facultativa (189º CPA);
ii. Quanto aos prazos de impugnação administrativa ou judicial (190º
CPA).

27.2.4.2.Rejeição da reclamação.

Pode ser rejeitada nos termos do art.196º CPA.

27.2.4.3.Instrução e notificação dos contrainteressados.

Notificação dos contrainteressados (pessoas que podem ser


prejudicadas pelo deferimento da reclamação) (192º/1 CPA).

27.2.4.4.Decisão.

1. Prazo: 30 dias, após a apresentação da reclamação (192º/2 CPA);


2. Conteúdo da decisão: confirmação (equivale ao indeferimento da
reclamação), revogação, anulação, modificação ou substituição do ato
reclamado, ou prática do ato ilegalmente omitido (192º/2 CPA).

27.2.4.5.Decurso do prazo para a decisão da reclamação.

1. No caso de reclamação necessária, possibilidade de utilização da via


judicial ou da vida administrativa (192º/3 CPA);
2. No caso de reclamação facultativa, retoma o curso do prazo de propositura
de ações judiciais (190º/3 CPA).

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27.3.Recurso hierárquico.

Impugnação ou reação contra a omissão para o superior hierárquico mais elevado do


autor do ato ou do responsável pela omissão. Em princípio, o recurso hierárquico é sempre
possível, com fundamento direto no CPA.

27.3.1.Âmbito (193º/1 CPA).

27.3.2.Legitimidade (186º CPA).

27.3.3.Tempestividade.

a) Recurso de AA’s (193º/2 CPA):


i. Recurso hierárquico necessário: 30 dias, em regra;
ii. Recurso hierárquico facultativo: prazo de impugnação judicial.

Contagem do prazo: 188º/1/2 CPA.

b) Recurso contra a omissão de AA’s (187º CPA).

Contagem do prazo: 188º/3 CPA.

27.3.4.Procedimento.

27.3.4.1.Interposição do recurso (184º/3 e 194º CPA).

Efeitos da interposição do recurso de AA’s:

i. Quanto aos atos do ato impugnado, variáveis em função de o recurso ser


necessário ou facultativo (189º CPA);
ii. Quanto aos prazos de impugnação ou judicial (190º/3/4 CPA).

27.3.4.2.Rejeição do recurso (196º CPA).

27.3.4.3.Tramitação (195º CPA).

a) Fase do recurso do órgão recorrido.


i. Notificação dos contrainteressados;
ii. Pronúncia do órgão recorrido e remessa para o superior;
iii. O órgão recorrido (autor do ato) pode revogar, anular, modificar ou
substituir o (seu) ato, quando os contrainteressados não hajam
deduzido oposição e os elementos constantes do processo
demonstrem suficientemente a procedência do recurso e, no caso de
modificação ou substituição, desde que o novo ato não seja menos
favorável para o recorrente; informação ao superior;
iv. O órgão responsável pelo incumprimento do dever de decisão pode
praticar o ato ilegalmente omitido na pendência do recurso hierárquico,
disso dando conhecimento ao órgão competente para conhecer do
recurso e notificando o recorrente e os contrainteressados que hajam
deduzido oposição. Neste caso, o recorrente ou os contrainteressados

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podem requerer que o recurso prossiga contra o ato praticado, com a
faculdade de alegação de novos fundamentos e da junção dos
elementos probatórios que considerem pertinentes (este requerimento
deve ser apresentado dentro do prazo previsto para a interposição de
recurso hierárquico contra o ato praticado).

b) Fase do recurso no superior.

Recebido o recurso, o órgão superior deve considerar o requerimento do


recurso, as alegações dos contrainteressados, se existirem, bem como a
pronúncia do autor do ato.

27.3.4.4.Decisão do recurso.

i. Prazo: 30 dias a contar da data remessa do processo para o superior


hierárquico (198º/1 CPA). Prorrogação do prazo até ao máximo de 90 dias,
quando haja lugar à realização de nova instrução ou de diligências
complementares;
ii. Conteúdo da decisão: confirmação (equivale ao indeferimento do recurso)
ou anulação. No caso de o autor do ato não ter competência exclusiva,
também revogação, modificação ou substituição do ato recorrido (197º/1
CPA). Existe a exigência de fundamentação (197º/2 CPA).
Pode haver anulação de procedimento de 1º grau (197º/3 CPA).
No recurso contra omissões, o superior hierárquico pode praticar o ato
omitido, se a competência do subalterno não for exclusiva; Se a
competência do autor subalterno for exclusiva, pode ordenar a prática do
ato omitido.

27.2.4.5.Decurso do prazo para a decisão do recurso.

i. Recurso necessário: possibilidade de utilização da via judicial (198º/4 CPA);


ii. Recurso facultativo: se for o caso, retoma-se o curso do prazo de
propositura de ações judiciais (190º/3 CPA).

27.4.Recursos administrativos especiai s.

Trata-se de recursos, isto é, meios de impugnação ou reação dirigidos a órgãos diferentes


daquele que praticou o ato, sendo que entre o autor do ato e o órgão do recurso não existe uma
relação de hierarquia. Só são admitidos nos casos previstos em lei especial.

27.4.1.Âmbito (199º/1/2 CPA).

i) Para órgão da mesma pessoa coletiva que exerça poderes de supervisão;

ii) Para o órgão colegial, de atos ou omissões de qualquer dos seus membros, comissões
ou secções;

iii) Para órgão de outra pessoa coletiva que exerça poderes de tutela ou superintendência.

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iv) Para o delegante ou subdelegante dos atos praticados pelo delegado ou subdelegado.

27.4.2 – Aplicação do regime procedimental do recurso hierárquico


(199º/5 CPA).

27.4.3 – Especificidades do recurso tutelar (199º/3/4 CPA).

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