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APONTAMENTOS DE DIREITO ADMINISTRATIVO II

Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

ÍNDICE GERAL

Nesta cadeira, estudaremos a atividade administrativa pública: a “ação administrativa


constitui precisamente o seu objeto de estudo, sendo que a exposição que se segue pretende
constituir as bases fundamentais de uma “teoria geral da ação administrativa.
Estes os tópicos desta teoria geral da ação administrativa:

CAPÍTULO I – ACÇÃO ADMINISTRATIVA


CAPÍTULO II – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
CAPÍTULO III – REGULAMENTO ADMINISTRATIVO
CAPÍTULO IV – ATO ADMINISTRATIVO
CAPÍTULO V – CONTRATO ADMINISTRATIVO

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CAPÍTULO I – AÇÃO ADMINISTRATIVA

1. Ação administrativa.
1.1. Fins da ação administrativa.
1.2. Conteúdos da ação administrativa.
1.3. Efeitos da ação administrativa.
1.4. Formas da ação administrativa.
1.5. Natureza das formas de ação administrativa.
1.5.1. Formas de ação reguladas pelo Direito Administrativo.
1.5.2. Relevo jurídico da formalização da ação administrativa.
1.5.3. Sistema clássico das três formas reguladas de ação administrativa.
1.5.4. Desenvolvimentos do sistema clássico.
1.5.5. Um sistema aberto de formas de ação.
1.5.6. Conjugação entre forma de ação administrativa.
1.5.7. Liberdade de escolha entre formas de ação administrativa.
1.6. Âmbito de incidência da ação administrativa.
1.6.1. Ação administrativa externa.
1.6.2. Ação interadministrativa.
1.6.3. Ação administrativa interna.
2. Ação e inação administrativa.
2.1. Inação administrativa no caso de hétero-iniciativa.
2.2. Inação administrativa oficiosa.
3. Ação administrativa eletrónica.
3.1. Objetivos e princípios aplicáveis à administração eletrónica.
3.2. Aplicações da administração eletrónica.
3.2.1. Armazenamento e processamento de informação administrativa.
3.2.2. Prestação digital de serviços públicos.
3.2.3. Comunicações e relacionamento procedimental.
3.2.4. Tomada de decisões administrativas.
4. Ação administrativa e ação de particulares.
5. Ação administrativa e relação jurídica administrativa.

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CAPÍTULO I – AÇÃO ADMINISTRATIVA

- Ação administrativa.

A ação administrativa referencia uma parcela a ação pública com características


específicas, no plano material e formal, que a singularizam e a distinguem das ações ou
tarefas desenvolvidas na execução de outras funções públicas (política, legislativa e
jurisdicional).
Agora, cumpre perceber a ação administrativa como um produto da AP, isto é, como
a ação que esta desenvolve através de determinados instrumentos e para prosseguir
determinadas finalidades. Numa fórmula simples, apresenta-se a ação administrativa como o
conjunto das ações executadas por sujeitos da AP.
Com efeito, ao contrário do que sucede com as outras funções públicas, que acusam
uma tendência para a acentuada homogeneidade das formas ou dos instrumentos de ação,
a ação ou função administrativa revela-se multiforme, posto que utiliza vários processos,
mecanismos ou esquemas de ação.
Neste sentido, variedade constitui uma palavra adequada para caracterizar o modo de
desenvolvimento e de revelação da ação administrativa: variedade que se deteta ao nível: dos
fins, do conteúdo, da forma, da natureza jurídica, dos efeitos e do âmbito de incidência.

1. Fins da ação administrativa.


(as missões da Administração Pública)

A ação administrativa desenvolve-se sempre no sentido da realização do interesse


público. Neste ponto, a ação administrativa não se caracteriza pela variedade, mas, antes,
pela homogeneidade, podendo, neste sentido, falar-se de uma unicidade de fim da AP.
No entanto, a prossecução do interesse público, apresenta um recorte abstrato ou
indefinido, e reclama, por isso mesmo, uma concretização ou densificação mediante a
enunciação das missões da AP. Assim, as missões assinalam objetivos específicos que
permitem distinguir diferentes tipos de ação administrativa.
De um ponto de vista histórico, no passado, a AP exercia fundamentalmente funções
de caráter autoritário (defesa da ordem pública, cobrança de impostos). Depois, ao longo do
século XX, a essas funções foram-se juntando muitas outras, como sejam a gestão de
serviços públicos, o fomento e o incentivo de atividades privadas de interesse geral ou, mais
recentemente, as formas de intervenção regulatória na economia.

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2. Conteúdos da ação administrativa.

No desenvolvimento das suas finalidades e missões, a AP executa tarefas de conteúdo


muito variado: fiscaliza e vigia as atividades privadas, através de inspeções e vistorias;
desenvolve ações tendentes a garantir a tranquilidade e a ordem pública; sanciona infrações
à lei; atribui subsídios; empenha-se na construção de infraestruturas de grande interesse
público; presta serviços de utilização individual; gere equipamentos e infraestruturas, entre
outros.
Do que foi dito se compreende que um dos traços que caracteriza esse vasto conjunto
de missões de que a AP se ocupa reside na radical variedade. Com efeito, a variedade de
conteúdos das tarefas e das ações empreendidas apresenta-se como uma marca essencial
da ação administrativa.

3. Efeitos da ação administrativa.

Considerando a ação administrativa em todo o seu conjunto e nas suas múltiplas e


heterogéneas manifestações, mostra-se oportuno efetuar uma distinção que atende aos
efeitos desencadeados ou induzidos pela ação da Administração.
De acordo com esse critério surgem-nos duas classes fundamentais: as ações ou atos
jurídicos e as suas ações de facto ou atos reais.
Com efeito, as ações administrativas que produzem ou determinam a produção de
efeitos jurídicos, isto é, que afetam o ordenamento jurídico são as ações jurídicas, num sentido
amplo (v.g.: emissão de uma ordem; aplicação de uma sanção disciplinar, revogação de uma
decisão). Assim, a este domínio pertencem os atos (declarativos) com efeitos jurídicos (atos
jurídicos) e o conjunto dos atos jurídicos da AP inclui: os atos de caráter normativo
(regulamentos administrativos); as decisões concretas e individuais (atos administrativos);
atos jurídicos não decisórios; e contratos administrativos.
Ora, se na teoria geral do direito civil se distinguem duas classes de atos jurídicos,
nomeadamente, atos jurídicos em sentido estrito e atos jurídicos quase-negociais, já no
âmbito do Direito Administrativo, trata-se de uma distinção pouco operativa, aludindo-se, de
forma unitária, a atos jurídicos da Administração, fórmula que agrega todos os atos
(declarativos) da AP a cuja prática de associam efeitos jurídicos predeterminados na lei, bem
como, quando existam, os efeitos jurídicos inscritos na própria declaração. É que a vontade,
enquanto vontade psicológica do autor da declaração, ocupa um lugar secundário na nossa
disciplina, porquanto o processo psicológico que conduz ao ato não tem, em geral, relevância.
Assim, note-se que os atos jurídicos da Administração são considerados no seu recorte
simplesmente objetivo, enquanto enunciados objetivados numa declaração. Por conseguinte,

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os vícios que afetem o processo psicológico de decisão poderão relevar, em geral, não por si
mesmos, mas na medida em que conduzam a uma ilegalidade: a patologia consiste
essencialmente na desconformidade da declaração com a lei e não tanto com a vontade
psicológica do autor.
Estas considerações levam-nos a considerar menos adequada a referência a uma
vontade dos órgãos da Administração, com a que consta do artigo 1.º/1 do CPA. Com efeito,
por força da sua condição, enquanto centros institucionalizados titulares de poderes e
deveres, os órgãos da Administração não têm vontade, nem a vontade dos titulares destes
órgãos tem relevo autónomo do campo jurídico. No contexto daquele preceito, o conceito de
vontade parece estar associado ao resultado traduzido na prática de atos com efeitos jurídico-
administrativos, no sentido em que, por exemplo, a formação da vontade ou a execução da
vontade, se devem interpretar, respetivamente, como a formação ou a execução de medidas
ou de atos de caráter jurídico-administrativo. Sem prejuízo das observações feitas, importa
tem em consideração, no entanto, a vontade da Administração no domínio do contrato
administrativo (art. 284.º/3 CCP)1.
Por outro lado, as ações administrativas que determinam a produção de meros efeitos
de facto, que não envolvem, como consequência direta, uma transformação da ordem jurídica
são as ações de facto (v.g.: processamento de um texto num computador, vistoria de um
estabelecimento, lecionação de uma aula, emissão de um aviso público)2. Neste sentido, as
ações de facto integram, em primeiro lugar, as operações materiais da Administração (v.g.:
construção de uma estrada, lecionação de uma aula) e, em segundo lugar, atos declarativos,
isto é, declarações de ciência a que a ordem jurídica não associa diretamente a produção de
efeitos jurídicos – eis o que se verifica com a prestação de informações, advertência sobre a
nocividades de um certo produto ou a notícia que a Administração dá sobre um determinado
facto. Atos de caráter normativo
(regulamentos
administrativos)

Ações jurídicas Decisões concretas e


individuais
(em sentido amplo) (atos administrativos)
critério dos efeitos
desencadeados pela ação da
Administração Contratos administrativos
Ação administrativa

Operações materiais

Ações de facto

Atos declarativos

1 Não obstante, não quer isto dizer que os atos jurídicos da Administração não tenham de ser voluntários, no
sentido em que devem ser praticados voluntariamente pelos seus autores e não sob o uso ou a ameaça do uso
de força ou de outras formas de constrangimento (aliás, o artigo 161.º/2-f) CPA).
2 Nota bene: o facto de as ações de facto não produzirem efeitos jurídicos não implica que não possam determinar
consequências jurídicas (v.g.: a remoção de um automóvel pode envolver para a Administração um dever de
indemnização quando a a operação de remoção provoque danos).

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4. Formas da ação administrativa.

Dissemos já, a ação administrativa revela-se multifacetada, também, quando aos


próprios instrumentos, modos e processos formais de ação. Alude-se a um catálogo aberto
das formas de ação administrativa.
Assim, considerando os instrumentos, processos ou modelos de ação de que a AP se
socorre para desempenhar as missões que lhe estão confiadas, verificamos que os
organismos que a integram tomam ou adotam decisões unilaterais, emitem avisos e
recomendações, dão opiniões e pareceres, outorgam contratos, editam normas, aprovam
planos e programas de ação, mas também executam, no plano material, ou físico, ações ou
operações materiais.
Em todos os casos, trata-se de modelos, de processos ou simplesmente de esquemas
e instrumentos de atuação de um recorte formal, que, por isso mesmo, não identificam o
conteúdo que suportam, quer dizer, os efeitos ou os resultados em concreto desencadeados.
Assim, a referência aos conceitos de decisão unilateral, de contrato, de norma, de plano ou
de operação material remete para uma dimensão formal, explicando um modo de atuar, mas
não fornece uma indicação sobre o conteúdo concreto em que tal agir se concretiza. Assim,
expomos e analisamos a ação administrativa de uma perspetiva metódica formal, afastando-
nos de uma visão que privilegie os conteúdos que se acolhem nas formas ou nos processos
de ação.
Neste sentido, uma distinção fundamental processa-se entre as ações declarativas,
que assentam e se traduzem numa declaração, e as ações materiais, que se concretizam
numa dimensão real ou física. Desenvolvemos: as ações declarativas afirmam-se em
comportamentos de tipo declarativo, os quais podem determinar ou não determinar a
produção de efeitos jurídicos – no primeiro caso, temos ações declarativas com efeitos
jurídicos (autorização, ordem, proibição), enquanto, no segundo caso, surgem as ações
declarativas sem efeitos jurídicos, i.e., ações de facto (recomendação, prestação de
informação); já as ações ou operações materiais precipitam-se na produção de um efeito de
facto ou material, ou seja, de um efeito que se projeta fisicamente na realidade – aqui
integram-se, igualmente, as ações administrativas que envolvem o uso da força e da coerção,
quer no âmbito da execução coerciva de atos administrativos (art. 175.º e ss. CPA) ou de
contratos administrativos (art. 325.º CCP), quer no contexto da coação direta (art. 175.º/2
CPA).

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Nota bene
... por vezes, a ação material segue-se a uma ação declarativa e pressupõe esta...
Assim sucede, em regra obrigatoriamente, com a execução (coativa) de atos administrativos (art. 177.º/1
CPA), sendo que, para distinguir estas de outras ações materiais, afigura-se adequado falar em ações materiais de
execução.
... outras vezes, a ação declarativa segue-se e pressupõe uma prévia ação material...
(a praticar no procedimento conducente àquela declaração)

...existem ainda casos duvidosos....


Em que não é fácil identificar se uma ação da Administração se apresenta como declarativa ou formal: é o caso do
ato de exame de avaliação, designadamente da prova oral.

5. Natureza das formas da ação administrativa.

A ação administrativa pauta-se por exibir uma variedade também ao nível da natureza
jurídica dos instrumentos que utiliza.
Com efeito, para a realização das suas missões, a AP lança mão das formas que o
Direito Administrativo disponibiliza – formas de direito administrativo –, mas também das
formas de atuação acessíveis a qualquer pessoa, que, portanto, pertencem à esfera do direito
privado. Neste último âmbito, da utilização das formas de direito privado, ocupa uma posição
de destaque o contrato, que é o principal instrumento de produção de efeitos jurídicos no
comércio jurídico privado. Hodiernamente, com o CCP, um número muito significativo de
contratos das pessoas coletivas de direito público são contratos administrativos. Contudo,
ainda subsistem espaços de contratação privada, desde logo, quando a ação administrativa
é protagonizada por entidades de natureza jurídica privada. Ora, o nosso estudo ocupa-se
apenas das formas de ação administrativa reguladas pelo Direito Administrativo – formas
jurídico-administrativas.

5.1. Formas de ação reguladas pelo Direito Administrativo.


A referência a formas de ação administrativa chama a atenção para a variedade dos
modos, dos instrumentos ou dos módulos de que a Administração se serve para agir: a forma,
neste sentido, é a forma (ou o modo) de ação da Administração.
Por ora, vamos deter-nos nas formas de ação da Administração especificamente
reguladas pelo Direito Administrativo.
Desde já, note-se que uma das funções essenciais do Direito Administrativo consiste
em definir um regime jurídico para uma determinada forma de ação: neste caso, surge uma
forma de ação administrativa, juridicamente regulada. Neste sentido, a regulamentação
jurídica de determinadas formas da ação administrativa consiste, precisamente, em definir

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uma disciplina jurídica, modelo ou categoria abstrata de ação, legalmente definida nos seus
elementos constitutivos, e ao qual, na prática, se vão depois reconduzir ações concretamente
executadas pela Administração. Assim, a lei define, em abstrato, o regime jurídico de um
modelo, de uma forma de ação; passa então a existir uma forma de ação típica e o regime
delineado para essa ação típica há-de se aplicar a todas as manifestações concretas e reais
do referido modelo, constituindo, por conseguinte, um direito pré-fabricado baseado num
modelo ou numa forma e que se serve para todas as aplicações que correspondam ao modelo
ou que se encaixem na forma.
Com efeito, a regulamentação da forma serve objetivos de ordenação e de redução da
complexidade e viabiliza a conceção de uma disciplina jurídica suscetível de aplicação
generalizada. Introduz um elemento de segurança e de previsibilidade da conduta da
Administração. Sem esta regulamentação disposta em abstrato, o Direito Administrativo
estaria marcado pelo casuísmo e não realizaria as suas funções de orientação e de direção
da ação administrativa e de garantia de proteção do administrado.
Por fim, note-se que o resultado do processo de regulamentação jurídica das formas
de ação conduz ao conceito de ação administrativa formal: concreta ação da AP que
corresponde e que se reconduz a uma forma juridicamente regulada; ato formal é, por
conseguinte, todo o ato (ou ação) que deve obedecer a uma forma preestabelecida.

5.2. Relevo jurídico da formalização da ação administrativa.


A existência de formas de ação administrativa juridicamente reguladas reclama uma
dupla distinção: por um lado, surge uma bifurcação entre ações administrativas formais e
ações administrativas informais, dizendo-se formais os tipos concretos de ações que
correspondem ou que se reconduzem a uma forma e informais todas as outras; por outro lado,
impõe-se uma distinção entre vários tipos de ações formais, quer dizer, entre os vários tipos
de formas juridicamente reguladas.
Ora, o relevo jurídico da primeira distinção alcança-se facilmente: ao contrários das
informais, as ações formais submetem-se a um regime jurídico previamente definido, por
vezes, simultaneamente nos planos procedimental, substancial e contencioso. Quanto à
segunda distinção, no interior das ações formais, comporta um relevo baseado na
diferenciação prévia entre regimes jurídicos a que se entende deverem submeter-se
diferentes formas de ação administrativa: a perceção de uma diferença estrutural entre
regulamento, ato e contrato parece ser a justificação histórica para a delineação de regimes
jurídicos específicos para cada uma das figuras.

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5.3. Sistema clássico das três formas reguladas de ação administrativa.


A própria leitura do índice do CPA permite logo identificar as formas juridicamente
reguladas de ação administrativa no direito português. Com efeito, o regulamento
administrativo, o ato administrativo e o contrato administrativo correspondem formas
tradicionais juridicamente reguladas da ação administrativa no direito português.
No entanto, isso não significa que a ação administrativa se esgote nas três formas
reguladas. De facto, a Administração desenvolve muitas outras ações que não se encontram
reguladas como formas ou modelos abstratos. A lei pode até orientar a Administração na
execução dessas ações (v.g.: art. 178.º CPA), mas sem chegar ao ponto de definir uma
disciplina para um modelo de ação recortado em abstrato.
Embora com graus variados de intensidade, em relação a cada uma das três formas
consideradas, a ordem jurídica regulamenta aspetos relacionados com: o procedimento de
formação; os requisitos de validade e de eficácia, o regime de invalidade e o regime de
execução; e o regime do contencioso, mediante a definição de regras específicas quanto aos
meios jurisdicionais de proteção dos interessados.
Em suma, trata-se, em relação a cada caso, de uma disciplina que procura fornecer
uma solução definitiva e genérica para necessidades específicas de regulação jurídica.

5.4. Desenvolvimentos do sistema clássico.


De uma forma crítica, a doutrina recente vem chamando a atenção para alguns
aspetos menos conseguidos do entendimento clássico das formas da ação administrativa.
Neste contexto, alude-se ao excesso de rigidez que a teoria das formas introduz na
ação administrativa. Sugere-se uma relativização da distinção das várias ações formais e da
destrinça destas relativamente à ações informais, e assinala-se a tendência para um regime
comum, aplicável a todos os tipos de ação administrativa. Sublinha-se que a compreensão
das formas jurídicas acentua um estudo de atos, quando, em vez disso, a análise deveria
considerar comportamentos.
Sem prejuízo da procedência de algumas dessas críticas, que previnem o risco da
absolutização de uma teoria das formas, afigura-se-nos que a formalização continua a
apresentar vantagens indiscutíveis, quanto: à consolidação de uma disciplina jurídica que a
Administração deve observar; à segurança jurídica, quer para a Administração, quer para os
cidadãos; à compreensão científica do Direito Administrativo.
Por outro lado, a formalização dos principais modos de ação administrativa não tem
impedido o Direito Administrativo, nem tão-pouco tem travado o livre desenvolvimento dos
modos de ação administrativa.

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5.5. Um sistema aberto de formas de ação.


(os processos de ação administrativa informal)
Corretamente, a doutrina tem observado não existir um numerus clausus de formas de
ação administrativa. Esta asserção pretende explicar, desde logo, que às formas atualmente
reguladas podem vir a juntar-se outras, pois não há qualquer imposição taxativa inerente à
teoria das formas. Além disso, a observação pretende, ainda, sublinhar que a Administração
não se encontra impedida de utilizar ações administrativas informais na prossecução dos
objetivos que pautam a sua intervenção. Quer isto dizer que a ausência de formalização de
um certo modo de ação não representa, em si mesma, um obstáculo à utilização desse modo
de agir – o obstáculo poderá resultar, não da circunstância de a forma não se encontrar
prevista, mas de a Administração não estar autorizada a desenvolver uma ação com o
conteúdo especificamente pretendido. Noutras palavras, o obstáculo pode estar no princípio
da legalidade administrativa, sem sentido ou na dimensão substancial, que se concretiza
numa exigência de fundamento legal da ação administrativa.
De facto, a Administração não age sempre segundo modelos predefinidos e
formatados: em muitos casos, aquilo que a Administração faz não se enquadra em nenhuma
forma ou modelo juridicamente regulado. Quando o cenário seja este, estamos perante uma
ação administrativa informal.
Não obstante, o caráter informal de uma ação administrativa não significa que o direito
a desconheça, nem que seja ignorada pela lei administrativa. Com efeito, o legislador pode
mesmo estabelecer que um determinado órgão é competente para praticar um ato informal
(v.g.: a lei que aprova os estatutos da ANACOM estabelece que esta pode recomendar aos
operadores de comunicações as providências necessárias à reparação das queixas dos
utentes).
Por fim, note-se que o imperativo da formalização acaba pode se fazer sentir em
relação às ações informais, sobretudo, quando as mesmas revelam uma eficácia (jurídica ou
de facto) potencialmente agressiva para os direitos dos cidadãos. Em termos muito claros
nestas hipóteses, é nítida a conveniência e mesmo a exigência de configuração de um regime
jurídico que, em abstrato, defina as condições (procedimentais e outras) em que a
Administração pode praticar ações desse tipo e as condições de proteção jurídicas dos
cidadãos.

5.6. Conjugação entre formas de ação administrativa.


Um dos tópicos para que aponta a “nova ciência do Direito Administrativo” refere-se à
conjugação ou combinação entre formas e instrumentos da ação administrativa.
Na verdade, por vezes, a produção de um certo resultado exige a combinação entre
diferentes formas da ação administrativa: eis o que sucede no procedimento de formação de

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inúmeros contratos públicos, que inclui, além do contrato, um ato administrativo de


adjudicação (escolha da melhor proposta: art. 73.º/1 CCP); por outro lado, no decurso da
relação contratual e relacionados com esta surgem atos administrativos, os designados atos
administrativos conformadores da relação contratual (art. 307.º CCP).

5.7. Liberdade de escolha entre formas de ação administrativa.


Um outro desenvolvimento na compreensão das formas da ação administrativa
prende-se com a ideia de que, em muitas hipóteses, a Administração dispõe de uma liberdade
de escolher a forma de agir. Visto por alguma doutrina como uma questão de boa
administração, a regra da livre escolha entre as formas pressupõe também a escolha do
regime jurídico aplicável (supondo que os conteúdos dos regimes aplicáveis se revelam
diferentes).
Com efeito, o tema da liberdade de escolha entre formas de ação tem-se colocado
sobretudo a respeito da alternativa entre ato administrativo e contrato. A questão pode
formular-se também a respeito da escolha entre a ação formal ou a ação informal. Ou ainda
na liberdade de escolha entre um acordo informal (sem efeitos jurídicos) ou um contrato como
instrumento de regulação jurídica de uma certa conduta.
Do exposto, não se deve inferir que a lei se revela indiferente quanto à escolha da
forma da ação administrativa remetendo esta escolha em todos os casos para os critérios não
estritamente jurídicos de boa administração. Não é sempre assim. Desde logo, há casos em
que os efeitos jurídicos a constituir implicam o uso de uma determinada forma, por exemplo,
a avaliação de um aluno não pode deixar de repousar num ato declarativo, unilateral de um
júri de exame, tratando-se de um caso em que a natureza das relações a estabelecer afasta
a possibilidade de utilização do contrato.

6. Âmbito de incidência da ação administrativa.

A diversidade caracteriza a ação administrativa também quanto ao respetivo âmbito


de incidência. Considerando este critério, temos três áreas ou setores em que a ação da
Administração se desenvolve: ação administrativa externa, ação interadministrativa e ação
administrativa interna.

6.1. Ação administrativa externa.


Alude-se aqui à ação que a Administração promove e desenvolve no contexto do seu
relacionamento com os particulares. Apesar de o caráter externo se pode encontrar também
na ação interadministrativa, sublinha-se que apenas no caso de que agora nos ocupamos se
verifica a produção de efeitos ou resultados num âmbito que transpõe as fronteiras da

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Administração (projetando-se exta muros): na verdade, neste horizonte, integram-se ações


que põem em contacto entidades que pertencem à AP e entidades que estão fora dela, que
lhe são estranhas, posto que referente à esfera privada, à sociedade civil.
Por esta razão, o âmbito da ação administrativa externa pressupõe o encontro ou
cruzamento entre o interesse público, protagonizado pela AP, e um interesse privado,
radicado no particular beneficiado ou prejudicado pela ação administrativa. Há, assim, uma
diferença de raiz entre os interesses presentes ou envolvidos nos processos de
relacionamento intersubjetivo promovidos no âmbito de ação administrativa externa.

6.2. Ação interadministrativa.


Têm-se aqui em vista as ações que se desenvolvem num quadro de relacionamento
entre duas ou mais entidades públicas, por exemplo, entre o Estado e um município ou uma
universidade pública, entre dois institutos públicos ou entre um instituto público e uma
associação pública.
Com efeito, a diversidade de natureza jurídica das entidades que integram a AP
conduz a considerar ainda interadministrativa as ações (e as relações) que se processam
entre entidades administrativas de direito público e as designadas entidades administrativas
privadas. Assim, quer se trate de ações que promovem o relacionamento entre entidades de
direito público, quer se trate de ações que relacionam entidades públicas e entidades
administrativas privadas, entram, em qualquer caso, em jogo ações de caráter intersubjetivo,
que não esgotam a sua eficácia no interior da própria entidade responsável pela ação. De um
ponto de vista formal, estão em causa formas de ação administrativa externa. Sem prejuízo
disso, deve sublinhar-se o caráter formalmente externo, porquanto se trata, em todo o caso,
de ações que projetam e esgotam os respetivos efeitos ou resultados no espaço interior da
AP (intra muros).
Em suma, o tipo de ação em presença envolve o relacionamento de duas entidades
(daí estar em causa uma ação de incidência externa), mas, pertencendo essas duas entidades
à AP, poderá concluir-se que o âmbito de ação se esgota no interior da AP. Por conseguinte,
percebe-se que a ação interadministrativa desconheça o fenómeno do encontro ou
cruzamento de interesse público e interesses privados. No entanto, isso não significa que não
extam relações de tensão e até de conflito entre as entidades que se relacionam neste âmbito.

6.3. Ação administrativa interna.


Trata-se da ação administrativa que se desenrola no interior de uma entidade da AP.
Estamos agora diante de uma ação intrasubjetiva, que não põe em contacto dois sujeitos
diferentes, uma vez que se processa dentro de uma mesma entidade.

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A pluralidade interna das pessoas coletivas (públicas ou privadas) – visível no facto de


terem vários órgãos, bem como, noutro plano, serviços, trabalhadores e agentes ao seu
serviço – é a responsável pela existência de uma ação interna, que se desenvolve dentro da
pessoa coletiva e em cujo âmbito podem processar-se relações jurídicas (internas). A relação
de hierarquia ocupa, neste domínio, uma posição de destaque, uma vez que o vínculo
hierárquico constitui uma importante fonte de atos internos. Mas a ação administrativa interna
pode ainda concretizar-se em ações materiais, bem como em atos jurídicos internos de
recorte variado.
Em certos casos, surge a dúvida sobre se uma determinada ação projeta efeitos
apenas no plano interno ou se, ao contrário, irradia uma eficácia externa por, por exemplo,
engendrar efeitos que se repercutem na situação jurídicas pessoal de um membro de
atividade: se há casos indiscutíveis no sentido do caráter externo (aplicação de uma sanção
disciplinar a um trabalhador), já em relação a outros podem subsistir dúvidas (atos no quadro
do relacionamento entre um órgão e os respetivos titulares ou membros.

- Ação e inação administrativa.

A alusão à ação administrativa remete para um fazer, traduzido na adoção de um


comportamento positivo, que pode consistir na tomada de uma medida ou na prática de um
ato jurídico. Contudo, o não fazer (abstenção, inação ou inércia) também pode assumir
relevância jurídica na vida administrativa. A relevância varia em função do tipo de iniciativa da
ação Administrativa: esta pode desenvolver-se na sequência de um ato de iniciativa externo
(hétero-iniciativa) ou como resultado de uma decisão própria da Administração responsável
pela ação a empreender (autoiniciativa).

1. Inação administrativa no caso de hétero-iniciativa.

Quando a iniciativa de pôr em marcha a ação administrativa pertence a um particular


ou a uma entidade pública diferente da entidade instada a atuar, o ato de iniciativa
desencadeia um dever legal de agir, de adotar um comportamento: dependendo do tipo de
solicitação, o dever legal de agir pode corresponder a um dever de proceder – que se
concretiza, no mínimo, num dever de responder ou dever de pronúncia e, porventura, a um
dever de decidir (art. 13.º CPA).
Sobre esta matéria, versa o artigo 13.º do CPA, mas, pelo menos no seu nº 1, o que
se regula é um princípio de pronúncia. Assim, dependendo das circunstâncias (sobretudo do
pedido e da legitimidade do requerente), o dever de pronúncia pode consistir num dever de

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decisão, mediante a tomada de uma decisão formal sobre o pedido apresentado (art. 128.º/1)
ou a emissão de um regulamento administrativo (art. 137.º/2).
Em casos particulares, a lei poderá atribuir à inação administrativa o valor e o efeito
jurídico próprio de uma ação positiva: uma ficção jurídica com esse recorte remete para a
figura do ato administrativo tácito (art. 130.º CPA). No entanto, em regra, a inação em cenários
em que a AP tem um dever de agir decorrente de um ato de iniciativa externo não se associa
à criação ficcionada de qualquer efeito jurídico; a ordem jurídica limita-se a prever ou a permitir
que se extraiam efeitos do facto em que se traduz o incumprimento (por exemplo,
responsabilidade civil e disciplinar do faltoso, condenação da AP à adoção do comportamento
devido)3.

2. Inação administrativa oficiosa.

A situação apresenta outros contornos quando a iniciativa da ação administrativa


pertence à própria entidade responsável pela ação (autoiniciativa). Como vimos, pode
suceder que a iniciativa oficiosa se apresente obrigatória ou – hipótese porventura mais
frequente – discricionária. Todavia, em ambos os casos, põe-se a questão de saber se e em
que termos a Administração pode ser obrigada a exercer o seu dever (de ação ou de exercício
do seu poder discricionário sobre a apreciação dos pressupostos da sua ação). Trata-se de
um problema complexo em dois planos: quanto à identificação dos sujeitos que podem exigir
o cumprimento do dever administrativo; quanto à latitude da intervenção do tribunal, sobretudo
em face do poder, que deve reconhecer-se à Administração, de decidir sobre a utilização dos
seus recursos.
Quando exista um dever legal de ação oficiosa da Administração – dever de emissão
de um ato administrativo que resulta diretamente da lei, independentemente de pedido nesse
sentido (v.g.: dever de adjudicação, nos termos previstos no artigo 76.º do CCP ou dever de
emissão de regulamento administrativo, nos termos do artigo 137.º/1 CPA) –, os interessados

3 Neste ponto, o artigo 92.º do CPA, a respeito da não emissão de pareceres solicitados a órgãos consultivos: o nº
5 estabelece que quando um parecer obrigatório não for emitido dentro dos prazos previstos no número anterior,
pode o procedimento prosseguir e vir a ser decidido sem o parecer, salvo disposição legal expressa em contrário.
Neste caso, a lei não associa qualquer efeito jurídico à omissão do parecer obrigatório e não vinculativo,
considerando, no entanto, que não existe ilegalidade procedimental pelo facto de o parecer não ser emitido pelo
órgão consultivo (o que não exclui que haja ilegalidade quando o responsável pelo procedimento não solicita o
parecer). O nº 6 acrescenta que, no caso de o parecer obrigatório ser vinculativo, a decisão final só pode ser
proferida sem a prévia emissão daquele desde que o responsável pela direção do procedimento tenha interpelado,
no prazo de 10 dias, o órgão competente para o emitir, sem que este o tenha feito no prazo de 20 dias a contar
dessa interpelação.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

poderão exigir judicialmente a condenação da Administração à prática do ato ou à emissão


do regulamento omitido (arts. 67.º/4-a) e 77.º do CPTA).
Em relação aos procedimentos de iniciativa oficiosa para a prática de atos
administrativos, deve ter-se presente o disposto no artigo 128.º/6 CPA, que, sem impor uma
obrigação geral de decisão de procedimentos de iniciativa oficiosa, determina a caducidade
do procedimento que não seja concluído no prazo indicado, na hipótese de decisão com
efeitos desfavoráveis para os interessados. Com efeito, não existe um regime para os casos
de iniciativa oficiosa de um procedimento para a prática de ato favorável em que, depois, não
vem a ser tomada qualquer decisão.

Tolerância administrativa

O valor da inação administrativa oficiosa também se cruza com o tema da tolerância administrativa –
a tolerância corresponde, em geral, a uma prática de abdicação ao exercício de um poder. No Direito
Administrativo, os conceitos de tolerância e de inação encontram-se sobretudo relacionados com a função
inspetiva e fiscalizadora e com o (não) exercício de poderes administrativos de caráter sancionatório (sanção
de condutas ilícitas ou ilegais). As mais das vezes, a tolerância concretiza-se num “fechar os olhos” diante de
condutas que deveriam ser reprimidas ou, pelo menos, alvo de investigação.
Em princípio, a tolerância não deve aceitar-se como causa legítima de inação, embora se possa
compreender que a Administração defina prioridades para as suas ações de fiscalização e de inspeção, no
quadro de um princípio de eficiência na alocação dos recursos disponíveis (o que pode justificar uma certa
tolerância administrativa em face das irregularidades menores, bagatelas).

- Ação administrativa eletrónica

Na sociedade de informação do nosso tempo, a ação da AP – uma ação humana –


desenvolve-se, de forma generalizada, mediante a utilização ou com o apoio de equipamentos
informáticos, de redes e de plataformas eletrónicas. As tecnologias de informação e
comunicação passaram a constituir uma ferramenta imprescindível ao funcionamento da
máquina administrativa. Fala-se, neste contexto, de administração eletrónica, de E-
Government, de administração digital, de serviços públicos digitais, de procedimentos
administrativos eletrónicos e de ação administrativa eletrónica: todas estas fórmulas sugerem
a ideia de desenvolvimento da ação administrativa com suporte em meios automáticos ou
eletrónicos.
Assim, as implicações jurídicas decorrentes da aplicação crescente da eletrónica na
vida administrativa são responsáveis pela adoção de leis gerais sobre a administração pública
eletrónica: assim sucede na Alemanha, Espanha e E.U.A.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

1. Objetivos e princípios aplicáveis à administração eletrónica.

O artigo 14.º do CPA identifica algumas finalidades da administração eletrónica e


formula princípio aplicáveis nesta matéria – apesar da epígrafe do preceito se referir a
princípio e surgir num capítulo do CPA dedicado aos princípios gerais da atividade
administrativa, os vários números do artigo 14.º não acolhem, em todos os casos, princípios
jurídicos, mas, antes, procedem à indicação de objetivos, finalidades e linhas de orientação
quanto à utilização de meios eletrónicos na ação administrativa.
I. Objetivos da administração eletrónica;
Nos termos do artigo 14.º/1 do CPA, a AP deve utilizar meios eletrónicos no
desempenho da sua atividade, de modo a promover a eficiência e a transparência
administrativas e a proximidade com os interessados.
I. Eficiência;
Apresenta-se indiscutível o facto de a utilização de meios eletrónicos
constituir um poderoso instrumento para incrementar o funcionamento mais
eficiente da AP, quer ao nível dos seus processos internos de ação, quer no
que se refere ao relacionamento com os cidadãos. Neste campo, a
administração eletrónica pode servir o objetivo da simplificação dos
procedimentos administrativos, tornando mais rápido e simples o acesso dos
interessados e reduzir a duração dos procedimentos (art. 61.º/1 CPA).
II. Transparência;
O emprego de meios eletrónicos constitui um meio especialmente
adequado para a AP promover uma estratégia proactiva de abertura, de
informação e de transparência do sistema administrativo.
Na experiência recente da realidade portuguesa, assinala-se o portal
dos contratos públicos, a obrigatoriedade legalmente imposta de publicitação
dos benefícios concedidos pela AP, a determinação legal no sentido de que as
empresas locais (do setor público) tenham um sítio na Internet e, ainda, a Lei
do Acesso aos Documentos da Administração que impõe aos organismos da
AP o dever de assegurar a divulgação, em bases de dados eletrónicas
facilmente acessíveis ao público, da informação administrativa prevista no
artigo nº 10.
III. Aproximação da AP aos cidadãos.
Os meios eletrónicos podem constituir um instrumento para, no século
XXI, dar efetividade prática ao princípio constitucional e legal da aproximação
dos serviços às populações (arts. 267.º/1 CRP e 5.º/2 do CPA). Os balcões
eletrónicos ou a prestação de serviços públicos por via digital são atualmente

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

formas de contacto dos cidadãos com a AP que, em larga medida, dispensam


e substituem, com vantagem, os serviços públicos instalados em edifícios.
II. Generalização e disponibilização de meios eletrónicos;
Nos termos do artigo 14.º/4, os serviços administrativos devem disponibilizar
meios eletrónicos de relacionamento com a AP e divulgá-los de forma adequada, de
modo a que os interessados os possam utilizar para formular as suas pretensões,
obter e prestar informações, realizar consultas, apresentar alegações, efetuar
pagamentos e impugnar atos administrativos.
III. Valores que os meios eletrónicos da Administração devem garantir;
Com implicações jurídicas mais nítidas, o artigo 14.º/2 formula requisitos gerais,
associados a valores jurídicos, que os meios eletrónicos utilizados pela Administração
devem garantir: disponibilidade, acesso, integridade, autenticidade, confidencialidade,
conservação e segurança da informação.
Dos referidos valores jurídicos, decorrem princípios jurídicos e direitos, como
os seguintes: princípio da neutralidade tecnológica das soluções eletrónicas usadas
pela Administração, de modo a garantir a disponibilidade e o acesso à informação;
garantia de uma imputação segura dos resultados da ação administrativa a
organismos identificados da Administração; direito dos cidadãos à segurança e
confidencialidade dos dados pessoais de que a Administração disponha.
Por fim, um outro princípio importante nesta matéria é o da equivalência jurídica
entre a utilização de meios eletrónicos e a utilização de outros meios (notificação por
correio eletrónico ou notificação por carta ou contato pessoal). Em concretização deste
princípio, o Decreto-Lei nº 73/2014 estabelece que a correspondência transmitida por
via eletrónica tem o mesmo valor da trocada em suporte de papel, devendo ser-lhe
conferida, pela Administração e pelos particulares, idêntico tratamento.
IV. Direito de igualdade de acesso aos serviços da AP;
A lei preocupa-se com o risco, que existe, de a utilização de meios eletrónicos
ter os efeitos (indesejáveis e opostos aos objetivos pretendidos) de dificultar o
relacionamento entre a Administração e os cidadãos ou de provocar situações de
desigualdade entre cidadãos que têm acesso facilitado às tecnologias e cidadãos info-
excluídos.
Neste sentido, o artigo 14.º/5 estabelece que os interessados têm direito à
igualdade no acesso aos serviços da Administração, não podendo, em caso algum, o
uso de meios eletrónicos implicar restrições ou discriminações não previstas para os
que se relacionem com a Administração por meios não eletrónicos. Com efeito, está
aqui em causa a instituição de um cânone de igualdade jurídica de tratamento, que,
naturalmente, não elimina a desigualdade de facto que existe entre os cidadãos que

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

dispõem de um computador em sua casa ligado à Internet e os que não desfrutam


desta possibilidade ou que não sabem utilizar os meios informáticos.
Não obstante, note-se que este cânone não prejudica a adoção de medidas de
diferenciação positiva para a utilização, pelos interessados, de meios eletrónicos no
relacionamento com a AP. Uma medida deste tipo é o designado “atendimento digital
assistido nos Espaços do Cidadão”: trata-se de espaços físicos de atendimento
presencial onde se procede ao auxílio do cidadão ou agente económico no acesso e
interação com os portais e sítios na Internet da AP.
V. Condições jurídicas de utilização de meios eletrónicos.
O artigo 14.º/3 acolhe a formulação genérica segundo a qual a utilização de
meios eletrónicos, dentro dos limites estabelecidos na Constituição e na lei, está
sujeita às garantias previstas no presente Código e aos princípios gerais da atividade
administrativa.
Ora, trata-se de um enunciado de sentido menos claro que aponta, por um lado,
para uma evidência (a utilização dos meios eletrónicos tem de se processar dentro
dos limites estabelecidos na Constituição e na lei), e, por outro, para um enigma, já
que não se alcança o significado da referência à sujeição da utilização de meios
eletrónicos às garantias previstas no presente Código e aos princípios gerais da
atividade administrativa: na nossa interpretação, a lei terá qui a pretensão de
estabelecer que a utilização de meios eletrónicos não pode envolver uma diminuição
das garantias previstas no CPA, nem determinar uma infração ou desvio ao sentido
dos princípios gerais da atividade administrativa.

2. Aplicações da administração eletrónica.

2.1. Armazenamento e processamento de informação administrativa.


Os meios eletrónicos cumprem uma função como suporte do registo, do
armazenamento e do processamento de dados e de informações; a eletrónica facilita o
trabalho administrativo em todos os planos e, desde logo, na aquisição da ciência para a
tomada de decisões.
Neste sentido, a detenção ou posse de informações e de dados – informatizados ou
não – pela Administração reclama regulamentações jurídicas relacionadas, por um lado, com
o acesso dos cidadãos a essas informações e, por outro lado, com a proteção dos cidadãos,
quanto aos dados e informações de que a Administração dispõe e ao modo como os utiliza.
Nos termos da LADA, documento administrativo é qualquer suporte de informação sob
forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material, na posse dos órgãos e
entidades da AP, ou detidos em seu nome. A este respeito, convém atentar no artigo 268.º/2

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

da CRP, a atribuir aos cidadãos o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos.
Com efeito, a LADA concretiza e delimita o âmbito deste direito, que assiste a todos os
cidadãos de, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, acederem aos documentos
administrativos e exercerem direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua
existência e conteúdo.
Embora não suscitem temas relacionados exclusivamente relacionados com a
existência de dados informatizados e detidos pela Administração, adquirem neste caso
especial acuidade as questões relacionadas com a proteção dos cidadãos em face do
tratamento e da interconexão de dados e com a exigência de lhes reconhecer o direito de
conhecerem que dados seus se encontram armazenados ou de se oporem a certas formas
de utilização e tratamento (art. 35.º CRP): a tutela administrativa destes direitos fundamentais
dos cidadãos encontra-se confiada à Comissão Nacional de Proteção de Dados.

2.2. Prestação digital de serviços públicos.


Nesta matéria, o Decreto-Lei nº 74/2014, sobre a prestação digital de serviços
públicos, estabeleceu que os serviços públicos devem, sempre que a sua natureza a isso não
se oponha, para além do atendimento presencial, ser também prestados de forma digital,
através da sua progressiva disponibilização na Internet. Trata-se, pois, da consagração da
regra de que a Administração deve disponibilizar por via digital os serviços que a tal se
afeiçoam. O objetivo é a simplificação da vida dos cidadãos, no sentido de, sempre que
possível, dispensar a deslocação aos serviços da Administração.
No entanto, uma generalização descuidada da prestação digital de serviços públicos
poderia gerar dificuldades para os cidadãos sem acesso à Internet ou sem conhecimentos
para utilizar as tecnologias eletrónicas. Com efeito, para suprir as dificuldades no acesso
direito pelos cidadãos aos serviços públicos prestados através do recurso aos meios digitais,
o mesmo diploma instituiu o designado atendimento digital assistido nos Espaços do Cidadão.
Por fim, a Lei nº 37/2014 estabelece um sistema alternativo e voluntário de
autenticação dos cidadãos nos portais e sítios na Internet da AP denominado Chave Móvel
Digital. Nos termos deste diploma, a todo o cidadão é permitida a associação do seu número
de identificação civil a um único número de telemóvel e ou a um único endereço de correio
eletrónico. Esta associação serve apenas para a obtenção da Chave Móvel Digital como
mecanismo voluntário e alternativo de autenticação perante serviços públicos prestados de
forma digital para todo o utilizador, nacional ou não nacional, não podendo ser os dados assim
obtidos utilizados para qualquer outro fim.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

2.3. Comunicações e relacionamento procedimental.


Um outro préstimo fundamental dos meios eletrónicos ocorre no domínio da facilitação
dos contatos entre os sujeitos da Administração e entre estes e os cidadãos: os requerimentos
eletrónicos, as notificações eletrónicas, o envio de documentos por meios eletrónicos, as
reuniões de órgãos por videoconferência são alguns dos exemplos desta aplicação da
eletrónica na vida administrativa.
Neste âmbito, a utilização de meios eletrónicos constitui uma alternativa ao contacto
presencial ou à utilização de documentos em papel e, no âmbito de procedimentos, assegura
as comunicações entre os sujeitos da relação jurídica procedimental.
A este respeito, o CPA utiliza os conceitos (equivalentes) de procedimento eletrónico
(art. 82.º/4) e de procedimento informatizado (art. 84.º/3) e contempla um preceito específico
sobre a utilização de meios eletrónicos na instrução de procedimentos administrativos (art.
61.º). Neste sentido, note-se que os conceitos de procedimento eletrónico (ou informatizado)
referem-se a situações em que toda a tramitação do procedimento – iniciada com o
requerimento ou com um ato oficioso da Administração – se desenvolve de forma eletrónica,
porventura, através de uma plataforma eletrónica disponibilizada pela AP para esse efeito
específico (a título de exemplo, as plataformas eletrónicas utilizadas, nos termos do CCP,
para a tramitação dos procedimentos de formação de contratos públicos). Com efeito, ao
procedimento administrativo eletrónico corresponde um processo administrativo em suporte
eletrónico (art. 64.º/4): trata-se de uma correspondência equivalente à que decorre entre os
conceitos de procedimento administrativo e de processo administrativo, nos termos dos dois
números do artigo 1.º do CPA. No mesmo sentido, o artigo 122.º/3 refere-se à consulta do
processo (administrativo) por via eletrónica.
Ora, o artigo 61.º estabelece um princípio de preferência da utilização de meios
eletrónicos (salvo disposição legal em contrário), na instrução de procedimentos
administrativos, tendo em vista: facilitar o exercício de direitos e o cumprimento de deveres
através de sistemas que, de forma segura, fácil, célere e compreensível, sejam acessíveis a
todos os interessados; tornar mais simples e rápido o acesso dos interessados ao
procedimento e à informação; e, por último, simplificar e reduzir a duração dos procedimentos,
promovendo a rapidez das decisões, com as devidas garantias legais.
Não obstante, apesar da abertura da lei, a utilização de meios eletrónicos não tem,
necessariamente, de se estender a toda a tramitação do procedimento. Desde já, existem
diligências do procedimento que não podem ser realizadas por meios eletrónicos. Depois,
note-se que não se revela inteiramente claro o sentido da indicação legal referida, da
permissão de utilização de meios eletrónicos, uma utilização, aliás, preferencial. Com efeito,
na nossa interpretação, por disposição legal em contrário deverá entender-se, em primeiro
lugar, qualquer disposição que exclua expressamente a utilização de meios eletrónicos. No

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

entanto, também nos parece de sentido contrário a disposição legal que se refira a um ato,
diligência ou providência procedimental sem prever a utilização de meios eletrónicos e que
tenha subjacente um contexto factual ou jurídico que, em si mesmo, exclui aquela utilização.
...Concretizando...
A teleconferência a que se refere o artigo 123.º/2 e, sobretudo, a videoconferência a que alude o artigo
79.º/4 apenas se revelam possíveis na medida em que a lei as permite expressamente. Com efeito, de outro
modo, tenderíamos a considerar que a comparência ou a presença física das pessoas envolvidas naqueles
dois casos não poderiam ser substituídas por uma presença por meios eletrónicos.
Em relação a certos atos do procedimento, o CPA permite direta e expressamente a
respetiva prática mediante a utilização de meios eletrónicos, quer se trate de atos dos
particulares (art. 104.º/1-c)), quer se trate de atos da Administração (art. 112.º/1-d)).
Além do mais, o artigo 61.º/2 estabelece algumas condições a observar no caso de
utilização de meios eletrónicos na instrução de procedimentos: neste caso, as aplicações e
sistemas informáticos, devem indicar o responsável pela direção do procedimento e o órgão
competente para a decisão, assim como garantir o controlo dos prazos, a tramitação ordenada
e a simplificação e a publicidade do procedimento. No âmbito do mesmo preceito, conforme
o seu nº 3, os interessados têm direito a conhecer por meios eletrónicos o estado da
tramitação dos procedimentos que lhes digam diretamente respeito (arts. 82.º/4 e 84.º/3) e a
obter os instrumentos necessários à comunicação por via eletrónica com os serviços da
Administração, designadamente, nome de utilizador e palavra-passe para acesso a
plataformas eletrónicas simples e, quando legalmente previsto, conta de correio eletrónico e
assinatura digital certificada.
Ora, em ligação com a tramitação eletrónica do procedimento administrativo, têm sido
instituídos balcões eletrónicos (por exemplo, o balcão único eletrónico que integra o balcão
do empreendedor). Com efeito, os balcões constituem um importante instrumento de
desburocratização e de simplificação do relacionamento entre os cidadãos e a Administração,
permitindo a transmissão eletrónica de requerimentos, pedidos, exposições, comunicações
ou a emissão de certidões e notificações.
Neste sentido, o CPA define regras gerais sobre os balcões eletrónicos, indicando que
os mesmos devem proporcionar: a informação clara e acessível a qualquer interessado sobre
os documentos necessários para a apresentação e instrução dos correspondentes pedidos e
condições para a obtenção dos efeitos jurídicos pretendidos com o pedido; meios de consulta
eletrónica do estado dos pedidos; meios de pagamento por via eletrónica das taxas devidas,
quando seja caso disso; informação completa sobre a disciplina jurídica dos procedimentos
administrativos que se podem realizar através do balcão eletrónico em causa; endereço e
contato da entidade administrativa com competência para a direção do procedimento
administrativo em causa; informação sobre os meios de reação judiciais e extrajudiciais de
resolução de eventuais litígios. Ademais, a lei acrescenta que os balcões eletrónicos devem

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

poder intermediar nos procedimentos a serem desenvolvidos entre os interessados e as


autoridades administrativas competentes, recebendo os atos de uns e outros, mediante a
entrega do correspondente recibo e transmitindo-o imediatamente. Por fim, de sublinhar é,
ainda, a indicação de que (salvo disposto em lei especial) os balcões eletrónicos asseguram
a emissão automatizada de atos meramente certificativos e a notificação de decisões que
incidam sobre os requerimentos formulados através daquele suporte eletrónico (art. 62.º, cuja
epígrafe, aliás, é balcão único eletrónico, mas trata-se de um lapso, pois o sentido do preceito
é o de instituir regras para quaisquer balcões eletrónicos).

2.4. Tomada de decisões administrativas.


A ação administrativa apresenta-se como uma atuação juridicamente imputável a
organizações e pessoas coletivas (entidades públicas e entidades privadas com funções
administrativas), mas, na realidade, consiste numa ação de pessoas humanas ou físicas que
servem as referidas organizações e entidades, como titulares dos respetivos órgãos ou como
trabalhadores. Neste sentido, trata-se de uma ação humana, feita por pessoas humanas e,
por isso, da autoria e da responsabilidade imediata destas.
Pois bem, em áreas particulares, a administrativa eletrónica pretende não só contribuir
para a simplificação ou desmaterialização e para uma certa forma de desburocratização
administrativa, mas, mais do que isso, substituir a própria decisão humana na Administração:
não se trata de um fenómeno recente, pois, por exemplo, já, há muito tempo, o polícia sinaleiro
foi substituído por semáforos. Iniciava-se, então, um percurso que veio conduzir à
possibilidade de decisões administrativas produzidas por computadores.
I. Ato administrativo eletrónico ou informático;
Sobretudo a partir dos últimos anos do século XX, pôde verificar-se uma
assinalável expansão da eletrónica como meio da própria produção ou fabricação de
decisões administrativas, por exemplo, nos setores da administração fiscal (liquidação
de impostos) ou da administração da segurança social (liquidação de taxas e
atribuição de subvenções). O mesmo sucede no campo da contratação pública, com
a adoção de procedimentos de adjudicação eletrónicos (leilões eletrónicos).
Nestes setores, é a própria decisão administrativa, o próprio ato administrativo
que surge adotada por um equipamento eletrónico, sem a intervenção direta e
imediata de uma pessoa humana: é a máquina que produz o ato administrativo,
procedendo à aplicação de uma regra (fixada no programa informático) a uma situação
concreta (definida pelos dados da situação introduzidos no computador). Estamos em
face da figura do ato administrativo eletrónico ou informático. Com efeito, o sinal
distintivo do ato administrativo informático reside no facto de a definição do seu
conteúdo se apresentar como o resultado produzido por uma máquina de acordo com

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

as instruções contidas no ato-programa. Assim, a decisão do agente é substituída pela


atividade da máquina. Neste cenário, o elemento humano encontra-se presente, mas
apenas na fase prévia da elaboração do programa informático. O tratamento dos
dados do caso é processado informaticamente.
Ora, embora produzido pela máquina, a autoria do ato administrativo
informático é atribuída à entidade pública responsável pelo funcionamento daquela;
de resto, como a doutrina observa, por via da programação e da introdução da situação
concreta, a entidade pública mantém, na prática, o senhorio do procedimento.
Segundo a opinião corrente, a figura do ato administrativo informático revela-se
admissível essencialmente nos domínios de vinculação estrita da Administração à lei
(decisões vinculadas): o programa informático, elaborado com base numa
interpretação estrita da lei, comanda a produção da única decisão que a lei admite no
caso.
Não obstante, alguma doutrina admite a automatização de atos administrativos
em casos de baixa discricionariedade. De facto, tecnicamente, o facto de a lei
conceder discricionariedade à AP não exclui a aplicação do ato administrativo
informático, já que a automatização de decisões desta natureza apresenta-se possível
no quadro de uma programação informática que anule a discricionariedade concedida
por lei. Quer dizer, não seria a máquina a efetuar a escolha discricionária na situação
concreta, uma vez que o programa informático teria convertido a abertura legal para o
exercício da discricionariedade numa competência vinculada. Não excluindo de forma
taxativa esta forma de autolimitação administrativa (genérica) da discricionariedade,
entendemos que a concessão legal de poderes discricionários ao agente
administrativo constitui, em princípio, um obstáculo jurídico à automatização de
decisões administrativas.
Quanto ao CPA, convém notar que contém múltiplas referências ao
procedimento administrativo eletrónico ou informatizado, em geral, atinentes à
tramitação da fase da iniciativa e da instrução às comunicações. Em si mesmo, o ato
administrativo eletrónico é uma figura quase desconhecida: veja-se o silêncio da lei
nesta matéria quando regula a forma dos atos administrativos (art. 150.º) ou as
menções obrigatórias, nas quais se inclui a assinatura do ato (art. 151.º). Contrastando
com este silêncio, porém, surge um preceito com a seguinte formulação “à decisão
final proferida através de meios eletrónicos deve ser aposta assinatura eletrónica ou
outro meio idóneo de autenticação do titular do órgão competente, nos termos da
legislação própria, o qual deve ser devidamente identificado (art. 94.º/2). Esta decisão
final proferida através de meios eletrónicos parece-nos ser o ato administrativo
eletrónico. Nesse preceito, resolve-se o problema da imputação da decisão ao titular

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

do órgão administrativo, mediante a aposição da assinatura eletrónica ou outro meio


idóneo de autenticação do titular do órgão competente, nos termos de legislação
própria, o qual deve ser devidamente identificado.
II. Ato administrativo em forma eletrónica;
Trata-se de um ato administrativo praticado por uma pessoa (decisão de uma
pessoa), mas que surge revestido de uma forma eletrónica (em vez de forma escrita
ou oral): assim sucede com a ordem constante de um ficheiro informático e
comunidade por email ou com a autorização conferida e comunicada por uma
plataforma eletrónica. Nesta hipótese, o modo como o ato administrativo se exterioriza
ou manifesta (forma do ato) é eletrónico e não escrito ou oral.
Sem prejuízo de, em sentido rigoroso, estar em causa um ato administrativo
praticado em forma eletrónica, parece-nos possível considerá-lo, para todos os efeitos,
um ato equiparado ao ato praticado em forma escrita: nestes termos, talvez se possa
aceitar que a prática de um ato em forma eletrónica cumpre a exigência legal do artigo
150.º (os atos administrativos devem ser praticados por escrito); mas, neste caso, do
documento informático deverão constar as menções obrigatórias do artigo 151.º/1; a
exigência de assinatura do autor do ato (art. 151.º/1-g)) poderá considerar-se
satisfeita, desde que: naquele documento, o autor seja identificado pela indicação
expressa do seu nome, ou eventualmente com a sua assinatura digitalizada; o meio
pelo qual o ato é comunicado ao destinatário permita atribuir de forma inquestionável
a autoria do ato a quem nele surge identificado como seu autor.
III. Notificação eletrónica de atos administrativos.
Situação diferente das duas anteriores, é a que resulta da notificação por um
meio eletrónico de um ato administrativo escrito: agora, a eletrónica serve apenas
como um meio de comunicação, mas já não de suporte formal de uma decisão da
administração; o suporte formal da decisão é um documento escrito e assinado pelo
seu autor. Sobre a notificação por correio eletrónico e a notificação eletrónica, o artigo
112.º/1-c)/2 e 113.º/5/6.

- Ação administrativa e ação de particulares.

A ação administrativa refere-se à ação da AP; já a atividade dos particulares


desenvolve-se, em regra, no âmbito privado e, claro, pode qualificar-se como ação privada.
Assim, a dicotomia entre ação administrativa e ação privada apresenta-se em termos
relativamente simples.
No entanto, convém sublinhar que os particulares podem desenvolver ações
administrativas: eis o que sucede nos casos em que, por delegação ou concessão pública,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

são investidos de funções administrativas (exercício privado de funções administrativas;


administração por particulares). Por outro lado, uma hipótese também relevante, mas de teor
diferente, ocorre com o fenómeno que pode designar-se como “particulares na
Administração”: aqui, os particulares, nesta qualidade (enquanto particulares), são
incorporados ou integrados em órgãos da Administração (por exemplo, cidadãos chamados
a compor as mesas eleitorais, que são órgãos da AP eleitoral). Uma situação semelhante a
esta última, e que se traduz também, numa expressão do fenómeno dos particulares na
Administração ocorre com o chamado funcionário de facto.

Apresenta-se controversa a compreensão jurídica da figura do funcionário de facto...


Por funcionário de facto entende-se o particular que, sem vínculo formal que o ligue à AP, assume,
sua sponte e com espírito de colaboração, o exercício de funções próprias da Administração.
Em tempos de normalidade, o exercício das funções próprias da Administração por particulares não
investidos constitui um abuso e pode até representar uma conduta ilícita penal. No entanto, em circunstâncias
de excecional gravidade, quando a Administração competente não está capaz de responder às solicitações e
se torna necessário mobilizar todas as forças, entende-se que o exercício de funções públicas, mesmo de
autoridade, por particulares sem investidura formal não preenche nenhum tipo de ilícito. Além disso, desde que
as funções exercidas se revelem essenciais e inadiáveis, os atos praticados pelos particulares podem ser
imputados ou reconduzidos à Administração, como se fossem praticados por um agente titulado. Apesar de
não existir aqui um ato formal de investidura do cidadão no exercício de uma função pública, entende-se que a
própria situação de facto – estado de necessidade – constitui a fonte da mesma, a qual se revela como uma
investidura de facto.

Nos institutos da administração por particulares e particulares na Administração, a


ligação dos cidadãos à ação administrativa revela-se com grande nitidez e traduz-se, afinal,
em serem eles mesmos a responsabilizar-se por desenvolver a própria ação administrativa.
Contudo, não se esgotam aqui os casos de ligação entre a ação administrativa e a ação dos
particulares.
Na verdade, em situações com recorte muito diferente, a ação dos particulares surge
relacionada ou articulada com a ação administrativa.
Assim sucede, no âmbito de procedimentos administrativos, quando são os
particulares que, para a realização dos seus interesses pessoais, promovem ou
desencadeiam a ação da Administração: pedido de informação (art. 82.º CPA); apresentação
de um requerimento (art. 102.º CPA); apresentação da notificação prévia de uma operação
de concentração de empresas; apresentação de comunicação prévia (por exemplo, para
realizar uma operação urbanística); apresentação de uma proposta num procedimento de
adjudicação de um contrato (art. 56.º CCP).
Com efeito, todos estes atos, apesar de provenientes de particulares, cumprem uma
função específica no interior de um procedimento administrativo, o que explica que se
submetam à regulação do direito administrativo. Trata-se de atos de particulares regulados
pelo direito administrativo: atente-se, por exemplo que o CPA regula como e onde se

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

apresenta e como se formula o requerimento, bem como os respetivos efeitos jurídicos. O


procedimento administrativo constitui, de resto, em geral a sede por excelência da relevância
jus-administrativa de inúmeras ações de particulares, ao nível da prova de factos, da
audiência e, em certos casos, da aceitação do ato que a Administração pratica.
Por vezes, a atuação do particular revela-se determinante da produção de efeitos
jurídicos de um ato da Administração (por exemplo, o pagamento de uma taxa enquanto
condição de eficácia jurídica de uma licença).
Em casos particulares, a intervenção do particular no procedimento administrativo
assume uma dimensão quase-constitutiva do efeito jurídico do ato da Administração (assim
sucede nos procedimentos de exame, em que a função da ação do particular reside em
determinar o sentido da decisão.
No cenário contratual, a declaração dos particulares cruza-se com uma declaração da
Administração e o resultado jurídico – a celebração do contrato – produz-se com base na
confluência e na conjugação de declarações negociais administrativas e de declarações
negociais privadas (de particulares).
Num outro plano, a ação de particulares releva na esfera do Direito Administrativo
quando a mesma consiste no cumprimento dos deveres ou restrições impostas por contratos
(obrigações contratuais) ou por atos administrativos4 (cumprimento de uma ordem de
remoção de um veículo) ou no cumprimento de deveres legais ou regulamentares fiscalizados
pela Administração (dever de recenseamento eleitoral).
Vimos já que a atividade dos particulares se desenvolve, em regra, no âmbito privado
e pode qualificar-se como ação privada. Pois bem, como algumas das situações anteriores o
denotam, a atuação (privada) de particulares pode ser, com particular intensidade,
conformada e orientada pela AP: assim sucede no cenário das atividades privadas
submetidas a regulação pública.
Por fim, note-se que a ação dos particulares, quando ilícita, pode conhecer ainda uma
relevância na esfera do direito administrativo sancionador: ilícito de mera ordenação social,
ilícito disciplinar e ilícito contratual.

4 A ação particular consistente no cumprimento (ou no acatamento) de atos administrativos deve distinguir-se da
atividade que os particulares exercem ao abrigo ou com fundamento em atos administrativos, por exemplo, atos
de autorização ou de concessão. Neste último caso, trata-se de atividades da esfera do direito privado, ainda que
submetidas a regulação (fiscalização) pública. O particular que exerce uma atividade licenciada ou autorizada não
está a cumprir – nem a executar – a licença ou a autorização, mas simplesmente a exercer uma atividade integrada
na esfera privada.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

- Ação administrativa e relação jurídica administrativa.

A exposição de uma teoria geral da ação administrativa a partir do estudo das formas
da ação administrativa conhece, como seu efeito direto e imediato, uma certa desvalorização
da compreensão do Direito Administrativo a partir do conceito de relação jurídica
administrativa.
Na verdade, o estudo da ação – das formas de ação – remete para uma visão
unidirecional, polarizada na Administração, que pretende captar os modos como esta atua: a
Administração em ação. Em vez de uma compreensão relacional, centrada na noção de
relação jurídica administrativa, a exposição focada na ação propõe uma abordagem do Direito
Administrativo a partir dos modos ou processos de agir da Administração; o conceito de
relação jurídica (administrativa) pode surgir, mas como efeito ou resultado da ação.
Na nossa interpretação, o eixo de compreensão do sistema administrativo reside em
“o que” a Administração faz ou no “modo” como o faz. Este esquema explicativo revela-se
correto, desde logo, do ponto de vista didático. No entanto, acrescente-se, também o
consideramos adequado do ponto de vista cultural e dogmático, pois a exposição focada nas
formas de ação exprime em termos mais precisos a situação do particular em que a
Administração se encontra colocada nas relações com os cidadãos.
Não obstante, privilegiar uma exposição do Direito Administrativo a partir das formas
da ação administrativa não equivale a ignorar o fenómeno da “Administração em relação” nem
a desvalorizar a importância relativa que se deve reconhecer ao conceito de relação jurídica
administrativa. Com efeito, desde logo, importa observar que, ao agir, a AP entra em relação:
as formas de ação administrativa constituem fontes ou meios de constituição de relações
jurídicas administrativas com os destinatários ou porventura com os terceiros que sejam
afetados pela ação administrativa. Por outro lado, também não se discute o valor pontual que
o conceito de relação jurídica administrativa pode ter para uma compreensão fixada num
quadro relacional, bipolar (Administração e cidadão) ou eventualmente multipolar, e que, de
forma imediata, suscita uma referência a direitos e a deveres recíprocos e, em geral, posições
jurídicas de Direito Administrativo que correlacionam a Administração e os cidadãos. Além
disso, importa recordar que o conceito de relação jurídica administrativa tem acolhimento
constitucional (art. 212.º/3 CRP).
Ora, porque se trata de um conceito de direito positivo que, em certos domínios,
apresenta potencial para enquadrar juridicamente certos contatos que envolvam sujeitos da
AP, pode revelar-se útil conhecer os contornos do conceito, que, no nosso modo de ver, se
define assim: relação jurídica entre dois ou mais sujeitos de direito (ou entre dois órgãos do
mesmo sujeito) em que pelo menos um deles intervém como sujeito da AP e que é disciplinado

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

por normas jurídicas que a esse sujeito se dirigem enquanto responsável pelo exercício da
função administrativa.
A fonte da relação jurídica administrativa pode ser qualquer forma de ação
administrativa ou, nos casos previstos na lei, o ato de um particular; simples factos jurídicos,
como o decurso do tempo (art. 134.º/3 CPA); caducidade pelo não exercício de um direito ou
de um poder administrativo num determinado período de tempo; veja-se ainda a doutrina
fixada no Ac. do STJ de abril de 1989, “são públicos os caminhos que, desde tempos
imemoriais, estão no uso direto e imediato do público”.
Por fim, o capítulo II da parte III do CPA tem por título “relação jurídica procedimental”.
Com efeito, a lei procura enquadrar num contexto relacional e jurídico os contatos que se
processam entre os sujeitos do procedimento administrativo. Assim, os sujeitos do
procedimento surgem, em geral ou nas suas relações recíprocas, como titulares de posições
jurídicas ativas e passivas com uma incidência procedimental.

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CAPÍTULO II – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

1. Noções gerais sobre o procedimento administrativo


1.1. Conceito de procedimento administrativo.
1.2. Procedimento: a forma da função administrativa.
1.3. Procedimento administrativo e formalismo.
1.4. Procedimento administrativo e processo.
2. Caráter procedimentalizado da ação administrativa.
3. Funções do procedimento administrativo.
3.1. Instrumentalidade do procedimento administrativo.
3.2. Autonomia dogmática do procedimento administrativo.
4. Princípios do procedimento administrativo.
5. Sujeitos do procedimento administrativo.
5.1. Órgãos responsáveis pelos atos jurídico-públicos do procedimento.
5.2. A figura do responsável pela direção do procedimento.
5.3. Interessados.
6. As relações jurídicas procedimentais.
7. Codificação do procedimento administrativo.
7.1. Caráter híbrido do CPA.
7.2. Procedimentos especificamente regulados no CPA.
7.3. Âmbito de aplicação do CPA.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

CAPÍTULO II – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

Todas as formas de ação administrativa emergem no contexto de um procedimento e


constituem o momento de um procedimento. Por ora, pretende-se expor os traços gerais da
ideia de procedimento administrativo, tendo em consideração o facto de estarmos em face de
um fenómeno geral na ação administrativa.

- Noções gerais sobre o procedimento administrativo.

1. Conceito de procedimento administrativo.

O artigo 1.º/1 CPA define o procedimento administrativo como uma sucessão


ordenada de ato e formalidades relativos à formação, manifestação e execução da vontade
dos órgãos da AP. Com efeito, trata-se de uma definição que não corresponde à sua versão
originária que apresentava o procedimento administrativo como uma sucessão ordenada de
atos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da AP ou à sua
execução. Agora, os atos e formalidades deixaram de ser tendente, passando a ser relativos
à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da AP; e a vontade deixa de
ser referenciada à AP (vontade da AP), passando a associar-se aos órgãos da AP. Na nossa
interpretação, em 2015, a noção ficou mais pobre e menos correta: assim, a substituição de
tendentes por relativos desvaloriza a referência finalista que une todos os atos de um
procedimento, pois, efetivamente, eles tendem para a realização de um mesmo objetivo (fim
mediato comum); por outro lado, dir-se-á que a anterior referência genérica e mais ou menos
desprendida de rigor técnico a uma vontade da AP ainda se podia aceitar, mas o mesmo já
não se pode dizer da atual alusão a uma vontade dos órgãos da AP: a alteração aparenta
responder a uma exigência de apuro técnico, mas acaba por gerar um absurdo, pois decorre
da natureza das coisas que os órgãos da AP – definidos pelo CPA como centros
institucionalizados (art. 20.º/1) – não têm vontade, já que são desprovidos de existência física;
têm, isso sim, competências (poderes e deveres) que contam com os seus titulares para as
exercer. Assim, o conceito legal ganharia em associar o procedimento administrativo à adoção
de medidas ou à prática de atos com efeitos jurídico-administrativos (pelos órgãos da AP ou
por entidades no exercício de poderes públicos). Assim, eis que propomos definir
procedimento administrativo nos seguintes termos:
Conjunto ordenado e sequencial de atos e de diligências tendentes à formação, manifestação e

execução de medidas e de atos de caráter jurídico-administrativo adotados pelos órgãos da Administração

Pública ou por quais quer entidades no exercício de poderes públicos.

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I. O procedimento como série encadeada de atos...;


O procedimento administrativo não constitui uma forma de ação administrativa,
mas antes uma série encadeada de atos, de medidas e de diligências várias que tem
como desfecho a produção de um resultado concretizado na adoção de uma
determinada medida administrativa ou de um certo ato jurídico-administrativo, que
constitui um ato final da série ou sequência procedimental: o ato final, que constitui
também o ato principal (constitutivo ou central) da série procedimental, pode ser um
regulamento, um ato administrativo, ou um contrato administrativo, mas também um
outro jurídico de Direito Administrativo (v.g.: parecer) ou até uma operação material
(v.g.: apreensão de um equipamento).
Neste sentido, o conceito de procedimento administrativo pressupõe um
encadeamento ou sucessão de atos e diligências estruturalmente distintos e
autónomos praticados em vista de um determinado resultado jurídico ou material,
traduzido na prática de um ato ou de uma medida principal ou final.
No entanto, a referência ao caráter final do ato ou medida principal do procedimento
não pretende sugerir que esteja em causa um ato com efeitos finais externos. É que
poderá tratar-se de um ato intercalar e instrumental, sem efeitos externos, mas que
surge como o ato principal do seu próprio procedimento – assim, o parecer (art. 91.º)
emitido no âmbito do procedimento de concessão de uma licença é o ato principal e
final do seu procedimento (emissão de parecer), mas não é um ato final, com efeitos
externos.
Ora, a definição legal alude a uma sucessão ordenada de atos e formalidade,
o que associa o procedimento a uma ideia de ordem, de uma marcha ordenada,
coerente e racionalmente encadeada e articuladas dos trâmites procedimentais. Por
outro lado, está pressuposta no conceito de procedimento administrativo uma ideia de
movimento, de sucessão, de sequência encadeada de atos e de medidas que vão
sendo praticados sucessivamente e cuja prática se associa a uma marcha, a um
percurso no sentido da produção de um resultado.
Assim, o procedimento traduz a identidade de fim mediato da série de atos e
medidas que o integram: cada ato e medida que se sucede e se articula com os outros
atos e medidas no desenvolvimento do procedimento persegue um fim imediato
próprio, mas, além deste, persegue ainda um fim mediato, como a todos os outros, na
medida em que, como estes, se destina a criar ou a estabelecer as condições para a
produção do mesmo resultado.
Por fim, note-se que a consideração do procedimento enquanto conjunto ou
série de atos, sem desvalorizar a posição (central) do ato principal, postula, todavia,
uma visão mais abrangente e completa do desenvolvimento da atividade

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

administrativa que precede a adoção daquele ato e, nalguns casos, da atividade que
ocorre depois desse momento. Neste sentido, o procedimento contribui para um certo
redimensionamento da importância atribuída ao ato que representa o seu desfecho ou
resultado final, o qual tem de se compreender, de certo modo, como mais um ato da
série procedimental. Com efeito, a perspetiva procedimental da ação administrativa
concretiza uma evolução de grande significado na ciência do Direito Administrativo,
pois representou a tentativa séria de abandono de uma compreensão científica da
nossa disciplina focada na figura do ato administrativo e na manifestação do poder
administrativo.
II. ... tendentes à formação, manifestação e execução de um ato principal ou final;
O procedimento agrega as providências, as diligências e os atos tendentes
(relativos) à formação, manifestação e execução de um ato principal ou final: relativos
à formação, temos os atos e formalidades procedimentais que põem o procedimento
em marcha e que, em geral, visam preparar a prática do ato principal (atos de iniciativa
e atos de instrução; relativos à manifestação, são os atos e formalidades relativos ao
momento constitutivo, à própria prática do ato principal: eis o que sucede, por exemplo,
com as formalidades relativas à forma e formalização do ato, à sua publicação e
notificação; por fim, relativos à execução, são as providências adotadas com o sentido
de executar e de realizar os efeitos práticos definidos no ato principal.
Apesar desta divisão legal tripartida, na prática, considera-se uma divisão dual
entre procedimento declarativo e procedimento executivo: o primeiro abrange os atos
e formalidades adotados relativos à preparação (formação) e à produção
(manifestação) de um ato principal; o segundo refere-se aos atos adotados em vista
da execução desse mesmo ato.
III. O procedimento administrativo refere-se ao desenvolvimento da atividade
administrativa, da AP;
O procedimento administrativo refere-se ao desenvolvimento da atividade
administrativa, da AP. Isto mesmo é destacado no conceito legal, na parte em que
alude à vontade dos órgãos da AP. Porém, sucede que no espírito do CPA, talvez
fizesse mais sentido associar o conceito de procedimento administrativo à formação,
manifestação e execução de atos (com efeitos jurídico-administrativos) adotados por
quaisquer entidades no exercício de poderes públicos (art. 2.º/1 CPA).
Apesar de, como se acaba de afirmar, a ideia do procedimento administrativo
nos remeter, de imediato, para uma intervenção administrativa, realizada por órgãos
da AP e por entidades no exercício de poderes públicos, deve notar-se que o
procedimento – enquanto momento de formação de decisões e de atos da
Administração – é a sede de acolhimento de formas de participação dos interessados

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

na ação administrativa e, de modo particular, daqueles que, na condição de


destinatários, vão sofrer os efeitos jurídicos e práticos dos atos e das medidas da
Administração.

2. Procedimento: a forma da função administrativa.

O procedimento não constitui uma forma de ação administrativa. Assim, pretende-se


explicar que o mesmo não se coloca como uma forma de ação a par, por exemplo, do ato
administrativo ou do contrato administrativo. Na verdade, o procedimento não se confunde
com o resultado ou com o ato isolado em que se consubstancia cada uma das formas de ação
administrativa.
No entanto, isso não significa que, ao não constituir uma forma no sentido referido, o
procedimento administrativo represente, então, um conteúdo. Não é este o caso. Com efeito,
sublinhou FELICIANO BENVENUTI que o procedimento é a forma da função administrativa. Esta
feliz fórmula enfatiza o facto de o procedimento se apresentar como um modo de
desenvolvimento da função ou atividade administrativa, destacando uma dimensão funcional
no conceito. Este enfoque traduz uma ideia de dinâmica, que acentua o “fazer-se” da ação
administrativa.

3. Procedimento administrativo e formalismo.

Sem se porem em causa as vantagens associadas à procedimentalização da ação


administrativa, como instrumento de abertura à participação ativa e empenhada dos cidadãos
e como fator de legitimação de maior ponderação da ação pública, importa chamar a atenção
para os riscos, que existem, de o excesso de procedimentalismo (formalismo) poder produzir
ineficiências, conduzindo a um peso excessivo das conversações e dos diálogos e à criação
de um ambiente menos propício à tomada de decisões efetivas. Por outro lado, também não
é de excluir uma eventual instrumentalização do procedimento e dos direitos procedimentais,
que podem ser exercidos de forma estratégica no sentido de adiar ou de eliminar (boicotar) a
capacidade de decisão administrativa.
Com efeito, uma das grandes dificuldades com que se confronta o Direito
Administrativo reside na complexa tarefa de encontrar a medida certa de um equilíbrio entre
formalismo (lato sensu) e eficácia do sistema administrativo.
Além do mais, a associação entre procedimento administrativo e formalismo remete,
também, para o problema de, muitas vezes, o legislador se deixar tentar pela adoção de um
sistema de prescrições detalhadas sobre a tramitação que a Administração deve adotar. Ora,

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na esteira de ROGÉRIO SOARES, afigura-se-nos quem salvo casos particulares5, o


desenvolvimento da tramitação deve pautar-se por uma regra de discricionariedade
procedimental, ainda que temperada pela observância de alguns trâmites legalmente
obrigatórios (v.g. audiência prévia) – por discricionariedade procedimental entende-se o poder
que assiste ao responsável pelo procedimento de definir a estruturação ou modelação do
procedimento administrativo, orientando-se, nessa tarefa, por princípios jurídicos com
incidência procedimental (art. 56.º).
Por fim, entendemos que uma certa atenuação do formalismo exacerbado e
inconsequente poderá passar por opções legislativas e jurisprudenciais de desvalorização de
certas ilegalidades de caráter procedimental (irrelevância de vícios de forma e do
procedimento): parece ser esta a inclinação do CPA, quando estabelece, no artigo 163.º/5-b),
que não se produz o efeito anulatório do ato administrativo quando o fim visado pela exigência
procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via.

4. Procedimento administrativo e processo.

A contraposição entre procedimento (administrativo) e processo está expressa no


artigo 1.º/1 e 2 do CPA: procedimento é uma sucessão de atos e formalidades relativos à
formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da AP; por seu lado, por processo
administrativo entende-se o conjunto de documentos devidamente ordenados em que se
traduzem os atos e formalidades que integram o procedimento administrativo. Neste sentido,
o processo é um dossiê físico (em papel) ou eletrónico que contém a representação
documental dos atos e das diligências praticados no desenvolvimento do procedimento
administrativo6.
No entanto, o conceito de processo (administrativo, penal, civil) reporta-se também ao
processo enquanto categoria do direito judiciário, relativo a uma sucessão de atos que culmina
na prolação de uma sentença judicial. Embora tenham elementos em comum – sucessão ou

5 De facto, certos procedimentos administrativos requerem um nível mais avançado de formalização e, portanto,
de definição legislativa da tramitação. Assim sucede nos casos de procedimentos disciplinares, que colocam a AP
na posição de acusar e de punir um particular e que, por isso mesmo, suscitam especiais preocupações de garantia
dos direitos de defesa e de contraditório. Por sua vez, os procedimentos de seleção concorrencial também
reclamam uma regulamentação legislativa detalhada, que ofereça garantias seguras de que todos os interessados
(concorrentes) são tratados pela Administração em condições de igualdade e de que a escolha do concorrente
vencedor se efetua de forma transparente e segundo critérios objetivos e preestabelecidos.
6 Prescreve o artigo 64.º/3 que o órgão responsável pela direção do procedimento deve rubricar todas as folhas
do processo administrativo, os interessados e seus mandatários têm o direito de rubricar quaisquer folhas do
mesmo.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

sequência ordenada, produção de um resultado unitário –, os conceitos de procedimento


(administrativo) e de processo (judicial) traduzem realidades distintas.
Assim, o procedimento refere-se ao desenrolar de uma atividade administrativa,
pautada por critérios e objetivos de interesse público, reclamando da Administração uma
conduta empenhada e ativa na produção de um resultado; no procedimento, a Administração
é sempre uma parte – no sentido de que tem o dever institucional de prosseguir um interesse
(o interesse público) e, ainda, de que não lhe é indiferente o sentido específico do resultado
que produz, na realização desse interesse –, apesar de, simultaneamente, ter a
responsabilidade de atuar no procedimento de forma imparcial.
Neste contexto, aponta-se para uma conceção da Administração, na formulação de
MARIO NIGRO, como parte imparcial, enfatizando o seu dever institucional de prosseguir um
interesse, enquanto parte, embora tenha de o fazer de forma a não discriminar outros
interesses envolvidos em relação aos quais tem uma obrigação positiva de ponderação.
Com efeito, o princípio do inquisitório ou da oficialidade, que comanda o
desenvolvimento do procedimento, exprime precisamente a responsabilidade própria da
Administração pela tramitação adotada e pelo resultado produzido.
No sentido em que é portadora do dever de prosseguir um interesse específico – o
interesse público –, a Administração é uma parte mesmo nos procedimentos (triangulares) de
resolução de litígio, em que surge incumbida de resolver, com imparcialidade, um litígio
(procedimentos contenciosos). Com efeito, também nestes casos a Administração se move
pela realização de um interesse público específico, pelo que a sua atividade não se dissolve
na procura de uma solução justa. Embora com outras implicações, o mesmo sucede nos
procedimentos de seleção concorrencial, em cujo âmbito a Administração é portadora do
interesse de selecionar a melhor oferta.
Diferentemente, o processo refere-se à atividade judicial, enquanto atividade de
resolução de conflitos por um órgão imparcial e indiferente aos interesses presentes, mas
também sem protagonizar um interesse próprio que não seja o da administração da justiça; o
processo pretende garantir esses valores do desinteresse e da imparcialidade do tribunal,
impondo a igualdade de armas entre as partes e o princípio do contraditório; a posição do juiz
é relativamente passiva, cabendo às partes a responsabilidade decisiva de provar os factos
que alegam e de convencer o tribunal de que lhes assiste razão.
Sinteticamente, pode dizer-se que o processo é orientado para garantir a melhor
defesa; enquanto que o procedimento é orientado para garantir a melhor decisão.
Por fim, sem prejuízo da intencionalidade distinta, note-se que procedimento e
processo traduzem uma mesma ideia de base, de um modo de proceder e de uma sucessão
ou sequência ordenada de atos e diligências que se interligam e que são praticados em vista
de um resultado final unitário.

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- Caráter procedimentalizado da ação administrativa.

A atividade administrativa que, no plano externo e final se exprime através de atos


muito diversos, pressupõe sempre um procedimento em cujo âmbito tais atos são praticados.
Trata-se do procedimento de formação desses atos.
Neste contexto, pode falar-se de um princípio de procedimentalidade: princípio
segundo o qual a atividade da Administração que se expressa em atos finais de contato com
os cidadãos ou com outras instâncias da Administração se desenvolve no contexto de um
procedimento – quer dizer, exprime-se numa sucessão ordenada de atos e formalidades – e
com a observância de princípios e de critérios jurídicos que regulam a respetiva formação. O
referido princípio deduz-se do artigo 1.º/1 do CPA e tem uma projeção não apenas na ação
administrativa declarativa formal – regulamentos, atos e contratos administrativos –, mas
também na ação administrativa executiva, pelo menos quando se traduza em execução
coerciva de atos administrativos (art. 177.º/2).
Não obstante, o princípio do desenvolvimento procedimental conhece desvios:
teremos, nestes cenários, uma ação administrativa sem procedimento ou
desprocedimentalizada.
I. Estado de necessidade;
Em primeiro lugar, surgem os desvios relacionados com o estado de
necessidade administrativa (arts. 3.º/2, 161.º/2-l) e 177.º/2 CPA).
II. Polícia administrativa;
A ação administrativa desprocedimentalizada constitui uma ocorrência
frequente e até normal no domínio da atividade de polícia administrativa e da adoção
das designadas medidas de polícia: assim, por exemplo, nos termos da Lei da
Segurança Interna, a remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados
em locais públicos que impeçam ou condicionem a passagem pode ser determinada
fora do contexto de um procedimento, imediatamente na sequência da verificação,
pelos agentes competentes, da situação irregular.
III. Internamento compulsivo de urgência.
Também ilustra o fenómeno da ação administrativa sem procedimento o
internamento compulsivo de urgência do portador de anomalia psíquica grave que crie,
por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios
ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário
tratamento médico (Lei da Saúde Mental) – o internamento de urgência pode ser
determinado por mandado da autoridade de saúde.
Em situações como as que se referiu, o caráter desprocedimentalizado da ação
administrativa conjuga-se com a indistinção entre o procedimento declarativo e o

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procedimento executivo, pois o que se apresenta imediatamente é uma ação de tipo executivo
sem declaração prévia (de atentar, todavia, na exceção ao que se disse, prevista no artigo
177.º/2).
Designadamente quando a ação administrativa sem procedimento envolva uma
coerção direta sobre os particulares ou a proibição ou restrição ao exercício de direitos
fundadas em suspeitas e indícios, a lei pode determinar a validação ou a confirmação judicial
das medidas administrativas adotadas – assim, por exemplo, a Lei de Segurança Interna
determina a nulidade das medidas especiais de polícia quando não sejam comunicadas ao
tribunal no prazo máximo de 48 horas após a respetiva adoção.

- Funções do procedimento administrativo.

Ao procedimento administrativo associam-se múltiplas funções. Ao lado de uma


função instrumentar, decorrente de o mesmo servir a produção de um ato principal e do efeito
jurídico deste, o procedimento realiza funções que lhe conferem autonomia enquanto
fenómeno jurídico-administrativo. Alude-se, neste âmbito, a uma ideia de multifuncionalidade
do procedimento administrativo.

1. Instrumentalidade do procedimento administrativo.

O procedimento administrativo compreende-se como um conjunto de atos tendentes


à produção de um determinado resultado – em concreto, à prática de um ato principal – nos
termos requeridos pelo direito material aplicável.
Neste sentido, o procedimento administrativo cumpre uma função instrumental,
pressupondo-se que o mesmo está ao serviço de/serve a prática do ato principal em
conformidade com a lei.
Nesta sua função ou dimensão, o procedimento administrativo organiza a tarefa de
recolha de informação e de aquisição de conhecimento que coloque a Administração em
posição de decidir. A função instrumental associa-se à conceção do procedimento como um
meio que serve os objetivos da realização, da concretização e da correta aplicação do Direito
Administrativo material: é no procedimento que a Administração adquire a informação
necessária para apurar a verificação dos pressupostos jurídicos e de facto da sua ação.
Em suma, a conceção do procedimento como um instrumento para a realização e
correta aplicação da legalidade material concretiza uma subalternidade do direito
procedimental em relação ao direito material.

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2. Autonomia dogmática do procedimento administrativo.

A doutrina tem assinalado que o valor do procedimento não se esgota, contudo, na


sua função instrumental.
Com efeito, embora rejeitando a ideia de que o procedimento se deva conceber como
um fim sem si mesmo, sublinha-se que o mesmo assume um valor próprio: não está em causa
a contraposição deste valor próprio do procedimento à sua função instrumental, mas antes a
perspetiva de articular, como duas faces de uma mesma moeda, esta função com uma função
ou valor não apenas instrumental. Trata-se de esclarecer que o procedimento conhece
dimensões e pode prosseguir funções que não concretizam o objetivo de servir a preparação
do ato principal e a produção de um resultado conforma com o direito aplicável. Assim, a
conceção de um valor próprio do procedimento administrativo resulta de se considerar que
este – enquanto momento de preparação e de formação de uma forma de ação administrativa
– se apresenta como um momento de realização de finalidades próprias e específicas, que
não se esgotam no objetivo de servir a aplicação do direito material.
O procedimento administrativo cumpre, assim, funções como as seguintes:
I. Legitimação da ação administrativa;
O procedimento administrativo cumpre uma função de legitimação da ação
administrativa – legitimação pelo procedimento –, designadamente, ao fomentar a
aceitabilidade de decisões administrativas, em função das exigências específicas de
fundamentação e de ponderação, bem como em função do envolvimento e da
participação dos interessados na formação das decisões.
II. Abertura e transparência;
O procedimento administrativo cumpre uma função de incremento da abertura
da Administração e da transparência administrativa, por exemplo, mediante o
reconhecimento do direito à informação procedimental ou mediante a estipulação de
casos de impedimento, que previnam os conflitos de interesses ou a captura da AP
por interesses particulares ou parciais.
III. Participação ativa e envolvimento dos interessados;
O procedimento administrativo cumpre uma função de abertura à participação
ativa e ao envolvimento dos interessados (art. 267.º/5 CRP), já que o procedimento é
o momento ou a sede de organização e de fomento da participação dos interessados,
que podem carrear elementos para ponderação no processo de decisão da
Administração.
IV. Garantia e proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos;
O procedimento administrativo cumpre uma função de garantia e proteção de
direitos fundamentais dos cidadãos, que pode consistir numa proteção de direitos

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através de procedimentos de um certo tipo (v.g.: direito à igualdade de acesso a


recursos escassos, através da adoção de procedimentos de seleção concorrencial) ou
numa proteção no âmbito do procedimento (v.g.: direito de audiência e defesa em
procedimentos disciplinares, que são direitos fundamentais de caráter procedimental).
V. Fomento do consenso;
O procedimento administrativo cumpre uma função de indução e fomento do
consenso, estimulando o diálogo entre a Administração e os particulares e podendo
até conduzir a um desfecho contratual e consensual em vez de autoritário e unilateral.
Esta função revela-se, por exemplo, nos procedimentos de regulamentação
das entidades reguladoras da economia, quanto à adoção, no âmbito dos mesmos, de
uma fase de divulgação do projeto de regulamento seguida de consulta pública. Nos
termos da lei, a entidade reguladora deve fundamentar as suas opões,
designadamente com referência aos comentários e sugestões apresentados durante
o período de discussão pública (art. 41.º LQER). Num outro âmbito, pode referir-se o
procedimento de transação ou o mecanismo de arquivamento do processo mediante
imposição de condições baseados em conversações e que podem culminar em
acordos enxertados em processos de contraordenação que permitem substituir ou
atenuar medidas sancionatórias.
VI. Agilização dos fluxos de comunicação;
O procedimento administrativo cumpre uma função de agilização de
comunicação entre a Administração e os cidadãos e desenvolvimento de uma lógica
de cooperação e de colaboração entre os dois polos.
VII. Função epistémica e de reflexão;
O procedimento administrativo cumpre uma função epistémica e de reflexão
sobre a informação recolhida, permitindo que a Administração efetue a recolha e o
tratamento de informação de que carece e, com esse conhecimento, realize um
trabalho de ponderação e de reflexão sobre o sentido da decisão a tomar; neste
particular, o procedimento promove e assegura a racionalização do trabalho
administrativo.
VIII. Previsibilidade;
O procedimento administrativo cumpre uma função de reforço ou aumento da
previsibilidade sobre o sentido e direção das condutas da Administração.
IX. Coordenação e cooperação entre entidades administrativas;
O procedimento administrativo cumpre uma função de promoção da
coordenação e da cooperação entre entidades administrativas, já que fomenta,
racionaliza e organiza o trabalho e a reflexão em conjunto das instâncias
administrativas chamadas a intervir num determinado contexto – quanto a este ponto,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

tenha-se presente a figura, do âmbito do Direito Administrativo da União Europeia, dos


procedimentos administrativos compostos, que articulam a intervenção de autoridades
nacionais e de autoridades da UE para a produção de um determinado resultado
unitário.
Uma parte da doutrina mais recente vem chamando a atenção para a necessidade de
reforçar a tendência procedimental do Direito Administrativo, conferindo um maior ênfase aos
direitos procedimentais dos interessados e dos cidadãos em geral; entende-se que o direito
administrativo procedimental induz transparência, envolve os cidadãos na formação das
normas e das decisões administrativas e cria, por isso, condições especiais de legitimação da
ação administrativa. Com efeito, a procedimentalização constitui um elemento de
aproximação do Direito Administrativo de matriz europeia ao Direito Administrativo norte-
americano, o qual conhece um recorte procedimental acentuado, desde o Administrative
Procedure Act, de 1947: a exigência de um due process (legalidade procedimental) e do
respeito por procedural protections (v.g.: audiência) surge como um elemento imprescindível
do sistema de decisão pública.

- Princípios do procedimento administrativo.

Temos em vista os princípios jurídicos aplicáveis ao desenvolvimento da tramitação


ou da sequência procedimental – princípios relativos à marcha do procedimento –, e não os
princípios jurídicos da atividade administrativa, ainda que, como sucede em alguns casos,
estes últimos possam encontrar concretização no procedimento administrativo. Esta
observação impõe-se, desde logo, para tornar claro que os princípios gerais consagrados nos
artigos 3.º a 19.º do CPA são, em muitos casos, princípios gerais da atividade administrativa,
que, pelo menos quanto ao modo como se encontram formulados, não mantêm qualquer
específica relação com o procedimento administrativo: como sucede, claramente, com os
princípios da legalidade (art. 3.º/1), da prossecução do interesse público e da proteção dos
direitos e interesses dos cidadãos (art. 4.º), da proporcionalidade (art. 7.º/2), da
responsabilidade (art. 16.º).
Vejamos quais:
I. Princípio da participação;
O procedimento administrativo constitui a sede por excelência da efetivação do
princípio da participação e, em concreto, da participação dos cidadãos na formação
das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito (art. 267.º/5 CRP e 12.º
CPA). Com efeito, concretiza-se através do reconhecimento legal de direitos
procedimentais de participação dos interessados, bem como de deveres
procedimentais de ativar a participação atribuídos à Administração.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Neste sentido, são direitos procedimentais de participação: direito de iniciativa


e de participação no procedimento (arts. 53.º e 68.º); direito à informação sobre o
procedimento (art. 82.º e ss.); direitos a juntar documentos e pareceres, a requerer
diligências de prova e a designar peritos (art. 116.º/2); e, ainda, direito de audiência
(art. 100.º e ss.).
No entanto, como se disse já, independentemente da atribuição aos
interessados de direitos procedimentais de participação, a lei onera a Administração
com deveres de incentivar a participação dos interessados (art. 7.º/1). Assim, são
exemplos destes deveres: a comunicação do início do procedimento às pessoas cujos
direitos ou interesses legalmente protegidos possam ser lesados pelos atos a praticar
e que possam ser desde logo nominalmente identificadas (art. 110.º); notificação do
projeto de decisão, para efeitos da audiência dos interessados (art. 112.º/2); e, ainda,
notificação do ato administrativo (art. 114.º).
De facto, note-se que a participação dos interessados no procedimento assume
uma dimensão de especial relevo nos procedimentos administrativos consensuais,
que incluem fases de diálogo ou conversações (v.g.: procedimentos de transação). No
entanto, mesmo em procedimentos que desconhecem formalmente essas fases, e
destinados à prática de atos unilaterais da Administração, revela-se, em princípio,
possível o acolhimento de soluções negociais e negociadas, que depois são vertidas
em acordos endoprocedimentais (arts. 57.º e 98.º/2) ou em compromissos (ato
administrativo de aceitação de compromissos).
Por fim, entre todos os princípios do procedimento, o princípio da participação
é aquele quem uma mais clara incidência simultânea no procedimento do regulamento
e do ato administrativo: quando ao procedimento do regulamento, os artigos 97 e ss.;
quando ao procedimento do ato administrativo, artigos 121.º e ss.
II. Princípios da colaboração, da cooperação e da boa-fé procedimental;
Nos termos do artigo 11.º/1, os órgãos da Administração devem atuar em
estreita colaboração com os particulares, cumprindo-lhes, designadamente, prestar
aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam e apoiar e
estimular as iniciativas dos particulares e receber as suas sugestões e informações.
Por outro lado, o CPA prescreve um dever de cooperação recíproca entre os
órgãos da Administração e os interessados, com vista à fixação rigorosa dos
pressupostos de decisão e à obtenção de decisões legais e justas (art. 60.º/1).
Neste sentido, em relação aos interessados, a lei indica que devem concorrer
para a economia de meios na realização das diligências instrutórias e para a tomada
da decisão num prazo razoável, abstendo-se de requerer diligências inúteis e de
recorrer a expedientes dilatórios (art. 60.º/2). Além disso, atribui-lhes o ónus de prova

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

dos factos que tenham alegado (art. 116.º/1), bem como o dever de apresentação de
provas, quando para tal forem solicitados (art. 117.º). O incumprimento dos deveres
de prestação de informações ou de apresentação de provas tem as consequências
previstas no artigo 119.º: assim, esse cumprimento é livremente apreciado para efeitos
de prova, consoante as circunstâncias do caso, não dispensando o órgão
administrativo de procurar averiguar os factos, nem de proferir a decisão; em especial,
quando as informações, documentos ou atos solicitados ao interessado sejam
necessários à apreciação do pedido por ele formulado, não deve ser dado seguimento
ao procedimento, disso se notificando o particular (em caso de inércia continuada do
particular, a situação pode dar lugar a uma extinção do procedimento por deserção,
conforme disposto no artigo 132.º/2).
III. Princípio do inquisitório;
Diretamente conexo com o andamento ou a marcha do procedimento, o artigo
59.º, sobre o princípio do inquisitório, atribui ao responsável pela direção do
procedimento e aos outros órgãos que participem na instrução – mesmo que o
procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados – o poder de proceder a
quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias à preparação de uma
decisão legal e justa, ainda que respeitantes a matérias não mencionadas nos
requerimentos ou nas respostas dos interessados.
Ora, é um princípio que encontra explicação no facto de ser sobre a
Administração que impende o ónus de cumprir a lei e de realizar as diligências que
considere convenientes para se colocar em posição de decidir bem e em conformidade
com a lei. Por isso, o artigo 115.º/1 estabelece que é o responsável pela direção do
procedimento que deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja
adequado e necessária à tomada de uma decisão legal e justa dentro de prazo
razoável, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em
direito – uma incumbência fundamental da Administração em sede procedimental
consiste em recolher e em produzir informação que lhe permita conhecer os interesses
em jogo e fazer uma ponderação adequada sobre o sentido do desfecho do
procedimento (regra da ponderação de todos os factos relevantes para decisão do
procedimento).
Por força do princípio do inquisitório, o dever de averiguação dos factos
relevante para a decisão não deixa de pertencer à Administração mesmo nos casos
em que a mesma solicitou a apresentação de provas aos interessados e estes não
cumpriram o seu dever de cooperação: veja-se, neste sentido, o artigo 119.º/2,
segundo o qual a falta de cumprimento da notificação é livremente apreciada para
efeitos de prova, consoante as circunstâncias do caso, não dispensando o órgão

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

administrativo de procurar averiguar os factos nem proferir a decisão. A solução só se


apresenta diferente quando as informações, documentos ou atos solicitados ao
interessado sejam necessários à apreciação do pedido por ele formulado, caso em
que não deve ser dado seguimento ao procedimento, disso se notificando o particular,
nos termos do artigo 119.º/3. Trata-se de um cenário em que o interessado goza de
uma espécie de monopólio de prova, não podendo exigir-se à Administração um dever
de averiguação de factos que só o interessado conhece ou do que só ele tem prova.
IV. Princípio da adequação ou discricionariedade procedimental;
Desde logo, em decorrência do princípio do inquisitório, a Administração
disporá, em regra, de uma margem de adequação do procedimento:
discricionariedade procedimental, conforme decorre do artigo 56.º CPA.
Neste sentido, a discricionariedade ou adequação procedimental desenvolve-
se apenas na medida em que não haja normas injuntivas: assim, por exemplo, o
responsável do procedimento não pode estruturar discricionariamente a tramitação de
modo a eliminar a exigência de solicitação de um parecer obrigatório ou a audiência
dos interessados. Além disso, o exercício da discricionariedade procedimental
pressupõe o respeito pelos princípios gerais da atividade administrativa.
Por outro lado, a lei estabelece critérios de orientação do exercício da
discricionariedade procedimental: interesses públicos da participação, da eficiência,
da economicidade e da celeridade na preparação da decisão.
Por fim, o artigo 57.º alude aos acordos endoprocedimentais, que abrangem os
acordos ou contratos sobre o exercício da discricionariedade procedimental. Com
efeito, o nº 1 diz que o órgão competente para a decisão final (aqui, parece-nos sem
possibilidade de delegação no responsável pela direção do procedimento) e os
interessados podem, por escrito, acordar os termos do procedimento. Além do mais,
estes acordos, estabelece o nº 2, têm efeito vinculativo e o seu objeto pode consistir
na organização de audiências orais para exercício do contraditório entre os
interessados que pretendam uma certa decisão e aqueles que se lhe oponham.
V. Princípio da boa administração;
(eficiência, economicidade e celeridade)
O artigo 5.º acolhe o princípio da boa administração nos seguintes termos: a
AP deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade. De facto, o
princípio da boa administração tem uma incidência muito particular no procedimento
administrativo. De resto, não será por acaso que a trilogia eficiência, economicidade e
celeridade corresponde ao critérios que orientam o exercício da discricionariedade
procedimental (arts. 56.º e 77.º/1).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Em particular, o artigo 59.º destaca o dever de celeridade, incumbindo o


responsável pela direção do procedimento e os outros órgãos intervenientes na
respetiva tramitação de providenciar por um andamento rápido e eficaz, quer
recusando e evitando o que for impertinente e dilatório, quer ordenando e promovendo
tudo o que seja necessário a um seguimento diligente e à tomada de uma decisão
dentro de um prazo razoável. Não obstante, a celeridade, enquanto valor do
procedimento, tem outras expressões na lei, nomeadamente, no artigo 61.º/1-c).
VI. Princípio da legalidade procedimental;
Sem prejuízo da discricionariedade procedimental, em muitos casos, existem
trâmites procedimentais obrigatórios (impostos por normas injuntivas): pode tratar-se
de prazos que têm de ser respeitados ou de diligências que a lei impõe (v.g.: parecer
obrigatório, audiência dos interessados); mas também pode tratar-se de diligências
que, não tendo de ocorrer, se ocorrerem, têm de se conformar com certas regras
legais. Nestes casos, a Administração tem de cumprir determinações que a lei
estabelece, no âmbito de um princípio de legalidade procedimental.
Em certos casos, o legislador estabelece, de forma completa ou quase
completa, o faseamento e a tramitação do procedimento: teremos, então, um
procedimento administrativo formalizado. No entanto, note-se que o grau de
formalização é variável, tendendo a mostrar-se especialmente elevado nos
procedimentos: sancionatórios (v.g.: procedimentos disciplinares ou de cancelamento
sancionatório de uma autorização); de seleção que envolvem a participação de
particulares com interesses concorrentes (v.g.: procedimentos de adjudicação de
contratos públicos); de resolução de litígios; e naqueles que servem a formação de
atos especialmente agressivos para os direitos dos particulares (v.g.: expropriação por
utilidade pública). Em todos estes casos, a formalização legislativa do procedimento,
que introduz rigidez e que tem o resultado de condicionar o trabalho procedimental
(vinculação procedimental da Administração), visa definir condições para a
consideração obrigatória, completa e imparcial dos fatores ou dimensões relevantes
para a decisão a adotar.
Em qualquer caso, a formalização projeta-se, essencialmente, na delineação
das fases ou dos momentos fundamentais da marcha do procedimento, bem como na
determinação de diligências obrigatórias, mas não exclui, de forma liminar, a
discricionariedade procedimental para a adoção de diligências que o órgão
competente entenda dever efetuar para se colocar em posição de decidir.
VII. Princípio da imparcialidade;
O princípio da imparcialidade conhece uma relevância geral no Direito
Administrativo e a sua incidência não se circunscreve, por conseguinte, ao

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

procedimento administrativo. Com efeito, o artigo 9.º formula o princípio nos seguintes
termos: a AP deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação,
designadamente considerando com objetividade todos e apenas os interesses
relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e
procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança
nessa isenção.
Apesar de não se limitar ao procedimento, este constitui um momento essencial
da vinculação da Administração ao princípio da imparcialidade, o qual se desdobra
numa dupla exigência. Em primeiro lugar, que, perante os eventuais interesses em
confronto, a Administração atue de forma isenta e objetiva e, sem distinção, pondere
adequadamente todos os interesses legítimos presentes no procedimento – no
desenvolvimento do procedimento não há uma necessária prevalência do interesse
público sobre os interesses dos particulares; neste sentido, a Administração deve
pautar a sua ação por um cânone de neutralidade, dispondo-se a ponderar e a
considerar, sem discriminação, todos os interesses legítimos que estejam
representados no procedimento e todos os factos relevantes para a decisão,
independentemente da respetiva fonte ou natureza. Depois, que os titulares dos
órgãos da Administração não contaminem a intervenção no procedimento
administrativo com a consideração de interesses pessoais – ocupam aqui um lugar
especial as garantias de imparcialidade e, em particular, o regime de impedimentos e
suspeições (art. 69.º e ss.).
VIII. Princípio da igualdade;
O princípio da igualdade conhece projeção ao nível do procedimento
administrativo na exigência imposta à Administração de dispensar um tratamento
igualitário a todos os intervenientes ou interessados em participar no procedimento:
neste sentido horizontal, que se confunde com o dever de atuação imparcial, o
princípio da igualdade opera tipicamente nos procedimentos de seleção concorrencial
e envolve uma dupla exigência, de garantia de igualdade de acesso e igualdade de
tratamento.
Ainda no contexto do procedimento, a doutrina alude a um sentido vertical do
princípio da igualdade, para referenciar a exigência de um tratamento paritário entre a
Administração e os particulares intervenientes no procedimento, mas também na
imposição de deveres à Administração de considerar factos alegados pelos
particulares ou de realizar diligências por eles requeridas ou ainda de lhes
proporcionar o contraditório.
IX. Princípio da decisão;

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

O artigo 13.º/1 formula o princípio da decisão. Apesar da referência, na epígrafe


do preceito, a um princípio de decisão, o que verdadeiramente se consagra no nº 1 é
um princípio de pronúncia.
Assim, os órgãos da AP – bem como quaisquer entidades abrangidos pelo
âmbito de incidência do CPA, nos termos do artigo 2.º/1 – têm o dever de se pronunciar
sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados. Assim,
ima petição, uma exposição ou uma queixa apresentada exige sempre uma pronúncia,
ou seja, uma resposta da Administração. Com essa apresentação, origina-se, sempre,
um dever de proceder para a Administração. No entanto, já não se exige, pelo menos
em regra, um dever de decisão, pois o teor da petição ou queixa pode não convocar
qualquer poder de decisão do órgão a quem se dirige.
Além do dever geral de resposta ou de pronúncia, a AP tem, em determinadas
condições, um específico dever de decisão. Eis o que sucede, em geral, quando um
interessado (com legitimidade procedimental), titular de uma posição jurídica
substantiva, solicita, através de um requerimento, à instância competente a produção
de um efeito jurídico que envolve o exercício de um poder de decisão e, portanto, a
prática de um ato administrativo (o artigo 128.º disciplina, neste sentido, o prazo para
a decisão do procedimento – 90 dias em regra, e, em regra, contado desde a data da
entrada do requerimento).
Ora, o artigo 129.º determina que a falta, no prazo legal, de decisão final sobre
a pretensão dirigida ao órgão administrativo competente constitui incumprimento do
dever de decisão, conferindo ao interessado a possibilidade de utilizar os meios de
tutela administrativa e jurisdicional adequados. Com efeito, o artigo 129.º salvaguarda
o disposto no artigo 13.º/2, que afasta o dever de decisão sempre que, há menos de
dois anos, contados da data da apresentação do requerimento, o órgão competente
tenha praticado um ato administrativo sobre o mesmo pedido, formulado pelo mesmo
particular com os mesmos fundamentos.
No procedimento do regulamento administrativo, dever de decisão corresponde
a um dever de emissão do regulamento. Sobre isto, o artigo 137.º/1 estabelece um
prazo de 90 dias para a adoção dos regulamentos necessários para dar exequibilidade
a atos legislativos carentes de regulamentação. Conforme se dispõe no nº 2, se o
regulamento não for emitido no prazo devido, os interesses diretamente prejudicados
pela situação de omissão podem requerer a emissão do regulamento ao órgão com
competência na matéria, sem prejuízo da possibilidade de recurso à tutela
jurisdicional.
X. Princípio da independência da decisão em relação ao pedido;

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Os órgãos da AP (e todas as entidades com poderes públicos de decisão


abrangidas pelo âmbito do CPA) podem decidir sobre coisa diferente ou mais ampla
do que a pedida, quando o interesse público assim o exija (art. 13.º/2).
Trata-se de um princípio aplicável aos procedimentos de iniciativa heterónoma,
que se deve interpretar com alguma cautelas, sobretudo, na parte em que se refere
ao decidir sobre coisa diferente. Assim, a Administração poderá decidir coisa diferente
do que lhes foi pedido se: tomar uma decisão sobre o pedido que lhe foi apresentado;
dispuser de competência oficiosa para tomar a decisão sobre coisa diferente (que não
lhe foi pedida).
Por sua vez, quanto à decisão sobre coisa mais ampla, torna-se igualmente
necessário que a Administração disponha de competência própria para, no âmbito de
um procedimento iniciado por impulso externo, decidir esse algo mais do que lhe foi
pedido: eis o que sucede, por exemplo, quando a Administração introduz cláusulas
acessórias (art. 149.º) ou cláusulas principais discricionárias na decisão que lhe foi
solicitada.
XI. Princípio da colaboração e da cooperação interadministrativa;
O procedimento administrativo, enquanto momento de formação de decisões
administrativas, é o espaço próprio para o desenvolvimento de relações de
colaboração e de cooperação entre diversos órgãos administrativos de uma mesma
entidade ou até de diversas entidades. As relações, os contatos e as formas de
articulação entre instâncias administrativas podem assumir feições muito variadas:
pedidos de pareceres, de estudos, da realização de ensaios ou de exames; referência
ao auxílio administrativo (art. 66.º) e às conferências procedimentais (arts. 77.º a 81.º).
Ora, o fenómeno da cooperação interadministrativa tem tido grande
desenvolvimento ao nível do direito da U.E., o qual estabelece exigências de
cooperação e de assistência mútua entre autoridades administrativas de diferentes
Estados-membros (art. 19.º).
XII. Princípio da tendencial gratuitidade do procedimento.
Apesar da epígrafe do artigo 15.º aludir a um princípio da gratuitidade, o nº 1
do preceito, de forma mais realista, vem estabelecer que o procedimento
administrativo é tendencialmente gratuito, e isto na medida em que leis especiais não
imponham o pagamento de taxas por despesas, encargos ou outros custos suportados
pela Administração. Nestes termos, mesmo com a reserva do caráter tendencial,
estamos, em rigor, não tanto perante um princípio jurídico, mas perante uma
proclamação sem conteúdo normativo útil – de resto, na ausência de lei especial a
impor o pagamento de taxas ou outras contraprestações, a proibição de as cobrar não

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

resultaria de qualquer princípio da gratuitidade, mas antes da proibição de criar


obrigações pecuniárias não previstas na lei (art. 161.º/2-k)).
Com relevo normativo, é já o disposto nos números 2 e 3: em caso de
insuficiência económica, a Administração isenta, total ou parcialmente, o interessado
do pagamento das taxas ou das despesas referidas no número anterior. A insuficiência
económica deve ser provada nos termos da lei sobre o apoio judiciário, com as devidas
adaptações.

- Sujeitos do procedimento administrativo.

Os atos que integram o procedimento são praticados por diferentes sujeitos: aos
sujeitos ou órgãos públicos responsáveis pelo ato principal do procedimento juntam-se outros
órgãos da mesma ou de outra pessoa coletiva pública, bem como, eventualmente, entidades
privadas contratadas para a realização de certas diligências. No outro polo da relação
procedimental, intervêm entidade de estatuto variado, mas, em geral, titulares de um interesse
relacionada com a matéria a que o procedimento se refere.
Deste modo, o procedimento surge como o momento de organização da intervenção
dos vários sujeitos envolvidos e a envolver na ação administrativa tendente à produção de um
certo resultado.
Ora, conforme se dispõe no artigo 65.º CPA, são sujeitos da relação jurídica
procedimental: os órgãos de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, cuja
conduta seja adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por
disposições de direito administrativo, quando competentes para a tomada de decisões ou para
a prática de atos preparatórios; os particulares (cidadãos e pessoas coletivas) legitimados nos
termos do artigo 68.º/1; pessoas singulares (cidadãos) e pessoas coletivas de direito privado,
em defesa de interesses difusos, segundo o artigo 68.º/2/3; os órgãos que exerçam funções
administrativas, quando se verifiquem as condições previstas no artigo 68.º/4. A este elenco
acrescentam-se: as autarquias locais, em relação à proteção de interesses difusos nas áreas
das respetivas circunscrições (art. 68.º/3); e os cidadãos residentes na circunscrição em que
se localize ou tenha localizado o bem defendido (art. 68.º/4).
Em conformidade com uma lógica de bipolarização da relação jurídica procedimental
(polo da AP versus polo do interessado em que se adote ou em que não se adote uma
determinada medida procedimental), o artigo 65.º/2 pressupõe a contraposição de dois tipos
de sujeitos do procedimento: por um lado, os sujeitos ou as entidades em que se integram os
órgãos competentes para a prática dos atos jurídico-públicos do procedimento (decisões finais
e atos preparatórios) e, por outro lado, de um modo genérico, os interessados. No entanto,
embora tenha presente a dicotomia entre sujeitos públicos e sujeitos privados da relação

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

jurídica procedimental (arts. 69.º/3 e 66.º/1), o CPA não utiliza essas categorias de forma
genérica, para identificar os polos da relação jurídica procedimental. Tudo indica que a lei
prefere trabalhar com a dicotomia que acabámos de identificar.

1. Órgãos responsáveis pelos atos jurídico-públicos do procedimento.

O artigo 65.º/2-a) inclui no elenco dos sujeitos da relação jurídica procedimental os


órgãos das entidades referidas no artigo 2.º/1, quando competentes para a tomada de
decisões ou para a prática de atos preparatórios. Como decorre do nº 2, esses são os sujeitos
da relação jurídica procedimental, sem estatuto de interessados.
A remissão para o artigo 2.º/1 tem o sentido de indicar que são sujeitos do
procedimento os órgãos de quaisquer entidades (independentemente da sua natureza) que
atuem investidas de poderes públicos.
Em cada procedimento, sujeito da relação jurídica procedimental não é apenas o órgão
com competência para a decisão final do procedimento. A mesma condição é partilhada pelos
órgãos competentes para a prática de atos preparatórios. A propósito, note-se o disposto no
artigo 69.º/3 que se refere, em paralelo, ao responsável pela direção do procedimento – que
é precisamente o órgão competente para a decisão final do procedimento ou um agente
dependente desse órgão (art. 55.º) – e a quaisquer sujeitos públicos da relação jurídica
procedimental.

2. A figura do responsável pela direção do procedimento.

Sem prejuízo da condição equivalente de todos os órgãos com competência para a


prática de atos públicos num dado procedimento, oferece-se indiscutível a posição singular
do órgão competente para a decisão final. Além da competência para a decisão final, de
conclusão do procedimento, esse órgão dispõe, em função dessa competência material, a
incumbência fundamental de conduzir e dirigir o procedimento (art. 55.º/1). Contudo, o artigo
55.º/2 determina ao órgão competente para a decisão final que delegue em inferior hierárquico
seu o poder de direção do procedimento. No caso de a competência de decisão caber a órgão
colegial, a delegação da direção do procedimento é conferida a membro do próprio órgão ou
a agente dele dependente.
Neste sentido, note-se que esta delegação é, em regra obrigatória. Por conseguinte,
só não o será se houver disposição legal, regulamentar ou estatutária ou quando a isso
obviarem as condições de serviço ou outras razões ponderosas, invocadas
fundamentadamente no procedimento concreto ou em diretiva interna respeitante a certos
procedimentos. Por força desta delegação, cada procedimento tem um responsável, um

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

agente da entidade a que pertence o órgão competente para a decisão final com a
incumbência específica de conduzir o procedimento.
Com efeito, na medida em que exerce as competências de direção do procedimento
(o que inclui a tomada de decisões com efeitos endoprocedimentais), o referido agente
assume a titularidade de um órgão administrativo: o órgão responsável peça direção do
procedimento (arts. 64.º/3, 110.º/3, 118.º/2 e 122.º/1). Ora, nos termos da lei, o responsável
pelo procedimento pode encarregar inferior hierárquico seu da realização de diligências
instrutórias específicas. Além do mais, note-se que a identidade do responsável pela direção
do procedimento é notificada aos participantes (interessados constituídos no procedimento) e
comunicada a quaisquer outras pessoas que, demonstrando interesse legítimo, requeiram
essa informação (arts. 55.º/3, 61.º/2 e 110.º/3).
A direção do procedimento é um termo genérico que referencia a incumbência ou
responsabilidade genérica de condução do desenvolvimento do procedimento, entre os
momentos da iniciativa e de tomada da decisão final. No seu núcleo fundamental, o papel do
responsável da direção do procedimento consiste em assegurar a realização das diligências
(consultivas, técnicas e probatórias) necessárias para a definição do sentido e do âmbito da
decisão do procedimento.
Neste sentido, entre outras, o CPA atribui ao responsável pela direção do
procedimento as seguintes competências e responsabilidades:
▪ Realização das diligências instrutórias (probatórias e consultivas);
Nos termos do artigo 115.º, o responsável pela direção do procedimento deve
procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja adequado e necessário à
tomada de uma decisão legal e justa dentro do prazo razoável, podendo, para o efeito,
recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito. Não carecem de prova nem
de alegação os factos notórios, bem como os factos de que o responsável pela direção
do procedimento tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções (estes
factos devem constar do processo documental).
Na realização de tais diligências, o responsável pela direção do procedimento
deve orientar-se pelos princípios da discricionariedade procedimental (art. 56.º), do
inquisitório (art. 58.º) e em conformidade com o dever de celeridade (art. 59.º).
Além das diligências probatórias, é o responsável pelo procedimento que dá
impulso para a realização das diligências consultivas que a lei imponha (pareceres
obrigatórios) ou que, no exercício de um poder de decisão próprio, ele entenda que
devem ter lugar (pareceres facultativos) – arts. 91.º e 92.º.
Por outro lado, o responsável pela direção do procedimento estabelece
relações diretas com os interessados (art. 117.º).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

▪ Dever de informação;
O responsável pela direção do procedimento é o sujeito passivo do direito à
informação procedimental dos interessados (arts. 82.º ss.).
▪ Realização da audiência;
É ao responsável pela direção do procedimento que cabe por em marcha o
trâmite da audiência, tendo competência para tomar decisões (endoprocedimentais)
neste âmbito, por exemplo, sobre se a audiência se processa por forma escrita ou oral
(arts. 121.º e ss). Dispõe ainda de competência decisória para dispensar a audiência
dos interessados (art. 124.º/1).
▪ Competência para a prorrogação do prazo do procedimento;
De acordo com o artigo 128.º, os procedimentos de iniciativa particular devem
ser decididos no prazo de 90 dias, salvo se outro prazo decorrer da lei, mas em
circunstâncias excecionais, esse prazo pode ser prorrogado pelo responsável pela
direção do procedimento, por um ou mais períodos, até ao limite máximo de 90 dias,
embora apenas mediante autorização do órgão competente para a decisão final,
quando, como é regra, as duas funções não coincidam no mesmo órgão.
▪ Responsabilidade pelo processo administrativo;
O responsável pela direção do procedimento é o responsável pelo processo
administrativo e pelo conjunto de documentos que o integram. Nos termos do artigo
64.º/3, deve rubricar todas as folhas do processo administrativo.
▪ Elaboração do relatório final do procedimento e proposta de decisão.
Quando o responsável pela direção do procedimento não for o órgão
competente para a decisão final, elabora um relatório no qual indica o pedido do
interessado, resume o conteúdo do procedimento, incluindo a fundamentação da
dispensa da audiência dos interessados, quando estão não tiver ocorrido, e formula
uma proposta de decisão, sintetizando as razões de facto e de direito que a justificam
(art. 126.º).

3. Interessados.

No outro polo da relação jurídica procedimental, surgem os interessados; têm esta


qualidade os sujeitos referidos nas alíneas b), c) e d) do artigo 65.º/1, que como tal nele se
constituam, ao abrigo dos títulos de legitimação previstos no artigo 68.º.
O artigo 68.º/1 determina genericamente que têm legitimidade para iniciar o
procedimento ou para nele se constituírem como interessados os titulares de direitos,
interesses legalmente protegidos, deveres, encargos, ónus ou sujeições no âmbito das
decisões que nele forem ou possam ser tomadas, bem como as associações, para defender

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

interesses coletivos ou proceder à defesa coletiva de interesses individuais dos seus


associados que caibam no âmbito dos respetivos fins.
Ora, a participação no procedimento administrativo não se limita aos titulares de
interesses pessoais, com radicação subjetiva (interesses singulares ou coletivos). Com efeito,
tendo em vista a proteção de interesses difusos, o artigo 68.º/2 alarga a legitimidade para
participação procedimental: aos cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e os
demais eleitores recenseados no território português; às associações e fundações
representativas de tais interesses; às autarquias locas, em relação à proteção de tais
interesses nas áreas das respetivas circunscrições.
Além disso, o artigo 68.º/4 permite a participação no procedimento, na condição de
interessados, de órgãos que exerçam funções administrativas quando as pessoas coletivas
nas quais eles se integrem sejam titulares de direitos ou interesses legalmente protegidos,
poderes, deveres ou sujeições que possam ser conformados pelas decisões que nesse
âmbito forem ou possam ser tomadas, ou quando lhes caiba defender interesses difusos que
possam ser beneficiados ou afetados por tais decisões. Com efeito, a qualidade de sujeito da
relação procedimental cabe ao órgão da pessoa coletiva. Tendo em conta as posições
jurídicas que conferem legitimidade procedimental a estes órgãos, pode dizer-se que a lei
pretende contemplar os casos em que sujeitos públicos surgem como interessados, quer
como titulares de situações jurídicas de direito público, quer como titulares de situações
jurídicas inerentes à capacidade de direito privado.

- As relações jurídicas procedimentais

No procedimento administrativo, intervém vários sujeitos que entre si estabelecem


relações jurídicas de caráter variado. Neste sentido, o procedimento é a base do
desenvolvimento de relações jurídicas que se processam no interior da AP ou relações entre
sujeitos da Administração e entidades particulares chamadas a colaborar com aqueles. De
facto, estas relações desenrolam-se no contexto e sob pretexto do procedimento, mas
apresentam, nesse âmbito um caráter instrumental ou acessório.
À referida “rede de relações procedimentais”, juntam-se as relações jurídicas
procedimentais principais que se processam entre o responsável pelo procedimento e os
interessados no ato final a produzir (p. ex.: relações entre o órgão competente para autorizar
e o requerente de autorização ou os terceiros com interesses contrários à atribuição da
autorização). Ora, estas relações procedimentais desenvolvem-se no quadro do exercício de
direitos subjetivos procedimentais e de ónus, mas também do cumprimento de deveres
procedimentais, os quais recaem, em primeira linha, sobre a AP. Nuns casos, os deveres da

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Administração são impostos diretamente por lei e são, portanto, de cumprimento oficioso;
noutros, os deveres emergem na sequência do exercício de direitos pelos interessados.

- Codificação do procedimento administrativo

O Direito Administrativo português conhece, desde 1991, um regime de codificação do


procedimento administrativo, com o Código do Procedimento Administrativo. Em janeiro de
2015, foi publicado o “novo CPA”.

1. Caráter híbrido do CPA.

O CPA é um código do procedimento administrativo. Todavia, as normas que o


integram não revestem, em todos os casos, o caráter de normas de procedimento, ou seja,
de normas de disciplina do modo de proceder da Administração.
Eis o que sucede com várias normas: sobre princípios gerais da atividade
administrativa que, em muitos casos, conhecem um sentido substancial e não procedimental
ou, em todo o caso, não apenas procedimental; sobre o regulamento administrativo e sobre o
ato administrativo, na medida em que cumprem a sua função principal de definir os contornos
das figuras e o respetivo regime jurídico substantivo; que conferem competências materiais a
órgãos da AP (normas de competência), incluindo a prática de atos administrativos, como são
os artigos 44.º/3, 70.º/4, 89.º e 169.º.
Em suma, o CPA não assume a natureza exclusiva de um código do ou sobre o
procedimento administrativo.

2. Procedimentos especificamente regulados no CPA.

O CPA não disciplina um procedimento-padrão ou modelo, de aplicação generalizada


na ação administrativa. Nem tão pouco disciplina um procedimento que defina, em termos
gerais, a marcha da tramitação de formação de um ato administrativo.
Sem prejuízo disso, o CPA regula, de uma forma tendencialmente completa, alguns
procedimentos, subprocedimentos ou fases procedimentais: é um código de procedimentos.
▪ Subprocedimento sobre funcionamento de órgãos colegiais;
▪ Procedimento de delegação de poderes;
▪ Procedimentos de resolução de conflitos de atribuições e competências;
▪ Subprocedimento de auxílio administrativo;
▪ Subprocedimentos de instituição de conferências procedimentais;
▪ Procedimentos de arguição e declaração de impedimentos e de pedido de dispensa de intervenção;
▪ Subprocedimentos de emissão de pareceres;

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

▪ Procedimento do regulamento administrativo;


▪ Procedimento de acesso à informação procedimental;
▪ Subprocedimentos de notificação;
▪ Subprocedimento de adoção de medidas provisórias;
▪ Procedimento de execução do ato administrativo;
▪ Procedimentos de revogação e de anulação administrativa;
▪ Procedimentos de impugnação administrativa de atos administrativos.

3. Âmbito de aplicação do CPA.

O artigo 2.º/1 cumpre a função de identificar o âmbito (subjetivo) de aplicação dos três
universos de disposições do CPA: disposições respeitantes aos princípios gerais da atividade
administrativa; disposições respeitantes ao procedimento administrativo; disposições
respeitantes à atividade administrativa.
Com efeito, o âmbito subjetivo desses três universos normativos (quaisquer entidades)
é definido com apoio num critério material (tem por objeto uma conduta), conjugado com um
critério ou elemento normativo (conduta adotada no exercício de poderes públicos ou regulada
de modo específico por disposições de direito administrativo).
No entanto, o triplo bloco de disposições (cujo âmbito de incidência se baseia no
referido critério material-normativo) não esgota a regulamentação do CPA: de fora fica a Parte
II, sobre os órgãos da AP, a qual é aplicável – tendencialmente apenas – aos órgãos da AP.
Neste caso, o âmbito subjetivo de aplicação do CPA funda-se num critério orgânico (AP). O
mesmo critério orgânico surge, ainda, no artigo 3.º/2.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

CAPÍTULO III – REGULAMENTO ADMINISTRATIVO

1. Noção e fundamento.
1.1. Importância e fundamento da atividade regulamentar.
2. Tipos de regulamentos.
2.1. Quanto ao âmbito de aplicação.
2.2. Quanto à eficácia.
2.3. Mediata ou imediatamente operativos.
3. Espécies de regulamentos gerais externos.
3.1. Classificação e admissibilidade constitucional.
4. Procedimento e forma dos regulamentos.
5. Princípios jurídicos relativos à atividade regulamentar.
5.1. Os princípios gerais da atividade administrativa.
5.2. O regime especial aplicável à atividade regulamentar.
6. Relações entre regulamentos administrativos externos.
7. Invalidade dos regulamentos.
8. A jurisprudência do TC em matéria de regulamentos administrativos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

CAPÍTULO III – REGULAMENTO ADMINISTRATIVO

- Noção e fundamento.

Para efeitos do disposto no CPA, consideram-se regulamentos administrativos as


normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos,
visem produzir efeitos jurídicos externos.
Os regulamentos são quaisquer normas emanadas pelos órgãos ou autoridades
competentes no exercício da função administrativa, com valor infra-legal (regulamentar) e
destinadas, em regra, à aplicação das leis ou de normas equiparadas (designadamente, das
disposições normativas diretamente aplicáveis da UE).
Não obstante, note-se que alguns regulamentos têm como objeto relações jurídicas
privadas ou não-administrativas, como, por exemplo, certos regulamentos emanados de
autoridades reguladoras e os regulamentos de extensão de contratos coletivos de trabalho.
Com efeito, esta noção ampla abrange, além dos regulamentos tradicionais: os
estatutos auto-aprovados de entes corporativos (associações públicas) ou institucionais
(universidades); os regimentos de órgãos colegiais; as convenções administrativas de caráter
regulamentar; os planos (e documentos estratégicos) de gestão territorial e os programas de
concursos, designadamente, na contratação pública.
Em suma, o regulamento caracteriza-se como norma geral (com destinatários
indeterminados) e abstrata (aplicável a situações da vida indeterminadas), de execução
permanente (vigência sucessiva) e distingue-se do ato administrativo em sentido estrito –
embora haja problemas de fronteira, especialmente, quanto à qualificação e ao regime das
decisões gerais concretas e das disposições individuais abstratas.

1. Importância e fundamento da atividade regulamentar.

A importância da atividade regulamentar manifesta-se, quer na organização dos


serviços administrativos (regulamentos orgânicos ou organizativos) e na disciplina do
funcionamento da administração (regulamentos funcionais ou operacionais), quer na
regulação das relações jurídicas entre entes públicos e particulares (regulamentos
relacionais). Neste sentido, note-se que os regulamentos relacionais visam preencher os
espaço normativo entre a lei e a atuação administrativa concreta, abrangendo, em princípio,
matérias de menor importância, mais técnicas ou sujeitas a mutações mais rápidas, que não
devem ocupar o legislador nem constar de diplomas legais, mas cuja regulação, por razões
de segurança e previsibilidade, de igualdade ou de transparência, não deve ser deixada
totalmente ao decisor nos casos concretos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Ora, em Portugal, não existindo uma reserva constitucional de regulamento e dispondo


o Governo de poderes legislativos normais sobre quaisquer matérias que não sejam
reservadas pela Constituição ao Parlamento, o espaço regulamentar estadual é
frequentemente ocupado por decretos-leis, seja porque estes disciplinam aspetos
secundários ou pormenorizados dos regimes jurídicos, seja porque as leis, ao disciplinarem
as bases gerais dos regimes, determinam que a respetiva regulamentação se faça sob a
forma de decreto-lei (decretos-leis regulamentares).

- Tipos de regulamentos.

1. Quanto ao âmbito de aplicação.

Quanto ao seu âmbito de aplicação, os regulamentos podem ser: gerais, quando


regulam relações externas, relativas à generalidade das pessoas; especiais, quando regulam
relações jurídicas especiais de direito administrativo dom dimensões internas e externas; e
setoriais, quando regulam um setor de atividade económica e social. Além do mais,
atualmente, ganham importância, com vinculatividade jurídica variável, os regulamentos
técnicos, muitas vezes emanados de autoridades, organismos ou agências transnacionais,
umas públicas, outras privadas.

2. Quanto à respetiva eficácia.

Uma das principais classificações é a que, tendo em conta a respetiva eficácia,


distingue entre regulamentos externos e regulamentos internos. Desde já, note-se que as
linhas atuais da distinção devem ter em conta a pluralização subjetiva das administrações
públicas, bem como o desenvolvimento jurídico das relações especiais de direito
administrativo (designadamente, pela relevância que nelas hoje se reconhece aos DLG’s).
Concretizando: são externos os regulamentos aplicáveis a quaisquer relações
intersubjetivas (também às relações inter-administrativas); e são internos os regulamentos
que se limitam a disciplinar a organização ou funcionamento de uma pessoa coletiva ou de
um órgão, na medida em que não tenham caráter relacional nem envolvam dimensões
pessoais, bem como os regulamentos operacionais que determinam auto-vinculações
internas (incluindo diretrizes de órgãos superiores) na interpretação e aplicação das leis,
designadamente, no exercício de poderes discricionários.
Assim, os regulamentos especiais contém, em regra, normas internas que dizem
respeito à relação orgânica, mas devem considerar-se externos, na medida em que afetem
posições jurídicas subjetivas dos indivíduos envolvidos, enquanto pessoas. No mesmo

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

sentido, os regimentos de órgãos colegiais, que, sendo em princípio internos, contém muitas
vezes normas que respeitam a direitos dos membros (sendo, nessa medida, externos).
As diferenças entre regulamentos externos e internos revelam-se, desde logo, quanto
ao seu fundamento: a competência regulamentar externa funda-se em previsão legal
expressa; a competência regulamentar interna funda-se num poder implícito de auto-
organização administrativa (que, por isso, não necessita de previsão expressa na lei).
No entanto, existem também diferenças de regime: ao contrário do que acontece com
os regulamentos externos, cujo regime está estabelecido no CPA, os regulamentos internos
não são judicialmente impugnáveis (não podem ser objeto de ação judicial, nem relevam como
padrões jurídicos autónomos de controlo pelo juiz), nem vale para eles o princípio da
inderrogabilidade (admitem-se decisões concretas divergentes da regulação interna anterior,
devidamente justificadas). Apesar disso, os regulamentos internos têm relevância jurídica,
designadamente, os regulamentos operacionais, que estabelecem diretrizes auto-vinculativas
para o exercício do poder discricionário: por um lado, são impugnáveis no âmbito da
Administração (designadamente, em recursos hierárquicos ou tutelares); por outro lado, o seu
incumprimento, embora não origine por si a invalidade da decisão divergente, pode ser
sintoma ou indício de arbitrariedade, de violação do princípio da igualdade ou de mau uso dos
poderes discricionários, suscetíveis de invocação perante o tribunal em quaisquer ações
(designadamente, na impugnação de atos e nas ações de responsabilidade civil
administrativa).

3. Mediata ou imediatamente operativos.

Em regra, os regulamentos são mediatamente ou indiretamente operativos – na


medida em que regulam em abstrato as atuações administrativas, os seus efeitos só se
produzem na esfera jurídica dos destinatários através de atos concretos de aplicação,
administrativos ou judiciais.
Porém, existem regulamentos diretamente ou imediatamente operativos, que
produzem os seus efeitos diretamente na esfera jurídica dos destinatários, sem necessidade
de um ato específico de aplicação, bastando que a pessoa preencha em concreto os
requisitos fixados abstratamente na norma – é isso que acontece, por exemplo, com os
regulamentos que proíbem (obrigação incondicional de abstenção ou de renúncia a
comportamento) ou impõem (obrigação de comportamento vinculado) condutas específicas a
pessoas determinadas ou determináveis, bem como os que determinam ou modificam um
determinado estatuto (de pessoas ou coisas) ou os que fixam o custo de um bem ou serviço
(tarifas, taxas, propinas). Ora, também são regulamentos imediatamente operativos os planos
urbanísticos com eficácia plurisubjetiva (planos municipais e planos especiais de

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

ordenamento do território), na medida em que, além das entidades públicas, vinculam direta
e imediatamente os particulares.
Por fim, note-se que esta distinção é relevante para vários efeitos, nomeadamente, no
que toca à impugnação dos regulamentos.

- Espécies de regulamentos gerais externos.

1. Classificação e admissibilidade constitucional.

De um ponto de vista dogmático-prático, a distinção principal entre os regulamentos


gerais externos é aquela que se refere à sua relação com a lei:
I. Regulamentos executivos;
Os regulamentos executivos ou de execução de lei, que são necessários à
execução ou, pelo menos, à boa execução das leis: organizam procedimentos,
pormenorizam, interpretam, ou integram lacunas (por analogia, no quadro da lei
respetiva) de leis específicas.
Admissibilidade Constitucional
Os regulamentos de execução integram a categoria dos regulamentos comuns
ou típicos e não são seguramente abrangidos e afastados pelo artigo 112.º/5 CRP,
apesar de a formulação do preceito constitucional não ser inequívoca nas referências
que faz à proibição de interpretar e integrar – no que respeita aos regulamentos do
Governo há uma previsão expressa no artigo 199.º/-c).
II. Regulamentos complementares;
No âmbito dos regulamentos complementares, podemos distinguir entre os que
visam completar um determinado regime legal, seja desenvolvendo-o, quando a lei se
limite a estabelecer as respetivas bases gerais (regulamentos de desenvolvimento),
seja utilizando o quadro legal para regular situações especiais não previstas
(regulamentos de integração, também ditos de utilização de lei ou integrativos).
Admissibilidade Constitucional
Os regulamentos complementares de desenvolvimento, embora não sejam
proibidos diretamente pelo artigo 112.º/5 da CRP, não têm entre nós razão de ser, em
face da competência legislativa alargada de que goza o Governo e, especificamente,
da figura dos decretos-leis de desenvolvimento (art. 198.º/1-c)).
Por sua vez, os regulamentos de integração, apesar de aparentemente
proibidos pelo artigo 112.º/5, devem considerar-se admissíveis, desde que
expressamente autorizados por lei, quando se limitem a adaptar o quadro legal a
situações especiais (obviamente, fora da zona de reserva de lei formal), bem como

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

quando se trate de regulamentos produzidos no quadro de uma autonomia legislativa


legalmente reconhecida (por exemplo, a autonomia regulamentar das administrações
autónomas) – integração tem de fazer-se dentro do espírito da lei, de acordo com o
princípio da legalidade (analogia legis).
III. Regulamentos independentes;
Os regulamentos independentes, embora não dispensem uma norma legal que
fixe a respetiva competência (norma habilitante), não visam executar, complementar
ou aplicar uma lei específica (não têm como objeto uma determinada lei), mas
dinamizar a ordem jurídica em geral (em regra, um conjunto de leis), disciplinando
inicialmente certas relações sociais: seja no exercício de poderes próprios de produção
normativa primária pelas comunidades autoadministradas (regulamentos autónomos);
seja no exercício da competência universal do Governo em matéria administrativa
(regulamentos independentes governamentais); seja, por fim, no exercício de poderes
normativos genéricos concedidos por lei a autoridades reguladoras (regulação
independente).
Admissibilidade Constitucional
São admissíveis os regulamentos independentes autónomos,
designadamente, os provenientes: das autonomias territoriais – os regulamentos
regionais e locais estão constitucionalmente garantidos (arts. 227.º/d) e 241.º) e a sua
emissão está legalmente prevista e atribuída aos órgãos competentes pela lei
(Estatutos das Regiões Autónomas, Lei das Autarquias Locais); das autonomias
profissionais, embora apenas com base em habilitações legais (Lei das Associações
públicas profissionais); e, porventura, ao menos em certa medida, os estatutos
universitários (com base na Constituição e na Lei da Autonomia das Universidades).
A Constituição prevê expressamente a existência dos regulamentos
independentes governamentais (art. 112.º/6), embora a doutrina se divida entre os que
exigem, também aí, uma lei específica habilitante que defina a competência objetiva
(matéria específica) e subjetiva (órgão competente) para a sua emissão (art. 112.º/7)
e os que os admitem, genericamente, fora da zona reservada à lei, com base no
disposto nos artigos 112.º/6 e 199.º/-g) (na medida em que estas normas constituem
uma habilitação direta do Governo, enquanto órgão administrativo competente para a
prática de atos normativos). De notar, ainda, que a utilidade desta forma de decreto
regulamentar, face à de decreto-lei, está na insusceptibilidade de sujeição a
apreciação parlamentar (art. 169.º) e à fiscalização preventiva da constitucionalidade
(art. 278.º).
Por fim, note-se que é discutível se devem considerar-se como regulamentos
independentes os provenientes de autoridades reguladoras, ainda que estas possam

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

ser consideradas entidades administrativas independentes – os regulamentos dessas


autoridades, que não constituem administrações autónomas, só deveriam valer como
regulamentos de execução de leis, não bastando uma referência legal às atribuições
da entidade, mas verifica-se que as leis, designadamente no quadro da privatização
de atividades de interesse público, deslegalizaram ou abriram espaços significativos a
favor da regulação técnica, de modo que tais regulamentos se tornam regulamentos
complementares, quando não se arrogam mesmo o caráter independente.
IV. Regulamentos autorizados;
São os regulamentos pelos quais a Administração, com base em habilitação
legal expressa, regula matéria que, em princípio, sobretudo pelo seu caráter inovatório,
caberia à lei.
Admissibilidade Constitucional
Embora devam considerar-se proibidos em geral, serão admissíveis em casos
particulares – por exemplo, os regulamentos dos planos urbanísticos podem
considerar-se como uma espécie de regulamentos autorizados, na medida em que
coordenam interesses de diversos níveis (nacionais, regionais e locais, sejam gerais
ou especiais).
V. Regulamentos de substituição.
Os regulamentos de substituição ou delegados são aqueles em que a
Administração é admitida a atuar em vez do legislador, modificando, suspendendo ou
revogando normas contidas em diplomas legais.
Admissibilidade Constitucional
Os regulamentos de substituição são hoje inequivocamente proibidos pelo
artigo 112.º/5, que, em homenagem à ideia de reserva de lei formal, não admite, nem
a delegação propriamente dita, nem sequer a deslegalização – note-se, em contraste,
que este tipo de regulamentos é admitido no ordenamento da UE.

- Procedimento e forma dos regulamentos.

1. Procedimento regulamentar.

Sem prejuízo das leis especiais que regem os procedimentos de formação de diversos
regulamentos, o CPA estabelece regras gerais relativas ao procedimento regulamentar,
prevendo a possibilidade de petição dos interessados e os requisitos da iniciativa pública,
disciplinando a audiência dos interessados e a consulta pública (arts. 97.º a 101.º CPA).
Como novidade introduzida em 2015, atente-se na obrigação de os regulamentos
serem aprovados com base num projeto, acompanhado de uma nota justificativa

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

fundamentada, que deve incluir uma ponderação dos custos e benefícios das medidas
projetadas (art. 99.º).
Tratando-se de normas de aplicação geral, impõe-se a publicação dos regulamento no
Diário da República, dos regulamentos do Governo e das Regiões (art. 119.º/1-h) CRP) e em
boletim autárquico ou em edital, dos regulamentos das autarquias locais. Com efeito,
certamente por lapso, o artigo 139.º CPA prevê a publicação de todos os regulamentos no
Diário da República, devendo a norma ser objeto de restrição teleológica, em termos de excluir
os regulamentos das administrações autónomas.
Embora se trate de um aspeto formal, impõe-se a indicação expressa da lei
habilitadora, que o TC tem fiscalizado com severidade, seja da lei que o regulamento visa
executar, seja, nos casos de regulamentos autónomos e independentes, da lei (ou da norma)
que autoriza a respetiva emissão (arts. 112.º/7 CRP e 136.º/2 e 3 CPA).
Esta habilitação legal prévia vale também para quaisquer comunicações dos órgãos
da AP que, ainda que não constituam regulamentos para efeitos do CPA, estabeleçam
padrões de conduta da vida em sociedade, independentemente da denominação ser diretiva,
recomendação, instruções, entre outros (art. 136.º/3 CPA).

2. Formas regulamentares mais importantes.

Os diplomas do Governo tomam a forma de decretos regulamentares


(necessariamente, quando sejam regulamentos independentes – art. 112.º/6 CRP), de
resoluções do Conselho de Ministros (quando estas contenham regulamentos), de portarias
genéricas (emanadas por um ou mais ministérios, mas em nome do Governo) e de despachos
normativos (ministeriais).
Os regulamentos regionais assumem a forma de decretos regulamentares regionais
(art. 233.º/1 CRP).
Os regulamentos das autarquias locais não têm forma típica, embora os regulamentos
locais de polícia adotem a forma de posturas.
Os restantes regulamentos, emanados pelos entes institucionais e corporativos –
estaduais ou autónomos – não revestem formas solenes específicas, salvo quanto aos
estatutos auto-aprovados.

- Princípios jurídicos relativos à atividade regulamentar externa

1. Os princípios gerais da atividade administrativa.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

A atividade regulamentar está sujeita aos princípios gerais que regem a atividade
administrativa.
Desde logo, aos princípios da legalidade: além do primado da lei (e da Constituição) e
da precedência da lei, revestem especial importância em sede de regulamentos o princípio
constitucional da reserva parlamentar e o consequente imperativo de densidade legal
acrescida (determinidade) – nas matérias reservadas ao parlamento, admitem-se, em geral,
os regulamentos executivos, mas são inadmissíveis regulamentos independentes do
Governo, e só em determinada medida serão admissíveis regulamentos independentes
autónomos.
Também valem os princípios substanciais da juridicidade – designadamente, os
princípios da igualdade (não discriminação) e da proporcionalidade – que são válidos para
todos os regulamentos, incluindo os regulamentos predominantemente técnicos emanados
das autoridades reguladoras.

2. O regime especial aplicável à atividade regulamentar.

Há um conjunto de regras, proposições e princípios especiais, definidos pela doutrina


e pela jurisprudência, que agora constam em grande medida do CPA (arts. 137.º a 147.º),
constituindo um regime normativo próprio dos regulamentos externos (distinto do regime dos
atos legislativos).
▪ A obrigatoriedade da emissão e a proibição da simples revogação dos regulamentos
executivos que sejam necessários à execução das leis (art. 137.º CPA);
▪ A caducidade do regulamento como efeito da revogação da lei que visa executar, salvo
na parte ou na medida em que ele seja compatível com a nova lei e enquanto não
houver nova regulamentação (para evitar o vazio normativo – art. 145.º);
▪ A regra da irretroatividade dos regulamentos desfavoráveis (art. 141.º) – com algumas
compressões naturais: regulamentos de leis retroativas, regulamentos necessários à
execução de leis;
▪ A regra da inderrogabilidade singular (art. 142.º/2), nos termos da qual os
regulamentos (diferentemente do que acontece com as leis, que são reversíveis) não
obrigam só os particulares, mas também a própria Administração que os elaborou, de
modo que nenhuma autoridade administrativa pode deixar de o cumprir nos casos
concretos, enquanto ele se mantiver em vigor (mesmo que seja autora do
regulamento, caso em que terá de o revogar antes de poder dele divergir);
▪ A admissibilidade excecional da recusa de aplicação por órgãos administrativos de
regulamentos que considerem inconstitucionais, contrários ao direito da união
europeia ou ilegais – só em condições especiais (antijuridicidade manifesta) e por

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

certas autoridades (por ministros ou órgãos superiores da administração autónoma,


designadamente, quando tenham, eles próprios, competência regulamentar);
▪ A impugnabilidade administrativa, mediante reclamação para o autor do regulamento
ou recurso para órgão competente para a respetiva modificação, revogação ou
declaração de invalidade, caso exista (art. 147.º);
▪ A impugnabilidade judicial direta, fundada na ilegalidade, garantida
constitucionalmente aos titulares de direitos ou interesses legalmente protegidos (art.
268.º/5 CRP) – que opera de forma diferente consoante o tipo de regulamento:
mediante impugnação e fiscalização concreta (desaplicação no caso) dos
regulamentos que sejam imediatamente operativos; mediante fiscalização abstrata
(declaração de ilegalidade com força obrigatória geral) dos regulamentos não
imediatamente operativos, a qual, no entanto, é limitada, visto que, por um lado, só é
admitida (salvo para o MP) depois da desaplicação do regulamento em três casos
concretos (por sentenças de anulação de atos concretos de aplicação do regulamento,
com fundamento na antijuridicade deste), e, por outro lado, não é admissível quando
esteja em causa apenas a inconstitucionalidade do regulamento (cujo conhecimento
é reservado ao TC, a pedido de entidades competentes para requerer a fiscalização
abstrata de normas jurídicas, nos termos do artigo 281.º CRP).

- As relações entre regulamentos administrativos externos

Em geral, valem os princípios da ausência de hierarquia e da igualdade de valor típico


entre regulamentos externos – todos têm valor de regulamento (infra-legal e infra-
constitucional), embora haja várias exceções ou compressões desses princípios, como resulta
do CPA (art. 138.º).
Os diversos regulamentos têm o seu campo de aplicação específico, eventualmente
cumulativo, em conformidade com as atribuições e competências próprias de cada autoridade
– princípio da atribuição ou competência – de modo que não haverá, na grande maioria dos
casos, conflitos normativos reais.
Assim, os eventuais conflitos na aplicação de regulamentos são resolvidos, em
primeira linha, se for caso disso, pelas regras aplicáveis à relação entre normas gerais e
normas especiais (preferência de aplicação da norma especial, ainda que anterior).
Relativamente aos regulamentos governamentais, há uma natural ordem de
prevalência (preferência aplicativa): decretos regulamentares (pelo seu valor formal reforçado
pela promulgação pelo PR); resoluções normativas do Conselho de Ministros (pelo seu valor
substancial reforçado), portarias normativas, despachos genéricos (art. 138.º/3).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

No que respeita a regulamentos provenientes de órgãos colocados entre si numa


situação de hierarquia ou de superintendência, os regulamentos da autoria dos órgãos
subalternos ou superintendidos não podem contrariar os regulamentos emanados pelos
superiores ou superintendentes sobre matéria que seja de atribuição e competência comum.
Nestes casos, a contrariedade implica a invalidade (art. 143.º/2-a), b)).
No quadro das autarquias institucionais e corporativas que disponham de autonomia
estatutária, os respetivos estatutos constituem regulamentos de enquadramento, uma espécie
de regulamentos reforçados – por isso, são inválidos os regulamentos e regimentos
emanados dos respetivos órgãos que violem os estatutos nos quais se funde a competência
para a respetiva emissão (art. 143.º/2-c)).
▪ Regulamentos das autarquias locais;
O problema mais complicado é o que envolve os regulamentos das
autarquias locais, por se tratar de pessoas coletivas públicas de fins múltiplos.
Nos termos do artigo 241.º CRP, os regulamentos das autarquias locais devem
respeitar os limites da Constituição, das leis dos regulamentos emanados das
autarquias locais de grau superior (isto é, das que têm jurisdição territorial mais
ampla) ou das autoridades com poder tutelar (Governo ou governos regionais).
No entanto, este preceito não deve ser interpretado no sentido de
estabelecer uma relação de subordinação abstrata, hierárquica e automática
entre regulamentos, com a consequência da invalidade das normas
subordinadas. Por um lado, a supremacia há-de consistir numa mera
prevalência (preferência aplicativa) dos regulamentos preferidos. Por outro
lado, a prevalência dos regulamentos governamentais só é admissível
relativamente às matérias de interesse nacional e na medida em que a lei
determine a existência de tutela normativa do Governo ou dos governos
regionais, tutela que não se presume.
Nas matérias de sobreposição de atribuições e de competências
governamentais (nacionais ou insulares) com atribuições e competências
autárquicas, a prevalência deve ser avaliada em cada tipo de situações, em
função das normas de competência, interpretadas no contexto do sistema
constitucional, tendo em conta que os princípios da subsidiariedade, da
autonomia local e da descentralização democrática da AP limitam o princípio
da prevalência do interesse nacional – devendo privilegiar-se os princípios da
cooperação e de coordenação entre interesses nacionais e locais contra uma
conceção estatista e centralizadora da AP.
Assim, se não for possível a aplicação cumulativa das normas nacionais
e autárquicas, entendemos que devem valer as normas autárquicas, enquanto

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

normas especiais, salvo se a preferência das normas governamentais se


impuser, seja perante a deficiência da regulamentação local, seja pela
necessidade imperiosa de assegurar uma realização uniforme do interesse
nacional.

- A invalidade dos regulamentos

▪ Os regulamentos são inválidos se forem desconformes com a Constituição, a


lei, os princípios gerais de direito ou infrinjam normas de direito internacional e
direito europeu (art. 143.º/1);
▪ A ilegalidade (antijuridicidade) por ação – com a consequente invalidade do
regulamente, com regimes diferenciados, conforme os vícios sejam
substanciais ou formais: em princípio, é invocável a todo o tempo, mas está
sujeita a um prazo e à oficiosidade a arguição das ilegalidade formais e
procedimentais, salvo nos casos de preterição absoluta de forma legal ou
preterição de consulta pública obrigatória (art. 144.º) – e a ilegalidade por
omissão (quando a emissão do regulamento seja necessária à execução da
lei);
▪ A tutela judicial efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos em matéria regulamentar (art. 268.º/5 CRP): as ações administrativas
especiais de impugnação de normas ou de declaração de ilegalidade por
omissão;
o A declaração judicial de ilegalidade com força obrigatória geral (em
regra, após desaplicação em três casos concretos) e desaplicação
concreta de regulamentos imediatamente operativos;
o Os efeitos retroativos (ex tunc) e repristinatórios da declaração de
invalidade com força obrigatória geral, embora não afete os casos
julgados e os atos administrativos impugnáveis favoráveis aos
destinatários (art. 144.º/3 e 4);
o A declaração de ilegalidade por omissão e fixação de prazo (não inferior
a 6 meses) para a respetiva emissão (fixação de prazo que deve ser
entendida como condenação.

- A jurisprudência do TC em matéria de regulamentos administrativos

▪ O rigor formalista no cumprimento da lei habilitante, de algum modo suavizado por o


Tribunal ter admitido que o artigo 112.º/7 não impõe a indicação da lei definidora da

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

competência que conste de um qualquer trecho determinado do regulamento, e tem


considerado suficiente a mera referência à lei habilitante no articulado do regulamento,
ainda que dele não conste a expressa indicação que se pretendia proceder à
regulamentação daquela lei;
▪ O limite constitucional da regulação primária por lei da matéria de DLG’s, face a
regulamentos policiais, regulamentos das autarquias locais e regulamentos
autónomos de Ordens profissionais;
▪ O limite constitucional da reserva de lei em matéria de impostos e na definição do
regime geral das taxas;
▪ A reserva de função legislativa e o imperativo de densidade e determinidade normativa
da lei em matéria de fixação de regime sancionatório, implicando a
inconstitucionalidade do regulamento que fixou aspetos fundamentais desse regime.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

CAPÍTULO IV – ATO ADMINISTRATIVO

1. Conceito de ato administrativo.


1.1. Comportamento declarativo.
1.1.1. Ato administrativo ficcionado.
1.1.1.1. Ato administrativo implícito.
1.1.1.2. Ato administrativo concludente.
1.1.1.3. Ato administrativo tácito.
1.2. Dimensão decisória.
1.2.1. Capacidade para a prática de atos administrativos.
1.3. Ato administrativo e função administrativa.
1.4. Disciplina para uma situação individual e concreta.
1.5. Produção de efeitos jurídicos externos.
2. Funções do ato administrativo.
3. Classificação dos atos administrativos.
3.1. Algumas espécies doutrinárias de atos administrativos com relevo prático.
3.2. Classificação dos atos administrativos quanto ao conteúdo.
4. Procedimento do ato administrativo.
4.1. Iniciativa.
4.1.1. Iniciativa particular.
4.1.2. Iniciativa oficiosa.
4.1.3. Hétero-iniciativa pública.
4.2. Instrução.
4.3. Audiência dos interessados.
4.3.1. Sequência.
4.4. Decisão.
4.5. Integração de eficácia.
5. Eficácia e execução do ato administrativo.
5.1. Eficácia do ato administrativo.
5.1.1. A distinção teórica entre validade e eficácia de atos administrativos.
5.1.2. Atos de eficácia instantânea e atos de eficácia duradoura.
5.1.3. Início da eficácia.
5.1.4. As regras sobre a contagem da eficácia no CPA.
5.2. Execução do ato administrativo.
5.2.1. Evolução histórica da ideia de executoriedade.
5.2.2. Alargamento do conceito de executoriedade.
5.2.3. Desenvolvimentos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

5.2.4. O procedimento de execução e as garantias dos particulares.


5.2.5. Modalidades de execução coativa.
6. Requisitos de validade e invalidade do ato administrativo.
6.1. Inexistência do ato administrativo.
6.2. Tipos de invalidade.
6.3. As diferenças de regime legal entre a nulidade e a anulabilidade.
6.4. A nulidade.
6.4.1. O princípio da taxatividade das causas de nulidade.
6.4.2. Os novos casos de nulidade.
6.4.3. A posição adotada.
6.4.4. A determinação/identificação da lei que “comine expressamente essa forma de
invalidade”.
6.5. A anulabilidade dos atos administrativos.
6.5.1. Os fundamentos da anulação.
6.6. Conexão entre os vícios e tipos de invalidade de atos.
6.6.1. Vícios relativos ao sujeito.
6.6.2. Vícios relativos ao objeto.
6.6.3. Vícios relativos à estatuição.
6.6.3.1. Vícios substanciais.
6.6.3.1.1. O fim.
6.6.3.1.2. O conteúdo.
6.6.3.2. Vícios formais.
6.6.3.2.1. Vícios de procedimento.
6.6.3.2.2. Vícios de forma.
7. Revisão dos atos administrativos.
7.1. A declaração de nulidade dos atos.
7.1.1. O CPA de 2015.
7.1.2. Alcance da nulidade dos atos perante os seus destinatários.
7.1.3. Restrição do poder de declarar a nulidade.
7.1.4. Dever de ponderar os efeitos putativos do ato nulo.
7.1.5. Alargamento do princípio do aproveitamento dos atos administrativos aos atos
nulos.
7.2. A anulação administrativa de atos.
7.2.1. Anulação versus revogação.
7.2.2. Competência para anular.
7.2.3. Forma e formalidades.
7.2.4. Condicionalismos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

8. Impugnação de atos administrativos e reação contra a omissão de atos


administrativos.
8.1. Tipos de impugnações e de reações contra omissões.
8.2. Reclamação.
8.3. Recurso hierárquico.
8.4. Recursos administrativos especiais.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

CAPÍTULO IV – ATO ADMINISTRATIVO

- Conceito de ato administrativo.

O ato administrativo apresenta-se como o ato jurídico da AP tipicamente associado ao


exercício da função administrativa de autoridade, representando a figura clássica do Direito
Administrativo, é o epicentro das formas de ação administrativa.
Com efeito, em resultado das notas que o caracterizam (dimensão de autoridade e
caráter concreto e individual) e do seu regime jurídico, o ato administrativo exprime a nota de
autotutela declarativa que caracteriza o sistema da administração executiva, que, aliás,
também se pode designar sistema de administração de ato administrativo: trata-se de uma
fórmula que representa a imagem de um sistema jurídico em que a Administração detém um
poder próprio para adotar medidas que, sem necessidade de recurso aos tribunais, provam
alterações na esfera jurídica dos destinatários, ainda que contra a vontade destes.
Ora, embora não exista uma prevalência do ato administrativo sobre outras formas de
ação administrativa (designadamente, sobre o contrato) e se sublinhe até a vigência do
princípio de alternatividade entre ato e contrato, revela-se, apesar disso, indiscutível que o ato
unilateral conserva um estatuto claramente dominante na prática da AP.
Neste sentido, note-se que o ato administrativo constitui um modo de ação
administrativa de caráter formal, que corresponde a uma forma, quer dizer, a um modelo
definido no ordenamento jurídico e vinculado a um determinado regime jurídico
preestabelecido. Este regime jurídico projeta-se nos planos procedimental e formal
(regulamentação do procedimento de formação e das exigências formais), substantivo
(regime jurídico da validade e da revisão) e processual (regime jurídico da impugnação). Ora,
o estudo do ato administrativo é, precisamente, o estudo desse regime jurídico
preestabelecido e aplicável a todas as manifestações do agir administrativo que preencham
os elementos constitutivos do conceito de ato administrativo.
Por conseguinte, a definição do conceito de ato administrativo revela-se essencial para
determinar de um determinado comportamento da Administração se encontra, ou não, sob a
incidência do regime jurídico formatado e preestabelecido para a forma do ato administrativo.
Finalmente, note-se que, nos termos do artigo 148.º do CPA, consideram-se atos
administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem
produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

1. Comportamento declarativo.

O ato administrativo assenta numa declaração, num comportamento declarativo ou


ação declarativa. Além disso, revela-se como uma declaração que produz efeitos jurídicos:
como ato jurídico, o ato administrativo afeta o ordenamento jurídico, e, em especial, constitui,
modifica ou extingue uma relação jurídica administrativa.
Por conseguinte, note-se, desde já, que: por não corresponderem a uma declaração,
não constituem atos administrativos as ações ou operações materiais, como a entrega de um
documento ou a realização de uma vistoria; por não produzirem efeitos jurídicos, mas, antes,
efeitos de facto, não são atos administrativos os atos de prestação de esclarecimentos ou de
informações.
Ora, a declaração em que o ato administrativo consiste pode ser exteriorizada de
diversas formas: escrita, oral, eletrónica (art. 150.º CPA).

1.1. Ato administrativo ficcionado.


Por vezes, considera-se praticado um ato administrativo, apesar de não existir um
comportamento declarativo, uma declaração da Administração, visando a produção do efeito
jurídico. Eis o que sucede com as figuras seguintes, que concretizam todas, embora de forma
diferenciada, a ideia de ato administrativo ficcionado.

1.1.1. Ato administrativo implícito.


Esta figura associa-se a casos em que, apesar de não existir um procedimento
(declarativo) formalmente autónomo de formação do ato administrativo, a Administração
realiza a operação material que, em condições normais, corresponderia à execução do ato
administrativo.
Com efeito, verificados certos requisitos, pode aceitar-se que o ato administrativo,
embora não assente em qualquer declaração, se encontra implícito na própria operação
material de execução. Concretizando, os dois requisitos específicos da possibilidade legal do
ato administrativo implícito são os seguintes: o agente que procede à operação material tem
de ser o titular do órgão competente para a prática do ato administrativo ou atuar, no caso
concreto, sob o comando direto daquele; além disso, a ausência do procedimento declarativo
e a emissão do ato administrativo têm de encontrar justificação numa situação de estado de
necessidade (art. 3.º/2 CPA).
Por fim, note-se que não é este o cenário que, aparentemente, se encontra previsto
no artigo 177.º/2. Em termos literais, invoca-se o estado de necessidade para legitimar
situações em que se inicia o procedimento de execução sem uma emissão de uma decisão
de proceder à execução, no entanto, não sem a emissão do ato administrativo exequendo.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Exemplificando, considere-se a necessidade demolição de um muro, o preceito prescinde da


decisão de realizar a operação de demolição do muro, mas não da decisão a impor a
demolição do muro. Contudo, uma vez que, nos termos do nº 4 do preceito, a decisão de
proceder à execução pode ser notificada conjuntamente com a notificação do ato
administrativo exequendo, revela-se, porventura, legítimo concluir que o estado de
necessidade pode justificar a execução sem emissão do ato exequendo e da decisão de
proceder à execução.

1.1.2. Ato administrativo concludente.


Concludente é um ato administrativo que, apesar de não existir, se deve considerar
praticado, por constituir um pressuposto lógico e necessário de um outro ato que a
Administração pratica. Por exemplo, a celebração de um contrato de compra de produtos com
a empresa X pressupõe que a Administração praticou um ato administrativo de adjudicação
que incidiu sobre a proposta daquela empresa.

1.1.3. Ato administrativo tácito.


Neste caso, estamos perante uma situação de inércia, em concreto de ausência de
uma decisão que, na sequência de um requerimento dirigido ao órgão competente, este
deveria adotar dentro do prazo legal para decidir (art. 128.º/1). Ora, pode suceder que a lei
determine que essa ausência de decisão no prazo legal tem o valor jurídico de uma decisão,
de deferimento ou de indeferimento do pedido formulado no requerimento. Estamos, então,
perante um ato tácito de deferimento (art. 130.º) ou de indeferimento.
Na verdade, em regra, o facto de Administração não proferir qualquer decisão sobre
os requerimentos que lhe são dirigidos no prazo legal de que dispõe para o efeito não tem
qualquer valor jurídico de ato administrativo tácito. Com efeito, a falta de decisão corresponde
ao incumprimento de um dever (dever de decisão), podendo originar responsabilidade
disciplinar (art. 128.º/5), bem como responsabilidade civil, e confere ao interessado a
possibilidade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados (arts.
129.º, 192.º/3 e 198.º/4).
No entanto, em casos especiais, a lei ou o regulamento podem estabelecer que a falta
de decisão no prazo legal tem o valor de deferimento ou de indeferimento. Trata-se um ato
administrativo tácito (silente), criado por determinação da lei em que, apesar de não ter
tomado qualquer decisão, o órgão competente suporta imputação dos efeitos jurídicos da
decisão, na configuração prevista na lei. Por conseguinte, o ato tácito tem o mesmo valor de
um ato expresso com o mesmo conteúdo.
I. Regime de contagem de prazos (art. 130.º/2 e 3);

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

O artigo 130.º/2 determina que há deferimento tácito se a notificação do


ato não for expedida até ao primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo da
decisão.
Concretizando: suponha-se que um requerimento a solicitar uma
autorização dá entrada no dia 5, que a Administração tem 10 dias para decidir,
que, observando as regras de contagem dos prazos (art. 87.º), o prazo
terminaria no dia 20 e que o órgão competente tomou a decisão no dia 20 – ou
seja, decidiu dentro do prazo legal de que dispunha para o efeito, pelo que se
diria não haver ato tácito; contudo, não é bem assim, de facto, se a notificação
da decisão for expedida no dia 21, não há ato tácito, no entanto, se a
notificação não for expedida nesse dia 21, mas depois dessa data, o particular
poderá, então, invocar a formação de um ato de indeferimento tácito. Com
efeito, o ato de deferimento tácito não resulta de a Administração não ter
decidido no prazo legal, mas antes de não ter notificado no primeiro dia útil
seguinte ao termo desse prazo.
Ora, embora conduza a um resultado inesperado, acabando por atingir
e alterar o próprio sentido clássico do conceito de ato tácito, compreende-se o
propósito da regulamentação: impedir que a AP, depois de decidir dentro do
prazo legal, se desleixe no cumprimento do dever de notificar o particular e
venha a invocar que, apesar da falta de notificação, já tomou certa decisão há
10 ou 15 dias (é certo que os atos administrativos devem ser notificados no
prazo de 8 dias, conforme o disposto no artigo 114.º/5), mas não se prevê
nenhuma consequência para o incumprimento deste prazo.
Assim, tendo em consideração o disposto no artigo 130.º/2, nos casos
em que a lei estabeleça que a falta de decisão no prazo legal tem o valor
jurídico de deferimento, o particular pode sempre invocar o deferimento tácito
quando seja seguro que a decisão – adotada ou não no prazo legal – não foi
objeto de notificação de decisão expressa.
Por fim, nos termos do nº 3 do preceito, o prazo legal de produção de
deferimento tácito suspende-se se o procedimento estiver parado por motivo
imputável ao interessado; além disso, ali se determina que o mesmo prazo só
se interrompe com a notificação de decisão expressa.
II. O artigo 130.º/4: ato administrativo tácito?
Ao contrário do que se poderia admitir, em função da inserção
sistemática, não estamos aqui diante da figura do ato tácito.
Atente-se na previsão legal: tem-se em vista uma situação de inércia no
âmbito de procedimentos interadministrativos, relacionados com pedidos de

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

autorização prévia ou de aprovação posterior por um órgão da Administração


(órgão ativo) a um outro órgão da Administração (órgão de controlo).
Neste sentido, a lei regula a situação que decorre do facto de o órgão
de controlo, instado a autorizar ou aprovar, não tomar qualquer decisão no
prazo legal. Ora, a solução é a seguinte: prescinde-se da autorização ou da
aprovação, desde que o órgão ativo interpele o órgão de controlo, competente
para autorizar ou aprovar.
O artigo 130.º/5 esclarece os termos da interpelação: deve ser efetuada
decorridos 10 dias, a contar do termo do prazo para a autorização ou
aprovação, devendo o órgão competente, nesse caso, emiti-las no prazo de 20
dias. Assim, se o órgão de controlo deveria ter autorizado ou aprovado até ao
dia 5, o órgão ativo tem 10 dias, a partir do dia 5, para interpelar o primeiro (se
não o fizer nesse prazo, o seu direito de interpelação caduca). O órgão de
controlo tem agora um novo prazo de 20 dias para decidir sobre o pedido de
autorização ou de aprovação. Se não o fizer, prescinde-se da exigência de
autorização ou de aprovação e o órgão ativo fica em condições de praticar o
ato dependente da autorização ou em considerar eficaz o ato que dependia de
aprovação. No entanto, note-se que não existe aqui qualquer ficção de
deferimento da autorização ou da aprovação (um regime semelhante foi
previsto para a falta de parecer obrigatório ou vinculativo: art. 92.º/6).

2. Dimensão decisória.

O ato administrativo consiste numa declaração que incorpora ou que corresponde a


uma decisão, uma medida decisória, e, assim, pode envolver, por exemplo, a determinação
da produção de um efeito, a prescrição de uma conduta ou a resolução de uma situação. Ora,
a esta dimensão decisória associam-se as notas da unilateralidade e da autoridade.
Assim, o ato administrativo é um ato unilateral, no sentido em que a existência jurídica
do mesmo depende exclusivamente do respetivo autor. Com efeito, pode suceder que a
produção dos seus efeitos dependa de uma ação do destinatário ou de um órgão da
Administração, mas a existência jurídica do ato administrativo depende apenas da declaração
do autor (ou dos autores, no caso de atos administrativos em coautoria). Por força da nota da
unilateralidade, o ato administrativo distingue-se do contrato administrativo, figura cuja
existência depende de declarações de, pelo menos, duas partes.
Além do mais, embora subentendida da nota da unilateralidade, desta deve
autonomizar-se a nota de autoridade, que reflete o facto de a prática do ato administrativo
envolver o exercício de um poder administrativo de decisão e de determinação de efeitos que

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

se produzem na ordem jurídica e se incrustam na esfera dos destinatários independentemente


da vontade destes. Mesmo os atos administrativos favoráveis, que desencadeiam efeitos
desejados pelos destinatários, conhecem esta nota de autoridade, a qual reside no poder ou
competência para praticar o ato, seja qual for a configuração final que este venha a assumir.
Está em causa um ato de autoridade, posto em prática no exercício de um poder público, o
poder administrativo.
Ora, uma projeção específica desta nota de autoridade encontra-se na executividade,
quer dizer, no facto de a determinação contida no ato administrativo estar em condições de
ser executada, dispensando um ato de confirmação ou de validação de um tribunal. Assim,
se a Administração determina a um cidadão a adoção de uma conduta, a obrigação incrusta-
se logo na esfera do destinatário e a determinação fica pronta para ser executada quando se
verifique que o destinatário não a acatou. Com efeito, o mesmo não se passa no direito privado
em que, além de não serem frequentes, as decisões unilaterais não comportam o efeito de
executividade, pelo que, em caso de incumprimento, o autor da decisão tem de se socorrer
do tribunal para obter uma sentença (declarativa) de condenação ao cumprimento.
Por fim, note-se que é o caráter decisório (e autoritário) que permite distinguir o ato
administrativo de um conjunto vaso e heterogéneo de outro atos jurídicos unilaterais da
Administração.

2.1. Capacidade para a prática de atos administrativos.


A declaração de uma autoridade administrativa é uma condição necessária do ato
administrativo; mas não se revela necessário que essa autoridade detenha competência para
a emissão da declaração, pois o facto de não dispor de competência para proferir a declaração
com o conteúdo respetivo não põe em causa a existência, mas apenas a validade do ato
administrativo.
Por outro lado, também não revela necessário que a lei confira àquela autoridade a
capacidade para a prática de atos administrativos. Sobre esta questão, no direito português,
não se tem discutido o tema da capacidade da Administração para a prática de atos
administrativos e, em particular, o valor jurídico autónomo do conceito formal de ato
administrativo.
Ora, o valor jurídico autónomo do conceito de ato administrativo revela-se no facto de
este, enquanto uma forma de declaração, convocar, imediatamente, um regime jurídico que,
em si mesmo, contribui para reforçar a posição de supremacia que a AP já detém na relação
jurídica que o ato disciplina. Eis o que decorre de o ato administrativo constituir um título
executivo e, muitas vezes, estar dotado de força executória (declaração suscetível de ser
imediatamente executada e, muitas vezes, por meios da própria entidade administrativa, sem
intervenção judicial), bem como de instituir um ónus de impugnação para o interessado (não

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

havendo impugnação no prazo legal – em regra três meses – o ato administrativo torna-se
inatacável e, ao fim de um prazo, acabará mesmo por se consolidar na ordem jurídica).
Para ilustrar a autonomia do tema da capacidade para a prática de atos
administrativos, veja-se a diferença entre, por um lado, a autorização ou a ordem que um
certo órgão pode conceder ou impor, enquanto meras declarações revestidas de autoridade
e emitidas em situação de supremacia jurídica e, por outro lado, essa mesma autorização ou
ordem envolvidas na forma ato administrativo.
Em si mesma, a forma ato administrativo acrescenta à autoridade material intrínseca
das declarações o caráter executivo, a força executória – no caso da ordem, por se tratar de
ato administrativo, esta pode ser executada por meios coativos da própria Administração no
caso de não acatamento (art. 157.º/2) – bem como o ónus de impugnação.
Entre nós, o tema da capacidade para a prática de atos administrativos foi, no passado,
discutido, sobretudo, a propósito da natureza das declarações, emitidas no exercício de
poderes legais, por contraentes públicos no desenvolvimento de relações contratuais. Hoje,
com o CCP, a dúvida sobre a natureza de algumas dessas declarações encontra-se resolvida:
veja-se o elenco dos poderes do contraente público (art. 302.º CCP) e a indicação explícita
de que essas declarações revestem a natureza de ato administrativo (art. 307.º/2 CCP).
Por fim, note-se que, em geral, a dúvida sobre se, numa específica situação, a
Administração está autorizada a agir por via do ato administrativo, pode esclarecer-se com
base exclusivamente na determinação da natureza do poder conferido pela norma de
competência. Quer dizer, haverá de ser a interpretação da norma de competência material a
conduzir o julgador à conclusão de que uma certa instância administrativa se encontra, ou
não, investida de um poder próprio para a tomada de decisão de autoridade aplicável a uma
dada situação. Se for este o caso, então, as pronúncias emitidas no exercício desse poder
qualificam-se como atos administrativos, desde que preencham os restantes elementos do
conceito – assim, a capacidade formal para a prática de atos administrativos afere-se em
função da interpretação das normas de competência material.

3. Ato administrativo e função administrativa.

O ato administrativo é adotado no exercício e no âmbito da função administrativa,


enquanto missão de que se ocupam os sujeitos da AP.
Ora, para a recondução de um ato à função administrativa revela-se, em princípio,
indiferente a respetiva inserção formal. Com efeito, há atos administrativos praticados sob
forma de lei, desde logo sob a forma de decreto-lei. Eis o que resulta de o Governo acumular
a função administrativa e legislativa, o que pode conduzir ao desenvolvimento da função
administrativa mediante as formas da função legislativa: constituem atos administrativos (na

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

forma legislativa) a adjudicação de uma concessão ou o reconhecimento do interesse público


de uma universidade privada por decreto-lei.
Já a prática de atos administrativos por lei parlamentar (AR), não excluída, poderá,
todavia, significar uma intromissão do legislador no desenvolvimento da função administrativa.
De facto, a categoria dos atos administrativos sob forma de lei tem cobertura
constitucional: o artigo 268.º/4 da CRP consagra a possibilidade de impugnação de quaisquer
atos administrativos independentemente da sua forma – a fórmula abrange também os atos
administrativos sob forma regulamentar. Assim, apesar da forma legislativa, estando em
causa um ato administrativo, o mesmo pode ser submetido à apreciação dos tribunais
administrativos (art. 52.º/2 CPTA).
Por fim, note-se que a conexão entre ato administrativo e exercício da função
administrativa implica não considerar administrativos quaisquer atos praticados no âmbito de
outras funções do Estado (política, legislativa, judicial). No entanto, podem suscitar-se dúvidas
sobre a qualificação correta de determinados atos de alta administração, os quais se
localizam, por vezes, numa zona cinzenta (por exemplo, decisão de encerramento de um
tribunal).

4. Disciplina para uma situação individual e concreta.

O ato administrativo vale para uma situação individual e concreta (art. 148.º CPA).
Desde já, estas notas permitem distinguir o ato administrativo do regulamento administrativo,
o qual se caracteriza precisamente pelo caráter geral e abstrato, próprio dos atos normativos
(art. 135.º).
A referência a estas notas evidencia o sentido ou recorte não normativo do ato
administrativo. Com efeito, este não constitui uma norma ou uma regra para uma situação,
aplicável sempre que esta situação ocorra; traduz antes a decisão para uma situação única
que atinge destinatários determinados. Neste sentido, o ato administrativo é representativo de
a forma específica do agir da Administração, enquanto atuação concreta e em relação com o
cidadão, com cada cidadão.
Neste contexto, por situação individual deve entender-se a exigência de o ato
administrativo se referir à situação jurídica de uma pessoa determinada ou de várias
determinadas. Quer dizer, o caráter individual não reclama que o ato administrativo se dirija a
uma única pessoa; exige, sim, que os seus destinatários se encontrem determinados e,
portanto, individualizados pela declaração. Contudo, o caráter individual não deve afastar a
figura dos atos administrativos gerais: trata-se de atos administrativos (concretos), mas que
não atingem um círculo de destinatários individualizados. O artigo 52.º/3 CPTA refere-se a
estes atos, quando estabelece que o não exercício do direito de impugnar um ato que não

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

individualize os seus destinatários não obsta à impugnação dos seus atos de execução ou de
aplicação cujos destinatários sejam individualmente identificados. Por fim, ao conceito devem
ainda reconduzir-se os atos administrativos intransitivos, que não têm um destinatário (por
exemplo, o ato de afetação de um bem ao domínio público).
No entanto, a situação a que o ato se reporta deve, ainda, ser concreta: o ato
administrativo aplica-se a uma situação e resolve-se nessa mesma aplicação; o propósito do
ato esgota-se na sua aplicação no caso concreto, não tendo pretensão, como as normas, de
valer para o futuro e de se aplicar todas as vezes que uma situação ocorrer. É que o ato
administrativo não assenta numa hipótese, mas antes numa resposta. Em paralelo à figura
dos atos administrativos gerais, aceita-se a existência de atos administrativos abstratos (que
terão de ser individuais).

5. Produção de efeitos jurídicos externos.

O ato administrativo produz alterações no ordenamento jurídico e é responsável pela


constituição, modificação ou extinção de uma relação jurídica administrativa. Com efeito, pode
haver atos que produzem uma lesão na esfera do cidadão, apesar de não serem praticados
em relação a esse cidadão – o critério da lesividade; os efeitos externos são laterais; há uma
questão de dupla natureza (interna e externa).
No entanto, não é apenas ato administrativo o ato que produz efeitos jurídicos
positivos, de alteração do ordenamento jurídico. Reconduzem-se ainda ao conceito as
decisões administrativas que produzem efeitos negativos, quer dizer, efeitos que se traduzem
na recusa da alteração do ordenamento jurídico concretamente pretendida pelo interessado.
Efeitos negativos são, portanto, os efeitos dos atos de indeferimento dos pedidos constantes
de requerimentos de particulares. Ora, não se deve confundir os efeitos negativos com a
ausência de efeitos jurídicos: na verdade, o ato administrativo negativo constitui uma decisão
da Administração que resolve uma situação jurídica. Nos termos do CPTA, a reação contra
um ato desta natureza não segue a via da impugnação, mas a da condenação à prática do
ato administrativo devido (art. 51.º/4).
Com efeito, o ato produz efeitos jurídicos externos, operando no âmbito de uma
relação intersubjetiva, que ocorre entre sujeitos diferentes: a entidade pública (ou privada) a
que pertence o autor do ato, por um lado, e o destinatário, que pode ser um particular ou uma
entidade pública, por outro lado. Ocorre a produção de efeitos jurídicos que se projetam para
fora da esfera jurídica da entidade a que pertence o autor, atingindo outra entidade, que pode,
pois, ser uma entidade pública. Assim, se a decisão de um órgão administrativo produz efeitos
que se repercutem na esfera de outros órgãos administrativos, não temos um ato
administrativo, precisamente, por ausência de efeitos jurídicos externos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Neste sentido, note-se que os efeitos jurídicos do ato administrativo projetam-se num
objeto, que pode ser uma pessoa (atos administrativos pessoais), uma coisa (atos
administrativos reais), um outro ato administrativo (atos administrativos secundários), um
contrato da Administração ou um contrato entre particulares.
Por fim, referimos aqui os efeitos jurídicos do ato administrativo. Não obstante, muitos
atos têm a pretensão de provocar a produção de efeitos práticos ou de facto (v.g.: a ordem
de demolição de uma casa produz o efeito jurídico de constituir o destinatário na obrigação
de proceder à demolição e tem ainda a pretensão de produzir o efeito de facto consistente na
demolição).
▪ O ato administrativo no direito da União Europeia;
O ato administrativo, como ato de exercício do poder administrativo numa
situação concreta e individual, é também uma categoria do direito da UE. Os tratados
não definem, nem aludem expressamente à figura. No entanto, a partir de vários
preceitos e também da jurisprudência, é viável definir o ato administrativo da UE como
o ato de exercício de um poder administrativo praticado por uma instituição ou órgão
da UE numa situação concreta e dirigida a particulares ou aos Estados-membros.
▪ O ato administrativo no direito constitucional.
A figura do ato administrativo tem acolhimento no texto constitucional: art. 268.º
CRP; o nº 3 define aspetos do regime jurídico do ato administrativo; o nº 4, por sua
vez, regula aspetos relacionados com a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos
particulares em face de atos administrativos lesivos (impugnação) e devidos
(condenação).
A referência à figura neste plano traduz, de uma forma indireta, o
reconhecimento constitucional de um sistema de administração do ato administrativo
e tem o efeito de legitimar o regime jurídico do ato administrativo.

- Funções do ato administrativo.

Podemos identificar as seguintes funções do ato administrativo:


I. Concretização e individualização;
Está em causa o que a doutrina alemã tem designado como função material
ou substantiva, que assinala o facto de o ato administrativo constituir um meio ou
instrumento jurídico de aplicação da lei e dos seus comandos normativos
(enunciados de forma geral e abstrata) a situações concretas da vida e perante
cidadãos determinados; ao ato administrativo associa-se, portanto, uma dimensão
de contacto direto e imediato dos poderes públicos com os cidadãos e de regulação
de uma situação específica da vida real.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

II. Estabilização de situações jurídicas;


Com a ressalva de casos especiais, com um relevo crescente como o
demonstram os regimes da revogação e da anulação no CPA de 2015, o ato
administrativo tem uma propensão para a estabilidade e para por em marcha
efeitos jurídicos definitivos, que manifesta uma especial capacidade de resistência;
esta força de estabilização tem implicações no plano da eficácia jurídica
vinculativa, a qual opera independentemente da confirmação da legalidade
(autotutela declarativa da Administração), ao remeter para os interessados o ónus
da impugnação do ato em prazo relativamente curto (em regra, três meses após a
notificação).
III. Procedimental;
O ato administrativo constitui uma decisão formal de conclusão de um
procedimento; neste contexto, a qualificação de uma declaração de uma
autoridade da Administração como ato administrativo (com esta forma) mobiliza
imediatamente a aplicação de um regime jurídico predefinido com dimensões
formais e procedimentais, mas também materiais.
IV. Titulação;
O ato administrativo associa-se a um caráter de executividade, conceito
que traduz o facto de o mesmo constituir um título executivo; por esta razão, ao
contrário do que sucede no direito privado, a declaração em que o ato
administrativo de se concretiza pode fundar diretamente uma execução sem
necessidade de intervenção ou intermediação judicial declarativa. Quer isto dizer
que, uma vez praticado e eficaz, o ato está em condições de ser executado, no
âmbito de um processo (executivo) movido contra o destinatário (execução
coerciva que, nos termos do CPA, se processa em regra pela via jurisdicional: arts.
176.º/1 e 183.º) ou contra a própria Administração (art. 157.º/3 CPTA).
V. Processual.
O ato administrativo constitui uma categoria processual, que releva no
plano do direito do processo administrativo; neste domínio, desempenha a função
de circunscrever o âmbito de aplicação de certas forma de processo, como é o
caso da ação administrativa, a qual acolhe pedidos de impugnação e de
condenação à prática de atos administrativos. Assim, o ato administrativo
condiciona ou delimita o campo de utilização de mecanismos específicos de tutela
jurisdicional em face da AP.

- Classificação dos atos administrativos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Em razão da amplitude das áreas de intervenção e da grande diversidade de atuação


administrativa, verifica-se uma multiplicidade das classificações doutrinárias, resultante da
variedade possível dos critérios adotados, bem como uma disparidade, decorrente da falta de
consenso entre os autores quanto ao alcance dos conceitos utilizados.

1. Algumas espécies de atos administrativos com relevo prático.

Atos cujos efeitos (em contraposição aos atos de eficácia


Atos de eficácia
instantânea) não se esgotam no momento da sua prática e criam
duradoura
uma relação jurídica que se prolonga no tempo.
Atos que não conferem os efeitos pretendidos, designadamente, o
Atos negativos indeferimento expresso de requerimentos e a recusa de apreciação
de pedidos.
Atos constitutivos Atos que visam constituir posições jurídicas subjetivas favoráveis na
de direitos esfera jurídica dos destinatários ou de terceiros.
Atos cujos efeitos dependem necessariamente de uma futura
Atos provisórios
pronúncia definitiva.
Atos cujos efeitos podem terminar por estarem sujeitos a revogação
discricionária (por disposição legal ou reserva de revogação) ou por
Atos precários
dependerem de condições resolutivas (legais ou apostas pelo seu
autor).
Atos que, precedendo o ato final de um procedimento ou o ato que
define a situação jurídica do interessado no âmbito de outro
procedimento, decidem, peremptória ou vinculativamente, sobre a
existência de condições ou de requisitos de que depende a prática
de tal ato. Subcategorias:
Atos prévios Atos parciais
Pré-decisões
Aqueles que, embora Decisões constitutivas de efeitos
decidindo sobre um aspeto externos antecipadas no que
particular da decisão final, não respeita a uma parte ou a um
constituem, por si, efeitos aspeto da decisão final global.
jurídicos na esfera do
destinatário.
Promessas Atos geradores de uma auto-vinculação unilateral à prática futura de
administrativas atos (ou à não adoção de uma determinada medida).

2. Classificação dos atos administrativos quanto ao conteúdo.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Tendo em conta o conteúdo, isto é, os efeitos que visam produzir na esfera do


destinatário (independentemente dos efeitos que produzam em relação a terceiros) podemos
distinguir quatro tipos de atos:
I. Atos desfavoráveis;
Provocam situações de desvantagem para o destinatário.
▪ Atos ablatórios;
Suprimem, comprimem ou retiram direitos ou faculdades (expropriação
de um terreno)
▪ Atos impositivos;
Ordens, sejam comandos, que impõem obrigações de conteúdo positivo
– de fazer (demolir um prédio), de dar (liquidação de taxa), ou de suportar
(inspeção policial) – ou proibições, que têm um conteúdo negativo, restringindo
a liberdade (interdição de venda de um medicamento).
▪ Indeferimentos.
Recusa, pelo órgão competente, total ou parcial, da prática de ato
favorável ou da produção de efeitos jurídicos requerida pelo interessado.

II. Atos favoráveis;


Desencadeiam benefícios para os destinatários, particulares ou públicos.
▪ Concessões;
(e outros atos que conferem ou ampliam direitos ou poderes administrativos ou extinguem
obrigações)
As concessões podem ser translativas, se transmitem direitos ou
poderes já existentes na titularidade da Administração concedente, ou
constitutivas, se criam ex novo direitos ou poderes de que a Administração não
pode ser titular, mas que só ela pode criar em favor dos particulares.
Os casos típicos da concessão translativa são as concessões de serviço
público e as concessões de poderes públicos (acreditação e certificação); por
sua vez, são hipóteses frequentes de concessão constitutiva as concessões de
uso privativo do domínio público (esplanadas) – embora, atualmente, as
concessões, pelo menos as mais complexas, operem quase sempre pela via
do contrato.
Para além das concessões, há outros atos que conferem direitos, como,
por exemplo, a promessa (da prática de um ato favorável) e a adjudicação (de
uma posição contratual).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Também são atos favoráveis os atos que ampliam a esfera jurídica do


destinatário, ao terem como efeito a extinção ou limitação de deveres, ónus e
sujeições perante a Administração, incluindo os atos de renúncia
administrativa.
▪ Autorizações;
As autorizações em sentido amplo, que, por iniciativa ou candidatura do
interessado, visam remover um limite imposto pela lei ao exercício de uma
atividade fora do domínio administrativo da entidade autorizante (isto é, quando
está em causa o exercício de uma atividade da esfera própria do destinatário
da autorização, seja um particular ou outro órgão administrativo).
▪ Nas relações entre a Administração e os particulares;
Na sequência de normas legais que limitam as liberdades, com
maior ou menor intensidade, fazendo depender a atuação do particular
de uma intervenção administrativa favorável.
Deve ter-se em conta que nem sempre a lei utiliza os conceitos
doutrinais adequados ao regime que estabelece, bem como a existência
de zonas de fronteira entre estas categorias de atos (licenças de uso e
porte de arma situam-se na fronteira entre as dispensas e as licenças).
Com efeito, as designações legais dos atos permissivos do exercício de
atividades também são variadas, utilizando-se, por exemplo: validação,
autenticação, registo e certificação de capacidades e competências.
Atualmente, na linha de uma orientação europeia, a tendência
para a simplificação administrativa inclui uma política (iniciativa
licenciamento zero) que substitui as autorizações, designadamente, as
autorizações permissivas, por declarações ou comunicações prévias do
interessado à Administração de que preenche os pressupostos legais e
regulamentares para exercício de uma determinada atividade ou para
uma determinada atuação. Os efeitos jurídicos produzem-se se não
houver oposição do órgão competente (rejeição) ou se ela não se
verificar dentro de determinado prazo (certas operações urbanísticas) –
por vezes, a lei prevê um reforço da fiscalização posterior, com sanções
mais pesadas.
Ora, as comunicações prévias, com prazo ou sem prazo,
dependem de previsão legal expressa e estão atualmente previstas no
artigo 134.º CPA, que estabelece o respetivo regime. Importante é que,
nas comunicações prévias com prazo, a ausência de pronúncia do

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

órgão competente não dá origem a um ato de deferimento tácito, mas


habilita o interessado a exercer a atividade pretendida (art. 134.º/3).
▪ Dispensas;
Removem, a título excecional, no caso concreto (por
isso, não se confundem com as isenções, que são gerais e
abstratas), um dever especial, relativo a uma atividade em regra
estritamente proibida ou imposta por lei, à qual não corresponde
um direito da Administração (autorização excecional para
construção em zona de reserva agrícola).
▪ Licenças;
(autorizações constitutivas)
Constituem direitos subjetivos em favor dos particulares
em áreas de atuação sujeitas a proibição relativa (preventiva)
pela lei, uma vez acautelada no caso concreto a não lesão do
interesse que justificou a proibição legal – trata-se de atividades
que também podem ser de interesse público e que a
Administração deva promover ou fomentar (licença para
desenvolvimento de atividade industrial).
▪ Autorizações propriamente ditas;
(autorizações permissivas)
Permitem o exercício pelos particulares da atividade
correspondente a um direito subjetivo pré-existente, apenas
condicionado pela lei a uma intervenção administrativa, em
regra, vinculada – estas autorizações visam remover os limites
impostos pela lei ao exercício do direito pelo particular
(autorização para o exercício de uma profissão comum).
▪ Reconhecimentos.
Permissões de exercício de atividade por particulares já
autorizados por outra autoridade, designadamente, de outro
Estado (reconhecimento para atividades de prestação de
serviços)
▪ Nas relações entre órgãos administrativos;
▪ Autorizações constitutivas da legitimação;
Distintas das delegações de competências, verificam-se
quando o órgão autorizante confere ao órgão autorizado a
possibilidade de praticar num caso concreto um ato
administrativo (ou um outro ato jurídico) da competência do

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

destinatário (para cuja prática o órgão autorizado (já) é, em


abstrato, competente).
▪ Aprovações;
Desencadeiam a eficácia do ato administrativo aprovado
(normalmente, depois de este estar constituído), no quadro de
um controlo preventivo externo, que pode ser de legalidade e
também de mérito, conforme o disposto na lei nas respetivas
relações interorgânicas.

III. Atos relativos a status;


São atos de eficácia instantânea, através dos quais se procede à criação
(sobretudo por admissões – nomeação, matrícula, inscrição, internamento), à
modificação (promoção, suspensa, transferência) ou à extinção (demissão,
expulsão, desvinculação, alta hospitalar) de estatutos, em regra, de estatutos
pessoais (funcionário, militar, aluno), mas também reais (classificação constitutiva,
(des-)afetação de um bem ao domínio público).
Deve ter-se em conta o caráter objetivo e regulamentar do estatuto
(conjunto articulado de direitos e de deveres), que se destaca e torna independente
relativamente aos atos concretos que o atribuem – resulta daí a possibilidade de
modificação do status por via geral e abstrata, mesmo que tais modificações sejam
desfavoráveis, não sendo possível, em princípio, invocar direitos adquiridos à
aplicação das normas vigentes à data da admissão – salvo em casos excecionais,
em que a lei o determine (direito à irredutibilidade do salário) ou quando deva
relevar o princípio da proteção da confiança legítima.

IV. Atos secundários ou de 2.º grau.


São atos que visam produzir efeitos sobre um outro ato administrativo
anterior, que constitui o respetivo objeto (revogação, anulação, reforma,
ratificação-sanação ou convalidação, conversão).
Não se devem confundir os atos secundários com os atos contrários – estes
não atuam sobre o ato, mas sobre a relação jurídica determinada pelo ato
precedente, como acontece, por exemplo, com a demissão, relativamente à
nomeação do funcionário (é um ato que extingue um status), ou a reversão,
relativamente ao ato de expropriação do imóvel (não se anula nem se revoga a
declaração de utilidade pública expropriativa).

- Procedimento do ato administrativo

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Em princípio (princípio da procedimentalidade), a decisão em que se traduz o ato


administrativo é adotada no âmbito de um procedimento; este surge como um ato – o ato
principal do procedimento – que integra o conjunto ou a série de atos, de medidas e de
diligências que compõem um procedimento administrativo. Dizer que o ato administrativo é
praticado ou nasce num procedimento significa que há uma série de atos (instrumentais ou
meramente procedimentais) sucessivamente praticados segundo uma certa sequência em
vista da formação ou da produção de efeitos jurídicos do ato administrativo.
Não obstante, o princípio da procedimentalidade conhece desvios na figura do ato
administrativo desprocedimentalizado: trata-se de um ato administrativo livre de
procedimento, que se consubstancia numa decisão que o órgão competente adota na
sequência de um processo decisório puramente interno e psicológico e que, portanto,
desconhece qualquer momento juridicamente autónomo de formação ou de preparação
(ordens de polícia – art. 175.º/2 CPA). No entanto, a admissibilidade de atos administrativos
sem procedimento depende da possibilidade legal e, em concreto, do modo como a lei
configura a competência e os termos do respetivo exercício.
Existe uma regra de relação biunívoca entre procedimento de formação de ato
administrativo e ato administrativo: cada ato administrativo tem o seu procedimento e cada
procedimento conta com o seu ato administrativo.
Isto sucede mesmo quando um determinado resultado jurídico que se pretende
alcançar se produz no âmbito de dois ou mais procedimentos administrativos que se interligam
(para a abertura de certas instalações industriais, é necessária uma autorização industrial,
uma licença ambiental e uma licença urbanística). Nestes casos, sucedem-se e interligam-se
e para a produção de um resultado determinado, vários procedimentos, cada um com a sua
decisão: encadeamento de procedimentos administrativos.
Numa compreensão unitária deste fenómeno, utilizam-se os conceitos de
procedimento complexo (art. 77.º/3 CPA) ou de operação procedimental complexa, para
captar o momento de unidade que interliga os vários procedimentos que sucedem no tempo
(encadeamento ou sucessão de procedimentos). Neste contexto, a referência a procedimento
não quer dizer que se esteja em face de um procedimento simples, no qual se pratique apenas
um ato administrativo. Não obstante, por vezes, esbate-se a diferença entre o fenómeno do
encadeamento de procedimentos de formação de vários atos administrativos e o do
relacionamento entre órgãos no âmbito do procedimento de formação de um ato
administrativo (procedimento de autorização a um particular que inclui o parecer de um órgão
consultivo). Neste segundo caso, porque o parecer não constitui uma decisão, um ato
administrativo, não está presente a figura do procedimento complexo: trata-se de um
procedimento simples, limitado à prática de um ato administrativo – mas isto não exclui que

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

se possa referenciar a existência de um subprocedimento na relação que intercorre entre o


órgão que solicita o parecer e o órgão que o emana.
Por fim, note-se que o procedimento de formação de atos administrativos apresenta
uma configuração muito variada, em função, sobretudo, do tipo de ato administrativo a
praticar.

1. Iniciativa.

1.1. Iniciativa particular.


Os procedimentos de iniciativa particular visam a produção de efeitos jurídicos
favoráveis ou ampliativos para o requerente: têm por objeto interesses pretensivos; o
particular que promove o procedimento procura, através dele, obter uma vantagem para a sua
esfera jurídica. Contudo, pode suceder que a produção da situação de vantagem se associe
à produção de um efeito desfavorável para um terceiro (uma empresa que requer a aplicação
de sanções a uma empresa concorrente). Em casos especiais, a lei pode mesmo dissociar a
iniciativa procedimental da produção de uma vantagem para a esfera jurídica do requerente
(resolução administrativa de litígios).
Ora, a apresentação do requerimento implica sempre, para o órgão que o recebe, uma
obrigação de proceder. Assim, o procedimento está na génese de uma relação jurídica
procedimental: àquela obrigação do órgão administrativo contrapõe-se o direito do requerente
a uma pronúncia ou resposta. A obrigação de proceder decorre de o órgão que recebe o
requerimento estar, em qualquer caso, adstrito a uma atividade procedimental, de verificação
do preenchimento dos pressupostos procedimentais – pode tratar-se de pressupostos de
caráter subjetivo (competência do órgão, legitimidade do requerente) ou objetivos (existência
e inteligibilidade do requerimento; atualidade do direito que se pretende exercer).
Neste sentido, se estes pressupostos não estão preenchidos, diz-se que existem
“questões que prejudiquem o desenvolvimento normal do procedimento” (art. 109.º CPA). O
órgão deve, então, tomar uma decisão, que consistirá, em regra, em por termo ao
procedimento por falta de pressupostos procedimentais (decisão de arquivamento do
procedimento). Note-se: artigos 108.º/3 e 41.º CPA.
Com efeito, não deve confundir-se a obrigação de proceder com a obrigação de
decidir: a primeira decorre da entrada do requerimento na Administração; por seu lado, a
obrigação de decidir traduz-se na obrigação de proferir uma decisão sobre o requerimento
apresentado e reclama a verificação dos pressupostos procedimentais. Não existindo
questões que prejudiquem o desenvolvimento normal do procedimento, pode reconduzir-se
ao requerimento o efeito de constituir a Administração na obrigação de decidir. Esta
corresponde à obrigação de praticar um ato administrativo, pelo que estamos perante um ato

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

administrativo devido, quer dizer, num ato administrativo que a Administração tem o dever de
praticar dentro de um certo prazo (em regra, 90 dias, art. 128.º/1 CPA; prática de atos
procedimentais por órgãos administrativos, 10 dias, art. 86.º/1 CPA).
Quando previsto na lei como ato de iniciativa, o requerimento é um pressuposto
procedimental; sem o requerimento, o procedimento não pode ter início e a decisão que a
Administração venha a tomar é ilegal. Este efeito não se verifica nos casos em que a lei
estabelece que um procedimento se pode iniciar por ato de iniciativa particular ou
oficiosamente.
Atentemos no pressuposto da legitimidade procedimental do requerente. Este
responde à questão se saber quem pode iniciar ou participar num procedimento de formação
do ato administrativo. Interessa-nos o círculo dos titulares do direito de iniciativa
procedimental, respondendo-se à questão de saber quem pode, em geral, iniciar o
procedimento administrativo (art. 68.º).
Ora, o pressuposto da legitimidade procedimental assume-se fundamental para se
apurar a presença de um requerimento no sentido específico de ato de iniciativa que constitui
o órgão administrativo na obrigação de decidir. Neste contexto, existe uma associação entre
requerimento e ato administrativo, surgindo o requerimento como o ato jurídico em que o autor
requer a produção de um efeito que a Administração irá (ou não) produzir mediante a prática
de um ato administrativo.
Por conseguinte, por falta de legitimidade procedimental do autor, não é requerimento
o ato pelo qual um cidadão apresenta uma participação, denúncia, com o objetivo de levar a
Administração a exercer uma competência. Trata-se de atos pré-procedimentais, que levam
à Administraçao o conhecimento de factos que podem conduzi-la a iniciar um procedimento
(iniciativa oficiosa).
Além do mais, a associação entre requerimento e ato administrativo reclama que se
distinga o requerimento enquanto ato de iniciativa procedimental que constitui a
Administração na obrigação de decidir do ato pelo qual o particular requer a passagem de
uma certidão (art. 83.º/3) ou requer certas diligências de prova (art. 116.º/3 CPA): estes
requerimentos não são atos de iniciativa procedimental nem estão na origem de qualquer
obrigação de decidir. Como se conclui, nem todos os requerimentos constituem atos de
iniciativa procedimental.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Por outro lado, existem atos de iniciativa procedimental dos particulares a que a lei
não atribui a designação de requerimento (notificação prévia de uma operação de
concentração de empresas; comunicação prévia com prazo necessária para a exploração de
certos estabelecimentos industriais – trata-se de atos de iniciativa procedimental que
constituem a Administração na obrigação de decidir.
Nota bene…
Não devem confundir-se as notificações e comunicações, atos de iniciativa procedimental que
constituem a Administração na obrigação de proferir uma decisão sobre a situação notificada ou comunicada,
com as comunicações prévias de início de atividade, as quais não suscitam qualquer decisão ou pronúncia
da Administração. Neste caso, a lei exige a comunicação de um facto à AP, mas ela não é chamada a proferir
uma decisão sobre a verificação das condições legais para a instalação do estabelecimento: a
responsabilidade por efetuar essa verificação pertence ao promotor. O “procedimento” de comunicação
conclui-se com a entrega do ato de comunicação à AP.

Por fim, note-se que o requerimento é o nome que o CPA atribui aos atos de iniciativa
particular nos procedimentos de 1º grau. Diferentemente, nos procedimentos administrativos
de 2º grau, que visam a impugnação administrativa de uma decisão da Administração, o ato
de iniciativa particular designa-se reclamação, se a impugnação se dirige ao autor da decisão
(arts. 184.º ss.), ou recurso, se a impugnação se dirige ao superior hierárquico do autor do ato
(recurso hierárquico) ou ao órgão colegial de que este seja membro, ao delegante ou
subdelegante ou ao órgão com poderes se supervisão, tutela ou superintendência sobre o
autor do ato (recursos administrativos especiais).

1.2. Iniciativa oficiosa.


São de iniciativa ou de promoção oficiosa os procedimentos desencadeados pela
instância administrativa competente para praticar o ato administrativo que vai concluir o
procedimento.
Aos procedimentos de iniciativa oficiosa reconduzem-se ainda os procedimentos que,
por força de um esquema legal de separação hierárquica de competências, são iniciados por
um órgão e concluídos por outro órgão. Embora a descoincidência entre órgão de iniciativa e
órgão decisor pareça apontar para um caso de hétero-iniciativa, deve reconduzir-se ao tipo
de iniciativa oficiosa o procedimento em que um órgão com competência de iniciativa põe em
marcha um procedimento que vai ser concluído e decidido por outro órgão (de nível
hierárquico superior), mas numa lógica de continuidade ou de unidade procedimental e não
de alteridade: os dois órgãos envolvidos não se encontram numa relação face a face (em que
um pede a decisão do outro), mas antes numa relação sequencial (em que um inicia e o outro
completa o procedimento).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Nos procedimentos de iniciativa oficiosa, não existe sempre um explícito ato de


iniciativa: quer dizer, este não se revela sempre como um ato formalmente autónomo e,
portanto, identificável. Quando este é o caso, o ato de iniciativa há de revelar-se através de
um ato posterior, como, por exemplo, o ato de comunicação do início oficioso do procedimento
(art. 110.º/1 CPA). Quanto tenha autonomia, põe-se a questão de saber se o ato de iniciativa
oficiosa do procedimento – a decisão de iniciar o procedimento – corresponde, em si mesmo,
a um ato administrativo. Em geral, a resposta é negativa: o ato de promoção do procedimento
constitui um ato procedimental com eficácia jurídica interna.
No entanto, em certos casos, o ato de promoção do procedimento pode produzir
imediatamente uma eficácia jurídica externa, qualificando-se como ato administrativo
(suscetível de impugnação judicial – art. 51.º/1 CPTA). A eficácia externa de um procedimento
afere-se, muitas vezes, em função do facto de se tratar de um ato lesivo para uma pessoa
determinada e logo identificada. Porém, pode tratar-se de um ato geral, com capacidade de
lesão de sujeitos não individualizados (anúncio público de um procedimento para a atribuição
de novas licenças de táxi que os titulares de licença consideram ilegal).
Ora, uma vez que a iniciativa é oficiosa, pertence à Administração a decisão sobre a
promoção do procedimento. Notas:
▪ A Administração pode não dispor de uma liberdade para decidir ente iniciar ou
não iniciar um procedimento;
Há procedimentos cuja iniciativa repousa numa livre decisão da Administração
(instauração de um procedimento para condecoração de um cidadão ilustre). Porém,
noutros casos, a iniciativa oficiosa do procedimento pode associar-se à verificação,
em concreto, de pressupostos legais da ação administrativa. Assim, em geral, a
determinação do início do procedimento poderá resultar de uma vinculação legal
estrita ou de um juízo discricionário da Administração: princípio da legalidade versus
princípio de oportunidade da iniciativa oficiosa.
A regra é a da oportunidade, mas, por força da lei, regulamento ou contrato
administrativo, a Administração pode encontrar-se obrigada a iniciar um procedimento
ou a praticar um ato administrativo por sua iniciativa, quer dizer, sem requerimento do
interessado neste sentido.
▪ O procedimento de iniciativa oficiosa não exclui a consideração de eventuais
particulares titulares de um interesse no início do procedimento;
Importa distinguir entre os titulares de um interesse de facto e os titulares de
um interesse juridicamente protegido.
Os primeiros podem denunciar, participar e até solicitar a instauração do
procedimento mas a Administração não fica, por força disso, obrigada a promover o
procedimento. Isto sucede mesmo nos casos em que a lei imponha à Administração o

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dever de comunicar ao participante, denunciante ou queixoso a sua decisão sobre a


participação, denúncia ou queixa (art. 13.º/1 CPA).
A situação já será diferente quando o particular tenha um interesse
juridicamente protegido no âmbito da decisão a tomar ou que possa vir a ser tomada
no procedimento de iniciativa oficiosa. Agora, por ser titular de um interesse
juridicamente protegido, o particular tem legitimidade procedimental para iniciar o
procedimento administrativo. Assim, por força da legitimidade da iniciativa popular, um
procedimento que em geral se apresenta de iniciativa oficiosa vê-se convertido num
procedimento de hétero-iniciativa. Este cenário verifica-se, igualmente, nos casos de
legitimidade procedimental para a proteção de interesses difusos.

Nos procedimentos de iniciativa oficiosa, coloca-se o problema se saber se e em que


termos se pode aceitar a existência de uma obrigação de decidir, quer dizer, de proferir uma
decisão que conclua o procedimento. Agora, não há uma resposta com uma validade geral.
Em relação aos procedimentos cujo início oficioso foi comunicado, parece de exigir a tomada
de uma decisão sobre a conclusão do procedimento (e a respetiva notificação dos
interessados), mesmo que se trate de uma decisão de desistência ou de arquivamento do
procedimento.
Além do mais, em outros caos, o início do procedimento pode suscitar nos particulares
uma expetativa legítima no sentido da conclusão do mesmo através de uma decisão
substantitva de fundo: em geral, não será fácil obter a condenação da Administração a adotar
a decisão favorável a que o procedimento poderia conduzir, mas pode suceder que a lei
imponha esse resultado – transformando em devido o ato administrativo a praticar no âmbito
de um procedimento de iniciativa oficiosa – que a tomada de uma decisão com um certo
conteúdo decorra de uma exigência de proteção dos direitos do particular.
Note-se ainda que pode suceder que os particulares tenham assumido custos em
consequência da abertura do procedimento e para nele participar. Ora, ainda que se entenda
que, mesmo nesses casos, a Administração pode, em certas circunstâncias, ordenar o
arquivamento, renunciar ou desistir do procedimento, esta deve não só tomar uma decisão
expressa nesse sentido, como assumir o dever de indemnizar os lesados.
Por fim, diga-se que se pode admitir a inexistência de um dever de conclusão do
procedimento, por exemplo, quando este se tenha iniciado, mas não tenha ultrapassado uma
dimensão puramente interna.

1.3. Hétero-iniciativa pública.


Temos, ainda, a iniciativa pública, categoria própria dos procedimentos que se
desenrolam nas relações interadministrativas (entre entidades públicas ou entre órgãos

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administrativos). Consoante os casos, os atos públicos de iniciativa procedimental designam-


se pedidos ou propostas.
Os pedidos constituem meros atos de iniciativa, que manifestam um interesse do órgão
solicitante em que outro órgão pratique um ato administrativo. A apresentação de um pedido
implica a obrigação de decidir: nos termos da lei, a ausência de decisão sobre o pedido (de
uma autorização ou aprovação) no prazo estabelecido tem os efeitos previstos no artigo
130.º/4 CPA – em rigor, e sem prejuízo da epígrafe do artigo 130.º não parece que surja neste
caso um ato tácito, uma vez que a ausência de decisão (após interpelação) apenas conduz a
que se prescinda da autorização ou aprovação pedidas.
As propostas são atos de iniciativa em que o órgão proponente se pronuncia sobre o
conteúdo do ato administrativo a praticar. As propostas dizem-se facultativas, quando a
existência das mesmas não é necessária para que o órgão decisor exerça a competência em
questão e adote a decisão proposta. Propostas obrigatórias ao as que se apresentam
necessárias para que o órgão decisor exerça a competência em questão e adote a decisão
proposta: eis o que sucede quando a lei estabelece que uma certa competência de um órgão
se exerce sob proposta de outro órgão. As propostas obrigatórias são vinculantes, quando o
órgão decisor, além de não poder decidir sem proposta, também não pode decidir com
alterações ao conteúdo da mesma: resta-lhe decidir em conformidade ou rejeitar a proposta.
Se a lei nada estabelecer, parece que deve entender-se que as propostas obrigatórias não
são vinculantes, pelo que o órgão decisor pode decidir em conformidade, rejeitar a proposta
ou adotar uma decisão com conteúdo diferente da proposta.
Em geral, as propostas constituem atos finais de um procedimento que se desenvolve
no interior do órgão administrativo com poderes de impulso. Na verdade, a proposta
pressupõe um trabalho efetuado em vista da determinação do conteúdo do ato administrativo
que o órgão proponente pretende ver praticado.
Por fim, note-se que, com alguma frequência, os procedimentos de iniciativa pública
surgem como um desenvolvimento de outros procedimentos administrativos.

2. Instrução.

A instrução é a fase do procedimento destinada à aquisição e verificação de factos e


de situações (pressupostos do ato administrativo) e à avaliação e ponderação dos interesses
coenvolvidos ou implicados no ato administrativo a praticar.
Assim, a instrução do procedimento visa colocar a Administração na posse do
conhecimento necessário para proferir uma decisão sobre o requerimento, o que implica uma
tarefa de verificação do preenchimento dos requisitos legais para a concessão da autorização

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e, em certos casos, de ponderação do interesse do particular em obter a autorização em face


de outros particulares e de interesses públicos coenvolvidos.
A competência para a direção da instrução cabe ao órgão competente para a decisão,
todavia, a lei obriga esse órgão a, em regra, delegar essa competência no responsável pela
direção do procedimento.
Com efeito, a instrução é uma fase procedimental caracterizada pela variedade dos
atos ou diligências a realizar e dos atores que intervêm. Assim, podemos percecionar em
muitos procedimentos dois tipos de diligências: probatórias e consultivas; além disso, a
instrução assume-se como o momento procedimental de realização do valor constitucional da
participação dos interessados na formação das decisões que lhes dizem respeito.
Diz-se que a Administração tem o senhorio ou o domínio do procedimento. Trata-se
de uma formulação com uma repercussão direta na fase da instrução e exprime um princípio
de oficialidade ou de inquisitório, quanto ao desenvolvimento da tramitação procedimental
nesta fase. Assim, o artigo 58.º CPA, precisamente sobre o princípio inquisitório, estabelece
que os órgãos administrativos podem proceder às diligências que se revelem adequadas e
necessárias à preparação de uma decisão legal e justa, ainda que respeitantes a matérias
não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados.
Com efeito, compreende-se que a responsabilidade pela instrução caiba à
Administração, posto que é esta que tem a incumbência de tomar a decisão final do
procedimento e de o fazer em conformidade com o direito e a lei. O princípio da oficialidade
como critério para a delimitação das diligências a realizar é o corolário da ideia segundo a
qual cabe à Administração a responsabilidade de se colocar em posição de decidir bem e de
acordo com o direito.
Assim, conforme o artigo 58.º, a lei acolhe um cânone de discricionariedade
procedimental, conferindo à Administração um poder jurídico de definição das diligências a
realizar. No entanto, a discricionariedade procedimental não constitui um poder livre do direito
(art. 115.º/1). A lei indica que a Administração tem um dever de instrução, um dever de
averiguação da verdade material. Assim, a decisão final pode ver-se inquinada por défice de
instrução sempre que a Administração não cuida de realizar todas as diligências que se
tornam necessárias para verificar a exatidão de factos e aplicar corretamente o direito.
Acórdão STA de 25 de fevereiro de 2005
“O dever de averiguação de todos os factos relevantes em cada caso é, em princípio, inconciliável com uma
prévia e genérica definição taxativa dos factos a considerar ou a ponderar num determinado tipo de
procedimento.”

▪ Diligências probatórias;
A instrução abrange as diligências destinadas a provar factos. O CPA atribui à
Administração o dever de averiguação de todos os factos cujo conhecimento seja

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conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento. Todavia, esse dever da


Administração articula-se com o ónus de prova que o artigo 116.º atribui aos
interessados e que exprime uma expressão do dever geral de cooperação (art. 60.º/1).
Com efeito, pode haver situações em que o interessado tem o monopólio da
prova, na medida em que só ele esteja em condições de provar factos com interesse
para a decisão. Quando assim suceda, e, em geral, quando a Administração enfrenta
grandes dificuldades na obtenção da prova, o dever de colaboração do interessado
assume um peso ainda mais preponderante. Note-se: artigo 117.º; artigo 119.º(!).
Ao conceito de diligências probatórias reconduzem-se todas as diligências e
atos que permitam à Administração adquirir ciência sobre a matéria em causa
(exames, vistorias, visitas ao local, avaliações, verificações técnicas).
▪ Diligências consultivas e de promoção de pronúncias de outras entidades;
Além das diligências probatórias, destinadas a atestar a exatidão de factos ou
de situações, a instrução do procedimento conta também com uma fase de consulta e
de diálogo entre vários organismos da Administração. Inúmeras decisões
administrativas convocam saberes que se encontram dispersos por vários setores da
Administração. Em situações destas, o órgão principal (competente para a decisão
final ou órgão instrutor) pode ter a incumbência de coordenação do procedimento,
funcionando com um balcão único ou ponto de contacto do interessado e
encarregando-se de acionar os mecanismos de consulta de relacionamento
interadministrativo.
Pode surgir-nos, aqui, um procedimento administrativo complexo ou simples,
consoante as pronúncias dos organismos instados pelo órgão principal se qualifiquem
como atos ou decisões administrativas (prévios) ou antes como atos jurídicos
decisórios. Em termos funcionais, a distinção compreende-se à luz de uma opção
legislativa entre repartir o poder de decisão por várias instâncias administrativas
(procedimento complexo, que desconcentra o poder de decisão) ou concentrar o poder
de decisão num órgão, embora impondo-lhe o dever de consultar outros órgãos e
ponderar as pronúncias destes na sua decisão (procedimento simples).
Neste sentido, a fase de instrução do procedimento administrativo pode ser um
momento de promoção de novos procedimentos ou, pelo contrário, de recolha de
opiniões e de juízos de outros órgãos – órgãos consultivos – que o órgão principal terá
de considerar na sua decisão.
o Uma figura jurídica especialmente relevante no âmbito da instrução de um
procedimento simples é o parecer.
O parecer pode definir-se como o ato jurídico pelo qual um órgão
administrativo com funções consultivas se pronuncia, num plano técnico,

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jurídico ou de boa administração, sobre uma decisão em preparação; o parecer


tem subjacente um juízo opinativo ou crítico, não conhecendo um caráter
decisório.
Nos termos do artigo 91.º, os pareceres podem ser obrigatórios ou
facultativos “consoante sejam ou não exigidos por lei”. Este critério de distinção
não se revela compreensível: deve entender-se que o parecer é facultativo ou
obrigatório consoante o órgão instrutor do procedimento possa ou deva solicitá-
lo ao órgão consultivo. Se o parecer obrigatório não for solicitado, o ato
administrativo padecerá de um vício relativo ao procedimento.
O facto de o parecer se ordenar como facultativo não lhe retira relevo
jurídico, uma vez emitido: o órgão decisor tem o dever específico de
fundamentar a decisão na parte em que a mesma venha eventualmente a
contrariar o parecer. Neste ponto, não existe nenhuma diferença entre o
parecer facultativo e obrigatório.
Os pareceres obrigatórios qualificam-se como vinculativos ou não
vinculativos “conforme as respetivas conclusões tenham ou não de ser
seguidas pelo órgão competente para a decisão”. Se, nos termos da lei, o
parecer é vinculativo, o órgão consultivo acaba por determinar o sentido da
decisão, degradando-se, assim, a posição do órgão decisor, que, na prática,
se limita a desenvolver uma atividade de exteriorização de uma decisão com o
conteúdo preestabelecido.
Os pareceres (totalmente) vinculativos constituem uma raridade.
Todavia, um caso já frequente consiste em a lei exigir que uma decisão só pode
ser adotada se tiver apoio num parecer: agora, o parecer revela-se vinculativo,
se for negativo ou desfavorável à decisão, mas já não vinculativo se for positivo
ou favorável à decisão. Estes pareceres, cuja vinculatividade depende do
sentido das respetivas conclusões, dizem-se pareceres conformes.
▪ Conferências procedimentais;
Artigos 77.º a 81º.
▪ Participação de interessados no procedimento;
A fase da instrução do procedimento administrativo constitui o momento crucial
para efetivar os valores da participação dos interessados na formação das decisões
que lhes dizem respeito (arts. 267.º/5 CRP e 8.º CPA), bem como da adequada
participação dos mesmos no desempenho da função administrativa (art. 12.º CPA).
A delimitação do círculo de interessado para intervir no procedimento segue o
critério da legitimidade procedimental para iniciar o procedimento (art. 68.º).
▪ Formação consensualizada do ato administrativo.

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A participação dos interessados no procedimento exprime uma nota de


abertura do sistema administrativo à consideração dos interesses, das pretensões e
dos pontos de vista dos particulares. O procedimento, sobretudo na fase de instrução,
surge como o locar adequado para a composição de interesses, diminuição de tensões
entre interesses conflituantes e em colisão, no quadro de uma lógica de mediação e
de prevenção de conflitos. Quer dizer, o procedimento é sede de realização do
princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses
dos cidadãos (art. 4.º), bem como o momento azado para assegurar a adequada
participação dos interessados no desempenho da função administrativa (art. 7.º/1).
A instrução do procedimento constitui uma oportunidade para a construção de
consensos entre os vários intervenientes e, em certos casos, para uma conformação
consensual do próprio conteúdo do ato administrativo a praticar. Este, apesar da sua
unilateralidade, pode conhecer uma génese consensual, quando o respetivo conteúdo
resulta de um acordo formal ou informal entre a Administração e o interessado.
A existência de conversações e de diálogos entre a Administração e os
interessados cria momentos e espaços de negociação, de apresentação de propostas
e de contraproposta, apesar de estar em causa a formação de um ato unilateral.
Sobretudo em casos de grande complexidade, com múltiplas variáveis a considerar e
a ponderar, em contextos de discricionariedade administrativa, a instrução do
procedimento pode transformar-se numa arena de negociação de discricionariedade.
Um exemplo desta situação pode ver-se na figura do ato administrativo de
aceitação de compromissos: trata-se do ato administrativo pelo qual a Administração
aceita compromissos propostos por um particular e converte tais compromissos em
imposições, quer dizer, em obrigações cujo cumprimento impõe ao mesmo particular
(estas commitment decisions existem, com frequência no âmbito do direito
administrativo da concorrência).
O caso dos acordos endoprocedimentais (art. 57.º/3). A conclusão do
procedimento mediante contrato (art. 127.º).

3. Audiência dos interessados.

Nos termos da lei, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes
de ser tomada a decisão final, devendo ser informados sobre o sentido provável desta (art.
121.º/1). A audiência dos interessados constitui um instrumento de realização do princípio da
participação dos particulares no procedimento administrativo (art. 12.º).
Assim, o direito de audiência corresponde a um direito legal, conferido por lei. Ora o
direito fundamental de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes dizem

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respeito (art. 267.º/5) realiza-se por variadas formas e não deve confundir-se com o dever
(oficioso) que a lei impõe à Administração de ouvir os interessados.
A audiência serve para permitir ao interessado introduzir elementos que enriqueçam o
património cognoscitivo da AP, instaurando um contraditório que visa a melhor ponderação
do interesse público com os interesses dos interessados. Com efeito, a audiência não pode
constituir um simulacro formal, devendo ser considerada um trâmite substancial,
considerando-se supérflua a omissão de audiência nos casos em que o vício não produza um
dano efetivo ao privado ou uma deficiência da instrução procedimental.
Resulta implícito da lei que o direito de audiência incide sobre um projeto de decisão
(indicação do sentido provável da decisão) – o projeto de decisão não se apresenta contudo
vinculativo para a Administração, que pode vir a alterar, ainda que possa ter de repetir o
trâmite da audiência.
Conforme decisão do órgão instrutor, a audiência pode ser escrita ou oral e pode
realizar-se por videoconferência. O CPA prevê casos de dispensa da audiência dos
interessados.

3.1. Sequência.
Sem prejuízo da realização de eventuais diligências complementares que se mostrem
convenientes (art. 125.º), após a realização da audiência – ou da decisão de dispensa ou que
se pronuncie sore a inexistência da audiência –, o procedimento segue para a fase da decisão.
Nos termos do artigo 126.º, quando o responsável pela direção da instrução não for o
órgão competente para a decisão final, elaborará um relatório no qual indica o pedido do
interessado, resume o conteúdo do procedimento e formula uma proposta de decisão,
sintetizando as razões de facto e de direito que a justificam.
Na hipótese de a instrução ter sido dirigida pelo órgão competente para a decisão final,
não há lugar à elaboração do relatório final.

4. Decisão.

Nos termos do artigo 155.º/2, o ato considera-se praticado, quando seja emitida uma
decisão que identifique o autor (supõe-se que mediante a assinatura do mesmo) e indique o
destinatário, se for o caso e o objeto a que se refere o seu conteúdo.
Sobretudo nos procedimentos de iniciativa popular, em que o requerimento implica,
para a Administração, uma obrigação de decidir dentro de um prazo (regra 90 dias), põe-se a
questão de saber qual a consequência de a Administração não tomar qualquer decisão dentro
deste prazo. Estamos num cenário de inércia da Administração, que corresponde à omissão

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

da prática de um ato administrativo legalmente devido (decisão sobre o requerimento


apresentado).
Ora, em regra, a essa omissão não se associa a conclusão do procedimento com um
sentido específico. O procedimento fica sem decisão e extingue-se pelo decurso do tempo
(caducidade). No entanto, o interessado (requerente) poderá reagir pela via judicial, propondo
uma ação administrativa especial de condenação da Administração à prática do ato devido
(que deve ser proposta no prazo de um ano a contar do fim do prazo para emissão do ato
devido, ou seja, em regra, um ano após o prazo de 90 dias para a conclusão do procedimento).
Em casos particulares, a lei cria uma ficção jurídica e faz corresponder a inércia da
Administração à emissão de um ato positivo, de deferimento do requerimento (art. 130.º CPA).
Nas situações mais comuns, a Administração pratica o ato administrativo, toma a
decisão final do procedimento de forma expressa. Quando praticado em forma escrita, o ato
tem de conter as menções indicadas no artigo 151.º.
Na hipótese da prática do ato por órgão singular, não existe, em termos procedimentais
nenhuma disciplina a seguir. Todavia, estando em causa um órgão colegial, o ato
administrativo será então um ato colegial e torna-se necessário observar as regras
procedimentais que regulam a formação desta categoria de atos (arts. 21.º a 35.º CPA). O
particularismo procedimental da fase da decisão justifica que se fale de um subprocedimento
colegial.
Por outro lado, a decisão do procedimento pode ser simples ou em coautoria,
consoante a adoção da mesma caiba a um único órgão (singular ou colegial) ou à reunião de
declarações de dois ou mais órgãos (despacho conjunto de dois ministros). Apesar de se
basear numa convergência de vontades, a decisão em coautoria constitui uma decisão
unilateral e não um contrato. No contrato, as partes produzem um acordo para produzir efeitos
e obrigações para elas mesmas (caráter reflexivo); no ato administrativo em coautoria, os
coautores acordam em adotar uma decisão com o objetivo de produzir efeitos na esfera
jurídica de terceiros (os destinatários).
Apesar de desencadeado em vista à produção de um ato administrativo, o
procedimento pode acabar por conduzir à celebração de um contrato. Nos termos do artigo
127.º, o procedimento pode também extinguir-se por um contrato, que substitui o ato
administrativo: trata-se de um contrato com objeto passível de ato administrativo.

5. Integração de eficácia.

O procedimento extingue-se pela tomada da decisão final ou por qualquer outro dos
factos previstos no Código: assim, reza, em geral, o artigo 93.º CPA. Compreende-se o
sentido da formulação legal, até porque a tomada da decisão final corresponde à prática do

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

ato administrativo; ora, sendo precisamente do procedimento de formação do ato


administrativo que está em causa, parece fazer sentido que se conclua que o procedimento
de formação se completa no momento da prática do ato. Todavia, o facto de o ato existir no
mundo jurídico não significa que esteja em condições de produzir imediatamente os seus
efeitos jurídicos.
Com efeito, quando o ato administrativo começa a produzir os seus efeitos desde a
data em que é praticado diz-se que se trata de um ato administrativo de eficácia imediata (art.
155.º/1). Quando assim suceda, o procedimento administrativo termina efetivamente com a
tomada da decisão final, com a prática do ato administrativo.
Porém, sucede que, em inúmeros casos, o ato administrativo conhece uma eficácia
diferida; quer dizer, o ato é praticado, mas não fica logo apto a produzir os seus efeitos
jurídicos (art. 157.º). Nestes casos, o procedimento produz o ato, mas não produz um ato
eficaz. Para realizar a sua finalidade – formação de um ato com eficácia jurídica –, o
procedimento tem de prosseguir com o objetivo de reunir os requisitos procedimentais de
produção de eficácia do ato administrativo. Surge, então, uma nova fase do procedimento
administrativo: a fase integrativa de eficácia.
De facto, note-se que não existe uma associação completa entre as categorias do ato
administrativo de eficácia diferida e existência de uma fase procedimental de integração de
eficácia. É que há casos em que a eficácia diferida do ato administrativo não resulta da
existência de uma fase procedimental de integração de eficácia (atos administrativos com
condição suspensiva ou termo inicial) – fala-se de atos com eficácia condicionada (art.
157.º/1-b)).
A fase de integração de eficácia reúne os atos jurídicos ou materiais, da Administração
ou de particulares, cuja prática se revela indispensável para que o ato administrativo comece
a produzir os seus efeitos jurídicos. Aqui se incluem:
▪ Atos de controlo preventivo;
Entre os atos de controlo preventivo, temos a aprovação ou o visto a conceder
por um órgão de controlo (v.g.: visto do Tribunal de Contas, como condição de eficácia
de certos atos que envolvam despesa pública): a competência para tomar uma certa
decisão pertence a um órgão, mas a lei exige que um outro órgão aprove ou conceda
o seu visto como requisito de eficácia daquela decisão.
No caso em análise, o controlo preventivo radica em atos de integração de
eficácia: trata-se de um controlo preventivo, mas que se efetiva em momento posterior
à prática de um ato administrativo (controlo preventivo ex post). Contudo, em muitas
situações, a lei estabelece um controlo preventivo prévio à prática do ato
administrativo, exigindo que o órgão decisor solicite uma autorização prévia a outro

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

órgão (controlo preventivo ex ante): aqui o ato de controlo não é condição de eficácia,
mas sim requisito de validade do ato administrativo principal.
▪ Atos de publicação;
Também são atos integrativos de eficácia os atos de publicação, quando esta
se apresenta obrigatória (art. 158.º/2). O mesmo se diga da notificação do ato ao
destinatário: antes da notificação ao destinatário, o ato administrativo não produz os
seus efeitos jurídicos. Assim, a notificação é condição de eficácia jurídica objetiva para
o respetivo destinatário – não assim quanto a outros interessados (diferentes do
destinatário), em relação aos quais a notificação é apenas condição de eficácia
subjetiva ou de oponibilidade.
▪ Atos de complemento executivo;
Integram, ainda, esta fase os atos de complemento executivo, como a
emissão de um diploma ou alvará que titula a decisão e que lhe confere eficácia, o
pagamento de taxas pelo particular ou o termo de aceitação da decisão. Em regra, a
prática destes atos deve ocorrer num determinado prazo, sob pena de caducidade
da decisão e extinção do procedimento (art. 133.º/1).
▪ Atas.
Uma função de integração de eficácia têm ainda as atas (ou minutas de atas)
relativa a reuniões de órgãos colegiais; nos termos da lei, os atos colegiais só
adquirem eficácia depois de consignados em ata aprovada (ou em minuta assinada)
– artigos 34.º/6, 150.º/2.

- Eficácia e execução do ato administrativo

1. Eficácia do ato administrativo.

1.1. A distinção teórica e prática entre validade e eficácia de atos administrativos.


Em regra, a eficácia de um ato está associada à sua validade: os atos que são
praticados com respeito pela lei (pelas normas jurídicas aplicáveis) devem produzir os efeitos
jurídicos correspondentes; os atos que não respeitam as normas jurídicas não devem produzir
os efeitos pretendidos.
No entanto, os dois conceitos são diferentes e não têm uma correspondência
biunívoca. A validade respeita a momentos intrínsecos do ato, depende do cumprimento do
respetivo padrão normativo de formação, isto é, se o ato comporta, ou não, ilegalidades
(vícios), e denota a vitalidade ou aptidão para produzir efeitos. Por outro lado, a eficácia
respeita a circunstâncias extrínsecas ao ato de que dependa a operatividade ou produção dos
efeitos visados pela decisão.

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Neste sentido, há atos administrativos válidos, mas não operativos. Assim acontece
com: os atos de eficácia diferida, por estarem sujeitos a termo inicial, por força da lei ou
cláusula acessória aposta ao ato pelo respetivo autor; os atos de eficácia condicionada, por o
seu procedimento incluir uma fase integrativa da eficácia ou por a produção dos efeitos do ato
depender da verificação de uma condição, quer se trate de uma condição legal ou de uma
cláusula acessória condicional aposta pelo autor ao ato; os atos cuja eficácia se encontre
suspensa, seja por efeito legal de impugnação, por decisão judicial cautelar ou por decisão
administrativa.
Por sua vez, há atos inválidos que são produtores de efeitos jurídicos. Por um lado, os
atos portadores de vícios que os tornem (apenas) anuláveis têm eficácia provisória, que se
torna mesmo definitiva, caso se tornem insuscetíveis de impugnação judicial, por decurso do
prazo respetivo (atos inimpugnáveis). Por outro lado, embora só excecionalmente, podem ser
reconhecidos efeitos putativos aos atos nulos, dando relevo jurídico a situações de facto por
eles criada, perante o decurso do tempo, com fundamento em princípios jurídicos
fundamentais, como os princípios da boa fé, da proteção da confiança legítima e da
proporcionalidade.

1.2. Atos de eficácia instantânea e atos de eficácia duradoura.


Os atos têm eficácia instantânea quando os seus efeitos se esgotam no momento em
que se tornam eficazes – aí se incluindo também certos atos que dão origem a situações
duradouras, como acontece com os atos extintivos e com aqueles que criam status.
Os atos têm eficácia duradoura, quando criam e sustentam relações de trato sucessivo
entre a Administração e os particulares – este tipo de atos suscita problemas específicos em
função das vicissitudes do tempo, tendo em conta que, durante a respetiva vigência, pode
haver alterações das circunstâncias de facto, das normas aplicáveis ou da conceção
administrativa do interesse público, que permitam ou determinem a sua modificação, anulação
ou revogação, designadamente, quando haja espaços de discricionariedade ou de autonomia
decisória.

1.3. Início da eficácia.


A contagem dos efeitos reporta-se, em regra, ou ao momento em que se desencadeia
a eficácia (ex nunc) ou então ao momento constitutivo do ato (ex tunc).
A retroatividade propriamente dita verifica-se quando a lei ou o órgão decisor
determinam a produção dos efeitos de um ato (ou de alguns deles) a contar de um momento
anterior à respetiva constituição – nos casos de retropetividade ou retroatividade inautêntica,
determina-se a aplicação do ato, para o futuro, a situações duradouras já constituídas.

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Em rigor, deve distinguir-se a retroatividade em sentido próprio de outras situações


próximas. Desde logo, as situações de retrodatação, que se verificam nos casos em que o
ato é praticado em momento constitutivo deslocado no tempo, concretamente, quando os
efeitos de um ato são reportados a uma data passada, porque esses efeitos deviam ter sido
produzidos, por imposição legal, em momento anterior ao da sua prática efetiva. Além do
mais, também não implicam verdadeira retroatividade as situações de retrotração, que
acontece nos casos de eficácia ex tunc, sempre que os efeitos de um ato se reportem
naturalmente ou necessariamente a um momento anterior, como acontece com os efeitos das
decisões de anulação ou de sanação de outro ato.

1.4. As regras sobre a contagem da eficácia no CPA.


O Código estabelece a regra geral da eficácia ex nunc: os efeitos do ato produzem-se
desde a data em que foi pratica (art 155.º), mas admite exceções, quando a lei ou o próprio
ato lhe atribuam eficácia retoativa (art. 156.º), eficácia diferida ou eficácia condicionada (art.
157.º).
No que respeita às situações de eficácia retroativa, a lei consagra um princípio geral
de não-retroatividade dos atos administrativos, com algumas limitações.
Por um lado, estabelece como exceções os casos de atos meramente interpretativos
(que são casos de escasso relevo) e os de atos de execução de sentenças anulatórias (desde
que não sejam renovadoras do ato anulado) – e que essa retroatividade resultaria da lei. Por
outro lado, permite a atribuição de efeitos retroativos pelo respetivo autor relativamente a atos
de efeitos inteiramente favoráveis, se justificada, bem como nos casos especiais de atos
extintivos de 2º grau (revogatórios), praticados na sequência de reclamação ou no contexto
de recurso hierárquico.
Na pressuposição de que a retroatividade implica a afetação de posições jurídicas
estáveis já constituídas, verifica-se que a lei só admite a retroatividade perfeita nos casos de
atos favoráveis, desde que a decisão pudesse ser validamente tomada com o mesmo
conteúdo nesse momento anterior ao qual os efeitos são reportados, justamente porque aí
não há ofensa de direitos ou posições jurídicas dos particulares, nem uma ilegalidade
substancial.
Por outro lado, impõe-se um entendimento limitado da possibilidade de a lei atribuir ou
permitir em outras situações a atribuição de efeitos retroativos a atos administrativos (art.
156.º/2-c) e d) – tem de ser fundamentada e não pode por em causa direitos adquiridos (salvo
em casos de expropriação ou de sacrifício legítimo de direitos, com a devida indemnização),
nem princípios jurídicos fundamentais, sob pena de inconstitucionalidade.
Ora, o artigo 157.º contempla situações diversas, só havendo lugar verdadeiramente
a um diferimento da eficácia na hipótese de o ato depender de termo inicial (suspensivo). Nas

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restantes hipóteses, a eficácia está condicionada, seja à aprovação do ato, ao referendo ou à


verificação da condição acessória ou da condição legal – de modo que a decisão poderá,
conforme as circunstâncias, a natureza do ato ou a disposição da lei, produzir os seus efeitos
no momento em que se verifica o facto condicionante ou então reportá-los (retrotração) ao
momento constitutivo do ato.
A eficácia dos atos constitutivos de deveres ou encargos é sempre diferida, porque
depende da sua notificação aos destinatários – dado que os efeitos desfavoráveis só lhes
serão oponíveis após a notificação (art. 160.º).
Por fim, deve ter-se em conta a distinção entre o moimento em que se desencadeia a
eficácia e a data à qual se reporta o início da produção dos efeitos: na realidade, a eficácia
de um ato pode ser simultaneamente condicionada (quanto ao desencadear da eficácia, se
dependente de um trâmite integrativo da eficácia ou de cláusula acessória), por um lado, e
retroativa (quanto ao reporte ou à contagem da produção dos efeitos), por outro. Assim, por
exemplo um ato sujeito a condição suspensiva poderá, se a condição se vier a verificar,
produzir os seus efeitos, desde o momento constitutivo.

2. A execução do ato administrativo.

2.1. A evolução história da ideia de executoriedade.


A conceção oitocentista dos sistemas de administração executiva afirmava o privilégio
da execução prévia dos atos administrativos, fundado numa presunção de legalidade
administrativa – a Administração tinha o poder geral de executar as suas decisões pelos
próprios meios, coativamente, se fosse caso disso, sem necessidade de recorrer ao tribunal.
Atualmente, esta conceção de executoriedade é insustentável no quadro de uma
administração democrática em que os administrados são cidadãos titulares de direitos perante
as autoridades administrativas – não se pode falar de uma verdadeira presunção de
legalidade dos atos administrativos, nem faz sentido reconhecer à Administração um poder
geral de uso da força fora de situações excecionais ou de urgência.

2.2. O alargamento do conceito de executoriedade pela doutrina e pela jurisprudência.


Entre nós, a executoriedade foi, durante algum tempo, concebia como requisito da
impugnabilidade imediata dos atos administrativos (teriam de ser definitivos e executórios, na
formulação de MARCELLO CAETANO) – uma posição que está hoje ultrapassada, em especial,
pela confusão que suscita dos problemas da executoriedade com os problemas (prévios) da
eficácia, confusão que, no entanto, se verifica ainda no artigo 150.º/1 CPA, pois que os atos
suspensos ou dependentes de aprovação não são sequer eficazes (por sua vez, os atos
confirmativos não são sequer decisões).

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2.3. Desenvolvimentos.

A – Executoriedade versus imperatividade.


Imperatividade e executoriedade não se confundem. Com efeito, por imperatividade
compreende-se a autoridade ou obrigatoriedade decorrente do poder de constituição
unilateral de efeitos jurídicos na esfera dos particulares (tradicionalmente, designado por
poder de autotutela declarativa) que é característica de qualquer ato administrativo. Por outro
lado, a executoriedade consiste no poder de execução coativa por meios próprios, sem
necessidade de mandado judicial, das próprias decisões administrativas, qualidade que só
tem sentido para determinados tipos de atos (os que sejam exequíveis) e que hoje só em
termos limitados é admissível.

B – Exequibilidade.
Neste sentido, deve atender-se à figura da exequibilidade dos atos administrativos: os
atos exequíveis, em sentido estrito, são aqueles que necessitam ou admitem uma atividade
administrativa de execução para a produção dos efeitos visados; os atos não-exequíveis, pelo
contrário, são capazes de produzir por si próprios (desde que eficazes) os efeitos visados,
sem necessidade ou admissibilidade de execução (atos negativos, atos relativos a status,
atos favoráveis). Por conseguinte, os problemas de execução e, portanto, da executoriedade,
como forma de execução coativa, só existem quanto aos atos que sejam exequíveis, isto é,
que tenham de ser executados.

C – Executividade.
Por sua vez, a executividade (força executiva, autotutela executiva) diz respeito à
função tituladora do ato e corresponde à capacidade de basear ou titular uma execução sem
necessidade da pronúncia de outro poder – é uma qualidade típica dos atos administrativos
exequíveis (desde que eficazes) que não se confunde com a executoriedade, á que se
manifesta também nos casos em que a execução é feita pelo tribunal ou por mandado judicial,
visto que é a decisão administrativa o título executivo que os tribunais executam ou mandam
executar (não havendo necessidade de uma decisão judicial substantiva).

D – Executoriedade em sentido estrito.


Ora, a executoriedade em sentido estrito deve ser entendida como a qualidade de
alguns dos atos administrativos constitutivos de obrigações ou deveres, que, em
determinadas circunstâncias, possibilita à Administração a sua execução coativa sem

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necessidade de mandado judicial, quando os particulares não cumpram voluntariamente os


deveres impostos por esses mesmos atos.
O problema central é o da validade geral do princípio da executoriedade (execução
prévia) enquanto regra da força jurídica dos atos administrativos suscetíveis de execução
coativa (atos exequíveis que criem deveres para os particulares, desde que eficazes).
Atualmente, a executoriedade em sentido estrito não deve valer como princípio geral de
execução: num plano doutrinário, defende-se que o alargamento da intervenção
administrativa na vida dos privados não é compatível com a manutenção do princípio, sob
pena de total subjugação dos particulares (ameaçados pela sanção criminal de
desobediência); num plano normativo, entende-se que a execução coerciva só é legítima em
situações de urgência fundamentada (quando as circunstâncias do caso demonstrem
inequivocamente que a demora na execução causa um prejuízo insuportável para o interesse
público), ou nos casos previstos expressa ou inequivocamente na lei (que terá feito uma
ponderação abstrata dos interesses em presença) – execução que, aliás, salvo urgência
justificada, só deveria ser admitida depois de passado um determinado prazo (que permita o
requerimento judicial, pelo particular, de medidas cautelares adequadas).
Neste sentido, o artigo 176.º/1 CPA inverte o princípio geral anterior da executoriedade
dos atos administrativos: a execução coerciva, pela própria Administração, sem recurso aos
tribunais, de obrigações ou limitações impostas por atos administrativo por atos
administrativos só é admissível nos casos e segundo as formas e termos expressamente
previstos na lei, ou em situações de urgente necessidade pública, devidamente
fundamentada.
No entanto, a alteração, que é justificada por uma ideia exigente de legalidade no uso
da força pela Administração, não é tão extensa como podia parecer. Com efeito, já antes a lei
reconhecia: que o problema da execução coativa pela Administração só se põe relativamente
a atos que imponham obrigações aos destinatários ou estabeleçam limitações aos seus
direitos e liberdades, e desde que sejam eficazes. Além do mais, reconhecia também que a
execução coativa dos atos administrativos pela Administração não valia: para os atos que
impusessem ou implicassem o dever de efetuar prestações pecuniárias, que são executados
nos tribunais tributários, em processos de execução fiscal (arts. 176.º/2 e 179.º); nem para os
atos que impusessem obrigações positivas de prestação de facto infungível (obrigações
pessoalíssimas), na medida em que a lei considerava necessária a respetiva previsão legal
expressa (exceção da liberdade – artigo 178.º/2 – que se tem admitido quando haja deveres
de suportar (vacinação, internamento) e em casos de detenção, deslocação ou expulsão de
pessoas).
Por fim, note-se que também a posse administrativa de coisas devidas, tendo em conta
a garantia constitucional da propriedade, só excecionalmente se poderia fazer sem

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intervenção judicial – por exemplo, quando se tratasse de posse de bens do domínio público
ou de coisas que integrassem o património cultural.

2.4. O procedimento de execução e as garantias dos contribuintes.


O CPA regula com densidade normativa, em termos genéricos e sem prejuízo de
normas especiais, o procedimento de execução de atos administrativos: impõe a prática
prévia do ato exequendo (art. 177.º/1), com a consequente inadmissibilidade de decisões
implícitas (quando desfavoráveis e exequíveis); salvo em estado de necessidade, tem de
haver uma decisão autónoma, devidamente fundamentada, de proceder à execução,
determinando o conteúdo e os termos desta (art. 177.º/2); a decisão de executar deve ser
notificada, autonomamente ou conjuntamente com a notificação do ato exequendo, com a
cominação de um prazo razoável para o cumprimento da obrigação (art. 177.º/3 e 4); admite
a fixação de sanções pecuniárias, quando a obrigação é de prestação de facto (art. 181.º);
prescreve e assegura o respeito, em todas as situações, pelos princípios da adequação, da
necessidade e da proporcionalidade na escolha do modo de execução coerciva (art. 266.º/2
CRP e artigo 178.º CPA); estabelece as garantias dos executados, designadamente de
impugnação administrativa e de acesso aos meios contenciosos (art. 182.º).

2.5. Modalidades de execução coativa.


A execução coativa, em caso de incumprimento voluntário, varia conforme os diversos
tipos de deveres impostos aos particulares, que podem ser de prestação pecuniária, de
prestação de coisa certa ou de prestação de facto (dever de fazer, de não fazer ou de
suportar), que pode ser fungível ou infungível ou ainda do respeito por ações ou omissões
impostas por atos (arts. 175.º/1 e 179.º a 181.º).
É de salientar a possibilidade de um cumprimento de uma prestação de facto fungível
dar lugar a uma execução de prestação pecuniária (se a Administração optar por realizar a
execução em via substitutiva, diretamente ou por intermédio de terceiro, à custa do
executado), bem como a circunstância de o incumprimento de uma obrigação de prestação
de facto negativa (dever de não fazer), que, em si, não é suscetível de gerar uma execução,
poder gerar uma obrigação de repristinação e a correspondente execução coativa.

- Estrutura do ato administrativo

São pensáveis dois modelos básicos para apresentar uma conceção estrutural do ato
administrativo: um modelo teórico e definitório, baseado no inventário de um conjunto de
elementos essenciais, enquanto partes componentes de uma edificação lógica; ou um modelo
prático e teleológico, que visa estabelecer um esquema descritivo dos aspetos significativos

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

do ato, capaz de fornecer uma explicação coerente do seu regime de funcionamento e


orientado pela necessidade de construção de uma teoria das invalidades.
Adotamos, seguindo Rogério Soares, este último modelo, no qual se procura identificar
os momentos que sejam relevantes para efeitos de localização dos diversos tipos de vícios
de que o ato pode padecer, bem como para a avaliação das consequências do respetivo
desvalor, tendo em vista, designadamente, as diferenças de regime da invalidade, que variam
em função do alcance e da gravidade do defeito.

1. O sujeito.
As pessoas coletivas que integram a AP em sentido organizativo são, através dos
respetivos órgãos, os sujeitos típicos do ato administrativo, embora se admitam outros tipos
de sujeitos do direito administrativo: entidades privadas que exerçam poderes públicos e
órgãos de entidades públicas não administrativas.
Assim, quanto aos requisitos de validade do ato administrativo quanto ao sujeito, é
preciso que o órgão que o pratica: atue dentro das atribuições (finalidades) legais da pessoa
coletiva (ou ministério) a que pertence; exerça competências (poderes abstratos) que lhe
tenham sido concedidas pela lei (ou tenham sido nele delegadas com base na lei), em razão
da matéria, da hierarquia e do território; possua legitimação para exercer no caso concreto a
competência, verificando-se os requisitos e condições legais do exercício do poder.

2. O objeto.
O objeto do ato é o ente no qual se projetam diretamente os efeitos que o ato visa
produzir – que pode ser uma pessoa, uma coisa ou um outro ato administrativo. O objeto, em
sentido estrito, distingue-se do conteúdo (os efeitos jurídicos que o ato visa produzir) e do fim
(a finalidade de interesse público visada) do ato, embora se verifique o uso corrente dos
conceitos de objeto mediato (objeto propriamente dito) e de objeto imediato (conteúdo) como
conceitos ligados entre si.
Como requisitos de validade do ato, quanto ao objeto, identificam-se: a existência
(possibilidade física ou jurídica) – o objeto tem de existir no plano dos factos e do direito, de
modo que não é possível a requisição de uma coisa já perecida, a nomeação de uma pessoa
falecida ou a revogação de um ato entretanto extinto; a determinação (determinabilidade
identificadora, conforme o tipo de ato), pelo que tem de ser perfeitamente individualizado ou
determinado (logo, não é válida a decisão de promover o funcionário mais experiente de um
serviço); a idoneidade (adequação do objeto ao conteúdo), na medida em que o objeto tem
de preencher as qualificações necessárias para suportar os efeitos do ato (não se pode
validamente nomear como funcionário uma pessoa que não reúna os requisitos legais); e, por
fim, a legitimação (qualificação específica para sofrer em concreto os efeitos do ato), pelo que

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o objeto, para além de idóneo em abstrato, tem de preencher as condições subjetivas legais
para (no âmbito de um concurso, não se pode validamente adjudicar um contrato a um
candidato cuja proposta tenha sido excluída).

3. A estatuição.
A estatuição refere-se à decisão, em si, isto é, à declaração formal que visa produzir
transformações no mundo jurídico. Tendo em conta a sua complexidade, distinguiremos as
dimensões substantivas das dimensões formais e instrumentais, desdobrando-as em
momentos juridicamente significativos, tendo em vista os efeitos práticos referidos.

3.1. Aspetos substanciais.


▪ Fim;
Nas normas-condição, como são as normas que preveem e regulam a prática
de atos administrativos, a definição legal do fim do ato administrativo não é expressa,
decorrendo da formulação dos pressupostos (pressupostos abstratos ou hipotéticos),
isto é, das circunstâncias da vida que revelam a existência do interesse público que o
ato visa satisfazer.
Genericamente, podemos definir pressupostos, neste sentido de indicadores
do fim, como aquelas circunstâncias, não referentes ao sujeito ou ao objeto, de cuja
ocorrência a lei faz depender a validade da decisão (hipótese normativa).
A verificação desses pressupostos hipotéticos nos casos concretos da vida
(pressupostos reais) impõe e justifica a decisão administrativa – a justificação constitui
a fundamentação formal do ato pela comprovação concreta da existência real dos
pressupostos definidos em abstrato na norma habilitante.
Com efeito, há dificuldades naturais na concretização do fim quando a lei utiliza
conceitos indeterminados na formulação da hipótese normativa – a avaliação
administrativa dos pressupostos legais, para efeitos da verificação da sua ocorrência
no caso concreto, pode ser juridicamente vinculada ou então remeter para uma
valoração própria da função administrativa.
A concretização do fim do ato, isto é, a concretização do interesse público
específico que a lei visa assegurar ao prever a decisão administrativa, que está em
primeira linha a cargo da Administração que vai atuar, tem necessariamente influência
na determinação do conteúdo (dos efeitos do ato), na medida em que este dependa
de escolha discricionária – particularmente na aplicação dos preceitos normativos que
acoplem uma indeterminação conceitual na hipótese com uma indeterminação
estrutural na estatuição.
▪ Conteúdo;

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Os requisitos de validade do ato relativos ao conteúdo (ou objeto imediato,


entendido como os efeitos que o ato visa produzir) são: a compreensibilidade, isto é,
o conteúdo tem de ser suscetível de compreensão racional, não podendo ser
contraditório, vago ou ininteligível; a possibilidade, na medida em que os efeitos
visados não podem ser impossíveis fisicamente ou contrariar uma proibição legal
absolutamente imperativa; a licitude, ou seja, os efeitos visados têm de ser conformes
à ordem jurídica; e, por fim, a legitimidade, isto é, a decisão não pode ofender
diretamente normas ou princípios que regem a atividade administrativa.
Ora, no conteúdo do ato, há a considerar o conteúdo principal – que inclui o
conteúdo legal típico (os efeitos que, nos termos da lei, cada tipo de ato visa
normalmente produzir) e o conteúdo discricionário específico determinado pelo autor
do ato no caso concreto (cláusulas particulares) – e as cláusulas acessórias.
Neste sentido, note-se que, no quadro do exercício de poderes discricionários,
é importante a distinção entre cláusulas particulares – que respeitam ao conteúdo
principal do ato, tal como é concretizado ou determinado no caso específico pelo órgão
competente (autor) no uso dos seus poderes próprios – e as cláusulas acessórias –
que, embora igualmente discricionárias, apenas respeitam à eficácia do ato ou então
determinam aspetos marginais ou não imprescindíveis do respetivo conteúdo.
Com efeito, as cláusulas acessórias permitem adaptar o conteúdo do ato às
circunstâncias do caso concreto, presentes ou futuras, e implicam sempre, ainda que
diversas maneiras, uma limitação ao alcance normal do ato principal. Assim, o artigo
149.º CPA prevê quatro tipos de cláusulas acessórias: a condição – a eficácia do ato
fica dependente de um acontecimento futuro e incerto, mas possível, cuja verificação
a desencadeia (condição suspensiva) ou extingue (condição resolutiva); estamos
perante uma condição potestativa (ou impura) quando o acontecimento depende da
vontade de alguém, designadamente do destinatário; o termo – a eficácia do ato fica
dependente de um acontecimento futuro e certo, muitas vezes um prazo, cuja
verificação a desencadeia (termo inicial) ou a extingue (termo final); o modo – consiste
num encargo (dever de fazer, não fazer ou suportar), imposto num ato de conteúdo
principal positivamente favorável, encargo que, ao contrário da condição e do termo,
não afeta a eficácia do ato, e cujo incumprimento pelo destinatário pode levar a uma
execução, eventualmente coativa, ou a outras consequências sancionatórias,
incluindo a possibilidade de revogação do ato (favorável); por fim, a reserva (reserva
de revogação, reserva de modo ou outra) – através da qual o autor do ato se reserva
o exercício de um poder ou faculdade que, de outro modo, não teria ou não poderia
exercer (poder de revogação de ato favorável, poder de imposição de novos encargos
em atos de eficácia duradoura ou outros poderes legítimos).

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Os três primeiros tipos de cláusulas já eram previstas no CPA originário. A


reserva, que é admitida na generalidade dos países, enquanto cláusula específica do
ato administrativo, foi introduzida na revisão de 2015 e tende a ter, pela sua
adaptabilidade às mudanças, uma importância acrescida numa sociedade de certeza
e de risco.
No entanto, na prática, verificam-se especiais dificuldades na distinção entre
cláusula particular, condição potestativa e modo, enquanto cláusulas que surgem
sobretudo em atos favoráveis. Com efeito: a cláusula particular integra o conteúdo
principal da decisão concreta e o respetivo conteúdo corresponde a uma modalidade
necessária de exercício da atividade autorizada ou concedida; a condição potestativa
implica um ónus, a verificação prévia de um pressuposto dependente da vontade do
destinatário, mas que não constitua obrigação deste; o modo impõe uma obrigação ao
destinatário, alheia ao conteúdo típico da autorização ou que não seja de verificação
prévia, embora dependa desse conteúdo principal.
Assim, note-se que a Administração não é livre na aposição de cláusulas
acessórias aos atos administrativos, estando sujeita a limites, que agora constam do
artigo 149.º/1 e 2 CPA: pressupõe-se a existência de capacidade discricionária do
órgão competente, pelo que, em regra, não se admite a aposição de cláusulas
acessórias em atos estritamente vinculados e, relativamente a atos a que
correspondam direitos dos destinatários, só vale quando a lei o preveja ou para
assegurar a verificação futura de pressupostos legais ainda não preenchidos no
momento da prática do ato; são proibidas as cláusulas cuja aposição implique a
descaracterização do fim ou do conteúdo principal do ato, tal como é legalmente
configurado; exige-se a verificação de uma relação direta (adequada) entre a cláusula
acessória e o conteúdo típico do ato (mesmo quanto ao modo); impõe-se o respeito
pelos principio jurídicos aplicáveis (designadamente, a proibição do arbítrio e da
desproporção, em caso de cláusulas desfavoráveis).
Além do mais, há a considerar o problema específico dos limites à reserva de
revogação, verdadeira vexatio quaestio, hoje prevista e regulada no artigo 167.º/2-d)
CPA. Aí se dispõe que a reserva de revogação de atos constitutivos de direitos só é
admissível na medida em que o quadro normativo aplicável consinta a precarização
do ato em causa e a cláusula preveja um circunstancialismo específico que justifique
a revogação. Continuamos a entender que o regime da revogação, ao estabelecer
exceções ao regime da livre revogabilidade (art. 167.º/1/2 e 3), não exclui a
possibilidade da reserva de revogação de atos favoráveis, aplicando-se apenas aos
atos de conteúdo irrevogável por determinação legal e aos atos constitutivos de
direitos (posições juridicamente consolidadas) ou de interesses legalmente protegidos

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

que tenham criado na esfera do particular um efeito jurídico estável e consistente (que
tenham gerado uma confiança legítima digna de proteção). Por isso, sustentamos que,
a par dos atos provisórios e precários (incluindo os atos cuja revogação esteja prevista
expressamente na lei ou seja exigida pela natureza do ato ou por princípios jurídicos
fundamentais), são revogáveis os atos (ainda que favoráveis) que tenham sido sujeitos
pelo autor a uma cláusula de reserva de revogação – evita-se, assim, que a
Administração seja colocada perante o dilema de ter de recusar ou ter de autorizar
para sempre ou definitivamente uma determinada atividade, comportamento ou
atuação, quando tenha dúvidas relativamente ao futuro, dilema que pode ser
prejudicial tanto para a Administração como para o particular. No entanto, note-se que
ponto é que o autor do ato disponha de um espaço discricionário (que permita a
precarização) e que a reserva seja densificada nos seus pressupostos (determine as
circunstâncias em que a revogação pode operar). Por fim, esta hipótese não é
afastada pela possibilidade de revogação prevista no artigo 167.º/2-c), já que esta se
refere apenas à revogação de atos que não poderiam ter sido praticados em face dos
conhecimentos ou dados supervenientes.
▪ Relação entre o fim e o conteúdo.
Há uma relação direta entre o fim e o conteúdo, que assume especial
relevância na metodologia da formação da vontade administrativa quando os atos
envolvem momentos discricionários de decisão: a avaliação integrada das
considerações e valorações em que se baseia o juízo de preenchimento no caso
concreto dos pressupostos legais (e, portanto, da verificação do fim de interesse
público em causa) e projeta-se nos argumentos e ponderações que permites a escolha
administrativa da melhor solução para o interesse público, tal como foi concretizado,
funcionando como motivos da decisão – a ponderação com vista à decisão implica um
vai-vem argumentativo entre a hipótese e a estatuição normativa baseado nas
circunstâncias do caso concreto.

3.2. Aspetos formais.


▪ O procedimento;
Neste contexto, interessa especialmente o procedimento legal, que engloba os
trâmites normativamente obrigatórios – embora haja procedimentos voluntários, auto-
escolhidos pelo agente administrativo, que relevam juridicamente apenas do ponto de
vista da necessária racionalidade das condutas.
A Administração está sujeita ao cumprimento ordenado dos trâmites
legalmente fixados, cuja falta ou desvio se repercute na validade da decisão – devendo
notar-se que relevam neste plano os atos jurídicos procedimentais e não quaisquer

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formalidades. Acresce que há preceitos legais ou regulamentares simplesmente


indicativos, cuja violação é causa de meras irregularidades.
A projeção do conteúdo dos atos preparatórios na feitura do ato não diz
respeito ao procedimento – por exemplo, um parecer erróneo pode afetar a validade
do ato decisório quanto ao conteúdo, mas não dá origem a um vício procedimental.
▪ A forma.
A forma designa a manifestação exterior do ato administrativo, isto é, a maneira
como a própria decisão se exterioriza (oral, escrita, sinais, gestos). Neste sentido, não
são formas as documentações probatórias (atas) ou as meramente comunicativas
(notificações ou publicações).
Ora, o princípio que rege a matéria é o da liberdade de forma: embora a forma
escrita seja ainda a mais frequente e surja como forma supletiva nos termos do artigo
150.º/1 CPA, ela não vale, em egra, para os atos dos órgãos colegiais, que são
praticados oralmente e reduzidos a escrito (nº 2), e pode ser afastada por lei ou pela
natureza e circunstâncias do ato.
Com efeito, o dever de fundamentação expressa dos atos administrativos (arts.
152.º e 154.º CPA) é um dever formal, porque a justificação (comprovação de que se
verificam no caso concreto os pressupostos vinculados do ato) e a motivação (a
indicação das razões específicas das escolhas discricionárias) têm de ser contextuais,
isto é, têm de constar da forma pública que contém a decisão, ainda que por remissão.
Por seu turno, existem declarações anómalas, como, por exemplo, as que
consubstanciam atos tácitos – decisões que que estão contidas em outras pronúncias
jurídicas expressas, por serem delas pressuposto lógico necessário – ou atos
concludentes – resultados decisórios que decorrem inequivocamente de outras
decisões (decisões prejudiciais). A identificação destes atos escondidos é importante
sobretudo para efeitos da respetiva impugnação judicial.
Um dos grandes problemas da forma é o do relevo jurídico do silêncio da
Administração, que pode ser entendido como incumprimento do dever de pronúncia,
mas também pode ter valor decisório, seja de assentimento ou deferimento ou, pelo
contrário, de recusa ou indeferimento. Em matéria de ato silente, deve entender-se o
seguinte: consumou-se o desaparecimento da figura do indeferimento silente;
mantém-se o deferimento silente (deferimento tácito) como ato administrativo de
criação legal, com isenção de forma e com o conteúdo definido pelo requerimento, nos
casos expressamente previstos na lei (art. 130.º CPA) – embora haja contradições
fortes na doutrina: uma parte propõe que se generalize a figura para as atuações
sujeitas a autorização, outra sustenta a limitação da sua admissibilidade ou mesmo,
radicalmente, a extinção da figura; subsistem casos especiais em que o silêncio releva

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como mero facto jurídico, que serve apenas para abrir a via contenciosa, funcionando
como pressuposto processual de uma ação judicial – é o que acontece, por exemplo,
com o silêncio perante impugnação administrativa (art. 198.º/4) ou perante o
requerimento de reversão de prédio expropriado.

- Requisitos de validade e invalidade do ato administrativo.

A legitimidade do ato administrativo, entendida em sentido amplo, tem a ver com a sua
aptidão para prosseguir o interesse público de acordo com as normas e princípios jurídicos
(legalidade e juridicidade) e as normas de boa administração (conveniência e mérito).
Interessa-nos, em especial, o estudo dos vícios de legalidade ou juridicidade, por
incumprimento de disposições normativas e princípios jurídicos, com exclusão dos vícios de
mérito (inoportunidade e inconveniência), na medida em que só aqueles, por força da
separação de poderes, são suscetíveis de controlo judicial (art. 3.º/1 CPTA).
No plano da invalidade, a questão que se coloca consiste em saber se esta decisão,
qualificada como ato administrativo, se encontra afetada por alguma desvirtude nos seus
elementos formais, procedimentais e substantivos que, sendo de tal modo grave, provoca ou
é suscetível de provocar a sua invalidade. E falamos em suscetibilidade porque nem todas as
desvirtudes têm de traduzir-se necessariamente num vício invalidante, bem podendo suceder
que a sanção seja a mera irregularidade. No entanto, o inverso também é verdadeiro, isto é,
no regime do novo CPA, encontramos situações em que o vício, independentemente da sua
natureza, embora produza um efeito invalidante do ato, não conduz necessária ou
logicamente à sua anulação. Estamos em face da irrelevância ou da inoperância desse vício.

1. Inexistência do ato administrativo.

Desde já, importa distinguir as situações de inexistência das situações de invalidade


do ato.
A inexistência de ato administrativo verifica-se em todas as situações em que não há
sequer ato – há inércia ou silêncio, o ato não está ainda procedimentalmente constituído – ou
há um ato que não é um ato administrativo – não é uma decisão, ou é um ato privado da
Administração ou de um privado não detentor de poderes públicos. Em qualquer dos casos,
falta uma decisão formalmente imputável a um ente com poderes administrativos.
Com efeito, esta situação não deve confundir-se com a construção jurídica do ato
administrativo inexistente, em que a inexistência seja vista, designadamente por qualificação
legislativa expressa, como uma forma extremamente grave de invalidade de uma decisão
aparentemente imputável à Administração ou que esta pretenda fazer valer como tal.

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Para VIEIRA DE ANDRADE, a inexistência não é hoje uma categoria necessária enquanto
tipo de invalidade, distinta da nulidade. No entanto, tendo em conta que, por vezes, as próprias
leis se referem a atos inexistentes, em contextos que não podem significar a mera situação
de facto de inexistência (art. 58.º/1 CPTA), pode admitir-se a figura para efeitos de
impugnação – já não se pode é falar de uma nulidade-inexistência, para caracterizar um
subconjunto de atos nulos, com vícios muito graves, aos quais se devesse aplicar, por
princípio, em termos radicais, o regime da nulidade, porque o CPA revisto eliminou a categoria
das nulidades por natureza.
Ainda assim, a relevância dogmática da inexistência no Direito Administrativo geral
(substantivo) e processual é teorizada por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, fundamentalmente a
partir do artigo 155.º/2, isoladamente ou conjugado com o artigo 151.º, sobre as menções
obrigatórias que devem constar do ato, ou com o artigo 148.º, relativo ao conceito de ato
administrativo. Segundo este Autor, um ato administrativo não existe (inexistência de ato
administrativo) se uma declaração (decisão) não puder ser reportada a um autor devidamente
identificado ou não contiver um conteúdo e, ainda que de forma adjuvante, quando não
indique (não identifique) o objeto a que se dirige ou o destinatário. Contudo, na esteira de
LÍCINIO LOPES, se estes elementos são constitutivos do próprio conceito de ato administrativo
e, por isso, na lição de ROGÉRIO SOARES, são os seus elementos estruturais, não se entende
que a sistemática do novo CPA traduza a construção de MÁRIO DE ALMEIDA. De facto, na
sistemática do novo CPA, o regime do artigo 155.º inscreve-se no tema dedicado à eficácia
do ato administrativo, o que, só por si, permite subentender que já existe um ato
administrativo, isto é, uma decisão assim qualificada por força do artigo 148.º e que,
naturalmente, já está, pelo menos em potência, predisposta a produzir efeitos jurídicos. Por
isso, talvez se figurasse mais vantajoso, no plano da sistemática do CPA, não fundir no
mesmo articulado (art. 155.º) duas categorias dogmáticas completamente distintas: a da
eficácia e a da existência de um ato administrativo.
Como quer que seja, nas notas seguintes, iremos dar como assente a existência de
um ato administrativo.

2. Tipos de invalidade.

São tipos de invalidade a nulidade (que determina a improdutividade total do ato como
ato jurídico) e a anulabilidade (que confere ao ato uma produtividade provisória e
condicionada).
Embora o CPA não o refira expressamente, verifica-se a existência de invalidades
mistas, às quais se aplicam regimes especiais, previstos na lei (v.g.: determinados atos
urbanísticos, em que se estabelece um prazo para impugnação de atos nulos) ou impostos

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

pela natureza e circunstâncias do ato (v.g.: em caso de atos administrativos praticados sob
forma legislativa ou regulamentar, que não estão sujeitos a ónus de impugnação autónoma).
Ora, a anulabilidade tem sido vista como a consequência normal da ilegalidade ou,
pelo menos, como o regime típico da invalidade do ato administrativo. Esta construção parece,
à primeira vista, paradoxal, tendo em conta, na linha de KELSEN, a especial vinculação da AP
à legalidade e ao interesse público, mas tem resistido aos tempos – associada primeiro à
autoridade administrativa como privilégio público, revive em contexto democrático como
garantia da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima e da praticabilidade, num
universo em que se desenvolvem exponencialmente as áreas de intervenção administrativa
e aí ganham importância decisiva, além da reguladora, a atividade autorizativa, concessória
e prestadora, que visam a constituição de direitos e a produção de efeitos favoráveis para os
particulares.
Embora à ideia de poder se tenha sobreposto a de serviço e a administração fechada
e autocrática tenha sido substituída por uma administração aberta, participada e respeitadora
dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, são justamente os direitos dos
particulares que exigem agora, em grande medida, a força estabilizadora do ato administrativo
e um regime de invalidade que a assegure de forma consequente, seja através de um ónus
de impugnação pelos interessados num prazo curto, seja através da limitação dos poderes
de auto-tutela administrativa da legalidade.

3. As diferenças de regime legal entre a anulabilidade e a nulidade.

No que respeita à eficácia, a improdutividade absoluta do ato nulo contrasta com a


eficácia provisória do ato anulável, submetido a um ónus de impugnação, e, mais ainda, com
a eventual eficácia plena dos atos anuláveis tornados inimpugnáveis (por não ter havido
impugnação tempestiva).
A ineficácia do ato nulo exprime uma incapacidade que resulta da lei como efeito
automático (ipso iure), que o tribunal ou o órgão administrativo competente se limitam a
declarar, enquanto a perturbação da eficácia do ato anulável só se produz mediante uma
pronúncia de anulação, seja administrativa ou judicial, que anule o ato.
Admite-se a ratificação (convalidação), reforma ou conversão dos atos anuláveis, mas,
apesar de se passar a admitir (em 2015) a reforma e a conversão, mantém-se a
impossibilidade de ratificação dos atos nulos (art. 164.º).
Não obstante, verifica-se uma certa aproximação dos regimes na medida em que a
anulação tem eficácia ex tunc, tal como a declaração de nulidade. Acresce que, entre nós,
por um lado, se admite-se a anulação do ato pela própria Administração, mesmo quando foi

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ela a causadora do vício e, por outro lado, não se salvaguarda, como regra, a proteção da
confiança legítima do interessado dentro do prazo da impugnabilidade judicial.
No entanto, o rigor do regime legal da nulidade pode em muitas circunstâncias revelar-
se excessivo, designadamente quanto à impossibilidade de ratificação (art. 164.º/2) e quanto
ao regime de imprescritibilidade do poder de conhecimento da nulidade por qualquer
autoridade administrativa ou judicial ou da sua declaração pelos tribunais ou órgãos
competentes (art. 162.º/2). Com efeito, a moderação desse rigor resulta da possibilidade de
haver disposições legais limitadoras dos efeitos típicos da nulidade (“salvo disposição em
contrário”), quer da possibilidade de reconhecimento jurídico de efeitos ou situações de facto
produzidos pelo ato nulo, com fundamento em princípios jurídicos fundamentais (art. 162.º/3).
No que respeita à anulabilidade, note-se que o CPA de 2015 passou a admitir a não
produção do efeito anulatório, apesar da invalidade, em três circunstâncias (art. 163.º/5). Em
todas estas situações, não estamos perante um poder do juiz ou uma faculdade da
Administração, mas perante uma inibição, por determinação legal, da produção do efeito
anulatório em casos concretos. Além do mais, não se trata aqui, salvo porventura no caso da
irrelevância, de uma validação legal do ato, dado que a ilegalidade e a invalidade se mantém
– de modo que não está excluída a possibilidade de indemnização, se tiver havido a causação
de danos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos de particulares – seja por
danos não patrimoniais, seja por danos causados por diferenciação temporal.
Desde logo, permite-se o aproveitamento do ato, isto é, a sua não anulação pelo juiz,
apesar da invalidade, quando o conteúdo do ato não possa ser outro, nos casos de conteúdo
devido, legalmente vinculado, ou de redução da discricionariedade a zero. Assim, o efeito
anulatório não se produz, por força da lei, apesar de o ato não ser válido, já que o vício, seja
formal ou substancial, se mantém. Ademais, note-se que o aproveitamento se verifica mais
frequentemente quando se trata de atos favoráveis, mas é igualmente possível quanto a atos
desfavoráveis, neste sentido, o Ac. do STA de 22/03/2011.
Depois, admite-se a irrelevância do vício de procedimento ou de forma quando o fim
visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançada por outra via,
isto é, quando da violação não tenha resultado no caso uma lesão efetiva dos valores e
interesses protegidos pelo preceito formal ou procedimental violado, por esses valores ou
interesses terem sido suficientemente protegidos por outra via – corresponde à situação
tradicionalmente formulada pela jurisprudência como degradação das formalidades
essenciais em não essenciais.
Por fim, o vício gerados de invalidade também é improdutivo, na prática, quando, no
caso concreto, se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria
sido praticado com o mesmo conteúdo – isto é, que não teve qualquer influência na decisão.
Esta situação pode resultar de vícios formais ou procedimentais (designadamente, em atos

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eleitorais ou em decisões de órgãos colegiais), mas, em muitos casos, resultará de vícios


substanciais (por exemplo, nos casos tradicionais de fundamentos ou motivos
superabundantes).

4. A nulidade.

O CPA prevê atualmente um único fundamento para a nulidade dos atos


administrativos: a determinação expressa da lei, seja nos casos previstos no artigo 161.º/2,
seja nas situações previstas em leis avulsas.
Com efeito, deixou de prever, por razões de segurança jurídica, as chamadas
nulidades por natureza, que se verificavam mediante a falta de qualquer elemento essencial
do ato. Ora, o preceito identifica uma série exemplificativa de hipóteses de nulidade, que
correspondem à tradição jurisprudencial e legislativa (ligada às invalidades dos atos da
administração local), acrescida em 2015 de várias situações, propostas ou detetadas ao longo
do tempo pela doutrina e jurisprudência.
Os casos previstos no CPA respeitam a vícios relativos a momentos essenciais
relativos ao sujeito, ao objeto, ao fim, ao conteúdo, à forma e ao procedimento do ato – nessa
medida, a qualificação legal pretende corresponder a uma identificação de nulidades por
natureza – ou melhor, a um critério substancial.

4.1. O princípio da taxatividade das causas de nulidade e a eliminação cláusula geral do CPA.
(a antinomia (intra)sistemática do novo CPA)
A conjugação do artigo 148.º com o artigo 155.º/2 permite concluir que o legislador,
quando estejam referidos os elementos a que se referem estes artigos, dá como juridicamente
existente uma decisão, um ato administrativo imputável a um órgão administrativo ou a uma
entidade de outra natureza, incluindo de direito privado, desde que investida, para efeito, de
poderes administrativos. Ou seja: reunidos aqueles elementos, dá como resolvida a questão
da existência jurídica de um ato administrativo, pelo que, constatada a existência deste, o
único problema a colocar consiste em saber se esse ato é, ou não, (in)válido e, sendo inválido,
identificar o tipo de invalidade; saber se o vício ou os vícios que o afetam provocam a sua
mera anulabilidade ou a nulidade.
Aqui reside um dos argumentos fundamentais que permite compreender a razão pela
qual o legislador terá procedido à supressão da cláusula geral do artigo 133.º/1 do CPA
revogado, em que se estabelecia “são nulos os atos a que falte qualquer dos elementos
essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Doravante, apenas (e só) “são nulos os atos para os quais a lei comine expressamente essa
forma de invalidade (art. 161.º/1).
Com efeito, a conjugação daquelas disposições pressupõe uma equivalência material
e funcional entre elementos essenciais e elementos estruturais do ato administrativo.
Efetivamente, quando seja emitida uma decisão que identifique o autor e indique o
destinatário, se for o caso, e o objeto a que se refere o seu conteúdo (art. 155.º/2), estaremos
ante um ato administrativo por conter todos e cada um dos seus elementos qualificativos e,
portanto, estruturais: uma estatuição (decisão); um sujeito (o órgão autor dessa decisão); um
objeto (mediato e imediato); e uma decisão que, naturalmente, há-se ser precedida de um
ritual formativo, mais simples ou mais complexo (o procedimento, que pode ser obrigatório ou
facultativo) e que terá de ser adotada segundo um certo modo que a lei prescreva (a forma,
que pode ser oral, escrita, gestual). Ora, se assim é, então, na lógica do legislador, a primeira
parte do artigo 133.º/1 do CPA, ao referir-se a “quaisquer dos elementos essenciais” do ato
administrativo seria redundante ou duplicativa ou, pelo menos, indicadora de alguma
ambiguidade legal e, como tal, sempre geradora de insegurança e incerteza jurídica.
Consequentemente, feita esta equação impor-se-ia como lógica a sua eliminação.
No entanto, não é seguro que assim seja (equivalência jurídica – material e funcional
– entre aqueles elementos) e, não obstante, reconhecemo-lo, a ambiguidade que a semântica
terminológica da citada cláusula sempre poderia suscitar, entendemos que o legislador
arrepiou caminho, no plano prático e no plano da construção teórica da invalidade do ato
administrativo, ao adotar uma perspetiva normativista e taxativa das causas de nulidade do
ato administrativo. Doravante, um ato administrativo só será nulo se a lei assim
expressamente o determinar: a causa (vício invalidante) e a consequência ou sanção
(nulidade) hão-de estar legalmente tipificadas.
Esta opção do legislador não deixa de ser discutível. Em primeiro lugar, no plano
prático-jurídico, na medida em que a previsão legal de novas situações de nulidade (salvo as
que venham a ser previstas em leis especiais) implica a necessária revisão do Código, o qu
não favorece a estabilidade inerente a um documento normativo com tal qualidade. Em
segundo lugar, ainda que as fortes razões justificativas da opção residam na identificação
histórica das nulidades típicas e em razões de segurança e certeza jurídica, é duvidoso que,
numa adequada ponderação, tais justificações superem, no plano prospetivo, as sempre
emergentes dimensões axiológicas do Direito, particularmente do Direito Administrativo, cuja
permanente mutação e globalização se revela cada vez mais intensa e extensa,
designadamente, ante a influência do Direito Administrativo Europeu ou de um Direito
Administrativo Transnacional. Em terceiro lugar, devem ser considerados nulos por natureza
aqueles atos que sofram um vício especialmente grave, avaliado em concreto em função das
características essenciais de cada tipo de ato – será nulo um ato que contenha uma

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

ilegalidade tão grave que ponha em causa os fundamentos do sistema jurídico, não sendo,
em princípio, aceitável que produza efeitos jurídicos. Isto porque se visa a garantia de valores
comunitários e interesses substantivos importantes – uma construção que se inscreve na luta
pela consolidação do valores do Estado de Direito Democrático no contexto das relações
jurídico-administrativas.
Ora, se é este o plano dos fundamentos axiológicos justificantes de uma sanção mais
grave para as decisões administrativas, não vemos como é que uma tal dimensão possa
dogmaticamente ficar definitivamente estabilizada ou eternizada em opções prescritivo-
normativas de tipo taxativo.
Além do mais, na sistemática do próprio CPA podem descortinar-se dois casos em
que é sugerida a abertura à nulidade, não obstante esses casos não tenham uma imediata e
expressa subsunção às causas de nulidade expressamente tipificadas no seu artigo 161.º.
Em primeiro lugar, o artigo 8.º aponta claramente nesse sentido. Com efeito, no plano
hipotético, não pode, de antemão, excluir-se a possibilidade, designadamente em face de um
extenso e difuso ordenamento jurídico-administrativo e da cada vez mais intensa tecnicidade
de certas atividades administrativas, que os decisores públicos não venham a obter soluções
e decisões incompatíveis com aquela ideia de Direito. Em situações deste género,
provavelmente, ninguém duvidará que os valores da legalidade do Estado de Direito
Democrático e da justiça deverão prevalecer sobre a certeza e a segurança jurídica e que o
desvalor ético-jurídico de uma tal decisão merecerá uma sanção mais severa que a mera
anulabilidade. Ora, se a concreta situação prefigurada não for subsumível a uma das causas
expressas de nulidade tipificadas no referido artigo do CPA e não podendo ser qualificada
como uma lacuna legal, só restará reconduzi-la, ainda que inadequadamente, ao regime geral
da anulabilidade (art. 163.º/1).
Uma outra situação devera equacionar-se no artigo 168.º/4-a). Com efeito, se o artifício
fraudulento constituir ou for determinado pela prática de um crime, estaremos em face de uma
situação típica de nulidade, a subsumir no artigo 161.º/2-c). Contudo, o artifício fraudulento
pode, ainda que não constitua ou seja determinado pela prática de um crime, revelar-se de
tal modo ostensivo e ofensivo da legalidade do Estado de Direito Democrático e dos valores
do Direito Administrativo, que a sanção e o regime da mera anulabilidade se revele
inapropriado. Na verdade, note-se que entre um desvalor ético-jurídico máximo (atos que
envolvam a prática de um crime, a implica a nulidade) e um desvalor de semelhante natureza,
mas menos censurável (anulabilidade) é legítimo ponderar zonas mais ou menos difusas de
fronteira, mas em que a concreta gravidade do desvalor pena para a nulidade do ato e não
para a sua mera anulabilidade.
Por fim, note-se que tratamos de hipóteses possíveis que apoiam o argumento de que
a opção por um numerus clausus poderá não configurar, no plano prospetivo, como a mais

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

apropriada no quadro da dogmática geral do ato administrativo e, particularmente, na teoria


geral da invalidade do ato administrativo. A par com esta ideia estarão algumas razoes
práticas que talvez justificassem a manutenção de uma cláusula geral, ainda que com uma
formulação eventualmente diferente do CPA revogado, sempre podendo uma tal cláusula
funcionar como último recurso para resolver eventuais lacunas legais, relativamente a
situações em que se justifique ou venha a justificar-se a sanção da nulidade. Naturalmente
que o caráter excecional da nulidade, a pressupor preferencialmente a sua expressa previsão
na lei, também não constitui um argumento que, só por si, seja decisivamente justificativo e
impeditivo da manutenção de uma cláusula daquele tipo. Confessadamente, o legislador fez
ceder o princípio da justiça material no confronto com a segurança e a certeza jurídicas. Além
do mais, o argumento dos casos contados em que a referida cláusula foi objeto de utilização
pela jurisprudência também não se pode considerar decisivo. Pelo contrário, pode até
considerar-se que demonstra o contrário da própria opção do legislador, pois, pelo menos
alguns casos de nulidade hoje previstos, têm precisamente a sua origem relacionada com a
aplicação judicativa e/ou interpretação doutrinal daquela cláusula.

4.2. Os novos casos de nulidade.


Determina-se no artigo 161.º/1 que “são nulos os atos para os quais a lei comine
expressamente essa forma de invalidade”. No n.º 2, estabelecem-se, em termos gerais, as
causas (expressas) de nulidade do ato administrativo, ainda que exemplificativamente, em
virtude da utilização do advérbio “designadamente”, ressalvando-se as causas de nulidade
previstas e dispersas por legislação avulsa.
▪ Alínea c);
A alínea c) contém um aditamento particularmente relevante relativamente
ao que se previa na mesma alínea do CPA revogado, onde se dispunham que
eram nulos os atos cujo objeto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime,
passando a agora a determinar-se a mesma sanção para os atos cujo objeto ou
conteúdo seja determinado pela prática de um crime. Não obstante se entendesse
que à anterior alínea c) já seriam subsumíveis os casos de nulidade respeitantes
quer ao objeto mediato (coisa ou bem sobre que incide) e imediato (conteúdo) do
ato administrativo, quer aqueles em que a relevância criminal não residia apenas
no seu conteúdo (no conteúdo do ato, em si mesmo), mas também nas motivações
ou finalidades que teriam determinado esse conteúdo (que teriam determinado a
prática do ato), o legislador, numa função normativamente esclarecedora,
entendeu completar a norma.
▪ Alínea e);

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Esta alínea surge como consensual, designadamente, em face da


construção doutrinal que vinha sendo feita deste tipo causal de nulidade. E este
motivo compreende-se intuitivamente, não apenas porque a AP visa a
prossecução do interesse público e por, no exercício das suas funções, os
trabalhadores da AP e demais agentes do Estado e outras entidades públicas
estarem exclusivamente ao serviço do interesse público (arts. 266.º/1 e 269.º
CRP), mas sobretudo por se ter como intolerável que um decisor público faça uso
de poderes públicos para a satisfação de interesses privados, lícitos ou ilícitos,
pessoais ou de terceiros.
A previsão deste vício como causa de nulidade do ato administrativo revela-
se particularmente importante num contexto em que a relação entre a lei e a
Administração tem sofrido alterações profundas, designadamente, por aquela
surgir, cada vez mais, como norma-fim, não fixando os específicos pressupostos
da ação administrativa ou apenas os fixando vagamente, alargando, assim, os
espaços de valoração e de decisão (discricionariedade) dos órgãos da
Administração.
Por fim, note-se que se compreende que o legislador não tenha
estabelecido a mesma sanção para as hipóteses em que os órgãos administrativos
usem os respetivos poderes discricionários para a prossecução de outros
interesses públicos diferentes dos legalmente estabelecidos. É que, nestas
situações, os decisores públicos, não obstante se desviarem do fim legar, ainda se
mantém no círculo dos interesses da Administração. Por isso, os atos praticados
em tais circunstâncias serão apenas anuláveis.
▪ Alínea f);
Nesta alínea, foi introduzida a precisão técnica de que a coação pode ser
física ou moral. Na verdade, embora a anterior legislação apenas se referisse a
atos praticados sob coação, não a qualificando, era, no entanto, pacífico o
entendimento de que aí se abrangia a coação absoluta ou relativa, na medida em
que a livre manifestação da vontade do Poder, da vontade jurídico-pública é um
princípio de dignidade constitucional inalienável: a sua violação é tão chocante no
caso de coação resistível, como o é na irresistível, sendo certo que, nesta, em
rigor, nem sequer há uma decisão (ato administrativo) o que apontaria para a
inexistência jurídica. Quanto aos atos praticados sob coação relativa, por
implicarem a prática de um crime, a sua nulidade já decorreria da alínea c).
▪ Alínea j);
Os atos certificativos de factos inverídicos ou inexistentes eram apontados
como um dos exemplos típicos da aplicação da cláusula geral do anterior CPA, por

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

carência absoluta de objeto ou de conteúdo. Incluem-se os atos administrativos


que tenham po objeto a verificação de pressupostos legalmente estabelecidos da
titularidade e exercício de um direito, por constituírem verificações constitutivas,
isto é, atos administrativos declarativos com efeitos constitutivos. Para além disso,
muitos atos desses produzem efeitos preclusivos, que não consiste apenas na
verificação declarativa (certa e probatória) daqueles pressupostos legalmente
vinculados, mas também na constituição de uma força vinculante advinda do
reconhecimento do direito subjetivo perante terceiros, incluindo a própria
Administração, adquirindo ou gozando assim de uma incontestabilidade ou
preclusividade substancial ou parcial, salvo prova em contrário, apresentada em
juízo.
Ao ser qualificado constitutivo, aquele efeito apresenta-se dotado de um
alcance mais alargado e mais intenso do que o normalmente atribuído aos meros
atos instrumentais de conteúdo declarativo (verificações) ou atos declarativos
proprio sensu (meramente declarativos). Em todo o caso, estes atos da
Administração (atos meramente declarativos) produzem um efeito de certeza legal,
fé pública ou força probatória, na medida em que sempre certificam ou comprovam
a existência jurídica de uma situação, de uma qualifade ou de um direito cujo
conteúdo já se encontra, ex ante, plenamente definido e estabilizado na esfera do
seu titular.
▪ Alínea k);
Esta alínea transpõe para o novo CPA uma causa de nulidade
sucessivamente prevista na legislação autárquica. Assim continua a suceder no
artigo 59.º da Lei n.º 75/2013, por força da qual são nulas as deliberações de
qualquer órgão das autarquias locais que envolvam o exercício de poderes
tributários ou determinem o lançamento de taxas ou mais-valias não previstas na
lei.
Ao referir-se genericamente a atos que criem obrigações pecuniárias não
previstas na lei, terá sido intenção do legislador abranger outro tipo de atos e não
apenas os que tenham por objeto matéria tributária. No âmbito intensivo e
extensivo de obrigações pecuniárias caberão todas as decisões da Administração
que, unilateralmente, imponham obrigações de pagamento aos particulares,
incluindo obrigações pecuniárias a título de multas ou coimas. Por outro lado, a
exigência de base legal (“não previstas na lei”) há-de ser interpretada de acordo
com os cânones jurídico-constitucionais, isto é, em função das exigências que a
Constituição estabeleça ao nível do princípio da legalidade, o que não impede a
mediação regulamentar, desde que legalmente habilitada.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

O pressuposto é sempre a exigência primária de lei; a densidade ou


determinabilidade legal das obrigações pecuniárias há-de variar consoante as
matérias especificamente em causa. Assim, será mais exigente em matéria de
criação de obrigações pecuniárias tecnicamente reconduzíveis a impostos, do que
em matéria de taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades
públicas.
Também em matéria contraordenacional, cuja sanção típica tem caráter
económico ou pecuniário (coima), a Constituição apenas exige a intervenção
primária da lei para estabelecer o respetivo regime geral (art. 165.º/1-d) CRP). Com
efeito, a CRP não impede uma mediação regulamentar constitutiva que sirva de
imediato fundamento a atos administrativos impositivos de obrigações pecuniárias,
designadamente, no âmbito material de regulamentos autónomos das autarquias
locais e de regulamentos das entidades reguladoras.
▪ Alínea l).
Conforme o disposto nesta alínea, deve entender-se que serão nulos não
apenas os atos que não sejam precedidos do procedimento legalmente vinculado
ou obrigatório, porque estabelecido num diploma com valor formal de lei, mas
também quando a preterição total tenha por objeto um procedimento que a
Administração se tenha autoimposto a observar através de regulamento.
No entanto, a preterição total pode igualmente consistir numa preterição por
substituição ou fusão de procedimentos ou numa utilização de tal modo
descaracterizadora ou desfiguradora (perda de identidade) do procedimento
legalmente estabelecido a tal ponto que se possa fazer equivaler, estrutural ou
funcionalmente, uma sua preterição total. Assim sucederá, por exemplo, com um
ato de nomeação de um trabalhador não precedido do procedimento concursal
previsto na lei.

Por fim, registe-se a eliminação da alínea i) do n.º 2 do CPA revogado, que


determinava a (automática) nulidade dos atos consequentes de atos administrativos
anteriormente anulados ou revogados”, desde que não haja contra-interessados com
interesse legítimo na manutenção do ato consequente. Com efeito, a teoria dos atos
consequentes faz agora parte do regime das consequências da anulação administrativa (art.
172.º), seguindo-se um caminho de harmonização com o regime da anulação judicial, previsto
nos artigos 173.º e ss. do CPTA. Efetivamente, a solução precedente, por se revelar
desproporcionada, ao estabelecer uma consequência lógica entre o ato anulado e os (seus)
atos consequentes, depressa viria a ser atenuada pela jurisprudência. Assim sucedeu no
Acórdão do Pleno do STA, de 17 de julho de 1993, no qual se sufragou a seguinte

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

jurisprudência: a regra de que são nulos os atos consequentes de atos anulados deve atingir
apenas os atos ou as partes de atos que seja estritamente necessário para reconstituir a
situação hipotética; de contrário, será violado o princípio da proporcionalidade,
nomeadamente, se com isso se atingirem direitos constituídos.

4.3. A posição adotada.


Com VIEIRA DE ANDRADE, entende-se que há uma necessidade de uma teoria científica
dos vícios, apoiada numa conceção estrutural do ato.
Com efeito, apesar de a lei portuguesa consagrar a tipicidade das nulidades, isso
resulta de uma opção pela segurança, mas não põe em causa a escolha de uma conceção
substancial da nulidade, continuando a impor-se, quer para efeitos de política legislativa, quer
para efeitos de interpretação e aplicação das normas legais, uma teoria das invalidades
substancialmente coerente e que tenha em consideração a espécie de atos em causa.
No que respeita à nulidade, entendemos que devem ser considerados nulos por
natureza aqueles atos que sofram um vício especialmente grave e, em princípio, evidente,
avaliado em concreto em função das características essenciais de cada tipo de ato.
Tem-se posto o problema de saber se o critério de gravidade deve ser complementado,
à alemã, por uma ideia de evidência para o cidadão médio, avaliadas as circunstâncias, quer
do vício, quer da sua gravidade (um vício de tal modo grave que não possa esperar-se de
nenhum cidadão que as cumpra ou respeite) – característica que, para além de constituir uma
garantia da excecionalidade e de uma maior certeza na identificação da figura, está
intimamente associada ao regime de invocação universal da nulidade.
Julgamos que o critério da evidência, ainda que não seja decisivo para a qualificação
do desvalor do ato como nulidade, será relevante para efeitos de regime, no que respeita à
declaração administrativa de nulidade e ao seu conhecimento pelos interessados, sobretudo
naqueles casos em que a enumeração legal tem alguma imprecisão conceitual. Assim, o
critério da gravidade (do vício) deve, em princípio, ser complementado por uma ideia de
evidência, para uma avaliação e aplicação adequada do alcance das qualificações legais de
invalidades. Por conseguinte, a partir das hipóteses previstas no artigo 161.º/2 CPA devem
considerar-se nulas as decisões administrativas com vício graves e evidentes, equiparáveis à
falta de elementos essenciais do ato administrativo, incluindo os que caracterizam cada
espécie concreta.
De facto, como a jurisprudência hoje admite, a nulidade haverá sempre de reportar-se
a um desvalor da atividade administrativa com o qual o princípio da legalidade não pode
conviver, mesmo em nome da segurança e da estabilidade, como acontece no regime-regra
da anulabilidade. Assim, deve ser nulo um ato que contenha uma ilegalidade tão grave que

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

ponha em causa os fundamentos do sistema jurídico, não sendo, em princípio, aceitável que
produza efeitos jurídicos, muito menos efeitos jurídicos estabilizados.

4.4. A determinação/identificação da lei que “comine expressamente essa forma de


invalidade”.
As nulidades expressamente previstas no artigo 161.º/2 CPA constituem um catálogo
que, na perspetiva do legislador, praticamente, esgotará as causas clássicas de nulidade.
Mas convirá ter presente sempre as nulidades especialmente previstas, isto é: as nulidades
previstas em diversa legislação avulsa em vigor; e as nulidades que o legislador venha a
estabelecer em futura legislação.

5. A anulabilidade dos atos administrativos.

5.1. Os fundamentos da anulação.


(ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas)
Quanto a este ponto, o novo Código, no artigo 163.º, mantém, no essencial, o que já
se estabelecia no CPA revogado. Contudo, o legislado introduz uma ligeira alteração
gramatical, mas que, designadamente no plano prospetivo, se pode revelar importante:
referimo-nos ao facto de o legislador estabelecer uma espécie de equivalência
material/substantiva e normativa entre princípios e normas jurídicas (“ofensa dos princípios
ou outras normas jurídicas aplicáveis”). Se bem entendemos, a interpretação deste segmento
não pode ser desligado do facto de o legislador ter introduzido novos princípios no Código,
em comparação com o que sucedia no CPA revogado. Em particular, o princípio da boa
administração e o princípio da razoabilidade.
Pelo primeiro, a AP deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e
celeridade (art. 5.º/1). Pelo segundo, que aparece associado ao princípio da justiça, a AP deve
rejeitar soluções manifestamente irrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito,
nomeadamente em matéria de interpretação de normas jurídicas (art. 8.º).
Designadamente, o primeiro é ainda um princípio in fieri, não tendo, pelo menos entre
nós (à exceção do tribunal de contas) uma tradição jurisprudencial e um tratamento dogmático
que o permitam afirmar como um critério normativo e um critério judicativo capaz de
fundamentar, só por si, a invalidação de um ato administrativo. Isto é, em termos simples, no
plano jurídico, não pode sancionar-se um ato administrativo com um juízo de invalidade, do
tipo da anulabilidade, por esse ato ser ilegal por violação do princípio da boa administração,
isto é, por um concreto órgão administrativo, ao praticar esse ato, não se ter pautado por
critérios de eficiência, economicidade e celeridade.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

De facto, os nossos Tribunais Administrativos têm vindo a anular amiúde atos


administrativo (apenas) com fundamento em princípios jurídicos, especialmente em zonas
discricionárias da atividade administrativa. Mas isso é assim, por estes princípios já deterem,
pelo labor da jurisprudência e da doutrina, um conteúdo normativo, ainda que aberto porque
conatural a qualquer princípio, mas já suficientemente determinado para servirem como
padrão ou norma de conduta dos órgãos administrativos e critério normativo ou regra de juízo
que permita medir a legalidade ou ilegalidade de um ato e, consequentemente, fundamentar
a sua anulação, por ser inválido em virtude da violação desses princípios.

6. Conexão entre vícios e tipos de invalidade dos atos.

São pensáveis dois modelos básicos para apresentar uma conceção estrutural do ato
administrativo: um modelo teórico e definitório, baseado no inventário de um conjunto de
elementos essenciais, enquanto partes componentes de uma edificação lógica; ou um modelo
prático e teleológico, que visa estabelecer um esquema descritivo dos aspetos significativos
do ato, capaz de fornecer uma explicação coerente do seu regime de funcionamento e
orientado pela necessidade de construção de uma teoria das invalidades.
Adotamos, seguindo ROGÉRIO SOARES, este último modelo, no qual se procura
identificar os momentos que sejam relevantes para efeitos de localização dos diversos tipos
de vícios de que o ato pode padecer, bem como para a avaliação das consequências do
respetivo desvalor, tendo em vista, designadamente, as diferenças de regime da invalidade,
que variam em função do alcance e da gravidade do defeito.
Procuraremos, agora, elaborar uma tabela de conexão, ainda que meramente
tendencial, entre vícios e tipos de invalidade dos atos em função do momento estrutural
afetado.

6.1. Vícios relativos ao sujeito.


As pessoas coletivas que integram a AP em sentido organizativo são, através dos
respetivos órgãos, os sujeitos típicos do ato administrativo, embora se admitam outros tipos
de sujeitos do direito administrativo: entidades privadas que exerçam poderes públicos e
órgãos de entidades públicas não administrativas.
Assim, quanto aos requisitos de validade do ato administrativo quanto ao sujeito, é
preciso que o órgão que o pratica: atue dentro das atribuições (finalidades) legais da pessoa
coletiva (ou ministério) a que pertence; exerça competências (poderes abstratos) que lhe
tenham sido concedidas pela lei (ou tenham sido nele delegadas com base na lei), em razão
da matéria, da hierarquia e do território; possua legitimação para exercer no caso concreto a
competência, verificando-se os requisitos e condições legais do exercício do poder.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Na falta destes requisitos, deparamo-nos com vícios relativos ao sujeito, que dizemos
serem eles, esquematicamente:
▪ Usurpação de poderes;
▪ Falta de atribuições;
▪ Incompetência;
▪ Falta de legitimação.
Assim, são nulos os atos praticados com usurpação de poder ou fora das atribuições
(art. 161.º/2-a) e b) CPA) – qualificação que valerá também para os atos praticados por órgão
territorialmente incompetente na administração descentralizada.
São nulos os atos com faltas graves de legitimação (falta de convocatória do órgão
colegial ou falta de reunião, falta absoluta de investidura do titular) – devendo a
tumultuosidade ou a falta de quórum (art. 161.º/2-h)) ser interpretadas, nos casos concretos,
em função da sua gravidade (o tumulto terá de ser violento e, quanto ao quórum, há-de ter-
se em conta o disposto no artigo 29.º/2 e 3).

6.2. Vícios relativos ao objeto.


O objeto do ato é o ente no qual se projetam diretamente os efeitos que o ato visa
produzir – que pode ser uma pessoa, uma coisa ou um outro ato administrativo. O objeto, em
sentido estrito, distingue-se do conteúdo (os efeitos jurídicos que o ato visa produzir) e do fim
(a finalidade de interesse público visada) do ato, embora se verifique o uso corrente dos
conceitos de objeto mediato (objeto propriamente dito) e de objeto imediato (conteúdo) como
conceitos ligados entre si.
Como requisitos de validade do ato, quanto ao objeto, identificam-se:
▪ existência (possibilidade física ou jurídica) – o objeto tem de existir no plano dos
factos e do direito, de modo que não é possível a requisição de uma coisa já
perecida, a nomeação de uma pessoa falecida ou a revogação de um ato
entretanto extinto;
▪ determinação (determinabilidade identificadora, conforme o tipo de ato), pelo que
tem de ser perfeitamente individualizado ou determinado (logo, não é válida a
decisão de promover o funcionário mais experiente de um serviço);
▪ idoneidade (adequação do objeto ao conteúdo), na medida em que o objeto tem
de preencher as qualificações necessárias para suportar os efeitos do ato (não se
pode validamente nomear como funcionário uma pessoa que não reúna os
requisitos legais);
▪ legitimação (qualificação específica para sofrer em concreto os efeitos do ato),
pelo que o objeto, para além de idóneo em abstrato, tem de preencher as
condições subjetivas legais para (no âmbito de um concurso, não se pode

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

validamente adjudicar um contrato a um candidato cuja proposta tenha sido


excluída).
Na falta deste requisitos, deparamo-nos com vícios relativos ao objeto que dizemos
serem eles, esquematicamente:
▪ Impossibilidade;
▪ Indeterminação;
▪ Falta de idoneidade;
▪ Falta de legitimação.
Assim: serão nulos, em princípio, os atos cujo objeto seja impossível (física ou
juridicamente) ou indeterminado (art. 161.º/2-c)); e serão anuláveis, em regra, os atos nas
situações de falta de idoneidade ou de falta de legitimação do objeto.

6.3. Vícios relativos à estatuição.


A estatuição refere-se à decisão, em si, isto é, à declaração formal que visa produzir
transformações no mundo jurídico. Tendo em conta a sua complexidade, distinguiremos as
dimensões substantivas das dimensões formais e instrumentais, desdobrando-as em
momentos juridicamente significativos, tendo em vista os efeitos práticos referidos.
6.3.1. Vícios substanciais.

6.3.1.1. O fim.
Nas normas-condição, como são as normas que preveem e regulam a prática de atos
administrativos, a definição legal do fim do ato administrativo não é expressa, decorrendo da
formulação dos pressupostos (pressupostos abstratos ou hipotéticos), isto é, das
circunstâncias da vida que revelam a existência do interesse público que o ato visa satisfazer.
Genericamente, podemos definir pressupostos, neste sentido de indicadores do fim,
como aquelas circunstâncias, não referentes ao sujeito ou ao objeto, de cuja ocorrência a lei
faz depender a validade da decisão (hipótese normativa). A verificação desses pressupostos
hipotéticos nos casos concretos da vida (pressupostos reais) impõe e justifica a decisão
administrativa – a justificação constitui a fundamentação formal do ato pela comprovação
concreta da existência real dos pressupostos definidos em abstrato na norma habilitante.
Com efeito, há dificuldades naturais na concretização do fim quando a lei utiliza
conceitos indeterminados na formulação da hipótese normativa – a avaliação administrativa
dos pressupostos legais, para efeitos da verificação da sua ocorrência no caso concreto, pode
ser juridicamente vinculada ou então remeter para uma valoração própria da função
administrativa.
A concretização do fim do ato, isto é, a concretização do interesse público específico
que a lei visa assegurar ao prever a decisão administrativa, que está em primeira linha a cargo

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

da Administração que vai atuar, tem necessariamente influência na determinação do conteúdo


(dos efeitos do ato), na medida em que este dependa de escolha discricionária –
particularmente na aplicação dos preceitos normativos que acoplem uma indeterminação
conceitual na hipótese com uma indeterminação estrutural na estatuição.
Neste sentido, os vícios de fim têm relevo autónomo apenas no domínio vinculado,
quando falte o pressuposto abstrato (falta de base legal) ou o pressuposto de facto (a situação
concreta invocada não existe – erro de facto – ou não é subsumível na hipótese legal – erro
de qualificação dos factos ou erro de direito quanto aos factos). Não obstante, note-se que a
fundamentação (justificação) errada é irrelevante, quando, apesar do erro, os pressupostos
legais se verifiquem na realidade.
Na falta deste requisitos, deparamo-nos com vícios relativos ao fim que dizemos serem
eles, esquematicamente:
▪ Falta de base legal;
▪ Erro de direito (erro de direito quanto aos factos);
▪ Erro de facto (erro da qualificação dos factos).
Normalmente, os vícios relativos aos pressupostos conduzem à anulabilidade, mas
podem provocar nulidades em circunstâncias que tornem a ilegalidade especialmente grave
– quando a falta de base legal se equipara a falta de atribuições.
Por fim, note-se que, no domínio discricionário, quer se trate de espaço de avaliação
relativo à própria hipótese legal, quer se trate de uma prerrogativa de decisão ou de um poder
de escolha conferido na estatuição, os vícios relativos aos pressupostos projetam-se sempre
na escolha do conteúdo. Em suma, no domínio discricionário os vícios de fim não têm
relevância.

6.3.1.2. O conteúdo.

No conteúdo (ou objeto imediato, entendido como os efeitos que o ato visa produzir)
do ato, há a considerar o conteúdo principal – que inclui o conteúdo legal típico (os efeitos
que, nos termos da lei, cada tipo de ato visa normalmente produzir) e o conteúdo discricionário
específico determinado pelo autor do ato no caso concreto (cláusulas particulares) – e as
cláusulas acessórias.
Relativamente aos vícios do conteúdo, importa a distinção entre aqueles ocorrem no
âmbito de atos vinculados, daqueles que ocorrem no âmbito de atos discricionários.
Com efeito, no âmbito dos vícios do conteúdo, relativos a atos administrativos
vinculados, estes ocorrem quando a AP dá ao ato administrativo um conteúdo diferente
daquele que decorre da lei, pelo que a sua consequência será, via de regra, a anulabilidade.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Por outro lado, os vícios no uso de poderes discricionários – que se verificam quando
os motivos invocados pelo autor do ato para tomar a decisão se comprovam inexistentes,
deficientes, falsos, desviados, errados, irrelevantes, contraditórios, incongruentes ou
ilegítimos – são vícios na relação fim-conteúdo (vícios funcionais da decisão), normalmente
associados à violação de princípios jurídicos que provocam, na generalidade dos casos, a
anulabilidade do ato.
Assim, note-se que há uma relação direta entre o fim e o conteúdo, que assume
especial relevância na metodologia da formação da vontade administrativa quando os atos
envolvem momentos discricionários de decisão: a avaliação integrada das considerações e
valorações em que se baseia o juízo de preenchimento no caso concreto dos pressupostos
legais (e, portanto, da verificação do fim de interesse público em causa) e projeta-se nos
argumentos e ponderações que permitem a escolha administrativa da melhor solução para o
interesse público, tal como foi concretizado, funcionando como motivos da decisão – a
ponderação com vista à decisão implica um vai-vem argumentativo entre a hipótese e a
estatuição normativa baseado nas circunstâncias do caso concreto.
Neste sentido, precisamente, na relação fim-conteúdo (relação que ocorre nos atos
discricionários) pode verificar-se o vício de desvio de poder que consiste no exercício de um
poder discricionário por um motivo principalmente determinante que não condiz com o fim que
a lei visou ao conferir tal poder. Com duas variantes: desvio de poder para fins de interesse
público, embora diverso daquele que a lei impõe, que é anulável; ou, ainda, o desvio de poder
para fins de interesse privado, que se verifica quando o órgão não prossegue um fim de
interesse público, mas um fim de interesse privado, o qual é nulo – o STA tem exigido que o
órgão atue com dolo, isto é, com o propósito consciente e deliberado de prosseguir o fim
ilegal.

6.3.2. Vícios formais.

6.3.2.1. Vícios de procedimento.


Neste contexto, interessa especialmente o procedimento legal, que engloba os
trâmites normativamente obrigatórios – embora haja procedimentos voluntários, auto-
escolhidos pelo agente administrativo, que relevam juridicamente apenas do ponto de vista
da necessária racionalidade das condutas.
A Administração está sujeita ao cumprimento ordenado dos trâmites legalmente
fixados, cuja falta ou desvio se repercute na validade da decisão – devendo notar-se que
relevam neste plano os atos jurídicos procedimentais e não quaisquer formalidades. Acresce
que há preceitos legais ou regulamentares simplesmente indicativos, cuja violação é causa
de meras irregularidades.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

A projeção do conteúdo dos atos preparatórios na feitura do ato não diz respeito ao
procedimento – por exemplo, um parecer erróneo pode afetar a validade do ato decisório
quanto ao conteúdo, mas não dá origem a um vício procedimental.
Neste sentido, os vícios de procedimento, que resultam da falta de trâmites
processuais provocam, em geral, a anulabilidade, mas, em alguns casos, geram a nulidade
(violação de direitos fundamentais procedimentais, designadamente em atos sancionatórios,
ou preterição total do procedimento legalmente exigido – artigo 161.º/2-d) e l) CPA) ou
constituir meras irregularidades – estes vícios não devem ser confundidos com os vícios que
ocorram nos atos do procedimento, por exemplo, pareceres ou provas ilegais, que podem
influir na decisão e projetar-se nela, determinando, então, vícios de conteúdo.

6.3.2.2. Vícios de forma.


A forma designa a manifestação exterior do ato administrativo, isto é, a maneira como
a própria decisão se exterioriza (oral, escrita, sinais, gestos). Neste sentido, não são formas
as documentações probatórias (atas) ou as meramente comunicativas (notificações ou
publicações). O princípio que rege a matéria é o da liberdade de forma: embora a forma escrita
seja ainda a mais frequente e surja como forma supletiva nos termos do artigo 150.º/1 CPA,
ela não vale, em egra, para os atos dos órgãos colegiais, que são praticados oralmente e
reduzidos a escrito (nº 2), e pode ser afastada por lei ou pela natureza e circunstâncias do
ato. Com efeito, o dever de fundamentação expressa dos atos administrativos (arts. 152.º e
154.º CPA) é um dever formal, porque a justificação (comprovação de que se verificam no
caso concreto os pressupostos vinculados do ato) e a motivação (a indicação das razões
específicas das escolhas discricionárias) têm de ser contextuais, isto é, têm de constar da
forma pública que contém a decisão, ainda que por remissão.
Assim sendo, os vícios de forma, que consistem no incumprimento do modo de
exteriorização do ato, incluindo a falta ou insuficiência da fundamentação obrigatória geram,
em regra, a anulabilidade do ato, podendo, no entanto, provocar a nulidade nos casos mais
graves, quando se verifique uma carência absoluta de forma legal (art. 161.º/2-g) CPA), ou
constituir meras irregularidades, quando estejamos perante aspetos formais menores, que
devam qualificar-se, em si, como formas não-essenciais.
A posição jurisprudencial tradicional de degradação das formalidades essenciais em
não-essenciais, quando não afetassem a validade substancial do ato, foi objeto de uma
resposta crítica da doutrina, baseada na revalorização do direito das formas, que tende a
conferir relevância invalidante à violação de preceitos formais, sobretudo ao incumprimento
de normas procedimentais e daquelas que visam assegurar a imparcialidade subjetiva dos
órgãos decisores.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

No entanto, nos casos de anulabilidade formal ou procedimental, a lei prevê uma


limitação dos efeitos invalidantes dos vícios em algumas situações típicas, tendo em conta a
instrumentalidade dos preceitos.
É de salientar a menor relevância dos vícios formais no contexto de um contencioso
administrativo de base subjetivista, na medida em que o processo não visa apenas, nem
principalmente, assegurar a legalidade, mas a garantia dos direitos e interesses legalmente
protegidos pelos particulares. Essa menor relevância manifesta-se sobretudo no âmbito das
ações com pedidos condenatórios, na medida em que os preceitos formais infringidos visem
assegurar apenas interesses públicos e não interesses dos particulares (cuja ofensa será, em
regra, pressuposto de legitimidade processual para a propositura desse tipo de ação) –
embora deva presumir-se a intenção protetora, sempre que uma norma de direito objetivo
seja necessária ou adequada à realização de determinados interesses particulares.

- Revisão do ato administrativo

Os atos administrativos inválidos podem ser objeto de revisão administrativa, isto é,


de uma reapreciação negativa ou divergente, pelo próprio autor ou por órgão dotado de
competência bastante, da qual pode resultar a convalidação do ato (por ratificação, reforma e
conversão) ou então a sua invalidação.

1. A declaração de nulidade dos atos.

Tradicionalmente, a nulidade dos atos administrativos era invocável, a todo o tempo,


por qualquer interessado e podia ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer tribunal
ou órgão administrativo. Partia-se do princípio de que o ato nulo era absolutamente
improdutivo e de que tal declaração não seria mais do que o reconhecimento de uma
evidência jurídica em casos raros. A partir destas características legalmente definidas, a
doutrina e jurisprudência concluíam que o ato nulo não tem força jurídica – não é vinculativo,
não tem força executiva, nem força executória – de modo que nenhum órgão ou agente
administrativo teria de o acatar e os particulares poderiam desobedecer-lhe, exercendo o seu
direito de resistência. No fundo, tudo parecia passar-se como se o ato administrativo não
existisse.
No entanto, este panorama apocalíptico do regime da nulidade, que foi elaborado
tendo em mente os atos da administração agressiva e uma tipificação legal muito restrita dos
casos e dos vícios geradores de nulidade, é excessivamente radical não responde em termos
adequados à realidade dos tempos de hoje – tendo em conta o alargamento do conceito, bem

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

como uma extensão da categoria da nulidade e o consequente caráter problemático da


invalidade.
Por isso, foram-se admitindo algumas compressões no que respeita ao regime legal
da nulidade – para além de se prever a impugnação judicial e a suspensão da eficácia de atos
nulos, reconheceram-se efeitos putativos e situações de facto criadas por atos nulos por
consideração de princípios jurídicos.
Assim, por exemplo: não deveria ser admissível a declaração de nulidade por qualquer
órgão administrativo ou por qualquer tribunal, tal como não deveria ser admitida sempre a
declaração de nulidade a todo o tempo; a nulidade deveria ser suscetível de convalidação em
determinados casos e, sempre, de conversão (expressa); os agentes administrativos não
teriam o dever de desobedecer (ou não poderiam desobedecer) a ordens nulas ou baseadas
em atos nulos, a não ser que implicassem a prática de um crime (ou, porventura, a ofensa do
conteúdo essencial de um direito fundamental do cidadão).
Tratava-se de introduzir alguma flexibilidade no regime, em função da diversidade de
situações e de reconhecer a dificuldade problemática, mesmo para os juristas, em distinguir
ou qualificar os atos nulos.

1.1. O CPA de 2015.


A revisão do CPA de 2015 veio ao encontro de algumas destas preocupações. Com
efeito, restringiu o âmbito de aplicação do regime da nulidade, ao impor uma prescrição legal
expressa desse tipo de invalidade. Teve em conta a diferença entre a declaração formal e o
conhecimento da nulidade: se é admissível, em princípio, a competência de qualquer órgão
ou de qualquer tribunal para conhecimento da nulidade (e consequente desaplicação do ato),
já só os órgãos administrativos competentes para a decisão ou os tribunais administrativos
podem proceder à declaração da nulidade de um ato administrativo. Admitiu, verificados os
pressupostos respetivos, a reforma e a conversão dos atos nulos. E clarificou e alargou a
possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos,
que antes se limitava às hipóteses de decurso do tempo associado a princípios gerais de
direito.
Ainda assim, no entender de VIEIRA DE ANDRADE, o regime da improdutividade total e
de invocação perpétua da nulidade não deixa de ser especialmente rígido, sendo suscetível
de afetar desrazoavelmente interesses dignos de proteção jurídica. Por exemplo, talvez não
devesse admitir-se a declaração de nulidade de atos favoráveis a todo o tempo, mas apenas
num prazo razoável, contado do conhecimento do vício, dentro de um limite máximo e medido
também em função da boa-fé do particular beneficiado. Tal como deveria recusar-se ou
limitar-se em certas hipóteses a competência administrativa para a declaração de nulidade,
designadamente quando não é evidente a existência desse tipo de invalidade ou,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

relativamente a determinados vícios, quando estes sejam inteiramente imputáveis ao órgão


administrativo – devendo exigir-se, então, a declaração de nulidade por via judicial.

1.2. Alcance da nulidade do ato perante os seus destinatários.


Neste contexto, interessa em especial analisar o alcance da nulidade do ato perante
os seus destinatários – a lei refere-se apenas à possibilidade de invocação pelos
interessados. Naturalmente, os destinatários do ato podem invocar a nulidade da decisão (em
regra, a todo o tempo) perante as autoridades administrativas ou judiciais competentes, para
que estas declarem ou conheçam a nulidade.
O problema é o de saber se têm o ónus de fazê-lo se quiserem evitar ou reagir contra
a modificação de uma situação de facto que o ato nulo muitas vezes produz. Ou seja, como
devem os destinatários comportar-se perante um ato que considerem nulo?
O artigo 21.º CRP consagra o direito de resistência dos cidadãos perante quaisquer
ordens que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias – mas na lei nada se diz
relativamente a outras situações, que não digam respeito a atos impositivos ou ablativos, ou
que não ofendam direitos fundamentais daquela qualidade. No entanto, tem de entender-se
que o regime da nulidade não inclui, fora o referido caso do direito de resistência, a
possibilidade de os destinatários pura e simplesmente ignorarem ou desobedecerem a uma
decisão de um órgão administrativo dotado de poderes de autoridade, como se esta não
existisse, por considerarem que, em seu juízo ou opinião, o ato é nulo. Com efeito, não pode
generalizar-se o poder de conhecimento autónomo da nulidade e a consequente liberdade,
direito ou poder de desaplicação do ato nulo, sobretudo quando a identificação da figura não
seja de solução evidente – e o risco de um juízo errado há-de correr por conta do destinatário
que não cumpra a decisão, não podendo justificar-se com a boa fé.
Neste sentido, há que distinguir as situações, só se justificando a radicalidade do
regime nos casos mais graves, quando seja evidente para um cidadão médio a ofensa
insuportável de valores básicos de legalidade.
O conhecimento da nulidade pelos destinatários, com a consequente desaplicação do
ato, há-de pressupor o exercício de um direito próprio anterior (um direito radicado na esfera
jurídica do particular) ou de uma competência própria do órgão ou agente administrativo
(incluindo uma competência de execução) – desde que esse direito ou essa competência não
dependam, eles próprios, da eficácia do ato considerado nulo.
Por conseguinte, é óbvio que o requerente não pode, por exemplo, ignorar um
indeferimento, que considere nulo, de uma dispensa ou licença (ou mesmo a recusa de
renovação de uma licença, embora possa haver aí um interesse legalmente proteído): o
particular tem de reagir judicialmente perante o ato (hoje, através de uma ação de
condenação, armada com as respetivas providências cautelares), visto que (ainda) não

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

adquiriu o direito a exercer a atividade – não será assim, em princípio, no caso de se tratar de
uma autorização permissiva, porque o particular já é titular do direito, embora na prática,
possa haver obstáculos ao exercício efetivo do seu direito, por ser necessária a colaboração
administrativa (por exemplo, a se for indispensável passagem de alvará).
Já não é tão claro, mas algo semelhante deverá valer, em regra, nos casos em que o
ato desfavorável é um ato de segundo grau, que anula ou declara nulo um ato anterior,
constitutivo de direitos ou poderes – o particular ou o órgão administrativo não podem ignorar
ou desaplicar o ato administrativo secundário e exercer o direito ou o poder conferido pelo ato
de 1.º grau, a não ser que se trate de um caso em que não possa haver dúvidas razoáveis
sobre a nulidade, por o vício ser evidente e especialmente grave (v.g.: ato de segundo grau
que viole claramente decisão judicial transitada em julgado).
Esta limitação do conhecimento da nulidade dos atos administrativos de autoridade
aos casos de nulidade especialmente grave e evidente valerá do mesmo modo se estiverem
em causa atos ablativos, proibitivos ou impositivos de obrigações, designadamente, quando
não se trate do exercício de direitos, liberdades e garantias: o particular não goza do direito
de resistência e será, muitas vezes ou até em regra, obrigado a suportar os efeitos de facto
das decisões administrativas nulas, que a Administração pretenderá executar, se for caso
disso, coercivamente – cabe-lhe obter, por via judicial, proteção contra a atuação
administrativa, bem como a reconstituição da situação de facto anterior, caso o tribunal
confirme a existência de nulidade.
Por isso mesmo, torna-se fundamental a garantia de uma tutela judicial efetiva do
particular nestas situações – daí que a lei preveja, apesar da ilogicidade, a impugnação judicial
e, sobretudo, a própria suspensão da eficácia de atos nulos (que oferece a vantagem de
desencadear a proibição de execução do ato pela mera notificação judicial da apresentação
do requerimento de suspensão), sendo certo que, atualmente, para além da concessão quase
automática da providência requerida, quando se impugne ato manifestamente ilegal, se
admite, designadamente em situações graves e urgentes, a convolação do processo cautelar,
permitindo ao juiz antecipar o juízo sobre a causa principal (arts. 120.º/1-a) e 121.º CPTA).
A garantia de um amparo judicial, principalmente em situações de urgência, permite
evitar o risco de uma invocação errada pelos particulares, com prejuízo para eles e para o
interesse público, pois que mesmo nos casos que envolvam ofensa de direitos fundamentais,
deve haver um uso prudente do direito de resistência.
Ademais, note-se que a questão do conhecimento e da invocação da nulidade dos
atos administrativos não surge apenas no âmbito das relações externas, entre a
Administração e os cidadãos, ganhando outra dimensão quando se trate da aplicação do
regime nas relações administrativas internas – aí perdem espaço os direitos dos particulares

137
Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

e entram em consideração valores de disciplina, de segurança jurídica e de eficácia


associados à organização e ao funcionamento das instituições.
Embora a doutrina administrativa ainda se divida sobre o assunto, parece-nos que o
dever de obediência do agente ou titular de órgão sujeito a hierarquia há-de em princípio
prevalecer, mesmo nos casos de nulidade (o agente pode reclamar perante o superior e exigir
uma ordem escrita de execução do ato, que o isente de responsabilidade civil, embora se
deva ter em conta se ele está em condições de distinguir a nulidade da anulabilidade do ato
que vai aplicar), justamente para assegurar a disciplina e o normal funcionamento dos
serviços públicos – ressalva-se a hipótese de a execução do ato envolver a prática de um
crime, e porventura outras situações evidentes de nulidade-inexistência, como aquelas em
que esteja em causa o conteúdo essencial de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos,
embora, sobretudo nestas últimas hipóteses, se exija sempre a prudência do agente ou titular,
que há-de possuir conhecimentos jurídicos e estar convencido da ofensa ao valor
constitucional.
Situação diferente é, no entanto, a de um órgão, mesmo que subalterno, quando seja
titular de uma competência própria, ainda que seja de mera execução, no exercício da qual
poderá conhecer da nulidade do ato exequendo.

1.3. Restrição do poder de declarar a nulidade.


Alterações relevantes foram introduzidas ao regime estabelecido no CPA revogado,
passando agora a dispor-se que, salvo disposição em contrário, a nulidade é invocável a todo
o tempo por qualquer interessado e pode, também a todo o tempo, ser conhecida por qualquer
autoridade e declarada pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos competentes para a
anulação. Tal como acontecia no CPA revogado, a nulidade é invocável a todo o tempo, mas,
ao contrário do que aí sucedia, doravante, só pode ser declarada pelos tribunais
administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação.
Neste sentido, há uma reserva legal do poder de declarar a nulidade apenas (e só)
aos órgãos administrativos competentes para a anulação. Poder que o CPA revogado atribuía
indiferenciadamente a qualquer órgão administrativo e com a faculdade de o exercer a todo o
tempo. Mas o novo regime estabelece também uma cláusula de reserva de jurisdição aos
Tribunais Administrativos: o CPA revogado reconhecia a qualquer tribunal o poder de declarar
a nulidade e a todo o tempo; doravante, esse poder cabe apenas aos Tribunais
Administrativos.
No entanto, pode suceder que a competência jurisdicional para apreciação da
(i)legalidade de certo tipo de atos administrativos esteja, por lei, atribuída a outras ordens
jurisdicionais. Efetivamente, não obstante o alargamento do âmbito da jurisdição
administrativa que se propõe no Projeto de Revisão do Estatuto dos Tribunais Administrativos

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e Fiscais (e do CPTA), assim sucede com os atos administrativos sancionatórios do domínio


do direito das contraordenações ou do ilícito de mera ordenação social, cuja competência
jurisdicional, para conhecer da respetiva impugnação continua, em geral, a caber à jurisdição
comum ou a determinada jurisdição especializada ou que, entretanto, tenha sido
institucionalizada para dirimir litígios próprios de certas atividades.
Significa isto que o âmbito material da competência das autoridades administrativas
para declarar a nulidade de atos administrativos é, neste contexto, mais amplo do que o da
jurisdição administrativa, podendo oficiosamente ou por reclamação ou recurso hierárquico
dos interessados, declarar a nulidade de atos administrativos aplicadores de sanções
principais (coimas) ou acessórias, embora, em caso de impugnação judicial que tenha por
objeto os mesmos atos, a apreciação da sua ilegalidade – da ilegalidade da sanção aplicada
– não caiba à jurisdição administrativa.
De reter ainda que a nulidade dos atos pode ser conhecida por qualquer autoridade.
Por autoridade deverá entender-se qualquer outra autoridade pública, incluindo qualquer
Tribunal. Embora não disponham do poder de declarar formalmente a nulidade, tem, no
entanto, a faculdade – ou melhor, o poder-dever – de desaplicar os atos nulos. Se lhes é
deferido o poder oficioso de a conhecer, isso significa que lhes cave o dever de avaliar a
ilegalidade do ato e, consequentemente, se concluírem – ou se concluírem com segurança,
em faco dos elementos disponíveis – que ele enferma de um vício subsumível a uma das
causas de nulidade expressamente previstas no artigo 161.º (ou em nulidades especialmente
previstas), ficam, de tal modo, investidas no dever de não aplicar esse ato, desde logo porque,
sendo nulo, é, pelo regime legal, radicalmente improdutivo (não vincula, não produz qualquer
efeito jurídico). Tarefa que estará hoje mais facilitada pelo facto de apenas serem nulos os
atos por expressa determinação legal. Na verdade, se uma qualquer autoridade pública, em
face dos elementos de que dispõe fica ciente de que um determinado ato é nulo, a mera
decorrência ou observância da legalidade impõe-lhe o dever não aplicação desse ato.

1.4. Dever de ponderar os efeitos putativos do ato nulo.


A nulidade pode ser invocável a todo o tempo, mas salvaguarda-se a possibilidade de
atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia
com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros
princípios constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo (art. 162.º/3).
No entanto, relativamente ao que se estabelecia no anterior CPA, salienta-se a
novidade de, agora, o decurso do tempo constituir apenas um dos indícios a ter em conta. É
o que sugere a utilização do advérbio designadamente, embora com ele também se pretenda,
simultaneamente, realçar a importância do fator temporal. No plano histórico, esta proteção
conferida pela ordem jurídico-administrativa a situações de facto decorrente de atos nulos tem

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uma origem jurisprudencial e marcadamente ligada à função pública, designadamente pela


necessidade de salvaguardar a posição daqueles funcionários que, não obstante terem sido
providos por atos nulos, desempenhavam, ao longo de anos ininterruptos, as funções para
que haviam sido nomeados como qualquer outro funcionário cuja legalidade do provimento
era incontestável (ou, pelo menos, nunca vinha a ser posta em causa).
A jurisprudência foi sensível às consequências arrasadoras que a declaração
administrativa ou jurisdicional da nulidade daquele ato tinha para os particulares investidos no
exercício de funções públicas, quando se constatava que em nada tinham contribuído para a
nulidade do ato e que a desconheciam. Aliás, semelhante fenómeno ocorreu com os atos
praticados por um agente que tivesse sido investido no exercício de funções pública por um
ato inválido. Se este ato fosse objeto de anulação, todos os atos administrativos que esse
agente tivesse praticado seriam nulos, por, precisamente, constituírem atos consequentes de
um ato anulado. Circunstância que tornava indefesa a posição dos destinatários desses atos.
Por isso, para salvaguardar a confiança que tinham depositado naqueles atos, “inventou-se”
a solução de que tais atos valiam na ordem jurídica como atos administrativos válidos (isto é,
como se fossem atos administrativos.
O CPA revogado universalizou aquela proteção conferida pela jurisprudência aos
agentes providos por ato nulo, o que, para a época, no plano do direito positivo, constituiu,
sem dúvida, um louvável avanço, embora fazendo depender essa proteção do decurso do
tempo. Por isso, não deixa de ser igualmente merecedor de registo o facto de o legislador do
novo CPA relevar o facto temporal apenas como um dos elementos a ter em conta para
desencadear o reconhecimento de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos
nulos, especialmente quando se está em face de atos favoráveis e os respetivos destinatários
tenham, com base neles, construído o seu projeto ou programa de vida, sem que, de algum
modo, tenham contribuído para a nulidade do ato e também a desconheçam.
Em todo o caso, não obstante a redação do artigo 162.º/3 postule o princípio apenas
em termos de proteção potencial, deverá entender-se que a possibilidade de proteção se
converte em efetividade ou em efetiva proteção quando a justiça material das situações de
facto assim o reclamar. Queremos com isto dizer que, tratando-se de um ato favorável para o
destinatário, o órgão administrativa que venha a declarar a nulidade desse ato, oficiosamente
ou quando provocado por qualquer interessado, designadamente por já ter decorrido um
tempo razoável desde a prática desse mesmo ato, deve, naquela decisão, ponderar (ou
também ponderar) a possível existência de situações de facto que possam ser merecedoras
de atribuição de efeitos jurídicos.
Ou seja, este dever de ponderação, em face do tipo de ato e das concretas
circunstâncias, assume-se como um dever jurídico, uma vinculação jurídico-administrativa
para o órgão administrativo competente para declarar a nulidade. Circunstância diferente

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reside em saber se, no final, isto é, se feita aquela ponderação, vem, ou não, a conluir-se no
sentido de atribuir efeitos jurídicos à pressuposta situação de facto.

1.5. Alargamento do princípio do aproveitamento dos atos administrativos aos atos nulos.
De forma inovadora, o CPA alargou o princípio do aproveitamento dos atos
administrativos aos atos nulos, através dos institutos da reforma e da conversão de atos nulos
(art. 164.º/2). Com efeito, a reforma de atos nulos poderá afigurar-se especialmente
importante para os atos administrativos divisíveis, permitindo conservar a parte não afetada
ou as partes válidas deles (v.g.: num loteamento ilegal, a reforma poderá permitir a
conservação das construções entretanto realizadas, desde que, nessa parte, a ilegalidade
imputada ao loteamento não as afete). Por sua vez, a conversão de atos nulos permite a
mutação de atos através do aproveitamento dos seus segmentos válidos, procedendo-se,
com base neles, à prática de um outro ato (v.g.: a conversão de uma nomeação efetiva numa
nomeação provisória ou de uma licença definitiva numa licença precária, por, em ambos os
casos, o regime legal aplicável apenas permitir estes segundos títulos jurídicos).

2. A anulação administrativa de atos.

1.1. Objeto.
Quanto ao objeto da anulação administrativa, decorre da sua definição que o mesmo
há-de ser um outro ato; e um ato inválido, pois só assim estaremos perante uma verdadeira
anulação e não diante de uma revogação.
Não obstante, o que foi dito não significa que todo e qualquer ato inválido, só por o
ser, possa ser anulado pela Administração. Com efeito, o novo CPA prevê a impossibilidade
de anulação de determinados atos inválidos. Assim, conforme o disposto no artigo 166.º/1,
não podem ser objeto de anulação administrativa (nem, refira-se, de revogação): os atos
nulos; os atos anulados contenciosamente; e os atos revogados com eficácia retroativa. A
razão de ser destas situações de impossibilidade legal de anulação radica na própria natureza
das coisas.
Assim, quanto aos atos nulos, a explicação reside no facto de, atendendo ao desvalor
de que enfermam, tais atos não produzirem quaisquer efeitos jurídicos, pelo que não podem
ser destruídos: esta a razão para os atos nulos apenas poderem ser objeto de declaração de
nulidade e não de anulação administrativa (ou judicial). Quanto aos atos anulados
contenciosamente e os atos revogados com eficácia retroativa, a explicação é mais prosaica:
semelhantes atos não podem ser anulados porque os efeitos que produziram não só já
cessaram, como foram expurgados do ordenamento jurídico com eficácia retroativa, tudo se
passando, portanto, em princípio, como se tais atos nunca tivessem sido praticados.

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Por conseguinte, só os atos que sejam ilegais – mas que sejam meramente anuláveis,
isto é, que não incorram numa das ilegalidades taxativamente previstas no artigo 161.º CPA
e que, portanto, determinem a sua nulidade – e que ainda se mantenham em vigor no
ordenamento jurídico podem vir a ser objeto de anulação administrativa, com vista à
destruição dos seus efeitos.
Interessante é ainda saber se, além dos atos previstos no artigo 166.º/1, também nos
atos (ou nos casos) a que se refere o artigo 163.º/5 estamos perante situações de
insusceptibilidade de anulação administrativa. Na verdade, no que constitui uma limitação
inédita entre nós a nível legislativo, depois de configurar a anulabilidade como desvalor-regra
e estabelecer que o ato anulável produz efeitos jurídicos que podem ser destruídos com
eficácia retroativa mediante anulação administrativa ou judicial, dispõe o legislador que não
se produz o efeito anulatório quando se verifique uma das situações mencionadas pelo
preceito. Por conseguinte, estamos perante o acolhimento expresso, na lei, do princípio do
aproveitamento do ato administrativo, aqui consagrado como fonte de limitação da anulação.
O que não deixa de suscitar duas perplexidades.
A primeira tem que ver com a própria opção de fundo do legislador, ao acolher
expressamente um tal princípio e a dar-lhe foro de lei, ou seja, estamos perante uma auto-
derrogação legislativa, mediante a qual um diploma procede à degradação da força jurídica
da lei e admite que a violação do bloco legal aplicável à Administração possa não gerar a
invalidade dos atos com aqueles desconformes. E é esta opção tanto mais surpreendente
quando se sabe que, apesar da origem jurisprudencial deste princípio, a própria jurisprudência
administrativa tem vindo a tentar restringir as possibilidades da sua invocação perante a
Administração, tendo mesmo o STA afirmado claramente que “estando as autoridades
públicas subordinadas ao princípio da legalidade, é seu dever estrito cumprir
escrupulosamente aquela determinação legal, e não colocar-se numa posição marginar ao
escolher, arbitrariamente, as situações em que cumpre e aquelas outras em que decide não
cumprir, para depois vir invocar princípios jurisprudenciais”. Com efeito, se é certo que a
Administração, quando demandada em juízo, mesmo sem apoio claro na lei, já fazia
frequentemente apelo a este princípio, com o novo CPA, a Administração ganha renovado
fôlego para ensaiar esta linha de defesa, agora com inequívoco respaldo legal.
A segunda perplexidade, por seu turno, tem que ver com a identificação dos
destinatários-aplicadores deste princípio. Aquando da discussão pública do projeto, houve
quem considerasse estarmos perante normas de direito processual administrativo, normas
exclusivamente processuais dirigidas exclusivamente ao juiz administrativo – e daí retirasse
a conclusão de que, assim sendo, seria questionável a sua inserção no CPA. Pela nossa
parte, concordando inteiramente quanto à conclusão, não temos a certeza quanto às
premissas: é que, na verdade, se no projeto de referia efetivamente que o efeito anulatório

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poderia ser afastado pelo juiz administrativo, o que é certo é que esse segmento do preceito
não vingou na versão final do CPA, pelo que, hoje, nada no respetivo artigo 163.º aponta para
o facto de estarmos perante normas apenas aplicáveis pelo juiz administrativo. Por outro lado,
o princípio do aproveitamento do ato não é um princípio processual. Acresce que, não só o
preceito em causa abrange os Tribunais Administrativos e a Administração, como, além disso,
o número antecedente àquele que consagra este princípio do aproveitamento dirige-se
unicamente à Administração: ora, a sequência sistemática dos preceitos um elemento
sugestivo. Fica assim colocada a dúvida de saber se também a Administração será
destinatária-aplicadora do princípio em causa.

1.2. Competência para anular.


No que se refere à iniciativa da anulação administrativa, dispõe o artigo 169.º/1 CPA
que a mesma pode ser levada a cabo oficiosamente, por iniciativa espontânea da
Administração ou na sequência de pedido nesse sentido formulado por interessados. Nesta
segunda hipótese, o pedido anulatório deve ser deduzido através de reclamação ou de
recurso administrativo: se é certo que a lei confere aos interessados o direito de impugnar os
atos administrativos perante a Administração, nomeadamente, solicitando a sua anulação (art.
184.º/1-a)), por outro lado, impõe que tal direito seja exercido mediante reclamação ou
recurso, consoante os casos.
No entanto, note-se que os interessados não podem pedir a anulação administrativa
dos atos que se tenham tornado inimpugnáveis por via jurisdicional e que se enquadrem nos
casos previstos no artigo 168.º/1 a 4, conforme dispõe o n.º 5 desse preceito.
No que respeita à competência, resulta do artigo 169.º que são competentes para
proceder à anulação administrativa os seguintes órgãos: o órgão que praticou e o respetivo
superior hierárquico (n.º 3); o órgão delegante ou subdelegante, bem como o delegado ou
subdelegado, relativamente a atos praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de
poderes (n.º 4); o órgão que exerça poderes de superintendência ou de tutela sobre o órgão
autor do ato, mas apenas quando a lei o permita (n.º 5); e, por fim, o órgão competente para
a prática do ato, nos casos de atos administrativos praticados por órgão incompetente (n.º 6)
– solução que apresenta, porém, inconvenientes práticos, podendo causar graves
perturbações ao funcionamento da atividade administrativa e, em particular, à hierarquia
administrativa, permitindo, em tese, que um diretor-geral anule um ato de um ministro,
invocando ser o órgão competente para decidir naquelas matérias.

1.3. Forma e formalidades.


No que toca à forma e formalidades da anulação administrativa, o CPA é relativamente
parco, consagrando, no essencial, um princípio de paridade ou equiparação de formas (entre

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o ato anulado e o ato que procede à sua anulação – continua a vigorar o princípio de “que os
atos se desfazem pela mesma forma por que são feitos “, conforme ensinava já MARCELLO
CAETANO.
Assim, em princípio e salvo o disposto em norma especial, o ato de anulação
administrativa deve revestir a forma legalmente prescrita para o ato anulado (art. 170.º/1),
sendo que, caso a lei não estabeleça forma alguma para o ato anulado ou este tenha revestivo
forma mais solene do que a legalmente prevista, o ato de anulação administrativa deve
observar a mesma forma adotada pelo ato anulado (art. 170.º/2).
Quanto às formalidades, o aludido princípio da paridade ou da equiparação não é
levado tão longe, uma vez que o Código não parece impor que na anulação sejam observadas
todas as formalidades exigidas para a prática do ato anulado, mas tão-somente aquelas que
se mostrem indispensáveis à garantia do interesse público ou dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos interessados (art. 170.º/3). Esta disposição, no entanto, não deixa
de gerar alguma insegurança e perplexidade, seja porque nem sempre será fácil identificar as
formalidades indispensáveis em casa caso, seja porque deste modo, por via da anulação
administrativa, se permite a preterição de formalidades que foram ou deveriam ter sido
observadas na prática do ato anulado7.

1.4. Condicionalismos.
Desde logo, é relevante saber se há, ou não, impugnação administrativa ou judicial do
ato. No caso de haver impugnação administrativa, os requisitos e os prazos de decisão são
os estabelecidos na secção relativa às reclamações e recursos administrativos (arts. 184.º e
ss). Quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa
pode ter lugar até ao encerramento da discussão (art. 168.º/3) em consonância com o disposto
no CPTA (art. 64.º) – e não apenas, como antes, até à contestação da entidade administrativa.
No que respeita à anulação oficiosa, o prazo-regra para a anulação administrativa é
agora de seis meses e conta-se da data do conhecimento, pelo órgão competente, da causa
de invalidade, ou, nos casos de invalidade resultante de erro do autor, desde o momento da
cessação do erro.
No entanto, para além deste prazo, há a considerar outros condicionalismos temporais
e substanciais, que revelam uma diferença de regime entre os atos constitutivos de direitos e

7 Pense-se no caso da anulação de um ato por incompetência (art. 169.º/6): fará sentido que, ao anular um ato da
sua competência praticado por outro órgão, um órgão da AP possa conduzir um procedimento mais desformalizado
do que aquele que necessariamente adotaria se tivesse de praticar um ato naquela matéria e não tivesse havido
interferência do órgão incompetente (ou seja, se estivesse a decidir pela primeira vez e não a rever a decisão já
tomada por outro órgão)? MARCO CALDEIRA levanta dúvidas sobre o facto de estarmos perante um procedimento
administrativo de segundo grau justifique o aligeiramento nas formalidades procedimentais.

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os outros, considerando-se constitutivos de direitos os atos administrativos que atribuam ou


reconheçam situações jurídicas de vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos
ou sujeições, salvo quando a precariedade decorra da lei ou da natureza do ato (art. 167.º/3).
I. Atos constitutivos de direitos;
Os atos constitutivos de direitos só podem, em regra, ser objeto de anulação
administrativa dentro do prazo máximo de um ano, a contar da respetiva emissão (art.
168.º/2) – isto é, enquanto forem judicialmente impugnáveis. No entanto,
excecionalmente, os atos constitutivos de direitos podem ser objeto de anulação
administrativa, dentro do prazo de cinco anos, a contar da data da respetiva emissão
(salvo se a lei ou o direito da UE prescreverem prazo diferente) – isto é, mesmo que
já se tenham tornado judicialmente impugnáveis – em três circunstâncias elencadas
no artigo 168.º/4:
▪ Quando o respetivo beneficiário tenha utilizado artifício fraudulento com vista à
obtenção da sua prática;
▪ Quando se trate de atos constitutivos de direitos à obtenção de prestações
periódicas, no âmbito de uma relação continuada (caso em que a anulação tem
eficácia apenas para o futuro – sem prejuízo de i));
▪ Quando se trate de atos constitutivos de direitos de conteúdo pecuniário, cuja
legalidade, nos termos da legislação aplicável, possa ser objeto de fiscalização
administrativa para além do prazo de um ano, com imposição do dever de
restituição das quantias indevidamente auferidas;.
Para salvaguarda do princípio da proteção da confiança legítima, determina-
se, em geral, que a anulação administrativa de atos constitutivos de direitos constitui
os beneficiários que desconhecessem sem culpa a existência da invalidade (que
estejam, por isso, de boa fé) e tenham auferido, tirado partido ou feito uso da posição
de vantagem em que o ato os colocava (que tenham efetuado um investimento de
confiança), no direito de serem indemnizados, pelos danos anormais que sofram em
sequência da anulação (art. 168.º/6).
II. Restantes atos administrativos;
Podem ser objeto de anulação administrativa, mesmo que se tenham tornado
judicialmente inimpugnáveis, desde que não tenha decorrido o prazo máximo de 5
anos, a contar da respetiva emissão (art. 168.º/1). A lei determina ainda que, quando
o ato se tenha tornado inimpugnável por via jurisdicional, ele só pode ser objeto de
anulação administrativa oficiosa, tornando claro que não há, nessas situações, direito
do interessado a impugnação administrativa.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Com efeito, este regime rompe com a tradicional correspondência perfeita entre os
prazos da impugnabilidade judicial e da anulabilidade administrativa, com um duplo
fundamento: o decurso do prazo de impugnação não torna o ato válido; e pode haver boas
razoes para a anulação administrativa de atos tornados inimpugnáveis, seja de atos
desfavoráveis, seja mesmo, em circunstâncias excecionais, de atos constitutivos de direitos,
embora sempre dentro do prazo máximo de 5 anos, como garantia de estabilidade.
Trata-se de substituir uma solução puramente temporal por uma solução substancial,
racional e razoável, que atenda aos valores e interesses em presença nas situações da vida
– incluindo regimes especiais, com soluções diferenciadas, para responder a problemas
decorrentes das vicissitudes a que estão sujeitos os atos administrativos de eficácia
duradoura. Assim, explica-se a distinção entre o regime dos atos constitutivos e os não
constitutivos de direitos, designadamente, atos que imponham obrigações ou proibições,
quanto à respetiva estabilidade perante o poder de autocontrolo anulatório da Administração.
A lógica da proteção da confiança leva a que se estabeleça o prazo máximo de um
ano, a contar da prática do ato, para a anulação administrativa dos atos constitutivos de
direitos – que coincide com o prazo para o MP, em defesa da legalidade, invocar,
judicialmente, eventuais vícios – admitindo-se, em situações excecionais, devidamente
identificadas, a anulação no prazo de cinco anos, quando essa confiança não mereça
proteção (por má fé, não mereça proteção total ou deva ceder, ainda que mediante
indemnização, perante a primazia do interesse público. Isto fora dos casos em que tenha
havido impugnação judicial, em que a anulação é possível até ao encerramento da discussão.
Está em causa o equilíbrio entre a garantia da legalidade e a estabilidade associada À
confia

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CAPÍTULO V – CONTRATO ADMINISTRATIVO

1. Contrato e Administração Pública.


1.1. Contrato como categoria geral de direito.
1.2. Contrato da Administração Pública e Direito Administrativo.
2. Noção de contrato administrativo.
2.1. Contrato.
2.2. Presença de um contraente público.
2.3. Administratividade.
3. Utilização do contrato administrativo.
3.1. Princípio da liberdade de utilização do contrato administrativo.
3.2. Limites à liberdade de utilização do contrato administrativo.
4. Dois tipos fundamentais de contratos administrativos.
5. O contrato sobre o exercício de poderes públicos.
5.1. Delimitação do conceito.
5.2. Sentido da utilização do contrato como instrumento de exercício do poder público.

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