Você está na página 1de 70

COSACNAIFY

Vilém Flusser

O MUNDO CODIFICADO
POR U M A FILOSOFIA D O DESIGN E D A C O M U N I C A Ç Ã O

organização Rafael C a r d o s o
tradução Raquel Abi-Sâmara

LIVRARIA INTERNACIONAL

www.sbs.com.br
livrariainternacional@sbs.com.br
I N T R O D U Ç Ã O Rafael C a r d o s o 7

roísAs
FORMA E MATERIAL 22
A FÁBRICA 33
A ALAVANCA CONTRA-ATACA 45
A N A O COISA [ 1] 51
A N A O COISA [ 2 ] 59
RODAS 66
SOBRE FORMAS E FORMULAS 75
POR Q U E AS M A Q U I N A S DE ESCREVER ESTALAM? 80

CÓDIGOS
O QUE É COMUNICAÇÃO? 88
LINHA E SUPERFÍCIE 101
O MUNDO CODIFICADO 126
O F U T U R O D A ESCRITA 138
IMAGENS NOS NOVOS MEIOS 151
UMA NOVA IMAGINAÇÃO 160

CONSTRUÇÕES
SOBRE A PALAVRA DESIGN 180
O M O D O DE VER D O DESIGNER 187
DESIGN OBSTÁCULO PARA A R E M O C A O DE OBSTÁCULOS? 193
UMA ÉTICA DO DESIGN INDUSTRIAL? 199
DESIGN C O M O TEOLOGIA 205

Fontes dos textos 216


Bibliografia 218
Sobre o autor 221
COISAS
FORMA E MATERIAL

L
A palavra "imaterial" {immaterielV) t e m s i d o alvo d e disparates 23
há b a s t a n t e t e m p o . M a s , d e s d e que se c o m e ç o u a falar d e
"cultura imaterial", e s s e s d i s p a r a t e s n ã o p o d e m m a i s ser t o -
lerados. Este e n s a i o t e m a i n t e n ç ã o de recuperar o c o n c e i t o ,
a t u a l m e n t e m u i t o distorcido, d e "imaterialidade**.
A palavra materia resulta da tentativa d o s r o m a n o s de
traduzir para o l a t i m o t e r m o grego hylé. O r i g i n a l m e n t e ,
hylé significa "madeira", e a palavra materia d e v e ter designa-
do algo similar, o que n o s sugere a palavra e s p a n h o l a madera.
N o e n t a n t o , q u a n d o o s gregos passaram a empregar a pala-
vra hylé, n ã o p e n s a v a m e m madeira n o s e n t i d o g e n é r i c o d o
t e r m o , m a s referiam-se ã madeira e s t o c a d a nas oficinas d o s
carpinteiros. Tratava-se, para eles, d e encontrar u m a pala-
vra que p u d e s s e expressar o p o s i ç ã o e m relação ao c o n c e i t o
de "forma" (a morphé grega). Hylé, p o r t a n t o , significa algo
amorfo. A idéia f u n d a m e n t a l aqui é a s e g u i n t e : o m u n d o d o s
f e n ô m e n o s , tal c o m o o p e r c e b e m o s c o m o s n o s s o s s e n t i d o s ,
é u m a geleia amorfa, e atrás d e s s e s f e n ô m e n o s e n c o n t r a m -
se ocultas as formas e t e r n a s , i m u t á v e i s , que p o d e m o s per-
ceber graças à perspectiva suprassensível da teoria. A geleia
amorfa d o s f e n ô m e n o s (o "mundo material") é u m a ilusão
e as formas que s e e n c o n t r a m e n c o b e r t a s a l é m d e s s a ilusão
(o "mundo formal") são a realidade, que p o d e ser d e s c o b e r t a
c o m o auxílio da teoria. E é a s s i m que a d e s c o b r i m o s , co-
n h e c e n d o c o m o o s f e n ô m e n o s a m o r f o s afiuem às formas e
as p r e e n c h e m para d e p o i s afluírem n o v a m e n t e ao informe.
Essa o p o s i ç ã o hylé-morphé, o u "matéria-forma", fica ain-
da m a i s e v i d e n t e s e t r a d u z i r m o s a palavra "matéria" (Mate-
riel por "estofo" (Stoff). A palavra "estofo" é o s u b s t a n t i v o
d o v e r b o "estofar" (jstopferi). O m u n d o material (jnaterielle
2-4 VJelt) é a q u i l o q u e g u a r n e c e as f o r m a s c o m e s t o f o , é o re-
c h e i o (Füllsel) d a s f o r m a s . Essa i m a g e m é m u i t o m a i s escla-
recedora d o que a da madeira e n t a l h a d a q u e gera f o r m a s ,
p o r q u e m o s t r a q u e o m u n d o "do e s t o f o " (stoffliche Welt)
s ó se realiza ao s e t o r n a r o p r e e n c h i m e n t o d e algo. A pala-
vra f r a n c e s a q u e c o r r e s p o n d e a "recheio" (Füllsel) é farce,
o q u e t o r n a p o s s í v e l a afirmação d e q u e , t e o r i c a m e n t e , t o d o
material (Materielle) e t o d o e s t o f o (Stoffliche) d o m u n d o n ã o
d e i x a m de ser u m a farsa. C o m o d e s e n v o l v i m e n t o d a s c i ê n -
cias, a perspectiva teórica e n t r o u n u m a relação dialética
c o m a p e r s p e c t i v a s e n s ó r i a ("observação — teoria — experi-
m e n t o " ) , q u e p o d e s e r i n t e r p r e t a d a c o m o o p a c i d a d e da
t e o r i a . E a s s i m s e c h e g o u a u m m a t e r i a l i s m o para o qual a
m a t é r i a é a realidade. M a s h o j e e m dia, s o b o i m p a c t o d a
informática, c o m e ç a m o s a retornar ao conceito original
d e "matéria" c o m o u m p r e e n c h i m e n t o t r a n s i t ó r i o d e for-
mas atemporais.
Por r a z õ e s cuja explicação ultrapassaria o o b j e t i v o d e s t e
e n s a i o , d e s e n v o l v e u - s e a o p o s i ç ã o "matéria-espírito", i n d e -
p e n d e n t e m e n t e d o c o n c e i t o filosófico d e m a t é r i a . O c o n c e i -
t o original n e s s a o p o s i ç ã o é q u e c o r p o s s ó l i d o s p o d e m ser
transformados e m líquidos, e os líquidos, e m gases, poden-
d o e n t ã o escapar d o n o s s o c a m p o d e v i s ã o . A s s i m se p o d e
e n t e n d e r , p o r e x e m p l o , o h á l i t o ( e m g r e g o , pneuma; e m la-
t i m , spiritus) c o m o a g a s i n c a ç ã o d o s ó l i d o c o r p o h u m a n o .
A transição d o s ó l i d o para o g a s o s o (do c o r p o a o espírito)
p o d e ser o b s e r v a d a n o e f e i t o d o s o p r o e m dias frios.
Na ciência m o d e r n a , a idéia da m u d a n ç a de e s t a d o s da
matéria ( d o s ó l i d o a o líquido, d o líquido ao g a s o s o — e vice-
versa) d e u o r i g e m a u m a n o v a i m a g e m d o m u n d o . Trata-se,
grosso modo, d e u m a m u d a n ç a e n t r e d o i s h o r i z o n t e s . E m 25
u m d e l e s (o d o zero a b s o l u t o ) , t u d o o q u e s e m o s t r a é sóli-
d o (material); já n o o u t r o h o r i z o n t e (na v e l o c i d a d e da luz),
tudo se apresenta n u m estado mais do que gasoso (energé-
tico). (Vale lembrar aqui que "gás" e "caos" s ã o a m e s m a pala-
vra.) A o p o s i ç ã o "matéria-energia" que aparece aqui n o s re-
m e t e ao e s p i r i t i s m o : p o d e - s e c o n v e r t e r m a t é r i a e m e n e r g i a
(fissão) e e n e r g i a e m m a t é r i a (fusão) — a f ó r m u l a d e Eins-
t e i n faz e s s a articulação. C o n f o r m e a v i s ã o d e m u n d o d a
ciência m o d e r n a , t u d o é e n e r g i a , o u seja, é a possibilidade
de a g l o m e r a ç õ e s casuais, i m p r o v á v e i s , é a capacidade de for-
m a ç ã o da m a t é r i a . A "matéria", n e s s a v i s ã o d e m u n d o , equi-
para-se a ilhas t e m p o r á r i a s d e a g l o m e r a ç õ e s (curvaturas)
em campos energéticos de possibilidades, que se entrecru-
zam. E daí p r o v é m o d e s p r o p ó s i t o , e m m o d a h o j e e m dia,
de se falar d e "cultura imaterial". O q u e s e e n t e n d e aqui é
u m a cultura e m q u e as i n f o r m a ç õ e s s ã o i n t r o d u z i d a s e m
u m c a m p o e l e t r o m a g n é t i c o e t r a n s m i t i d a s a partir d e s s e
campo. O despropósito consiste não apenas no abuso do
c o n c e i t o "imaterial" ( e m lugar d e "energético") c o m o t a m -
b é m n a c o m p r e e n s ã o i n a d e q u a d a d o t e r m o "informar".
R e t o m e m o s a o p o s i ç ã o original "matéria-forma", i s t o é,
" c o n t e ú d o - c o n t i n e n t e " . A idéia básica é esta: s e vejo a l g u m a
coisa, u m a m e s a , p o r e x e m p l o , o q u e vejo é a madeira e m
forma de m e s a . É v e r d a d e q u e e s s a madeira é dura (eu t r o p e -
ço nela), m a s s e i que perecerá (será q u e i m a d a e d e c o m p o s -
ta e m c i n z a s a m o r f a s ) . A p e s a r d i s s o , a f o r m a "mesa" é e t e r -
na, pois p o s s o imaginá-la quando e onde eu estiver (posso
colocá-la a n t e m i n h a v i s a d a teórica). Por i s s o a f o r m a "mesa"
é real e o c o n t e ú d o "mesa" (a madeira) é a p e n a s aparente.
26 Isso m o s t r a , na v e r d a d e , o q u e o s carpinteiros f a z e m : p e -
g a m u m a f o r m a de m e s a (a "idéia" d e u m a m e s a ) e a i m -
p õ e m e m u m a peça a m o r f a d e madeira. Há u m a fatalidade
n e s s e ato: o s carpinteiros n ã o a p e n a s i n f o r m a m a madeira
( q u a n d o i m p õ e m a forma de m e s a ) , m a s t a m b é m d e f o r m a m
a idéia de m e s a ( q u a n d o a d i s t o r c e m na madeira). A fata-
lidade c o n s i s t e t a m b é m n a i m p o s s i b i l i d a d e d e s e fazer u m a
m e s a ideal.
Isso t u d o p o d e soar arcaico, n o e n t a n t o é d e u m a atua-
lidade, d i g a m o s , abrasadora. V e j a m o s u m e x e m p l o s i m p l e s
e p o s s i v e l m e n t e esclarecedor: o s c o r p o s d e n s o s q u e n o s ro-
d e i a m p a r e c e m rolar i n d e p e n d e n t e m e n t e d e regras, m a s na
realidade o b e d e c e m à f ó r m u l a da q u e d a livre. O m o v i m e n t o
percebido p e l o s s e n t i d o s (aquilo que é material n o s c o r p o s ) é
a p a r e n t e , e a f ó r m u l a d e d u z i d a t e o r i c a m e n t e (aquilo q u e
é formal n o s c o r p o s ) é real. E e s s a f ó r m u l a ( o u e s s a forma)
e s t á fora d o t e m p o e d o e s p a ç o , é i n a l t e r a v e l m e n t e e t e r n a .
A fórmula da q u e d a livre é u m a e q u a ç ã o m a t e m á t i c a , e as
e q u a ç õ e s s ã o d e s p r o v i d a s d e t e m p o e d e e s p a ç o : n ã o faz
s e n t i d o perguntar se a equação "1 + 1 = 2" é i g u a l m e n t e ver-
dadeira às quatro h o r a s da tarde e m S e m i p a l a t i n s k . M a s
t a m b é m faz p o u c o s e n t i d o dizer q u e a f ó r m u l a é "imate-
rial". E l a é o como d a m a t é r i a , e a m a t é r i a é o o quê d a f o r -
m a . E m o u t r a s p a l a v r a s : a i n f o r m a ç ã o " q u e d a livre" t e m u m
conteúdo (corpo) e u m a forma (uma fórmula matemática).
U m a explicação c o m o essa poderia ter sido dada n o perío-
do barroco.
M a s a p e r g u n t a insiste: c o m o Galileu c b e g o u a essa
idéia? Será q u e a d e s c o b r i u t e o r i c a m e n t e , a l é m d o s f e n ô -
m e n o s (interpretação platônica), o u a teria inventado c o m
a f i n a l i d a d e d e orientar-se entre os corpos? Ou por acaso 27
teria p a s s a d o l o n g o t e m p o b r i n c a n d o c o m c o r p o s e idéias
até q u e surgisse a idéia d a q u e d a livre? A r e s p o s t a a e s s a
pergunta decidirá se o edifício da ciência e da arte p e r m a -
n e c e o u cai, e s s e p a l á c i o d e c r i s t a l d e a l g o r i t m o s e t e o r e m a s
a q u e c h a m a m o s d e c u l t u r a o c i d e n t a l . Para a c l a r a r e s s e p r o -
blema e ilustrar a q u e s t ã o d o p e n s a m e n t o formal, c i t e m o s
outro e x e m p l o d o t e m p o de Galileu.
T r a t a - s e d a p e r g u n t a s o b r e a relação e n t r e c é u e Terra.
Se o c é u , j u n t a m e n t e c o m a Lua, o Sol, o s p l a n e t a s e as e s -
trelas fixas, gira e m t o r n o d a Terra ( c o m o p a r e c e a c o n t e -
cer), o faz e n t ã o e m ó r b i t a s e p i c í d i c a s b a s t a n t e c o m p l e x a s ,
s e n d o q u e a l g u n s t ê m q u e girar e m s e n t i d o contrário. Se
o Sol e s t i v e r n o centro, o q u e c o n s e q u e n t e m e n t e c o n v e r t e
a Terra e m m a i s u m c o r p o c e l e s t e , a s ó r b i t a s c e r t a m e n t e
vão adquirir formas elípticas relativamente simples. A res-
p o s t a barroca para e s s a p e r g u n t a é a s e g u i n t e : n a realidade
é o Sol q u e s e e n c o n t r a n o c e n t r o , e as e l i p s e s s ã o a s for-
m a s reais; n a s f o r m a s e p i c í d i c a s de P t o l o m e u , as figuras d o
discurso, as ficções, e r a m f o r m a s i n v e n t a d a s para m a n t e r
as aparências (para salvar o s f e n ô m e n o s ) . H o j e p e n s a m o s
m a i s f o r m a l m e n t e d o q u e naquela é p o c a , e n o s s a r e s p o s t a
seria a s s i m : as e l i p s e s s ã o f o r m a s m a i s c o n v e n i e n t e s q u e o s
e p i c i d o s , e p o r i s s o s ã o preferíveis. A s e l i p s e s , p o r s u a v e z ,
s ã o m e n o s c o n v e n i e n t e s q u e o s círculos, m a s o s círculos i n -
f e l i z m e n t e n ã o p o d e m ser u t i l i z a d o s aqui. A q u e s t ã o já n ã o
é m a i s v o l t a d a para o q u e é real, m a s s i m para o q u e é c o n -
v e n i e n t e ; e e n t ã o s e verifica q u e n ã o se p o d e s i m p l e s m e n -
t e aplicar f o r m a s c o n v e n i e n t e s a o s f e n ô m e n o s ( n o caso, o s
círculos), a n ã o ser a q u e l a s m a i s c o n v e n i e n t e s q u e h a r m o -
28 nizem com eles. Em suma: as formas não são descobertas
n e m i n v e n ç õ e s , nã.o s ã o idéias p l a t ô n i c a s n e m facções; s ã o
r e c i p i e n t e s c o n s t r u í d o s e s p e c i a l m e n t e para o s f e n ô m e n o s
("modelos"). E a ciência teórica n ã o é n e m "verdadeira"
n e m "fictícia", m a s s i m "formal" (projeta m o d e l o s ) .
Se "forma" for e n t e n d i d a c o m o o o p o s t o d e "matéria",
e n t ã o n ã o s e p o d e falar de d e s i g n "material"; o s projetos e s -
tariam s e m p r e v o l t a d o s para informar. E s e a forma for o
"como" da matéria e a "matéria" for o "o quê" da forma, e n t ã o
o d e s i g n é u m d o s m é t o d o s d e dar forma à matéria e d e fazê-
la aparecer c o m o aparece, e n ã o d e o u t r o m o d o . O d e s i g n ,
c o m o t o d a s as e x p r e s s õ e s culturais, m o s t r a que a matéria
n ã o aparece (é inaparente), a n ã o ser que seja informada, e
a s s i m , u m a v e z informada, c o m e ç a a se manifestar (a tornar-
se f e n ô m e n o ) . A matéria n o d e s i g n , c o m o qualquer outro
a s p e c t o cultural, é o m o d o como as formas aparecem.
Falar d e d e s i g n , n o e n t a n t o , c o m o algo s i t u a d o e n t r e o
material e a "imaterialidade" n ã o é t o t a l m e n t e s e m s e n t i d o .
Pois e x i s t e m d e fato d o i s m o d o s d i s t i n t o s d e ver e d e p e n -
sar: o material e o formal. P o d e - s e dizer que o m o d o pre-
d o m i n a n t e n o p e r í o d o barroco era o material: o Sol é real-
rnente o c e n t r o , e a s p e d r a s c a e m r e a l m e n t e d e a c o r d o c o m
u m a fórmula. (Era material, e e x a t a m e n t e por e s s a razão
n ã o é materialista.) Hoje e m dia, é o m o d o formal que pre-
valece: o s i s t e m a h e l i o c ê n t r i c o e a e q u a ç ã o da q u e d a livre
são f o r m a s práticas ( e x a t a m e n t e por se tratar d e u m m o d o
formal, n ã o é imaterialista). E s s e s d o i s m o d o s d e ver e d e
pensar l e v a m a d u a s m a n e i r a s d i s t i n t a s de projetar: a m a -
terial e a formal. A material resulta e m r e p r e s e n t a ç õ e s (por
e x e m p l o , as p i n t u r a s d e a n i m a i s n a s p a r e d e s d a s cavernas).
A formal, p o r s u a v e z , p r o d u z m o d e l o s (por e x e m p l o , o s 29
projetos d e canais d e irrigação n a s t á b u a s m e s o p o t â m i c a s ) .
A maneira material de ver e n f a t i z a aquilo q u e aparece n a
forma; a m a n e i r a formal realça a f o r m a d a q u i l o q u e apare-
ce. P o r t a n t o , a h i s t ó r i a d a pintura, p o r e x e m p l o , p o d e ser
interpretada c o m o u m p r o c e s s o , n o decorrer d o qual a visa-
da formal se i m p õ e sobre a visada material (ainda q u e c o m
alguns r e t r o c e s s o s ) . É o q u e será m o s t r a d o a seguir.
U m p a s s o i m p o r t a n t e n o c a m i n h o q u e c o n d u z i u à for-
malização foi a i n t r o d u ç ã o da p e r s p e c t i v a . Pela primeira
vez tratou-se, de maneira consciente, de preencher formas
p r e c o n c e b i d a s c o m m a t é r i a , d e fazer o s f e n ô m e n o s apare-
cer e m f o r m a s específicas. U m p a s s o s e g u i n t e talvez t e n h a
sido d a d o por C é z a n n e , ao c o n s e g u i r i m p o r a u m a m e s m a
matéria d u a s o u três f o r m a s s i m u l t a n e a m e n t e ( c o n s e g u e
"mostrar", p o r e x e m p l o , u m a m e s m a m a ç ã s o b diversas
p e r s p e c t i v a s ) . Isso foi l e v a d o a o ápice p e l o c u b i s m o : trata-
va-se d e m o s t r a r as f o r m a s g e o m é t r i c a s p r e c o n c e b i d a s ( e n -
trecruzadas); n e l a s , a m a t é r i a s e r v e e x c l u s i v a m e n t e para
deixar a s f o r m a s aparecer. P o d e - s e dizer, p o r t a n t o , q u e
a pintura c u b i s t a , e n t r e o c o n t e ú d o e o c o n t i n e n t e , e n t r e
a matéria e a forma, e n t r e o a s p e c t o material e o formal d o s
f e n ô m e n o s , s e m o v e s e m p r e e m direção à q u i l o q u e é desig-
n a d o e r r o n e a m e n t e d e "imaterial**.
Mas t u d o i s s o é a p e n a s u m a preparação d e c a m i n h o para
a p r o d u ç ã o d a s c h a m a d a s "imagens artificiais". São elas as
r e s p o n s á v e i s p o r t o r n a r t ã o "abrasadora" hoje e m dia a per-
g u n t a s o b r e a relação e n t r e m a t é r i a e forma. O q u e e s t á e m
jogo são os equipamentos técnicos que permitem apresen-
tar n a s t e l a s a l g o r i t m o s ( f ó r m u l a s m a t e m á t i c a s ) e m f o r m a
de i m a g e n s coloridas (e p o s s i v e l m e n t e e m m o v i m e n t o ) . Isso
é diferente d e projetar canais e m tábuas m e s o p o t â m i c a s , de
desenhar cubos e esferas n o s quadros cubistas, e t a m b é m
difere d e projetar a v i õ e s a partir d e cálculos. Porque n e s s e s
c a s o s s e trata d e projetar f o r m a s para m a t e r i a i s q u e s e r ã o
c o n t i d o s n e l a s ( f o r m a s para a q u e d u t o s , para a s Demoisel-
les dAvignon, para o s j a t o s Mirage); já o e x e m p l o a n t e r i o r
diz r e s p e i t o a f o r m a s p l a t ô n i c a s "puras". A s e q u a ç õ e s frac-
tais, por exemplo, que brilham nas telas c o m o "bonecos de
maçã" d e M a n d e l b r o t , * n ã o p o s s u e m m a t é r i a ( e m b o r a p o s -
s a m posteriormente ser preenchidas com materiais c o m o

E m a l e m ã o , Mandelbrots Apfelmánnchen. A expressão refere-se


a o c o n j u n t o d e M a n d e l b r o t , u m a i m a g e m fractal q u e p a r e c e p r o d u -
zir a si m e s m a i n f i n i t a m e n t e , g e r a d a pela primeira v e z n u m c o m -
p u t a d o r p e l o m a t e m á t i c o f r a n c ê s B e n o í t M a n d e l b r o t . Por s e a s s e -
m e l h a r a u m a m a ç a c o m braços e p e r n a s , o fractal foi c h a m a d o , por
p e s q u i s a d o r e s a l e m ã e s , d e " b o n e c o d e m a ç a d e Mandelbrot". N o
livro d e Ian S t e w a r t , Será que Deus joga dados? A. nova matemática do
caos ( J o r g e Zahar, 199a, p. 254.), o c o n j u n t o d e M a n d e l b r o t é i d e n t i -
ficado c o m o " b o n e c o d e p ã o d e mel". [iM.T.l
f o r m a ç õ e s m o n t a n h o s a s , n u v e n s de t o r m e n t a o u flocos d e
neve). Essas i m a g e n s s i n t é t i c a s p o d e m ( e r r o n e a m e n t e ) ser
chamadas de "imateriais", e n ã o porque apareçam n o c a m p o
e l e t r o m a g n é t i c o , m a s p o r m o s t r a r e m f o r m a s v a z i a s , livres
de m a t é r i a .
A q u e s t ã o "abrasadora" é, p o r t a n t o , a s e g u i n t e : antiga-
m e n t e ( d e s d e Platão, o u m e s m o a n t e s dele) o q u e importava
era configurar a matéria e x i s t e n t e para torná-la visível, m a s
agora o q u e e s t á e m j o g o é p r e e n c h e r c o m m a t é r i a u m a tor-
rente d e f o r m a s que b r o t a m a partir d e u m a p e r s p e c t i v a 31
teórica e d e n o s s o s e q u i p a m e n t o s t é c n i c o s , c o m a finalidade
de "materializar" e s s a s f o r m a s . A n t i g a m e n t e , o q u e e s t a v a
e m causa era a o r d e n a ç ã o f o r m a l d o m u n d o a p a r e n t e da
matéria, m a s agora o q u e i m p o r t a é t o r n a r a p a r e n t e u m
m u n d o a l t a m e n t e codificado e m n ú m e r o s , u m m u n d o d e
formas que s e m u l t i p l i c a m i n c o n t r o l a v e l m e n t e . A n t e s , o
objetivo era formalizar o m u n d o e x i s t e n t e ; h o j e o o b j e t i v o
é realizar as f o r m a s projetadas para criar m u n d o s alterna-
tivos. Isso é o q u e se e n t e n d e por "cultura imaterial"*, m a s
deveria n a v e r d a d e s e c h a m a r "cultura materializadora".
O q u e s e d e b a t e aqui é o c o n c e i t o d e informar, que
significa i m p o r f o r m a s à m a t é r i a . Esse c o n c e i t o t o r n o u - s e
m u i t o claro a partir da Revolução Industrial. U m a ferra-
m e n t a d e a ç o e m u m a p r e n s a é u m a f o r m a , e ela i n f o r m a o
fluido d e vidro o u de p l á s t i c o q u e escorre p o r ela para criar
garrafas o u c i n z e i r o s . A q u e s t ã o a n t i g a m e n t e era d i s t i n g u i r
as i n f o r m a ç õ e s verdadeiras d a s falsas. Verdadeiras e r a m
aquelas cujas f o r m a s e r a m d e s c o b e r t a s , e falsas aquelas e m
que as f o r m a s e r a m ficções. Essa d i s t i n ç ã o p e r d e o s e n t i d o
q u a n d o p a s s a m o s a considerar a s f o r m a s n ã o m a i s c o m o
d e s c o b e r t a s (aletheiai), n e m c o m o ficções, m a s c o m o m o -
d e l o s . Fazia s e n t i d o , a n t i g a m e n t e , diferençar a ciência da
arte, o q u e h o j e parece u m d e s p r o p ó s i t o . O critério para a
crítica d a i n f o r m a ç ã o h o j e e s t á m a i s para a s e g u i n t e per-
g u n t a : até q u e p o n t o as f o r m a s aqui i m p o s t a s p o d e m ser
p r e e n c h i d a s c o m m a t é r i a ? Em q u e m e d i d a p o d e m ser rea-
lizadas? A t é q u e p o n t o as i n f o r m a ç õ e s s ã o o p e r a c i o n a i s o u
produtivas?
M a s n ã o é o c a s o d e se p e r g u n t a r s e as i m a g e n s s ã o s u -
32 perfícies de m a t é r i a s o u c o n t e ú d o s d e c a m p o s e l e t r o m a g -
n é t i c o s . C o n v é m saber e m q u e m e d i d a e s s a s i m a g e n s corres-
p o n d e m a o m o d o d e p e n s a r e de ver material e formal. Seja
qual for o significado da palavra "material**, s ó n ã o p o d e ex-
primir o o p o s t o d e "imaterialidade". Pois a "imaterialidade",
o u , n o s e n t i d o e s t r i t o , a f o r m a , é p r e c i s a m e n t e aquilo que
faz o material aparecer. A aparência d o material é a forma.
E e s s a é c e r t a m e n t e u m a afirmação p ó s - m a t e r i a l .
A FÁBRICA
34 O n o m e e s c o l h i d o pela z o o t a x o n o m i a para identificar a n o s -
s a e s p é c i e — Homo sapiens sapiens — e x p r e s s a a o p i n i ã o d e
que n o s d i f e r e n c i a m o s d o s h o m i n í d e o s que n o s precederam
e x a t a m e n t e p o r u m a dupla s a b e d o r i a . Se c o n s i d e r a r m o s o
q u e c o n s e g u i m o s fazer a t é aqui, e s s a d e n o m i n a ç ã o t o r n a -
s e n o m í n i m o q u e s t i o n á v e l . Por o u t r o l a d o , a d e s i g n a ç ã o
Homo faber a f i g u r a - s e m e n o s i n v e s t i d a i d e o l o g i c a m e n t e ,
p e l o fato d e a p r e s e n t a r u m caráter m a i s a n t r o p o l ó g i c o d o
q u e z o o l ó g i c o . Ela d e n o t a q u e p e r t e n c e m o s à q u e l a s e s p é -
cies d e a n t r o p o i d e s q u e f a b r i c a m a l g o . E u m a d e s i g n a ç ã o
funcional, u m a vez que n o s permite colocar e m cena o
s e g u i n t e critério: s e e n c o n t r a r m o s r e s q u í c i o s d e h o m i n í -
d e o s e m q u a l q u e r lugar, d e s d e q u e n a s p r o x i m i d a d e s d e
a l g u m local de p r o d u ç ã o de artefatos (fábrica), e se aca-
s o n ã o h o u v e r d ú v i d a s d e q u e a a t i v i d a d e n e s s a fábrica
era e x e r c i d a p o r e s s e h o m i n í d e o , e n t ã o p o d e - s e d e s i g n á -
l o c o m o Homo faber, o u , m a i s p r o p r i a m e n t e , c o m o h o -
m e m . Em sítios arqueológicos de esqueletos de primatas,
p o r e x e m p l o , fica e v i d e n t e q u e a s p e d r a s a o r e d o r f o r a m
c o l e t a d a s e t r a b a l h a d a s p o r e l e s m e s m o s d e m o d o fabril.
A d e s p e i t o de t o d a s as i n c e r t e z a s z o o l ó g i c a s , e s s e s p r i m a t a s
d e v e r i a m s e r c h a m a d o s d e Homines fabri, o u , p o r q u e n ã o ,
de h o m e n s p r o p r i a m e n t e . A fábrica é, p o r t a n t o , u m a cria-
ção c o m u m e característica da e s p é c i e h u m a n a , aquilo a que
já se c h a m o u d e "dignidade" h u m a n a . P o d e m - s e r e c o n h e -
cer o s h o m e n s p o r s u a s fábricas.
Os e s p e c i a l i s t a s e m p r é - h i s t ó r i a d e d i c a m - s e t a m b é m a
esse e s t u d o , e é o q u e o s h i s t o r i a d o r e s d e v e r i a m fazer, m a s
n e m s e m p r e o f a z e m , o u seja: p e s q u i s a r as fábricas para
identificar o h o m e m . Para investigar, p o r e x e m p l o , c o m o
vivia, p e n s a v a , s e n t i a , atuava e sofria o h o m e m n e o l í t i c o , 35
não há n a d a m a i s a d e q u a d o q u e e s t u d a r d e t a l h a d a m e n t e
as fábricas d e cerâmica. T u d o , e e m particular a ciência, a
política, a arte e a religião d a q u e l a s c o m u n i d a d e s , p o d e ser
r e c o n s t i t u í d o a partir da o r g a n i z a ç ã o d a s fábricas e d o s ar-
tefatos d e cerâmica. E o m e s m o p o d e ser afirmado para as
demais é p o c a s . A análise d e t a l h a d a d e u m a oficina de sa-
pateiro d o s é c u l o XIV n o n o r t e da Itália, p o r e x e m p l o , p o d e
resultar e m e n t e n d i m e n t o m a i s p r o f u n d o d a s raízes d o
H u m a n i s m o , da Reforma e da R e n a s c e n ç a d o que aquele
derivado d o e s t u d o d a s obras d e arte e d e t e x t o s p o l í t i c o s ,
filosóficos e t e o l ó g i c o s . Pois as obras e o s t e x t o s foram e m
sua m a i o r i a p r o d u z i d o s p o r m o n g e s , a o p a s s o q u e as g r a n -
des r e v o l u ç õ e s d o s s é c u l o s XIV e XV t i v e r a m sua o r i g e m n a s
oficinas e n o s conflitos q u e ali insurgiram. P o r t a n t o , aquele
que i n d a g a s o b r e o n o s s o p a s s a d o d e v e r i a c o n c e n t r a r - s e
na e s c a v a ç ã o d e r u í n a s d a s fábricas. E q u e m s e i n t e r e s s a
por n o s s o t e m p o deveria e m p r i m e i r o lugar analisar criti-
c a m e n t e as fábricas atuais. A q u e l e q u e dirige s u a p e r g u n t a
para o s dias futuros estará c o m c e r t e z a p e r g u n t a n d o pela
fábrica d o futuro.
Se c o n s i d e r a r m o s e n t ã o a história da h u m a n i d a d e c o m o
u m a h i s t ó r i a da fabricação, e t u d o o m a i s c o m o m e r o s co-
m e n t á r i o s adicionais, t o r n a - s e p o s s í v e l distinguir, grosso
modoy o s s e g u i n t e s p e r í o d o s : o d a s m ã o s , o d a s f e r r a m e n t a s ,
o d a s m á q u i n a s e o d o s a p a r e l h o s e l e t r ô n i c o s (Apparate'). Fa-
bricar significa a p o d e r a r - s e (entwenden') d e algo d a d o na na-
tureza, c o n v e r t ê - l o (umwenden) e m algo m a n u f a t u r a d o , dar-
l h e u m a aplicabilidade (anwenden) e utilizá-lo (yerwenden).
E s s e s q u a t r o m o v i m e n t o s d e t r a n s f o r m a ç ã o iWenden') —
36 apropriação, c o n v e r s ã o , aplicação e utilização — s ã o realiza-
d o s p r i m e i r a m e n t e p e l a s m ã o s , d e p o i s por f e r r a m e n t a s , e m
s e g u i d a p e l a s m á q u i n a s e, p o r fim, p e l o s aparatos eletrôni-
c o s . U m a v e z q u e as m ã o s h u m a n a s , a s s i m c o m o as m ã o s
d o s p r i m a t a s , s ã o ó r g ã o s (Organé) p r ó p r i o s para girar (Wlen-
den) coisas (e e n t e n d a - s e o a t o d e girar, virar, c o m o u m a
i n f o r m a ç ã o h e r d a d a g e n e t i c a m e n t e ) , p o d e m o s considerar
as f e r r a m e n t a s , as m á q u i n a s e o s e l e t r ô n i c o s c o m o imita-
ç õ e s d a s m ã o s , c o m o p r ó t e s e s q u e p r o l o n g a m o alcance d a s
m ã o s e e m c o n s e q ü ê n c i a a m p l i a m as i n f o r m a ç õ e s herda-
d a s g e n e t i c a m e n t e graças às i n f o r m a ç õ e s culturais, adqui-
ridas. P o r t a n t o , as fábricas s ã o lugares o n d e aquilo que é
d a d o (Gegebenes) é c o n v e r t i d o e m algo f e i t o (Gemachtes),
e c o m i s s o as i n f o r m a ç õ e s h e r d a d a s t o r n a m - s e cada v e z m e -
n o s significativas, a o contrário d a s i n f o r m a ç õ e s adquiridas,
a p r e n d i d a s , q u e s ã o cada v e z m a i s r e l e v a n t e s . A s fábricas
s ã o lugares e m q u e o s h o m e n s s e t o r n a m cada v e z m e n o s
naturais e cada v e z m a i s artificiais, p r e c i s a m e n t e p e l o fato
de que as coisas c o n v e r t i d a s , t r a n s f o r m a d a s , o u seja, o pro-
d u t o fabricado, r e a g e m à i n v e s t i d a d o h o m e m : u m sapatei-
ro n ã o faz u n i c a m e n t e s a p a t o s de couro, m a s t a m b é m , por
m e i o de sua atividade, faz de si m e s m o u m sapateiro. Dito de
outra maneira: as fábricas s ã o lugares o n d e s e m p r e são produ-
zidas n o v a s formas d e h o m e n s : primeiro, o h o m e m - m ã o , d e -
pois, o h o m e m - f e r r a m e n t a , e m s e g u i d a , o h o m e m - m á q u i n a
e, finalmente, o h o m e m - a p a r e l h o s - e l e t r ô n i c o s . R e p e t i n d o :
essa é a h i s t ó r i a da h u m a n i d a d e .
S o m e n t e c o m dificuldades c o n s e g u i m o s r e c o n s t r u i r a
primeira Revolução Industrial, aquela e m que ocorre a s u b s -
tituição da m ã o pela ferramenta, apesar de estar b e m d o c u -
m e n t a d a por m e i o da arqueologia industrial. Mas u m a coisa 37
é certa: n o m o m e n t o e m que a ferramenta — c o m o u m ma-
chado, por e x e m p l o — entra e m jogo, é possível falar de u m a
nova forma de existência h u m a n a . U m h o m e m rodeado de
ferramentas, isto é, de m a c h a d o s , p o n t a s de flecha, agulhas,
facas, r e s u m i n d o , d e cultura, já n ã o se e n c o n t r a n o m u n d o
c o m o e m sua própria casa, c o m o ocorria por e x e m p l o c o m
o h o m e m pré-histórico que utilizava as m ã o s . Ele e s t á
alienado d o m u n d o , p r o t e g i d o e aprisionado pela cultura.
A s e g u n d a R e v o l u ç ã o Industrial, q u e s u p õ e a s u b s t i t u i -
ção da f e r r a m e n t a p e l a m á q u i n a , o c o r r e u h á p o u c o m a i s d e
d u z e n t o s a n o s , e s o m e n t e agora c o m e ç a m o s a c o m p r e e n -
dê-la. A s m á q u i n a s s ã o f e r r a m e n t a s p r o j e t a d a s e fabrica-
das a partir d e t e o r i a s científicas, e e x a t a m e n t e p o r i s s o
s ã o m a i s e f i c a z e s , m a i s r á p i d a s e m a i s caras. I n v e r t e - s e
a s s i m a relação h o m e m - f e r r a m e n t a , e a e x i s t ê n c i a d o h o -
m e m m o d i f i c a - s e c o m p l e t a m e n t e . Q u a n d o s e trata d e fer-
r a m e n t a , o h o m e m é a c o n s t a n t e e a f e r r a m e n t a , a variá-
vel: o alfaiate s e n t a - s e n o m e i o da oficina e, q u a n d o quebra
u m a a g u l h a , a s u b s t i t u i p o r outra. N o c a s o da m á q u i n a , é
ela a c o n s t a n t e e o h o m e m , a variável: a m á q u i n a e n c o n t r a -
s e lá, n o m e i o d a oficina, e, s e u m h o m e m e n v e l h e c e o u fi
d o e n t e , o p r o p r i e t á r i o d a m á q u i n a o s u b s t i t u i por outi
É c o m o s e o p r o p r i e t á r i o , o fabricante, f o s s e a c o n s t a n
e a m á q u i n a , s u a variável, m a s a o s e analisar m a i s d e p
t o verifica-se q u e t a m b é m o fabricante é u m a variável <
máquina ou do parque industrial c o m o u m todo. A segt
da R e v o l u ç ã o Industrial e x p u l s o u o h o m e m d e sua c u l t u
a s s i m c o m o a p r i m e i r a o e x p u l s o u da n a t u r e z a , e p o r is:
p o d e m o s c o n s i d e r a r a s fábricas m e c a n i z a d a s u m a espéc
38 de m a n i c ô m i o .
P e n s e m o s agora n a terceira R e v o l u ç ã o Industrial, aqi
Ia que implica a s u b s t i t u i ç ã o d e m á q u i n a s por aparelh
e l e t r ô n i c o s . Ela a i n d a e s t á e m a n d a m e n t o , e s e u final nãc
p a s s í v e l d e ser v i s t o . Por i s s o p e r g u n t a m o s : c o m o será a
brica d o futuro ( o u seja, a d e n o s s o s n e t o s ) ? M e s m o a si
p i e s p e r g u n t a sobre o q u e afinal significa a e x p r e s s ã o "a]
relho eletrônico" esbarra e m dificuldades; u m a respos
p o s s í v e l seria: as m á q u i n a s s ã o f e r r a m e n t a s c o n s t r u í d a s i
acordo c o m t e o r i a s científicas, e m u m m o m e n t o e m qu«
ciência c o n s i s t i a s o b r e t u d o n a física e n a q u í m i c a , a o p a s
q u e o s a p a r e l h o s e l e t r ô n i c o s p o d e m ser t a m b é m aplicaçô
t e o r i a s e h i p ó t e s e s da neurofisiologia e da biologia. E m <
trás palavras: as f e r r a m e n t a s i m i t a m a m ã o e o c o r p o e
p i r i c a m e n t e ; as m á q u i n a s , m e c a n i c a m e n t e ; e o s aparelh
n e u r o f i s i o l o g i c a m e n t e . Trata-se d e "converter" (wende
e m c o i s a s as s i m u l a ç õ e s cada v e z m a i s p e r f e i t a s d e inf
m a ç õ e s g e n é t i c a s , h e r d a d a s . Pois o s a p a r e l h o s e l e t r ô n i c
c o n s i s t e m n o s m a i s a d e q u a d o s m é t o d o s para transf
m a r c o i s a s para o u s o . A fábrica d o f u t u r o será certameri
m u i t o m a i s c o m p a t í v e l q u e a s atuais, e s e m d ú v i d a ref
rnulará c o m p l e t a m e n t e a relação h o m e m - f e r r a m e n t a . Po-
de-se, p o r t a n t o , esperar q u e a louca a l i e n a ç ã o d o h o m e m
com relação à n a t u r e z a e à cultura, que a t i n g i u o grau m á -
x i m o na r e v o l u ç ã o d a s m á q u i n a s , p o s s a s e r s u p e r a d a . E a s -
sim a fábrica d o futuro n ã o m a i s será u m m a n i c ô m i o , m a s
u m lugar o n d e as p o t e n c i a l i d a d e s criativas d o Homo faber
poderão se realizar.
O q u e e s t á f u n d a m e n t a l m e n t e e m q u e s t ã o aqui é a re-
lação h o m e m - f e r r a m e n t a . Trata-se de u m a q u e s t ã o t o p o l ó -
gica o u , s e s e quiser, a r q u i t e t ô n i c a . E n q u a n t o s e fabricava 39
s e m f e r r a m e n t a s , i s t o é, e n q u a n t o o Homo faber a p r e e n d i a
a natureza c o m as m ã o s , a fim d e apropriar-se d a s c o i s a s e
transformá-las, e n q u a n t o n ã o s e p o d i a identificar a loca-
lização d e fábricas, n ã o havia u m "topos" para elas. O h o -
m e m p r é - h i s t ó r i c o , da Idade da Pedra Lascada, n ã o e s p e c i -
ficava lugares para fabricação, p r o d u z i a e m qualquer lugar.
Q u a n d o e n t r a m e m j o g o as f e r r a m e n t a s , t o r n a - s e n e c e s s á -
rio delimitar e s p a ç o s n o m u n d o para a fabricação — c o m o
os lugares o n d e s e extraía o sílex d a s m o n t a n h a s , o u o s l o -
cais o n d e o sílex era c o n v e r t i d o e m o b j e t o s q u e r e c e b e r i a m
u m a aplicação e s e r i a m u t i l i z a d o s . E s s e s e s p a ç o s d e fabri-
cação s ã o círculos e m cujo c e n t r o s e e n c o n t r a o h o m e m ;
e m círculos e x c ê n t r i c o s l o c a l i z a m - s e s u a s f e r r a m e n t a s , q u e ,
por sua v e z , e s t ã o r o d e a d a s pela n a t u r e z a . Verifica-se e s s a
arquitetura fabril p r a t i c a m e n t e d u r a n t e t o d a a h i s t ó r i a d a
humanidade. Com a invenção das máquinas, essa arquite-
tura t e m q u e mudar, e da m a n e i r a a seguir.
Já que a máquina deve estar situada n o m e i o , devido
ao fato d e durar m a i s e d e ter m a i o r v a l o r q u e o h o m e m ,
a a r q u i t e t u r a h u m a n a terá d e s e s u b m e t e r à a r q u i t e t u r a
das máquinas. Surgem a g r u p a m e n t o s significativos de
m á q u i n a s n a Europa o c i d e n t a l e n a A m é r i c a d o N o r t e , e,
posteriormente, e m todo o mundo, formando entronca-
m e n t o s d e u m a rede d e circulação. Por s e r e m a m b i v a l e n -
t e s , o s fios d e s s a r e d e p o d e m s e r o r g a n i z a d o s d e m o d o
c e n t r í p e t o o u c e n t r í f u g o . A o l o n g o d o s fios c e n t r í p e t o s ,
as c o i s a s r e l a c i o n a d a s à n a t u r e z a e a o s h o m e n s s à o a b -
s o r v i d a s p e l a s m á q u i n a s para q u e lá p o s s a m s e r c o n v e r -
t i d a s e u t i l i z a d a s . A o l o n g o d o s fios c e n t r í f u g o s , as c o i s a s
4 0 e o s h o m e n s t r a n s f o r m a d o s f l u e m para fora d a s m á q u i -
n a s . A s m á q u i n a s e m rede, c o n e c t a d a s e n t r e si, f o r m a m
c o m p l e x o s , e e s t e s , p o r s u a v e z , s e u n e m f o r m a n d o par-
ques industriais, e os a s s e n t a m e n t o s h u m a n o s formam
a q u e l e s l u g a r e s , e m rede, a partir d o s q u a i s o s h o m e n s
s ã o s u g a d o s p e l a s fábricas, para d e p o i s s e r e m r e g u r g i t a -
d o s p e r i o d i c a m e n t e , c u s p i d o s o u t r a v e z d e lá. A n a t u r e z a
inteira é atraída, d e f o r m a c o n c ê n t r i c a , p o r e s s a s u c ç ã o
d a s m á q u i n a s . Essa é a e s t r u t u r a d a a r q u i t e t u r a i n d u s t r i a l
dos séculos xix e xx.
Essa e s t r u t u r a m u d a r á r a d i c a l m e n t e e m f u n ç ã o d o s apa-
relhos e l e t r ô n i c o s . N ã o s o m e n t e p e l o fato d e q u e o s apare-
l h o s s e j a m m a i s a d a p t á v e i s a o u s o e, por i s s o , r a d i c a l m e n t e
m e n o r e s e m a i s baratos q u e as m á q u i n a s , m a s t a m b é m
por n ã o m a i s s e r e m u m a c o n s t a n t e e m relação a o h o m e m .
Fica cada dia m a i s e v i d e n t e q u e a relação h o m e m - a p a r e l h o
e l e t r ô n i c o é reversível, e q u e a m b o s s ó p o d e m f u n c i o n a r
c o n j u n t a m e n t e : o h o m e m e m f u n ç ã o d o a p a r e l h o , m a s , da
m e s m a m a n e i r a , o a p a r e l h o e m f u n ç ã o d o h o m e m . Pois o
aparelho s ó faz aquilo que o h o m e m quiser, m a s o h o m e m
s ó p o d e q u e r e r a q u i l o d e q u e o a p a r e l h o é c a p a z . Está sur-
g i n d o u m n o v o m é t o d o d e fabricação, i s t o é, d e f u n c i o n a -
mento: esse n o v o h o m e m , o funcionário, está unido aos
a p a r e l h o s p o r m e i o d e m i l h a r e s d e fios, a l g u n s d e l e s i n -
visíveis: a o n d e q u e r q u e v á , o u o n d e q u e r q u e e s t e j a , leva
consigo os aparelhos (ou é levado por eles), e tudo o que
faz o u s o f r e p o d e ser i n t e r p r e t a d o c o m o u m a f u n ç ã o d e
um aparelho.
À primeira v i s t a é c o m o se e s t i v é s s e m o s r e t o r n a n d o à
fase de fabricação anterior às ferramentas. E x a t a m e n t e c o m o
o h o m e m primitivo, que s e m m e d i a ç ã o alguma apreendia a 41
natureza c o m as m ã o s e, graças a elas, p o d i a fabricar e m
qualquer m o m e n t o e lugar, o s f u t u r o s f u n c i o n á r i o s , equi-
p a d o s c o m a p a r e l h o s p e q u e n o s , m i n ú s c u l o s o u até m e s m o
invisíveis, e s t a r ã o s e m p r e p r o n t o s a fabricar algo, e m qual-
quer m o m e n t o e lugar. A s s i m , n ã o s o m e n t e o s g i g a n t e s c o s
c o m p l e x o s i n d u s t r i a i s da era d a s m á q u i n a s h a v e r ã o d e ex-
tinguir-se c o m o o s dinossauros, e na melhor das hipóteses
terminarão expostos e m m u s e u s de história, mas t a m b é m
as oficinas v ã o se tornar supérfluas. Graças a o s a p a r e l h o s ,
t o d o s e s t a r ã o c o n e c t a d o s c o m t o d o s o n d e e q u a n d o qui-
s e r e m , por m e i o de c a b o s reversíveis, e, c o m e s s e s c a b o s e
a p a r e l h o s , t o d o s p o d e r ã o s e apropriar d a s coisas e x i s t e n -
t e s , t r a n s f o r m á - l a s e utilizá-las.
Essa visada t e l e m á t i c a , p ó s - i n d u s t r i a l e p ó s - h i s t ó r i c a
sobre o futuro d o Homo faber a p r e s e n t a , n o e n t a n t o , u m
p e q u e n o problema: q u a n t o m a i s c o m p l e x a s se t o r n a m as
f e r r a m e n t a s , m a i s abstratas s ã o s u a s f u n ç õ e s . A o h o m e m
p r i m i t i v o , q u e fazia t u d o e s s e n c i a l m e n t e c o m as m ã o s ,
eram suficientes as i n f o r m a ç õ e s c o n c r e t a s e h e r d a d a s para
o u s o d a s coisas a p r e e n d i d a s . Já o fabricante d e m a c h a d o s ,
p o t e s e s a p a t o s , p o r e x e m p l o , para fazer u s o d a s f e r r a m e n -
tas, t i n h a que adquirir e s s a s i n f o r m a ç õ e s e m p i r i c a m e n t e .
A s m á q u i n a s e x i g i a m n ã o a p e n a s i n f o r m a ç ã o empírica,
m a s t a m b é m teórica, e i s s o explica o p o r q u ê da escolari-
d a d e obrigatória: e s c o l a s primárias q u e e n s i n e m o m a n e j o
de m á q u i n a s , e s c o l a s s e c u n d á r i a s para o e n s i n o da m a n u -
tenção das máquinas e escolas superiores que e n s i n e m a
construir n o v a s m á q u i n a s . O s aparelhos e l e t r ô n i c o s exi-
g e m u m processo de aprendizagem ainda mais abstrato e
42 o d e s e n v o l v i m e n t o d e disciplinas q u e d e m o d o geral a i n d a
n ã o se e n c o n t r a m a c e s s í v e i s . A rede t e l e m á t i c a q u e c o n e c t a
o s h o m e n s c o m o s aparelhos e o c o n s e q ü e n t e desapareci-
m e n t o da fábrica (para ser m a i s preciso: o c o n s e q ü e n t e pro-
c e s s o de d e s m a t e r i a l i z a ç ã o da fábrica) p r e s s u p õ e m q u e t o -
d o s o s h o m e n s d e v a m s e r c o m p e t e n t e s o suficiente para
i s s o . M a s n ã o s e p o d e confiar n e s s a p r e s s u p o s i ç ã o .
P o d e - s e i m a g i n a r qual s e r á o a s p e c t o d a s f á b r i c a s n o
futuro: serão c o m o escolas. Deverão ser locais e m que os
h o m e n s aprendam c o m o funcionam os aparelhos eletrô-
nicos, de forma que esses aparelhos possam depois, e m
lugar d o s h o m e n s , p r o m o v e r a transformação da nature-
za e m cultura. E o s h o m e n s do futuro, por sua vez, nas
fábricas d o f u t u r o , a p r e n d e r ã o e s s a o p e r a ç ã o c o m a p a r e -
l h o s , e m a p a r e l h o s e d e a p a r e l h o s . E m f u n ç ã o d i s s o , a fá-
brica d o f u t u r o d e v e r á a s s e m e l h a r - s e m a i s a l a b o r a t ó r i o s
científicos, academias de arte, bibliotecas e discotecas
d o q u e às f á b r i c a s a t u a i s . E o h o m e m - a p a r e l h o (Apparat-
menscheri) d o f u t u r o d e v e r á s e r p e n s a d o m a i s c o m o u m
acadêmico do que c o m o u m operário, u m trabalhador ou
um engenheiro.
Aqui surge, p o r é m , u m p r o b l e m a c o n c e i t u a i q u e c o n s t i -
tui o n ú c l e o d e s s a s reflexões: s e g u n d o as idéias clássicas, a
fábrica é o o p o s t o da escola: a "escola" é o lugar da c o n t e m -
plação, d o ó c i o (otium, scholé), e a "fábrica", o lugar da perda
da c o n t e m p l a ç ã o {negotium, ascholia); a "escola" é n o b r e , e a
"fábrica", desprezível. M e s m o o s filhinhos r o m â n t i c o s d o s
fundadores d e g r a n d e s i n d ú s t r i a s c o m p a r t i l h a v a m d e s s a
o p i n i ã o clássica. Agora c o m e ç a a d e s v e l a r - s e o erro f u n d a -
m e n t a l d o s p l a t ô n i c o s e d o s r o m â n t i c o s . E n q u a n t o escola
e fábrica e s t ã o s e p a r a d a s e se d e p r e c i a m m u t u a m e n t e , g o - •43
verna a m a l u q u i c e industrial. Por o u t r o l a d o , e n q u a n t o o s
aparelhos e l e t r ô n i c o s c o n t i n u a m e x p u l s a n d o a s m á q u i n a s ,
fica e v i d e n t e q u e a fábrica n ã o é outra coisa s e n ã o a escola
aplicada, e a escola n ã o é m a i s que u m a fábrica para aqui-
sição d e i n f o r m a ç õ e s . E s o m e n t e n e s s e m o m e n t o o t e r m o
Homo faher adquire total d i g n i d a d e .
I s s o n o s p e r m i t e f o r m u l a r a p e r g u n t a s o b r e a fábrica
do futuro d e m o d o t o p o l ó g i c o e arquitetônico. A fábrica d o
futuro deverá ser aquele lugar e m que o h o m e m aprenderá,
j u n t a m e n t e c o m o s aparelhos eletrônicos, o quê, para q u ê e
c o m o colocar as coisas e m u s o . E o s futuros arquitetos fabris
terão de projetar escolas o u , e m t e r m o s clássicos, academias,
t e m p l o s de sabedoria. C o m o deverá ser o a s p e c t o d e s s e s t e m -
plos, s e estarão m a t e r i a l m e n t e a s s e n t a d o s n o chão, se flutua-
rão c o m o objetos s e m i m a t e r i a i s , se serão q u a s e t o t a l m e n t e
imateriais, é u m a q u e s t ã o secundária. O q u e i m p o r t a é q u e
a fábrica d o futuro deverá ser o lugar e m q u e o Homo faher
s e c o n v e r t e r á e m Homo sapiens sapiens, p o r q u e r e c o n h e c e r á
que fabricar significa o m e s m o que aprender, i s t o é, adquirir
i n f o r m a ç õ e s , produzi-las e divulgá-las.
Isso soa n o m í n i m o tão utópico q u a n t o a sociedade te
l e m á t i c a c o n e c t a d a e m rede c o m a p a r e l h o s a u t o m á t i c o s .
M a s n a realidade t r a t a - s e d e u m a projeção de t e n d ê n c i a s
que já p o d e m ser o b s e r v a d a s . S e m e l h a n t e s escolas-fábri-
cas e fábricas-escolas já e s t ã o s u r g i n d o e m t o d a parte.

44
A ALAVANCA CONTRA-ATACA
AG A s m á q u i n a s s ã o s i m u l a ç õ e s d o s órgãos d o c o r p o h u m a n o .
A alavanca, por e x e m p l o , é u m braço prolongado. Potenciali-
za a capacidade que t e m o braço de erguer coisas e descarta
t o d a s as s u a s outras f u n ç õ e s . É "mais estúpida" que o bra-
ço, m a s e m troca chega m a i s l o n g e e p o d e levantar cargas
mais pesadas.
A s facas d e pedra — cuja f o r m a i m i t a a d o s d e n t e s incisi-
v o s — s ã o u m a d a s m á q u i n a s m a i s a n t i g a s . São m a i s a n t i g a s
q u e a e s p é c i e Homo sapiens sapiens e c o n t i n u a m c o r t a n d o
a t é hoje: e x a t a m e n t e por n ã o s e r e m o r g â n i c a s , m a s feitas
d e pedra. P r o v a v e l m e n t e o s h o m e n s da Idade da Pedra Las-
cada t a m b é m d i s p u n h a m d e m á q u i n a s vivas: o s chacais, p o r
e x e m p l o , q u e d e v i a m utilizar na caça c o m o e x t e n s ã o de s u a s
próprias p e r n a s e i n c i s i v o s . O s chacais, a s s i m c o m o o s in-
c i s i v o s , s ã o m e n o s e s t ú p i d o s que as facas d e pedra; por sua
v e z , e s t a s d u r a m m a i s t e m p o . Talvez e s s a seja u m a d a s ra-
z õ e s p e l a s quais, a t é a Revolução Industrial, e m p r e g a v a m -
s e t a n t o m á q u i n a s "inorgânicas" c o m o orgânicas: t a n t o fa-
cas q u a n t o chacais, t a n t o alavancas q u a n t o b u r r o s , t a n t o
p á s q u a n t o e s c r a v o s — para q u e s e p u d e s s e d i s p o r d e d u -
rabilidade e inteligência. M a s as m á q u i n a s "inteligentes"
(chacais, burros e escravos) são e s t r u t u r a l m e n t e m a i s c o m -
plexas q u e as "estúpidas". Esse é o m o t i v o p e l o qual, d e s d e
a Revolução Industrial, se c o m e ç o u a prescindir delas.
A máquina industrial se distingue da pré-industrial pelo
fato de que aquela t e m c o m o base u m a teoria científica.
C e r t a m e n t e a a l a v a n c a p r é - i n d u s t r i a l t a m b é m t e m a lei d a
a l a v a n c a e m s e u b o j o , m a s s o m e n t e a i n d u s t r i a l sabe que
a tem. Habitualmente isso se expressa assim: as máquinas
pré-industriais foram fabricadas empiricamente, ao passo
que as industriais o são tecnicamente. Na época da Revolu- -47
ção Industrial, a ciência dispunha de u m a série de teorias a
respeito d o m u n d o "inorgânico", principalmente teorias d e
mecânica. Porém, e m relação ao m u n d o orgânico, as teorias
eram bastante escassas. Q u e leis t e m o burro n o seu v e n -
tre? N ã o s ó o p r ó p r i o b u r r o as d e s c o n h e c i a , c o m o t a m b é m
os cientistas p o u c o sabiam sobre elas. Daí que, a partir da
Revolução Industrial, o boi d e u lugar â l o c o m o t i v a , e o ca-
valo, a o avião. O boi e o cavalo e r a m i m p o s s í v e i s d e ser fei-
tos t e c n i c a m e n t e . C o m relação a o s escravos, a coisa era ain-
da mais complicada. A s m á q u i n a s técnicas n ã o a p e n a s i a m
se t o r n a n d o cada vez m a i s eficazes c o m o t a m b é m m a i o -
res e m a i s caras. D e s s e m o d o , a relação " h o m e m - m á q u i n a "
i n v e r t e u - s e d e tal m o d o q u e as m á q u i n a s n ã o s e r v i a m a o s
h o m e n s , m a s estes serviam a elas. Haviam-se convertido
e m e s c r a v o s r e l a t i v a m e n t e i n t e l i g e n t e s d e m á q u i n a s rela-
tivamente estúpidas.
E s s a s i t u a ç ã o m u d o u u m p o u c o n o s é c u l o XX. A s t e o r i a s
s e a p e r f e i ç o a r a m e, g r a ç a s a i s s o , a s m á q u i n a s s e t o r n a r a m a o
m e s m o t e m p o cada vez mais eficazes e m e n o r e s , e s o b r e t u d o
mais "inteligentes". O s escravos se t o r n a m p r o g r e s s i v a m e n t e
r e d u n d a n t e s e f o g e m d a s m á q u i n a s para o s e t o r d e servi-
ços, o u e n t ã o ficam d e s e m p r e g a d o s . Essas s ã o as c o n h e c i -
d a s c o n s e q ü ê n c i a s da a u t o m a ç ã o e da "robotização" que
caracterizam o p r o c e s s o da s o c i e d a d e p ó s - i n d u s t r i a l . M a s
essa não é a mudança realmente importante. Muito mais
significativo é o fato de q u e e s t a m o s c o m e ç a n d o a dispor
t a m b é m de teorias que se aplicam ao m u n d o orgânico.
C o m e ç a m o s a saber que leis o burro traz n o ventre. Em
c o n s e q ü ê n c i a , e m breve p o d e r e m o s fabricar t e c n o l o g i c a -
48 m e n t e b o i s , cavalos, escravos e superescravos. Isso será
c h a m a d o , p r o v a v e l m e n t e , a s e g u n d a Revolução Industrial
o u a Revolução Industrial "biológica".
E a s s i m ficará explícito q u e a i n t e n ç ã o d e c o n s t r u i r m á -
q u i n a s "inorgânicas i n t e l i g e n t e s " é, n o m e l h o r d o s c a s o s ,
u m r e m e n d o e, n o pior, u m erro; u m a alavanca n ã o t e m por
q u e ser u m braço e s t ú p i d o s e receber u m s i s t e m a n e r v o s o
central. A e l e v a d a i n t e l i g ê n c i a d o boi p o d e ser inclusive
superada p e l a s l o c o m o t i v a s q u e e s t e j a m b e m c o n s t r u í d a s
"biologicamente". E m breve, ao c o n s t r u i r m á q u i n a s será
p o s s í v e l c o m b i n a r a durabilidade d o "inorgânico" c o m a in-
teligência d o o r g â n i c o . L o g o haverá u m a praga de chacais
de pedra. M a s e s s a n ã o é n e c e s s a r i a m e n t e u m a s i t u a ç ã o
paradisíaca: o s chacais, b o i s , e s c r a v o s e s u p e r e s c r a v o s de
pedra se a g i t a m f r e n e t i c a m e n t e à n o s s a v o l t a , e n q u a n t o
t e n t a m o s c o m e r e digerir o s p r o d u t o s i n d u s t r i a i s s e c u n d á -
rios q u e d e l e s jorram s e m parar. Isso n ã o p o d e ser a s s i m .
E n ã o s ó p o r q u e e s s a s "inteligências d e pedra" e s t e j a m se
t o r n a n d o cada v e z "mais i n t e l i g e n t e s " e, c o n s e q u e n t e m e n t e ,
d e i x a n d o d e ser e s t ú p i d a s o suficiente para n o s servir; n ã o
p o d e ser a s s i m p o r q u e as m á q u i n a s , por m a i s e s t ú p i d a s que
sejam, contra-atacam, revidam n o s s a s i n v e s t i d a s . C o m o v ã o
golpear q u a n d o s e t o r n a r e m m a i s e s p e r t a s ?
A velha alavanca n o s d e v o l v e u o golpe: m o v e m o s o s bra-
ços c o m o s e f o s s e m alavancas, e i s s o d e s d e q u e p a s s a m o s
a dispor d e l a s . I m i t a m o s o s n o s s o s i m i t a d o r e s . D e s d e q u e
criamos o v e l h a s n o s c o m p o r t a m o s c o m o r e b a n h o s e n e c e s -
s i t a m o s de p a s t o r e s . A t u a l m e n t e , e s s e c o n t r a - a t a q u e d a s
m á q u i n a s e s t á se t o r n a n d o m a i s e v i d e n t e : o s j o v e n s d a n -
çam c o m o r o b ô s , o s p o l í t i c o s t o m a m d e c i s õ e s d e acordo
c o m c e n á r i o s c o m p u t a d o r i z a d o s , o s c i e n t i s t a s p e n s a m di- 49
g i t a l m e n t e e o s a r t i s t a s d e s e n h a m c o m m á q u i n a s de plota-
g e m . Por c o n s e g u i n t e , t o d a futura fabricação d e m á q u i n a s
t a m b é m d e v e r á levar e m c o n t a o c o n t r a g o l p e da alavanca.
Já n à o é p o s s í v e l c o n s t r u i r m á q u i n a s c o n s i d e r a n d o a p e n a s
a economia e a ecologia. É preciso pensar t a m b é m c o m o
essas m á q u i n a s n o s d e v o l v e r ã o s e u s g o l p e s . U m a tarefa
difícil, se l e v a r m o s e m c o n s i d e r a ç ã o q u e , n a atualidade, a
maioria d a s m á q u i n a s é c o n s t r u í d a p o r "máquinas inteli-
g e n t e s " e n ó s a p e n a s o b s e r v a m o s o p r o c e s s o para intervir
ocasionalmente.
Esse é u m p r o b l e m a d e d e s i g n : c o m o d e v e m ser as m á -
quinas, para q u e s e u c o n t r a g o l p e n ã o n o s c a u s e dor? O u
melhor: c o m o d e v e m ser e s s a s m á q u i n a s para que o contra-
golpe n o s faça b e m ? C o m o d e v e r ã o ser o s chacais de pedra
para que n à o n o s e s f a r r a p e m e para q u e n ó s m e s m o s n ã o
n o s c o m p o r t e m o s c o m o chacais? N a t u r a l m e n t e p o d e m o s
projetá-los de m o d o a q u e n o s l a m b a m , e m v e z de morder-
n o s . M a s q u e r e m o s r e a l m e n t e ser l a m b i d o s ? São questões
difíceis, p o r q u e n i n g u é m s a b e d e fato c o m o quer ser. N o
e n t a n t o , d e v e m o s d e b a t e r e s s a s q u e s t õ e s a n t e s de c o m e -
ç a r m o s a projetar cHacais d e pedra ( o u talvez c l o n e s de
i n v e r t e b r a d o s o u q u i m e r a s d e bactérias). E e s s a s q u e s t õ e s
s ã o a i n d a m a i s i n t e r e s s a n t e s d o q u e qualquer chacal d e pe-
dra o u qualquer f u t u r o s u p e r - h u m a n o . Será q u e o d e s i g n e r
estará preparado para colocá-las?

50
CL] V S I O D O V N V
52 P o u c o t e m p o atrás, n o s s o u n i v e r s o era c o m p o s t o d e coi-
s a s : c a s a s e m ó v e i s , m á q u i n a s e v e í c u l o s , trajes e r o u p a s ,
livros e i m a g e n s , l a t a s d e c o n s e r v a e c i g a r r o s . T a m b é m
havia seres h u m a n o s * e m n o s s o ambiente, ainda que a
ciência já o s t i v e s s e , e m g r a n d e p a r t e , c o n v e r t i d o e m o b -
j e t o s : e l e s s e t o r n a r a m , p o r t a n t o , c o m o as d e m a i s c o i s a s ,
m e n s u r á v e i s , calculáveis e p a s s í v e i s d e s e r m a n i p u l a d o s .
Em s u m a , o a m b i e n t e era a c o n d i ç ã o d e n o s s a e x i s t ê n c i a
(Dasein). O r i e n t a r - s e n e l e significava diferençar as c o i s a s
n a t u r a i s d a s artificiais. U m a tarefa n a d a fácil. Essa hera na
p a r e d e de m i n h a casa, p o r e x e m p l o , é u m a c o i s a natural
s i m p l e s m e n t e p o r q u e cresce e p o r q u e é o b j e t o d e e s t u d o
d a b o t â n i c a , u m a ciência natural? O u será u m a c o i s a arti-
ficial p o r t e r s i d o cultivada p o r m e u jardineiro c o n f o r m e
u m m o d e l o e s t é t i c o ? E m i n h a casa? Será a l g o artificial,
u m a v e z q u e projetar e c o n s t r u i r c a s a s é u m a a r t e ? O u

N e s t a p a s s a g e m , t r a d u z i m o s "Menschen" p o r "seres h u m a n o s "


para p ô r e m e v i d ê n c i a s e u c o n t r a s t e c o m "coisas". N a s d e m a i s o c o r -
rências d o t e r m o , o p t a m o s i n v a r i a v e l m e n t e p o r "o h o m e m " o u "os
h o m e n s " , v i s a n d o respeitar o r e g i s t r o coloquial d o t e x t o . [N.T.]
será natural as p e s s o a s m o r a r e m e m c a s a s , a s s i m c o m o
os p á s s a r o s v i v e m n o s n i n h o s ? Fará s e n t i d o a i n d a querer
d i s t i n g u i r n a t u r e z a d e cultura q u a n d o s e trata d e s e o r i e n -
tar n o m u n d o d a s c o i s a s ? N ã o seria h o r a d e b u s c a r o u t r o s
critérios "ontológicos", c o m o , p o r e x e m p l o , a d i s t i n ç ã o e n -
tre c o i s a s a n i m a d a s e i n a n i m a d a s , m ó v e i s e i m ó v e i s ? I s s o
t a m b é m cria dificuldades. U m p a í s , a p a r e n t e m e n t e , é u m a
coisa i m ó v e l ; n o e n t a n t o , a P o l ô n i a d e s l o c o u - s e para o e s -
te. U m a c a m a , p e l o q u e parece, é u m m ó v e l , m a s a m i n h a
cama deslocou-se m e n o s d o que a Polônia. Qualquer cata- 53
logo referente ao universo das coisas, i n d e p e n d e n t e m e n -
te d o s c r i t é r i o s u t i l i z a d o s para c o m p ô - l o — " a n i m a d o - i n a -
nimado", "meu-seu", "útil-inútil", " p r ó x i m o - d i s t a n t e " —,
a p r e s e n t a r á l a c u n a s e i m p r e c i s ã o . N ã o é fácil n o s m o v i -
m e n t a r m o s e n t r e as c o i s a s .
N o e n t a n t o , ao o l h a r m o s para trás, c o m o f a z e m o s aqui,
r e c o n h e c e m o s q u e era m a i s a c o n c h e g a n t e v i v e r e m u m
m u n d o d e c o i s a s . É claro q u e havia, se q u i s e r m o s n o s ex-
pressar c o m elegância, c e r t a s dificuldades e p i s t e m o l ó g i c a s ,
m a s era p o s s í v e l saber m a i s o u m e n o s o q u e se deveria fa-
zer para p o d e r viver. "Viver" significa ir e m direção à m o r -
te. N e s s e c a m i n h o t o p a v a - s e c o m coisas q u e o b s t r u í a m a
p a s s a g e m . Essas coisas c h a m a d a s "problemas" t i n h a m d e
ser c o n s e q u e n t e m e n t e retiradas d a frente. "Viver" signifi-
cava e n t ã o resolver p r o b l e m a s para p o d e r morrer. E o s pro-
b l e m a s e r a m s o l u c i o n a d o s q u a n d o as c o i s a s q u e r e s i s t i a m
obstinadamente eram transformadas e m dóceis, e a isso
se c h a m a v a "produção"; o u e n t ã o ao s e r e m s u p e r a d o s — o
que era identificado c o m o "progresso". A t é q u e f i n a l m e n t e
apareceram p r o b l e m a s q u e n ã o p o d i a m ser t r a n s f o r m a d o s
e n e m s u p e r a d o s . Eram d e n o m i n a d o s "as ú l t i m a s coisas", e
m o r r i a - s e por s u a causa. Esse era o p a r a d o x o da vida e n -
tre as coisas: acreditava-se q u e o s p r o b l e m a s t i n h a m d e ser
r e s o l v i d o s para l i m p a r o c a m i n h o para a m o r t e , a fim de,
c o m o s e c o s t u m a v a dizer, "libertar-se d a s circunstâncias",
e m o r r i a - s e j u s t a m e n t e p o r causa d o s p r o b l e m a s i n s o l ú -
v e i s . Isso p o d e a t é n ã o s o a r d e u m m o d o m u i t o aprazível,
m a s n ã o deixa d e ser tranquilizador. S a b e - s e a o m e n o s o
q u e s e t e m para a t e r - s e à vida — o u seja, as c o i s a s .
54 M a s e s s a s i t u a ç ã o i n f e l i z m e n t e m u d o u . Agora irrom-
p e m não coisas por todos os lados, e invadem n o s s o espaço
s u p l a n t a n d o as coisas. Essas n ã o coisas s ã o d e n o m i n a d a s
"informações". P o d e m o s querer reagir a i s s o d i z e n d o "mas
q u e contrassenso!", p o i s a s i n f o r m a ç õ e s s e m p r e e x i s t i r a m
e, c o m o a própria palavra "informação" indica, trata-se d e
"formar e m " coisas. Todas as coisas c o n t ê m i n f o r m a ç õ e s : li-
v r o s e i m a g e n s , latas d e c o n s e r v a e cigarros. Para q u e a in-
f o r m a ç ã o s e t o r n e e v i d e n t e , é p r e c i s o a p e n a s ler a s coisas,
"decifrá-las". S e m p r e foi a s s i m , n ã o há n a d a d e n o v o n i s s o .
Essa objeção é a b s o l u t a m e n t e vazia. A s i n f o r m a ç õ e s
q u e hoje i n v a d e m n o s s o m u n d o e s u p l a n t a m a s c o i s a s s ã o
de um tipo que nunca existiu antes: são informações ima-
teriais (undingliche lnformationeri). As imagens eletrônicas
n a tela d e t e l e v i s ã o , o s d a d o s a r m a z e n a d o s n o c o m p u t a d o r ,
o s rolos d e filmes e m i c r o f i l m e s , h o l o g r a m a s e p r o g r a m a s
s ã o t ã o "impalpáveis" (software) q u e qualquer t e n t a t i v a d e
agarrá-los c o m as m ã o s fracassa. Essas n ã o c o i s a s s ã o , n o
s e n t i d o p r e c i s o da palavra, "inapreensíveis". São a p e n a s
decodificáveis. E é b e m v e r d a d e q u e , c o m o as a n t i g a s infor-
m a ç õ e s , parecem t a m b é m estar inscritas nas coisas: e m
tubos de raios catódicos, e m celulóides, e m microchips, e m
raios laser. A i n d a q u e i s s o p o s s a ser a d m i t i d o "ontologica-
rnente", t r a t a - s e d e fato de u m a ilusão "existencial". A b a s e
material d e s s e n o v o t i p o d e i n f o r m a ç ã o é d e s p r e z í v e l d o
p o n t o d e v i s t a existencial. U m a prova d i s s o é o fato de q u e
o hardware e s t á se t o r n a n d o cada v e z m a i s barato, a o p a s s o
que o software, m a i s caro. O s i n d í c i o s d e m a t e r i a l i d a d e a i n -
da ligados a e s s a s n ã o c o i s a s p o d e m ser d e s c a r t a d o s ao s e
apreciar o n o v o a m b i e n t e . O e n t o r n o e s t á s e t o r n a n d o pro-
g r e s s i v a m e n t e m a i s impalpãvel, m a i s n e b u l o s o , m a i s fan- 55
t a s m a g ó r i c o , e aquele q u e n e l e quiser se o r i e n t a r terá d e
partir d e s s e caráter espectral q u e l b e é próprio.
M a s n ã o se faz s e q u e r n e c e s s á r i o trazer à c o n s c i ê n c i a
essa n o v a configuração d e n o s s o a m b i e n t e . E s t a m o s t o d o s
i m p r e g n a d o s dela. N o s s o i n t e r e s s e e x i s t e n c i a l d e s l o c a - s e , a
olhos v i s t o s , d a s coisas para as i n f o r m a ç õ e s . E s t a m o s cada
vez m e n o s i n t e r e s s a d o s e m p o s s u i r coisas e cada v e z mais
querendo c o n s u m i r i n f o r m a ç õ e s . N ã o q u e r e m o s a p e n a s u m
móvel a m a i s o u u m a roupa, m a s g o s t a r í a m o s t a m b é m d e
mais u m a v i a g e m de férias, u m a escola a i n d a m e l h o r para
os filhos e m a i s u m festival d e m ú s i c a e m n o s s a região.
As coisas c o m e ç a m a retirar-se para o s e g u n d o p l a n o de n o s -
s o c a m p o d e i n t e r e s s e s . A o m e s m o t e m p o , u m a parcela cada
vez maior da s o c i e d a d e o c u p a - s e c o m a p r o d u ç ã o d e infor-
m a ç õ e s , "serviços", a d m i n i s t r a ç ã o , s i s t e m a s , e m e n o s p e s -
soas se d e d i c a m à p r o d u ç ã o d e coisas. A classe trabalhadora,
o u seja, o s p r o d u t o r e s d e c o i s a s , e s t á se t o r n a n d o m i n o r i a ,
e n q u a n t o o s f u n c i o n á r i o s e o s apparatchiks, esses produto-
res de n ã o c o i s a s , t o r n a m - s e maioria. A moral b u r g u e s a ba-
seada e m coisas — p r o d u ç ã o , a c u m u l a ç ã o e c o n s u m o — c e d e
lugar a u m a n o v a moral. A vida n e s s e a m b i e n t e q u e v e m se
t o r n a n d o imaterial g a n h a u m a n o v a coloração.
P o d e - s e reprovar a d e s c r i ç ã o d e s s a reviravolta p o r ela
n ã o considerar a enxurrada de trastes inúteis que acom-
p a n h a a i n v a s ã o d a s n ã o c o i s a s . Essa reprovação, n o e n -
tanto, não procede: os trastes inúteis provam o ocaso das
coisas. O que acontece é que a l i m e n t a m o s as máquinas de
i n f o r m a ç õ e s para q u e elas " v o m i t e m " e s s e s t r a s t e s da for-
m a m a i s m a s s i v a e barata p o s s í v e l . E s s e s r e s t o s d e s c a r t á -
56 v e i s , i s q u e i r o s , n a v a l h a s , c a n e t a s , garrafas d e p l á s t i c o , n ã o
s ã o c o i s a s verdadeiras: n ã o dá para s e a p e g a r a elas. E à
m e d i d a q u e , p r o g r e s s i v a m e n t e m e l h o r , a p r e n d e r m o s a ali-
m e n t a r de i n f o r m a ç õ e s as m á q u i n a s , t o d a s a s c o i s a s v ã o
se converter e m trastes desse tipo, inclusive casas e ima-
g e n s . T o d a s as c o i s a s p e r d e r ã o s e u valor, e t o d o s o s valores
s e r ã o t r a n s f e r i d o s para a s i n f o r m a ç õ e s . "Transvaloração
d e t o d o s o s valores." Essa definição, aliás, é apropriada
para o n o v o i m p e r i a l i s m o : a h u m a n i d a d e é d o m i n a d a p o r
grupos que d i s p õ e m de informações privilegiadas, c o m o
p o r e x e m p l o a c o n s t r u ç ã o d e u s i n a s hidrelétricas e a r m a s
atômicas, de automóveis e aeronaves, de engenharia gené-
tica e s i s t e m a s i n f o r m á t i c o s d e g e r e n c i a m e n t o . E s s e s g r u -
pos v e n d e m as informações por preços altíssimos a uma
h u m a n i d a d e subjugada.
O que e s t á e m marcha a n t e n o s s o s o l h o s , e s s e desloca-
m e n t o das c o i s a s d o n o s s o h o r i z o n t e de i n t e r e s s e s e a focali-
zação d o s i n t e r e s s e s n a s i n f o r m a ç õ e s , é s e m p r e c e d e n t e
n a história. E, p o r i s s o , i n q u i e t a n t e . Mas s e q u i s e r m o s n o s
o r i e n t a r m e l h o r n e s s e c a m p o , t e r e m o s d e buscar, a p e s a r da
a u s ê n c i a de p r e c e d e n t e s , a l g u m t i p o de paralelismo. S e n ã o ,
como poderíamos sequer tentar imaginar n o s s o m o d o de
vida e m u m a m b i e n t e imaterial c o m o esse? Q u e tipo de h o -
m e m s e r á e s s e q u e , e m v e z d e s e o c u p a r c o m c o i s a s , irá s e
ocupar c o m informações, símbolos, códigos, sistemas e m o -
delos? Existe u m paralelo: a primeira Revolução Industrial.
O interesse se deslocou nitidamente da natureza, das vacas
e dos cavalos, d o s lavradores e artesãos para as coisas, para
as m á q u i n a s e s e u s p r o d u t o s , para a m a s s a d e t r a b a l h a d o -
res e para o capital, e a s s i m s u r g i u o m u n d o "moderno".
N e s s a é p o c a p o d i a - s e afirmar, e c o m razão, q u e u m c a m p o - 57
n ê s d o a n o 1750 a.C. seria m a i s p a r e c i d o c o m u m c a m p o n ê s
d e 1 7 5 0 d . C . d o q u e c o m u m p r o l e t á r i o , s e u filho, d o a n o
1780 d.C. H o j e e m dia o c o r r e a l g o parecido. E s t a m o s m a i s
p r ó x i m o s d o trabalhador e d o cidadão da Revolução Fran-
c e s a d o q u e d e n o s s o s p r ó p r i o s filhos, d e s s a s c r i a n ç a s q u e
v e m o s aí b r i n c a n d o c o m a p a r e l h o s e l e t r ô n i c o s . A c o m p a r a -
ção c e r t a m e n t e n ã o vai fazer c o m q u e a atual revolução s e
torne m a i s confortável para n ó s , m a s ela p o d e servir para
melhor apreensão do objeto.
P o d e r e m o s e n t ã o c o m p r e e n d e r que o esforço d e n o s ater-
m o s às coisas n a vida talvez n ã o seja o ú n i c o m o d o racional
de viver, o q u e vai a o e n c o n t r o daquilo e m q u e e s t a m o s in-
clinados a acreditar, q u e n o s s a "objetividade" (Objektivitat)
é algo relativamente n o v o . E n t e n d e r e m o s q u e se p o d e vi-
ver d i f e r e n t e m e n t e , talvez de f o r m a até m e l h o r . Aliás, a
vida "moderna", a vida e n t r e as coisas, n ã o é tão excep-
cionalmente maravilhosa c o m o talvez p e n s a s s e m nossos
pais. M u i t a s s o c i e d a d e s d o Terceiro M u n d o , excluídas d o
bloco ocidental, p a r e c e m ter b o a s r a z õ e s para rejeitá-la. Se
n o s s o s filhos t a m b é m c o m e ç a r e m a r e p u d i á - l a , n ã o s e r á
n e c e s s a r i a m e n t e m o t i v o d e d e s e s p e r o . Pelo contrário, tere-
m o s q u e i m a g i n a r e s s a n o v a vida c o m as n ã o c o i s a s .
A d m i t a m o s : e s s a n ã o é u m a tarefa fácil. Esse n o v o ho-
m e m q u e n a s c e a o n o s s o redor e e m n o s s o p r ó p r i o interior
d e fato carece d e m ã o s Çist handlos). Ele n ã o lida (hehandelt)
m a i s c o m as c o i s a s , e p o r i s s o n ã o s e p o d e m a i s falar de
s u a s a ç õ e s c o n c r e t a s (Handlungen), d e s u a práxis o u m e s -
m o d e s e u trabalho. O q u e lhe resta d a s m ã o s s ã o a p e n a s
as p o n t a s d o s d e d o s , q u e p r e s s i o n a m o t e c l a d o para operar
58 com os símbolos. O novo h o m e m não é mais uma pessoa
d e a ç õ e s c o n c r e t a s , m a s s i m u m performer (Spieler): Homo
ludens, e n ã o Momo faber. Para ele, a vida d e i x o u d e ser u m
drama e p a s s o u a ser u m e s p e t á c u l o . N ã o s e trata m a i s de
a ç õ e s , e s i m d e s e n s a ç õ e s . O n o v o h o m e m n ã o quer ter ou
fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja e x p e r i m e n t a r , c o n h e c e r
e, s o b r e t u d o , desfrutar. Por n ã o estar i n t e r e s s a d o n a s coi-
s a s , ele n ã o t e m p r o b l e m a s . Em lugar d e p r o b l e m a s , t e m
programas. E m e s m o assim continua s e n d o u m h o m e m :
vai m o r r e r e s a b e d i s s o . N ó s m o r r e m o s d e coisas c o m o
p r o b l e m a s i n s o l ú v e i s , e ele m o r r e d e n ã o coisas c o m o pro-
g r a m a s errados. Essas reflexões p e r m i t e m q u e n o s aproxi-
m e m o s dele. A irrupção da n ã o coisa e m n o s s o m u n d o con-
s i s t e n u m a g u i n a d a radical, q u e n ã o atingirá a d i s p o s i ç ã o
básica da e x i s t ê n c i a h u m a n a (Dasein), o ser para a m o r t e
(das Sein zum Tod). Seja a m o r t e c o n s i d e r a d a c o m o a ú l t i m a
coisa o u c o m o u m a n ã o coisa.
IZ~\ V S I O D O V N V
6 0 O h o m e m , desde sempre, v e m manipulando seu ambiente.
E a m ã o , c o m s e u polegar o p o s t o a o s d e m a i s d e d o s , que
d i s t i n g u e a e x i s t ê n c i a h u m a n a n o m u n d o . Essa m ã o pecu-
liar d o o r g a n i s m o h u m a n o a p r e e n d e as coisas. O m u n d o é
por ela a p r e e n d i d o c o m o u m c o n j u n t o d e c o i s a s , c o m o algo
c o n c r e t o . E n ã o é a p e n a s a p r e e n d i d o : as c o i s a s s ã o a p a n h a -
d a s para s e r e m t r a n s f o r m a d a s . A m ã o i m p r i m e f o r m a s (ín-
formiert) n a s c o i s a s q u e p e g a . E a s s i m s u r g e m d o i s m u n -
d o s ao redor d o h o m e m : o m u n d o da "natureza", d a s coisas
e x i s t e n t e s (yorhanderi) e a s e r e m agarradas, e o m u n d o da
"cultura", d a s c o i s a s d i s p o n í v e i s (jzuhanden), informadas.
A i n d a h á p o u c o s e acreditava q u e a h i s t ó r i a da h u m a n i -
d a d e era u m p r o c e s s o de t r a n s f o r m a ç ã o progressiva da na-
tureza e m cultura, graças a o trabalho d a s m ã o s . Hoje, e s s a
o p i n i ã o , e s s a "fé n o progresso", d e v e ser r e n e g a d a . D e fato,
t e m se t o r n a d o cada v e z m a i s e v i d e n t e q u e a m ã o n ã o deixa
e m p a z as coisas i n f o r m a d a s , m a s s i m c o n t i n u a a g i t a n d o - a s
até que se esgote a informação que contêm. A m ã o con-
s o m e a cultura e a t r a n s f o r m a e m lixo. P o r t a n t o , n ã o s ã o
d o i s m u n d o s q u e c i r c u n d a m o h o m e m , m a s s i m três: o da
n a t u r e z a , o da cultura e o d o lixo. Esse lixo t e m s e t o r n a d o
cada vez m a i s i n t e r e s s a n t e : diversas áreas d o c o n h e c i m e n -
t o como por exemplo a ecologia, a arqueologia, a etimolo-
gia e a p s i c a n á l i s e , t ê m s e d e d i c a d o a e s t u d á - l o . O q u e se
constata é q u e o lixo r e t o r n a para a n a t u r e z a . A h i s t ó r i a
h u m a n a , p o r t a n t o , n ã o é u m a l i n h a reta traçada da n a t u -
reza à cultura. Trata-se d e u m círculo, q u e gira da n a t u r e z a
à cultura, da cultura ao lixo, d o lixo à n a t u r e z a , e a s s i m p o r
diante. U m círculo v i c i o s o .
Para p o d e r saltar d e s s e círculo seria n e c e s s á r i o ter à dis-
posição i n f o r m a ç õ e s i n c o n s u m í v e i s , "inesquecíveis", q u e 61
não p o d e r i a m ser m a n u s e a d a s . M a s a m ã o agita t o d a s a s
coisas, t e n t a alcançar t u d o . A s i n f o r m a ç õ e s i n c o n s u m í v e i s ,
portanto, n ã o d e v e m ser a r m a z e n a d a s e m coisas. Seria
preciso produzir u m a cultura imaterial (undinglich). Se
isso ocorresse, n ã o haveria m a i s e s q u e c i m e n t o , e a s s i m a
história da h u m a n i d a d e c o n s i s t i r i a e f e t i v a m e n t e n u m pro-
gresso linear: u m a m e m ó r i a c r e s c e n t e , e m p l e n a e x p a n -
são. S o m o s hoje t e s t e m u n h a s da t e n t a t i v a de se produzir
uma cultura imaterial d e s s e t i p o , u m a m e m ó r i a expansível.
As m e m ó r i a s d o c o m p u t a d o r s ã o u m e x e m p l o d i s s o .
A m e m ó r i a d o c o m p u t a d o r é u m a n ã o coisa. D e f o r m a
similar, t a m b é m a s i m a g e n s e l e t r ô n i c a s e o s h o l o g r a m a s
são n ã o coisas, p o i s s i m p l e s m e n t e n ã o p o d e m ser apalpa-
das, a p r e e n d i d a s c o m a m ã o . São n ã o c o i s a s p e l o fato de
serem i n f o r m a ç õ e s i n c o n s u m í v e i s . É c e r t o q u e e s s a s n ã o
coisas c o n t i n u a m e n c l a u s u r a d a s e m c o i s a s c o m o chips d e
silício, t u b o s d e raios c a t ó d i c o s o u raios laser. O jogo das
contas de vidro, d e H e r m a n n H e s s e , e t r a b a l h o s similares
de futurologia p e r m i t e m q u e a o m e n o s s e i m a g i n e u m a li-
bertação d a s n ã o coisas c o m relação às c o i s a s . A libertação
d o software c o m relação a o hardware. M a s n ã o é s e q u e r ne-
cessário q u e f a n t a s i e m o s o futuro: a c r e s c e n t e imateriali-
d a d e (Undinglichkeit) e a i m p a l p a b i l i d a d e da cultura já são
hoje u m a v i v ê n c i a diária. A s c o i s a s a o n o s s o redor e s t ã o
e n c o l h e n d o , e m u m a e s p é c i e d e "miniaturização", e fican-
d o s e m p r e m a i s baratas; e m c o n t r a p a r t i d a , a s n ã o coisas
e m n o s s o e n t o r n o inflam, c o m o é o c a s o da "informática".
E e s s a s n ã o coisas s ã o s i m u l t a n e a m e n t e e f ê m e r a s e eter-
n a s . N ã o e s t ã o a o alcance da m ã o (vorhanderi), e m b o r a e s -
62 t e j a m d i s p o n í v e i s (zuhanderi): s ã o i n e s q u e c í v e i s .
Em u m c o n t e x t o c o m o e s s e , as m ã o s n ã o t ê m n a d a a
procurar e n a d a a fazer. U m a v e z que a s i t u a ç ã o é inalcan-
çável, n ã o h á n a d a a ser t o c a d o o u m a n i p u l a d o . A m ã o , a
a t i v i d a d e d e a p a n h a r e d e produzir, t o r n o u - s e aí supérflua.
E o que a i n d a precisa ser a p r e e n d i d o e p r o d u z i d o é e f e t u a d o
a u t o m a t i c a m e n t e por n ã o c o i s a s , p o r p r o g r a m a s : por "inte-
ligência artificial" e m á q u i n a s r o b o t i z a d a s . D e s s e m o d o , o
h o m e m s e e m a n c i p o u d o trabalho d e a p r e e n d e r e d e pro-
duzir, e ficou d e s e m p r e g a d o . O atual d e s e m p r e g o n ã o é u m
" f e n ô m e n o conjuntural", m a s u m s i n t o m a da superficiali-
d a d e d o trabalho n e s s e c o n t e x t o imaterial.
A s m ã o s t o r n a r a m - s e supérfluas e p o d e m atrofiar, m a s
as p o n t a s d o s d e d o s n ã o . Pelo contrário: elas p a s s a m a
ser as p a r t e s m a i s i m p o r t a n t e s d o o r g a n i s m o . Pois, n e s s e
e s t a d o de c o i s a s imateriais (undinglich), trata-se d e fabri-
car i n f o r m a ç õ e s t a m b é m i m a t e r i a i s e d e d e s f r u t a r d e l a s .
A produção de informações é u m jogo de permutação de
s í m b o l o s . D e s f r u t a r d a s i n f o r m a ç õ e s significa apreciá-los,
e n e s s a s i t u a ç ã o imaterial, t r a t a - s e d e jogar c o m eles e o b -
s e r v á - l o s . E, para jogar c o m o s s í m b o l o s , para programar, é
neCessário p r e s s i o n a r teclas. D e v e - s e fazer o m e s m o para
se apreciar o s s í m b o l o s , para desfrutar d o s p r o g r a m a s . A s *>*»;>
teclas s ã o d i s p o s i t i v o s q u e p e r m u t a m s í m b o l o s e p e r m i t e m
torná-los perceptíveis: c o n s i d e r e m o s , p o r e x e m p l o , o p i a n o
ou a m á q u i n a de escrever. A s p o n t a s d o s d e d o s s à o i n d i s -
p e n s á v e i s para p r e s s i o n a r m o s a s teclas. O h o m e m , n e s s e
futuro d e c o i s a s i m a t e r i a i s , garantirá s u a e x i s t ê n c i a graças
às p o n t a s d o s d e d o s .
E aí s e p o d e p e r g u n t a r o q u e a c o n t e c e , e m t e r m o s e x i s -
tenciais, q u a n d o p r e s s i o n o u m a tecla. O q u e ocorre q u a n d o 63
p r e s s i o n o u m a tecla n a m á q u i n a d e escrever, n o p i a n o , n o
aparelho d e t e l e v i s ã o , n o t e l e f o n e . O q u e a c o n t e c e q u a n d o
o presidente dos Estados Unidos aciona o botão vermelho
o u q u a n d o o fotógrafo p r e s s i o n a o b o t ã o d o obturador. Eu
e s c o l h o u m a tecla, d e c i d o - m e p o r u m a tecla. D e c i d o - m e
por u m a d e t e r m i n a d a letra n a m á q u i n a d e escrever, p o r
u m d e t e r m i n a d o t o m n o p i a n o , p o r u m d e t e r m i n a d o pro-
grama d e t e l e v i s ã o , por u m n ú m e r o específico d e t e l e f o n e .
O p r e s i d e n t e o p t a p o r u m a guerra, o fotógrafo, por u m a
i m a g e m . A s p o n t a s d o s d e d o s s ã o "órgãos" d e u m a e s c o l h a ,
de u m a d e c i s ã o . O h o m e m e m a n c i p a - s e d o t r a b a l h o para
p o d e r e s c o l h e r e decidir. A s i t u a ç ã o e m q u e s e e n c o n t r a ,
s e m trabalho e s e m c o i s a s (.undinglicfi), l h e p e r m i t e a liber-
dade d e e s c o l h a e d e d e c i s ã o .
Essa liberdade d a s p o n t a s d o s d e d o s , s e m m ã o s , é n o
e n t a n t o i n q u i e t a n t e . Se c o l o c o o revólver contra m i n h a s
t ê m p o r a s e a p e r t o o g a t i l h o , é p o r q u e decidi p ô r t e r m o à
m i n h a própria vida. Essa é a p a r e n t e m e n t e a m a i o r liber-
d a d e p o s s í v e l : a o p r e s s i o n a r o g a t i l h o , p o s s o m e libertar
de t o d a s as s i t u a ç õ e s d e o p r e s s ã o . M a s , n a realidade, a o
p r e s s i o n á - l o , o q u e faço é d e s e n c a d e a r u m p r o c e s s o que já
e s t a v a p r o g r a m a d o e m m e u revólver. M i n h a d e c i s ã o não
foi a s s i m t ã o livre, já q u e m e decidi d e n t r o d o s l i m i t e s do
p r o g r a m a d o revólver. E, i g u a l m e n t e , d o p r o g r a m a da má-
quina de escrever, d o p r o g r a m a d o p i a n o , d o p r o g r a m a da
televisão, do programa d o telefone, do programa adminis-
trativo a m e r i c a n o , d o p r o g r a m a da m á q u i n a fotográfica. A
liberdade d e d e c i s ã o d e p r e s s i o n a r u m a tecla c o m a p o n t a
d o d e d o m o s t r a - s e c o m o u m a liberdade p r o g r a m a d a , c o m o
u m a e s c o l h a de p o s s i b i l i d a d e s prescritas. O q u e e s c o l h o , o
faço d e a c o r d o c o m as p r e s c r i ç õ e s .
Por i s s o , é c o m o s e a s o c i e d a d e d o futuro, imaterial, se
dividisse e m duas classes: a dos programadores e a dos
p r o g r a m a d o s . A p r i m e i r a s e r i a d a q u e l e s q u e p r o d u z e m pro-
g r a m a s , e a s e g u n d a , d a q u e l e s q u e s e c o m p o r t a m confor-
m e o p r o g r a m a . A c l a s s e d o s j o g a d o r e s e a c l a s s e d a s ma-
r i o n e t e s . M a s e s s a v i s ã o p a r e c e ser m u i t o o t i m i s t a . Pois o
q u e o s p r o g r a m a d o r e s f a z e m q u a n d o p r e s s i o n a m as teclas
para jogar c o m s í m b o l o s e p r o d u z i r i n f o r m a ç õ e s é o m e s -
m o m o v i m e n t o de d e d o s f e i t o p e l o s p r o g r a m a d o s . Eles
t a m b é m t o m a m decisões d e n t r o de u m programa, que po-
d e r í a m o s c h a m a r d e "metaprograma". E o s j o g a d o r e s d o
metaprograma, por sua vez, pressionam m e t a t e d a s de u m
" m e t a m e t a p r o g r a m a " . E e s s e recurso de m e t a a m e t a , de
p r o g r a m a d o r e s d o s p r o g r a m a d o r e s d e p r o g r a m a d o r e s , re-
v e l a - s e infinito. N ã o : a s o c i e d a d e d o futuro, imaterial, será
u m a sociedade s e m classes, u m a sociedade de programa-
d o s p r o g r a m a d o r e s . Essa é p o r t a n t o a liberdade d e d e c i s ã o
q u e n o s é a b e r t a pela e m a n c i p a ç ã o d o trabalho. Totalita-
rismo programado.
Mas trata-se c e r t a m e n t e d e u m t o t a l i t a r i s m o e x t r e m a -
m e n t e s a t i s f a t ó r i o , p o i s o s p r o g r a m a s s ã o cada v e z m e l h o -
res. O u seja, e l e s c o n t ê m u m a q u a n t i d a d e a s t r o n ô m i c a d e
possibilidades d e e s c o l h a q u e ultrapassa a capacidade de
decisão d o H o m e m . D e m o d o q u e , q u a n d o e s t o u d i a n t e
de u m a d e c i s ã o , p r e s s i o n a n d o t e c l a s , n u n c a m e d e p a r o
com o s l i m i t e s d o p r o g r a m a . S ã o t ã o n u m e r o s a s as teclas .
disponíveis que as p o n t a s d o s m e u s d e d o s j a m a i s p o d e r ã o
tocá-las t o d a s . Por i s s o t e n h o a i m p r e s s ã o de ser t o t a l m e n -
te livre n a s d e c i s õ e s . O t o t a l i t a r i s m o p r o g r a m a d o r , s e e s - 65
tiver a l g u m dia c o n s u m a d o , n u n c a será identificado p o r
aqueles q u e d e l e façam parte: será invisível para e l e s . Só s e
faz visível agora, e m s e u e s t a d o e m b r i o n á r i o . S o m o s talvez
a última geração q u e p o d e ver c o m clareza o q u e v e m a c o n -
t e c e n d o por aqui.
E p o d e m o s v ê - l o claramente, p o i s ainda t e m o s m ã o s
para alcançar as coisas e manipulá-las. E e n t ã o p o d e m o s re-
conhecer c o m o n ã o coisa o t o t a l i t a r i s m o programador que
se aproxima, p o r n ã o p o d e r m o s apreendê-lo. Será que e s s a
inabilidade d e a p r e e n s ã o n ã o seria u m sinal de que e s t a m o s
"ultrapassados"? Pois u m a s o c i e d a d e e m a n c i p a d a d o traba-
lho e que acredita ser livre para decidir n ã o seria por acaso
u m a daquelas u t o p i a s d e s d e s e m p r e i m a g i n a d a s pela h u m a -
nidade? Será q u e n ã o e s t a m o s n o s a p r o x i m a n d o da plenitu-
de das eras? Para poder julgar i s s o , haveria d e s e analisar c o m
mais precisão o que se e n t e n d e por "programa" — e s s e c o n -
ceito f u n d a m e n t a l d o s t e m p o s atuais e futuros.
RODAS

.
Um dos efeitos do nazismo que mais se prolongou n o t e m - 67
po foi a k i t s c h i z a ç ã o da suástica. E i s s o n ã o significa p o u c o ,
se c o n s i d e r a r m o s q u e o s í m b o l o e s t á a s s e n t a d o n a s p r o f u n -
dezas da c o n s c i ê n c i a h u m a n a . E e n c o n t r a - s e i n s t a l a d o d e
uma f o r m a t à o arraigada a p o n t o d e , m e t a f o r i c a m e n t e , tor-
nar raso o A t l â n t i c o : a s u á s t i c a t e m u m a s p e c t o m u i t o s i m i -
lar para o s c e l t a s e o s a s t e c a s . Este e n s a i o p r e t e n d e refletir
sobre e s s e s í m b o l o , m a s a n t e s será a p r e s e n t a d a u m a obser-
vação m e t o d o l ó g i c a .
As c o i s a s p o d e m ser v i s t a s p e l o m e n o s d e d u a s m a n e i -
ras: m e d i a n t e o b s e r v a ç ã o e p o r m e i o d a leitura. Q u a n d o
observadas, as coisas são vistas c o m o f e n ô m e n o s . N o caso
da suástica, p o r e x e m p l o , v e m o s d u a s barras q u e s e c r u z a m ,
e, nas e x t r e m i d a d e s d a s barras, g a n c h o s . Q u a n d o l e m o s as
coisas, p r e s s u p o m o s q u e elas s i g n i f i q u e m algo, e t e n t a m o s
decifrar e s s e s significados. ( N o t e m p o e m q u e o m u n d o era
c o n s i d e r a d o u m livro, natura libellum, e e n q u a n t o s e t e n t a -
va decifrá-lo, era i m p o s s í v e l u m a ciência natural s e m p r e s -
s u p o s i ç õ e s . E, d e s d e q u e o m u n d o c o m e ç o u a ser o b s e r v a d o ,
e n ã o m a i s lido, p a s s o u a n ã o ter m a i s significado.) Se al-
g u é m s e a p r o x i m a r d a s u á s t i c a para lê-la, verá q u a t r o raios
e m i t i d o s a partir d e u m e i x o ; e s s e s raios g i r a m n o s e n t i d o
d o s g a n c h o s , e o s g a n c h o s c o m e ç a m a d e s c r e v e r u m a cir-
cunferência. D o p o n t o d e v i s t a da leitura, o s i g n o manifes-
t a - s e d i z e n d o : s o u a r o d a solar, e e s t o u irradiando.
E aqui d e v o c o n f e s s a r o m o t i v o d e s t e e n s a i o : s e obser-
v a r m o s a c o n d i ç ã o d o m u n d o p ó s - i n d u s t r i a l , ficaremos im-
p r e s s i o n a d o s c o m o l e n t o , p o r é m irreversível, desapareci-
m e n t o d a s rodas. N ã o s e o u v e m a i s s e u ruído n o s aparelhos
e l e t r ô n i c o s . A q u e l e q u e q u e r avançar n ã o s e coloca m a i s so-
68 bre r o d a s , m a s s i m s o b r e a s a s , e u m a v e z q u e a b i o t e c n o -
l o g i a tiver s u p e r a d o a m e c â n i c a , as m á q u i n a s d e i x a r ã o de
ter rodas e passarão a ter d e d o s , pernas e órgãos sexuais.
Talvez a roda esteja p r e s t e s a s e c o n v e r t e r e m u m m e r o cír-
culo, e d e p o i s e m m a i s u m a e n t r e t a n t a s o u t r a s curvas. An-
t e s q u e e s s a d e c a d ê n c i a d a s r o d a s s e e n c a m i n h e a i n d a mais
r a p i d a m e n t e para o fim, parece i n d i s p e n s á v e l interpretar
a p r o f u n d a i n a p r e e n s i b i l i d a d e da roda — a i n d a q u e n e s s e s
m o m e n t o s finais e a p e s a r d a k i t s c h i z a ç ã o — a partir d a ima-
g e m da roda solar.
A i m a g e m a p o n t a d o s i g n o a o significado, da suástica ao
Sol. É u m d i s c o i n c a n d e s c e n t e q u e gira ao redor da Terra.
M a s s o m e n t e o s e m i c í r c u l o s u p e r i o r q u e descreve, d o nascer
ao pôr d o sol, s e faz visível. O semicírculo inferior p e r m a -
n e c e u m s e g r e d o o b s c u r o . E s s e círculo e t e r n o , q u e s e repete
eternamente e m suas fases, é completamente antiorgânico
(antiorganisch'). N o r e i n o d o s seres v i v o s n ã o e x i s t e m rodas,
e as únicas coisas q u e r o l a m s ã o as pedras e o s t r o n c o s d e
árvores d e r r u b a d o s . E a vida é u m processo: d e s c r e v e u m
t r e c h o que vai d o n a s c i m e n t o à m o r t e , é u m devir e m dire-
ção ao perecer. Mas a roda d o Sol contradiz t a m b é m a m o r t e ,
e não s o m e n t e a vida: retorna s e c r e t a m e n t e e c o m p l e t a o
círculo, d o o c a s o à alvorada. A roda solar s u p e r a a vida e a
morte, e o m u n d o t o d o se faz visível s o b e s s a roda, p o i s é
exatamente e s s a roda q u e o t o r n a passível d e ser v i s t o .
E q u a n d o se o l h a o m u n d o d e s s e m o d o , e l e parece o s e -
guinte: u m c e n á r i o e m q u e h o m e n s e c o i s a s i n t e r a g e m e n -
tre si, i s t o é, t r o c a m d e p o s i ç ã o u n s c o m o s o u t r o s . A roda
do Sol, o círculo d o t e m p o , coloca t u d o e t o d a s as c o i s a s de
volta n o lugar q u e l h e s é d e v i d o . Cada m o v i m e n t o é u m deli-
to c o m e t i d o p o r h o m e n s e c o i s a s c o n t r a si m e s m o s e contra 69
a eterna o r d e m circular, e o t e m p o s e m o v e e m círculo para
expiar o s d e l i t o s e voltar c o m o s h o m e n s e as c o i s a s para s e u
devido lugar. P o r t a n t o , n ã o e x i s t e m d i f e r e n ç a s e s s e n c i a i s
entre h o m e n s e coisas: a m b o s s ã o a n i m a d o s p e l o d e s e j o de
provocar d e s o r d e m , e a m b o s s ã o l e v a d o s p e l o t e m p o e c o m
o tempo rumo ao perecimento. Tudo n o m u n d o é animado,
pois t u d o s e m o v e e d e v e t e r u m m o t i v o para s e m o v e r . E o
t e m p o é o juiz e o carrasco: ele circula p e l o m u n d o , d i s p õ e
tudo e m s e u s d e v i d o s lugares e p a s s a c o m o u m a roda p o r
cima de t u d o , a t r o p e l a n d o e d e s t r u i n d o o q u e e n c o n t r a e m
seu c a m i n h o . Foi n e s s a a t m o s f e r a d e culpa, d e e x p i a ç ã o e
de e t e r n o r e t o r n o , o u , e m o u t r a s palavras, s o b o s i g n o da
roda solar q u e a h u m a n i d a d e v i v e u a m a i o r p a r t e d e s e u
t e m p o n a Terra.
S e m p r e e x i s t i r a m h o m e n s q u e t e n t a r a m s e rebelar c o n -
tra a roda d o d e s t i n o . M a s o q u e c o n s e g u i a m c o m i s s o era
apenas provocar a i n d a m a i s o d e s t i n o . Édipo d o r m i u c o m
sua m ã e e x a t a m e n t e p o r q u e n ã o o queria e, p o r e s s e m e s m o
m o t i v o , t e v e d e arrancar s e u s p r ó p r i o s o l h o s . A i s s o o s gre-
gos c h a m a v a m d e "heroísmo". O s p r é - s o c r á t i c o s q u i s e r a m
s u p e r a r a r o d a p e l o l a d o d e f o r a , p e l a via d a t r a n s c e n d ê n c i a
Eles a c r e d i t a v a m q u e m e s m o a r o d a , p a r a p o d e r se mover
t i n h a d e t e r u m m o t i v o , u m m o t o r (Beu/eger). A i d é i a desse
m o t o r imóvel s i t u a d o além d o t e m p o , desse m o t i v o nào
m o t i v a d o e m si m e s m o , i d é i a a p r i m o r a d a p o s t e r i o r m e n t e
p o r Aristóteles, é f u n d a m e n t a l para se p e n s a r o conceito
ocidental de Deus.
M u i t o a n t e s dos pré-socráticos, p o r é m , surgiu n a Meso-
p o t a m i a u m tipo de h e r o í s m o b a s t a n t e diferente. Tente-
70 m o s nos c o l o c a r n o p a p e l d e u m s a c e r d o t e s u m é r i o . A par-
t i r d e s u a s p r e v i s õ e s , t e n t a v a d e c i f r a r o m u n d o q u e girava
s o b r e r o d a s . Via o n a s c i m e n t o , a m o r t e e o r e n a s c i m e n t o ,
via a c u l p a e a e x p i a ç ã o , o d i a e a n o i t e , o v e r ã o e o i n v e r n o ,
a g u e r r a e a p a z , d i a s d e p r o s p e r i d a d e e d e m i s é r i a , e via
c o m o essas fases e s t a v a m c o m o q u e e n g r e n a d a s u m a s com
a s o u t r a s d e m o d o cíclico. A p a r t i r d e s s e s ciclos e epiciclos,
o s a c e r d o t e p o d i a i n t e r p r e t a r o futuro — a s t r o l o g i c a m e n t e ,
por exemplo — n ã o para evitã-lo, m a s para profetizã-lo. E
d e r e p e n t e lhe o c o r r e u a incrível idéia d e c o n s t r u i r u m a
roda que girasse na direção contrária à da roda do destino.
U m a roda que, se colocada n o Eufrates, poderia m u d a r a
direção das águas, d e m o d o que, e m vez d e fluírem para
o mar, seriam conduzidas para os canais. Do nosso p o n t o
de vista atual, esse era u m p e n s a m e n t o técnico. Mas, para
aquela época e n a q u e l e lugar, r e p r e s e n t a v a u m a r u p t u r a di-
fícil d e s e r c o m p r e e n d i d a . A i n v e n ç ã o d a r o d a r o m p e u o
círculo mágico d a pré-história, fraturou o d e s t i n o . Abriu
o c a m i n h o p a r a u m a n o v a f o r m a d e t e m p o — a h i s t ó r i a . Se
h á a l g u m a coisa q u e m e r e ç a s e r c h a m a d a d e "catástrofe",
essa coisa seria a r o d a - d a g u a .
Esse giro filosófico n ã o n o s d e v e i m p e d i r d e a c o m p a n h a r
os estágios s e g u i n t e s d o d e s e n v o l v i m e n t o da roda, o u seja,
devemos n o s lembrar daquelas carroças, puxadas por burros,
que t r a n s p o r t a v a m cereais para o s m o i n h o s . Essa é u m a
cena t o t a l m e n t e d i f e r e n t e d a q u e l a d o s a c e r d o t e e n g e n b o s o
e heróico. Ela s e e n c o n t r a n o m e i o da h i s t ó r i a e e s t á m a i s
próxima da R e v o l u ç ã o Industrial q u e d o m i t o . Pois a idéia
da roda veicular (Fahrrad),* i s t o é, a roda n a carroça, d e v e -
se i n t e i r a m e n t e à c o n s c i ê n c i a histórica, e s ó p o d e surgir
onde se v i v e h i s t o r i c a m e n t e . 71
Por e x e m p l o : i m a g i n e m o s u m a roda hidráulica que s e
soltasse d o e i x o e ainda f o s s e i m p u l s i o n a d a . Ela deveria ro-
lar por u m e s p a ç o i n f i n i t a m e n t e e x t e n s o , d u r a n t e u m t e m -
po i n f i n i t a m e n t e l o n g o , e é i s s o o que se c h a m a d e "histó-
ria": u m rolar i n f i n i t a m e n t e l o n g o e i n f i n i t a m e n t e e x t e n s o .
Mas é e v i d e n t e que aqui n ã o se trata d i s s o , m a s s i m d e que
é necessário u m m o t o r , por e x e m p l o o cavalo, que precisa
dar à roda i m p u l s o c o n t í n u o para m a n t ê - l a rolando. C o m o
p o d e m o s afinal explicar o fato de q u e u m a roda veicular
(Fahrrad) t e m d e ser u m a roda m o t o r i z a d a (Motorrad) e
não p o d e ser u m a u t o m ó v e l (Automobil) o u u m perpetuum
mobile, e t a m b é m n ã o p o d e ser algo m o t i v a d o e t e r n a m e n t e ?
A idéia da roda veicular n ã o p o d e esclarecer i s s o por si s ó .
Por ser u m círculo, a roda está sempre e m contato c o m o

Fahrrad, e m a l e m ã o , significa bicicleta. N o e n t a n t o , a tradução


mais apropriada aqui é "roda veicular", q u e seria u m a tradução literal
do t e r m o a l e m ã o , c o m p o s t o d a s palavras "Rad" (roda) e "fahren" ( c o n -
duzir, guiar). N e s t e t e x t o , Flusser joga c o m a e t i m o l o g i a d a s palavras
bicicleta, m o t o c i c l e t a (.Motorrad") e a u t o m ó v e l (Automobil). [N.T.j
solo mediante u m único p o n t o . C o m o u m p o n t o é algo sem
d i m e n s ã o (nulldimensionaO, u m nada, a roda e n t ã o nunca
está e m c o n t a t o c o m a realidade sobre a qual avança, e por
i s s o n ã o d e v e r i a d e m o d o a l g u m s e r i n f l u e n c i a d a p o r ela.
N o e n t a n t o , a roda roça a superfície ilusória d o m u n d o , e os
cavalos t ê m que puxá-la para m a n t ê - l a rodando.
Pode-se pensar o quanto nos distanciamos do m u n d o
m í t i c o da roda solar a o f o r m u l a r m o s o p r o b l e m a da roda
veicular. D i g a m o s q u e a diferença f u n d a m e n t a l entre o
72 m u n d o d o m i t o e o n o s s o próprio m u n d o seja esta: n o
primeiro n ã o p o d e haver m o v i m e n t o i m o t i v a d o . Se algo se
m o v e é p o r q u e t e m a l g u m m o t i v o , o u seja, a l g u m a causa o
anima. Em n o s s o m u n d o , ao contrário, o m o v i m e n t o exige
maiores explicações. N o s s o m u n d o é inerte o u , para dizer
d e f o r m a m a i s e l e g a n t e , a lei d a i n é r c i a e x p l i c a t o d o e q u a l -
quer m o v i m e n t o e todo e qualquer repouso. Certamente
e x i s t e m t a m b é m e m n o s s o m u n d o m o v i m e n t o s q u e pare-
cem motivados, c o m o por exemplo nossos próprios movi-
m e n t o s . E s s e s m o v i m e n t o s a n o r m a i s , p o r s u a v e z , carac-
terizam os seres vivos. O século x v m nutria a esperança
de explicar satisfatoriamente o s m o t i v o s d o s seres vivos
c o m o fábulas, e pretendia explicar os seres vivos c o m o má-
quinas. Essa esperança n ã o se realizou, e ainda: o m u n d o
dos mitos é u m m u n d o animado, tudo nele são seres vivos,
m o v i m e n t a d o s p e l a r o d a d o d e s t i n o ; já o n o s s o m u n d o é
inerte, s e m vida, apesar de os seres vivos ocorrerem nele,
e esse m u n d o inerte roda s e m cessar e s e m m o t i v o algum.
C o m o é e n t ã o que, por e x e m p l o , os ciclistas c o n t i n u a m
perdendo o equilíbrio? Porque u m p o n t o apenas na teoria
p o d e significar nada, e p o r q u e u m a roda, t a m b é m a p e n a s
teoricamente, c o r r e s p o n d e a u m círculo. N a prática, u m p o n -
to é s e m p r e a l o n g a d o e u m círculo, s e m p r e irregular. C o n -
forme a lei d a inércia, as r o d a s d e v e r i a m rodar e t e r n a m e n t e ,
m a s na prática o atrito acaba f r e a n d o - a s . I s s o n ã o quer di-
zer que a o c o n s t r u i r m o s bicicletas t e n h a m o s q u e renunciar
à teoria. Pelo contrário: significa q u e t e m o s d e i n t r o d u z i r
u m a teoria d o a t r i t o d e n t r o d a teoria da inércia. A o c o n -
siderarmos a carroça p u x a d a p e l o cavalo, e n c o n t r a m o - n o s
no meio de u m a contradição entre teoria e observação, en-
tre teoria e e x p e r i m e n t o , e m s u m a , e n t r e o p e n s a m e n t o 73
científico e o p e n s a m e n t o t é c n i c o .
D e s d e q u e , c o m a i n v e n ç ã o da roda-d'água e, p o s t e r i o r -
m e n t e , da roda veicular, c o n s e g u i m o s r o m p e r a roda fatal
do e t e r n o r e t o r n o d o m e s m o , o m u n d o s e t o r n o u i n e r t e e
i n a n i m a d o , e p o r i s s o ilusório e repulsivo. M a s graças à dia-
lética e n t r e t e o r i a e e x p e r i m e n t o p o d e m o s superar a ilusão
repulsiva Çwiderliche Tücke) d o m u n d o i n a n i m a d o e obri-
gá-la a servir de b a s e para u m p r o g r e s s o q u e rola de m o d o
ilimitado. A roda d o p r o g r e s s o n ã o p o d e avançar de for-
m a a u t o m á t i c a e t e r n a m e n t e , já que é forçada a superar re-
sistências cegas e imotivadas do m u n d o inanimado, c o m o
por e x e m p l o a gravidade terrestre e as irregularidades da
superfície. A roda d o p r o g r e s s o n e c e s s i t a de u m m o t o r , e
e s s e m o t o r s o m o s n ó s m e s m o s , n o s s a própria v o n t a d e . Daí
o slogan da t r i u n f a n t e R e v o l u ç ã o Industrial: "Se d e p e n d e r
de s e u braço forte, as r o d a s p a r a m d e s e mover", o u e n t ã o :
"Somos o s c o n d u t o r e s d e t o d a s a s r o d a s , o D e u s v i v o d e u m
u n i v e r s o morto".
M a s e s s a s i t u a ç ã o i n f e l i z m e n t e n ã o vai durar m u i t o .
H á p o u c o t e m p o t o r n o u - s e claro que o s atritos q u e d e t ê m a
roda d o p r o g r e s s o p o d e m s e r s u p e r a d o s d e m o d o efetivo, e
q u e o p r o g r e s s o c o m e ç a e n t ã o d e fato a rolar automatica-
m e n t e . Ele s e t o r n a u m a u t o m ó v e l . E a s s i m qualquer mu-
d a n ç a d e direção da roda p o r p a r t e da h u m a n i d a d e s e torna
d e s n e c e s s á r i a . O p r o g r e s s o c o m e ç a a derrapar, c o m o acon-
t e c e c o m o s carros q u e e s t ã o n u m a pista n o g e l o . E existe
o p e r i g o d e que, e m m e i o a u m p r o g r e s s o q u e desliza sem
a t r i t o s , a h u m a n i d a d e seja atropelada e x a t a m e n t e quando
t e n t a pisar n o freio. U m a s i t u a ç ã o q u e l e m b r a aquela de
74 Édipo, que s e rebela c o n t r a a roda d o d e s t i n o e arranca os
p r ó p r i o s o l h o s . Talvez i s s o c o n s i g a explicar o e s f o r ç o atual
n o s e n t i d o d e d e s c o n e c t a r t o d a s as rodas e d e saltar deste
m u n d o d e rodas para o u t r o a ser a i n d a e x p e r i m e n t a d o . O
p r e s e n t e e n s a i o t r a d u z - s e e m u m a t e n t a t i v a d e olhar mais
u m a v e z para trás — a n t e s d e saltar d o a u t o m ó v e l e m mo-
v i m e n t o d e s l i z a n t e e livre d e a t r i t o s — para capturar, pela
ú l t i m a v e z , atrás d a s rodas que derrapam, a q u e l e mistério
irradiante a partir d o qual t o d a a história da h u m a n i d a d e
foi colocada e m m o v i m e n t o .
SOBRE FORMAS E FÓRMULAS
76 O E t e r n o Oouvado seja S e u n o m e ) f o r m o u o m u n d o a par-
t i r d o c a o s , d o Tohuwabohu. O s n e u r o f i s i o l o g i s t a s (será
melhor que permaneçam n o anonimato) descobriram Seu
segredo, e agora qualquer designer que se preze é capaz de
i m i t á - l o e i n c l u s i v e d e f a z e r m e l h o r d o q u e Ele.
É o que parece: durante m u i t o t e m p o acreditou-se que
as f o r m a s que o D e u s Criador havia p r e e n c h i d o c o m c o n t e ú -
d o e s t a v a m ocultas atrás d e s s e c o n t e ú d o , e s p e r a n d o para
s e r e m d e s c o b e r t a s . Por e x e m p l o , p e n s a v a - s e q u e D e u s h a -
via inventado a forma do céu e a havia superposto ao caos
n o primeiro dia da criação. A s s i m h a v i a m surgido os céus.
Depois, pessoas c o m o Pitágoras e P t o l o m e u haviam desco-
b e r t o e s s a s f o r m a s divinas por trás d o s f e n ô m e n o s e as ha-
v i a m anotado. Tratava-se de ciclos e epiciclos; isso é o que
se conhece c o m o pesquisa: descobrir o design divino por
trás d o s f e n ô m e n o s .
D e s d e a Renascença t e m o s n o s deparado c o m algo sur-
p r e e n d e n t e e, a i n d a h o j e , n ã o t o t a l m e n t e d i g e r i d o : o s c é u s
p o d e m s e r f o r m u l a d o s e f o r m a l i z a d o s , n a v e r d a d e , e m ci-
clos e epiciclos p t o l o m a i c o s , m a s , m e l h o r ainda, e m círcu-
los c o p e r n i c a n o s e n a s e l i p s e s d e Kepler.
C o m o é p o s s í v e l isso? D e u s , o Criador, u s o u ciclos, epi-
ciclos o u e l i p s e s n o p r i m e i r o dia da criaçào? O u será q u e
não foi D e u s , n o s s o S e n h o r , m a s s i m o s s e n h o r e s a s t r ô n o -
m o s q u e e s t a b e l e c e r a m e s s a s f o r m a s ? Será q u e as f o r m a s
não são d i v i n a s , m a s s i m h u m a n a s ? N ã o s e r ã o e t e r n a s n o
a l é m - m u n d o , m a s plásticas e m o d e l á v e i s n o n o s s o m u n d o ?
Não serão i d é i a s e ideais, m a s f ó r m u l a s e m o d e l o s ? O difícil
de digerir n e s s e a s s u n t o n ã o é o f a t o d e d e s t i t u i r m o s D e u s
para c o l o c a r m o s o s d e s i g n e r s c o m o criadores d o m u n d o .
N ã o , o q u e r e a l m e n t e n ã o s e p o d e digerir é q u e , s e f o s s e 77
verdade q u e e s t i v é s s e m o s o c u p a n d o o t r o n o d e D e u s , o s
céus (e e m geral t o d o a s p e c t o d a n a t u r e z a ) d e v e r i a m p o d e r
ser f o r m a l i z a d o s d o m o d o q u e q u i s é s s e m o s , e i s s o n ã o s e
dá a s s i m . Por q u e o s p l a n e t a s d e s c r e v e m órbitas circulares,
epicídicas o u elípticas, e n ã o quadradas o u triangulares?
Por q u e é q u e p o d e m o s formular as leis naturais d e diver-
sos m o d o s , m a s n ã o do m o d o que queremos? Existe por
acaso a l g u m a c o i s a lá fora q u e esteja preparada para e n g o -
lir a l g u m a s d e n o s s a s f ó r m u l a s , ainda que n o s c u s p a n a face
outras? Haverá t a l v e z u m a "realidade" e x t e r i o r q u e p e r m i -
ta ser i n f o r m a d a e f o r m u l a d a p o r n ó s , m a s q u e n o s exija n o
e n t a n t o u m a certa a d e q u a ç ã o a ela?
A p e r g u n t a é difícil d e ser digerida, u m a v e z q u e n ã o se
p o d e ser d e s i g n e r e criador d o m u n d o e, a o m e s m o t e m p o ,
estar s u b m e t i d o a ele. F e l i z m e n t e ( u m "graças a D e u s " n ã o
t e m m u i t o s e n t i d o aqui) d e s c o b r i m o s h á p o u c o u m a s o l u -
ção para e s s a aporia. U m a s o l u ç ã o q u e s e retorce c o m o a
fita d e M o e b i u s . Ei-la: n o s s o s i s t e m a n e r v o s o central ( S N C )
recebe d e s e u e n t o r n o ( q u e , é claro, inclui t a m b é m n o s s o
próprio c o r p o ) e s t í m u l o s codificados d i g i t a l m e n t e . E s s e s
e s t í m u l o s sã.o p r o c e s s a d o s por m e i o d e m é t o d o s eletro-
magnéticos e químicos ainda não totalmente conhecidos e
o sistema os converte e m percepções, sentimentos, desejos
e pensamentos. Percebemos o mundo, o sentimos e o dese-
j a m o s c o n f o r m e p r o c e s s a d o p e l o SNC. Esse p r o c e s s o é pré-
p r o g r a m a d o n o SNC. E e s t á i n s c r i t o n e l e , d e n t r o d e n o s s a
i n f o r m a ç ã o g e n é t i c a . O m u n d o t e m para n ó s a s f o r m a s q u e
e s t ã o inscritas n a i n f o r m a ç ã o g e n é t i c a d e s d e o princípio da
v i d a n a Terra. I s s o explica p o r q u e n ã o p o d e m o s i m p o r a o
78 m u n d o as f o r m a s q u e q u i s e r m o s . O m u n d o s ó aceita aque-
las f o r m a s q u e c o r r e s p o n d e m a o n o s s o p r o g r a m a d e vida.
E s t a m o s p r e g a n d o n ã o s o m e n t e u m a , m a s u m a série
d e p e ç a s n e s s e p r o g r a m a vital. T e m o s d e fato i n v e n t a d o
m é t o d o s e aparatos q u e f u n c i o n a m d e m o d o similar a o s i s -
t e m a n e r v o s o , s ó q u e d e m a n e i r a diferente. P o d e m o s c o m -
p u t a r e s s e s e s t í m u l o s (partículas) q u e c h e g a m p o r t o d o s o s
l a d o s d e m o d o d i s t i n t o a o d o SNC. S o m o s c a p a z e s d e criar
percepções, s e n t i m e n t o s , desejos e p e n s a m e n t o s distintos,
a l t e r n a t i v o s . A l é m d o m u n d o c o m p u t a d o p e l o SNC, p o d e -
m o s t a m b é m viver e m o u t r o s m u n d o s . P o d e m o s estar-aí
(dasein) d e várias m a n e i r a s d i s t i n t a s . E a palavra "aí" (da)
i n c l u s i v e p o d e significar várias c o i s a s . O q u e a c a b a m o s d e
d i z e r é c e r t a m e n t e terrível, i n c l u s i v e m o n s t r u o s o , m a s e x i s -
t e m t e r m o s m a i s familiares para i s s o : cyberespaço o u espaço
virtual, q u e s ã o d e n o m i n a ç õ e s p a l i a t i v a s . E e s s e s t e r m o s
s i g n i f i c a m a s e g u i n t e receita: t o m e u m a f o r m a , q u a l q u e r
q u e seja, q u a l q u e r a l g o r i t m o articulável n u m e r i c a m e n t e .
Introduza essa forma, por meio de u m computador, e m u m
plotter. Preencha t a n t o q u a n t o possível e s s a forma (que s e
fez visível d e s s e m o d o ) c o m p a r t í c u l a s . E e n t ã o o b s e r v e :
m u n d o s surgirão. Cada u m d e s s e s m u n d o s é t ã o real q u a n t o
aquele d o s i s t e m a n e r v o s o central (pelo m e n o s e s s e n o s s o
SNC), d e s d e q u e c o n s i g a p r e e n c h e r as f o r m a s t ã o c o m p l e -
t a m e n t e q u a n t o o SNC.
Esse é u m b e l o caldeirão d a s bruxas: c o z i n h a m o s m u n -
d o s c o m as f o r m a s que q u i s e r m o s e o f a z e m o s ao m e n o s
t ã o b e m c o m o o fez o Criador n o decorrer d o s f a m o s o s s e i s
dias. S o m o s os a u t ê n t i c o s m e s t r e s - f e i t i c e i r o s , os a u t ê n t i -
cos d e s i g n e r s , e i s s o n o s p e r m i t e , agora q u e c o n s e g u i m o s
superar D e u s , jogar a q u e s t ã o da realidade s o b r e a m e s a e 79
dizer, j u n t o c o m I m m a n u e l Kant: "real" é t u d o a q u i l o q u e é
c o m p u t a d o e m f o r m a s , de m o d o d e c e n t e , eficaz e c o n s c i e n -
te; e "irreal" (onírico, ilusório) é aquilo q u e é c o m p u t a d o d e
m o d o d e s m a z e l a d o . Por e x e m p l o , a i m a g e m da m u l h e r q u e
a m a m o s n ã o é d e t o d o real p o r q u e f i z e m o s n o s s o trabalho
onírico d e m o d o d e s c u i d a d o . N o e n t a n t o , se e n c o m e n d a r -
m o s e s s a i m a g e m a u m d e s i g n e r profissional, q u e t e n h a
e m m ã o s , s e p o s s í v e l , u m h o l ó g r a f o , ele s i m n o s proporcio-
nará m u l h e r e s q u e r e a l m e n t e a m a m o s , e n ã o s o n h o s d e s -
c u i d a d o s . É a s s i m q u e as coisas p a r e c e m e s t a r c a m i n h a n d o .
D e s c o b r i m o s as a r t i m a n h a s d o E t e r n o ( l o u v a d o seja S e u
n o m e ) , r o u b a m o s s u a s receitas d e c o z i n h a e agora c o z i n h a -
m o s inclusive m e l h o r d o q u e Ele. Será q u e e s t a m o s real-
m e n t e e m u m a n o v a história? C o m o era m e s m o o c o n t o d e
Prometeu e o fogo roubado? Q u e m sabe não acreditamos
estar s i m p l e s m e n t e s e n t a d o s d i a n t e d o c o m p u t a d o r , q u a n -
d o na realidade e s t a m o s encarcerados n o Cáucaso? E talvez
a l g u n s p á s s a r o s já e s t e j a m lá afiando o bico, p r e p a r a n d o - s e
para n o s c o m e r o fígado.
POR QUE AS M Á Q U I N A S DE ESCREVER ESTALAM?
A explicação é s i m p l e s : o estalar c o n d i z m a i s c o m a m e c a - 81
nização d o q u e o deslizar. As m á q u i n a s s ã o gagás, m e s m o
q u a n d o p a r e c e m estar d e s l i z a n d o . É o que s e percebe por
e x e m p l o n o s carros o u n o s projetores d e filme q u a n d o e s t ã o
f u n c i o n a n d o mal. M a s a explicação n ã o é suficiente. Pois o
que e s t á por trás da p e r g u n t a é o s e g u i n t e : por que as m á -
q u i n a s g a g u e j a m ? E a r e s p o s t a é: p o r q u e t u d o n o m u n d o (e
o m u n d o c o m o u m t o d o ) gagueja. Mas i s s o s ó s e percebe
q u a n d o se o b s e r v a b e m de p e r t o . É b e m verdade que D e m ó -
crito já o suspeitara, n o e n t a n t o s o m e n t e Planck p ô d e pro-
vá-lo: t u d o é quantizável. Eis por que o s n ú m e r o s c o n v é m
a o m u n d o , m a s as letras n ã o . O m u n d o é calculável, m a s
indescritível. Por i s s o o s n ú m e r o s d e v e r i a m livrar-se d o c ó -
digo a l f a n u m é r i c o e t o r n a r - s e i n d e p e n d e n t e s . A s letras in-
d u z e m m e r a s c o n v e r s a s vazias sobre o m u n d o , e d e v e r i a m
ser d e i x a d a s d e lado c o m o algo i n a d e q u a d o a ele. E é i s s o , de
fato, o q u e v e m o c o r r e n d o . O s n ú m e r o s m i g r a m d o s i s t e m a
a l f a n u m é r i c o para n o v o s s i s t e m a s ( c o m o por e x e m p l o o s
digitais) e a l i m e n t a m o s c o m p u t a d o r e s . A s letras, por sua
v e z (se q u i s e r e m sobreviver), d e v e m s i m u l a r o s n ú m e r o s .
Por i s s o as m á q u i n a s de escrever e s t a l a m .
M a s a i n d a h á o q u e dizer sobre o t e m a . Por e x e m p l o : o
fato d e q u e t u d o n o m u n d o gagueja s ó ficou e v i d e n t e quan-
d o s e c o m e ç a r a m a c o n t a r t o d a s as c o i s a s . Para contar, foi
p r e c i s o f r a g m e n t a r o t o d o e m p e d r i n h a s (calculi), e a cada
u m a d e s s a s p e d r i n h a s foi a n e x a d o u m n ú m e r o . Será, por-
t a n t o , q u e o fato d e o m u n d o s e r u m a d i s p e r s ã o d e partícu-
las é c o n s e q ü ê n c i a d o n o s s o contar? Q u e r dizer e n t ã o q u e
n ã o s e trataria a b s o l u t a m e n t e d e u m a d e s c o b e r t a , m a s s i m
d e u m a i n v e n ç ã o ? Por a c a s o n ã o d e s c o b r i m o s n o m u n d o
82 aquilo q u e n ó s m e s m o s t e r í a m o s i n s e r i d o nele? O m u n -
d o talvez seja calculável a p e n a s p o r q u e n ó s o c o n s t r u í m o s
para o s n o s s o s cálculos. N ã o s ã o o s n ú m e r o s q u e s ã o ade-
q u a d o s a o m u n d o , m a s o contrário: n ó s m o n t a m o s o m u n -
d o d e m o d o que s e t o r n a s s e a d e q u a d o a o n o s s o c ó d i g o n u -
mérico. Pensamentos c o m o esses são inquietantes.
São i n q u i e t a n t e s e x a t a m e n t e p o r l e v a r e m à s e g u i n t e
conclusão: o m u n d o consiste atualmente numa dispersão
d e partículas p o r q u e n ó s o e n g e n d r a m o s d e m o d o a a d a p t á -
lo a o s n o s s o s c á l c u l o s . A n t e s , p o r é m ( p e l o m e n o s d e s d e o s
f i l ó s o f o s g r e g o s ) , o m u n d o era d e s c r i t o a l f a b e t i c a m e n t e .
P o r t a n t o , ele t i n h a d e s e a d a p t a r à s regras d o d i s c u r s o d i s -
c i p l i n a d o , às regras da lógica, e n ã o às da m a t e m á t i c a . D e
fato, H e g e l a i n d a era da o p i n i ã o , q u e h o j e n o s parece in-
s e n s a t a , d e q u e t u d o n o m u n d o seria lógico. A t u a l m e n t e
s o m o s de o p i n i ã o contrária: t u d o n o m u n d o é redutível a
c o n t i n g ê n c i a s a b s u r d a s , q u e p o d e m ser p e r f e i t a m e n t e ava-
liadas p o r m e i o d o cálculo d e p r o b a b i l i d a d e s . H e g e l p e n -
sava e x a t a m e n t e p o r palavras ( e m "discursos dialéticos"),
enquanto n ó s p e n s a m o s calculando (processando dados
pontuais).
A coisa s e t o r n a a i n d a m a i s i n q u i e t a n t e se p e n s a r m o s
que Russell e W h i t e h e a d , e m s e u Principia mathematica, de-
m o n s t r a r a m q u e as regras da lógica n ã o s e r i a m t o t a l m e n t e
redutíveis àquelas da m a t e m á t i c a . O s d o i s t e n t a r a m , c o m o
se sabe, m a n i p u l a r m a t e m a t i c a m e n t e o p e n s a m e n t o lógico
("função proposicional"), e d e p a r a r a m - s e aí c o m e s s a irre-
dutibilidade. P o r t a n t o , n ã o é p o s s í v e l e s t a b e l e c e r u m a p o n -
te r e a l m e n t e a d e q u a d a e n t r e o m u n d o d e s c r i t o ( c o m o o de
Hegel) e o m u n d o calculado (a e x e m p l o d e Planck). D e s -
de que a p l i c a m o s m e t o d i c a m e n t e o cálculo ao m u n d o ( o u 83
seja, p e l o m e n o s d e s d e a g e o m e t r i a analítica de D e s c a r t e s ) ,
a estrutura do m u n d o modificou-se a p o n t o de tornar-se
irreconhecível. E i s s o foi s e n d o l e n t a m e n t e d i v u l g a d o a t é
se fazer s a b i d o .
Daí p o d e m o s n o s ver i m p e l i d o s a concluir que o m o d o
c o m o o m u n d o e s t á e s t r u t u r a d o d e p e n d e de n ó s próprios. Se
desejarmos descrevê-lo, e n t ã o ele figurará c o m o u m discurso
lógico, m a s , se preferirmos calculá-lo, ele se a s s e m e l h a r á à
dispersão de partículas. Seria u m a c o n c l u s ã o precipitada.
S o m e n t e q u a n d o c o m e ç a m o s a calcular é q u e p a s s a m o s a
dispor d e m á q u i n a s ( c o m o , p o r e x e m p l o , a s m á q u i n a s d e
escrever), e s e m elas n ã o p o d e r í a m o s viver, m e s m o se qui-
s é s s e m o s . Portanto, s o m o s obrigados a calcular e m v e z de
escrever, e se, apesar d i s s o , q u i s e r m o s escrever, t e r e m o s
de fazer as m á q u i n a s estalar. Fica p a r e c e n d o o s e g u i n t e : que
o m u n d o teria de ser c o n s t r u í d o de fato para o cálculo, m a s
que ele m e s m o exigiria e s s e m o d o d e c o n s t r u ç ã o .
N e s s e p o n t o d o quebra-cabeça é r e c o m e n d á v e l u m p o u c o
de prudência. Caso contrário, p o d e - s e correr o risco de cair
o n d e n ã o h á chão n e m f u n d a m e n t o ( n o c a m p o religioso).
Para evitar s e m e l h a n t e q u e d a na sacralização pitagórica
dos números, deve-se examinar o gesto envolvido n o ato
d e fazer c o n t a s , q u e é o p o s t o a o g e s t o de escrever. Q u a n d o
a escrita a i n d a era m a n u a l , o que se fazia era traçar, da e s -
querda para a direita ( n o q u e diz r e s p e i t o a o s p o v o s o c i d e n -
tais), u m a linha t o d a torcida c o m i n t e r r u p ç õ e s e m c e r t o s
lugares. C o n s i s t i a n u m g e s t o linear. Para calcular, é p r e c i s o
escolher pedrinhas n u m m o n t e e acumulá-las e m pequenos
m o n t í c u l o s . Trata-se d e u m g e s t o p o n t u a l . E m p r i m e i r o
84 lugar, calcula-se (ao e s c o l h e r ) e d e p o i s c o m p u t a - s e (ao acu-
mular). A n a l i s a - s e p r i m e i r o para d e p o i s sintetizar. Eis a
radical diferença e n t r e escrever e contar: o c o n t a r procura
alcançar s í n t e s e s , m a s o escrever n ã o .
A q u e l e s q u e s e d e d i c a m a escrever t e n t a m n e g a r i s s o .
N o a t o d e contar, v ê e m a p e n a s o cálculo, q u e acreditam ser
frio e carente d e s e n t i m e n t o s . Esse é u m m a l - e n t e n d i d o
q u a s e m a l é v o l o . Q u a n d o s e f a z e m c o n t a s , trata-se de, p e l o
a t o d e c o m p u t a r , t r a n s f o r m a r aquilo q u e é f r i a m e n t e cal-
culado e m algo n o v o , algo que n u n c a existira a n t e s . Esse
í m p e t o criativo é v e d a d o à q u e l e s q u e n ã o se d ã o b e m c o m
as c o n t a s , por v e r e m n e l a s a p e n a s n ú m e r o s . Essas p e s s o a s
não estão aptas a experimentar a beleza e a profundida-
d e filosófica d e certas e q u a ç õ e s extraordinárias ( c o m o , por
e x e m p l o , as d e E i n s t e i n ) . M a s d e s d e q u e o s n ú m e r o s fo-
ram transcodificados e m cores, f o r m a s e t o n s , graças a o s
c o m p u t a d o r e s , a b e l e z a e a p r o f u n d i d a d e d o cálculo t o r n a -
r a m - s e p e r c e p t í v e i s a o s s e n t i d o s . P o d e - s e ver n a s telas d o s
c o m p u t a d o r e s sua p o t ê n c i a criativa, p o d e - s e ouvi-la e m
f o r m a de m ú s i c a s i n t e t i z a d a e f u t u r a m e n t e talvez s e p o s s a ,
n o s h o l o g r a m a s , tocá-la c o m as m ã o s . O q u e é f a s c i n a n t e
n o cálculo n ã o é o f a t o d e q u e ele c o n s t r ó i o m u n d o ( o q u e a
escrita t a m b é m p o d e fazer), m a s a sua capacidade d e proje-
tar, a partir de si m e s m o , m u n d o s p e r c e p t í v e i s a o s s e n t i d o s .
Seria p o u c o p r o v e i t o s o desprezar e s s e s u n i v e r s o s proje-
t a d o s s i n t e t i c a m e n t e c o m o ficções o u s i m u l a ç õ e s d o m u n -
d o e f e t i v o (eigentlichen). Esses primeiros sào acumulações
d e p o n t o s , c o m p u t a ç õ e s d e cálculos. Perceba-se q u e i s s o
vale t a m b é m para o m u n d o "efetivo** e m q u e f o m o s j o g a d o s .
T a m b é m ele é c o m p u t a d o m e d i a n t e cálculos por n o s s o s i s -
t e m a n e r v o s o a partir d e e s t i m u l o s p o n t u a i s . Portanto, o u 85
o s m u n d o s projetados s ã o t ã o reais (wirklich) q u a n t o o "efe-
tivo" (caso p o s s a m reunir o s p o n t o s c o m a m e s m a d e n s i d a -
de c o m q u e o faz e s t e ú l t i m o ) , o u o m u n d o percebido c o m o
"efetivo" é t ã o fictício q u a n t o o s u n i v e r s o s projetados. A re-
v o l u ç ã o cultural h o j e c o n s i s t e n o fato de q u e n o s t o r n a m o s
a p t o s a construir u n i v e r s o s a l t e r n a t i v o s e paralelos a e s t e
que n o s foi s u p o s t a m e n t e dado; d e que, d e s u j e i t o s de u m
ú n i c o m u n d o , e s t a m o s n o s c o n v e r t e n d o e m projetos d e vá-
rios m u n d o s ; e d e q u e c o m e ç a m o s a aprender a calcular.
Diz Ornar Khayyam: "Oh, amor, se p u d é s s e m o s conspirar
c o m o destino, / d e m o d o a compreender essa melancólica e ín-
tegra estrutura das coisas! / A c a s o n ã o a desintegraríamos e m
pedaços /para computá-la conforme o desejo d o coração?". To-
dos percebem que e s t a m o s desintegrando e m pedaços (Bits) a
desprezível estrutura íntegra das coisas. Mas não v ê e m que
p o d e m o s transcodificá-la de acordo c o m a v o n t a d e do coração.
As p e s s o a s deveriam de u m a v e z por todas aprender a contar.

Você também pode gostar