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Vilém Flusser
O MUNDO CODIFICADO
POR U M A FILOSOFIA D O DESIGN E D A C O M U N I C A Ç Ã O
organização Rafael C a r d o s o
tradução Raquel Abi-Sâmara
LIVRARIA INTERNACIONAL
www.sbs.com.br
livrariainternacional@sbs.com.br
I N T R O D U Ç Ã O Rafael C a r d o s o 7
roísAs
FORMA E MATERIAL 22
A FÁBRICA 33
A ALAVANCA CONTRA-ATACA 45
A N A O COISA [ 1] 51
A N A O COISA [ 2 ] 59
RODAS 66
SOBRE FORMAS E FORMULAS 75
POR Q U E AS M A Q U I N A S DE ESCREVER ESTALAM? 80
CÓDIGOS
O QUE É COMUNICAÇÃO? 88
LINHA E SUPERFÍCIE 101
O MUNDO CODIFICADO 126
O F U T U R O D A ESCRITA 138
IMAGENS NOS NOVOS MEIOS 151
UMA NOVA IMAGINAÇÃO 160
CONSTRUÇÕES
SOBRE A PALAVRA DESIGN 180
O M O D O DE VER D O DESIGNER 187
DESIGN OBSTÁCULO PARA A R E M O C A O DE OBSTÁCULOS? 193
UMA ÉTICA DO DESIGN INDUSTRIAL? 199
DESIGN C O M O TEOLOGIA 205
L
A palavra "imaterial" {immaterielV) t e m s i d o alvo d e disparates 23
há b a s t a n t e t e m p o . M a s , d e s d e que se c o m e ç o u a falar d e
"cultura imaterial", e s s e s d i s p a r a t e s n ã o p o d e m m a i s ser t o -
lerados. Este e n s a i o t e m a i n t e n ç ã o de recuperar o c o n c e i t o ,
a t u a l m e n t e m u i t o distorcido, d e "imaterialidade**.
A palavra materia resulta da tentativa d o s r o m a n o s de
traduzir para o l a t i m o t e r m o grego hylé. O r i g i n a l m e n t e ,
hylé significa "madeira", e a palavra materia d e v e ter designa-
do algo similar, o que n o s sugere a palavra e s p a n h o l a madera.
N o e n t a n t o , q u a n d o o s gregos passaram a empregar a pala-
vra hylé, n ã o p e n s a v a m e m madeira n o s e n t i d o g e n é r i c o d o
t e r m o , m a s referiam-se ã madeira e s t o c a d a nas oficinas d o s
carpinteiros. Tratava-se, para eles, d e encontrar u m a pala-
vra que p u d e s s e expressar o p o s i ç ã o e m relação ao c o n c e i t o
de "forma" (a morphé grega). Hylé, p o r t a n t o , significa algo
amorfo. A idéia f u n d a m e n t a l aqui é a s e g u i n t e : o m u n d o d o s
f e n ô m e n o s , tal c o m o o p e r c e b e m o s c o m o s n o s s o s s e n t i d o s ,
é u m a geleia amorfa, e atrás d e s s e s f e n ô m e n o s e n c o n t r a m -
se ocultas as formas e t e r n a s , i m u t á v e i s , que p o d e m o s per-
ceber graças à perspectiva suprassensível da teoria. A geleia
amorfa d o s f e n ô m e n o s (o "mundo material") é u m a ilusão
e as formas que s e e n c o n t r a m e n c o b e r t a s a l é m d e s s a ilusão
(o "mundo formal") são a realidade, que p o d e ser d e s c o b e r t a
c o m o auxílio da teoria. E é a s s i m que a d e s c o b r i m o s , co-
n h e c e n d o c o m o o s f e n ô m e n o s a m o r f o s afiuem às formas e
as p r e e n c h e m para d e p o i s afluírem n o v a m e n t e ao informe.
Essa o p o s i ç ã o hylé-morphé, o u "matéria-forma", fica ain-
da m a i s e v i d e n t e s e t r a d u z i r m o s a palavra "matéria" (Mate-
riel por "estofo" (Stoff). A palavra "estofo" é o s u b s t a n t i v o
d o v e r b o "estofar" (jstopferi). O m u n d o material (jnaterielle
2-4 VJelt) é a q u i l o q u e g u a r n e c e as f o r m a s c o m e s t o f o , é o re-
c h e i o (Füllsel) d a s f o r m a s . Essa i m a g e m é m u i t o m a i s escla-
recedora d o que a da madeira e n t a l h a d a q u e gera f o r m a s ,
p o r q u e m o s t r a q u e o m u n d o "do e s t o f o " (stoffliche Welt)
s ó se realiza ao s e t o r n a r o p r e e n c h i m e n t o d e algo. A pala-
vra f r a n c e s a q u e c o r r e s p o n d e a "recheio" (Füllsel) é farce,
o q u e t o r n a p o s s í v e l a afirmação d e q u e , t e o r i c a m e n t e , t o d o
material (Materielle) e t o d o e s t o f o (Stoffliche) d o m u n d o n ã o
d e i x a m de ser u m a farsa. C o m o d e s e n v o l v i m e n t o d a s c i ê n -
cias, a perspectiva teórica e n t r o u n u m a relação dialética
c o m a p e r s p e c t i v a s e n s ó r i a ("observação — teoria — experi-
m e n t o " ) , q u e p o d e s e r i n t e r p r e t a d a c o m o o p a c i d a d e da
t e o r i a . E a s s i m s e c h e g o u a u m m a t e r i a l i s m o para o qual a
m a t é r i a é a realidade. M a s h o j e e m dia, s o b o i m p a c t o d a
informática, c o m e ç a m o s a retornar ao conceito original
d e "matéria" c o m o u m p r e e n c h i m e n t o t r a n s i t ó r i o d e for-
mas atemporais.
Por r a z õ e s cuja explicação ultrapassaria o o b j e t i v o d e s t e
e n s a i o , d e s e n v o l v e u - s e a o p o s i ç ã o "matéria-espírito", i n d e -
p e n d e n t e m e n t e d o c o n c e i t o filosófico d e m a t é r i a . O c o n c e i -
t o original n e s s a o p o s i ç ã o é q u e c o r p o s s ó l i d o s p o d e m ser
transformados e m líquidos, e os líquidos, e m gases, poden-
d o e n t ã o escapar d o n o s s o c a m p o d e v i s ã o . A s s i m se p o d e
e n t e n d e r , p o r e x e m p l o , o h á l i t o ( e m g r e g o , pneuma; e m la-
t i m , spiritus) c o m o a g a s i n c a ç ã o d o s ó l i d o c o r p o h u m a n o .
A transição d o s ó l i d o para o g a s o s o (do c o r p o a o espírito)
p o d e ser o b s e r v a d a n o e f e i t o d o s o p r o e m dias frios.
Na ciência m o d e r n a , a idéia da m u d a n ç a de e s t a d o s da
matéria ( d o s ó l i d o a o líquido, d o líquido ao g a s o s o — e vice-
versa) d e u o r i g e m a u m a n o v a i m a g e m d o m u n d o . Trata-se,
grosso modo, d e u m a m u d a n ç a e n t r e d o i s h o r i z o n t e s . E m 25
u m d e l e s (o d o zero a b s o l u t o ) , t u d o o q u e s e m o s t r a é sóli-
d o (material); já n o o u t r o h o r i z o n t e (na v e l o c i d a d e da luz),
tudo se apresenta n u m estado mais do que gasoso (energé-
tico). (Vale lembrar aqui que "gás" e "caos" s ã o a m e s m a pala-
vra.) A o p o s i ç ã o "matéria-energia" que aparece aqui n o s re-
m e t e ao e s p i r i t i s m o : p o d e - s e c o n v e r t e r m a t é r i a e m e n e r g i a
(fissão) e e n e r g i a e m m a t é r i a (fusão) — a f ó r m u l a d e Eins-
t e i n faz e s s a articulação. C o n f o r m e a v i s ã o d e m u n d o d a
ciência m o d e r n a , t u d o é e n e r g i a , o u seja, é a possibilidade
de a g l o m e r a ç õ e s casuais, i m p r o v á v e i s , é a capacidade de for-
m a ç ã o da m a t é r i a . A "matéria", n e s s a v i s ã o d e m u n d o , equi-
para-se a ilhas t e m p o r á r i a s d e a g l o m e r a ç õ e s (curvaturas)
em campos energéticos de possibilidades, que se entrecru-
zam. E daí p r o v é m o d e s p r o p ó s i t o , e m m o d a h o j e e m dia,
de se falar d e "cultura imaterial". O q u e s e e n t e n d e aqui é
u m a cultura e m q u e as i n f o r m a ç õ e s s ã o i n t r o d u z i d a s e m
u m c a m p o e l e t r o m a g n é t i c o e t r a n s m i t i d a s a partir d e s s e
campo. O despropósito consiste não apenas no abuso do
c o n c e i t o "imaterial" ( e m lugar d e "energético") c o m o t a m -
b é m n a c o m p r e e n s ã o i n a d e q u a d a d o t e r m o "informar".
R e t o m e m o s a o p o s i ç ã o original "matéria-forma", i s t o é,
" c o n t e ú d o - c o n t i n e n t e " . A idéia básica é esta: s e vejo a l g u m a
coisa, u m a m e s a , p o r e x e m p l o , o q u e vejo é a madeira e m
forma de m e s a . É v e r d a d e q u e e s s a madeira é dura (eu t r o p e -
ço nela), m a s s e i que perecerá (será q u e i m a d a e d e c o m p o s -
ta e m c i n z a s a m o r f a s ) . A p e s a r d i s s o , a f o r m a "mesa" é e t e r -
na, pois p o s s o imaginá-la quando e onde eu estiver (posso
colocá-la a n t e m i n h a v i s a d a teórica). Por i s s o a f o r m a "mesa"
é real e o c o n t e ú d o "mesa" (a madeira) é a p e n a s aparente.
26 Isso m o s t r a , na v e r d a d e , o q u e o s carpinteiros f a z e m : p e -
g a m u m a f o r m a de m e s a (a "idéia" d e u m a m e s a ) e a i m -
p õ e m e m u m a peça a m o r f a d e madeira. Há u m a fatalidade
n e s s e ato: o s carpinteiros n ã o a p e n a s i n f o r m a m a madeira
( q u a n d o i m p õ e m a forma de m e s a ) , m a s t a m b é m d e f o r m a m
a idéia de m e s a ( q u a n d o a d i s t o r c e m na madeira). A fata-
lidade c o n s i s t e t a m b é m n a i m p o s s i b i l i d a d e d e s e fazer u m a
m e s a ideal.
Isso t u d o p o d e soar arcaico, n o e n t a n t o é d e u m a atua-
lidade, d i g a m o s , abrasadora. V e j a m o s u m e x e m p l o s i m p l e s
e p o s s i v e l m e n t e esclarecedor: o s c o r p o s d e n s o s q u e n o s ro-
d e i a m p a r e c e m rolar i n d e p e n d e n t e m e n t e d e regras, m a s na
realidade o b e d e c e m à f ó r m u l a da q u e d a livre. O m o v i m e n t o
percebido p e l o s s e n t i d o s (aquilo que é material n o s c o r p o s ) é
a p a r e n t e , e a f ó r m u l a d e d u z i d a t e o r i c a m e n t e (aquilo q u e
é formal n o s c o r p o s ) é real. E e s s a f ó r m u l a ( o u e s s a forma)
e s t á fora d o t e m p o e d o e s p a ç o , é i n a l t e r a v e l m e n t e e t e r n a .
A fórmula da q u e d a livre é u m a e q u a ç ã o m a t e m á t i c a , e as
e q u a ç õ e s s ã o d e s p r o v i d a s d e t e m p o e d e e s p a ç o : n ã o faz
s e n t i d o perguntar se a equação "1 + 1 = 2" é i g u a l m e n t e ver-
dadeira às quatro h o r a s da tarde e m S e m i p a l a t i n s k . M a s
t a m b é m faz p o u c o s e n t i d o dizer q u e a f ó r m u l a é "imate-
rial". E l a é o como d a m a t é r i a , e a m a t é r i a é o o quê d a f o r -
m a . E m o u t r a s p a l a v r a s : a i n f o r m a ç ã o " q u e d a livre" t e m u m
conteúdo (corpo) e u m a forma (uma fórmula matemática).
U m a explicação c o m o essa poderia ter sido dada n o perío-
do barroco.
M a s a p e r g u n t a insiste: c o m o Galileu c b e g o u a essa
idéia? Será q u e a d e s c o b r i u t e o r i c a m e n t e , a l é m d o s f e n ô -
m e n o s (interpretação platônica), o u a teria inventado c o m
a f i n a l i d a d e d e orientar-se entre os corpos? Ou por acaso 27
teria p a s s a d o l o n g o t e m p o b r i n c a n d o c o m c o r p o s e idéias
até q u e surgisse a idéia d a q u e d a livre? A r e s p o s t a a e s s a
pergunta decidirá se o edifício da ciência e da arte p e r m a -
n e c e o u cai, e s s e p a l á c i o d e c r i s t a l d e a l g o r i t m o s e t e o r e m a s
a q u e c h a m a m o s d e c u l t u r a o c i d e n t a l . Para a c l a r a r e s s e p r o -
blema e ilustrar a q u e s t ã o d o p e n s a m e n t o formal, c i t e m o s
outro e x e m p l o d o t e m p o de Galileu.
T r a t a - s e d a p e r g u n t a s o b r e a relação e n t r e c é u e Terra.
Se o c é u , j u n t a m e n t e c o m a Lua, o Sol, o s p l a n e t a s e as e s -
trelas fixas, gira e m t o r n o d a Terra ( c o m o p a r e c e a c o n t e -
cer), o faz e n t ã o e m ó r b i t a s e p i c í d i c a s b a s t a n t e c o m p l e x a s ,
s e n d o q u e a l g u n s t ê m q u e girar e m s e n t i d o contrário. Se
o Sol e s t i v e r n o centro, o q u e c o n s e q u e n t e m e n t e c o n v e r t e
a Terra e m m a i s u m c o r p o c e l e s t e , a s ó r b i t a s c e r t a m e n t e
vão adquirir formas elípticas relativamente simples. A res-
p o s t a barroca para e s s a p e r g u n t a é a s e g u i n t e : n a realidade
é o Sol q u e s e e n c o n t r a n o c e n t r o , e as e l i p s e s s ã o a s for-
m a s reais; n a s f o r m a s e p i c í d i c a s de P t o l o m e u , as figuras d o
discurso, as ficções, e r a m f o r m a s i n v e n t a d a s para m a n t e r
as aparências (para salvar o s f e n ô m e n o s ) . H o j e p e n s a m o s
m a i s f o r m a l m e n t e d o q u e naquela é p o c a , e n o s s a r e s p o s t a
seria a s s i m : as e l i p s e s s ã o f o r m a s m a i s c o n v e n i e n t e s q u e o s
e p i c i d o s , e p o r i s s o s ã o preferíveis. A s e l i p s e s , p o r s u a v e z ,
s ã o m e n o s c o n v e n i e n t e s q u e o s círculos, m a s o s círculos i n -
f e l i z m e n t e n ã o p o d e m ser u t i l i z a d o s aqui. A q u e s t ã o já n ã o
é m a i s v o l t a d a para o q u e é real, m a s s i m para o q u e é c o n -
v e n i e n t e ; e e n t ã o s e verifica q u e n ã o se p o d e s i m p l e s m e n -
t e aplicar f o r m a s c o n v e n i e n t e s a o s f e n ô m e n o s ( n o caso, o s
círculos), a n ã o ser a q u e l a s m a i s c o n v e n i e n t e s q u e h a r m o -
28 nizem com eles. Em suma: as formas não são descobertas
n e m i n v e n ç õ e s , nã.o s ã o idéias p l a t ô n i c a s n e m facções; s ã o
r e c i p i e n t e s c o n s t r u í d o s e s p e c i a l m e n t e para o s f e n ô m e n o s
("modelos"). E a ciência teórica n ã o é n e m "verdadeira"
n e m "fictícia", m a s s i m "formal" (projeta m o d e l o s ) .
Se "forma" for e n t e n d i d a c o m o o o p o s t o d e "matéria",
e n t ã o n ã o s e p o d e falar de d e s i g n "material"; o s projetos e s -
tariam s e m p r e v o l t a d o s para informar. E s e a forma for o
"como" da matéria e a "matéria" for o "o quê" da forma, e n t ã o
o d e s i g n é u m d o s m é t o d o s d e dar forma à matéria e d e fazê-
la aparecer c o m o aparece, e n ã o d e o u t r o m o d o . O d e s i g n ,
c o m o t o d a s as e x p r e s s õ e s culturais, m o s t r a que a matéria
n ã o aparece (é inaparente), a n ã o ser que seja informada, e
a s s i m , u m a v e z informada, c o m e ç a a se manifestar (a tornar-
se f e n ô m e n o ) . A matéria n o d e s i g n , c o m o qualquer outro
a s p e c t o cultural, é o m o d o como as formas aparecem.
Falar d e d e s i g n , n o e n t a n t o , c o m o algo s i t u a d o e n t r e o
material e a "imaterialidade" n ã o é t o t a l m e n t e s e m s e n t i d o .
Pois e x i s t e m d e fato d o i s m o d o s d i s t i n t o s d e ver e d e p e n -
sar: o material e o formal. P o d e - s e dizer que o m o d o pre-
d o m i n a n t e n o p e r í o d o barroco era o material: o Sol é real-
rnente o c e n t r o , e a s p e d r a s c a e m r e a l m e n t e d e a c o r d o c o m
u m a fórmula. (Era material, e e x a t a m e n t e por e s s a razão
n ã o é materialista.) Hoje e m dia, é o m o d o formal que pre-
valece: o s i s t e m a h e l i o c ê n t r i c o e a e q u a ç ã o da q u e d a livre
são f o r m a s práticas ( e x a t a m e n t e por se tratar d e u m m o d o
formal, n ã o é imaterialista). E s s e s d o i s m o d o s d e ver e d e
pensar l e v a m a d u a s m a n e i r a s d i s t i n t a s de projetar: a m a -
terial e a formal. A material resulta e m r e p r e s e n t a ç õ e s (por
e x e m p l o , as p i n t u r a s d e a n i m a i s n a s p a r e d e s d a s cavernas).
A formal, p o r s u a v e z , p r o d u z m o d e l o s (por e x e m p l o , o s 29
projetos d e canais d e irrigação n a s t á b u a s m e s o p o t â m i c a s ) .
A maneira material de ver e n f a t i z a aquilo q u e aparece n a
forma; a m a n e i r a formal realça a f o r m a d a q u i l o q u e apare-
ce. P o r t a n t o , a h i s t ó r i a d a pintura, p o r e x e m p l o , p o d e ser
interpretada c o m o u m p r o c e s s o , n o decorrer d o qual a visa-
da formal se i m p õ e sobre a visada material (ainda q u e c o m
alguns r e t r o c e s s o s ) . É o q u e será m o s t r a d o a seguir.
U m p a s s o i m p o r t a n t e n o c a m i n h o q u e c o n d u z i u à for-
malização foi a i n t r o d u ç ã o da p e r s p e c t i v a . Pela primeira
vez tratou-se, de maneira consciente, de preencher formas
p r e c o n c e b i d a s c o m m a t é r i a , d e fazer o s f e n ô m e n o s apare-
cer e m f o r m a s específicas. U m p a s s o s e g u i n t e talvez t e n h a
sido d a d o por C é z a n n e , ao c o n s e g u i r i m p o r a u m a m e s m a
matéria d u a s o u três f o r m a s s i m u l t a n e a m e n t e ( c o n s e g u e
"mostrar", p o r e x e m p l o , u m a m e s m a m a ç ã s o b diversas
p e r s p e c t i v a s ) . Isso foi l e v a d o a o ápice p e l o c u b i s m o : trata-
va-se d e m o s t r a r as f o r m a s g e o m é t r i c a s p r e c o n c e b i d a s ( e n -
trecruzadas); n e l a s , a m a t é r i a s e r v e e x c l u s i v a m e n t e para
deixar a s f o r m a s aparecer. P o d e - s e dizer, p o r t a n t o , q u e
a pintura c u b i s t a , e n t r e o c o n t e ú d o e o c o n t i n e n t e , e n t r e
a matéria e a forma, e n t r e o a s p e c t o material e o formal d o s
f e n ô m e n o s , s e m o v e s e m p r e e m direção à q u i l o q u e é desig-
n a d o e r r o n e a m e n t e d e "imaterial**.
Mas t u d o i s s o é a p e n a s u m a preparação d e c a m i n h o para
a p r o d u ç ã o d a s c h a m a d a s "imagens artificiais". São elas as
r e s p o n s á v e i s p o r t o r n a r t ã o "abrasadora" hoje e m dia a per-
g u n t a s o b r e a relação e n t r e m a t é r i a e forma. O q u e e s t á e m
jogo são os equipamentos técnicos que permitem apresen-
tar n a s t e l a s a l g o r i t m o s ( f ó r m u l a s m a t e m á t i c a s ) e m f o r m a
de i m a g e n s coloridas (e p o s s i v e l m e n t e e m m o v i m e n t o ) . Isso
é diferente d e projetar canais e m tábuas m e s o p o t â m i c a s , de
desenhar cubos e esferas n o s quadros cubistas, e t a m b é m
difere d e projetar a v i õ e s a partir d e cálculos. Porque n e s s e s
c a s o s s e trata d e projetar f o r m a s para m a t e r i a i s q u e s e r ã o
c o n t i d o s n e l a s ( f o r m a s para a q u e d u t o s , para a s Demoisel-
les dAvignon, para o s j a t o s Mirage); já o e x e m p l o a n t e r i o r
diz r e s p e i t o a f o r m a s p l a t ô n i c a s "puras". A s e q u a ç õ e s frac-
tais, por exemplo, que brilham nas telas c o m o "bonecos de
maçã" d e M a n d e l b r o t , * n ã o p o s s u e m m a t é r i a ( e m b o r a p o s -
s a m posteriormente ser preenchidas com materiais c o m o
44
A ALAVANCA CONTRA-ATACA
AG A s m á q u i n a s s ã o s i m u l a ç õ e s d o s órgãos d o c o r p o h u m a n o .
A alavanca, por e x e m p l o , é u m braço prolongado. Potenciali-
za a capacidade que t e m o braço de erguer coisas e descarta
t o d a s as s u a s outras f u n ç õ e s . É "mais estúpida" que o bra-
ço, m a s e m troca chega m a i s l o n g e e p o d e levantar cargas
mais pesadas.
A s facas d e pedra — cuja f o r m a i m i t a a d o s d e n t e s incisi-
v o s — s ã o u m a d a s m á q u i n a s m a i s a n t i g a s . São m a i s a n t i g a s
q u e a e s p é c i e Homo sapiens sapiens e c o n t i n u a m c o r t a n d o
a t é hoje: e x a t a m e n t e por n ã o s e r e m o r g â n i c a s , m a s feitas
d e pedra. P r o v a v e l m e n t e o s h o m e n s da Idade da Pedra Las-
cada t a m b é m d i s p u n h a m d e m á q u i n a s vivas: o s chacais, p o r
e x e m p l o , q u e d e v i a m utilizar na caça c o m o e x t e n s ã o de s u a s
próprias p e r n a s e i n c i s i v o s . O s chacais, a s s i m c o m o o s in-
c i s i v o s , s ã o m e n o s e s t ú p i d o s que as facas d e pedra; por sua
v e z , e s t a s d u r a m m a i s t e m p o . Talvez e s s a seja u m a d a s ra-
z õ e s p e l a s quais, a t é a Revolução Industrial, e m p r e g a v a m -
s e t a n t o m á q u i n a s "inorgânicas" c o m o orgânicas: t a n t o fa-
cas q u a n t o chacais, t a n t o alavancas q u a n t o b u r r o s , t a n t o
p á s q u a n t o e s c r a v o s — para q u e s e p u d e s s e d i s p o r d e d u -
rabilidade e inteligência. M a s as m á q u i n a s "inteligentes"
(chacais, burros e escravos) são e s t r u t u r a l m e n t e m a i s c o m -
plexas q u e as "estúpidas". Esse é o m o t i v o p e l o qual, d e s d e
a Revolução Industrial, se c o m e ç o u a prescindir delas.
A máquina industrial se distingue da pré-industrial pelo
fato de que aquela t e m c o m o base u m a teoria científica.
C e r t a m e n t e a a l a v a n c a p r é - i n d u s t r i a l t a m b é m t e m a lei d a
a l a v a n c a e m s e u b o j o , m a s s o m e n t e a i n d u s t r i a l sabe que
a tem. Habitualmente isso se expressa assim: as máquinas
pré-industriais foram fabricadas empiricamente, ao passo
que as industriais o são tecnicamente. Na época da Revolu- -47
ção Industrial, a ciência dispunha de u m a série de teorias a
respeito d o m u n d o "inorgânico", principalmente teorias d e
mecânica. Porém, e m relação ao m u n d o orgânico, as teorias
eram bastante escassas. Q u e leis t e m o burro n o seu v e n -
tre? N ã o s ó o p r ó p r i o b u r r o as d e s c o n h e c i a , c o m o t a m b é m
os cientistas p o u c o sabiam sobre elas. Daí que, a partir da
Revolução Industrial, o boi d e u lugar â l o c o m o t i v a , e o ca-
valo, a o avião. O boi e o cavalo e r a m i m p o s s í v e i s d e ser fei-
tos t e c n i c a m e n t e . C o m relação a o s escravos, a coisa era ain-
da mais complicada. A s m á q u i n a s técnicas n ã o a p e n a s i a m
se t o r n a n d o cada vez m a i s eficazes c o m o t a m b é m m a i o -
res e m a i s caras. D e s s e m o d o , a relação " h o m e m - m á q u i n a "
i n v e r t e u - s e d e tal m o d o q u e as m á q u i n a s n ã o s e r v i a m a o s
h o m e n s , m a s estes serviam a elas. Haviam-se convertido
e m e s c r a v o s r e l a t i v a m e n t e i n t e l i g e n t e s d e m á q u i n a s rela-
tivamente estúpidas.
E s s a s i t u a ç ã o m u d o u u m p o u c o n o s é c u l o XX. A s t e o r i a s
s e a p e r f e i ç o a r a m e, g r a ç a s a i s s o , a s m á q u i n a s s e t o r n a r a m a o
m e s m o t e m p o cada vez mais eficazes e m e n o r e s , e s o b r e t u d o
mais "inteligentes". O s escravos se t o r n a m p r o g r e s s i v a m e n t e
r e d u n d a n t e s e f o g e m d a s m á q u i n a s para o s e t o r d e servi-
ços, o u e n t ã o ficam d e s e m p r e g a d o s . Essas s ã o as c o n h e c i -
d a s c o n s e q ü ê n c i a s da a u t o m a ç ã o e da "robotização" que
caracterizam o p r o c e s s o da s o c i e d a d e p ó s - i n d u s t r i a l . M a s
essa não é a mudança realmente importante. Muito mais
significativo é o fato de q u e e s t a m o s c o m e ç a n d o a dispor
t a m b é m de teorias que se aplicam ao m u n d o orgânico.
C o m e ç a m o s a saber que leis o burro traz n o ventre. Em
c o n s e q ü ê n c i a , e m breve p o d e r e m o s fabricar t e c n o l o g i c a -
48 m e n t e b o i s , cavalos, escravos e superescravos. Isso será
c h a m a d o , p r o v a v e l m e n t e , a s e g u n d a Revolução Industrial
o u a Revolução Industrial "biológica".
E a s s i m ficará explícito q u e a i n t e n ç ã o d e c o n s t r u i r m á -
q u i n a s "inorgânicas i n t e l i g e n t e s " é, n o m e l h o r d o s c a s o s ,
u m r e m e n d o e, n o pior, u m erro; u m a alavanca n ã o t e m por
q u e ser u m braço e s t ú p i d o s e receber u m s i s t e m a n e r v o s o
central. A e l e v a d a i n t e l i g ê n c i a d o boi p o d e ser inclusive
superada p e l a s l o c o m o t i v a s q u e e s t e j a m b e m c o n s t r u í d a s
"biologicamente". E m breve, ao c o n s t r u i r m á q u i n a s será
p o s s í v e l c o m b i n a r a durabilidade d o "inorgânico" c o m a in-
teligência d o o r g â n i c o . L o g o haverá u m a praga de chacais
de pedra. M a s e s s a n ã o é n e c e s s a r i a m e n t e u m a s i t u a ç ã o
paradisíaca: o s chacais, b o i s , e s c r a v o s e s u p e r e s c r a v o s de
pedra se a g i t a m f r e n e t i c a m e n t e à n o s s a v o l t a , e n q u a n t o
t e n t a m o s c o m e r e digerir o s p r o d u t o s i n d u s t r i a i s s e c u n d á -
rios q u e d e l e s jorram s e m parar. Isso n ã o p o d e ser a s s i m .
E n ã o s ó p o r q u e e s s a s "inteligências d e pedra" e s t e j a m se
t o r n a n d o cada v e z "mais i n t e l i g e n t e s " e, c o n s e q u e n t e m e n t e ,
d e i x a n d o d e ser e s t ú p i d a s o suficiente para n o s servir; n ã o
p o d e ser a s s i m p o r q u e as m á q u i n a s , por m a i s e s t ú p i d a s que
sejam, contra-atacam, revidam n o s s a s i n v e s t i d a s . C o m o v ã o
golpear q u a n d o s e t o r n a r e m m a i s e s p e r t a s ?
A velha alavanca n o s d e v o l v e u o golpe: m o v e m o s o s bra-
ços c o m o s e f o s s e m alavancas, e i s s o d e s d e q u e p a s s a m o s
a dispor d e l a s . I m i t a m o s o s n o s s o s i m i t a d o r e s . D e s d e q u e
criamos o v e l h a s n o s c o m p o r t a m o s c o m o r e b a n h o s e n e c e s -
s i t a m o s de p a s t o r e s . A t u a l m e n t e , e s s e c o n t r a - a t a q u e d a s
m á q u i n a s e s t á se t o r n a n d o m a i s e v i d e n t e : o s j o v e n s d a n -
çam c o m o r o b ô s , o s p o l í t i c o s t o m a m d e c i s õ e s d e acordo
c o m c e n á r i o s c o m p u t a d o r i z a d o s , o s c i e n t i s t a s p e n s a m di- 49
g i t a l m e n t e e o s a r t i s t a s d e s e n h a m c o m m á q u i n a s de plota-
g e m . Por c o n s e g u i n t e , t o d a futura fabricação d e m á q u i n a s
t a m b é m d e v e r á levar e m c o n t a o c o n t r a g o l p e da alavanca.
Já n à o é p o s s í v e l c o n s t r u i r m á q u i n a s c o n s i d e r a n d o a p e n a s
a economia e a ecologia. É preciso pensar t a m b é m c o m o
essas m á q u i n a s n o s d e v o l v e r ã o s e u s g o l p e s . U m a tarefa
difícil, se l e v a r m o s e m c o n s i d e r a ç ã o q u e , n a atualidade, a
maioria d a s m á q u i n a s é c o n s t r u í d a p o r "máquinas inteli-
g e n t e s " e n ó s a p e n a s o b s e r v a m o s o p r o c e s s o para intervir
ocasionalmente.
Esse é u m p r o b l e m a d e d e s i g n : c o m o d e v e m ser as m á -
quinas, para q u e s e u c o n t r a g o l p e n ã o n o s c a u s e dor? O u
melhor: c o m o d e v e m ser e s s a s m á q u i n a s para que o contra-
golpe n o s faça b e m ? C o m o d e v e r ã o ser o s chacais de pedra
para que n à o n o s e s f a r r a p e m e para q u e n ó s m e s m o s n ã o
n o s c o m p o r t e m o s c o m o chacais? N a t u r a l m e n t e p o d e m o s
projetá-los de m o d o a q u e n o s l a m b a m , e m v e z de morder-
n o s . M a s q u e r e m o s r e a l m e n t e ser l a m b i d o s ? São questões
difíceis, p o r q u e n i n g u é m s a b e d e fato c o m o quer ser. N o
e n t a n t o , d e v e m o s d e b a t e r e s s a s q u e s t õ e s a n t e s de c o m e -
ç a r m o s a projetar cHacais d e pedra ( o u talvez c l o n e s de
i n v e r t e b r a d o s o u q u i m e r a s d e bactérias). E e s s a s q u e s t õ e s
s ã o a i n d a m a i s i n t e r e s s a n t e s d o q u e qualquer chacal d e pe-
dra o u qualquer f u t u r o s u p e r - h u m a n o . Será q u e o d e s i g n e r
estará preparado para colocá-las?
50
CL] V S I O D O V N V
52 P o u c o t e m p o atrás, n o s s o u n i v e r s o era c o m p o s t o d e coi-
s a s : c a s a s e m ó v e i s , m á q u i n a s e v e í c u l o s , trajes e r o u p a s ,
livros e i m a g e n s , l a t a s d e c o n s e r v a e c i g a r r o s . T a m b é m
havia seres h u m a n o s * e m n o s s o ambiente, ainda que a
ciência já o s t i v e s s e , e m g r a n d e p a r t e , c o n v e r t i d o e m o b -
j e t o s : e l e s s e t o r n a r a m , p o r t a n t o , c o m o as d e m a i s c o i s a s ,
m e n s u r á v e i s , calculáveis e p a s s í v e i s d e s e r m a n i p u l a d o s .
Em s u m a , o a m b i e n t e era a c o n d i ç ã o d e n o s s a e x i s t ê n c i a
(Dasein). O r i e n t a r - s e n e l e significava diferençar as c o i s a s
n a t u r a i s d a s artificiais. U m a tarefa n a d a fácil. Essa hera na
p a r e d e de m i n h a casa, p o r e x e m p l o , é u m a c o i s a natural
s i m p l e s m e n t e p o r q u e cresce e p o r q u e é o b j e t o d e e s t u d o
d a b o t â n i c a , u m a ciência natural? O u será u m a c o i s a arti-
ficial p o r t e r s i d o cultivada p o r m e u jardineiro c o n f o r m e
u m m o d e l o e s t é t i c o ? E m i n h a casa? Será a l g o artificial,
u m a v e z q u e projetar e c o n s t r u i r c a s a s é u m a a r t e ? O u
.
Um dos efeitos do nazismo que mais se prolongou n o t e m - 67
po foi a k i t s c h i z a ç ã o da suástica. E i s s o n ã o significa p o u c o ,
se c o n s i d e r a r m o s q u e o s í m b o l o e s t á a s s e n t a d o n a s p r o f u n -
dezas da c o n s c i ê n c i a h u m a n a . E e n c o n t r a - s e i n s t a l a d o d e
uma f o r m a t à o arraigada a p o n t o d e , m e t a f o r i c a m e n t e , tor-
nar raso o A t l â n t i c o : a s u á s t i c a t e m u m a s p e c t o m u i t o s i m i -
lar para o s c e l t a s e o s a s t e c a s . Este e n s a i o p r e t e n d e refletir
sobre e s s e s í m b o l o , m a s a n t e s será a p r e s e n t a d a u m a obser-
vação m e t o d o l ó g i c a .
As c o i s a s p o d e m ser v i s t a s p e l o m e n o s d e d u a s m a n e i -
ras: m e d i a n t e o b s e r v a ç ã o e p o r m e i o d a leitura. Q u a n d o
observadas, as coisas são vistas c o m o f e n ô m e n o s . N o caso
da suástica, p o r e x e m p l o , v e m o s d u a s barras q u e s e c r u z a m ,
e, nas e x t r e m i d a d e s d a s barras, g a n c h o s . Q u a n d o l e m o s as
coisas, p r e s s u p o m o s q u e elas s i g n i f i q u e m algo, e t e n t a m o s
decifrar e s s e s significados. ( N o t e m p o e m q u e o m u n d o era
c o n s i d e r a d o u m livro, natura libellum, e e n q u a n t o s e t e n t a -
va decifrá-lo, era i m p o s s í v e l u m a ciência natural s e m p r e s -
s u p o s i ç õ e s . E, d e s d e q u e o m u n d o c o m e ç o u a ser o b s e r v a d o ,
e n ã o m a i s lido, p a s s o u a n ã o ter m a i s significado.) Se al-
g u é m s e a p r o x i m a r d a s u á s t i c a para lê-la, verá q u a t r o raios
e m i t i d o s a partir d e u m e i x o ; e s s e s raios g i r a m n o s e n t i d o
d o s g a n c h o s , e o s g a n c h o s c o m e ç a m a d e s c r e v e r u m a cir-
cunferência. D o p o n t o d e v i s t a da leitura, o s i g n o manifes-
t a - s e d i z e n d o : s o u a r o d a solar, e e s t o u irradiando.
E aqui d e v o c o n f e s s a r o m o t i v o d e s t e e n s a i o : s e obser-
v a r m o s a c o n d i ç ã o d o m u n d o p ó s - i n d u s t r i a l , ficaremos im-
p r e s s i o n a d o s c o m o l e n t o , p o r é m irreversível, desapareci-
m e n t o d a s rodas. N ã o s e o u v e m a i s s e u ruído n o s aparelhos
e l e t r ô n i c o s . A q u e l e q u e q u e r avançar n ã o s e coloca m a i s so-
68 bre r o d a s , m a s s i m s o b r e a s a s , e u m a v e z q u e a b i o t e c n o -
l o g i a tiver s u p e r a d o a m e c â n i c a , as m á q u i n a s d e i x a r ã o de
ter rodas e passarão a ter d e d o s , pernas e órgãos sexuais.
Talvez a roda esteja p r e s t e s a s e c o n v e r t e r e m u m m e r o cír-
culo, e d e p o i s e m m a i s u m a e n t r e t a n t a s o u t r a s curvas. An-
t e s q u e e s s a d e c a d ê n c i a d a s r o d a s s e e n c a m i n h e a i n d a mais
r a p i d a m e n t e para o fim, parece i n d i s p e n s á v e l interpretar
a p r o f u n d a i n a p r e e n s i b i l i d a d e da roda — a i n d a q u e n e s s e s
m o m e n t o s finais e a p e s a r d a k i t s c h i z a ç ã o — a partir d a ima-
g e m da roda solar.
A i m a g e m a p o n t a d o s i g n o a o significado, da suástica ao
Sol. É u m d i s c o i n c a n d e s c e n t e q u e gira ao redor da Terra.
M a s s o m e n t e o s e m i c í r c u l o s u p e r i o r q u e descreve, d o nascer
ao pôr d o sol, s e faz visível. O semicírculo inferior p e r m a -
n e c e u m s e g r e d o o b s c u r o . E s s e círculo e t e r n o , q u e s e repete
eternamente e m suas fases, é completamente antiorgânico
(antiorganisch'). N o r e i n o d o s seres v i v o s n ã o e x i s t e m rodas,
e as únicas coisas q u e r o l a m s ã o as pedras e o s t r o n c o s d e
árvores d e r r u b a d o s . E a vida é u m processo: d e s c r e v e u m
t r e c h o que vai d o n a s c i m e n t o à m o r t e , é u m devir e m dire-
ção ao perecer. Mas a roda d o Sol contradiz t a m b é m a m o r t e ,
e não s o m e n t e a vida: retorna s e c r e t a m e n t e e c o m p l e t a o
círculo, d o o c a s o à alvorada. A roda solar s u p e r a a vida e a
morte, e o m u n d o t o d o se faz visível s o b e s s a roda, p o i s é
exatamente e s s a roda q u e o t o r n a passível d e ser v i s t o .
E q u a n d o se o l h a o m u n d o d e s s e m o d o , e l e parece o s e -
guinte: u m c e n á r i o e m q u e h o m e n s e c o i s a s i n t e r a g e m e n -
tre si, i s t o é, t r o c a m d e p o s i ç ã o u n s c o m o s o u t r o s . A roda
do Sol, o círculo d o t e m p o , coloca t u d o e t o d a s as c o i s a s de
volta n o lugar q u e l h e s é d e v i d o . Cada m o v i m e n t o é u m deli-
to c o m e t i d o p o r h o m e n s e c o i s a s c o n t r a si m e s m o s e contra 69
a eterna o r d e m circular, e o t e m p o s e m o v e e m círculo para
expiar o s d e l i t o s e voltar c o m o s h o m e n s e as c o i s a s para s e u
devido lugar. P o r t a n t o , n ã o e x i s t e m d i f e r e n ç a s e s s e n c i a i s
entre h o m e n s e coisas: a m b o s s ã o a n i m a d o s p e l o d e s e j o de
provocar d e s o r d e m , e a m b o s s ã o l e v a d o s p e l o t e m p o e c o m
o tempo rumo ao perecimento. Tudo n o m u n d o é animado,
pois t u d o s e m o v e e d e v e t e r u m m o t i v o para s e m o v e r . E o
t e m p o é o juiz e o carrasco: ele circula p e l o m u n d o , d i s p õ e
tudo e m s e u s d e v i d o s lugares e p a s s a c o m o u m a roda p o r
cima de t u d o , a t r o p e l a n d o e d e s t r u i n d o o q u e e n c o n t r a e m
seu c a m i n h o . Foi n e s s a a t m o s f e r a d e culpa, d e e x p i a ç ã o e
de e t e r n o r e t o r n o , o u , e m o u t r a s palavras, s o b o s i g n o da
roda solar q u e a h u m a n i d a d e v i v e u a m a i o r p a r t e d e s e u
t e m p o n a Terra.
S e m p r e e x i s t i r a m h o m e n s q u e t e n t a r a m s e rebelar c o n -
tra a roda d o d e s t i n o . M a s o q u e c o n s e g u i a m c o m i s s o era
apenas provocar a i n d a m a i s o d e s t i n o . Édipo d o r m i u c o m
sua m ã e e x a t a m e n t e p o r q u e n ã o o queria e, p o r e s s e m e s m o
m o t i v o , t e v e d e arrancar s e u s p r ó p r i o s o l h o s . A i s s o o s gre-
gos c h a m a v a m d e "heroísmo". O s p r é - s o c r á t i c o s q u i s e r a m
s u p e r a r a r o d a p e l o l a d o d e f o r a , p e l a via d a t r a n s c e n d ê n c i a
Eles a c r e d i t a v a m q u e m e s m o a r o d a , p a r a p o d e r se mover
t i n h a d e t e r u m m o t i v o , u m m o t o r (Beu/eger). A i d é i a desse
m o t o r imóvel s i t u a d o além d o t e m p o , desse m o t i v o nào
m o t i v a d o e m si m e s m o , i d é i a a p r i m o r a d a p o s t e r i o r m e n t e
p o r Aristóteles, é f u n d a m e n t a l para se p e n s a r o conceito
ocidental de Deus.
M u i t o a n t e s dos pré-socráticos, p o r é m , surgiu n a Meso-
p o t a m i a u m tipo de h e r o í s m o b a s t a n t e diferente. Tente-
70 m o s nos c o l o c a r n o p a p e l d e u m s a c e r d o t e s u m é r i o . A par-
t i r d e s u a s p r e v i s õ e s , t e n t a v a d e c i f r a r o m u n d o q u e girava
s o b r e r o d a s . Via o n a s c i m e n t o , a m o r t e e o r e n a s c i m e n t o ,
via a c u l p a e a e x p i a ç ã o , o d i a e a n o i t e , o v e r ã o e o i n v e r n o ,
a g u e r r a e a p a z , d i a s d e p r o s p e r i d a d e e d e m i s é r i a , e via
c o m o essas fases e s t a v a m c o m o q u e e n g r e n a d a s u m a s com
a s o u t r a s d e m o d o cíclico. A p a r t i r d e s s e s ciclos e epiciclos,
o s a c e r d o t e p o d i a i n t e r p r e t a r o futuro — a s t r o l o g i c a m e n t e ,
por exemplo — n ã o para evitã-lo, m a s para profetizã-lo. E
d e r e p e n t e lhe o c o r r e u a incrível idéia d e c o n s t r u i r u m a
roda que girasse na direção contrária à da roda do destino.
U m a roda que, se colocada n o Eufrates, poderia m u d a r a
direção das águas, d e m o d o que, e m vez d e fluírem para
o mar, seriam conduzidas para os canais. Do nosso p o n t o
de vista atual, esse era u m p e n s a m e n t o técnico. Mas, para
aquela época e n a q u e l e lugar, r e p r e s e n t a v a u m a r u p t u r a di-
fícil d e s e r c o m p r e e n d i d a . A i n v e n ç ã o d a r o d a r o m p e u o
círculo mágico d a pré-história, fraturou o d e s t i n o . Abriu
o c a m i n h o p a r a u m a n o v a f o r m a d e t e m p o — a h i s t ó r i a . Se
h á a l g u m a coisa q u e m e r e ç a s e r c h a m a d a d e "catástrofe",
essa coisa seria a r o d a - d a g u a .
Esse giro filosófico n ã o n o s d e v e i m p e d i r d e a c o m p a n h a r
os estágios s e g u i n t e s d o d e s e n v o l v i m e n t o da roda, o u seja,
devemos n o s lembrar daquelas carroças, puxadas por burros,
que t r a n s p o r t a v a m cereais para o s m o i n h o s . Essa é u m a
cena t o t a l m e n t e d i f e r e n t e d a q u e l a d o s a c e r d o t e e n g e n b o s o
e heróico. Ela s e e n c o n t r a n o m e i o da h i s t ó r i a e e s t á m a i s
próxima da R e v o l u ç ã o Industrial q u e d o m i t o . Pois a idéia
da roda veicular (Fahrrad),* i s t o é, a roda n a carroça, d e v e -
se i n t e i r a m e n t e à c o n s c i ê n c i a histórica, e s ó p o d e surgir
onde se v i v e h i s t o r i c a m e n t e . 71
Por e x e m p l o : i m a g i n e m o s u m a roda hidráulica que s e
soltasse d o e i x o e ainda f o s s e i m p u l s i o n a d a . Ela deveria ro-
lar por u m e s p a ç o i n f i n i t a m e n t e e x t e n s o , d u r a n t e u m t e m -
po i n f i n i t a m e n t e l o n g o , e é i s s o o que se c h a m a d e "histó-
ria": u m rolar i n f i n i t a m e n t e l o n g o e i n f i n i t a m e n t e e x t e n s o .
Mas é e v i d e n t e que aqui n ã o se trata d i s s o , m a s s i m d e que
é necessário u m m o t o r , por e x e m p l o o cavalo, que precisa
dar à roda i m p u l s o c o n t í n u o para m a n t ê - l a rolando. C o m o
p o d e m o s afinal explicar o fato de q u e u m a roda veicular
(Fahrrad) t e m d e ser u m a roda m o t o r i z a d a (Motorrad) e
não p o d e ser u m a u t o m ó v e l (Automobil) o u u m perpetuum
mobile, e t a m b é m n ã o p o d e ser algo m o t i v a d o e t e r n a m e n t e ?
A idéia da roda veicular n ã o p o d e esclarecer i s s o por si s ó .
Por ser u m círculo, a roda está sempre e m contato c o m o