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DECISÃO: Trata-se de ação de reivindicação, cumulada com anulação

e cancelamento de registro e cautelar de antecipação de prova, ajuizada


pelo Incra em face do Instituto de Terras do Estado de Tocantins (Itertins),
Anastácio Fagundes Furtado, Anastácio Nazareno Fagundes Furtado e
Custódia Pereria Neta, sustentando, em síntese, a alienação a non domino
de bem imóvel público de propriedade da União pelo primeiro
demandado aos demais requeridos.
Em sua exordial, relata que:

“I - O imóvel objeto da presente ação foi desapropriado


por interesse social para fins de Reforma Agrária pelo Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, através
do Decreto Presidencial n 97.845, de 21 de junho de 1989,
publicado no D.O.U de 21 de junho do mesmo mês e ano, Seção
I, (doc. 01) e matriculado no Cartório de Registro de Imóveis de
Porto Nacional, neste Estado, sob o número 13.401, livro 02,
Registro Geral em nome do INSTITUTO NACIONAL DE
COLONILZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA (doc 02),
posteriormente, veio a ser criado o Projeto de Assentamento
RETIRO, através da Portaria/Incra /SR -26/T0/ N° 003/95, de 10
de janeiro de 1995 e Averbado sob n AV-I-13.401, em 20 de abril
de 2001 (doc.03). Sendo que a área titulada indevidamente pelo
ITERTINS, encontra-se inserida no citado Projeto que tem área
de 1.499,2473 hectares, estando formado por diversos lotes,
inclusive pelo lote em questão, que diz ter área de 208,9522
hectares, titulado pelo ITERTINS de forma ilegal, como se faz
prova pelos documentos anexos. .
Não obstante citada área ter sido desapropriada por
interesse social, para fins de reforma agrária, nos termos da
legislação vigente à época e já estando incorporada ao
patrimônio do INCRA, estranhamente, em 1994 veio o
ITERTINS, na qualidade de órgão executor da política fundiária
do Estado do Tocantins e expediu o Titulo Definitivo de n 2.262
em favor do Sr Anastácio Fagundes Furtado e Outro (doc. 04),
ilegalmente levado à registro no Cartório de Registro de
Imóveis de Porto Nacional, sob a matricula número R-I/ 14.207
do Livro 02, de 06 de agosto de 1996 ( doc. 05 ), vez que
mencionada área já se encontrava sobre posse e domínio do
INCRA, com vista ao assentamento de agricultores sem terras e
que preencham os requisitos necessários para serem
assentados, o que não é o caso dos ocupantes da parcela ora
requeridos
(…)
V - Como denota-se à vista da planta elaborada pelo
Grupamento de Cartografia do INCRA, comprova-se
claramente a sobreposição da área arrecada com a titulada pelo
ITERTINS, caracterizando-se assim, uma venda ‘a non domini’ e
em total inobservância à legislação pertinente por parte do
Órgão de Terras, gerando assim, um ato nulo de pleno direito,
conforme artigo 145, incisos 111 e IV, do Código Civil Brasileiro,
que estatui: (…)
Por seu turno, emérito Julgador, o ITERTINS e o Oficial do
Cartório de Registro de Imóveis de Porto Nacional, ao
promoverem, respectivamente, a expedição do enfocado Título
Definitivo e o registro e matrícula em nome dos beneficiários
ora Requeridos, da área já desapropriada e matriculada em
nome do INCRA , feriram o princípio da continuidade registral,
vez que o Órgão já detinha o domínio da referida gleba, como
coordenador, promotor e executor da Reforma Agrária no País,
competência prevista nos artigos 50, 6° e 8° da Lei n 4.947/66 e,
por consequência, só ao Órgão Federal caberia o direito de
viabilizar os termos preconizados no art. 1.228 da lei
substantiva civil vigente, como se verifica, ipsis verbis (…)
Comprovado está, Excelência, que o ITERTINS promoveu
a titulação da área, transgredindo literalmente a legislação
vigente, não restando outra alternativa à Autarquia Federal, por
força de sua competência legal, senão recorrer a esse Douto
Juízo para obter a anulação do Título Definitivo, o
cancelamento do registro e da citada matrícula, bem como a
restituição do imóvel”.

Ao final, requer que se digne de:

“a)- julgar procedente o pedido contido na exordial,


condenando o Réu segundo nominado a restituir integralmente
o imóvel injusta e ilegalmente ocupado, objeto da Matrícula
constante do anexado doc. 02, e o que nele plantou, edificou e
construiu, ao Autor, sem que este lhe deva qualquer
indenização;
b)- decretar a nulidade do Título Definitivo expedido pelo
ITERTlNS, bem como o cancelamento do registro e matrícula n
R-1-14.207, do LIVRO 02 de Registro Geral, fls. 204 e os demais
dos mesmos decorrentes, efetivados no Cartório de Registro de
Imóveis de Porto Nacional, neste Estado”. (sic)

A ação foi intentada inicialmente perante a Justiça Federal da Seção


Judiciária de Tocantins (fl. 26).
Após a devida tramitação naquele Juízo, com apresentação de
contestações por Anastácio Fagundes Furtado e Itertins (fls. 42/45, com
juntada documentos às fls. 46/58 e fls. 64/72, acompanhada de
documentos às fls. 73/125, respectivamente), pedido de exclusão do polo
passivo de Custódia Pereira Neta (fls. 60/63), impugnação às contestações
(fls. 133/137), decisão que determinou a exclusão de Custódia Pereira
Neta do polo passivo (fl. 157), além das alegações finais orais pelas partes
(fls. 167/169) e parecer do MPF (fls. 173-174), sobreveio decisão
declinando o processamento e julgamento deste feito perante esta Corte,
tendo em vista o disposto no art. 102, I, “f”, da CF (fls. 176/177).
Atuado nesta Corte, os autos foram encaminhados à Procuradoria-
Geral da República, oportunidade em que apresentou parecer assim
ementado:

“AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. AÇÃO DE


REIVINDICAÇÃO CUMULADA COM ANULAÇÃO DE
TÍTULO DEFINITIVO E CANCELAMENTO DE REGISTRO E
MATRÍCULA. DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA PARA
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COM FUNDAMENTO
NO ART. 102, I, ‘F’, DA CF. NÃO HÁ DE CONSIDERAR
TERRAS DEVOLUTAS, PARA FINS DE DESPROPRIAÇÃO, AS
GLEBAS QUE SE ENCONTRAM EM SITUAÇÃO JURÍDICA
DEVIDAMENTE CONSTITUÍDA OU EM PROCESSO DE
FORMAÇÃO. PRECEDENTES DO STF. PARECER PELA
PROCEDÊNCIA DA AÇÃO ORIGINÁRIA”.

Após as partes serem instadas, por diversas vezes (fls. 214, 226 e
236), adveio aos autos notícia da tramitação de tentativa de acordo
perante a CCAF (Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração
Federal – fls. 257/259), com posterior intimação do Itertins sobre o
andamento dos desdobramentos administrativos (fl. 265), oportunidade
na qual expôs:

“ A Procuradoria Geral do Estado do Tocantins solicitou


informações técnicas do ITERTINS acerca do teor da petição
formalizada pela Advocacia-Geral da União, segundo consta do
anexado Ofício PGE/GAB no 301512014, em virtude de que
nestes autos não houve entabulação de pré- acordo como feito
nas ACO's 945 e 689. Em decorrência disso, comunica-se a
Vossa Excelência que estamos aguardando as mencionadas
informações técnicas do ITERTINS, ao tempo em que, uma vez
na posse delas, prestaremos as informações solicitadas por esse
emérito STF”. (fls. 271/272)

Reiterada a intimação, sobreveio a seguinte informação:

“As Autarquias litigantes estão realizando prévias


tratativas, com apoio técnico, visando buscar solução definitiva
da controvérsia que envolve as áreas objeto da lide. Segundo
restou antecedentemente acertado, as Autarquias
posteriormente entabularão acordo definitivo nos autos,
trazendo todo regramento necessário para solução da questão,
incluindo obrigação de a União Federal, por intermédio de seus
órgãos responsáveis, adotar medidas cabíveis para regularizar
fundiariamente as ocupações consolidadas e localizadas na área
debatida, com emissão dos respectivos títulos, máxime aquelas
tituladas pelo ITERTINS.
Até porque, segundo se infere do incluso
Ofício/GP/ITERTINS n 0573/2014, de 9 de outubro de 2014, e
dos demais documentos que o acompanham, a Autarquia
Fundiária do Estado do Tocantins informa que ‘... a Ação Cível
Originária no 885-TO, proposta pelo INCRA em face do
ITERTINS e outros, com a finalidade de cancelamento do Título
Definitivo acima mencionado, expedido pelo ITERTINS,
referente ao imóvel rural em debate, todavia, como já narrado, o
referido título foi outorgado sobrepondo área arrecadada e
matriculada pela UNIÃO’ (...)”. (fls. 285/286)

Após o feito restar suspenso aguardando definição das partes


envolvidas, houve determinação para que estas se manifestassem (fls. 311
e 315).
Sobreveio informação do Incra de que “a finalização do processo de
conciliação está a depender de uma manifestação do PGE/TO concordando com a
composição e, assim sendo, permitindo a homologação do acordo, ou, ao revés,
discordando da composição e, neste caso, o processo conciliatório será arquivado,
prosseguindo-se a Ação Judicial”. (fls. 317/318)
Ultrapassado o prazo solicitado, as partes foram novamente instadas
a ser manifestarem (fl. 325), sem sucesso, consoante atesta a certidão de fl.
329.
Ato contínuo, determinei a intimação pessoal do Procurador-Geral
do Estado de Tocantins para que se manifestasse sobre a proposta de
conciliação, sob pena de se considerar avalizado o acordo (fl. 330),
novamente sem qualquer resposta (tal como aponta a certidão de f. 335).
Compulsando mais detidamente os autos, chamei o feito à ordem
para regularizar o polo passivo da presente demanda, nos termos do art.
76 c/c § 3º do art. 485 do CPC/15, tendo em vista a ausência de citação do
litisconsorte passivo necessário Anastácio Nazareno Fagundes Furtado,
além da regularização processual do espólio de Anastácio Fagundes
Furtado (fls. 342-343)
Em resposta, o Incra informa também o falecimento de Anastácio
Nazareno Fagundes Furtado, requerendo a emenda da exordial (fls.
345/346)
Acolhida a emenda e determinada a citação (fl. 348), compareceu
aos autos a inventariante do espólio de Anastácio Nazareno Fagundes
Furtado (fl. 353) , com posterior apresentação de contestação (fls. 358/365).
Observando a ausência de regularização do espólio de Anastácio
Fagundes Furtado, renovei a intimação do causídico, concedendo-lhe
prazo para tal finalidade (fl. 367), tendo este transcorrido in albis (fl. 370).
Em sequência, determinei que o Incra promovesse a citação do
respectivo espólio (fl. 371), tendo tal autarquia federal cumprido tal
determinação às fls. 375/376.
Citado o espólio, sua representante legal compareceu aos autos (fls.
381) e regularizou a representação processual (fls. 382/385), com
apresentação de nova contestação (fls. 389/399)
Às fls. 404/408, o Incra noticiou o encerramento dos trâmites
administrativos para a solução consensual, diante da ausência de
interesse do Itertins, com requerimento de julgamento do feito.
O Incra renovou os pedidos presentes às fls. 383-384 (fls. 402-405)
Em despacho de fl. 411, determinei a intimação das partes para se
manifestarem sobre o interesse na produção probatória, tendo as partes
informado desinteresse (fls. 416/417, 419 e 423)
Remetidos os autos à Procuradoria-Geral da República (fl. 425),
adveio parecer requerendo a última intimação das partes sobre a
possibilidade de conciliação e, no mérito, manifestando-se pela
procedência do pleito autoral, cuja ementa descreve:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO.
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA.
TITULAÇÃO DE TERRAS NO ESTADO DO TOCANTINS.
CONFLITO FEDERATIVO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONCILIAÇÃO.
DILIGÊNCIA. INTIMAÇÃO DAS PARTES. AÇÃO DE
REIVINDICAÇÃO CUMULADA COM ANULAÇÃO E
CANCELAMENTO DE REGISTRO DE IMÓVEL.
SOBREPOSIÇÃO DE ESCRITURAS. INVALIDADE DE
TÍTULO DE DOMÍNIO EXPEDIDO PELO ITERTINS.
DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA.
PATRIMÔNIO DA UNIÃO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal é competente para
processar e julgar o feito (art. 102-1-f da Constituição), pois a
questão refere-se a litígio entre autarquia federal e estado
membro sobre propriedade de bens imóveis, o que extrapola
discussões meramente patrimoniais, atingindo diretamente o
equilíbrio federativo.
2. Havendo a possibilidade de dirimir-se a controvérsia
mediante autocomposição, deve-se insistir na intimação, pela
última vez, das partes, para manifestação sobre a solução
consensual da demanda ou, até mesmo, para comparecimento
em juízo para audiência conciliatória, privilegiando-se, assim, a
harmonização autônoma dos interesses das partes.
3. São insuscetíveis de passar para o domínio do Estado-
membro e, posteriormente, de particulares, as terras já
incorporadas ao patrimônio da União, em razão de
desapropriação por interesse social para fins de reforma
agrária.
4. Admitir a validade da transferência de domínio de bem
que sabidamente integra área de imóvel desapropriado para
fins de reforma agrária implica ofensa ao ato jurídico perfeito,
ao direito adquirido e à boa-fé objetiva.
- Parecer pela promoção da diligência proposta ou, caso
infrutífera a tentativa de acordo, pela procedência do pedido”.
(fls. 429/437)

Acolhida a sugestão ministerial de oportunizar a derradeira


tentativa de solução consensual da lide (fl. 439), houve a concordância do
espólio dos requeridos (fl. 442) e a discordância do Incra (fls. 444/446),
com posterior solicitação de designação de audiência de conciliação pelo
Itertins (fl. 449).
Era o que cumpria relatar. Decido.

1) Requerimento de designação de audiência de conciliação

É importante mencionar, tal como expressa o relatório acima, que


houve inúmeras concessões de prazos e de oportunidades às partes para
tentarem a solução consensual do presente feito, tendo este restado
paralisado, de maneira informal, durante quase quatro anos à espera do
desenrolar das tratativas, tal como demonstra os desdobramentos
processuais a partir do despacho datado de 9 de maio de 2013 (fl. 214), até
o datado de 16 de dezembro de 2016 (fl. 339).
Seguindo a linha do parecer ministerial (fls. 429/437), foi
oportunizada novamente às partes a possibilidade de chegarem a
consenso sobre o objeto da lide, esclarecendo, ao final, que, “Não havendo
resposta ou sendo esta negativa, retornem os autos conclusos para decisão final”
(fl. 439)
Todavia, diante da expressa discordância do Incra, manifestando-se
pela impossibilidade de transigir sobre os interesses em discussão nestes
autos, por se tratar de área “afetada a projeto de assentamento social, no caso o
‘Projeto de Assentamento Retiro’”, sob o argumento de que “qualquer
tratativa conciliatória não poderá transigir sobre a pretensão indisponível posta
em Juízo”, a audiência de conciliação perde o sentido, na forma do inciso
II do § 4º do art. 334 do CPC, in verbis:

“Art. 334. Omissis.


(...)
§ 4º. A audiência não será realizada:
I - se ambas as partes manifestarem, expressamente,
desinteresse na composição consensual;
II - quando não se admitir a autocomposição”.

Dessa forma, diante das alegações do Incra, indefiro o pedido do


Itertins de designação de audiência de conciliação e passo ao julgamento
da demanda.

2) Competência do STF

Em relação à competência desta Corte, ressai presente a hipótese


subjacente à alínea “f” do inciso I do art. 102 da CF.
Essa questão envolvendo a titularidade de supostas terras devolutas
e/ou desapropriada e, posteriormente alienada por Estado da Federação,
não é nova em processos desta Corte, tal como se percebe da ementa da
ACO 477, QO, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 24.11.1995:

“LITIGIO ENTRE AUTARQUIA FEDERAL E ESTADO-


MEMBRO SOBRE PROPRIEDADE DE TERRAS
DEVOLUTAS. QUESTÃO DE ORDEM. - LITIGIO DESSA
NATUREZA ENVOLVE QUESTÃO QUE DIZ RESPEITO
DIRETAMENTE AO EQUILIBRIO FEDERATIVO, SENDO,
PORTANTO, CAUSA QUE INEQUIVOCAMENTE E DA
COMPETÊNCIA ORIGINARIA DESTA CORTE NA
POSIÇÃO DE TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO QUE LHE
OUTORGA O ARTIGO 102, I, ‘F’, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM QUE SE RESOLVE PELO
RECONHECIMENTO DA COMPETÊNCIA DESTA CORTE
PARA O PROCESSO E JULGAMENTO ORIGINARIOS DA
PRESENTE AÇÃO”. (ACO 477 QO, Rel. Min. MOREIRA
ALVES, Tribunal Pleno, DJ 24.11.1995, grifo nosso)

Em todas as situações que estão em tramitação nesta Corte, tem-se


reconhecido potencial de abalo ao pacto federativo, diante da alegação de
alienação a non domino pelos Estados de terras de propriedade da União.
Reconhecida, por conseguinte, a competência do STF, com
ratificação de todos atos proferidos pela Justiça Federal de 1º grau,
incluída a exclusão do polo passivo de Custódia Pereira Neta (fl. 157).

3) Mérito

A matéria em discussão nos autos consiste em saber os efeitos


jurídicos da desapropriação operada pelo Incra (União) e a consequência
da ciência pelos requeridos desse fato jurídico, em momento anterior ou
posterior à titulação realizada pelo Itertins.
A desapropriação pela União foi declarada de interesse social para
fins de reforma agrária pelo Decreto 97.845, de 20 de junho de 1989 (DOU
21.6.1989), a saber:

“Art. 1º. É declarado de interesse social, para fins de


reforma agrária, nos termos dos artigos 18, letras ‘a’, ‘b’, ‘c’ e
‘d’, e 20, itens I e V, da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964,
o imóvel rural denominado ‘LOTE Nº 12 DO LOTEAMENTO
RETIRO’ ou ‘MATANÇA’, com a área de 1.603,9425ha (um mil,
seiscentos e três hectares, noventa e quatro ares e vinte e cinco
centiares), situado no Município de Porto Nacional, Estado de
Tocantins, e compreendido na zona prioritária, fixada pelo
Decreto nº 92.690, de 19 de maio de 1986.
§ 1º. O imóvel a que se refere este artigo tem o seguinte
perímetro: partindo do M-1, de coordenadas geográficas
longitude 48°25"31""WGr e latitude 10°39"27""S, situado na
confluência do Córrego Capim Puba com o Rio Tocantins;
deste, segue pela margem esquerda do Rio Tocantins, a
montante, por uma extensão de 3.500,00m, até o M-2, de
coordenadas geográficas longitude 48°26"18""WGr e latitude
10°41"02""S, situado junto à confluência do Ribeirão do Carmo;
deste, segue pelo Ribeirão do Carmo, a montante, por uma
extensão de 4.200,00 m, até o M-3; deste, segue pelo Córrego
Serragem, a montante, por uma extensão de 6.279,84 m,
confrontando com o Loteamento Serragem, até o M-4, de
coordenadas geográficas longitude 48°30"49""WGr e latitude
10°39"42""S; deste, segue confrontando com o Loteamento
Retiro ou Matança, com o Lote 13, com rumo verdadeiro de
90°00"E, e extensão de 1.871,90m; com o Lote nº 11, com os
rumos verdadeiros e extensões seguintes: 90°00""E - 3.320,70m,
até o M-5; 37°38"SE - 220,40m, até o M-6; 37°21"SE - 90,00 m, até
o M-7, situado na cabeceira do Córrego Estiva; deste, segue pelo
Córrego Estiva, a jusante, confrontando com o Lote nº 11, por
uma extensão de 5.220,00m, até o M-8, situado na confluência
do Córrego Capim Puba; deste, segue pelo Córrego Capim
Puba, a jusante, confrontando com o Lote nº 10, por uma
extensão de 560,00 m, até o M-1, onde teve início a presente
descrição. (Fontes de referência: Certidão do CRI, Carta DSG,
Folhas SC.22-Z-B-V e SC.22-Z-B-IV, na Escala 1:100.000, ano
1975, planta topográfica na Escala de 1:50.000 e Lei Estadual nº
8.111, de 14-5-76, que define a Divisão Política Municipal.
§ 2º. Do perímetro descrito no parágrafo anterior que
encerra a área de 1.624,9425 ha (um mil, seiscentos e vinte e
quatro hectares, noventa e quatro ares e vinte e cinco centiares),
fica excluída dos efeitos deste Decreto a área de 21,0000ha
(vinte e um hectares), correspondente à faixa de domínio da
Rodovia GO-364.
Art. 2º. Excluem-se, ainda, dos efeitos deste Decreto: a) os
semoventes, as máquinas e os implementos agrícolas; e b) as
benfeitorias existentes no imóvel referido no artigo anterior e
pertencentes aos que serão beneficiados com a sua destinação.
Art. 3º. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária - INCRA promoverá a desapropriação do imóvel rural
de que trata o presente Decreto, na forma prevista no Decreto-
lei nº 554, de 25 de abril de 1969.
Art. 4º. Este Decreto entra em vigor na data de sua
publicação.
Art. 5º. Revogam-se as disposições em contrário”.

A prova existente nos autos aponta que a União ingressou em 1991


com a correspondente ação de desapropriação do Lote 12 do Loteamento
Retiro ou Matança, em Porto Nacional/TO, totalizando área de
1.603,9425ha (um mil, seiscentos e três hectares, noventa e quatro ares e
vinte e cinco centiares), tendo como expropriado o espólio de Evaristo
Lopes Tavares e autuado sob o numero 91.3253-0, classe 05012 perante a
Seção Judiciária de Goiás, (3ª Vara Federal - fl. 18), com comprovação de
imissão da posse em 3.11.1992 (fl. 17).
Por outro lado, o Itertins expediu a titulação da referida área de
208,95ha (duzentos e oito hectares e noventa e cinco ares) em nome dos
demandados em 14.3.1994, com registro no Cartório de Imóveis apenas
em 6.8.1996 (fl. 48).
Do que ressoa dos autos, reputo assistir razão ao Incra em relação à
nulidade do registro de área sobreposta de gleba desapropriada para fins
de reforma agrária.
Durante a tramitação do feito nesta Corte, o próprio Itertins
reconhece que:

“Atendendo pedido da folha n° 77, com base nas


coordenadas da certidão da folha n° 74, realizamos a Plotagem
da Fazenda Carmo Lote N° Único na planta municipal de
Porto Nacional - TO e de acordo com as informações
constantes dos arquivos do INCRA, a mesma sobrepõe Parte
do Lote 23 do P A Retiro- INCRA, conforme mostra Plotagem
em anexo.
Diante do exposto acima este imóvel está superpondo
áreas da União”. (fl. 288, grifo nosso)

Tal informação foi reiterada pelo Presidente do Itertins:


“Através da plotagem realizada e do PARECER TÉCNICO
N° 725/2014/CARTO, anexos, concluiu o Setor de Cartografia
deste Órgão que a área sob comento encontra-se encravada em
área arrecadada e matriculada pela União, tratando-se do
Projeto de Assentamento Retiro, localizado no município de
Porto Nacional/TO.
Tramita no Supremo Tribunal a Ação Cível Originária n°
885-TO, proposta pelo INCRA em face do ITERTINS e outros,
com a finalidade de cancelamento do Título Definitivo acima
mencionado, expedido pelo ITERTINS, referente ao imóvel
rural em debate, todavia, como já narrado, o referido título foi
outorgado sobrepondo área arrecadada e matriculada pela
UNIÃO.
Ressalta-se que à época da emissão do título definitivo em
comento não havia no processo administrativo as informações
de que hoje se dispõe a respeito da sobreposição de áreas da
União, pois, caso contrário, certamente o gestor do ITERTINS à
época, não teria autorizado a emissão do referido título, a
menos que o fizesse de má- fé.
(…)
No caso em apreço, restou comprovado pelo Setor de
Cartografia e pela certidão constante no Processo
Administrativo n° 2.062/1992, que o Título Definitivo de
Domínio n° 2.262, de 14/03/1994, foi expedido sobrepondo
área arrecadada e matriculada em nome da União.
Assim, em relação á Ação Cível Originária n° 885-TO,
salvo posicionamento em contrário, deve o Estado do
Tocantins, através desta Procuradoria Geral, adotar o mesmo
posicionamento expressado na Ação Ordinária de Anulação de
Ato Jurídico, Processo n° 2005.43.00.002116-3, ou seja, concordar
com o pedido de cancelamento do ato administrativo
expedido, ante a flagrante nulidade, ou seja, o Título
Definitivo n° 2.262, lavrado em 14/03/1994, em favor de
Anastácio Fagundes Furtado e Anastácio Nazareno Fagundes
Furtado, referente ao imóvel rural denominado Lote Único,
Loteamento Fazenda Carmo, com área de 208,9522 ha
(duzentos e oito hectares, noventa e cinco ares vinte e dois
centiares), localizado no município de Porto Nacional/TO,
sobrepondo o Projeto de Assentamento Retiro do INCRA”. (fls.
289/291, grifo nosso)

Está claro, portanto, que há sobreposição da área alienada pelo


Itertins aos requeridos particulares de 208,9522ha sobre a área de
1.603,9425ha desapropriada pela União.
Nesse ponto, cumpre ressaltar que não procede o argumento dos
requeridos de que deveriam constar no polo passivo da demanda
expropriatória, tendo em vista que o art. 16 do Decreto-Lei 3.365/41
(norma geral sobre desapropriações) é claro em afirmar que apenas
proprietário dos bens deve ser citado (e evidentemente compor o polo
passivo), in litteris:

“Art. 16. A citação far-se-á por mandado na pessoa do


proprietário dos bens; a do marido dispensa a dá mulher; a de
um sócio, ou administrador, a dos demais, quando o bem
pertencer a sociedade; a do administrador da coisa no caso de
condomínio, exceto o de edifício de apartamento constituindo
cada um propriedade autônoma, a dos demais condôminos e a
do inventariante, e, se não houver, a do cônjuge, herdeiro, ou
legatário, detentor da herança, a dos demais interessados,
quando o bem pertencer a espólio.
Parágrafo único. Quando não encontrar o citando, mas
ciente de que se encontra no território da jurisdição do juiz, o
oficial portador do mandado marcará desde logo hora certa
para a citação, ao fim de 48 horas, independentemente de nova
diligência ou despacho”. (grifo nosso)

A ação de desapropriação foi ajuizada em 1991 e os requeridos


somente tiveram título expedido, de parte da área coincidente com a
desapropriada, pelo Itertins em 1994, com registro em cartório em 1996.
Portanto, na época do ajuizamento da demanda, a área era integralmente
de propriedade do expropriado (espólio de Evaristo Lopes Tavares) e
inexistia qualquer outro título registral em nome de particulares.
E mais: na época em que os requeridos compraram os direitos de
“posse” do imóvel em questão tinham ciência de que se tratava de área
devoluta da União, tal como descreve a escritura de cessão de posse de
imóvel com venda de benfeitorias, a saber (fl. 55):

“E, pelos Outorgantes me foi dito o seguinte: que, por si e


seus antecessores, se acham na posse mansa e pacífica há mais
de 20 (vinte) anos, de uma área de terras devolutas da União,
caracterizada como Lote Único, do Loteamento FAZENDA
CARMO, neste Município de PORTO NACIONAL, Estado do
Tocantins, com 16,21.00 ha. (dezesseis hectares e Vinte e um
ares) de cultura de 2ª classe e 192,74.22 ha. (cento e noventa e
dois hectares, setenta e quatro ares e vinte e dois centiares ) de
cerrado de 2ª qualidade, somando a área total de 208,9522 ha.
(duzentos e oito hectares, noventa e cinco ares e vinte e dois
centiares), com os seguintes limites e confrontações: (…) que,
assim como detêm, por esta escritura e na melhor foma de
direito, cedem e transferem, como de fato ora cedido e
transferido têm, aos outorgados ANASTÁCIO FAGUNDES
FURTADO e ANASTÁCIO NAZARENO FAGUNDES
FURTADO, os direitos e ações decorrentes da dita posse, ao
mesmo tempo em que lhes vendem as benfeitorias descritas,
tudo pelo preço, certo e ajustado de CR$35.000.000,00 (TRINTA
E CINCO MILHÕES DE CRUZEIROS), importância essa que os
Outorgantes confessam já haverem recebido dos Outorgados,
em moeda corrente do País, pelo que lhes dão quitação plena e
irrevogável, sub-rogando-os, em consequência, em todos os
direitos oriundos do exercício da mesma posse; que, no
entanto, caberá aos Outorgados a boa ou má liquidação dos
direitos cedidos (...) ” (grifo nosso)

De tal documento extraem-se três consequências: 1) era da ciência


dos compradores (ora requeridos) de que se tratava de terras devolutas
da União; e 2) a negociação envolveu apenas a cessão do exercício da
“posse” sobre tal área e a compra das benfeitorias, com sub-rogação do
direitos sobre a “posse”; 3) inexiste a incidência de qualquer prazo
prescricional ou decadencial de a União reivindicar imóvel
desapropriado e registrado indevidamente em nome de particulares.
Reitero que a propriedade da área de 208,9522 ha somente foi
titulada em 3.1994, com registro cartório em 8.1996, época em que a União
já havia ajuizado a ação de desapropriação (1991) da área de 1.603,9425ha
e obtido a imissão da posse (11.1992).
Dessa forma, os requeridos não deveriam ter participado
obrigatoriamente na condição de expropriados ou litisconsortes passivos
do processo de desapropriação ajuizado pelo Incra em face de Evaristo
Lopes Tavares, apesar de haver continência de áreas (sobreposição).
É bem verdade que poderiam ter ingressado como assistentes
(ingresso facultativo), mas jamais obstarem que a ausência de suas
participações geraria alguma nulidade do feito desapropriatório ou de
que não se submeteriam aos efeitos daquela demanda.
Além disso, eventual discussão sobre direitos de particulares
(propriedade ou posse) não se revolve naqueles autos desapropriatórios,
devendo os envolvidos particulares buscarem as vias ordinárias para
discussão sobre ônus ou direitos que existam sobre o imóvel
desapropriado, na forma do art. 31 do Decreto-Lei 3.365/41:

“Art. 31. Ficam subrogados no preço quaisquer ônus ou


direitos que recaiam sobre o bem expropriado”.

Vê-se, pois, que está claro que a área titulada pelos requeridos-
particulares e alienada pelo Itertins (208,9522 ha), coincide com aquela
maior área arrecadada e desapropriada pela União (1.681,34ha), não se
tratando de terra devoluta, diante da desapropriação realizada pelo Ente
nacional.
Não há comprovação nos autos que o Itertins ou os particulares
tenham requerido ou obtido certidão expedida pelos correspondentes
órgãos federais que atestassem não estar a área em questão utilizada para
fins de reforma agrária, sendo ônus probatório que lhes competiam,
tendo em vista o art. 373, II, do CPC/15 (norma idêntica ao art. 333, II, do
CPC/73).
A discussão sobre a titularidade de áreas envolvendo alienação a non
domino, não é nova nesta Corte, tendo sido assentado nas ACOs 481 e 477
que a titularidade da União permaneceu incólume, caso estivesse diante
de situação jurídica consolidada, tal como nos casos de desapropriação
para fins de reforma agrária. Citem-se as ementas dos referidos julgados.

“TERRAS DEVOLUTAS - UNIÃO VERSUS ESTADO-


MEMBRO. Não são passíveis de enquadramento como terras
devolutas, para o efeito previsto no caput do artigo 2º do
Decreto-Lei nº 2.375/87, as glebas que tiveram situação
jurídica devidamente constituída ou em processo de
formação. Tal é o caso de imóvel matriculado no registro de
imóveis em nome da União, ao tempo em que ocorre a
tramitação de processos objetivando a titulação por posseiros
via o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA)”. (ACO 481, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno,
DJ 23.2.2001, grifo nosso)

“Ação Cível Originária. - São da União as glebas que,


anteriormente à edição do Decreto-Lei nº 2375/87, tinham sido
incorporadas ao patrimônio dela pelo Decreto-Lei nº 1164/71
(cuja constitucionalidade se reconhece), e que foram
excepcionadas por ele de seu âmbito de aplicação por estarem
registradas, na forma da lei, em nome de pessoa jurídica
pública e por configurarem objeto de situação jurídica, já
constituída ou em processo de formação, a favor de alguém.
Ação julgada procedente, sendo a reconvenção julgada
improcedente”. (ACO 477, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal
Pleno, DJ 1º.8.2003, grifo nosso)

No mesmo sentido, destaco trecho do parecer da PGR:

“De fato, registrou-se a matrícula do imóvel - cuja área


insere-se na área total do imóvel desapropriado pelo Incra - em
nome da autarquia federal somente em 24 de abril de 2001,
enquanto a expedição do título definitivo ocorreu em 1994 e o
registro definitivo em favor dos particulares, em 1996 (Título
Definitivo 2.262. Matrícula R-I/14.207 do Livro 2, de 6 de agosto
de 1996).
No entanto, resta claro que (i) em 21 de junho de 1989,
ocorreu a desapropriação do imóvel, mediante o Decreto
Presidencial 97.845/1989, (ii) em 11 de setembro de 1992, o juiz
federal Carlos Humberto de Sousa determinou que, após a
imissão na posse, o Oficial de Cartório do Registro Geral de
Imóveis da Comarca de Porto Nacional procedesse à abertura
de matrícula em nome do expropriante (fls. 17/18), (iii) em 3 de
novembro de 1992, o Incra imitiu-se na posse do bem e, (iv) em
10 de janeiro de 1995, a Portaria/Incra/SR-26/TO/n. 003/95 criou
o Projeto de Assentamento Retiro.
Como se vê, tanto o Instituto de Terras do Estado do
Tocantins quanto o Oficial do Cartório do Registro de Imóveis,
no momento da outorga do título definitivo aos particulares
(1996), sabiam que estariam fazendo verdadeira sobreposição
de registro, pois tinham conhecimento de que o bem integrava
área de imóvel desapropriado e, portanto, já incorporado ao
patrimônio da União.
(...)
Desse modo, assiste razão ao autor quando requer a
nulidade do título, pois o caso é de verdadeira transferência de
domínio de um bem que não pertencia ao Itertins. Em
contrapartida, acolher a tese dos réus seria o mesmo que
admitir ofensa ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à
boa-fé objetiva.
Ademais, não há como desconsiderar ou invalidar os
projetos de colonização implantados na área litigiosa e a
concessão de terras para fins de reforma agrária. Com efeito,
aprovou-se a proposta de destinação para assentamento e
criou-se o Projeto de Assentamento Retiro, beneficiando
famílias que, inclusive, encontram-se assentadas na área”. (fls.
429-437)

Desse modo, é caso de acolhimento do pedido “B” da petição inicial


para declarar a “nulidade do Título Definitivo expedido pelo ITERTINS, bem
como o cancelamento do registro e matrícula n R-1-14.207, do LIVRO 02 de
Registro Geral, fls. 204 e os demais dos mesmos decorrentes, efetivados no
Cartório de Registro de Imóveis de Porto Nacional, neste Estado”.

4) Restituição e Benfeitorias (indenização e direito de retenção)

Consta o seguinte pedido no item “A” da petição inicial desta


demanda:

“a) julgar procedente o pedido contido na exordial,


condenando o Réu segundo nominado a restituir integralmente
o imóvel injusta e ilegalmente ocupado, objeto da Matrícula
constante do anexado doc. 02, e o que nele plantou, edificou e
construiu, ao Autor, sem que este lhe deva qualquer
indenização”.

Percebe-se que, além da restituição, o Incra requer que não haveria


direito à indenização dos réus particulares em relação às benfeitorias
“perdendo o que nele plantou, criou ou construiu, em benefício do autor”.
Pois bem. Quanto à eventual direito de indenização pelas
benfeitorias realizadas ou a perda deste, calha estabelecer o marco da
boa-fé.
Tenho para mim que, diante da inexistência de qualquer
empecilho/restrição/anotação de disputa envolvendo à titularidade da
área de 208,9522 ha, aliado à presunção relativa de veracidade da certidão
emitida por Cartório de Registro de Imóveis (arts. 1227 e 1245 do CC),
conclui-se pela boa-fé dos demandados particulares até a efetiva ciência
desta decisão, a qual confirma a titularidade da União.
É bem verdade que, nos termos do caput do art. 219 do CPC/73
(norma vigente à época da ocorrência do ato processual), a “citação válida
(...) faz a coisa litigiosa”, contudo não há como afastar a presunção legal de
boa-fé na manutenção da posse e propriedade advinda de título
registrado em cartório de imóveis.
Isso porque, até o momento em que o possuidor/proprietário ignora
o vício sobre a coisa e possui justo título, a lei o considera de boa-fé. Essa
é a leitura das normas do Código Civil de 1916 (com vigência até
10.1.2003) sobre o tema, a saber:

“Art. 489. É justa a posse que não for violenta, clandestina,


ou precária.
Art. 490. É de boa fé a posse, se o possuidor ignora o vício,
ou o obstáculo que lhe impede da aquisição da coisa, ou do
direito possuído.
Parágrafo único. O possuidor em justo título tem por si a
presunção de boa fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei
expressamente não admite esta presunção.
Art. 491. A posse de boa fé só perde este caráter no caso e
desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que
o possuidor não ignora que possui indevidamente.
Art. 492. Salvo prova em contrário, entende-se manter a
posse o mesmo caráter, com que foi adquirida”.

Ou seja, aquele que possuir justo título – tal como no caso dos autos
em que parte passiva particular apresenta título de propriedade
registrado em cartório – ostenta presunção de boa-fé, a qual só é elidida
por prova em contrário ou quando a lei expressamente afastar tal
presunção, situações que não presentes no caso em tela até o advento
desta decisão que reconhece a propriedade da União sobre a área de
208,9522 ha, razão pela qual, a partir da intimação deste decisum, inverte-
se a presunção de boa-fé para má-fé.
O atual Código Civil de 2002 (com entrada em vigor em 11.1.2003),
assim disciplina a matéria:

“Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o


vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a
presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei
expressamente não admite esta presunção.
Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso
e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir
que o possuidor não ignora que possui indevidamente”.

Tal discussão (posse de boa-fé ou má-fé) é importante para efeito de


indenização das benfeitorias existentes, na forma dos arts. 516 a 519 do
Estatuto Civil de 1916 (vigente à época do ajuizamento da demanda):

“Art. 516. O possuidor de boa fé tem direito a indenização


das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto as
voluptuárias, se lhe não forem pagas, ao de levantá-las, quando
o puder sem detrimento da coisa. Pelo valor das benfeitorias
necessárias e úteis, poderá exercer o direito de retenção.
Art. 517. Ao possuidor de má fé serão ressarcidas somente
as benfeitorias necessárias; mas não lhe assiste o direito de
retenção pela importância destas, nem o de levantar as
voluptuárias.
Art. 518. As benfeitorias compensam-se com os danos, e só
obrigam ao ressarcimento, se ao tempo da evicção ainda
existirem.
Art. 519. O reivindicante obrigado a indenizar as
benfeitorias tem direito de optar entre o seu valor atual e o seu
custo”.

Por outro lado, os arts. 1.219 a 1.222 do atual Código Civil assim
disciplinam:

“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à


indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como,
quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las,
quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o
direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e
úteis.
Art. 1.220. Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas
somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito de
retenção pela importância destas, nem o de levantar as
voluptuárias.
Art. 1.221. As benfeitorias compensam-se com os danos, e
só obrigam ao ressarcimento se ao tempo da evicção ainda
existirem.
Art. 1.222. O reivindicante, obrigado a indenizar as
benfeitorias ao possuidor de má-fé, tem o direito de optar entre
o seu valor atual e o seu custo; ao possuidor de boa-fé
indenizará pelo valor atual”.

Do ponto de vista dos dois marcos legais (Lei 3.071/16 e Lei


10.402/2002), estando de boa-fé, o possuidor tem direito à indenização de
benfeitorias necessárias e úteis e ao levantamento das voluptuárias se não
houver detrimento da coisa (e se não for paga), podendo, inclusive,
exercer direito de retenção quanto às duas primeiras. Ao revés, estando
de má-fé, tem direito apenas ao ressarcimento das benfeitorias
necessárias, não tendo direito de retenção ou de levantar as voluptuárias.
Todavia, há diferenças na sucessão de leis no tempo em relação aos
efeitos financeiros do reconhecimento de a posse ser de boa-fé ou má-fé:
enquanto o CC de 1916 repassava ao reivindicante a faculdade de escolha
entre o valor atual e o custo das benfeitorias, independentemente da
qualificação da posse, o CC de 2002 difere o possuidor de boa-fé (o
reivindicante indenizará pelo valor atual de mercado das benfeitorias), do
de má-fé, cujo valor de ressarcimento (atual ou custo) permanecerá a
critério do reivindicante.
Diante desse cenário, as benfeitorias úteis e necessárias realizadas
até a intimação da presente decisão podem ser indenizadas (ou exercido o
direito de retenção), ocorrendo, a partir desse marco, a presunção da
ciência da litigiosidade sobre o bem imóvel, com atração das
consequências previstas no art. 242 do Código Civil de 2002:

“Art. 242. Se para o melhoramento, ou aumento,


empregou o devedor trabalho ou dispêndio, o caso se regulará
pelas normas deste Código atinentes às benfeitorias realizadas
pelo possuidor de boa-fé ou de má-fé”.

Consequentemente, em relação às eventuais benfeitorias realizadas


em data posterior à intimação da presente decisão, assistem aos
demandados-particulares (espólios) apenas o direito à indenização das
benfeitorias necessárias (desprovido do direito de retenção) e sem
possibilidade de levantamento das voluptuárias, além da perda dos
gastos despendidos nas benfeitorias úteis.
Por outro lado, estando de boa-fé em relação às benfeitorias
realizadas por si ou seus antecessores desde o início do exercício da posse
até 10.1.2003, considero que os requeridos-particulares devem ser
indenizados, com fundamento no art. 519 do CC de 1916, cuja forma de
pagamento será escolhida pelo Incra (valor atual de mercado ou custo),
incluindo aquelas descritas na escritura pública de compra e venda de
20.8.1992 (fls. 55/56):

“(...) que essa posse tem sido exercitada sem


oposição, de qualquer espécie e os cedentes, na mesma
área de terras, construíram benfeitorias, constantes de
uma casa coberta de telhas comuns, paredes de
alvenarias; uma cisterna; um curral de madeira roliça;
duas represas; uma roça de mandioca e 3 (três) alqueires
de capim Andropógon, além de estar toda a área cercada
de arame liso e farpado, com 3 (três) divisões” (grifo
nosso)

Igualmente estando de boa-fé quanto às benfeitorias realizadas em


período posterior à entrada em vigor do CC de 2002 (11.1.2003) até a
intimação da presente decisão, eventual liquidação deverá identificar as
realizadas nesse interstício e realizar o cálculo do valor atual (e não
apenas corrigir monetariamente o valor de custo), isto é, deverá calcular a
quantia de mercado hodierna de cada benfeitoria útil ou necessária
isoladamente, com espeque na parte final do art. 1.222 do Código Civil de
2002
Na fase de cumprimento de sentença, em relação a ambos os
períodos descritos nos quais os requeridos-particulares estavam de boa-fé
(do início do exercício das posses até 10.1.2003 e de 10.1.2003 até a
presente data), resta assegurado o direito à retenção (se assim for
escolhido pelas representantes dos espólios) e a possibilidade de, não
havendo deterioração da coisa, levantamento das benfeitorias
voluptuárias.
Assim, uma vez reconhecida a possibilidade do exercício do direito
de retenção pelos espólios dos requeridos, por estarem de boa-fé em
relação às benfeitorias realizadas até a data da intimação da presente
decisão (por meio de seus advogados via DJe), tal benesse possui o
condão de obstar a restituição imediata do bem imóvel, ostentando sua
eficácia até a data da realização do depósito judicial do valor da
indenização (seja ele de forma antecipada por iniciativa do Incra ou por
meio de precatório), abatendo-se da quantia indenizada correlata o valor
de mercado pelo uso da terra do Incra durante o período do exercício do
direito de retenção (e apenas nesse interregno).
Caso haja, na fase de cumprimento de sentença, a indicação de
benfeitorias realizadas em período posterior à intimação da presente
decisão (no qual passa a ser reconhecida a má-fé), deverá ser assegurado
aos espólios dos particulares-requeridos apenas o ressarcimento das
benfeitorias necessárias, sem direito de retenção ou de levantar as
voluptuárias. Em relação a apenas estas (benfeitorias necessárias
realizadas posteriormente à intimação da presente decisão) poderá o
Incra optar em indenizar pelo valor de custo ou pelo valor atual, com
fundamento na parte inicial do art. 1.222 do CC, sem haver direito de
retenção pelos promovidos-particulares.
Tais valores deverão ser corrigidos monetariamente de acordo com o
Manual de Cálculos da Justiça Federal, inexistindo a incidência de juros
de mora, diante de não haver pedido contraposto nestes autos pelos
demandados-particulares.

5) Honorários advocatícios

Em relação aos honorários advocatícios, inexistem dúvidas acerca da


aplicação do atual Código de Processo Civil, seja pela literalidade de seus
arts. 14 e 1.046, seja pelo fato de ser a decisão final (sentença/decisão
monocrática no caso dos Tribunais Superiores) o ato jurídico que faz
surgir a obrigatoriedade do pagamento de tal verba sucumbencial, a teor
do caput do art. 85 da Lei 13.105/15 (CPC),in verbis:

“Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar


honorários ao advogado do vencedor”.

Vê-se, pois, que é a decisão terminativa ou definitiva o marco


jurígeno da condenação ao pagamento dos honorários advocatícios,
mormente pela impossibilidade de se saber, até então, quem seria o
vencedor ou o vencido.
Os critérios de arbitramento do valor dos honorários estão previstos
no § 2º do art. 85 do CPC, a saber:

“§ 2º. Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e


o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do
proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo,
sobre o valor atualizado da causa, atendidos:
I - o grau de zelo do profissional;
II - o lugar de prestação do serviço;
III - a natureza e a importância da causa;
IV - o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido
para o seu serviço”. (grifo nosso)

À presente causa foi atribuído o valor, não impugnado, de R$


1.000,00 (mil reais), que, corrigido monetariamente pelo IPCA-E de,
11.2004 até 9.2018, alcança o montante de R$ 2.150,04 (extraído da
calculadora do cidadão do Banco Central do Brasil).
A incidência do percentual máximo de 20% mostra-se
demasiadamente irrisória (R$ 430,00), frente ao tempo de quatorze anos
de tramitação e à complexidade do tema, motivo pelo qual é caso de
aplicação do § 8º do art. 85 do CPC:

“§ 8º. Nas causas em que for inestimável ou irrisório o


proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for
muito baixo, o juiz fixará o valor dos honorários por
apreciação equitativa, observando o disposto nos incisos do §
2º”. (grifo nosso)

Nesse cenário, considerando o tempo de tramitação desta ação (14


anos), o trabalho realizado pelos procuradores e complexidade da causa,
considero a quantia de R$ 14.000,00 (quatorze mil reais), como suficiente e
adequada aos comandos do § 2º do art. 85 do CPC.
Considero ter havido sucumbência mínima do Incra, somente no
tocante à perda do direito de indenização das benfeitorias.
Segundo o disposto no parágrafo único do art. 86 do CPC:

“Art. 86. Se um litigante sucumbir em parte mínima do


pedido, o outro responderá, por inteiro, pelas despesas e pelos
honorários”.

Portanto, os três requeridos deverão arcar, solidariamente, com os


honorários advocatícios devidos aos procuradores do Incra.

6) Decisão

Pelo exposto, julgo procedente, em parte, os pedidos autorais para:


1) declarar a “nulidade do Título Definitivo expedido pelo ITERTINS, bem
como o cancelamento do registro e matrícula n R-1-14.207, do LIVRO 02 de
Registro Geral, fls. 204 e os demais dos mesmos decorrentes, efetivados no
Cartório de Registro de Imóveis de Porto Nacional, neste Estado”;
2) assegurar aos espólios dos particulares-requeridos: 2.1) em
relação às benfeitorias úteis e necessárias realizadas até 10.1.2003, serem
indenizados, com fundamento no art. 519 do CC de 1916, cuja forma de
pagamento será escolhida pelo Incra (valor atual de mercado ou custo);
2.2) em relação às benfeitorias úteis e necessárias realizadas de 11.1.2003
até a presente decisão, o direito de indenização pelo valor atual de
mercado ou de eventual retenção até a compensação com a quantia
correspondente, na forma da parte final do art. 1.222 do CC de 2002,
abatendo-se da quantia indenizada o valor de mercado pelo uso da terra
do Incra durante o período da opção pelo exercício do direito de
retenção (e apenas nesse interregno); 2.3) em ambos os períodos
anteriores, assegurar a possibilidade de, não havendo deterioração da
coisa, levantamento das benfeitorias voluptuárias; e 2.4) em relação às
benfeitorias necessárias realizadas após a intimação da presente decisão,
apenas o direito ao ressarcimento pelo valor de custo ou de mercado, a
critério do Incra, sem direito de retenção ou de levantar as voluptuárias.
Tais valores deverão ser corrigidos monetariamente de acordo com o
Manual de Cálculos da Justiça Federal, inexistindo a incidência de juros
de mora.
3) Condenar os réus solidariamente ao pagamento dos honorários
advocatícios no importe de R$ 14.000,00 (quatorze mil reais).
Expeça-se ofício ao Cartório de Registro de Imóveis de Porto
Nacional-TO para que proceda ao “cancelamento do registro e matrícula n R-
1-14.207, do LIVRO 02 de Registro Geral, fls. 204 e os demais dos mesmos
decorrentes”, cancelando as averbações ou registros em nome do Itertins
ou de particulares.
A fase de cumprimento de sentença deverá ser realizada perante a
da 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Tocantins, aplicando-se
analogicamente o disposto no parágrafo único do art. 516 do CPC,
mormente em razão da ausência de conflito federativo pelo fato de todas
as matérias jurídicas terem sido decididas por esta Corte.
Custas pela lei.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 30 de novembro de 2018.

Ministro GILMAR MENDES


Relator
Documento assinado digitalmente

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