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HINO À RAZÃO

Razão, irmã do Amor e da Justiça,


Mais uma vez escuta a minha prece,
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça


De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações


Buscam a liberdade, entre clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti, podem sofrer e não se abatem,


Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

(1874-1880)
Antero de Quental

Lutando furioso contra a desilusão, caindo esmagado pelo aniquilamento,


Antero de Quental ensimesmou-se (para usar de uma feliz expressão espanhola)
meteu-se dentro de si, a sós consigo, apelou para as energias do seu instinto de
homem, e foi isso o que lhe inspirou o belo «Hino à Razão».

Numa primeira leitura, poderá causar estranheza o facto de o poeta


irmanar conceitos tão díspares como a Razão, o Amor e a Justiça. No· entanto,
estes três substantivos abstratos não poderiam deixar de estar associados, uma
vez que a Razão é sinónimo de fraternidade e solidariedade, o Amor
significa fraternidade e a Justiça tem subjacente a igualdade. Ao conciliar a
Razão e o Amor, conceitos à partida antagónicos, pois a Razão aparece aliada à
reflexão, à inteligência, enquanto o Amor se identifica com sentimento e
emoção, o poeta pretende chamar a atenção para o facto de que só será possível
atingir o Bem, a Liberdade, a Virtude, em suma, a Justiça, se a Razão e o Amor
caminharem lado a lado. Ainda na 1ª quadra, que constitui uma espécie de
introdução, o eu lírico revela-se uma alma inteiramente livre, apesar de
submeter-se aos ditames da Razão.
Ora, com0 explicar então esta antítese? Afigura-se-nos fácil, tendo
em conta o que anteriormente foi dito, compreender o sentido desta aparente
contradição, pois o poeta, embora seja um ser livre, para atingir o seu Ideal terá
de se subjugar à Razão, a qual mostra o verdadeiro caminho a seguir. Esta é o
suporte das lutas e da mudança, daí nas três estrofes seguintes, através da
repetição anafórica "Por ti" e de sucessivas enumerações, o poeta reforçar toda a
sua crença na Razão. É por ela que "...na arena trágica, as nações / Buscam a
liberdade, entre clarões", é ela que dá incentivo aos revolucionários, aos
combatentes ("filhos robustos"),que através da sua luta, sempre movidas pela
Razão, fazem prevalecer a virtude e o heroísmo:
"E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça. "
A importância que o poeta atribui à Razão manifesta-se igualmente no uso
constante de:
- polissíndeto, na 2ª e 3ª estrofes;
- verbos no imperativo ("escuta");
- verbos no presente (''permanece'', "prevalece", "medra", " viça", "buscam" ,
etc.) que apontam a intemporalidade da mensagem transmitida;
- metáforas (“… na arena trágica... ", "Mãe de filhos robustos, que
combatem/Tendo o teu nome escrito em seus escudos!");
- encavalgamento, associado à vírgula, que transmite a fluidez de pensamento
do poeta ("E os que olham o futuro e cismam, mudos/ Por ti, podem sofrer e
não se abatem");
- o ponto de exclamação do último verso revela o estado emocional do sujeito
poético, que, embora presente ao longo de todo o poema, se expressa mais
nítida e entusiasticamente no final do soneto.

O poeta considera a Razão «irmã do Amor e da Justiça», porque é a voz do


sentimento («a voz do coração», v. 3; «duma alma», v. 4).
Procurando o sentido da vida e da dor, o poeta tenta unir a razão ao
coração. Compara a razão a um a«mãe de filhos robustos», v. 13, o que contrasta
com a voz do coração (v. 3) a que se submete. A antítese «livre»/«submissa» (v.
4) confirma a antinomia entre a razão de fundo ateísta e o amor e a prece de raiz
católica. O poeta tenta resolver esta aparente oposição considerando que a
submissão por amor se torna dignificante. Daí que «a virtude prevaleça / E a
flor do heroísmo medra e viça» (vv. 7-8).
A anáfora «Por ti» remete para a luta travada pelo Homem, ao longo da
História, em nome da razão. Esta luta é presente/passado e futuro (presente
histórico). Pela Razão, ainda, permanece a harmonia no universo (vv. 5-6), por
ela se mantém a virtude e se desenvolve o heroísmo (vv. 7-8), por ela as nações
procuram encontrar a liberdade (vv. 9-10), por ela se sofre, se combate para que
o futuro seja livre e melhor (vv. 11-14). A anáfora reforça a importância da Razão
para o Homem se realizar no mundo e realizar o próprio mundo.
Só com a Razão se manifesta o Amor, se consegue a justiça e se atinge a
liberdade, o último fim que ansiosamente busca «entre clarões» (v. 10). A
atração pela Liberdade que se apresenta como autodeterminação do se não
invalida a liberdade humana condicionada. Por isso, afirma que a prece «é a
voz […] duma alma livre, só a ti submissa» (vv. 3-4). A «alma livre» é
considerada pela Razão, mas é por esta mesma Razão que as nações buscam a
Liberdade, como fim último.
Amor, Justiça, Liberdade são três valores que ressaltam deste soneto. Ao
tornar a Razão irmã do Amor e da Justiça, o poeta revela-se preocupado em
harmonizar conceitos.
Cabe à Razão levar o Homem a saber que só o Amor e a Justiça podem
criar a harmonia e levar à Liberdade.

QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO

1. Poderá identificar a «Razão», cantada neste poema, com a «Ideia», exaltada


no poema Tese e Antítese I? Justifique baseando-se na mensagem dos poemas.
2. Que expressividade encontra na repetição de «por ti», em lugar de destaque?
3. Transcreva dois versos que sugiram que a Razão se identifica panteistamente
com a Ideia Universal, uma espécie de alma do mundo que comanda a História.
4. Com base na repetição de «por ti», demonstre que a dimensão histórica
enforma o sentido global do poema.

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