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HISTÓRIA, FILOSOFIA E DIREITO: GRÉCIA ANTIGA

Como você deve saber, as grandes contribuições dos gregos para a


formação da sociedade ocidental estão no campo da Filosofia e da mitologia.
Além, é claro, do desenvolvimento da ideia de “democracia” e do direito natural.

A Filosofia grega, em especial o pensamento de Platão e Aristóteles,


será considerada na próxima parte deste curso. Vamos deixar para considerar
a “democracia” e o direito natural no final desta seção. Passemos
primeiramente, assim, à mitologia.

Há, em especial, duas obras mitológicas de nosso interesse: os


Trabalhos e os Dias, de Hesíodo (c. 750 – 650 a.C), e a Antígona, de Sófocles
(c. 497 – 406 a.C.).

1. Os trabalhos e os Dias de Hesíodo

Vamos iniciar nosso estudo dedicando um pouco mais de atenção à


obra de Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias. Como a abordagem de Hesíodo é,
preponderantemente, mitológica, ela não pode ser considerada como fonte
histórica segura – embora ela reflita, é claro, em maior ou menor medida, os
estágios históricos da Grécia antiga. Mas isso não é problema nenhum, porque
o importante mesmo é o seu cunho filosófico. Na verdade, o estudo de
Hesíodo irá introduzir, já de saída, importantes conceitos que serão
trabalhados ao longo de todo este curso.

Ao contrário da compreensão que a maioria das pessoas tem a respeito


da História hoje em dia, a obra de Hesíodo nos apresenta uma visão da
história da humanidade como um retrocesso.

Talvez seja interessante explicar isso um pouco melhor. O pensamento


evolucionista compreende que a humanidade está sempre avançando. Tem-se
uma visão otimista da humanidade e a história é compreendida como um
progresso. Daí a expressão “progressista” ser aplicada a quem tem esse tipo
de visão.

Mas parece que Hesíodo via as coisas de outro modo. A partir da


consideração de diferentes eras – que, obviamente, envolviam a mitologia

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grega – Hesíodo tinha uma visão pessimista da humanidade: ele compreendia,


não é demais reforçar, a história como um retrocesso. Para compreendermos
isso, precisamos considerar, ao menos rapidamente, as diferentes eras
expostas em Os Trabalhos e os Dias (eras do ouro, da prata, do bronze, dos
heróis e do ferro).

A primeira é a era de ouro, que corresponde ao período mitológico dos


deuses. Este é o período da justiça (diké, em grego).

A segunda é a era de prata, que corresponde ao período dos “anjos”


(mais precisamente, em grego a expressão é daímon, de onde vem a palavra
“demônio”).

A terceira é a era de bronze, o período dos homens, que foram


corrompidos e abandonaram a justiça (diké) por causa da violência (em grego,
hýbris).

Com a queda dos homens, inicia-se, então, a luta pela diké, a luta pela
justiça. Devemos notar, no entanto, que esta luta é diferente da violência. Há,
inclusive, palavras gregas diferentes para cada uma: violência, como vimos, é
hýbris; a luta pela justiça é éris. A luta pela justiça não seria uma questão de
violência, mas de virtude. Hesíodo identifica a éris, a luta pela justiça, com o
trabalho (daí, inclusive, o nome do seu livro).

Vem, então, a quarta era, a era dos heróis. Esse é o período,


especialmente, da poesia épica. Na Ilíada, Aquiles, do lado dos gregos, e
Heitor, do lado dos troianos, são as principais personificações da virtude. Na
Odisseia, a perseverança de Odisseu no seu retorno para o lar, após a guerra
de Troia, e a fidelidade de sua esposa, Penélope, são as representações da
virtude.

E aqui, na transição da era de bronze para a era dos heróis podemos


perceber que, apesar de sua visão pessimista da história, Hesíodo admitia a
possibilidade de períodos de prevalência da virtude e da justiça sobre a
violência.

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No entanto, a quinta era, a era do ferro, na qual o próprio Hesíodo


considerava estar vivendo, foi marcada pelo retorno da violência. Apesar disso,
não devemos esquecer que Hesíodo foi um defensor da luta pela justiça. Mas,
segundo entendia, esta luta era uma questão de trabalho e esforço, e não de
violência.

Podemos resumir o livro de Hesíodo no seguinte quadro:

Os Trabalhos e os Dias
Hesíodo

1) Era de ouro Era dos deuses


(era da justiça)

2) Era de prata Era dos “anjos”

Início do período dos homens


Corrupção da justiça pela violência
3) Era de bronze Inicia a “luta” pela justiça
(luta e violência não se confundem)

Em figuras como Aquiles, Heitor e


4) Era dos heróis Odisseu, a virtude e a justiça
superam a violência

5) Era de ferro Retorno dos homens à violência

Conclusão:
A luta pela justiça consiste em trabalho e esforço,

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e não na violência

O que podemos aprender com Hesíodo? Podemos aprender que existe


uma luta pela justiça, mas esta não se confunde com a violência. Pelo
contrário, para Hesíodo, a violência foi, exatamente, o motivo da queda da
humanidade, na era de bronze, à qual retornou, na era de ferro, após o período
heroico.

Podemos, ainda, aprender que há basicamente duas maneiras de


considerar a História: uma, preponderantemente otimista, que podemos
chamar de “progressista” e outra, preponderantemente neutra, inclusive
pendendo para o pessimismo, que podemos chamar de “conservadora.”

Para o “progressista,” a história da humanidade sempre representa um


avanço. Não importa quão equivocadas possam ser as escolhas que nossa
sociedade tenha tomado ou esteja tomando. Não importa quão injusta seja a
nossa atual ordem de coisas. O atual estágio da humanidade sempre
representará uma evolução em relação ao passado. O progresso é certo e
inevitável.

Para o “conservador,” não há garantia nenhuma de que as decisões que


tomamos atualmente sejam boas simplesmente porque elas são as decisões
mais recentes. É preciso considerar a experiência histórica da humanidade e
ver o que deu certo e o que deu errado, apegando-se ao que é sabido que
funciona e deixando de lado o que se sabe que não funciona. É esse o sentido
da expressão “conservadorismo” quando se trata de considerar a história da
humanidade.

Esta diferenciação é fundamental, e por isso é importante que ela seja


bem delimitada já no início do nosso estudo. Esta diferenciação é fundamental
pois trata do que se chama de “cosmovisão”. Cosmovisão nada mais é do que
a maneira como se vê o mundo. Sempre que estudamos uma determinada
teoria, seja ela filosófica, seja ela, até mesmo, jurídica, é preciso levar em conta
a visão de mundo, a cosmovisão que está por trás do que estamos estudando.

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“Cosmovisões”
(visões de mundo)

“Progressismo” “Conservadorismo”
Otimista Neutro, tendendo ao pessimismo
– História como evolução - História como processo que precisa
ser constantemente reavaliado

2. “Antígona” de Sófocles

Na Antígona, temos a ilustração daquilo que podemos chamar de


“problema permanente do Direito”: o embate entre o Jusnaturalismo e o
Juspositivismo.1

No episódio da disputa pelo corpo de Etéocles, os decretos de Creonte,


governante de Tebas, representam o direito positivo: normas produzidas por
um ato de autoridade. Já Antígona, que lutou até a morte pelo direito de
sepultar seu irmão, declarado traidor pelo direito positivitado, personifica a
crença no direito natural, ou seja, em normas eternas e imutáveis que
decorrem da razão e das leis divinas.

A consideração desta tragédia, como já mencionado, nos coloca no


cerne do “problema permanente do Direito”. Mas o embate entre o direito
natural e o direito positivo será especificamente enfrentado na Parte III, sobre o
Direito.

Fazendo uma aproximação histórica ao problema, podemos notar que a


personagem Antígona não apenas representa uma personificação da defesa do

1Você pode conferir o vídeo do Direito Sem Juridiquês sobre a Antígona de Sófocles clicando
aqui.

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direito natural, mas também antecipa um importante problema que somente irá
se consolidar muitos séculos depois, a ideia de desobediência civil.

Além disso, a tragédia de Sófocles demonstra que, naquele estágio da


história da Grécia antiga, não havia recursos intelectuais para resolver esse
conflito normativo entre o direito natural e o direito positivo.

3. Cidades-estados e democracia

Como é bem conhecido, as cidades-estados gregas foram um exemplo


de administração descentralizada que funcionou muito bem na história. Elas
são, assim, um testemunho histórico contra a cada vez mais crescente
centralização de poder que verificamos nos dias atuais.
Feito esse breve registro, deve-se esclarecer que nem todas as cidades-
estados gregas eram sociedades democráticas. Esparta, por exemplo, era
aristocrática. Na verdade, a grande experiência com a democracia, na
antiguidade, ainda hoje lembrada, é a da cidade de Atenas.
Embora os atenienses sejam muito lembrados pela democracia, em que,
de alguma forma, todos os cidadãos participavam diretamente da gestão
democrática da cidade, por meio das deliberações na Ágora, devemos lembrar,
inicialmente, que nem todos eram cidadãos.

Além disso, é muito interessante registrarmos que o final do período


democrático, em Atenas, foi marcado pelo surgimento dos “demagogos,” 2
habilidosos oradores sofistas, que passaram a manipular as decisões da
assembleia da cidade em favor de seus próprios interesses – fenômeno que,
por sinal, se verifica em todo tipo de democracia observada ao longo da
história.

Para essa finalidade, os sofistas estudavam a retórica como um fim em


si mesmo. Ou seja, importava a forma do discurso, para gerar o convencimento
da plateia – e não, necessariamente, seu conteúdo. Esta prática foi muito

2Deve-se apenas esclarecer que demagogós é uma palavra grega que significa, apenas, “líder
do povo” ou, mais precisamente, alguém que “conduz o povo”. A expressão assumiu conotação
pejorativa exatamente neste momento histórico.

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combatida por Platão (c. 428 – 348 a.C.) e, especialmente, por Aristóteles
(384 – 322 a.C.).

Esse tipo de manipulação retórica das decisões políticas no fim do


período democrático de Atenas, típica dos “demagogos” sofistas, foi o que
levou, por exemplo, à condenação de Sócrates (c. 469 a.C. – 399 a.C.). O
caráter irracional e injusto do julgamento de Sócrates explica aspectos
importantes do pensamento de Platão, que era seu discípulo – inclusive,
obviamente, seu desprezo pela retórica sofista.

4. Direito natural

Se, à época em que Sófocles escreveu suas tragédias não se


percebiam ainda recursos intelectuais que permitissem a solução do conflito
entre direito natural e direito positivo, o desenvolvimento da filosofia nos
séculos seguintes permitiu que se chegasse a uma formulação racional mais
clara.

Assim, Aristóteles, por exemplo, falava claramente da prevalência da


“lei” (nomos), bem compreendida como o direito natural, a lei que decorre da
natureza humana racional, sobre os “decretos” (pséfisma) da pólis.

5. A fim da era das cidades-estados e o império macedônico

Como vimos, na segunda metade do Século IV a.C., período em que


Aristóteles alcançou sua maturidade intelectual, a democracia ateniense já
estava em seu declínio.

Na verdade, a agonizante democracia ateniense viu seu fim com o fim


da própria era das cidades-estados gregas, em razão do surgimento do império
macedônio. Primeiramente, Filipe II (382 a.C. – 336 a.C.), conquista a Grécia.
Depois, Alexandre, o Grande (356 a.C. – 323 a.C.), seu filho (que foi aluno de
Aristóteles), estendeu os domínios do império grego – melhor seria dizer
macedônio – à Ásia e ao Norte da África (Egito).

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6. Breve recapitulação

Estudando a Grécia antiga, fomos apresentados, pela “Antígona” de


Sófocles, àquele que pode ser chamado de “problema permanente do Direito”,
o embate entre o Direito natural e o Direito positivo.

Hesíodo, por sua vez, nos mostra uma luta pela justiça, que não se
confunde com a violência, e nos ensinou que é possível ter uma perspectiva
pessimista a respeito da História, diferente da cosmovisão progressista que
predomina nos dias atuais.

Vimos ainda que a tão celebrada democracia direta ateniense era um


tanto restritiva, e não ficou imune à manipulação demagógica.

Por fim, aprendemos, com Aristóteles, sobre a supremacia do direito


natural, derivado da razão, sobre a legislação positivada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no


Direito Comparado.

CICCO, Cláudio de. História do Direito e do Pensamento Jurídico.

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias.

HOMERO. Ilíada.

______. Odisseia.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos aos pós-modernos.

SÓFOCLES. Antígona.

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno.

WOLKMER. Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito.

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