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Da visão mítica do mundo para a visão filosófica

O que é o mito?

Ouvimos a palavra "mito", e a primeira coisa que, por vezes, nos evoca é uma mentira ou
algo falso, mas não é isso que é o mito. O mito é uma estrutura simbólica que condensa uma
série de significados, por meio de uma analogia, por meio de uma transposição de significados
condensados.

Isso significa que aquela história não necessariamente aconteceu de maneira factual, mas
significa uma série de coisas. Ela comunica uma série de coisas, representa uma série de coisas.

O mito expressa um certo movimento da alma, ou seja, a alma se movimenta de um certo


modo, tem uma série de impressões e raciocínios, e você expressa esse movimento da alma
para que a outra pessoa, olhando para aquela estrutura simbólica, consiga passar pelos mesmos
movimentos.

Então o mito não é propriamente mentira, mas é a condensação simbólica, e é assim que
consegue representar uma série de coisas por meio do mito que o discurso puramente factual
não alcança de imediato.

Aliás, em um mito, estão condensadas várias possibilidades.

Normalmente, as sociedades na história se organizaram contando uma série de conjuntos


míticos. Nós temos o mundo antigo de maneira muito proeminente, como o épico de
Gilgamesh; como esses mitos da cultura da Babilônia, nós temos os mitos egípcios. E na Grécia
antiga não era diferente, nós tínhamos também uma explicação mítica do mundo.

Mas com a filosofia, agora as pessoas procuram uma outra forma de expressão, uma
forma que, a partir da razão, nós possamos condensar uma série de significados, encontrar a
unidade das coisas que estão acontecendo, sem necessariamente recorrer à estrutura mítica e
pela pura inspiração.

Para os gregos antigos, o poeta, ele jorrava da boca dele as musas, e as musas são essas
entidades divinas que representam essa inspiração, e a partir dessa inspiração, uma série de
coisas eram comunicadas da história da vida a partir daquela estrutura.

E o mito na Grécia, a estrutura mítica, ela tem peculiaridades que ajudaram a montar a
filosofia, bem como as diferenças. Então vamos entender algumas coisas que montavam esse
imaginário do povo grego.
Nós temos de maneira muito forte a literatura de Homero. Em especial:

-A Ilíada.
-A Odisseia.

Nós temos de maneira muito forte a literatura de Hesíodo como representante desse
período com as obras:

-Teogonia.
-O trabalho e os dias.

Píndaro com as obras das Olimpíadas.

Também temos o teatro grego, expresso muito bem em figuras como Sófocles, Ésquilo e
Eurípedes.

E nós temos coisas como o templo de Apolo, e de onde vem o oráculo de Delfos.

Vamos agora explicar como essas coisas influem na mitologia e entender por que o mito
grego faz uma transição tão natural para uma explicação filosófica.

A Ilíada

Se nós olharmos a Ilíada, vemos que o tema é um épico.

O tema principal dela é o choque entre os deuses; têm essa civilização de Tróia que
representa a civilização meio oriental, e os gregos se unem sob a figura de Agamenon, que
sofre o roubo de sua esposa, Helena. Helena também representa o próprio povo grego em
alguma medida, e as aspirações dele, e ela é roubada por muitos nobres do outro lado, uns
nobres virtuosos. A narrativa destaca temas como a honra, a fúria de Aquiles, a intervenção
divina e os trágicos destinos dos personagens, proporcionando uma exploração profunda das
complexidades da condição humana e divina durante os eventos mitológicos da antiguidade
grega.

A figura de Aquiles

Então existe uma série de dramas, de conflitos entre os deuses. E aí aparece uma figura
na Ilíada, que é Aquiles. Aquiles é um semideus, uma figura incrível, ele é corajoso, forte e
excelente nas coisas, mas Aquiles sofre com a hybris, que é a desmedida.

Na medida em que Aquiles se excede, tem momentos de desequilíbrio. Apesar da


excelência, da união dele em relação aos deuses, aqueles expõem a sua fraqueza, muito
simbolizada no modo como ele morre tomando a flecha no calcanhar.

Então, a história de Aquiles nos ajuda não só a ilustrar certas virtudes do povo grego,
mas ela mostra como há uma autoanálise muito forte, como eles entendem os limites da própria
soberba e como essa soberba pode prejudicar a cultura.

A Figura de Ulisses

Ulisses ou Odisseu inverte a lógica, porque ao invés dele ser o excelente, aquele que é o
forte, ele usa a própria vaidade do povo troiano contra o povo troiano. E esse é o símbolo do
cavalo de Troia. Basicamente, inverte a lógica da hybris. Ou seja, existe uma apologia implícita
da importância do uso do logos, utilizando a inteligência, utilizando a razão, joga a vaidade
contra o adversário, assim, o logos passa a ser uma das formas de solucionar problemas.
O texto aborda a volta para casa de Odisseu (Ulisses) e destaca a virtude da paciência,
personificada na figura de Penélope. Durante suas jornadas, Odisseu demonstra auto moderação
e enfrenta contratempos, simbolizando a moderação. A razão guia sua autodisciplina, equilíbrio
e busca pela virtude, conceitos posteriormente explorados pelos filósofos. Penélope, como
esposa paciente, aguarda seu retorno, apesar dos pretendentes. Odisseu, ao enfrentar desafios
anônimos, mostra excelência sem vaidade social, contrastando com o início da Ilíada. A jornada
da Odisseia busca evidenciar as virtudes do povo grego.

Revela uma luta por uma excelência que não pode cair na hybris, que tem que ser
temperada, que tem que ser equilibrada pelo logos, pela razão. E na medida em que ela é
equilibrada pelo logos, consegue a distinção entre a falsidade e a realidade.

Um olhar para a Teogonia

O texto destaca elementos mitológicos, especialmente a representação de Cronos


devorando seus próprios filhos e a ascensão de Zeus ao Olimpo. A ideia central é a importância
da descendência e fertilidade na cultura. Zeus, ao desafiar a prática de Cronos, assegura uma
descendência e, por conseguinte, a continuidade cultural. A fertilidade torna-se crucial para
garantir que a cultura seja transmitida para as gerações futuras. Apesar do excesso na
proliferação de filhos, Zeus é visto como uma figura que simboliza a fertilidade, sendo o Deus
do trovão e da divisão.

É assim que a Teogonia tem uma série de mitos mostrando a importância dessa
descendência e mostra o kalos agathos: o belo e o bom, buscando uma harmonia cósmica, por
meio desse binômio.

O trabalho e os dias de Hesíodo

O Hesíodo mostra que tem uma sequência de destruições, uma sequência de quedas pelas
quais passa uma civilização nos relatos de Pandora e Mito de Eras.

Nesse texto, descreve-se a concepção mitológica das eras, começando com uma Era de
Ouro em que os humanos estavam próximos do Divino, seguida por uma decadência gradual
por eras de prata, heróis e bronze, culminando na era atual, marcada pela decadência contínua e
perda da presença divina. O mito das eras simboliza a visão cultural da degeneração da
sociedade devido à progressiva desconexão com o divino, representando uma das primeiras
expressões simbólicas dessa ideia na cultura mundial.

O relato de Pandora

O texto aborda como a curiosidade humana, considerada vã (não a verdadeira curiosidade


do filósofo), conduz o homem ao mal e às adversidades. Essa curiosidade é associada à perda
da ordem eterna e divina. A narrativa destaca que a quebra dessa ordem divina resulta não
apenas das transgressões humanas, exemplificadas por Pandora, mas também da passagem
inexorável do tempo.

A Olimpíada

A Olimpíada tem uma busca constante pela aretê, pela excelência.

Isto quer dizer que existe uma competição individual. Não só as pessoas se matam na
guerra, mas elas disputam entre os homens para ver quem é o que melhor corre, para ver quem
é o que melhor luta, para ver quem é o mais rápido, ou seja, mostrar quem foi escolhido pelos
deuses para ser o mais destacado.

O foco é a luta individual pela excelência, em contraste com sociedades orientais, como a
chinesa e japonesa, que tendem a ser mais coletivas. O exemplo do herói Hércules, símbolo de
força e perfeição física, revela que mesmo indivíduos excepcionais podem sucumbir à
destruição e decadência, servindo como um alerta. A aretê, buscando a excelência individual,
impulsiona a sociedade grega a superar desafios, diferenciando-a das culturas orientais.

Obras de Antígona

"Antígona" é uma tragédia grega clássica escrita por Sófocles por volta de 441 a.C. A
peça faz parte de uma trilogia, mas as outras duas obras ("Édipo Rei" e "Édipo em Colono") são
menos conhecidas em comparação com "Antígona". A história gira em torno de Antígona, filha
de Édipo, que desafia as ordens do rei Creonte ao enterrar seu irmão Polinices, que foi
considerado um traidor. Creonte, o novo rei de Tebas, havia proibido o enterro de Polinices
como punição por sua traição.

A tragédia explora temas como o conflito entre o dever moral e as leis civis, a autoridade
do Estado versus a consciência individual (fidelidade à lei não escrita) e as consequências da
desobediência às leis humanas em nome de princípios éticos. Antígona é uma figura trágica que
enfrenta um destino sombrio devido à sua lealdade à família e aos princípios divinos.

Ao longo da peça, Sófocles apresenta um debate profundo sobre moralidade, justiça e


poder, proporcionando uma reflexão sobre a natureza da autoridade e as complexidades éticas
que enfrentamos em nossas vidas.

Obra do Édipo Rei

Essa tragédia grega foi escrita por Sófocles por volta de 429 a.C. A história se desenrola
na cidade de Tebas e gira em torno do personagem central, Édipo.

O rei Laio de Tebas recebe uma profecia que prevê que seu próprio filho o matará e se
casará com sua esposa, Jocasta. Em uma tentativa de evitar o destino, Laio manda prender os
pés do bebê Édipo e entregá-lo a um pastor para ser morto. No entanto, Édipo é adotado por
outro rei e rainha e cresce sem saber sobre suas verdadeiras origens.

Ao atingir a idade adulta, Édipo também recebe uma profecia que prevê que ele matará
seu pai e se casará com sua mãe. Tentando fugir desse destino, ele deixa sua casa adotiva e, no
caminho, encontra Laio em uma encruzilhada e o mata em um acesso de raiva. Mais tarde,
Édipo chega a Tebas, resolve o enigma da Esfinge e se casa com Jocasta, sem saber que ela é
sua verdadeira mãe.

À medida que a verdade começa a se desdobrar, Édipo descobre horrorizado que é o


cumprimento das profecias que tentou evitar, levando a uma série de eventos trágicos,
incluindo o suicídio de Jocasta e a própria cegueira de Édipo. Tudo por causa da transgressão
da ordem natural, que gera o caos.

"Édipo Rei" explora temas como o destino, o livre-arbítrio, a cegueira moral e a


inevitabilidade das profecias.

Em resumo, a vida do grego é a busca do kalos e agathos, que é essa vida da excelência,
e o caminho para chegar nessa excelência é um caminho por meio do logos, por meio da razão.
Inclusive, o oráculo não trata só o mito, mas ele basicamente guia as pessoas para o
autoconhecimento e que consigam exercitar esse logos.

Tales de Mileto

Tales de Mileto aparece como um exemplo precursor da transição do pensamento mítico


para o logos (razão) na filosofia grega. Tales busca explicar a physis (natureza) através de
princípios físicos, utilizando o logos em vez de recorrer a mitos. A barreira entre o mundo
pré-socrático e o mítico é estabelecida, destacando a mudança na explicação do mundo por
meio da razão em vez de mitos. A introdução de outros filósofos pré-socráticos, como
Heráclito, reforça essa abordagem lógica.

A evolução do pensamento atinge uma nova dimensão com Sócrates. Ele introduz
elementos como autoconhecimento, equilíbrio, busca do bem e do belo, e a restauração da
conexão com o Divino. Essa mudança sugere uma transição do mito, agora construído a partir
do logos, não apenas como uma inspiração pura, mas como uma ferramenta para alcançar a
descoberta do kalos, agathos, aretê e verdade, a essência da alma e das coisas.

Na Grécia, a estrutura mítica, com pregações morais e ensinamentos sobre a natureza


humana, evolui para uma ênfase na excelência individual associada ao uso da razão. Os
filósofos pré-socráticos, que utilizam o logos para explicar o mundo natural, preparam o
caminho para pensadores como Sócrates, Platão e Aristóteles.

A transição do imaginário pré-socrático naturalista, com explicações naturais do mundo,


para um imaginário metafísico é destacada. No novo paradigma, o mito só tem validade se
expressar uma realidade metafísica e estiver subordinado à excelência da alma e a uma teologia
específica. Essa mudança representa a passagem da decadência do mito para a ascensão da
filosofia ao longo dos séculos na história da filosofia grega.

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