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COLUNISTA

Affonso Celso Pastore


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Economia

É preciso aprender economia com a


história e não apenas com modelos
matemáticos
Muitas esperanças já foram destruídas por fatos que muitos julgavam irrelevantes e que
preocuparam apenas uns poucos

Affonso Celso Pastore, O Estado de S.Paulo


29 de agosto de 2021 | 05h00

Muitos desprezam a história, preferindo o conforto dos modelos matemáticos. Respeito ambos, mas
dou um grande peso à história.

No regime de Bretton Woods, os EUA fixavam o preço do ouro em US$ 35 por onça-troy, e os demais
países mantinham o câmbio fixo em relação ao dólar. Há cinquenta anos, precisamente em 15 de agosto
de 1971, o presidente Nixon fechou a “gold window”, que permitia aos signatários daquele acordo
converterem as suas reservas em ouro àquele preço. Era o “início do fim” daquele regime monetário,
que só foi formalmente extinto em 1973.

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Naqueles anos, tanto quanto agora, a política monetária do Fed era voltada exclusivamente aos
objetivos domésticos. “O dólar é a nossa moeda, mas o vosso problema”, como disse o secretário John
Connally. Para financiar a guerra do Vietnã e manter o pleno emprego, o Fed expandia a oferta de
moeda que, devido ao câmbio fixo, elevava a oferta mundial de moeda e gerava uma inflação
mundial. A atividade bancária era estimulada, florescendo o mercado de euro-dólares, que ainda
continuou crescendo depois de 1973, dado que os países não abandonaram de imediato o câmbio fixo.
Mercados estão de olho na decisão do Federal Reserve sobre a política monetária dos EUA. Foto: Daniel Slim/AFP

Quando em 1976 ocorreu o segundo choque do petróleo, aumentando o valor das suas importações, o
governo Geisel teve a ilusão de que poderia usar a crise como uma oportunidade de crescimento.
Lançou o II PND através do qual financiou com empréstimos externos os investimentos na produção de
bens de capital e de insumos básicos. Era suposto que a substituição de importações geraria uma
economia de dólares que permitiria pagar o aumento na conta do petróleo, com o benefício do
crescimento econômico.

Os industriais aplaudiram a clarividência do presidente e se auto-enganavam, acreditando que


entrávamos em um mundo novo, no qual a abundância de empréstimos baratos era uma consequência
da reciclagem dos petrodólares, e não da política monetária expansionista do Fed, que teria de
terminar. Geramos uma dívida externa de 50% do PIB, que nos levou à crise da dívida externa dos anos
oitenta. Durante o II PND, o Brasil cresceu a 7,5% ao ano, porém à custa de nos jogar na armadilha do
baixo crescimento, da qual não mais nos livramos.

Não sei se este episódio ainda é estudado nos cursos de Economia, nem se são feitas comparações com
o mundo atual. Mas os alunos deveriam ser advertidos de que, apesar das muitas transformações
institucionais, ainda temos uma relíquia do passado, que é o “privilégio exorbitante” dos EUA – o
benefício de ter a sua própria moeda usada como a moeda reserva internacional. É o único país que,
diante de um déficit nas contas correntes, não tem de se preocupar com seu financiamento. Paga com
sua própria moeda e influencia as políticas monetárias de todos os demais.

Um exemplo são os efeitos da expansão monetária motivada pela crise da covid sobre as taxas de
câmbio dos países livres de graves problemas fiscais e políticos. Quando irrompeu a pandemia, a taxa
dos “fed funds” foi colocada no zero técnico, e foram comprados em torno de US$ 2 trilhões de
treasuries. A consequência dessa maciça expansão monetária foi um enfraquecimento de 10% do dólar
em relação a uma cesta de moedas que inclui euro, libra, iene, dólar canadense, dólar australiano, coroa
sueca e franco suíço – o DXY. Não foram apenas estas 7 moedas que se valorizaram, e sim a quase
totalidade das demais. O mundo agradeceu aos EUA. Afinal, aquela recessão exigia queda acentuada
das taxas de juros, que foi facilitada pelo efeito desinflacionário vindo do fortalecimento de suas
moedas.

Estímulo monetário nos EUA leva a um estímulo monetário mundial, mas a recíproca também é
verdadeira. A inflação vem se elevando, mas ainda não vi preocupações. O “average inflation targeting”
dá um enorme conforto; a transição demográfica derrubou as taxas neutras no mundo; e a culpa de
uma inflação acima de 5% nos EUA não é atribuída ao exagero dos estímulos, mas a choques de oferta.
Da mesma forma, a sensível elevação dos “price earnings ratios” no S&P500 não é atribuída à queda
excessiva da taxa de desconto, e sim ao vigor da economia norte-americana.

Por que nos preocuparmos com uma mudança quando o próprio Fed está seguro de que pode tolerar
uma inflação mais alta? Gostaria de ter essa frieza. Mas o respeito à história e às lições que ela nos
oferece me impedem de tê-la. Já vi muitas esperanças serem destruídas por fatos que muitos julgavam
irrelevantes, e que preocuparam apenas uns poucos.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS.


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