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Carlile Lanzieri Jr. (org.

As faces da renovatio na Idade Média e


no Renascimento

Vivarium
Cuiabá
2018
IV

RENASCIMENTO OU LONGA IDADE MÉDIA?


CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE ITALIANA ENTRE OS SÉCULOS
XIII E XV

Tamara Quírico
UERJ

“Noite da Idade Média, que seja! Mas era uma noite


resplandecente de estrelas” [Gotthold Lessing (1729-
1781)]

Somos fruto do Renascimento. Nossa visão de mundo – de uma sociedade eurocêntrica,


ocidental e judaico-cristã – foi fundamentalmente formada no caldeirão cultural dos séculos XV e
XVI. Essa forte herança, que educou nossa mente e nosso olhar a partir de princípios clara e
racionalmente definidos, faz-nos perceber como corretos o equilíbrio e a simetria: em função
dessa herança, aos olhos da maioria a fachada oeste da Catedral de Chartres (século XII) [Figura
1], com suas belas torres assimétricas, diversas uma da outra, é um grande equívoco arquitetônico.

Este possivelmente é um dos principais motivos porque, salvo raras exceções, a opinião leiga
corrente sobre a produção artística do Ocidente está baseada em pressupostos naturalistas: a “boa
arte” seria fundada nos preceitos da mímesis, ou seja, aquela que conseguisse emular na
bidimensionalidade do papel, de um muro ou de uma tela, ou na tridimensionalidade de uma
escultura, a representação da aparência visual do mundo real. Ainda que jamais tenha ouvido o
nome de Giorgio Vasari (1511 - 1574), o homem ocidental tende a seguir, ainda que de modo
inconsciente, um modelo artístico que vem das primeiras academias de arte fundadas no século
XVI.124 Essa estrutura se manteve essencialmente inalterada ao menos até a primeira metade do
século XX, apesar de todas as tentativas de rompimento com esses cânones empreendidas por
movimentos de vanguarda desde o Impressionismo, no Oitocentos. Basta considerar, para
comprovar esse ponto, os currículos tradicionais das escolas de belas-artes no Brasil, que até

124 A Accademia delle Arti del Disegno, a mais antiga das academias de arte, com sede em Florença, foi
fundada em 1563 por Cosimo de’ Medici, por orientação de Vasari.

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relativamente pouco tempo seguiam os preceitos renascentistas (florentinos, essencialmente) de
que o desenho seria a base de todas as nobres artes: pintura, escultura e mesmo arquitetura.

Figura 1

Vista da Catedral de Chartres (Fotografia: Tamara Quírico)

A menção à Catedral de Chartres é justificada para o argumento que se deseja desenvolver aqui: a
visão equivocada que ainda se tem sobre a Idade Média de modo geral e, acerca de sua produção
artística em particular. Se a boa arte é a naturalista, aquela que imita de modo convincente o
mundo ao nosso redor – aquela, enfim, que poderia ser considerada uma “janela para o mundo”,
conforme o motto frequentemente repetido sobre a pintura renascentista –, esse pressuposto já
excluiria boa parte da arte desenvolvida nos cerca de mil anos que tradicionalmente abarcam o
que definimos por Idade Média. Sim, porque uma parcela expressiva dessa produção parte de
bases de todo diversas da mímesis.

Vale recordar que a própria noção deturpada de “Idade das Trevas”, embora desenvolvida por
Francesco Petrarca (1304 - 1374) ainda no século XIV, será consolidada na cultura humanista dos
séculos XV e XVI. Buscando valorizar a cultura e a arte de seu próprio tempo, aproximando-as
do momento histórico que era considerado o grande berço da civilização ocidental – a
Antiguidade clássica greco-romana –, os homens do Renascimento precisaram perceber os
séculos que os separavam desse passado como um longo período de decadência, responsável por

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sepultar as glórias do passado clássico com a derrocada do Império Romano – donde o adjetivo
gótico para definir essa época, enquanto sinônimo de bárbaro e decadente.

Atualmente, no entanto, não se sustenta mais a visão de que os séculos XV e XVI foram os
fundadores da modernidade (basta lembrar que Jacob Burckhardt escreveu que “o Renascimento
deveria ser retratado como a mãe e a fonte do homem moderno”, um pensamento que derivaria,
em última análise, de Giorgio Vasari); não devem, portanto, ser compreendidos em termos de
“avanço” com relação ao período anterior, que, por sua vez, já não é mais percebido a partir da
negativa alcunha de “Idade das Trevas”.125

Seguramente não defendemos que se considere a Idade Média como um período unitário – e não
pretendemos tratar esse vasto período de pelo menos dez séculos assim –, mas não restam
dúvidas de que os últimos séculos do Medievo (em especial a partir do século XII) podem ser
aproximados de diversos modos dos séculos posteriores – e é capital destacar que isso vai além
dos conceitos de renovatio e de tradição clássica, embora essas sejam igualmente questões
absolutamente relevantes para nossa análise.

De fato, seria fundamental, para eliminar os preconceitos usuais contra o Medievo, que se
esclarecesse em definitivo que esse período não foi o obscuro hiato entre dois momentos de
valorização da cultura clássica. Que ao longo da “Idade das Trevas” houve também significativas
tentativas de retomada da tradição clássica. Embora o foco deste trabalho sejam questões
referentes à arte italiana entre os séculos XIII e XV, é válido recordarmos, por exemplo, a
importância dada a essa tradição por Carlos Magno (742 - 814) que, desejando-se colocar na linha
de sucessão dos antigos imperadores romanos, estabeleceu sua residência e sua corte em Aachen,
construindo edifícios “que seus contemporâneos não hesitaram em comparar aos monumentos
da Antiguidade” em virtude de sua imponência, de sua monumentalidade e também por suas
evidentes “citações eruditas” (D’ONOFRIO in DUBY, 1997, p. 144 e 150).

Aachen deveria se tornar uma segunda Roma, superior a esta, no entanto, por já estar desde o
princípio fundada em bases cristãs. Como escreve Mario D’Onofrio, “Carlos Magno quis que a
arte monumental de seu Império se beneficiasse da tripla herança de Roma, de Constantinopla e

125 Como escreve Jacques Le Goff, “é ele [Burckhardt] que inventa o Renascimento, com R maiúsculo, isola-o
da Idade Média e estabelece esse corte definitivo. Burckhardt joga com a antítese. Opõe esse período – o
Renascimento – ao tempo das trevas, que ainda não estava claramente circunscrito, nem datado. Sua
Civilização do Renascimento na Itália (1860), de resto um grande livro, cria um corte decisivo” (LE GOFF,
2008, p. 60).

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de Jerusalém” (D’ONOFRIO in DUBY, 1997, p. 144). Em contraposição à pax romana de Otávio
Augusto, Carlos Magno propunha a pax Christi.126

Carlos Magno foi também um dos primeiros a incentivar escavações nas áreas de Roma, a caput
mundi, de modo a levar para sua corte os vestígios materiais desse passado clássico: elementos
arquitetônicos e artísticos foram assim trasladados de Roma para Aachen, tornando-se fontes de
inspiração para a produção local.

Figura 2

Estátua equestre de governante carolíngio, século IX. Musée du Louvre, Paris

É a partir dessa perspectiva classicizante que melhor se compreende a confecção, nesse período,
da pequena estátua equestre em bronze figurando o próprio Carlos Magno ou seu neto Carlos, o
Calvo (843 - 877) [Figura 2], claramente inspirada nos modelos romanos de representação de
seus imperadores e líderes militares a cavalo. Se o retratado comparece com trajes que não
deixam dúvidas sobre sua origem carolíngia, o cavalo possui, por outro lado, todas as

126 Mario D’Onofrio analisa, nesse sentido, a estrutura da Capela Palatina, em Aachen, pensada para mostrar “o
perfeito entendimento entre as esferas política e religiosa, ambas comprometidas, pela vontade divina, com
a realização de um plano de propagação da pax christiqua” (D’ONOFRIO in DUBY, 1997, p. 146 a 150).

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características das representações clássicas (greco-romanas) desse animal, reforçando as fontes de
inspiração e as influências da estatueta. Originalmente a figura coroada portava, além do orbe,
também uma espada, atualmente perdida. O soberano carolíngio, portanto, afirmava-se
visualmente “como um conquistador, um ‘novo César’, aos olhos do mundo”.127

As escalas das obras romanas (em geral humanas ou sobre-humanas) eram, certamente, de todo
diversas das do modelo carolíngio, que possui apenas 25 cm de altura; não restam dúvidas,
porém, de que não foram Donatello [Donato di Niccolò di Betto Bardi (1386 - 1466)] e Andrea
del Verrocchio (1435 - 1488) os primeiros artistas a se inspirarem nesse modelo de estatuária
antiga após o fim do Império Romano. A menção aos dois artistas é justificada, tendo em vista
que, tomando diretamente por base a estátua equestre do Imperador Marco Aurélio – preservada
em Roma ao longo da Idade Média por ter sido erroneamente identificada como uma
representação de Constantino a cavalo –, Donatello e Verrocchio realizaram as estátuas equestres
de Erasmo da Narni, o Gattamelatta (1443 - 1453) e de Bartolomeo Colleoni (c. 1483 - 1488)
respectivamente. Se ambos popularizaram a partir do século XV esse tipo de representação, que
tanta influência teve sobre a história da arte ocidental desde então, o mérito de se conceder um
primeiro olhar atento a esse arquétipo e a suas significações artísticas e políticas cabe, por outro
lado, à dinastia carolíngia que encomendou o trabalho ao anônimo artista do século IX.

Percebe-se, então, que o Medievo não voltou as costas para as heranças do passado clássico
deixadas por Grécia e Roma. Isto é particularmente verdadeiro na Península Itálica, onde toda
cidade de maior importância efetivamente se considerava “filha de Roma” – referindo-se,
naturalmente, a Roma enquanto topos de um ideal de desenvolvimento, cultura, pensamento e
arte. Sendo filhas de Roma, essas cidades eram, também, suas herdeiras. Havia, portanto, a clara
consciência de um passado e de sua importância. Seria equivocada, desse modo, a visão de um
renascimento da cultura clássica difundida pelo pensamento humanista a partir do século XV,
tendo em vista que ela jamais teria sido efetivamente “sepultada”. Ao longo de toda a Idade
Média, como se percebeu pelo exemplo de Carlos Magno, Roma e sua cultura ainda se faziam
presentes, seja através dos fartos vestígios materiais que indicavam sua presença física, seja
através desse ideal. Especialmente na Península Itálica, percebem-se reempregos desses vestígios
e reinterpretações do clássico desde muito cedo. Parece-nos que bastam alguns poucos exemplos
para demonstrarmos isso.

127 BARDOZ, M. C. “Statuette equestre: ‘Charlemagne’ ou Charles le Chauve”. Disponível em:


<http://www.louvre.fr/oeuvre-notices/statuette-equestre-charlemagne-ou-charles-le-chauve>. Acesso em
17 de março de 2015.

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A conversão dos antigos templos pagãos em igrejas é já fato notório, um processo que se iniciou
no ano 608, quando o Pantheon, em Roma – o mais importante templo para os antigos romanos
– foi convertido ao culto cristão pelo Papa Bonifácio IV, tornando-se a Igreja de Santa Maria ad
Martyres. Há que se considerar que, no século VII, o Cristianismo já não era mais ameaçado pela
antiga religião romana, o que permitiu a reutilização dos templos pagãos com poucas alterações
em sua estrutura original, tendo em vista que eles já não evocavam mais os antigos cultos. No
caso específico do Pantheon, suas condições de visibilidade e importância para a cidade
possibilitaram o uso ininterrupto do edifício desde sua construção, garantindo sua conservação e
a preservação de boa parte da decoração original do interior. Conforme escreve Susanna Pasquali,
“protegido por séculos da contínua espoliação que atingiu todos os outros edifícios pagãos, o
Pantheon – em particular o seu interior – devia portanto se tornar um dos poucos edifícios
integralmente conservados de toda a arquitetura romana antiga” (PASQUALI in GRAβHOFF,
HEINZELMANN & WÄFLER, 2009, p. 157). O antigo templo de Agrippa e Adriano, então,
tornou-se uma das mais importantes fontes de inspiração para a tradição clássica ao longo de
todo o Medievo.

Figura 3

Igreja de San Salvatore, detalhe do presbitério, fim do século IV. Spoleto (Fotografia: Tamara Quírico)

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Em outras igrejas, ainda que construídas segundo o modelo civil da basílica romana, percebe-se
também o reemprego pontual – porém literal – de elementos arquitetônicos clássicos,
seguramente retirados de edifícios romanos espoliados. É o que vemos na Igreja de San
Salvatore, em Spoleto [Figura 3], uma das mais antigas igrejas cristãs preservadas na Península
Itálica, construída provavelmente em fins do século IV. No presbitério, colunas com capitéis
coríntios sustentam um entablamento em estilo dórico, indicando a reutilização de elementos
arquitetônicos tomados de templos pagãos diversos no novo edifício cristão. Ainda que
desvirtuando os princípios que regem as ordens clássicas consolidadas por Vitrúvio em seu De
architectura (século I a.C.), esse exemplo mostra que os elementos clássicos estavam presentes,
inspirando contínua e ininterruptamente os homens do Medievo.

A mesma inspiração também se evidencia nas artes plásticas, em que claras citações da estatuária
clássica podem ser encontradas. Um processo que, se constante ao longo dos séculos,
intensificou-se particularmente a partir do século XIII. Um dos exemplos mais notáveis é,
possivelmente, a personificação da Fortitude (ou Fortaleza) no púlpito do Batistério de Pisa,
esculpido por volta de 1260 por Nicola Pisano [Nicolò Pietri de Apulia (c. 1220 - c. 1284)]
[Figura 4].128 Chama-nos imediatamente a atenção o fato de que a figura está nua, embora
executada para o interior de um edifício religioso. Mais do que isso, porém, percebemos como o
modelado do corpo, as proporções e a própria pose da personificação (quase um contrapposto,
conforme definido pelo escultor grego Policleto no século V a.C.), claramente remetem a
modelos antigos. É evidente, por fim, a inspiração na igualmente clássica iconografia de Hércules,
devido não somente à anatomia musculosa da figura, mas também à presença da pele do leão,
bem como desses animais ainda vivos.

A Fortitude, vale recordar, é uma das quatro virtudes cardeais,129 cujas origens remontam à
Antiguidade clássica, consideradas as virtudes fundamentais para se conseguir uma vida virtuosa.
A partir de fontes clássicas elas foram absorvidas pelo Cristianismo. Fortitude é sinônimo de
coragem, ou seja, a capacidade de confrontar os medos e as incertezas da vida. Por suas
características, a associação entre esta virtude e Hércules é evidente. Deve-se considerar, no
entanto, que ao longo da Idade Média a Fortitude era geralmente representada como uma

128 O Púlpito do Batistério de San Giovanni, em Pisa, é considerado um dos conjuntos mais importantes da
escultura italiana de fins do Medievo. Com 4,65 metros de altura, e uma base hexagonal, possui baixos-
relevos que representam as cenas da Natividade, da Adoração dos Magos, da Apresentação ao Templo, da
Crucificação e do Juízo Final. Também são figurados profetas e evangelistas, quatro virtudes cardeais, São
João Batista e o Arcanjo Miguel.
129 As outras são a Temperança (ou a prática do auto-controle), Prudência (ou Sabedoria) e Justiça.

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guerreira, e por isso tendia a se assemelhar à deusa Minerva; sua figuração como Hércules se
torna mais comum a partir do século XV (o que indica as aproximações de Nicola com modelos
caros aos humanistas do Quattrocento) (HALL, 2008, p. 131). Hércules ou Minerva, não importa; a
referência para uma virtude cristã no Medievo, de qualquer modo, é a mitologia greco-romana,
denotando o aporte da cultura clássica sobre a religiosidade e a arte medievais.

Figura 4

Nicola Pisano. Fortitude, ca. 1260. Púlpito do Batistério de San Giovanni, Pisa (Fotografia: Paula Vermeersch)

Análise semelhante se pode fazer de outro exemplo, também presente em um púlpito em Pisa, na
Catedral de Santa Maria Assunta, e realizado por Giovanni Pisano (1250 - 1315), filho de Nicola:
a personificação da Prudência, finalizada por volta de 1310. Se a Fortitude do batistério tem ecos
da estatuária clássica, na Prudência da catedral a referência é direta e imediata – a chamada Vênus
de Medici, cópia do século I a.C. de um original grego em bronze, e que remete ao modelo da
célebre Vênus de Cnido, executada por Praxíteles no século IV a.C.. As primeiras referências
textuais à escultura remontam somente a 1638, quando é documentada na antologia Segmenta
nobilia signorum et statuarum que temporis dentem invidium evase, publicada em Roma por François
Perrier (HASKELL & PENNY, 1981, p. 325). É bastante provável, no entanto, que já fosse

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conhecida desde muito antes,130 uma vez que há referências visuais a ela – como a própria
Prudência de Giovanni Pisano – desde o século XIV.

Tanto a Fortitude de Nicola, como a Prudência de Giovanni, demonstram ainda como as vias de
influências são múltiplas, estendendo-se no tempo (passado e futuro); de fato, a Vênus de Medici
foi a provável fonte inspiradora não somente para a escultura de Giovanni Pisano, mas também
para uma das mais conhecidas pinturas da arte renascentista: o Nascimento de Vênus, de Sandro
Botticelli (1445 - 1510), realizada entre 1484 e 1486 por encomenda de Lorenzo di Medici. No
caso da Fortitude de Nicola, sua pose é retomada mais de duzentos anos depois por
Michelangelo (1475 - 1564) em seu célebre Davi, finalizado em 1504. Talvez ambos tenham se
baseado em um protótipo comum, atualmente perdido, mas é igualmente plausível que
Buonarroti tenha se inspirado diretamente no púlpito de Pisa. Anton Gill também menciona a
possível influência sobre Michelangelo de outra escultura representando Hércules, realizada por
Niccolò di Pietro em 1393 para a Porta della Mandorla da catedral de Florença (GILL, 2003, p.
234). Este relevo remete, de fato, à pose do Davi michelangiano. Poderíamos talvez ver nele o elo
entre Giovanni e Michelangelo?

Compreende-se, portanto, que as fronteiras que tradicionalmente dividem esses dois momentos
são muito mais fluidas do que tendemos a considerar. Ao contrário da visão habitual, que opõe
Idade Média e Renascimento, podemos perceber claras aproximações entre os períodos. Pois, se
há sem dúvida mudanças, há também continuidade em algumas das mais importantes questões
que nortearam os desenvolvimentos artísticos. De fato, muitas das modificações que se percebem
no Quattrocento e mesmo no Cinquecento são resultado de novos processos que começaram a surgir
já no fim do século XII (ainda que não na arte, certamente nos novos desenvolvimentos
econômicos e sociais), e não somente no XIV. No discurso sobre a arte desse período, que ainda
persiste, há claramente uma visão seletiva, que ignora continuidades em favor das mudanças.

Devemos fazer, aliás, uma breve observação no que se refere a uma das maiores mudanças que,
usualmente, considera-se haver na arte nesse momento: a suposta transformação do status dos
artistas, que de artesãos anônimos na Idade Média teriam se tornado não somente criadores, mas
também pensadores. É absolutamente necessário que essa liberdade de criação do Renascimento
seja relativizada. Para fundamentarmos esse argumento, é suficiente mencionarmos uma carta
escrita no início do século XVI por Isabella d’Este (1474 - 1539) a Pietro Perugino (1446 - 1523),

130 É possível que a escultura já tivesse sido adquirida no século XVI por Ferdinando de’ Medici (1587-1609)
para ser exposta na Villa Medici, em Florença, razão de seu nome atual.

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sobre uma encomenda que ela fizera ao artista de um trabalho com o tema Batalha do Amor e da
Castidade, que desejava colocar em seu studiolo no Castelo de San Giorgio, em Mântua (atualmente
a pintura pertence ao acervo do Musée du Louvre). Isabella descreveu em detalhes a Perugino os
elementos que desejava presentes na obra:131

Nossa invenção poética, que desejo grandemente que você pinte, é a Batalha da
Castidade contra a Lascívia, ou seja, Palas [Atena] e Diana lutando virilmente contra
Vênus e o Amor. E Palas deve parecer ter quase derrotado o Amor, tendo-lhe
quebrado a flecha de ouro e o arco de prata e os jogado a seus pés, segurando-o [o
Amor] com uma mão pelo lenço que o cego usa sobre os olhos, com a outra erguendo
sua lança de modo a feri-lo. E Diana e Vênus devem se mostrar igualmente vitoriosas; e
somente as partes externas ao corpo [de Vênus], como a coroa e a guirlanda, ou algum
véu a seu redor, deverão ter sido apenas ligeiramente danificados; enquanto as vestes de
Diana terão sido chamuscadas pela tocha de Vênus, mas nenhuma das deusas terá sido
ferida (…).

A descrição da obra prosseguia com diversos outros detalhes que deveriam ocupar o plano de
fundo da pintura, como ninfas, sátiros e amoretti.132 O que salta aos olhos, no entanto, é o modo
como terminavam as instruções ao pintor: Isabella d’Este encerrou afirmando que “se você acha
que essas figuras sejam excessivas para um quadro, você pode reduzir o número conforme
desejar, contanto que não lhe seja retirado o fundamento principal, que são aquelas quatro
primeiras, Palas, Diana, Vênus e Amor. (…) mas não introduza qualquer outra coisa (grifo nosso)”.133

131 As instruções, vale recordar, foram provavelmente elaboradas pelo poeta Paride da Ceresara, um dos
principais conselheiros de Isabella em Mântua.
132 “La poetica nostra inventione, la quale grandemente desidero da voi esser dipinta, è una batagla di Castità
contro di Lascivia, cioè Pallade e Diana combattere virilmente contro Venere e Amore. E Pallade vol parere
quasi de avere come vinto Amore, havendoli spezato lo strale d'oro et l'arco d'argento posto sotto li piedi,
tenendolo con l'una mano per il velo che il cieco porta inanti li ochi, con l'altra alzando l'asta, stia posta in
modo di ferirlo. Et Diana al contrasto de Venere devene mostrarsi eguale nella vittoria; et che solamente in
la parte extrinsecha del corpo come ne la mitra e la girlanda, overo in qualche velettino che abbi intorno, sia
da lei saettata Venere; et Diana dalla face di Venere li habbia brusata la veste et in nulla altra parte sian fra
loro percosse. Dopo queste quatro deità, le castissime seguace nimfe di Pallade e Diana habbino con varii
modi e atti, come a voi piú piacerà, a combattere asperamente con una turba lascivia di fauni, satiri et mille
varii amori. Et questi amori a rispetto di quel primo debbono essere piú picholi con archi non d'argento, né
cum strali d'oro, ma piú di vil materia come di legno o ferro o d'altra cosa che vi parrà.
Et per piú expressione et ornamento della pittura dallato di Pallade li vuol esser la oliva arbore
dedicata allei, dove lo scudo li sia riposto col capo di Medusa, facendoli posare fra quelli rami la civetta, per
essere ucciello proprio di Pallade; dallato di Venere si debbe farli el mirto, arbore gratissima allei.
Ma per maggior vaghezza li vorebbe uno acomodato lontano, cioè uno fiume overo mare dove si
vedessero passare in sochorso d'Amore, fauni, satíri et altri amori, e chi di loro notando passare el fiume e
chi volando, e chi sopra bianchi cigni cavalcando, se ne venissero a tanta amorosa impresa. E sopra el lito
del detto fiume o mare Jove con altri iddei, come nemico di castità, trasmutato in tauro portasse via la bella
Europa, e Mercurio, qual aquila sopra preda girando, volasse intorno ad una nympha di Pallada chiamata
Glaucera, la qual nel braccio tiene un cistello ove sono li sacri della detta iddea; e Polifemo ciclope con un
solo occhio coresse diretro a Galatea, et Phebo a Daphne già conversa in lauro, et Pluton, rapita Proserpina,
la portasse allo infernale suo regno, et Neptuno pigliasse una nimpha e conversa quasi tutta in cornice...”
(ISABELLA D’ESTE, 1503).
133 “Ma parendo forse a voi che queste figure fussero troppe per uno quadro, a voi stia di diminuire quanto vi
parerà, purché poi non li sia rimosso el fondamento principale, che è quelle quatro prime, Pallade, Diana,
Venere, et Amore. Non accadendo incomodo mi chiamerò satisfatta sempre; a sminuirli sia in libertà vostra,
ma non agiugnierli cosa alcuna altra” (ISABELLA D’ESTE, 1503).

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Essa carta é significativa por algumas razões: primeiro, por mostrar que a visão que temos do
artista renascentista como gênio criador e independente é um topos, uma construção que tem suas
origens nas Vidas dos artistas, de Vasari, cuja primeira edição foi publicada em 1550; ela evidencia,
ademais, como um patrono secular poderia ser tão rígido e preciso com relação às suas
encomendas como um comitente religioso. Por fim, a carta de Isabella d’Este mostra como o
gênio renascentista, em vários aspectos, está muito mais próximo do artesão medieval do que
poderíamos supor em nossa visão tradicional.

Não desejamos necessariamente seguir a linha da longa Idade Média proposta por Jacques Le
Goff em seus estudos, embora percebamos o eco de muitas de suas reflexões neste trabalho:

Digo imediatamente: privilegio a dupla continuidade/virada em prejuízo da noção de


ruptura. A história transcorre de modo contínuo. Uma série de mudanças – que
frequentemente não são simultâneas – delimitam evoluções. Quando um certo número
dessas mudanças afeta domínios tão diferentes como a economia, os costumes, a
política ou as ciências; quando essas trocas acabam por interagir umas sobre as outras
até constituir um sistema, ou, em todo caso, uma paisagem nova, então, sim, podemos
falar de uma mudança de período (LE GOFF, 2008, p. 55).

Nesse sentido, podemos sem dúvida considerar que uma primeira ruptura de fato, nesse contexto,
ocorreu somente no século XVI, com as Reformas protestante e católica. Afinal, as estruturas
político-sociais, assim como religiosas (talvez especialmente essas), se mantiveram
fundamentalmente as mesmas até a primeira metade do Cinquecento. Como escreveu Richard
Trexler, “o homem do Renascimento permaneceu cristão, até mesmo um cristão pio. As formas
do mundo e sua arte podem estar em transição, mas a cosmologia de seus habitantes permaneceu
cristã. (…) os dogmas e as crenças cristãs permaneceram essencialmente inalteradas”
(TREXLER, 1972, p. 7).

Para além da renovatio e da posição do artista na sociedade, então, é fundamental destacar esse
outro fator: a religião cristã – com seus ritos e suas práticas – manteve-se como um dos principais
norteadores da cultura ocidental. Não podemos ignorar, portanto, seu aporte também sobre as
artes – afinal, o Cristianismo é uma religião de imagens. Desse modo, mesmo nos séculos XV e
XVI, no apogeu dos estudos humanistas e de valorização e resgate da cultura clássica, boa parte
da arte produzida na Península Itálica ainda era religiosa.

A estrutura social e religiosa que viabilizou a realização dessas imagens, então, pouco mudou
entre o século XIII e meados do XVI. Afinal, foi somente nesse momento que a Reforma
protestante exigiu mudanças profundas da Igreja de Roma, que tiveram forte impacto também

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sobre a produção artística voltada para a temática cristã. E é justamente a temática, seus modos
de elaboração e de representação, um dos elementos que melhor indicam essa continuidade entre
Medievo e Renascimento: até o Concílio de Trento (convocado pela primeira vez pelo papa
Paulo III em 1545, e que se reuniu em diversas sessões até o fim de 1563), foram poucos os
momentos em que a Igreja realmente buscou “fixar, corrigir ou condenar os modos de
representação”; a arte cristã medieval, portanto, ao contrário do que tradicionalmente se pensa, se
caracterizou por uma “fluidez figurativa” (BASCHET, 2006, p. 494) e por uma liberdade de
criação que em geral associamos somente à arte do Renascimento. Situação completamente
diversa ocorreria após o Concílio, “quando o Tratado das imagens santas, de Molanus [Johannes
Molanus (1533 - 1585)], torna-se a expressão de uma vontade de controle clerical sobre a
iconografia”, conforme escreve Jérôme Baschet (BASCHET, 2006, p. 494).

Outro ponto deve ainda ser considerado: muito dessa produção até o século XVI é resultado não
somente de encomendas oficiais da Igreja, mas de leigos, homens comuns que solicitavam obras
para adornar edifícios religiosos ou para sua devoção privada – e não nos referimos somente a
grandes mecenas, como Lorenzo di Medici ou Isabella d’Este. Mesmo o leigo mais simples
poderia encomendar uma obra com tema cristão, por motivos que serão discutidos a seguir.

Ao menos desde o século XIII mudanças profundas na religiosidade incentivaram uma


aproximação mais pessoal e particularizada com o divino – uma devoção privada, em suma.
Nesse íntimo processo de diálogo religioso que se poderia estabelecer entre o fiel e o divino, as
imagens tiveram papel fundamental, como suporte privilegiado para as meditações privadas que
poderiam levar ao transitus.134 Muitas dessas obras, ademais, poderiam ser classificadas não
somente como devocionais, mas igualmente como imagens votivas, trabalhos encomendados que
solicitariam a intervenção da santidade representada na solução de um problema, ou que
poderiam funcionar como agradecimento a essa mesma santidade pela graça já alcançada, o que
era mais comum. As chamadas tavolette votive, que se desenvolveram especialmente a partir do
século XV (substituindo gradativamente objetos em cera que desempenhavam a mesma função),
tornaram-se extremamente populares na Península Itálica ao longo do século XVI, denotando,
como afirma Mary Laven, a existência de uma “verdadeira indústria votiva em ação” (LAVEN,
2014). Não há dúvidas, portanto, de que, ao contrário do que o senso comum tradicionalmente
imagina, a religiosidade e, por conseguinte, os temas cristãos continuaram tendo imensa

134 Sobre a noção de transitus e para uma discussão mais aprofundada acerca das funções das imagens religiosas,
tema que não pode ser desenvolvido a contento aqui, ver BASCHET, 2006; SCHMITT, 2007; BELTING,
2010.

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importância mesmo ao longo do século XV e da primeira metade do Cinquecento, período que
marcaria o auge do humanismo renascentista.

As funções religiosas desses objetos, portanto, se mantiveram essencialmente as mesmas ao


longo dos séculos. Os modos de elaboração dessas imagens, e de sua distribuição dentro dos
espaços religiosos, também. Pode-se, nesse sentido, mencionar o exemplo de duas capelas, cujas
ornamentações135 foram resultado de encomendas de pessoas de uma mesma família, dentro da
mesma igreja, no espaço de pouco mais de 150 anos: as Capelas Strozzi, no interior da Igreja de
Santa Maria Novella, em Florença, pintadas uma por Nardo di Cione (? - 1366) entre 1354 e 1357
[Figura 5], a outra por Filippino Lippi (1457 - 1504) entre 1487 e 1502. As duas capelas, como
visto, foram comissionadas por membros da mesma família; ambas tinham o mesmo propósito –
serem locais de sepultamento e orações para a família (ou seja, locais de memorialização); ambos os
patronos – Tommaso em 1354 e Filippo em 1487 – redigiram contratos especificando a
qualidade dos materiais a serem usados, o tempo para execução das pinturas, bem como o custo
final; ambas tinham temáticas retiradas da mesma tradição cristã: Nardo di Cione pintou uma
composição tripartida do Juízo Final nas três paredes da capela,136 enquanto Filippino Lippo
desenvolveu um ciclo com cenas da vida de São Filipe e de São João Evangelista. Para além das
diferenças estilísticas, que decerto existem, ambos os ciclos de afrescos foram pensados a partir
das mesmas diretrizes, buscando os mesmos objetivos dentro do contexto religioso. As imagens
cristãs, portanto, possuem usos e funções específicos, que têm relação direta com sua própria
concepção enquanto imagens religiosas, não importando se foram realizadas no século XIII ou
no XV.

135 É preciso ressaltar que o conceito de ornamento, conforme desenvolvido por Jean-Claude Bonne, deve ser
entendido não segundo sua acepção moderna de decoração, de “complemento agradável”, mas a partir do
sentido “que o latim clássico e medieval dá a este termo, quer dizer, como um equipamento indispensável à
realização de uma função, como as armas de um soldado ou a vela de um navio” (BASCHET, 2006, p.
496).
136 Para uma discussão sobre os desenvolvimentos nos modos de representação do tema do Juízo Final, que
culminaram com a composição tripartida da cena mencionada acima, ver QUÍRICO, 2014.

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Figura 5

Nardo di Cione. Decoração da Capela Strozzi, com ciclo do Juízo Final, ca. 1354-1357. Igreja de Santa Maria
Novella, Florença (Fotografia: Tamara Quírico)

Finalizamos essas breves reflexões esperando ter mostrado as fronteiras fluidas que havia entre as
produções artísticas renascentista e a medieval, muito mais semelhantes do que poderíamos a
princípio imaginar. Uma semelhança que, como visto, engloba e extrapola as questões
relacionadas à renovatio da tradição clássica: não apenas a Idade Média é herdeira de Roma, como
o Renascimento ainda se sustenta, fundamentalmente, em bases cristãs.

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